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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO LIBERTATE OPVS EST O Percurso da Sabedoria em Pérsio CARLOS EDUARDO COSTA SCHERER 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LIBERTATE OPVS EST O Percurso da Sabedoria em Pérsio

CARLOS EDUARDO COSTA SCHERER

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LIBERTATE OPVS EST O Percurso da Sabedoria em Pérsio

por

CARLOS EDUARDO COSTA SCHERER

Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas

Tese de Doutorado apresentada à Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Alice da Silva Cunha.

Rio de Janeiro, Fevereiro de 2014

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LIBERTATE OPVS EST: O Percurso da Sabedoria em Pérsio

Autor: Carlos Eduardo Costa Scherer Orientador: Alice da Silva Cunha

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas. Examinada por: _______________________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. Alice da Silva Cunha (UFRJ) _______________________________________________________________ Prof. Dr. Amós Coêlho da Silva (UERJ) _______________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Arruda de Oliveira (UFC) ________________________________________________________________ Prof. Dr. Vanda Santos Falseth (UFRJ) ________________________________________________________________ Prof. Dr. Cecília Lopes Albuquerque Araújo (UFRJ) ________________________________________________________________ Suplente: Prof. Dr. Márcia Regina de Faria da Silva (UERJ) ________________________________________________________________ Suplente: Prof. Dr. Édison Lourenço Molinari (UFRJ)

Rio de Janeiro Março de 2014

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Scherer, Carlos Eduardo Costa. Libertate opus est: O percurso da sabedoria em Pérsio / Carlos

Eduardo Costa Scherer. Rio de Janeiro, UFRJ/FL, 2014. xi; 146 f.; 31 cm Orientador: Alice da Silva Cunha Tese (Doutorado) – UFRJ/FL/Programa de Pós-Graduação em

Letras Clássicas, 2014. Referências Bibliográficas: f. 141-145

1. Pérsio. 2. Sátira. 3. libertas. 4. Arte alusiva. 5. iunctura acris. I. Cunha, Alice da Silva. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas. III. Título.

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Parentibus

Optimis

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Para:

Carlos Antonio Kalil Tannus

(in memoriam)

Miguel Barbosa do Rosário

Alice da Silva Cunha

Amigos,

Mestres,

Exemplos.

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AGRADECIMENTOS

A Alice da Silva Cunha, por sua orientação segura e atenta,

por suas justas ponderações e sua Amizade

Ao Professor Carlos Lévy, por sua gentileza e sabedoria

À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos pelo período de oito meses

Aos Pais: Hertha e Mário

Aos Padrinhos: Othília e Miguel

Aos Professores: Amós Coêlho da Silva e Vanda Santos Falseth,

por seus prestimosos conselhos e observações em minha Qualificação

Aos amigos:

Ângela Cristina Balduíno

Dado Romagna e sua Grazi

Daniel Saraiva e sua Leila

Gaspar Leal Paz e sua Cristina

Jean-Luc Pouliquen

Piero Tomassi e sua Elodi

Ricardo de Souza Nogueira e sua Fátima

Wu Nengchang

Aos colegas de Direção, que entenderam a necessidade

de meu afastamento para a conclusão deste trabalho

Aos demais amigos e colegas que de algum modo

me ajudaram ou torceram por mim

last not least,

A minha Musa: Martha Balby Gandra.

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LIBERTATE OPVS EST: O Percurso da Sabedoria em Pérsio

Autor: Carlos Eduardo Costa Scherer

Orientador: Professor Doutor Alice da Silva Cunha

Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

Nossa pesquisa teve como escopo analisar a maneira poética como Pérsio

desenvolve o conceito de libertas em sua sátira. Vimos que seu discurso se volta para a

liberdade interior, a necessidade de dominar as paixões e buscar a sabedoria como meio de

alcançar a verdadeira liberdade. Contudo, mostrou-se também que, subjacente a essa fala,

o poeta veladamente faz menção à falta de liberdade civil que impera na Roma Neroniana.

Quanto à elaboração do discurso, vimos que a poética de Pérsio apresenta dois pontos

fundamentais: a iunctura acris, união inusitada de termos muitas vezes de natureza

diversa, em que não raro o concreto se confunde com o abstrato; e a arte alusiva, que

não se restringe apenas a alusões textuais – seja a textos de outros autores, seja ao seu

próprio –, mas que também abarca questões sociais e políticas de seu tempo.

Palavras-chave: Pérsio, sátira, libertas, arte alusiva, iunctura acris.

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LIBERTATE OPVS EST: O Percurso da Sabedoria em Pérsio

Autor: Carlos Eduardo Costa Scherer

Orientador: Professor Doutor Alice da Silva Cunha

Abstract da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Clássicas.

The aim of this thesis is to analyze how Persius develops, in a poetic way, the

concept of libertas in his satire. We saw that his discourse turns toward inner freedom, the

need to master the passions and seek wisdom as a means to achieve real freedom.

However, the analysis shows that, underlying this speech, the poet covertly mentions the

lack of civil liberty in the Neronian Rome. Regarding the construction of the speech,

Persius poetics presents two fundamental points: the iunctura acris – unusual union of

terms different in their nature, in which the concrete meaning is frequently confused

with the abstract meaning; and the allusive art, which is not restricted to textual allusions

to the writings of other authors or his own, but also related to social and political issues of

his time.

Key-words: Persius, satire, libertas, allusive art, iunctura acris.

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Torso Arcaico de Apollo

Não sabemos como era a cabeça, que falta, De pupilas amadurecidas, porém

O torso arde ainda como um candelabro e tem, Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim, a curva rara

Do peito não deslumbraria, nem achar Caminho poderia um sorriso e baixar

Da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera Pedra, um desfigurado mármore, e nem já

Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida Como uma estrela; pois ali ponto não há

Que não te mire. Força é mudares de vida.

(Rilke / Bandeira)

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 1

2. SANITAS............................................................................................................. 8

2.1 Desidia.............................................................................................................. 11

2.2 Medicina animae................................................................................................. 39

3. LIBERTAS........................................................................................................... 58

3.1 Ad Annaeum Cornutum Stoicum cuius fuit auditor .............................................. 66

3.2 Solum sapientem esse liberum, et omnem stultum seruom......................................... 93

4. CONCLUSÃO.....................................................................................................136

5. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 141

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1

INTRODUÇÃO

La verdad es lo que es, y sigue siendo verdad,

aunque se piense al revés

(Antonio Machado)

VERITAS LIBERABIT VOS

João 8: 32

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2

1. INTRODUÇÃO

No século IV um monge chamado Evágrio Pôntico sistematizou aquelas doenças

que mais pareciam afligir-lhe a alma. Constavam em sua lista oito vícios. Dois séculos

mais tarde, o Papa Gregório Magno reelabora a lista, e une a acídia e a tristeza num

mesmo pecado, a preguiça. A exposição mais conspícua dos sete pecados foi feita por São

Tomás de Aquino, que segue a divisão feita pelo Papa São Gregório Magno: preguiça,

vaidade, inveja, ira, avareza, gula e luxúria. E, acima desses sete, como vício supra-capital, o

Doutor Angélico põe a soberba — fonte de todos os demais. Suas principais reflexões

acerca dos vícios e das virtudes se encontram na Prima Secundae de sua Suma Teológica: das

ações humanas (quaestiones 6 a 21), das doenças do espírito (quaestiones 22 a 48), das

virtudes (quaestiones 55 a 67), e, enfim e sobretudo, o primoroso tratado sobre os vícios e

os pecados (quaestiones 71 a 89).

Talvez por ter Santo Tomás dado cunho definitivo ao tema, é hoje quase um

senso-comum imaginar que foram os cristãos que inventaram os sete pecados capitais, e

que eles são uma forma de impor limites à liberdade de escolha pessoal, como se fossem uma

espécie de leis opressivas que restringiriam o acesso à liberdade e realização plena de cada

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indivíduo. Esse tipo de pensamento traz em si dois erros fundamentais: 1) os vícios capitais

não são uma "invenção" do cristianismo, antes são resultado de uma profunda reflexão do

ser humano sobre si mesmo, e dos males que o fazem perder o controle de sua vida; já

aparecem, de fato, apontados por pensadores antes mesmo do nascimento de Cristo –

veremos um exemplo em um poema de Horácio, logo abaixo; 2) não são esses vícios uma

"imposição" que, de certo modo, restringiria a liberdade de escolha individual, mas, pelo

contrário, somos alertados para eles justamente para que possamos compreender que são

os vícios capitais - isto é, que 'comandam' os demais - que nos fazem perder o controle de

nossas vidas, e que nos tornam cegos escravos das paixões. Conhecê-los e buscar evitá-los

não são restrições a nossas liberdades individuais, mas, pelo contrário, são certamente a

única forma de conseguirmos obter a verdadeira liberdade. O estóico Epicteto diz

expressamente1: Não é pela satisfação dos desejos que se alcança a liberdade, mas pela destruição

do prazer. Neste trabalho, veremos um autor pagão, nascido no início da Era Cristã, que

nos alerta para o perigo das paixões; pois, se nos entregamos a elas, perdemos fatalmente

nossa liberdade, e, como diz o poeta, libertate opus est.

No poema que abre seu primeiro livro de Epístolas, Horácio – poeta augustano,

cuja morte ocorre oito anos antes do nascimento de Cristo – apresenta um exemplo de

recusatio, gênero de que alguns autores no período de Augusto se valeram2. Na carta,

endereçada a Mecenas, como costuma fazer nos poemas que abrem seus livros, Horácio

diz a seu protetor – o qual lhe pedira que escrevesse mais obras líricas – que não tem mais

nem idade nem espírito para se dedicar a esse gênero de poesia3, seu interesse agora é por

filosofia moral. Não que deseje tornar-se sectário ou abandonar sua vida social; antes,

busca princípios gerais que norteiem sua conduta. Após relatar sua ansiedade em começar

seu estudo moral, Horácio pondera que, mesmo que já não possa chegar à perfeição, não

1 Epiteto, Discursos, IV, 1, 175.

2 Cf. o próprio Horácio, Carmina, I, 6; IV, 2; IV, 15; Vergílio, Bucólica VI; Propércio, I, 7; III, 3; Ovídio, Amores, I, 1. 3 Horácio, no entanto, ainda viria a publicar o quarto livro de suas Odes e o Carmen Saeculare.

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será isso a impedi-lo de fazer o possível para uma conduta mais sábia; do mesmo modo

que uma pessoa não deixará de lavar os olhos simplesmente porque não poderá ter a visão

aguçada de Linceu4, nem deixará de se cuidar para evitar artrites, embora não pretenda

nunca chegar a ter os músculos de Glicão5 (vv. 28-31). Enfim, é possível ir até certo

ponto, mesmo que não nos seja dado ir além (v.32). Em seguida, enumera aqueles que são

os principais vícios a serem atacados6:

feruet auaritia miseroque cupidine pectus:

sunt uerba et uoces quibus hunc lenire dolorem

possis et magnam morbi deponere partem. 35

laudis amore tumes: sunt certa piacula quae te

ter pure lecto poterunt recreare libello.

inuidus, iracundus, iners, uinosus, amator, nemo adeo ferus est, ut non mitescere possit,

si modo culturae patientem commodet aurem. 40

uirtus est uitium fugere et sapientia prima

stultitia caruisse.

[Teu peito se inflama pela avareza e pela ganância mesquinha? Há palavras e frases com as quais poderás suavizar essa dor E pôr de lado grande parte da doença. 35 Inflas-te pelo anseio de louvores? Há ritos expiatórios certos Que poderão aliviar-te, se corretamente leres três vezes o ritual. Invejoso, iracundo, indolente, ébrio, libertino, Ninguém é tão selvagem que não possa ser amansado Se tão-somente aplicar um ouvido atento aos ensinamentos. 40 Virtude é fugir do vício, e a primeira sabedoria consiste Em estar livre da insensatez.]

