universidade federal do paranÁ sandro … · subtítulo fantaisies à la manière de rembrandt e...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SANDRO JORGE BIER
O “BALANÇO NOVO” DAS CRÔNICAS DE VINICIUS DE MORAES EM PARA VIVER UM GRANDE AMOR
CURITIBA 2007
SANDRO JORGE BIER
O “BALANÇO NOVO” DAS CRÔNICAS DE VINICIUS DE MORAES EM PARA VIVER UM GRANDE AMOR
Monografia apresentada como exigência parcial do título de Bacharel do Curso de Letras Português – Estudos Literários, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Profª. Drª. Raquel Illescas Bueno
CURITIBA
2007
ii
Dedico este trabalho à Karina, minha esposa,
e ao Gustavo, meu filho.
Muitas das horas pertencentes a vocês estão contidas neste trabalho.
Obrigado pela compreensão e apoio.
iii
RESUMO A presente pesquisa tem por objetivo analisar as crônicas de Vinicius de
Moraes contidas no livro Para viver um grande amor, a partir da discussão das
diferenças entre prosa e poesia. O trabalho investiga quanto de poesia está presente
na prosa de Vinicius e qual a importância das crônicas na obra desse autor, sempre
muito lembrado por sua poesia e sua música. O “balanço novo” proposto por Vinicius
inclui os poemas e as crônicas em novo meio, o livro, a dar outro fôlego e dimensão
à sua obra.
iv
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................... iii INTRODUÇÃO ............................................................................................................1 1. Poesia e prosa ....................................................................................................2 2. A crônica: prosa ou poesia? .............................................................................7
2.1 Conceito de crônica ...................................................................................................7 2.2 Entre a prosa e a poesia ........................................................................................ 10
3. O cronista Vinicius de Moraes ........................................................................12 3.1 Para viver um grande amor ................................................................................... 14 3.2 Análise das crônicas “O tempo sob o sol” e “Para viver um grande amor”............................................................................ 20
“O tempo sob o sol” .................................................................................................. 20 “Para viver um grande amor” .................................................................................. 22
CONCLUSÃO ...........................................................................................................24 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................27 ANEXO I....................................................................................................................29
1
INTRODUÇÃO Vinicius de Moraes (1913-1980), poeta, cronista, letrista, cantor. Carioca de
nascimento e de alma, cidadão do mundo por conta de suas atividades diversas:
como estudante, diplomata e artista. Residiu e circulou por capitais da Europa, como
Paris e Londres; e da América: Los Angeles, Montevidéu e Buenos Aires. Todas
estas andanças, e inclusive as muitas feitas pelo Brasil, deixaram marcas em sua
obra. Mas a influência maior sempre foi a cidade do Rio de Janeiro.
O gosto pela poesia, inserida na família há algumas gerações, já aparece no
menino Vinicius, quando este rouba um poema do pai, Clodoaldo, para adaptá-lo e
oferecê-lo à primeira namoradinha de escola. O adolescente e depois jovem
aprimora sua arte pela prática. A Igreja Católica, muito forte na sua formação, tem
grande influência na sua produção poética. Nessa época o místico e a religião estão
em muitos dos seus poemas, alguns serão praticamente orações.
Seu primeiro livro, Caminho para a distância (1933), de temática religiosa e
transcendental, é bastante elogiado por setores católicos. Nesse livro Vinicius é um
pouco mais que um adolescente, para muitos se trata de uma obra imatura. Em
Forma e exegese (1935), Vinicius já deixa de lado os temas bíblicos e divinos e
esboça aqueles temas pelos quais sua obra será conduzida no futuro: o amor, a
mulher e o retrato do cotidiano. Os versos tornam-se mais expressivos e mais
extensos.
Sua produção de poemas será lançada regularmente: Ariana, a mulher
(1936), Novos poemas (1938), Cinco elegias (1943), Poemas, sonetos e baladas
(1946), Pátria minha (1949), Antologia poética (1954), Livro de sonetos (1957),
Novos poemas (II) (1959), Para viver um grande amor (1962), A arca de Noé;
poemas infantis (1970), Poesia completa e prosa (org. Alexei Bueno) (1998).
Este estudo objetiva analisar algumas das crônicas do livro Para viver um
grande amor. Ao iluminar o cronista Vinicius de Moraes, pretende também apontar
elementos poéticos em sua prosa. A análise de duas das crônicas do livro, com
temáticas distintas, procurará levantar elementos de literariedade na obra de Vinicius
de Moraes.
2
1. Poesia e prosa Definir o que seja poesia e prosa tem sido objeto de discussão há muito
tempo. Por “definir”, leiam-se as tentativas em se identificar diferenças, semelhanças
e se estabelecer conceitos pelos quais o reconhecimento de poesia e prosa pudesse
ser direto e imediato. A simples aparência de algo escrito não é suficiente para se
fazer qualquer afirmação dessa natureza, assim como o lugar comum de que a
versificação possa indicar o que é poesia e o texto corrido o que é prosa. Edmir
Perrotti se manifesta a esse respeito:
O simples uso de recursos que são próprios à poética não conseguiria caracterizar o poeta, e consequentemente, a poesia, já que “se alguém compuser em verso um tratado de medicina ou de física, esse será vulgarmente chamado de ‘poeta’”; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, metrificação à parte; aquele merece o nome de poeta, e este o de fisiólogo... (PERROTTI, 1986, p. 30-31)
Um olhar para a história, no entanto, além de levantar fatos, pode reproduzir
alguns registros das discussões acerca das definições de ambos os gêneros.
A poesia, a prosa e todas as formas literárias têm sua gênese na linguagem.
Sua utilização social fornece algumas pistas da necessidade de expressão do ser
humano. Roman Jakobson faz sua leitura acerca da poesia:
A poesia é um facto inelutável. Dizem os antropólogos que não há um só grupo étnico desprovido de poesia, mesmo nas sociedades denominadas “primitivas”. Trata-se, pois, dum fenômeno universal, exactamente como a linguagem. (JAKOBSON, 1973, p. 5)
Assim como a linguagem, a poesia seria, portanto, intrínseca aos grupos
humanos, seja ela em seus cantos, rituais ou como expressão de alegria e
festividade. Pensamento também compartilhado por T.S. Elliot, ao discorrer sobre a
função social da poesia, “ao cantarmos um hino ainda estamos usando a poesia
com uma finalidade social” (ELLIOT, 1971, p. 29).
Como instrumento social e de uso da linguagem, Benedito Nunes apresenta
o pensamento de Heidegger sobre arte, com destaque para a poesia:
Do ponto de vista heideggeriano, porém, a poesia do Ocidente está dentro e fora da Literatura, e a sua posição eminente no conjunto das artes vem de que antecede à cultura do espírito, à paideía. Mais diretamente do que qualquer outra arte, a poesia participa, pela palavra, que constitui matéria, do trabalho preliminar e mais primitivo do pensamento, como obra da linguagem. (NUNES, 1986, p. 261)
3
A posição elevada que Heidegger atribui à poesia corrobora o pensamento
de que esta é anterior à paidéia: “o processo de educação em sua forma verdadeira,
a forma natural e genuinamente humana" na Grécia antiga, segundo a definição de
Werner Jaeger (JAEGER, 1936, p. 1-18 ). Sobre a poesia complementa Benedito
Nunes:
Em Hegel podemos encontrar, por um lado, a forma de concepção poética oposta à consciência prosaica, como o princípio geral da arte, e, por outro a poesia, em que aquela se realiza, como arte geral, sintetizando o modo de representação das outras artes. (NUNES, 1986, p. 259-260)
Linguagem e poesia nascem da necessidade de expressão. E a cultura de
um povo é definida pela forma como se expressa.
Definir os termos poesia e prosa não é das tarefas mais fáceis. Entretanto,
de forma bastante generalizada, poesia poderia ser definida como o arranjo
harmônico das palavras. Geralmente, um poema organiza-se em versos,
caracterizados pela escolha precisa das palavras em função de seus valores
semânticos (denotativos e, especialmente, conotativos) e sonoros. É possível a
ocorrência da rima, bem como a construção em formas determinadas como o soneto
e o haikai. Segundo características formais e temáticas, classificam-se diversas
formas poéticas adotados pelos poetas, entre elas a elegia, o soneto, a ode e o
haikai.
Quanto à ficção em prosa poder-se-ia defini-la como sendo mais crua e o
texto “corrido”, sem versificação. Bastante objetiva e com formas literárias variadas,
que vão do romance à novela.
Os gêneros literários desde muito tempo. Prova disso é que a cultura ocidental, apoiada na cultura greco-latina, está estabelecida, em três grandes obras literárias, a Ilíada, a Odisséia e a Eneida (meados do século IX a.C.), as quais permeiam nossa cultura literária até os dias de hoje (SUHAMY, 1986, p. 77). Platão (cerca de 428 a.C. – cerca de 347 a.C.), em seu livro III da República (394 a.C.), é o primeiro a classificar as obras literárias. Enquanto Platão atribui uma função moralizante às artes, Aristóteles (384 a.C – 322 a.C.) guia-se pela estética e recusa a hierarquia platônica. Em sua célebre obra A poética, escrita por volta de 340 a.C., esclarece melhor a percepção da mímesis artística.
Aristóteles parece referir-se apenas aos gêneros épico (isto é, narrativo) e
dramático. Ao diferenciar duas maneiras de narrar, uma em que há introdução de
4
um terceiro e outra em que se insinua a própria pessoa, esta última parece
aproximar-se do que hoje chamamos de poesia lírica (ROSENFELD, 1965, p. 4).
As epopéias clássicas – a Ilíada, a Odisséia e a Eneida – não são tratadas
como poesia pelo seu caráter de longa narrativa literária de caráter heróico,
grandioso e de interesse nacional e social e que apresenta, juntamente com todos
os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo,
espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos
históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo-se apresentar em prosa
ou em verso (SOARES, 2006, p. 39).
Mesmo que a poesia (verso e gênero) seja conhecidamente mais antiga do
que a prosa (linguagem), as trocas entre os dois gêneros remontam também à
Antiguidade greco-latina. Nebulosa e muitas vezes involuntária, a prosa literária
atendia a soluções formais, como os indícios de que Isócrates (436-338 a.C.) tenha
sido o primeiro a escrever o encômio de Evagoras (435-376 a.C.), rei de Chipre, não
mais em versos, mas em prosa poética. Depois de Isócrates, Xenofonte, com
Agesilaus e Cyropedia, mostra a tendência da prosa em tornar-se cada vez mais
fictícia e mais poética. Seguiu-se a produção dos Sofistas de Alexandria, conhecida
como a “Segunda Sofística”, na qual a pura poesia em verso é sucedida pela pura
poesia em prosa. A prosa poética também perpassa a Bíblia, como no “Cântico dos
Cânticos”, e a partir da Idade Média é encontrada nos sermões. Ganha notoriedade
somente a partir da segunda metade do século XVI. Em 1540 já é chamada de
prose poétique. No século XVII, a prosa cadenciada modula o teatro de Molière e os
escritos de Fénelon (MOISÉS, 1967, p. 21).
Nos séculos seguintes, a prosa, enquanto poesia, passa a ocupar grande
espaço da poesia. Um dos fatores para isso é a grande preocupação dos poetas, a
partir do século XVIII, com a metrificação da poesia, enquanto a prosa gozava de
muito maior liberdade, sendo muito mais utilizada para atender novas demandas
literárias. Entre 1760 e 1820, se processava o desprestígio do verso como
instrumento privilegiado da poesia. Desse modo as condições para o surgimento do
poema em prosa tornaram-se propícias (MOISÉS, 1967, p. 22- 23). Esta nova forma
de poesia viria a ter grandes opositores. Nas palavras de Voltaire (1694-1778), “O
que é um poema em prosa, senão uma confissão de impotência?” (JOHNSON,
1982, p. 113).
5
Em 1842, Aloysius Bertrand lança sua obra Gaspard de La Nuit, com o
subtítulo Fantaisies à la manière de Rembrandt e de Callot. Baudelaire consideraria
Bertrand o criador do gênero pelo “misterioso e brilhante modelo” (MOISÉS, 1967, p.
22).
A discussão do que seria poesia ou prosa e quais seriam as fronteiras de
uma e outra se seguiriam no decorrer das décadas. A cada nova contribuição
literária, como de Baudelaire ao lançar seus Petits poèmes em prosa (JOHNSON,
1982, p. 114), o estranhamento ou a simpatia poderiam tomar a cena literária.
Baudelaire, considerado o precursor da modernidade, procura romper com
as amarras da metrificação e invade com a poesia o terreno da prosa.
Para os Modernistas brasileiros a dessacralização do objeto poético foi um
dos principais objetivos e isso possibilitou ultrapassar os padrões gramaticais,
léxicais e principalmente da forma literária.
Pelo fato de muitos poetas, autores ou críticos terem escrito sobre o
assunto, pode-se inferir que muitos tenham se perguntado acerca de qual seria a
centelha para produzir poesia ou prosa. Para alguns seria o caso de incluir a poesia
como um ramo das ciências naturais, por ser algo dado pela natureza: esta seria a
forma com que Cristovão Tezza “traduziria” a definição dada por Jorge Luis Borges
(TEZZA, 2003, p. 57). Outros, como T. S. Elliot, não se sentiam à vontade para
arriscar uma definição de poesia. Este preferia falar da variedade e da antiguidade
do uso, a poesia sendo uma forma anterior à palavra (TEZZA, 2003, p. 59). Em
relação à antiguidade, Tezza cita também o poeta russo Joseph Brodsky: “O fato é
que a poesia simplesmente acontece de ser mais velha do que a prosa e assim
cobriu uma distância maior. A literatura começou com a poesia, com a canção de um
nômade que antecede os rabiscos de um colono.” (TEZZA, 2003, p. 59)
Se a antiguidade é um fato histórico, outros elementos são necessários para
caracterizar poesia, entre eles o ritmo, frequentemente mencionado nas definições.
Existiria outro elemento importante da poesia, que teria a capacidade de produzir o
efeito poético no leitor. Isso aconteceria pela forma com que as palavras são
utilizadas. Paul Valéry (se) faz este questionamento: “A Poesia é uma arte da
linguagem; certas combinações de palavras podem produzir uma emoção que
outras não produzem, e que denominamos poética. Qual é essa espécie de
emoção?” (VALÉRY, 1991, p. 205)
6
Se a poesia tem a capacidade de provocar não somente discussões nas
quais cada poeta tem a sua verdade, e a defesa da poesia é muito maior do que a
da prosa, poder-se-ia perguntar quais seriam as funções de cada uma. Enquanto a
poesia se nega à utilidade e permanece como objeto estético, a prosa atende aos
mais diversos objetivos.
Nesse sentido Paul Valéry faz um paralelo entre prosa e poesia, segundo o
qual a prosa seria comparada ao andar e a poesia à dança:
O andar, como a prosa, visa um objeto preciso. É um ato dirigido para alguma coisa à qual é nossa finalidade juntarmo-nos. São circunstâncias pontuais, como a necessidade de um objeto, o impulso de meu desejo, o estado de um corpo, de minha visão, do terreno etc. que ordenam ao andar seu comportamento, prescrevem-lhe sua direção, sua velocidade e dão-lhe um prazo limitado.