Destacamos em negrito os sete pontos que para Horácio devem ser evitados pelo

sábio, ou ao menos pela pessoa que pretende como ele ter uma vida mais saudável, liberto

das paixões. Não por casualidade, certamente, esses sete pontos coincidem perfeitamente

com os sete vícios apontados pelos autores cristãos supracitados.

4 Linceu foi um dos Argonautas, ficou célebre justamente por sua visão penetrante. 5 Glicão foi um célebre lutador, contemporâneo de Horácio. 6 Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 33-42.

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5

Em nosso trabalho, procuramos, a partir da análise de suas sátiras, mostrar com que

arte o poeta volaterrano Pérsio – que nasce quando Roma está sob Tibério, e morre,

sendo princeps Nero – busca chamar a atenção para os vícios que nos são próprios a todos,

e que, se não forem compreendidos e combatidos, escravizam-nos, roubam-nos a

liberdade. A verdadeira liberdade. A crítica bem-humorada aos vícios aparece ao longo de

suas sátiras – e, como veremos, todos os vícios capitais acabam contemplados em sua

obra. Duas sátiras, em especial, serão analisadas por nós, aquelas que são as mais

estritamente filosóficas na obra de Pérsio: a terceira, que é uma crítica à preguiça e um

apelo ao estudo, à busca da sabedoria, pois, sem ela, acabamos inevitavelmente cedendo às

paixões – e as paixões são a doença da alma; e a quinta, que tratará justamente da questão

da verdadeira liberdade. O título de nosso trabalho toma de empréstimo o início de um

verso desta sátira quinta, que o escoliasta explica desta forma: libertate opus est tamquam

si diceret sapientia omnibus necessaria est. As demais sátiras também se farão presentes,

sempre que nos parecer que apresentem elementos que possam enriquecer e iluminar os

pontos analisados.

Ressalte-se que tratar do tema da liberdade, como o fez Pérsio, num momento em

que Roma vivia sob um Nero que mostrava suas garras despóticas, terá inevitavelmente

também um cunho político. E Pérsio deixa em sua sátira algumas claves que nos apontam

claramente para esse fim. E esses elementos são fundamentais para uma melhor apreciação

do trabalho do poeta. Porque o recurso da alusão, que Pérsio usa com mestria, não se

restringe apenas a seu diálogo com obras de outros autores – Horácio em especial –, mas

também há também alusão, em geral de algum modo cifrada, com o ambiente político da

Vrbs. E, como veremos, o poeta – com a repetição de alguma palavra-chave, ou alguma

imagem recorrente – alude por vezes a seu próprio texto, fazendo que ganhem novos

matizes e significados seus versos. Por isto, em nossa análise, será dada atenção especial a

esse recurso tão bem utilizado por Pérsio, porque a compreensão dessa arte alusiva é

fundamental para podermos apreciar a arte com a qual o poeta lapida seus poemas.

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Pérsio foi em seu tempo aclamado como um ótimo poeta satírico7, ouvido com

entusiasmo8 e seu livro, ao ser postumamente lançado, foi disputado por seus

contemporâneos9. Durante muito tempo seu texto será admirado, como atesta a grande

quantidade de manuscritos antigos de sua obra; o valor moral de suas sátiras servirá de

referência mesmo a autores cristãos, como testemunha Santo Agostinho. Justamente por

esse caráter moralista de sua obra, Pérsio foi muito editado quando da invenção da

imprensa; as primeiras edições remontam ao ano de 1470. Dentre as principais edições

antigas, destacamos a feita por Antonio de Nebrija (Sevilha, 1503) e Isaac Casaubon

(Paris, 1615). Cumpre notar, no entanto, que, com o tempo, suas imagens, suas

referências foram tornando-se cada vez mais incompreensíveis para o leitor, e Pérsio, a

cada passo, passava mais e mais a ser referido como um poeta de difícil leitura, e criticado,

às vezes asperamente, por sua obscuridade. Também passou a ser alvo de outra crítica – a

nosso ver injusta: a de ser um escritor imaturo.

No século XIX, aparecem algumas edições que serão importantes para uma

reavaliação da obra de Pérsio. Em 1830, a coleção Lemaire publica uma edição, preparada

por A. Perreau, que apresenta uma compilação dos comentários mais pertinentes à obra

do poeta feitos até então. Mas é no ano de 1868 que O. Jahn publica aquela que se tornará

a primeira edição considerada verdadeiramente crítica de Pérsio10. Teremos em seguida

algumas edições que merecem destaque, como a de J. Conington e de F. Villeneuve, que

também publicará um alentado ensaio (Essai sur Perse, 1918) em que analisa não só a obra

do satírico, mas também sua vida, formação, influências. É, no entanto, sobretudo a partir

da década de 60 do século XX que começa a aparecer um bom número de artigos e

ensaios que reabilitarão definitivamente o poeta11, mostrando que sua poesia é obra de

7 Cf. Quintiliano, Inst. Or. X, 1, 94: "multum et uerae gloriae, quamuis uno libro, Persius meruit". 8 Lucanus mirabatur adeo scripta Flacci, ut uix se retineret recitantem a clamore: quae illius essent uera esse poemata, se ludos facere (Vita Persi, §5). 9 editum librum continuo mirari homines et diripere coeperunt (ibidem, §8). 10 Em 1843, Jahn já publicara uma edição das sátiras de Pérsio, mas que é apontada pela crítica como ainda bastante imperfeita; cf. DOLÇ (1949), p. 59. 11 Por exemplo, os ensaios de Harvey, Bramble, Dessen, Reckford, Bellandi.

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extremo cuidado e erudição12, que o jogo intertextual que ele faz com seus modelos, em

especial Horácio, é fundamental para uma mais justa apreciação de seu trabalho13.

Para o texto de Pérsio, utilizamos primeiramente o estabelecido por Clausen, em

sua segunda edição, cotejado especialmente com o minucioso trabalho preparado pelo

Professor Villeneuve14. Este livro, além de seu aparato crítico, apresenta vários

comentários e aproximações – seguindo a trilha de Casaubon e Jahn – com a obra de

outros autores, em especial Horácio, que nos foram de grande utilidade em nosso

trabalho. Todas as referências ao escoliasta se baseiam na edição crítica preparada por

Clausen e Zetzel15. O trabalho de comentadores, em especial Dessen e Reckford, foram

importantes para uma compreensão mais rica de como, a partir de algumas palavras-

chave, Pérsio estrutura sua sátira. Além de Horácio, outros autores antigos aparecem com

alguma freqüência em nosso trabalho: Sêneca e Epicteto, os principais filósofos estóicos do

período de Pérsio, e que são auxílio inestimável para apreciação das idéias da escola

naquele momento. Os ensaios de Grimal e Ortega y Gasset sobre a liberdade em Roma

foram também consultados com grande proveito, bem como os artigos da Professora Ilaria

Ramelli. Cabe ainda citar aqui o ensaio da Professora Paola Migliorini, bastante

elucidativo em relação às referências à medicina em Pérsio.

12 Cf. BELLANDI (1996), p. 21: “Nel corso di queste ultimi decenni gli studi su Persio hanno conosciuto un notevole incremento e – quel che più conta – hanno imboccato vie decisivamente nuove”. 13 Cf. HOOLEY (1997). 14 No entanto, outras edições foram pontualmente consultadas (v. bibliografia). Procuramos assinalar em nota as vezes em que nossa preferência não coincidiu com a de Clausen. 15 Como não há autoria certa para a obra, deixamos como entrada na bibliografia o título, Commentum Cornuti, e todas as citações do escoliasta que aparecem no trabalho remetem a ele.

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2

SANITAS

É preciso que a música aparente

no vaso harmonizado pelo oleiro

seja perfeitamente consistente

com o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiro

e os ritmos da terra e da semente

porque antes de ser forma foi primeiro

humildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separa

da argila lentamente, foi fazendo

do meu aprendizado o Seu compêndio

de opacidades cada vez mais claras,

e com silêncios sempre mais esplêndidos

foi limando, aguçando o que escutara.

(Bruno Tolentino)

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2. SANITAS

A terceira sátira apresenta uma crítica à preguiça, e prega fundamentalmente a

constância no estudo e o rigoroso aproveitamento do tempo, i. e., a disciplina. Abre com

um diálogo em que, apanhado na cama, avançada a manhã, um jovem senhor inventa

pretextos para não começar o estudo. Seu companheiro replica que é preciso modelar o

espírito enquanto jovem. Em seguida, o poeta narra como fugia aos estudos quando

criança – mas o interlocutor não tem desculpa, iniciado no estoicismo, deve ter firmes as

linhas de conduta. Daqui por diante o poema passa para um tom mais genérico: assim

como se deve tratar da doença desde o seu princípio, assim é preciso cortar os vícios tão

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10

logo sejam detectados. Aparecem os centuriões que ridicularizam a filosofia, são eles como

os doentes que desprezam os conselhos dos médicos e acabam baixando mais cedo ao

sepulcro. O poeta conclui argumentando que também as paixões são doença. De fato,

podemos observar que é esta a sátira em que Pérsio mais claramente aludirá às doenças da

alma, tendo como metáfora as doenças físicas, e a filosofia como a medicina para a alma

adoentada.

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2.1 Desidia

O estilo de Pérsio tem como uma de suas principais e notórias características o

diálogo intertextual, e o autor a quem mais freqüentemente recorre Pérsio para dialogar

com sua poesia é Horácio. O início desta terceira sátira pressupõe indubitavelmente do

leitor o conhecimento do início de uma sátira do poeta venusiano. Começamos, por isso,

apresentando este trecho horaciano a que Pérsio nos remete, em que vemos Damasipo

admoestando o amigo Horácio1.

'SIC raro scribis, ut toto non quater anno membranam poscas, scriptorum quaeque retexens, iratus tibi, quod vini somnique benignus nil dignum sermone canas. quid fiet? at ipsis Saturnalibus huc fugisti sobrius. ergo 5 dic aliquid dignum promissis. incipe. nil est. culpantur frustra calami inmeritusque laborat iratis natus paries dis atque poetis. atqui uoltus erat multa et praeclara minantis, si uacuum tepido cepisset villula tecto. 10 quorsum pertinuit stipare Platona Menandro? Eupolin, Archilochum, comites educere tantos? inuidiam placare paras virtute relicta? contemnere miser. uitanda est inproba Siren desidia, aut quidquid uita meliore parasti 15 ponendum aequo animo.'

["Escreves tão raramente que não chegas a pedir pergaminho Nem quatro vezes num ano; ficas a reelaborar os assuntos de teus escritos,

1 Horácio, Sátira II, 3, vv. 1-16.

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12

Encolerizado contigo mesmo, pois, amigo do vinho e do sono, Não cantas nada digno de conversação. Que está acontecendo? Tu, porém, | durante as próprias Saturnais fugiste, sóbrio, para cá. Recita, pois, 5 Algo digno do que prometias. Começa! Nada há? Em vão os cálamos recebem a culpa, e a parede - nascida estando | encolerizados Os deuses e também os poetas - sofre sem ter cometido nenhum mal. Tua aparência, no entanto, era a de alguém que prometia muitos

| e belíssimos versos, Se uma pequena casa de campo, com um teto acolhedor, te recebesse ocioso. A qual finalidade serviu amontoar os livros de Platão sobre os de Menandro? Levar contigo Êupolis e Arquíloco, e tão ilustres companheiros? 12 Pretendes aplacar a inveja alheia deixando de lado a virtude? Ah, infeliz! Serás desprezado! A preguiça, ímproba sereia, deve ser evitada; Se não, tudo aquilo que adquiriste num melhor momento de tua vida Há de ser, de bom grado, posto de lado."] 16

No início da terceira sátira de Pérsio, vemos um jovem dormindo, embora a

manhã já tenha chegado há bom tempo.