A dança é totalmente diferente. É, sem dúvida, um sistema de atos; mas que têm seu fim em si mesmos. Não vão a parte alguma. Se buscam um objeto, é apenas um objeto ideal, um estado, um arrebatamento, um fantasma da flor, um extremo de vida, um sorriso – que se forma finalmente no rosto de quem o solicitava ao espaço vazio. (VALÉRY, 1991, p. 212)
De uma forma poética e ao mesmo tempo informativa, Valéry consegue dar,
não definições conclusivas, mas pistas das pegadas já pisadas por quem conviveu
entre a prosa e a poesia, assim como muitos outros poetas, escritores, críticos ou
simplesmente leitores que ao ler um texto conseguem identificar e classificar
mentalmente o que estão lendo, na maioria das vezes não para escrever um tratado
a respeito, mas para confirmar o encontro com um objeto de arte.
7
2. A crônica: prosa ou poesia?
2.1 Conceito de crônica A crônica moderna brasileira, tal qual a conhecemos hoje, tem sua origem
na França do século XIX. O termo feuilletons, ou “folhetim”, tem seu uso
amplamente difundido na produção jornalística no Brasil. Entretanto, em meados
daquele século, o vocábulo “crônica” substitui o anterior e torna-se parte integrante
dos jornais. Diversos escritores dessa época, entre eles José de Alencar e Machado
de Assis, aderem a essa manifestação literária. Mas é no século XX que a fase de
esplendor da crônica realmente acontece (MOISÉS, 1967, p. 102).
Paulo Barreto (1881-1921), jornalista do Rio de Janeiro, percebe que
esperar por notícias na redação não teria o mesmo efeito de ir buscá-las em sua
fonte. Por isso, o jornalista sobe morros, freqüenta lugares da malandragem carioca
atrás de elementos que possa utilizar nos seus escritos. João do Rio (seu
pseudônimo mais famoso - entre 1900 e 1920) constrói uma nova sintaxe para a
forma literária da crônica e ao mesmo tempo impõe uma nova maneira de ser do
profissional de jornalismo (SÁ, 2005, p. 8-9).
A partir de João do Rio muitos outros imprimiriam sua marca na crônica
brasileira, mais especificamente carioca. Rubem Braga, na década de 30, não se
ateve ao registro formal dos fatos. Muitas vezes de conhecimento público ou
resultado do imaginário do cronista, a crônica proporciona uma interpretação mais
subjetiva ou de recriação do real (SÁ, 2005, p. 9). Além de Rubem Braga, muitos
outros escritores, romancistas, contistas, jornalistas e poetas têm se enveredado
pela atividade de cronistas a fim de poder se expressar de uma forma mais
aproximada do leitor; graças à oralidade e à forma de diálogo características à
crônica. Entre esses, Fernando Sabino, Sérgio Porto, Lourenço Diaféria, Paulo
Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de
Moraes.
Com o passar do tempo a crônica se tornou menos informativa e mais leve e
descompromissada. Se aclimatou ao Brasil. Por esses e outros aspectos a crônica é
considerada um gênero brasileiro (CANDIDO, 1992, p. 15).
Para uma melhor conceituação de crônica, é preciso, primeiramente, lançar
um olhar sobre seu veículo, a saber, o jornal ou revista. Preferencialmente o jornal,
8
com sua característica de duração de um dia, imprime à crônica uma validade curta.
Em geral, as notícias e inclusive as crônicas, têm o mesmo destino: o esquecimento.
A crônica é, portanto, uma expressão jornalística, em primeiro lugar. O que salvaria
a crônica do ostracismo, no entanto, é a sua literariedade. A oscilação entre
reportagem e literatura poderia garantir à crônica sua sobrevivência.
A crônica, no entanto, sobreviveu e se desenvolveu pela necessidade de se
diferenciar por completo do restante do conteúdo do jornal.
Para se fazer ouvir de modo diferente e merecer maior respeito do leitor, que trata as notícias sem a menor cerimônia, a crônica antes de tudo tenta se diferenciar, como se fosse uma visitante ilustre num país bruto, inculto e insensível. Por isso tem que ser diferente em tudo: ocupa um espaço fixo, ao invés de ficar flutuando, perdida, seguindo a vontade do compositor ou diagramador; não trata dos fatos que têm importância por si mesmos, ao contrário, volta-se justamente para aquilo que passaria despercebido se não fosse o cronista; não usa títulos e manchetes para chamar a atenção (... ) (RONCARI, 1985, p.14)
Além das características físicas no jornal enumeradas por Roncari a
linguagem inerente a essa expressão de mídia impressa é o que possibilita uma
crônica ser reconhecida como crônica. Dentre as características do discurso, o
coloquialismo dialoga com o literário e a norma padrão para em sua reelaboração
ligar o cronista e o leitor em uma dimensão exata, de aparente simplicidade (SÁ,
2005, p. 11). A possibilidade de diálogo entre diversos ambientes, gêneros, público
e seus criadores é responsável direta pela criação de uma linguagem única na
crônica brasileira. Para Jorge de Sá “a sua sintaxe lembra alguma coisa
desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que
propriamente do texto escrito” (SÁ, 2005, p. 11). Isso confirma a contemporaneidade
do cronista junto ao leitor; aquele coloca na boca deste o presente que o leitor
conhece, mas que o cronista “traduz” e amplifica. Para Roncari “sua função é revelar
ao leitor o que sempre esteve a seus olhos” (RONCARI, 1985, p. 15).
O impacto que a crônica tem sobre a vida do leitor comum, em um primeiro
momento parece ser mera diversão (que não deixa de ser), entretanto a crônica teria
outras camadas. Segundo Antonio Candido, a crônica “na sua despretensão,
humaniza”; uma humanização que lhe permitiria recuperar uma certa profundidade
de significado (CANDIDO, 1992, p. 13).
Antonio Candido fala também da proximidade da crônica com o dia-a-dia,
dessa forma age para a “quebra do monumental e da ênfase”:
9
A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, - sobretudo porque quase sempre utiliza o humor (CANDIDO, 1992, p. 14).
10
2.2 Entre a prosa e a poesia A proximidade da crônica com a poesia é percebida em alguns elementos
comuns como o apelo ao “eu”: as experiências, os gostos e caprichos pessoais
(RONCARI, 1985, p.14). Massaud Moisés percebe este aspecto da seguinte
maneira: “Enquanto poesia, a crônica explora a temática do “eu”, resulta de o “eu”
ser o assunto e o narrador a um só tempo, precisamente como todo ato poético.”
(MOISÉS, 1967, p. 111).
O cronista lança um olhar diferenciado sobre as coisas do cotidiano; enxerga
no detalhe o estranhamento que é só por ele percebido; faz do presente seu
combustível. A isso se pode acrescentar o muito de poeta que existe em todo
cronista. Jorge de Sá define:
Para ver além da banalidade, o cronista vê a cidade com os olhos de um bêbado ou de um poeta: vê mais do que a aparência, por isso mesmo, as forças secretas da vida. Não se limita a descrever o objeto que tem diante de si, mas o examina, penetra-o e o recria, buscando sua essência, pois o que interessa não é o real visto em função de valores consagrados. (SÁ, 2005, p. 48)
Antonio Candido, em artigo para a Folha da Manhã, em 1944, referindo-se
ao livro Confissões de Minas, de Carlos Drummond de Andrade (Americ-Edit., 1944),
afirma “uma verdade de ordem bastante geral”: que são os poetas que “geralmente
manejam a prosa com uma elegância e uma beleza iguais às dos seus versos”, em
comparação com romancistas. Estes não conseguiriam organizar suas idéias no
papel, enquanto que os poetas teriam maior capacidade de organizar o seu
pensamento e disciplinar sua língua. Os poetas escreveriam, propõe o crítico, com
um senso da língua, uma maturidade intelectual ausente nos grandes ficcionistas.