NEMPE haec adsidue. iam clarum mane fenestras intrat et angustas extendit lumine rimas. stertimus, indomitum quod despumare Falernum sufficiat, quinta dum linea tangitur umbra. 'en quid agis? siccas insana canicula messes 5 iam dudum coquit et patula pecus omne sub ulmo est.' unus ait comitum. uerumne? itan? ocius adsit huc aliquis. nemon? turgescit uitrea bilis: findor, ut Arcadiae pecuaria rudere credas.

[Pois é sempre assim! Já a manhã clara penetra as janelas E alonga com sua luz as fendas estreitas; Continuamos roncando – o tempo necessário para depurar O encorpado falerno, enquanto a linha é tocada pela quinta sombra. "Vamos! Que pretendes? Já há um bom tempo a insana Canícula 5 Abrasa as ressecadas messes, e todo o rebanho está sob a copa do olmeiro." Diz um dos companheiros. "É sério? Mesmo? Há alguém aqui que não esteja | fazendo

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Nenhum serviço?2 Ninguém?" A vítrea bílis começa a inchar-se. Estou para rebentar... de tal modo que acreditarias em que todos os rebanhos

| da Arcádia estivessem rosnando.]3

Esta sátira trata da preguiça, que impede o jovem de alcançar o conhecimento; em

contrapartida, ipso facto, é também um convite a saná-la. Do mesmo modo como o

doente deve buscar auxílio enquanto é tempo, e seguir as orientações médicas, o jovem

deve buscar o conhecimento e seguir o conselho dos bons mestres. Os dois primeiros

versos criam a moldura do poema. A Luz é o símbolo usual para o conhecimento,

enquanto as Trevas representam ignorância. Pois o dia chega, e ele traz a luz do sol, que

aparece entrando pela janela; ele indica que está logo ali, para quem for a seu encontro, a

luz do conhecimento. Temos aqui certamente uma lembrança do famoso mito platônico

da caverna, que Sócrates narra no oitavo livro da República. As sombras se esticam no

chão, alongando as fendas estreitas: a realidade, para quem olhar apenas as sombras

projetadas no chão do quarto, será percebida sempre de maneira distorcida. A lembrança

do mito a emoldurar a sátira se justifica pelo fato de que o poeta quer fazer com o poema

justamente um convite a que deixemos de compreender a vida de acordo com a imagem

das sombras projetadas na parede da caverna, para podermos contemplar, enfim, a luz da

verdade.

O poema abre-se com a expressão haec adsidue, isto é, ele começa in medias res;

vemo-nos no meio de algum evento que repete algum outro. Na verdade, o ouvinte logo

perceberá que, com a expressão inicial, não somente Pérsio coloca o ouvinte dentro de

uma história que não começa ex nihilo, mas sobretudo dentro de uma história que repete

algo que o próprio ouvinte já conhece. Ele mesmo poderia dizer essas palavras! Afinal, a

cena que se descortina à sua frente o faz recordar uma história semelhante a outra que ele

já lera alguma vez: os versos de Horácio citados acima. Além disso, a cena também por

certo ecoará em seus ouvidos como a narrativa de uma história familiar, ou, quiçá, mais do

2 i.e.: Alguém que possa me ajudar? 3 A edição de Clausen, seguindo os passos de Housman (cf. infra, p. 14), não marca nenhum diálogo em todo o poema até o verso 62, com exceção da fala do comes (vv. 5-6), e do tirano (vv. 41-42). No entanto, mesmo se pensarmos num diálogo interno de Pérsio, pontuar as falas nos parece trazer não somente mais clareza como também mais vivacidade ao texto. Todas as demais edições críticas compulsadas por nós o fazem: Villeneuve, Nikitinski, Conington, Cartault, Kissel.

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que isso: pessoal. No verso 3, antes de o diálogo propriamente começar, o narrador se

apresenta, com o verbo stertimus. Com o emprego deste plural, Pérsio envolve o leitor e a

si próprio na descrição: todos passam por situações como essa. E é nesses momentos que a

consciência vem dialogar conosco, como um comes. Mas quem são, afinal, essas

personagens?

Housman, no início do século XX, publica um artigo com várias notas sobre a

obra do poeta; uma delas trata da terceira sátira, e defende a tese de que o jovem

preguiçoso no início desta sátira é o próprio poeta4:

This satire, throughout its first 62 verses, is aimed at those who live amiss though they know the right way; and the satirist takes himself as a specimen of the class. Persius is both the subject and the speaker, and no other person has a word to say except the 'unus comitum' who utters verses 5 and 6, 'en quid . . . ulmo est.' But Persius holds parley with himself: first it is the whole man who speaks, stertimus, findor, querimur, uenimus; ere long his higher nature mounts the pulpit and thence rebukes him in the second person, 18 poscis and recusas, 20 succinis and effluis and tibi, using the first person of itself, 30 ego and noui; at 19 the lower nature finds a voice and says studeam. In 44 sqq. the reminiscent portion of the mind begins to talk, memini, tangebarn, nollem; and then in 52 sqq. it takes to task the Persius of to-day, tibi, stertis, uiuis. The truth might have been discovered from verses 10-22 alone; for these are a plain imitation of Hor. serm. II 3 1-16, satire on the satirist's self.

Depois disso, muito já se discutiu se Pérsio nesta sátira estaria satirizando a si

próprio. Não há unanimidade de opinião a respeito dessa questão5. A nós, em todo caso, o

modelo horaciano convence plenamente de que o mais adequado é a leitura de que Pérsio

está sim a fazer uma ironia também consigo mesmo6. Não quer isso dizer, no entanto, que

o poeta esteja sendo fielmente autobiográfico7. O que ele faz é criar uma personagem que

4 HOUSMAN (1913); cf., em especial, pp. 16-18. 5 Cf. TATE (1928), TATE, J. (1929) e, especialmente, HENDRICKSON (1928): ambos não concordam que o jovem seja Pérsio. Para SMITH (1969), ao contrário, Pérsio é o jovem preguiçoso, e o comes, outra personagem, um amigo que surge para lhe fazer advertências e dar bons conselhos. 6 É curioso notar que o poema de Horácio abre com Damasipo fazendo a crítica de que o poeta raro scribit; justamente a mesma observação é feita pelo biógrafo de Pérsio sobre o volaterrano: scriptitauit et raro et tarde (Vita Persi, §8). Demais, essa informação não é sem valor para o debate em questão. 7 Na recordação feita de sua infância (vv. 44 e ss.), por exemplo, ele cita o pai orgulhoso trazendo os amigos para ouvirem o filho – na casa dos dezesseis anos – fazer uma récita (cf. infra, p. 32). Ora, segundo a Vita Persi, o pai do poeta morreu quando ele ainda era muito criança, com não mais de seis anos. É verdade que a

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pode ser identificada com ele e com (boa parte d)os ouvintes; é um 'eu-transferível', como

o 'eu' das meditações cartesianas. Os detalhes não precisam, pois, identificá-lo

biograficamente: será escolhida a cena que melhor traduza o que deseja o autor, a qual,

sendo verossímil a quantos tenham contato com o texto, não precisará preocupar-se com

a veracidade histórico-biográfica da situação8. Isso, diga-se, em nada diminui a

sinceridade da obra; pelo contrário, ao levantar as dificuldades por que todos passam,

inclusive ele, Pérsio se torna como que cúmplice dos ouvintes, e assim, mais facilmente

alcança a captatio beneuolentiae. E, sem dúvida, quanto mais ele conseguir isso, tanto mais

se tornará eficiente a mensagem que quer passar. Em todo caso, o que nós temos, com

toda a certeza, é uma oposição entre atitudes não sadias de um lado; e de outro, conselhos

para uma vida mais saudável. Sobre a questão, a professora Cynthia Dessen tece o seguinte

comentário9:

The biographical approach to Roman satire is of doubtful value and in the third Satire raises more problems than it solves. There is a simpler explanation for Persius' alternation of roles. This device allows him to involve us, his audience, in the poem, thereby including us in his criticism of the youth. To accomplish this, Persius first establishes a deliberate ambiguity between the narrator's remarks to us and the Stoic's words to his sleeping adversary.

O dia, de fato, já estava avançado quando o jovem é interpelado por um seu

companheiro. O Falerno que Pérsio depura é um vinho da Campânia, região conhecida

pela excelência de seus vinhedos. O jovem, amante do sono e do vinho, é uma édition

refondue et mise à jour do uini somnique benignus horaciano10. O adjetivo indomitus é usado

para caracterizar vinhos fortes11. Em linea quintā tangitur umbrā (v. 4) temos uma hipálage,

mãe contraíra novas núpcias; no entanto, o segundo marido em poucos anos também vem a falecer; cf. Vita Persi, § 3. 8 Na bela imagem escolhida por Horácio como perífrase para o inverno, na Ode I, 11, v. 5, as ondas do mar Tirreno aparecem chocando-se contra rochedos. O poeta, para nos fazer ver os rochedos, escolheu o poético pumex. Porém, afirmam os comentadores, não há pedra-pomes junto ao mar Tirreno. A imagem, com não ser factualmente possível, em nada perde sua beleza poética, nem deixa de transmitir ao ouvinte, de maneira fiel, a sensação que o poeta almejara. 9 DESSEN (1996), p. 49. 10 Horácio, Sátiras II, 3, v. 3. 11 Lucano transcreve quase literalmente a expressão usada por Pérsio: indomitum [...] spumare Falernum, Lucano, X, v. 163.

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por quinta linea tangitur umbrā. Os romanos dividiam o dia em duas partes de doze horas: o

dia propriamente e a noite; aquele começava às 6h, e ia até as 18h (a noite era divida em

quatro vigílias); assim, quinta hora equivale a um horário entre 10h e 11h da manhã12.

linea refere-se à marcação do relógio solar (a sombra da seta marca a hora em linhas

traçadas no chão). Esse horário traz um paralelo entre o tempo do dia (manhã já

adentrada) e tempo da vida do jovem que está em cena (o puer que passa a adulescens)13.

Assim, a idade já não permite mais adiamentos: é hora de dedicar-se à filosofia, ter

disciplina e deixar de lado as sombras do vício, a vida de engano, ir em busca do acesso à

luz da verdade; é hora de sair da caverna – a realidade lá fora espera para ser vista. Este

momento da encruzilhada – quando a infância termina e se deve, portanto, escolher o

caminho a ser seguido na vida – é retomado algumas vezes por Pérsio em sua sátira14.

No verso 5, siccas antecipa coquit, numa prolepse, com o qual forma uma idéia

única – de fato, o sol não estaria abrasando a messe já ressecada, mas ele próprio pratica a

ação de torná-la seca; em outras palavras: ‘a messe já se vai ressecando com a abrasadora

canícula’. O termo canicula se refere propriamente a uma constelação (Canícula), e, por

metonímia, remete ao tempo de extremo calor em que ela é visível, entre 23 de julho e 2

de setembro.

A série de perguntas que aparecem nos versos 7 e 8 demonstra a impaciência do

jovem senhor ao chamar seu escravo. Horácio, em uma de suas sátiras, empregara o

mesmo recurso15: nemon oleum fert ocius? ecquis? audit? [Ninguém disponível para trazer o

óleo? E então? Alguém está ouvindo?]. Em seguida, no verso 8, essa impaciência será

ilustrada com a expressão turgescit ... bilis, pois os romanos viam na bílis a sede da cólera16.

Para qualificar bilis, Pérsio usa o adjetivo uitrea, numa iunctura inusitada, que remete à

fragilidade da paciência do jovem, que, como o vidro, facilmente pode quebrar-se.