Em relação a Drummond, Candido é levado a procurar na sua poesia o segredo de
sua prosa e se convence de que ambas são devidas à mesma linha interna de
severa autocrítica e infinita capacidade de emoção (CANDIDO, 2002, p. 198-199).
Ainda segundo Antonio Candido, “A crônica tem algo de um repolho que vira
flor. Parte do detalhe cotidiano e chega à poesia, à moral, à política”. Esse trajeto,
entretanto, precisa ser percorrido de forma cuidadosa, se a intenção for clara demais
vira artigo ou ensaio (CANDIDO, 2002, p. 208). A sensibilidade parece ser a grande
mola propulsora para que o cronista consiga extrair do cotidiano e de si mesmo a
11
crônica que representa um mundo fugidio e circunstancial. E os poetas é que teriam
maior aproximação com este idioma que incorpora realidade e expressão.
A crônica poética, tanto quanto o poema em prosa, busca nas imagens
poéticas sua forma de expressão. Por outro lado, a crônica pode também adquirir
aspectos de conto, com uma linha divisória muito tênue, sendo que a principal
diferença é definida pela sua densidade. Enquanto o contista se aprofunda na
criação dos personagens, do tempo e espaço, o cronista dá a idéia de querer ficar
somente na superfície (SÁ, 2005, p. 9). Em geral é o próprio cronista quem narra os
acontecimentos sem a intermediação de um narrador propriamente dito, muitas
vezes inclui dados biográficos e acrescenta toques de ficcionalidade.
A crônica ainda pode se aproximar muito do ensaio. Embora ambos se
caracterizem pela subjetividade e a abordagem do “eu”, “o ensaio guarda sempre
uma intenção”. O que acaba por afastar os dois, pois para a crônica existir é
necessário se livrar da intencionalidade (MOISÉS, 1967, p. 109).
12
3. O cronista Vinicius de Moraes Vinicius de Moraes torna-se cronista no jornal carioca A Manhã, em 19411.
Atua também no jornal como crítico cinematográfico e colaborador no Suplemento
Literário, ao lado de Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Afonso
Arinos de Melo Franco. O exercício da crônica seguirá em paralelo às publicações
dos poemas, bem como às outras atividades do poeta. Em 1951 começa a colaborar
no jornal Última Hora, como cronista diário e posteriormente crítico de cinema. Em
1953 faz crônicas diárias para o jornal A Vanguarda, no Rio de Janeiro. No ano de
1964 passa a escrever crônicas semanais para a revista Fatos e Fotos e assina
paralelamente crônicas sobre música popular para o Diário Carioca. No Jornal do
Brasil publica crônicas durante o ano de 1969 (COUTINHO, 1987, p. 49-56).
Vinicius teria sua própria definição de ser cronista em “O exercício da
crônica”:
Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada como faz um cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais fino (MORAES, 1991, p. 17).2
Em 1962, depois de cerca de duas décadas como cronista, Vinicius decide
lançar sua primeira coletânea do gênero. O livro Para viver um grande amor,
lançado no mesmo ano, traz poemas e crônicas reunidos. Conforme o conteúdo da
Advertência, “...crônicas (...) mescladas a poemas de fato e circunstância... Os
poemas, ... visam amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um ‘balanço’
novo” (MORAES, 1991, p. 17). Nas palavras de seu amigo, e por vezes agente
literário Otto Lara Resende, a respeito de Para viver um grande amor,
Aqui está o Vinicius mais acessível – o que se abriu ao grande público, antes mesmo de ser bafejado pela universal popularidade que buscou e conquistou como expoente da MPB. Há muito se sabe que são vários os Vinicius. Depois do Vinicius musical, foi o Vinicius cronista quem mais depressa chegou ao coração do grande público (MORAES, 1991, capa).
De fato, o grande público passa a olhar para Vinicius de Moraes com outros
olhos, a partir do lançamento de Para viver um grande amor. O livro atinge vários
1 No livro Para viver um grande amor há uma nota de rodapé indentificando a crônica “A transfiguração pela poesia” com estas palavras: “Primeira crônica do autor, publicada em A Manhã, 1946” 2 Todas as citações do livro Para viver um grande amor referem-se à 2ª edição da Companhia das Letras (2006), cuja primeira edição foi lançada em 1991. (MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo : Companhia das Letras, 2006.)
13
tipos de público ao contemplar os que gostam e conhecem sua poesia, e resgata os
textos em prosa de suas melhores (pelo crivo do autor) crônicas reunidas em um só
volume. Vinicius dá ao livro um título muito feliz, aproveitado de uma das crônicas
que, no entanto, não tem conexão com nenhuma outra crônica ou poema. Ao
mesmo tempo poético e romântico (no sentido sentimental), Para viver um grande
amor ainda convida o leitor a encontrar em suas páginas certa “receita” a ser
desvendada para se encontrar, identificar, conhecer, e assim, viver um grande amor.
No ano de 1962, o Brasil passava por certa euforia coletiva. Apesar do Rio
de Janeiro ter deixado de ser a Capital Federal, dois anos após a fundação de
Brasília o país respirava modernidade. A conquista do bicampeonato de futebol pelo
Brasil, na Copa do Mundo no Chile, era motivo suficiente para o povo em geral ter
uma auto-imagem bastante positiva.
Para Vinicius, 1962 seria um ótimo ano. Começa a compor com Baden
Powell e Carlos Lyra. Em agosto, faz seu primeiro show, de larga repercussão, com
Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, no qual foram lançados pela primeira vez
grandes sucessos internacionais como "Garota de Ipanema" e o "Samba da
bênção". Faz show com Carlos Lyra, no qual é lançada a cantora Nara Leão. Cria
juntamente com Ari Barroso as últimas canções desse grande compositor popular.
Grava, como cantor, seu disco com a atriz e cantora Odete Lara.
Em 1966, aparece seu segundo livro de crônicas, Para uma menina com
uma flor, reunindo outra porção de crônicas, selecionadas do período de 1941 a
1966.
Em 1974, uma segunda edição de Poesia completa e prosa (a primeira
edição é de 1968) incluiu crônicas publicadas no Jornal do Brasil entre 15.06.1969 e
20.10.1969.
Nos anos seguintes a contribuição de Vinicius com suas crônicas para os
jornais praticamente cessaria. A partir do seu envolvimento cada vez maior com a
música, shows, cinema, sua produção artística é direcionada para outras áreas
artísticas.
14
3.1 Para viver um grande amor Para viver um grande amor, lançado em 1962, é o primeiro livro de crônicas
reunidas de Vinicius de Moraes. É formado por uma introdução (“Advertência”),
seguida de 45 textos em prosa, intercalados por 43 poemas (exceto as crônicas “A
outra face de Lucinha” e “Noa Noa”, que não possuem um poema intercalando-as).
A “Advertência” deixa claro que se trata de um livro de prosa, no qual estão
mesclados crônicas e poemas “de fato e de circunstância”.
Também na “Advertência” fica a sugestão de que os textos ali reunidos
seriam menos líricos do que o restante da produção de Vinicius, afinal, em princípio,
tanto a crônica como a poesia de circunstância são formas literárias ligadas ao aqui
e agora, sem intenção de permanência no tempo. Veremos, adiante, que em relação
às crônicas essa pressuposição nem sempre corresponde à verdade.
O texto menciona também que as crônicas foram publicadas em jornais e
revistas diversos, entretanto, a maioria teria sido publicada em Última Hora, a partir
de 1959. No parágrafo seguinte a Advertência situa que as crônicas foram escritas
desde os últimos dias de Vinicius em Paris, em 1957, até o final de sua estadia em
Montevidéu, em 1960.
Em seu último parágrafo há uma menção de louvor à secretária d. Yvonne
Barbare por seu trabalho em copiar e ordenar as mais de mil crônicas para que a
seleção do livro fosse feita.
Chama a atenção que a Advertência tenha sido escrita na terceira pessoa do
singular. Há uma referência ao A. (Autor), mas não fica claro se é Vinicius quem teria
escrito o texto.
O livro é dedicado a Lucinha, Maria Lúcia Proença, esposa de Vinicius no
período de 1958 a 1962. Ironicamente, quando o livro é lançado o casamento com
Lucinha já estaria no fim. Em 1963 já se casaria com Nelita Abreu Rocha. Outra
referência na Advertência é de que o período de 1957 a 1960 teria sido justamente o
da “experiência do grande amor”. Por meio desta declaração seria possível
depreender que Vinicius teria, sim, escrito a Advertência. A afirmação de que aquele
período específico teria sido fértil para uma experiência de “grande amor”, só
poderia ter sido feita por quem a viveu.
Para viver um grande amor apresenta três epígrafes:
But in my mind of all mankind/ I love but you alone. (Anônimo, The Nutbrow Maid)
15
Amor condusse noi ad una morte. (Dante, O Inferno)
The world was all before them, where to choose/ Their place of rest, and Providence their guide./ They, hand in hand, with wand’ring steps and slow/ Through Eden took their solitary way. (Milton, Paradise lost)
A primeira (Anônimo) e a terceira (Milton) encontram-se em inglês e a
segunda em italiano (Dante). Enquanto a epígrafe de The Nutbrow Maid propõe a
exclusividade do amor, a de Milton relaciona morte e amor (tema clássico), já a
última insere a idéia da companhia amorosa “hand in hand” (mão na mão, de mãos
dadas) no universo do Gênesis: perde-se o Paraíso, mas ganha-se o amor. São três
epígrafes que surpreendem num livro de crônicas, pois não são despretensiosas,
pelo contrário, são reflexões muito profundas sobre o amor, duas delas de autoria de
dois dos maiores poetas de todos os tempos.
Para viver um grande amor está estruturado com uma introdução, a
Advertência; nas duas páginas seguintes a dedicatória e as epígrafes; na seqüência
o índice, e o livro abre com “O exercício da crônica”, o qual de certa maneira prepara
o leitor para o tipo de prosa que irá encontrar: a “conversa fiada”, como se esta fosse
uma conversa entre amigos, dá o tom em todas as crônicas.
Grande parte do livro está escrito na primeira pessoa do singular. O “eu” é o
cronista Vinicius que relata, por exemplo, seu convívio com o pai Clodoaldo em “O
dia do meu pai”, no qual Vinicius se utiliza de elementos poéticos, da alteração dos
elementos das frases para sua narração:
Faz hoje nove anos que Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, homem pobre mas de ilustre estirpe, desincompatibilizou-se com este mundo. Teve ele, entre outras prebendas encontradas no seu modesto, mas lírico caminho, a de ser meu pai. (p. 39)
Em “A bela ninfa do bosque sagrado”, o “eu” não se mostra tão
autobiográfico e sim, mais ficcionalizado. Embora se saiba da circulação de Vinicius
entre os astros e estrelas norte americanos de Holywood, a crônica não cita seu
nome diretamente:
Hollywood, novembro de 1946: A noite é alta, Ciro's terminou e estamos todos - um destacado grupo de "estrelas" e "astros", entre os quais sou um modesto meteorito - na casa de Beverly Hills de Herman Hover, o notório dono da famosa boate de Sunset Boulevard. Vou nas águas de minha amiga Carmen Miranda, com quem saí e a quem, como um cavalheiro que sou, depositarei em sua vivenda de Bedford Street. (p. 149)
Em suas crônicas Vinicius revisita o cotidiano. Sua fonte de inspiração são
os fatos do dia-a-dia vistos com outros olhos, geralmente com certa dose de humor
ou poesia, os elementos que afastam o fato do real. Desvincularem-se da realidade
16
é concessão dada pelos leitores de jornal aos cronistas e poetas. Segundo a própria
definição de Vinicius em “O exercício da crônica”,
Senta-se ele [o cronista] diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas peculiares, possa injetar um sangue novo. (p. 17)
As temáticas do real, das quais Vinicius obtém o substrato para injetar “um
sangue novo”, são bastante variadas, embora algumas sejam temas de repetidas
crônicas. Em Para viver um grande amor, Vinicius começa com a arte de escrever
em prosa em “O exercício da crônica”, conforme já descrito anteriormente. Em
“Sobre poesia” a temática gira em torno de uma tentativa de definição de poesia e
da importância do poema:
Não têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos, críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir em versos, velha como a humanidade. (p. 102)
(...)
Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani - que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso - podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. (p. 104)
Temática recorrente em sua poesia, a mulher é assunto de algumas
crônicas. Essa “mulher” por vezes é referida como “bem-amada”, em outras, cantada
em prosa. Vinicius se utiliza de metáforas, mas também de descrições às vezes
idealizadas, permeadas de poesia:
Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte...
Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. (“Poema de aniversário”, p. 20)
Um dia, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era “a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam un mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos. (“Uma mulher chamada guitarra”, p. 23)
Basta verificar sua biografia que se percebe que Vinicius viajava muito. As
narrativas de viagens apresentam objetivos diferentes entre si, pois apesar de
mostrarem o deslocamento físico, o cronista elege algum elemento em particular
17
para dele, e não da viagem em si, extrair sua crônica. Como em “Mistério a bordo”,
em que narra a investida de um gato contra uma mariposa:
Mas de repente ouço um horrível miado de terror e compreendo a razão do seu pânico, pois ele me foi em parte transmitido. Vinda do mar, uma enorme mariposa cor de cinza entrou direto sala adentro e partiu para cima do gato. (p. 29)
Na crônica “Médico de flores”, ao narrar uma viagem a Buenos Aires,
Vinicius se deixa levar pela imaginação e pela poeticidade:
Depois a imaginação se me partiu, e eu fiquei achando que médico de flores seria ainda mais belo. Que linda e honesta profissão a ter! E como eu seria o único do Rio, não chegaria para as encomendas, com uma clientela de fazer inveja a meus amigos os drs. Clementino Fraga Filho, Marcelo Garcia e Ivo Pitanguy, dentro de suas especialidades. Estaria assim muito bem no meu consultório e de repente minha mãe, aflitíssima, telefonaria: "Meu filho, vem depressa que minhas rosas estão morrendo..." (p. 44)
Vinicius leu e sempre se interessou muito por outros escritores e poetas.
Várias crônicas apresentam homenagens, como “Morte de um pássaro”, a respeito
de Federico Garcia Lorca. Também Rilke, Jorge Amado, ou até mesmo um episódio
satírico a respeito de Rubem Braga, cada um em formados distintos, mas
permeados de poesia e sensibilidade:
Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. (“Morte de um pássaro”, p. 78)
Ao som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente - embora já dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas - de reler o poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duino. (“Relendo Rilke”, p. 107)
O Braga animou a ave canora com milhões de piu-pius, fez-lhe mentalmente enérgicas perorações contra a sua calhordice - tudo isso, conta minha irmã Lygia, com olhos onde se começava a notar uma certa apreensão. O canário, nada. (“O conde e o passarinho”, p. 85)
Os eventos da infância, a presença dos pais e familiares ressoa nas crônicas
de diversas maneiras, como em “O dia do meu pai”, “A casa materna”, “Pedro, meu
filho”, nas quais as lembranças e os laços sanguíneos fazem a poesia emolduras
suas narrativas:
É sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. (“A casa materna”, p. 93)
18
Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal de terra verde onde corra, quem sabe, um córrego pensativo; e nessa terra, um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado - a insensatez de um coração constantemente apaixonado. (“Pedro, meu filho”, p. 192)
O prosador e o poeta Vinicius se fundem no cronista. Os fragmentos acima
citados mostram que, por mais narrativas que sejam, suas crônicas estão
mergulhadas na poesia. Uma quantidade considerável das crônicas de Para viver
um grande amor poderiam ser classificadas como prosa poética. Nestas a prosa,
mesmo muitas vezes se abastecendo do cotidiano, se destaca e se revela poesia
por permear as narrativas, os fatos de elementos poéticos, como por exemplo a
metáfora, a inversão da sintaxe entre outros. Mais uma vez, Vinicius mescla
metáforas com descrição, fatos com ficção, descrição com elementos imaginativos.