12 Lembramos que, na contagem do tempo, os romanos contavam o terminus a quo e o terminus ad quem. 13 Cf. hic, capítulo 3.1, p. 81. 14 Cf. Pérsio 3, vv. 56, cf. infra; e 5, vv. 34-35, cf. hic, capítulo 3.1, p. 82. 15 Horácio, Sátiras II, 7, vv. 34-35. 16 Cf. Horácio, Odes I, 13, 4: difficili bile tumet iecur. De fato, a tradição de ligar a bílis à ira já existe desde Homero, cf. MIGLIORINI (1997), p. 142. Na quinta sátira, Pérsio voltará a falar na bílis, cf. hic, capítulo 3.2, p. 121.

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No verso 111 de sua primeira sátira, Pérsio fizera o rosnar dos senhores irritados

com sua mordacidade ser ouvido pela sonoridade das palavras escolhidas (nil moRoR ...

miRae eRitis Res), que reproduzem a littera canina – R –, mencionada pouco antes pelo

poeta17. O mesmo se dá agora no verso 9 deste poema, sobretudo pelo alongamento da

letra u – rūdere, em vez de rŭdere18: podemos, assim, como que ouvir o rosnado de

irritação do jovem senhor, que ele próprio compara, hiperbolicamente, ao som produzido

por rebanhos da Arcádia. Note-se também a expressão cômica em Arcadiae pecuaria19: ela é

uma referência aos asnos. Com efeito, segundo Plínio Velho, havia uma raça destes

apreciada na Arcádia20. Além disso, destaque-se que a expressão comparativa do verso tem

sabor inegavelmente popular21.

Com essa disposição de ânimo, o jovem se prepara para o trabalho:

iam liber et positis bicolor membrana capillis 10 inque manus chartae nodosaque uenit harundo. tum querimur crassus calamo quod pendeat umor. nigra sed infusa uanescit sepia lympha, dilutas querimur geminet quod fistula guttas. o miser inque dies ultra miser, hucine rerum 15 uenimus? a, cur non potius teneroque columbo et similis regum pueris pappare minutum poscis et iratus mammae lallare recusas? an tali studeam calamo? cui uerba? quid istas succinis ambages? tibi luditur. effluis amens, 20 contemnere. sonat uitium percussa, maligne respondet uiridi non cocta fidelia limo.

[Já o livro, e os bicolores pergaminhos bem raspados, 10 E os papiros, e a nodosa pena chegaram-nos às mãos. Então queixamo-nos porque a grossa tinta não corra da pena, Mas, misturando água, a negra sépia se desvanece.

17 Cf. Pérsio, 1, vv. 110-111, BROUWERS (1973), p. 253 e SCHERER (2004), cap. 5.1, p. 40. 18 Cf. hic, capítulo 3.2, p. 118. 19 Pérsio usa pecuaria, que propriamente é um adjetivo neutro plural substantivado, por pecora; já também Vergílio o fizera, cf. Geórgicas, III, v. 64. 20 Plínio Velho, História Natural, VIII, 68; cf. tb. o sarcástico arcadico iuueni de Juvenal, VII, v. 160. 21 Em artigo em que estudo o uso do latim familiar na sátira de Pérsio, Gérard dirá o seguinte: "Comme celles dont se sert le peuple, plusieurs des comparaisons que l'on trouve dans les Satires de Perse sont tirées des objets les plus communs"; GÉRARD (1897), p. 101.

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Queixamo-nos porque a cana solte dobradamente as gotas dissolvidas. Oh desgraçado! E cada dia mais desgraçado! A tal ponto 15 Chegamos? Ah!, por que antes, semelhante a um pombinho Delicado e a filhos de reis, não reclamas uma papinha em pequenos Pedaços e, irritado com a mamãe, recusas 'nanar'?22 "Mas por acaso eu posso trabalhar com tal pena?" A quem diriges essas

| palavras? Por que contrapões Esses subterfúgios? É tua vez de jogar. Como um insensato, te pões

| a perder; Serás desprezado. Um jarro não cozido com argila fresca, quando for | percutido, revelará no som o seu defeito, a resposta ao toque soará desagradável.]

O jovem se prepara para escrever. Pega o material necessário para o trabalho. liber

está aqui por alguma obra que contenha o material de que ele precisa para suas anotações.

O esboço e as notas serão feitos sobre o pergaminho (membrana), chamado bicolor porque

possui um lado mais branco que o outro, e, além disso, era costume derramar óleo de

cedro no lado que não era utilizado na escrita, para conservá-lo melhor23. Para tornar-se

próprio para a escrita, o pergaminho tinha de ser raspado24, por isso o ablativo absoluto

positis capillis – em que capillus aparece empregado por pilus25. Depois, para a versão

definitiva, o papiro (charta) será utilizado.

Embora esteja o jovem com todo o material à sua disposição, sua atenção, no

entanto, não consegue fixar-se nas coisas devidas. A cada instante ele busca justificativas,

visivelmente impertinentes, para escapar ao estudo. É a tinta que agora corre de menos,

agora é a tinta que está aguada, depois é a pena, o cálamo, a fístula que não funcionam

como deveriam: e agora a tinta corre demais... Com efeito, é de notar-se que, entre os

versos 12 e 14, o jovem emprega três palavras diferentes para descrever o instrumento de

escrita: mas nada funciona a quem está buscando pretextos para fugir aos estudos. O

22 Outra leitura poderia ser dada pensando-se mammae como um genitivo dependente do infinitivo lallare, cf. Sêneca, Ad Lucilium, 101, 13. Escolhemos a leitura mammae como um dativo ligado a iratus não somente por ser mais natural, mas também porque remete a iratus tibi, de Horácio (cf. infra nosso comentário). 23 Por isso, Pérsio na primeira sátira empregara a expressão 'poemas dignos do cedro' (cedro digna carmina, vv. 42-43), com o sentido de poemas que hão de resistir ao tempo; Cf. SCHERER (2004), pp. 54-56. 24 Este processo era feito com pedra-pomes. 25 O poeta Tibulo empregara coma com o mesmo valor, cf. Tibulo, III, 1, 10.

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emprego do subjuntivo nesta passagem26 (pendeat, v. 12; geminet, v. 14) é irônico, e reforça

a idéia de 'causa alegada'27.

Com o vocativo o miser no início do verso 15, e repetido no segundo hemistíquio

do mesmo verso28, começa uma reprimenda ao estudante preguiçoso, a qual se estenderá,

de certo modo, até o final da sátira. Essa mesma interpelação aparecera ao preguiçoso

Horácio, no verso 14 da sátira citada no início do capítulo (II, 3). Naquele momento,

Damasipo pergunta a Horácio se este, com a preguiça a que se tem entregado e com o

abandono da virtude, pretende agradar aos invejosos. A virtude mencionada por

Damasipo (v. 13) diz respeito também à disciplina: à dedicação à leitura e, sobretudo, à

escrita. Seu propósito, porém, é fazer o poeta voltar a produzir suas grandes obras

literárias. O piger persiano está sendo chamado a abandonar a preguiça para dedicar-se à

busca da virtude. Mas, no contexto do volaterrano, uirtus terá um sentido muito mais

amplo, diz respeito à busca da sabedoria. Os livros e a escrita também aparecerão, por

certo, mas o objetivo agora não é a escrita de obras literárias de valor, e sim o auto-

conhecimento, visando a uma vida virtuosa.

Num primeiro momento, a voz escarnece do miser, que, como uma criança

mimada, reluta em cumprir seus afazeres, se não vier tudo muito mastigadinho – isto é, se

o material não estiver absolutamente perfeito –, como a comida que recebem na boca

filhotes de pombos e de reis. A construção iratus mammae lembra Horácio, que ouvira de

Damasipo iratus tibi. Horácio, amigo do vinho e do sono, não compunha seus versos, e

colocava em vão a culpa no cálamo. Depois, irritava-se consigo mesmo. A chacota que

Pérsio lança ao jovem preguiçoso é mais forte. Ele se comporta como uma criança. O

comportamento infantil segue: ele agora está irritado, não consigo próprio, mas com sua

mamãe porque a comida não estava exatamente como ele desejava, e, assim, recusa-se a

ouvir-lhe o acalanto. A escolha das palavras pappare, minutum, mamma e lallare (vv. 17 e

26 O modo usado regularmente para a completiva com 'quod' é o indicativo, cf. CONTE et alii (2006), p. 270. 27 O chamado 'subjuntivo oblíquo', "che descrive il processo verbale da un ponto di vista soggetivo, relativizzando la verità dell'informazione", CONTE et alii (2006), p. 251. 28 O segundo miser aparece introduzido por ultra; essa maneira de expressar grau de um adjetivo é própria da linguagem familiar; cf. nesta mesma sátira: v. 46 multum laudanda; v. 86 multum torosa.

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18) se explica por serem palavras do vocabulário infantil e/ou próprias da literatura

cômica29, ilustrando a zombaria contida na admoestação30.

O interlocutor quer se defender; com uma pergunta retórica, procura fazer crer

que suas queixas são justas. Como escrever com tal cálamo? (v. 18) Pôr esta justificativa, a

do cálamo defeituoso, na boca do interlocutor, não foi, por parte do poeta, uma escolha

aleatória. De fato, Pérsio faz aqui um divertido jogo de palavras, que somente poderá ser

compreendido por quem estiver com o poema de Horácio na memória. Afinal, Damasipo

prevenira Horácio de que era em vão que os cálamos recebiam as culpas (culpantur frustra

calami)31.

Como resposta, aparecem novas perguntas, nos versos 19 e 20 (cui uerba? quid istas

succinis ambages?), na voz de um filósofo que quer mostrar que tais justificativas não fazem

sentido. O que está em jogo é a vida do jovem (tibi luditur v. 20)32, o caminho que ele vai

seguir em sua vida real, e isso não tem nada que ver com palavras para satisfazer ou

convencer um mestre. Este ponto nos parece fundamental para a compreensão dos

objetivos de Pérsio: a primeira coisa que alguém tem de fazer para poder alcançar a

sabedoria é a sinceridade consigo próprio, sem o quê, é inútil todo e qualquer esforço de

aprendizagem. É vaidade, preguiça, tempo desperdiçado. Recitar-se-á em vão um poema

cujo conteúdo não é acessível; o conhecimento, por mais simples que se queira – ligado a

um jogo infantil, por exemplo, quando se é criança –, se é buscado com sinceridade, tem

mais valor do que um discurso nobre que não se pode compreender. O emprego de

luditur, com efeito, não nos parece escolhido ao acaso: além de podermos reconhecer aqui

a metáfora da vida como jogo, serve, bem ao gosto do poeta, como uma preparação à

cena em que, alguns versos adiante, o poeta fará uma reminiscência da infância com os

jogos que as crianças costumavam jogar33.

29 Cf. PASQUALI (1920), p. 301. 30 O verbo onomatopaico lallare tem sua origem provável na melodia cantada pelas mães para fazerem adormecer seus filhos pequenos, na qual empregavam apenas a sílaba LA. 31 Horácio, Sátiras, II, 3, 7. 32 A expressão tibi luditur tanto pode indicar é a tua vez de jogar, como é teu interesse que está em jogo – as duas leituras são válidas, e são, a nosso parecer, lados da mesma moeda. 33 Cf. infra, vv. 43 e ss.

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Com as desculpas que inventa, o interlocutor está pondo sua vida fora, como um

insensato. Com isso, ele não ganhará mais do que o desprezo (contemnere). Mais uma vez,

Pérsio dialoga com a Sátira II, 3 de Horácio, em que o mesmo contemnere aparece abrindo

o verso 15. Em seguida, Damasipo apresenta uma máxima, adornada com uma figura

poética: uitanda est inproba Siren / desidia [A preguiça, ímproba sereia, deve ser evitada]. A

Pigritia aparece, pois, ilustrada com a imagem da sereia (ou sirena), que era um ser

mitológico, metade mulher metade pássaro, cujo mavioso canto enlouquecia os homens.