“O casamento da lua”, “Morte de um pássaro”, “O vento noroeste”, “Smith-Corona
versus Vat-69”, “Para viver um grande amor” são exemplos:
O que me contaram não foi nada disso. A mim, contaram-me o seguinte: que um grupo de bons e velhos sábios, de mãos enferrujadas, rostos cheios de rugas e pequenos olhos sorridentes, começaram a reunir-se de todas as noites para olhar a Lua, pois andavam dizendo que nos últimos cinco séculos sua palidez tinha aumentado consideravelmente. (“O casamento da lua”, p. 52)
Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliqüescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. (“Morte de um pássaro”, p. 78)
Hoje eu colocarei pequenas lâmpadas em todos os lírios, e acenderei os campos da Terra para que a Lua, quando nasça, pense que está bêbada, e que o Infinito virou ao contrário, e vomite sobre o Mundo uma galáxia multicor. (“Smith-Corona versus Vat-69”, p. 127)
Muitas outras são crônicas predominantemente narrativas, como “O amor
por entre o verde”, em que a linguagem poética convive com a descrição e a
presença de algum enredo:
Não é sem freqüência que, à tarde, chegando à janela, eu vejo um casalzinho de brotos que vem namorar sobre a pequenina ponte de balaustrada branca que há no parque. Ela é uma menina de uns 13 anos, o corpo elástico metido nuns blue jeans e num suéter folgadão, os cabelos puxados para trás num rabinho-de-cavalo que está sempre a balançar para todos os lados; ele, um garoto de, no máximo, 16, esguio, com pastas de cabelo a lhe tombar sobre a testa e um ar de quem descobriu a fórmula da vida. (p. 47)
19
“Estado da Guanabara” poderia ser classificada como crônica tipicamente
carioca. A um fato corriqueiro soma-se a intervenção do “eu” do cronista, e a
narrativa flui com doses de humor e lirismo para fechar com uma frase de impacto e
estranhamento que irá permanecer na mente do leitor:
Um repórter me telefona, eu ainda meio tonto de sono, para saber se eu achava melhor que o Distrito Federal fosse incorporado ao estado do Rio, consideradas todas as razões óbvias, ou se preferia sua transformação no novo estado da Guanabara. (p. 184)
(...)
Imaginem só chegarem para a pessoa e perguntarem de onde ela é, e ela ter de dizer: "Sou guanabarino, ou guanabarense"... Não é de morte? Um carioca que se preza nunca vai abdicar de sua cidadania. Ninguém é carioca em vão. Um carioca é um carioca. (p. 184)
(...)
Pode-se lá chamar um cara assim de guanabarino? (p. 186)
Ao se analisar o livro Para viver um grande amor como um todo não fica
explícito o que consta na “Advertência”, ou seja, que “uma unidade evidente... as
enfeixa: a de um grande amor”. Entretanto, o amor é percebido não no sentimento
ou na sua menção propriamente dita ao longo dos textos, mas na poesia, a qual
“ameniza” um pouco a prosa e perpassa o livro todo. Parafraseando Antonio
Candido, o cronista tende a ser prosador de qualidade por ser poeta em Para viver
um grande amor. Vinicius consegue dar um “balanço” novo às suas crônicas,
mescladas aos poemas e reaquecidas em novo formato, o livro, para funcionarem
como um só corpo.
20
3.2 Análise das crônicas “O tempo sob o sol” e “Para viver um grande amor” “O tempo sob o sol”
A crônica “O tempo sob o sol” utiliza como pano de fundo o universo da praia
carioca. Mais precisamente Copacabana, Ipanema e Leblon, com sua variedade de
tipos físicos e expressões, de se mostrar, ver e se esconder. O cronista brinca com o
passar do tempo e com as conseqüências que recaem sobre o físico de uma
pessoa. O tom é de ironia, indo para o deboche, passa pela autocrítica e finaliza
com a conformidade e a continuidade dos acontecimentos
O título da crônica não apresenta deslocamento, num primeiro momento,
uma vez que os dois substantivos - “tempo” e “sol” - pertencem ao mesmo campo
semântico. Entretanto, no decorrer da crônica fica claro que “o tempo” a que se
refere o cronista não se trata do tempo meteorológico e sim da passagem do tempo;
um jogo de palavras com duplo sentido que expressa muito bem a temática do texto.
Em sua frase inicial a crônica apresenta um fato e uma metáfora acerca de
um acontecimento aparentemente presenciado pelo cronista: “O sol de domingo pôs
na praia toda a população da zona sul”. A metáfora acontece pela inclusão do verbo
no perfeito do indicativo “pôs”, e este ao fazer a junção dos dois elementos causa o
estranhamento inicial. Também aparece o exagero / hipérbole: não é toda a
população que vai à praia num domingo, por mais lindo que seja o dia. A primeira
frase é a deixa do cronista para na seqüência esclarecer ao leitor a qual cidade e a
quais praias se refere.
A crônica é construída com uma dicotomia, a confrontação de elementos
positivos contra elementos negativos. Retrata a cidade, seus arranha-céus e sua
comunidade, além dos tipos físicos que não têm mais juventude com adjetivos
pouco comuns, como “madurezas adiposas”, “velhices murchas”. Fecha uma frase
com “desperdício de carne humana” e enobrece a “mocidade atlética”. Continua com
descrições de atividades como “jogos”, sejam eles “de bola”, “de mão” ou “de
olhares”. Novamente enleva os feitos e aparência dos jovens e aponta os
envelhecidos.
A dicotomia fica clara no segundo parágrafo, quando o termo “belo-horrível”
é utilizado. E continua com as observações a respeito dos amigos “com os tórax
começando a se aplastar em distensões abdominais mais ou menos consideráveis”,
completando com “as mesmas que noto em mim mesmo diariamente”.
21
As mudanças físicas levam o cronista a refletir sobre a passagem do tempo
e a comparar-se no passado e no presente: “Um dia se é um rapazinho esguio, de
perna forte e peito dividido (...) e se é um homem com cabelos começando a
embranquecer”.
No parágrafo seguinte há um tom de conformidade inicial que novamente é
sobrepujado pela quebra de expectativa ao criticar, não os que se gastam, mas os
que se preservam demais: “E chega para todo mundo, menos para os reservados,
os que preferem se guardar para os vermes da terra”. Uma frase poética fecha este
parágrafo, entretanto, o tom muda para algo mais profundo e compenetrado, como
se o poeta dento do cronista respirasse profundamente e resumisse toda a crônica
em uma só frase.
Depois desse brevíssimo momento de introspecção o cronista volta à baila
com seu humor ácido e acaba por se render à conformidade para lembrar que “os
pileques de fim de ano, (...) vêm aí”. E mais um ano se passa e não há saída.
A idéia central da crônica é a de que o tempo passa para todos, em todas as
épocas. A sucessão das gerações não elimina a verdade intransponível de que o
tempo altera o físico de todos, e muito mais o das pessoas que não se poupam,
porque vivem intensamente, como o próprio Vinicius fazia e tematizou em vários
poemas, por exemplo Poética (I): “Outros que contem / Passo por passo: / Eu morro
ontem / Nasço amanhã / Ando onde há espaço: / - Meu tempo é quando.”