Estes não conseguiam controlar seu desejo de ir ao encontro dela, e acabavam por ela

sendo devorados. Ou seja, a imagem nos está a dizer: a preguiça seduz o homem, a

preguiça devora sua vida.

Seguindo sua admoestação, o filósofo estóico desenvolve uma metáfora, que traz

em si uma comparação entre a argila e a alma de um jovem. Um objeto de cerâmica que

não foi trabalhado corretamente, cujo material usado não estava no ponto certo, acabará

por tornar-se defeituoso. Assim, o Jarro 'dará uma resposta ruim' (maligne / respondet, vv.

21-22), ou, em outras palavras, o som que ele produzirá, ao ser percutido, será opaco,

defeituoso; quer isso dizer que o próprio som produzido acabará por denunciar a má

qualidade da obra. Do mesmo modo, a alma de um jovem, se não foi trabalhada

corretamente e no tempo certo, acaba por tornar-se defeituosa34.

Pérsio segue na mesma metáfora, agora com o intuito de exortar o jovem aos

estudos. Para não desperdiçar a oportunidade de buscar o verdadeiro sentido da vida, é

hora de entregar-se ao estudo da filosofia:

udum et molle lutum es, nunc nunc properandus et acri fingendus sine fine rota. sed rure paterno est tibi far modicum, purum et sine labe salinum 25 (quid metuas?) cultrixque foci secura patella. hoc satis? an deceat pulmonem rumpere uentis stemmate quod Tusco ramum millesime ducis censoremue tuum uel quod trabeate salutas? ad populum phaleras! ego te intus et in cute noui. 30 non pudet ad morem discincti uiuere Nattae.

34 Essa é uma metáfora cara aos filósofos; cf. Platão Teeteto, 179D: "É de mister [...] examinar de novo esse ser inquieto e movediço, para percuti-lo e ver se emite som cheio ou de taboca rachada."

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sed stupet hic uitio et fibris increuit opimum pingue, caret culpa, nescit quid perdat, et alto demersus summa rursus non bullit in unda.

[És um barro úmido e maleável; agora, é agora que deves apressar-te 23 E moldar-te sem descanso com o torno afiado. No entanto, das terras | paternas Tens uma boa quantidade de grãos e um saleiro bem cuidado e sem defeitos – Que poderias temer? –, e uma vasilha, guardiã de teu lar, garantia de que

| não passarás necessidade. E isso basta? Acaso seria conveniente inchar o pulmão de vento até

| rebentar Porque tu, milésimo da árvore genealógica de uma família etrusca,

| encabeças o ramo, Ou porque tu que vestes a trábea saúdas a imagem de teu antepassado,

| o censor? Ao populacho essas alfaias! Eu te conheço por dentro e por fora! 30 Não te envergonha viver conforme os hábitos do dissoluto Nata!35 Só que este está estupidificado pelo vício, e sobre suas fibras cresceu

| uma grossa camada De gordura, é inconsciente dos erros, não sabe o que está perdendo, e,

| submerso nas profundezas, Não borbulhará novamente na superfície da água.]

Enquanto ele tem as condições, enquanto seu espírito ainda é maleável como o

barro úmido, ele deve moldar-se num torno justo. A imagem parece ter sido inspirada por

um verso de Horácio36: argilla quiduis imitaberis uda [Poderás modelar o que quiseres com

esta argila úmida]37; com uma diferença significativa, enquanto Horácio usa o verbo

imitaberis, Pérsio, ao escolher o verbo es, associa o ser humano à coisa, e torna mais

dramática a situação. Em todo caso, a metáfora que apresenta a educação como o trabalho

do oleiro aparece com freqüência entre os antigos38; Pérsio mesmo voltará a evocá-la em

sua quinta sátira, nos versos 39-40, enquanto faz um elogio de seu Mestre. Com o mesmo

cuidado de um hábil artista, que modela sua obra de arte, cinzelando com o polegar os

35 Alguns editores, como Nikitinski, Kissel e Conington vêem esta frase como interrogativa; no entanto, afirmativa, ela nos parece muito mais contundente. Seguem esse parecer Clausen, Villeneuve e Cartault. 36 Horácio, Epístolas, II, 2, v. 8. 37 Pérsio escolhe a palavra lutum por argilla, esse uso já aparece consignado em Tibulo I, 1, 40. 38 Cf. DOLÇ (1949), p. 147.

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detalhes do acabamento, Cornuto educa seus discípulos39. É, pois, justamente este o

conselho que o poeta dá ao jovem preguiçoso: que permita que seu espírito seja

modelado, antes que ele acabe disforme e irrecuperável como o de Nata. Se o artífice é o

Mestre, o torno afiado com que ele deve moldar-se (vv. 23-24) é uma metáfora para

'filosofia'.

O próprio filósofo deduz uma justificativa, algo arrogante talvez, do jovem, que

poria em questão a necessidade de tal dedicação – afinal, já possui propriedades e bens que

lhe garantem que não há de passar necessidades. Com que mais deveria ele preocupar-se?

O saleiro (salinum, v. 25) simboliza aqui a herança recebida, e o bem-estar com seus bens;

juntamente com a vasilha (patella, v. 26) são objetos imprescindíveis no lar de um

romano40. Na quinta sátira, a Auaritia usará a imagem de um saleiro vazio para convencer

o jovem a se deixar conduzir por ela41. O argumento do jovem traz em si a idéia de que

tudo o de que se precisa é de conforto material. Mas não é esse o conforto que o sábio

deve buscar: isso não basta, como dirá o poeta na pergunta retórica do verso 27. O

verdadeiro conforto, na verdade, é de ordem espiritual, e ele somente pode ser alcançado

por meio da conquista da sabedoria, como Pérsio constantemente nos quer alertar com

sua sátira.

Na continuação do verso 27, inicia-se outra pergunta retórica, em que o poeta

utiliza uma hipérbole a ilustrar o orgulho, por meio de um peito que está a ponto de

rebentar. Essa imagem remete-nos à conhecida fábula da rã que infla seu pulmão para

ficar tão grande quanto um bezerro. A historieta fora contada por Horácio na terceira

sátira de seu segundo livro, sátira essa que, como vimos, é a que Pérsio usa como principal

modelo para a construção desta. Damasipo, o interlocutor de Horácio, conta que42,

durante a ausência da rã, seus filhotes haviam morrido, pisoteados por um novilho; apenas

um sobrevivera. Ela começou a encher de ar os pulmões para igualar a dimensão do

bezerro. Ao querer saber do filho se, após muito inchar-se, já se encontrava do tamanho

39 Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 83-84. 40 Cf. DOLÇ (1949), p. 148. 41 Pérsio, 5, vv. 138-139; cf. hic, capítulo 3.2, p. 120. 42 Horácio, Sátira, II, 3, 314-320.

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do animal que esmagara seus irmãos, recebe a seguinte resposta escarninha (vv. 319-320):

non, si te ruperis, par eris [Ainda que estoures, tu não o igualarás!].43

Segundo o oráculo da ninfa Vegóia44, os etruscos habitavam a região ao Norte do

Lácio desde as origens do mundo. Esse dado relativo à autoctonia etrusca vai ao encontro

da obsessão dos nobres etruscos em buscar as raízes mais remotas de sua árvore

genealógica45. Tudo isso certamente foi muito familiar ao volaterrano Pérsio, e é

justamente o ponto que ele aborda, de modo irônico, nos versos 27 e 2846: não importa

para o poeta a nobreza da ascendência – nem da ordem a qual pertence, como dirá no

verso seguinte. O orgulho pode fazer a pessoa rebentar de tanto inchar o peito, mas sua

posição social jamais a fará alcançar a grandeza do sábio. Parece que também nesta

citação, Pérsio zomba de si mesmo, afinal, ele é de família nobre e etrusca. O verso 29, em

que aparece vestido com a trábea – manto branco, ornado de franjas púrpura, usado por

cavaleiros47 – saudando uma imagem de um antepassado censor, também pode ser lido

como: 'Saúdas o censor (na parada anual de julho, quando o censor passava em revista os

cavaleiros)'. No verso 30, ele exorciza a vaidade – deixem-se essas vaidades à gente vulgar!

-, e, de certo modo, confirma a auto-ironia ao dizer: ego te intus et in cute noui.48 De fato,

parece-nos que ele busca novamente, ao criticar-se, angariar a simpatia do público, e com

isso convidá-los a todos a um auto-exame, tal qual ele o faz.

Como epíteto a Nata49, o poeta usa discinctus, i. e., 'dissoluto'. Propriamente, temos

aqui um particípio passado do verbo discingere, que significa 'tirar ou afrouxar o cinturão'.

Mais uma vez, portanto, vemos Pérsio apresentar uma imagem concreta para ilustrar algo

43 Com alguma variação, a mesma fábula é encontrada em Fedro I, 24. Na versão deste, a rã vê um boi no prado, e, com inveja da magnitude deste, tenta igualar-lhe o tamanho. Tanto se incha que estoura ao final. Também Marcial, em um epigrama contra seu desafeto Otacílio, faz menção à mesma fábula; cf. Marcial, X, 79. 44 Uma tradução latina do original etrusco deste interessante oráculo chegou até nossos dias, e data do século VIII; os especialistas, porém, acreditam que seja a transcrição de uma tradução que remonta, pelo menos, ao século I a. C. 45 Cf. RAMELLI (2001), p. 39. 46 O mesmo tema aparecerá novamente na última sátira de sua coletânea, cf. Pérsio, 6, 57-60. 47 Não nos parece excessivo lembrar que Pérsio era de família eqüestre. 48 O pronome pessoal ego aqui não é usado simplesmente como marca de coloquialidade, mas antes visa a estabelecer uma oposição expressiva: ad populos phaleras / ego te noui. A expressão intus et in cute torna-se famosa no fim da Antiguidade e na Idade Média, sendo retomada por diversos autores, em especial São Jerônimo; cf. TOSI (2000), p. 149, §312. 49 Nome de origem etrusca; cf. VILLENEUVE (1918²), pp. 79-80.

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que diz respeito propriamente a um valor moral. Possivelmente, Nata seja uma

personagem que vivera no tempo de Tibério. Pinarius Natta é citado por Sêneca50 e

Tácito51. Este conta que Nata era cliente de Sejano, e acusara Cremúcio Cordo de um

crime até então desconhecido: publicara ele um elogio a Cássio e Bruto. A reminiscência,

pois, a esta personagem é também um posicionamento político do poeta52. Nata é um

exemplo daquele homem que, quando podia, não seguiu o caminho da virtude, e deixou

uma capa de gordura cobrir seu coração: assim, não tem ele consciência alguma dos seus

erros. E o jovem, que Pérsio conhece tão bem – por dentro e por fora –, não se esforça

por oferecer resistência ao vício, e sem sentir vergonha, isto é, sem perceber a gravidade

do erro, se deixa viver ad mores53 de Nata. Por isto a afirmação forte do verso 31. Porque,

diferentemente do jovem interlocutor, Nata é um vaso que já foi (mal) cozido, e portanto

não tem mais remédio, ficou imperfeito para sempre. Seu exemplo mostra novamente que

nem a riqueza nem a nobreza de linhagem garantem que a pessoa não venha a tornar-se

um depravado, escravo dos vícios. O poeta nos quer fazer ver que é preciso buscar a

virtude enquanto somos ainda maleáveis como o barro úmido. Porque, depois que

estivermos submersos nas profundezas do vício, não conseguiremos mais emergir para a

vida novamente. Cícero usa a mesma imagem, ao se referir ao fato de que quem opta pela

virtude deve entregar-se totalmente a ela54:

ut enim qui demersi sunt in aqua nihilo magis respirare possunt, si non longe absunt a summo, ut iam iamque possint emergere, quam si etiam tum essent in profundo [...] item qui processit aliquantum ad uirtutis habitum nihilo minus in miseria est quam illo qui nihil processit.