O poético nesta crônica encontra-se nos elementos metafóricos, nos jogos
de palavras, nas inversões, comparações e paralelos.
22
“Para viver um grande amor” Sua classificação como crônica poética se deve não só à temática, mas
também ao seu ritmo e musicalidade, elementos que, somados, lhe conferem um
alto grau de lirismo. “Para viver um grande amor”, além de ser a crônica que intitula
a coletânea, é, certamente, do livro, a mais conhecida.
A temática gira em torno do que seja preciso para se viver um grande amor.
Vários parágrafos iniciam com a repetição do título e a ele se acrescentam atitudes e
afazeres para se atingir o objetivo.
Em sua maioria as frases são construídas com a composição do adjetivo
“preciso” e do verbo “ser” (“é”): “preciso é muita concentração e muito siso”, “é
preciso sagrar-se cavalheiro”. As frases são construídas para conterem todo seu
significado individualmente. O vocabulário é de uso corriqueiro e apresenta poucos
termos para cuja compreensão o leitor precisaria recorrer a um dicionário. Entre eles
os substantivos “siso e “mister”, pouco usados atualmente. O primeiro significa “bom
senso, juízo” e o segundo “ocupação, profissão” (Houaiss, 2001, p. 409 e 299). A
expressão em francês “il faut” pode ser traduzida como “é necessário”, e “Selva
oscura”, ou “selva escura” remete ao Inferno da Divina comédia, de Dante Alighieri.
A crônica faz referências ao cotidiano, com descrições da realidade como
em “Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos,
strogonoffs - comidinhas para depois do amor”. Ocorrem também sentidos figurados:
“Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua
dama por inteiro - seja lá como for”. Com o uso do verbo “sagrar-se”, Vinicius explora
o jogo entre “sagrar-se cavaleiro”, ou seja, adquirir um título de nobreza, no contexto
medieval e “sagrar-se cavalheiro”. A invenção mescla a nobreza da condição social
de um cavaleiro medieval com a nobreza desejável mesmo para um sujeito da
época contemporânea que queira viver um grande amor. Algumas frases contêm
ironia e isso inclui o aproveitamento do ditado popular “muito riso e pouco siso”:
“preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso”. A crônica
toda é em tom de advertência e cuidado.
Poder-se-ia dividir a crônica como do primeiro ao sétimo parágrafos com a
mesma estrutura: além da repetição do nome da crônica, também a necessidade,
alguma ironia, do “é preciso ser e fazer” para se obter o objeto do amor desejado.
Nos parágrafos oitavo e novo a construção é diferente por não apresentarem a
23
repetição do título e conterem a inclusão de assuntos como flores e comida. Nos
parágrafos seguintes até o final retorna a estrutura inicial.
A crônica toda é escrita em tom de aconselhamento, por vezes bastante
práticos, por outras no campo das suposições e conjecturas. Vinicius faz de sua
crônica uma grande receita para “se viver um grande amor”, e a fecha dizendo que
nada disso adianta se não se souber encontrar a pessoa certa, a “bem-amada”, por
quem se ousa fazer tantas coisas e se deixa ser e pertencer.
Embora o amor seja mencionado no título e ao longo da crônica, mais
precisamente a paixão é o tema principal ao longo do texto. Isso fica evidente na
urgência e na necessidade de ainda conquistar a pessoa amada. Tudo ainda parece
ser um processo em andamento.
O texto é bastante claro em sua construção, no qual não se encontram
interpretações mais profundas ou subjetivas que ultrapassam o universo descrito. A
aproximação com a poesia se dá pelos elementos poéticos inseridos na construção
dos parágrafos, na musicalidade, no ritmo e nas repetições. A crônica Para viver um
grande amor é um texto direto e simples e talvez por conter estas características o
leitor se identifique tão facilmente com a leitura e interpretação feitas pelo cronista,
tão próprias da crônica.
Para viver um grande amor tem elementos de poeticidade identificáveis.
Trata-se de poesia em primeiro lugar, por conta do seu ritmo e musicalidade em
suas repetições; todo em versos livres; léxico coloquial. No nível semântico ocorrem
metáforas e sinestesia; também ocorrem paralelos com causa e efeito nas frases
que se iniciam com “Para viver um grande amor” e se completam como no exemplo:
“(...) preciso é muita concentração e muito siso (...)”.
Para finalizar, a crônica permite interpretações bastante diferenciadas por
não concluir definitivamente; assim como apresenta a idéia de ciclicidade.
24
CONCLUSÃO Estudar as crônicas de Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor,
pelo prisma da discussão entre prosa e poesia possibilitou encontrar novo
significado na obra como um todo e mais especificamente no prosador do cotidiano,
com base num olhar mais apurado sobre os elementos que constituem sua prosa.
Algumas das características da prosa e da poesia puderam ser verificadas à
luz da história e das definições de críticos e de outros autores para se confirmar a
subjetividade e a dificuldade em se chegar a uma conclusão definitiva.
A poesia, própria dos grupos humanos assim como a linguagem, pode ser
considerada a mola mestra da expressão. Através dela, o ser humano teve a
possibilidade de encontrar significados além dos significantes, e desenvolver sua
cultura de diferentes formas, porém, sobre a mesma base, a saber, o elemento
poético.
Ao longo dos séculos novos elementos são acrescentados às culturas e
parte dessa riqueza podemos verificar ainda hoje nas obras que são pilares de
civilizações inteiras. No momento em que a prosa passa a ser diferenciada do todo
que se chamava poesia, novos usos e possibilidades passam a acontecer. Para
alguns, a prosa não passa de poesia ruim, para outros proporciona que se utilize a
linguagem para diferentes possibilidades. Além da utilização da prosa para fins
práticos, é na obra de arte literária que novas fronteiras são abertas, tornando
possível o surgimento de novos gêneros e formas literárias. Hoje não podemos
imaginar um mundo sem a prosa, com sua linguagem que permite transmitir
conteúdos mais objetivos e seu apelo junto ao grande público. A poesia, no entanto,
continua a ocupar seu lugar na literatura. Com seu fim em si mesma e a simples
necessidade de existir, a poesia se permite ser levada pela emoção e pelo olhar do
poeta. A obra literária, como objeto de arte, seja ela em prosa ou em poesia é o
grande objetivo de quem busca a forma artística nas expressões literárias. Existem,
no entanto, formas literárias em que a prosa e a poesia se encontram em grau
geralmente acentuado, como é o caso da crônica atual.
A crônica, ambientada e muito bem adaptada ao Brasil, se firma como
expressão ideal para um país como o nosso. Sua aparente leveza e retrato do
cotidiano, além da economia de tempo para um público que não tem fama de leitor
voraz, se adaptaram plenamente por estas terras. Grandes cronistas brasileiros
25
produziram retratos muito particulares e conseguiram traduzir de forma simplificada
o que muitos viam, sabiam ou já conheciam. O diálogo dirigido ao interlocutor faz a
conexão entre o banal e a sensibilidade do dia-a-dia. Para Antonio Candido, a
severa autocrítica e a capacidade infinita de emoção é que conseguem dar clareza à
boa crônica. Em seu veículo original, o jornal, tem a capacidade de ser totalmente
diferente das notícias e é, para onde, geralmente o leitor lança seu primeiro olhar.
O bom cronista sabe que em primeiro lugar deve divertir, por mais sério que
seja o assunto. Deve enxergar no detalhe o elemento que causa estranhamento e é
imediatamente percebido pelo leitor. Para muitos, somente o poeta teria esta plena
capacidade de se apropriar de elementos, elevá-los a outras esferas do pensamento
e trazê-los a baila sob a efígie da poesia.