[Como aqueles que estão submersos na água não podem de nenhum modo respirar – ainda que estejam próximos da superfície, de modo que logo poderiam emergir – mais do que se então estivessem profundamente mergulhados (...) Igualmente, quem faz pequeno progresso em direção à formação da virtude não está em nada menos na miséria do que aquele que nada progrediu.]

50 Sêneca, Ad Lucilium XX, 122. 51 Tácito, Annales, IV, 34. 52 Cf. infra, pp. 32-33. 53 A familiaridade do poeta com o jovem pode ser sentida até num detalhe, como o uso da preposição ad com valor modal, que é próprio da linguagem coloquial; cf. GÉRARD (1897), p. 89. 54 Cícero, De Finibus, III, 14, 48.

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Em todo caso, aquele que estiver perto da superfície, terá avançado um bom

percurso; esforçando-se, poderá salvar-se. Nata está submerso nas profundezas da

corrupção e do vício; ou seja, para ele já não há nenhuma esperança de emergir e voltar a

respirar.

Pérsio, em seguida, faz a Júpiter o pedido de que haja um único castigo aos tiranos,

em versos que exaltam a virtude como aquilo que de mais elevado um homem pode

almejar. Esse trecho do poema serve também como resposta à pergunta 'quid metuas?', que

aparecera no verso 26:

magne pater diuum, saeuos punire tyrannos 35 haut alia ratione uelis, cum dira libido mouerit ingenium feruenti tincta ueneno: uirtutem uideant intabescantque relicta. anne magis Siculi gemuerunt aera iuuenci et magis auratis pendens laquearibus ensis 40 purpureas subter ceruices terruit, 'imus, imus praecipites' quam si sibi dicat et intus palleat infelix quod proxima nesciat uxor?

[Ó Grande Pai dos Deuses, punas não de outro modo os tiranos Cruéis - quando uma terrível paixão, impregnada de um ardente Veneno, tiver perturbado sua mente: 37 Possam, um dia!, compreender a virtude, e consumam-se por tê-la

| abandonado! Por acaso gemeram mais intensamente os bronzes do novilho siciliano, E mais intensamente provocou terror a espada pendente do teto

| com relevos dourados Sobre a nuca vestida de púrpura do que aquele infeliz quando diz a si | mesmo "Estamos indo, sim!, estamos indo para o precipício...", E empalidece dentro de si, palidez que sua esposa ao lado não chega a

| perceber?]

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Em uma das últimas de suas 104 sinfonias, o prolífico compositor austríaco Joseph

Haydn faz uma brincadeira, pregando um susto na platéia. No segundo movimento da

obra a que fazemos referência55, um andante, as cordas tocam em staccato uma melodia

suave, quase monótona. Seguem em piano até o décimo-sexto compasso, quando vem um

tutti fortissimo da Orquestra, causando um choque no ouvinte, que é como que puxado

por sua jugular e intimado a não mais desviar sua atenção da música. O inopinado gesto

musical acabou por render à sinfonia a alcunha de 'Sinfonia Surpresa'. Pérsio, para criar

um efeito que faça ressaltar as coisas que está para dizer, sai das profundezas onde Nata

está submerso, e apresenta também ele um brusco fortissimo, com uma inesperada

interpelação ao mais alto dos deuses, o magnus pater deorum, a fim de que a surpresa

provocada no ouvinte faça que sua atenção fique presa ao que se vai anunciar, que é, de

fato, o ápice da primeira parte do poema.

A apóstrofe que o poeta faz a Júpiter é cuidadosamente trabalhada. Com efeito, os

versos 35 a 38, que clamam pelo castigo do tirano, aparecem com palavras tomadas de

empréstimo ao estilo elevado: o genitivo plural diuum, o arcaico haut e dira, por exemplo,

trazem solenidade ao pedido, que, afinal, é dirigido ao maior dos deuses. O imperativo

aparece amenizado pelo uso de uma forma perifrástica, uelis punire, em lugar de

simplesmente puni. Os tiranos do verso 35 trazem-nos à lembrança os melindrosos filhos

de reis que haviam aparecido no verso 17. Estão aí as conseqüências das escolhas erradas

do jovem56.

E o castigo que ele solicita ao 'Grande Pai dos Deuses' para os tiranos é o mais

terrível de todos: que eles possam contemplar a virtude que deixaram de buscar, para

então poderem dar-se conta de que puseram de lado o que realmente importava –

nenhum arrependimento pode ser mais terrível do que o daquele que percebe que jogou

fora sua vida por ter feito as escolhas erradas. Tal sentimento é mais terrível do que os

55 Haydn, Sinfonia 94, em Sol Maior. 56 Parece-nos provável que, além do sentido genérico do conceito, tenhamos aqui também uma alusão a Nero, jovem que há pouco passara a ser o princeps em Roma. Pérsio certamente percebe que o enteado de Cláudio já começa a dar indícios de que sua opção será pelo ramo errado ao final da haste do Y, isto é, de que ele, o jovem princeps, que teve em sua formação o contato com a filosofia e tem como conselheiro o estóico Sêneca, em breve tomará o rumo do ramo voltado para a esquerda, do vício, e se tornará um tirano. Essa constatação do poeta pode também ter sido apresentada como uma forma de conselho: não temos dúvida de que Nero conhecia a obra de Pérsio.

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mais terríveis sofrimentos conhecidos pelo homem. Não se pode deixar de notar que os

tiranos (vv. 35-37) apresentam, com muito mais ênfase e intensidade, o drama que já fora

descrito com o discinctus Natta (vv. 31-34): uma vida perdida por ter ignorado ou

abandonado a busca da sabedoria.

Para mostrar de modo mais contundente como tal castigo é o pior de tantos

quantos se possam imaginar, Pérsio nos apresenta dois exemplos de sofrimento que, com

serem terríveis, ainda assim não se comparam a uma vida desperdiçada por uma opção

errada:

a) Temos na pergunta "Por acaso gemeram mais (intensamente) os bronzes

do novilho siciliano?" uma expressão sucinta, colorida pela hipálage, pois

o que se relata diz respeito ao touro de bronze dentro do qual Fálaris,

tirano de Agrigento, fazia queimar vivos seus inimigos – ou seja, quem

gemia eram evidentemente os que lá dentro queimavam, não o touro, e

muito menos o bronze de que era feito;

b) O terror provocado pela espada pendente faz remissão à espada de

Dâmocles: depois de expressar a inveja que sentia pelo tirano Dioniso,

Dâmocles foi convidado a um banquete. Neste banquete ficou sentado

sob uma espada suspensa por um fio tênue. Com esta angustiante

experiência, espécie de metáfora vivenciada, compreendeu os perigos que

ameaçam sempre um tirano, e que o impedem de ter uma vida de

prazeres57.

Após esses dois exemplos, Pérsio mostra o tirano deitado ao lado da esposa –

imagem a nos dizer que é noite, e é na calada da noite que o remorso mais profundo

costuma fazer-nos visita. Ele parece ter ouvido o conselho que Pérsio dá ao final de sua

quarta sátira58: tecum habita: noris quam sit tibi curta supellex! [Convive contigo mesmo:

tomarás ciência de quão míseros são teus utensílios interiores]. O tirano percebe então a

57 Os versos que falam desse episódio (vv. 40-41) são uma reminiscência de uma estrofe da Ode que abre o terceiro livro de Horácio, em que o mesmo acontecimento é narrado; destrictus ensis cui super impia / ceruice pendet, non Sicula dapes / dulcem elaborabunt saporem / non auium citharaeque cantus; Horácio, Odes, III, 1, vv. 17-20). Cf. tb. Cícero, Tusculanae, V, 21. 58 Pérsio, 4, v. 52.

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vida que desperdiçou, o precipício que se aproxima, e o medo e o remorso aparecem –

descritos magistralmente pelo poeta com a imagem de uma palidez que descolore seu

espírito (intus palleat, vv. 42-43). Tanto mais é ousada a metáfora quanto pelo fato de que

a 'palidez' é propriamente um sinal externo, e muitas vezes é percebida apenas pelos

outros. Na imagem de Pérsio, ao revés, ela é invisível aos outros; para ele, o tirano, é a

dura percepção da mais cruel das realidades. Ninguém mais a pode reconhecer, nem a

pessoa que mais o conhece e que está a seu lado, sua esposa. Aqui aparece a solidão do

homem: o homem que não buscou em si o conhecimento e as razões de viver, e que está,

inelutavelmente, fadado ao vazio, ao precipício.

Temos, com efeito, entre os versos 39 e 43, uma gradação: o sofrimento físico, o

temor da morte e, no grau mais elevado, o sofrimento espiritual. Epicteto dirá mesmo que

não se deve sofrer por causa de dor física. Uma anedota muito conhecida relata que seu

senhor, Epafrodito59, o castigava, na única intenção de quebrar a impassibilidade do

escravo-filósofo. Epicteto serenamente advertiu-o de que, se ele continuasse a surrá-lo

daquele jeito, acabaria quebrando suas pernas. Epafrodito, irritado com o tom de

indiferença, começou a açoitá-lo mais violentamente, até o momento em que Epicteto

disse, por fim: "Eu lhe avisei, meu senhor, minhas pernas agora estão quebradas".

A idéia de que a vida verdadeiramente feliz é aquela em que o bem e a virtude são

interdependentes estivera presente no pensamento filosófico antes mesmo do surgimento

da escola estóica, remontando a Sócrates, Platão e Aristóteles. Em suas obras filosóficas, o

eclético Cícero por diversas vezes retoma este mote; temos, assim, por exemplo60: beate

uiuere honeste, id est, cum uirtute uiuere [Viver feliz é viver honradamente, isto é, com

virtude]; beatus enim esse sine uirtute nemo potest [Sem virtude, ninguém pode ser feliz];

beatum autem sine uirtute neminem esse [Ninguém é feliz sem virtude]. O tratado De Vita

Beata, de Sêneca, desenvolverá também a mesma idéia.

A respeito do trecho que acabamos de analisar e a continuação do poema, Dessen

escreve o seguinte61:

59 Epafrodito, por sua vez, era um liberto de Nero. 60 Respectivamente: Cícero, De Finibus III, 29; De Natura Deorum I, 18; De Natura Deorum I, 32. 61 DESSEN (1996), p. 50.

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The climax to this sermon, the apostrophe to Juppiter (35-38), attests to the Stoic's sincerity and religion conviction. The following lines then offset this didactic moralizing with a vivid scene from the Stoic's own childhood. Whether or not this scene reflects Persius' own youth is immaterial; what is important is that here the Stoic appeals to his own experience to persuade. By conceding his youthful lack of interest in philosophy and preference for childhood games, he wins our sympathy so that we listen more willingly to his precepts; and by implying that, unlike his adversary, he gave up these childish pleasures for Stoicism, he gains our respect.

Pérsio fará em seguida uma reminiscência de sua infância, quando também fugia

aos estudos:

saepe oculos, memini, tangebam paruus oliuo, grandia si nollem morituro uerba Catoni 45 dicere62 non sano multum laudanda63 magistro, quae pater adductis sudans audiret amicis. iure; etenim id summum, quid dexter seniŏ ferret, scire erat in uoto, damnosa canicula quantum raderet, angustae collo non fallier orcae, 50 neu quis callidior buxum torquere flagello. haut tibi inexpertum curuos deprendere mores quaeque docet sapiens bracatis inlita Medis porticus, insomnis quibus et detonsa iuuentus inuigilat siliquis et grandi pasta polenta; 55 et tibi quae Samios diduxit littera ramos surgentem dextro monstrauit limite callem.

[Lembro-me: muitas vezes, menino, eu untava os olhos com azeite Quando eu não queria ofertar grandiosas palavras a Catão 45 Estando ele para morrer, que haviam de ser muito elogiadas por um

| professor não lá muito sensato, As quais meu pai, suando, ouvia com amigos convidados. E com razão. Efetivamente, o mais importante no meu desejo era saber: O que senas favoráveis no jogo de dados trariam e o quanto uma jogada

| infeliz Tiraria; não ser enganado pelo gargalo da estreita orca; 50

62 Há uma dificuldade de crítica textual nesta expressão; alguns dos melhores manuscritos, bem como os escólios, apresentam a lição morituro uerba Catoni/ dicere, versão preferida de parte dos editores, como Villeneuve, Nikitinski e Cartault; outros manuscritos, porém, trazem a forma morituri uerba Catonis/ discere, escolhida por outros editores, como Clausen, Kissel e Conington. Sobre essa variante, escreve o Professor Villeneuve: 'morituri uerba Catonis a toute l'apparence d'une conjecture amenée par la substitution, qui peut venir d'un copiste, de discere à dicere', VILLENEUVE (1918²), p. xxiv. 63 Cf. hic, p. 19, nota 28.

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Que ninguém seria mais hábil em fazer rodopiar com uma corda o pião de | madeira.

Porém, a ti, não te é desconhecido discernir os maus hábitos E as coisas que ensina o sábio pórtico pintado com os Medos bragados, Às quais uma juventude insone de cabeça raspada Se dedica, alimentada de legumes e de uma grosseira polenta; 55 E a letra que conduz os ramos sâmios por vias divergentes Já mostrou para ti o atalho que sobe do lado direito.]

A reminiscência de Pérsio não é (necessariamente) literal64, é natural que uma

criança não se sinta atraída pelas obrigações do estudo e prefira as brincadeiras. Como

lembra Dolç, "es inoperante no raras veces tomar al pie de la letra las affirmaciones de los

satíricos; P. alude meramente a una costumbre generalizada, y no es necesario personalizar con

exceso, pese al tono concreto de este pasaje introducido por memini"65. Mais uma vez Pérsio se

apresenta de tal modo que quem o ouvir também se reconheça nas palavras do poeta; com

isso ele angaria, mais um pouco, a empatia do público.

Na verdade, subjacentes a essa anedota infantil, Pérsio apresenta diversos elementos

que não estão ali por mera coincidência. A criança cega-se a si própria: a imagem é

também claramente uma metáfora, e simboliza aquele que não quer aprender, não quer

estudar. Ela cria subterfúgios para fugir ao estudo: referência ao jovem do início da sátira.

Ela, enfim, assim como Nata, não sabe o que está perdendo (nescit quid perdat, v. 33), não

têm consciência da natureza do bem66. Pondera M. Villeneuve67: "De plus, l'enfant est

excusable de préférer aux vaines leçons de la rhétorique des jeux tout aussi vains, sans doute,

mais mieux faits pour plaire à son âge".

A criança não queria emprestar grandiosas palavras ao morituro Catão. Sabemos

que Catão era tido como um símbolo da nobreza de caráter e exemplo político de

estoicismo. Aos donos do poder de então, era um nome maldito; Rubélio Plauto é

64 Como dissemos, nesse momento de sua vida, Pérsio já perdera o pai e o padrasto; cf. supra, p. 14. 65 DOLÇ (1949), p. 154. 66 Parece que Pérsio – com a criança que com razão (iure, v. 48) não se interessava por temas filosóficos, e com Nata, que já desperdiçara sua vida sem ao menos perceber que o fazia, e que não conseguirá mais emergir da ignorância – faz um contraponto ao início da famosa Carta a Meneceu, de Epicuro, que diz justamente que quando se é criança não se deve esperar para se entregar à filosofia, nem se deve fugir a ela quando se é velho – isto é, ninguém é jovem nem velho demais para tratar de sua alma. 67 VILLENEUVE (1918²), p. 81.

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condenado à morte, em 62 a. C. porque imitava os antigos romanos, adotando a

arrogância da secta estóica. Pérsio, quando criança, não estava interessado em questões de

política, nem as podia entender. Neste trecho, parece-nos mais uma vez claro que Pérsio

vincula seu estoicismo e sua sátira a uma crítica no plano político. A Professora Catherine

Salles faz a seguinte observação a respeito das obras de oposição política (estóica) sob

Nero68:

Ce qu'il faut noter chez ces philosophes combattants, c'est qu'ils n'expriment généralement pas leurs convictions dans des traités philosophiques (Sénèque représente une exception), mais dans des ouvrages militants, historiques ou poétiques à sous-entendus politiques. Ils font appel aux figures emblématiques du stoïcisme pour combattre, à travers elles, la personne de l'empereur. Jamais on n'a autant composé de biographies ou d'éloges de Caton d'Utique et des "héros de la liberté", Brutus et Cassius, qui se sont opposés en leur temps aux menées tyranniques de Jules César.

A construção de Pérsio chama a atenção; a leitura habitual entende dicere, nesta

passagem, com um valor factivo, 'fazer dizer', ou, em outras palavras, 'pôr frases heróicas

na boca de Catão'. O estudo de um jovem romano era dividido em três fases: a primeira,

em casa, com o pai ou um preceptor (paedagogus), ou ainda em uma escola primária, com

um professor (ludi magister). Aos doze anos, passava a receber lições de bem falar e bem

escrever com o grammaticus; inicialmente, os autores estudados eram sobretudo os antigos

poetas latinos, como Lívio Andronico e Ênio. No período imperial, autores recentes,

como Vergílio, Horácio, Ovídio, Cícero, Tito Lívio passam a ser estudados. Quando

entrava na escola do rétor, por volta dos dezesseis anos, o jovem se preparava para a arte

oratória. Ele então aprendia as suasoriae e as controuersiae. As primeiras diziam respeito à

eloqüência política, com exercícios de declamação; as segundas, à judiciária, em que se

apresentavam duas idéias opostas para serem debatidas. O exercício a que Pérsio se refere é

sem dúvida uma suasoria. Daqui se depreende que a idade do jovem referida por Pérsio é

de cerca de 16 anos.

Essa construção escolhida pelo poeta traz-nos à lembrança o fato de que ele tem,

entre seus primeiros escritos, alguns versos dedicados a uma figura também emblemática

68 SALLES (2008), p. 205.

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do estoicismo: sua parente Árria Maior69. Ficou ela conhecida pelas palavras pronunciadas

na hora da morte. Seu marido, Peto, fora condenado à pena capital por sua oposição

estóica; para encorajá-lo ao suicídio, a esposa cravou em seu peito um punhal, e, já a

desfalecer, entregou-o ao marido, com as famosas palavras: "Paete, non dolet".70 Parece-nos

plausível a hipótese de que Pérsio, com a construção alicui aliquid dicere, deixe presente

também esta leitura para o exercício retórico, isto é, de palavras de incentivo ao ato

heróico e de louvor ao grande homem, prestes a abandonar a vida em nome da ilibada

honra. Em todo caso, é de salientar-se o fato mesmo de o poeta ter escrito uma obra que

ressaltava uma heroína estóica71. Esse próprio gesto, no período em que Pérsio vivia, tem

com certeza, como vimos, um cunho eminentemente político, bem como o tivera a

menção a Pinarius Natta, no verso 3172. Ramelli chega mesmo a sugerir que a obra

dedicada a Arria Maior teria sido deixada de lado por Cornuto, não por seu menor valor

literário, como afirma o biógrafo73, mas sobretudo pelo significado de oposição política,

num momento em que começavam a acentuar-se as perseguições de Nero74. Percebe-se,

assim, mais uma vez, que o poeta aparece indubitavelmente envolvido em questões

referentes ao mundo político da Vrbs, e tomando parte nele de maneira efetiva.

A criança, entre os versos 49 e 51, reza para conhecer as coisas necessárias para sair-

se vencedora no jogo, e retoma assim o poeta a sua prece ao deus supremo (vv. 35-37),

em que pedia que os tiranos conhecessem a virtude. Entre os versos 48 e 51, Pérsio

apresenta imagens de jogos infantis: as senas no jogo de dados (v. 48) representam uma

jogada em que todos os dados apresentam o número seis, a mais lucrativa jogada. Já a

danosa canícula (v. 49), ao contrário, era a pior combinação: todos os dados com o um.

O diminutivo é pejorativo e faz lembrar a canícula abrasadora, que vai matando as messes

e o gado, nos versos 4 e 5. A orca (v. 50) era uma espécie de ânfora. Pérsio, na realidade,

se vale aqui de uma hipálage: a orca estreita aparece em lugar do seu estreito gargalo. O

69 Cf. Vita Persi, §8. 70 Plínio Jovem, em uma bela epístola, conta-nos outros episódios da vida de Árria Maior, em que sua nobreza de caráter se faz notar; cf. Plínio Jovem III, 16 . 71 Para Ramelli, essa particular valorização do elemento feminino deve-se à sua identidade etrusca; cf. RAMELLI (2001), pp. 42-43. 72 Cf. supra, pp. 24-25. 73 Cf. Vita Persi, §8. 74 Cf. RAMELLI (2001), p.46.

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jogo a que o poeta se reporta consistia de jogar nozes à distância, tentando fazer que elas

entrassem numa ânfora de gargalo estreito. O uso do infinitivo arcaico fallier, por falli,

pode ilustrar a idéia de reminiscências de um tempo antigo, quando o poeta ainda era um

meninote75. Por fim, a criança quer aprender a fazer seu pião dar curvas (buxum torquere,

v. 51): buxum era uma forma popular para 'pião', em lugar do culto turbo76. Esta imagem

será contraposta no verso seguinte, quando aparece o estóico que aprende a enxergar os

costumes curvos (curuos mores, v. 52), com o intuito, claro está, de torná-los retos77.

Assim, a criança buscava o erro, mas ela era inconsciente do bem, como Nata; o

interlocutor, no entanto, já ouviu os ensinamentos estóicos. Era comum às escolas

filosóficas receber o nome do local onde se reuniam, assim ocorreu com a Academia78

platônica, assim ocorreu com o Liceu79 aristotélico; como Zenão de Cício e seus

seguidores costumavam reunir-se no pórtico de entrada de Atenas, e sendo que a palavra

que designa ‘pórtico’ em grego é ‘stoá’, passaram a ser conhecidos como ‘estóicos’. Esse

pórtico era chamado 'Pórtico Pintado' (Stoá Poikíle / Στοά Ποικίλη), porque nele havia

várias pinturas de Polignoto80, as quais tinham como tema a vitória dos Gregos sobre os

Medos. Por isso, nosso poeta vai chamá-lo inlita porticus (vv. 53-54), e, valendo-se de uma

prosopopéia, dá ao pórtico características próprias ao homem, tais como: ser sábio e

ensinar filosofia. A expressão de Pérsio 'bracati Medi' faz referência a calças compridas e

muito particulares que estes, os Medos, costumavam usar.

A insomnis iuuentus do verso 54 não somente nos traz à lembrança o jovem

preguiçoso do início do poema, como serve de contraponto ao verso 58, em que o jovem

reaparece e continua roncando (stertis adhuc). O ascetismo da escola é apresentado com

75 Sensação transmitida apenas pelo sabor arcaizante da forma; propriamente fallier já era forma arcaica no latim quando Pérsio nasce. Talvez possa aventar-se a hipótese de ser uma forma que ainda seria usada em sua Volaterra natal, daí seu uso nesta passagem. 76 O poeta Vergílio se vale das duas formas ao descrever um jogo de pião; Vergílio, Eneida, VII, 378-383. 77 Cf. intortos mores, sátira 5, v. 38; cf. hic, capítulo 3.1, p. 83. 78 Os seguidores de Platão se reuniam nos bosques com esse nome, por se situarem junto ao rio Céfiso, consagrado a Academo, herói que teria ajudado a encontrar Helena, que havia sido raptada por Teseu. Outros dizem que o bosque tem esse nome porque Academo fora enterrado no Cerâmico, cemitério de Atenas que ficava junto ao bosque. As duas versões, em todo caso, não são necessariamente excludentes. 79 Liceu era um ginásio de Atenas, consagrado a Apolo Liceu, onde Aristóteles ensinava. 80 Famoso pintor cuja obra data do século V a. C.; suas pinturas se perderam, mas restam vários depoimentos literários sobre a sua arte.