Vinicius de Moraes sabia que “o público não dispensa a crônica” (MORAES,
2006, p. 18). Sabia do prazer com que o leitor busca a crônica de seu cronista
favorito. Vinicius na verdade fazia com muito prazer o que ele chamava de “arte
ingrata”. Ele passeava pelo cotidiano, pontuando e pincelando acontecimentos
diversos, fatos de que ouvia falar, memórias pessoais e transformando-os em
crônicas que ainda hoje são atuais.
A prosa e a poesia de Vinicius são irmãs gêmeas. Enquanto naquela o
cronista escreve de forma mais solta, o poeta, em sua poesia, é mais comedido,
cada palavra no seu devido lugar, entretanto, ambas são feitas da mesma matéria:
de um olhar sensível sobre tudo que lhe passava aos olhos ou lhe chamava a
atenção.
Vinicius pretendeu enfeixar as crônicas de Para viver um grande amor sob a
temática amorosa, conforme explicação na “Advertência”. Essa opção não fica muito
clara ao leitor, uma vez que o livro traz assuntos bastante variados, mas Vinicius
deve ter tido seus motivos e gostos pessoais para dar tal aviso, o qual evidencia a
enorme importância do sentimento amoroso tanto para o homem como para o artista
Vinicius de Moraes, independentemente do meio ou da forma assumida por sua
expressão.
As crônicas apresentam em seu todo o enfeixamento de elementos poéticos
bastante presentes. A análise permitiu evidenciar o ritmo, a musicalidade, as
metáforas, figuras de linguagem e tantos outros recursos poéticos aos quais o poeta
Vinicius possuía completo domínio e os utilizou em suas crônicas.
26
O “balanço” novo, intuito do cronista e que dá título a este trabalho, encontra
ressonância pela poesia que perpassa o formato alternativo para a crônica, a saber,
o livro.
A poesia não se encontra restrita aos poemas, mas é parte de todos os
textos. Vinicius é um poeta-cronista, sua prosa é conseqüência da poesia e não há
como dissociar aquela desta.
O cronista que se revela em Vinicius de Moraes fica mais compreensível se
o leitor conhecer sua obra poética.
27
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1 - Magia e Técnica, Arte e Política / O narrador. São Paulo : Brasiliense, 1993.
BISCOITO FINO. Vinicius de Moraes. Disponível em http://www.biscoitofino.com.br/bf/art_cada.php?id=200. Acesso em 28 out. 2007.
CANDIDO, Antonio. “A vida ao rés-do-chão”. In. _____. , Org. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas : UNICAMP, 1992.
_______. Textos de intervenção. Org. Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2002
_______. O discurso e a cidade. São Paulo : Duas Cidades, 1998.
CASTELLO, José. Vinicius de Moraes. s.l. : Ediouro, 2005.
_______ Vinicius de Moraes: o poeta da paixão – uma biografia. São Paulo : Companhia das Letras, 1994.
COUTINHO, Afrânio. Crítica e poética. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1980.
COSTA, Édison José. Um canto à vida ou o percurso poético de Vinicius de Moraes. Tese concurso Professor Titular. Curitiba: UFPR. 1998.
DIONISIO, Ângela Paiva (org). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro : Lucerna, 2002.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo : Companhia das Letras, 1994.
ELLIOT, T.S., A essência da poesia. Rio de Janeiro: Artenova, 1972.
FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. São Paulo : Publifolha, 2006.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do século XIX a meados do século XX). São Paulo : Duas Cidades, 1978.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos – Série Princípios. São Paulo, Ática, 2004.
JAKOBSON, Roman. O que fazem os poetas com as palavras. Colóquio/Letras nº 12. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1973.
28
JOHNSON, Barbara. O discurso da poesia. Coimbra : Livraria Almedina, 1982. Capítulo : Algumas conseqüências da diferença anatómica dos textos.
MOISÉS, Massaud. A análise literária. São Paulo : Cultrix, 1977.
_______ A criação literária. São Paulo : Melhoramentos, 1968.
MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. São Paulo : Companhia das Letras, 2006.
_______. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1987.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. São Paulo : Ática, 1986.
PAZ, Octávio. O arco e a lira - Poesia e Poema. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1982.
PECCI, João Carlos. Vinicius sem ponto final. São Paulo : Saraiva, 1994.
PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
RONCARI, Luiz. Boletim Bibliográfico – Volume 46. São Paulo : 1985.
ROSENFELD, Antol. O teatro épico. São Paulo: Desa/Coleção Buriti, 1965
SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo : Ática, 2005.
SUHAMY, Henry. A poética. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1986.
TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia – Bakhtin e o formalismo russo. São Paulo : Rocco, 2003.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo : Iluminuras, 1991.
VM PRODUÇÕES. Vinicius de Moraes. Disponível em <http://www.viniciusdemoraes.com.br> Acesso em: 03 jun. 2007.
29
ANEXO I
O tempo sob o sol O sol de domingo pôs na praia toda a população da zona sul. Bateu de chapa
na cidade falsa, em seus falsos arranha-céus, em sua falsa comunidade, e aí pelo
meio-dia as areias de Copacabana, Ipanema e Leblon crepitavam de mocidades
atléticas, madurezas adiposas e velhices murchas, num desperdício de carne
humana. Jogos de bola, jogos de mão, jogos de olhares - a gente moça expunha-se
com vigor ao cautério solar, enquanto os mais comprometidos com a morte
resguardavam-se à sombra das barracas, dando um mergulho ou outro de curta
duração e voltando ad locum suun inchando o peito e encolhendo a barriga.
Um espetáculo belo-horrível, para usar desse desagradável lugar-comum. Vi
uns poucos amigos meus, gente a beirar os quarenta, todos eles com os tórax
começando a se aplastar em distensões abdominais mais ou menos consideráveis:
essas irremediáveis deformações que o tempo impõe ao corpo humano que prefere
viver a se conservar; as mesmas que noto em mim mesmo diariamente e cuja
eliminação exige uma força de vontade que não tenho e nem quero ter. Negócio
pau, com que a gente sofre a princípio, depois acostuma-se porque não há nada a
fazer. Vem tão rápido que mal se percebe. Um dia se é um rapazinho esguio, de
perna forte e peito dividido, a dar "paradas" nos bancos da praia para as meninas
verem; depois, súbito - um aborrecimento, um período duro, uma paixão, uma
viagem - e se é um homem com cabelos começando a embranquecer, os músculos
docemente cobertos por uma leve camada de gordura, o fígado inchado, milhões de
responsabilidades e uma missão a cumprir na vida.
Tudo isso vem de repente, quando menos se espera. E chega para todo
mundo, menos para os reservados, os que preferem se guardar para os vermes da
terra. Essa dor do tempo, de que nenhum poeta falou direito ainda.
Mas é isso mesmo. Hoje somos nós, amanhã são eles, depois de amanhã são
os filhos deles, nossos possíveis netos. Esta joça toda caminha para a constelação
de Órion desde há alguns milhares de séculos. Em vista do quê, preparemo-nos
para os pileques de fim de ano, que vêm aí. Mais um ano, meus amigos. Estamos
fritos.
30
Para viver um grande amor Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita
seriedade e pouco riso - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois
ser de muitas, poxa! é de colher... - não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de
sua dama por inteiro - seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde
clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada - para viver um
grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo",
que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso
muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está,
está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade
de que não existe amor sem fieldade - para viver um grande amor. Pois quem trai
seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível
liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte
culinária e de judô - para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é
preciso também ter muito peito - peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-
amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu
finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista - muito mais,
muito mais que na modista! - para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande
amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um
tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos,
strogonoffs - comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra
cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica, e gostosa, farofinha, para
o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até
ser, se possível, um só defunto - pra não morrer de dor. É preciso um cuidado
31
permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo"
seu, a amada sente - e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem
cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia - para
viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser
impermeável ao diz-que-diz-que - que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se
souber achar a bem-amada - para viver um grande amor.