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uma refeição frugal; os jovens alimentados de legumes e uma grosseira polenta (vv. 54-55)

lembram uma máxima estóica, citada por Sêneca81: "Disce paruo esse contentus; et illam

uocem magnus atque animosus exclama: 'habemus aquam, habemus polentam, Ioui ipsi

controuersiam de felicitate faciamus'" [Aprende a contentar-te com pouco, e exclama com

entusiasmo aquela famosa máxima: 'Temos água, temos polenta; podemos rivalizar em

felicidade com o próprio Júpiter!']82 O adjetivo grandis era usado para qualificar a polenta

feita com um grão ainda não moído, mas apenas esmagado – à moda grega83; a expressão

é encontrada já em Catão84.

O momento da vida em que, acabada a infância, devemos escolher o caminho a

seguir é o mote que sustenta toda a sátira. et tibi (v. 56) correlaciona-se a haut tibi do verso

52: ele sabe fazer a distinção entre o bem e o mal, e o momento da escolha se apresenta

agora para ele. A imagem da letra de Pitágoras, o Y, aparece para ilustrar este momento.

Temos, de fato, no verso 56, uma hipálage complexa, pois os 'ramos sâmios' dizem

respeito à 'letra sâmia' (Y), que, por sua vez, remete-nos a Pitágoras, nascido em Samos.

Essa letra era para os pitagóricos o símbolo do poder de escolha, uma das cinco 'letras

místicas'85 – sendo que até os dias de hoje é usada em escolas iniciáticas. A haste inferior é

o caminho que se trilha na infância, esse percurso segue até a bifurcação. Os dois ramos

que seguem simbolizam o caminho que o jovem deve escolher: o da direita representa a

sabedoria divina, que leva à virtude; e o da esquerda, o da sabedoria mundana, que leva à

devassidão e aos vícios86. Por isto, sobretudo, Pérsio escolhe um jovem, com uma idade

que já começa a ultrapassar o princípio da manhã, como protagonista da sátira: é ele quem

81 Sêneca, Ad Lucilium, XIX, 110, 18. 82 Propriamente, neste trecho da carta, Sêneca relata a Lucílio uma lição que ouvira a Átalo, em que este mostra o pouco valor das riquezas materiais. 83 Em Plínio Velho temos a descrição do processo; cf. Plínio Velho, História Natural, XVIII, 72. 84 Catão, De Agricultura, 108. 85 Cf. WATSON (1952), p. 57. 86 Isidoro, em suas Etimologias, explica a simbologia do Y, e cita os versos de Pérsio: Y litteram Pythagoras Samius ad exemplum uitae humanae primus formauit; cuius uirgula subterior primam aetatem significat, (...) biuium autem, quod superest, ab adolescentia incipit: cuius dextra pars ardua est, sed ad beatam uitam tendens: sinistra facilior - sed ad labem interitumque deducens. de qua sic Persius ait (3, 56): et tibi qua Samios deduxit littera ramos/ surgentem dextro monstrauit limite callem. Isidoro, Etimologias, I, 3, 7-9.

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está à frente da encruzilhada ramosa, é ele quem precisa decidir qual rumo, finalmente,

deverá seguir87.

Quando criança, diz Pérsio, podiam justificar-se suas gazetas, mas agora que ele já

teve conhecimento dos caminhos da vida, que a letra de Pitágoras se apresentou à sua

frente, ele tem a obrigação moral de seguir o caminho direito, sob pena de desperdiçar sua

vida roncando e regurgitando o vinho da noite anterior.

stertis adhuc laxumque caput conpage soluta oscitat hesternum dissutis undique malis. est aliquid quo tendis et in quod derigis arcum? 60 an passim sequeris coruos testaque lutoque, securus quo pes ferat, atque ex tempore uiuis?

[E continuas roncando... descompostas tuas articulações, tua cabeça relaxada Boceja o vinho de ontem com as mandíbulas por toda parte | desconjuntadas. Há algo para o qual te encaminhas ou a que direciones teu arco? 60 Ou persegues corvos de um lado para outro com cascalhos e pedaços de | barro, Descuidado de aonde te levam teus pés, e vives apenas ao sabor

| do momento?]

stertis adhuc aparece como contraposição à insomnis iuuentus (v. 54); Pérsio, com

este recurso – que, aliás, lhe é característico –, não somente fecha uma seção, como

também, ao retomar a imagem do jovem embriagado do início da sátira, conclui a

primeira parte do poema. A descrição do libertino é muito bem elaborada: as percepções

exageradas, e que deformam a realidade, tidas por alguém em estado de embriaguez são

pintadas de tal modo que o leitor 'veja a sensação', como se estivera num universo onírico,

como se vira a pintura de um artista surrealista. Assim, as articulações estão todas

'desarticuladas', a cabeça já não está controlada por ninguém, e ela própria boceja o vinho

– numa sintaxe que acentua a anormalidade do quadro, e com o uso de uma forma vulgar

87 Na quinta sátira, v. 35, Pérsio volta à mesma imagem, e lembra esse período de sua vida, quando começava a bifurcação da vida, e era hora de ele decidir o caminho a tomar; cf. hic, capítulo 3.1, p. 82.

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a pontuar o vulgar da cena88. Os bocejos são tão intensos e tão freqüentes que as

mandíbulas não resistem e acabam desconjuntadas undique!

Os três versos que se seguem servem como uma transição para a segunda parte do

poema. A metáfora derigere arcum para indicar objetivo na vida é de uso recorrente;

Aristóteles, no começo de sua Ética a Nicômano, perguntara89:

Se há, então, para as ações que praticamos alguma finalidade [...] evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens. Não terá então uma grande influência sobre a vida o conhecimento desse bem? Não deveremos, como arqueiros que visam a um alvo, ter maiores probabilidades de atingir assim o que nos é mais conveniente?

A reflexão de Aristóteles está em harmonia com o que Pérsio vem tentando fazer

ver o interlocutor. Mas ele parece continuar "caçando corvos". A expressão escolhida por

Pérsio, sequi coruos, era proverbial, com o sentido de "não ter objetivos precisos"90. Os

cascalhos e pedaços de barro são as primeiras 'armas' que aparecem pela frente do caçador,

com o que sublinha a falta de organização e reflexão antes dos atos da vida; além disso, a

imagem opõe-se ao arco do verso 60. Ao final deste trecho, temos o adjetivo securus –

que corresponde aqui a non curans –, que é complementado por quo pes ferat,

reminiscência da expressão horaciana91: ire pedes quocumque ferent [ir aonde quer que

levem os pés]92. ex tempore uiuere, por sua vez, tem sabor epicurista, e remete pelo seu

sentido ao carpe diem de Horácio, que será criticado na quinta sátira93. O verso 62 todo

aponta, com efeito, para uma vida sem reflexão, sem direcionamento. O sentido geral

desses últimos versos é a necessidade da busca de um fim moral para a vida. Ainda na

88 Referência, claro está, ao uso oscitare pelo esperado depoente oscitari. Verbo esse que, de resto, é intransitivo; aqui, porém, aparece complementado pelo acusativo hesternum. Esse adjetivo, por sua vez, diz respeito ao desregramento, à ebriez, ao vinho, enfim, da noite anterior. 89 Aristóteles, Ética a Nicômano, I, 2; cf. tb. Sêneca, Ad Lucilium, VIII, 71, 3. 90 Aparece sobretudo na literatura grega, com sentido de 'ação insensata, infrutífera'; cf. TOSI (2000), p. 213, §453. 91 Horácio, Epodos, 16, v. 21. 92 Cf. TOSI, p. 265, §554. 93 Pérsio, 5, v. 151-153; cf. hic, capítulo 3.2, pp. 123-124.

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apresentação do livro De Vita Beata, Sêneca escreve94: "decernatur itaque et quo tendamus et

qua" [Reflita-se, pois, sobre para onde vamos e por onde].

Enfim, tendo em vista que, depois da exortação do filósofo estóico, o jovem

continua roncando, Pérsio parte para uma nova investida a fim de que ele possa entender

a mensagem. Usando as doenças do corpo como metáfora para doenças da alma, mostra

que uma e outra têm de ser tratadas a tempo de ser curadas.

94 Sêneca, De Vita Beata, 1, 2.

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2.2 Medicina animae

Nos versos seguintes, Pérsio apresenta a comparação muito usada pelos filósofos

estóicos entre a doença física e a doença espiritual.

elleborum frustra, cum iam cutis aegra tumebit,

poscentis uideas; uenienti occurrite morbo,

et quid opus Cratero magnos promittere montis? 65

discite et, o miseri, causas cognoscite rerum:

quid sumus et quidnam uicturi gignimur, ordo

quis datus, aut metae qua mollis flexus et unde,

quis modus argento, quid fas optare, quid asper

utile nummus habet, patriae carisque propinquis 70

quantum elargiri deceat, quem te deus esse

iussit et humana qua parte locatus es in re.

disce nec inuideas quod multa fidelia putet

in locuplete penu, defensis pinguibus Vmbris,

et piper et pernae, Marsi monumenta clientis, 75

maenaque quod prima nondum defecerit orca.

[Poderás ver aqueles que em vão pedem o heléboro, quando A pele doente já estiver inchada; socorrei a doença no seu princípio, E que necessidade haverá de prometer mundos e fundos a Crátero? Estudai, ó infelizes, e conhecei as causas das coisas: 66 Que somos nós e por que afinal somos gerados para viver, Qual posição nos foi dada, qual o melhor percurso para contornar a meta, Que medida para a prata, o que é lícito desejar, que tem de útil A áspera moeda, o quanto pode convir despender com a pátria E os parentes queridos, quem a divindade te ordenou 71 Que fosses, com que função na espécie humana foste alocado. Toma cuidado para que não invejes o fato de que muita jarra Apodreça numa despensa repleta – tendo sido defendidos uns úmbrios

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| opulentos –, Junto a presuntos e pimenta, presentes de um cliente dos Marsos; 75 Nem o fato de que as sardinhas1 ainda estejam à vista no alto da ânfora.]

A filosofia como medicina da alma é um tema recorrente em filósofos estóicos,

como Sêneca e Epicteto. A esse respeito, comenta a Professora Paola Migliorini2:

Nella tradizione cinico-stoica era consueto il parallelo fra i vizi del corpo e quelli

dell'anima e vi era un continuo interscambio di termini per indicare gli uni e gli

altri. Il filosofo doveva focalizzare e descrivere i comportamenti devianti come il

medico i sintomi delle diversi affezioni; i vizi stessi erano indicati con una

terminologia ripresa da quella medica e talora venivano messi in rapporto con una

malatia specifica.

Também Pérsio recorrerá a esta metáfora, sobretudo em sua terceira sátira. Como

vimos, na primeira parte desta sátira, o poeta chamava-nos a atenção ao fato de que

devemos modelar nosso espírito enquanto somos argila úmida: quando se reconhece a

importância da aprendizagem moral, é preciso dedicar-se a este estudo. Se não dermos

importância a esse conselho, acabaremos como o doente que chega demasiado tarde ao

médico.

Embora a imagem da pele inchada pareça indicar que o doente sofre de hidropsia3,

cremos que não seja demasiado lembrar que o heléboro era uma droga comumente usada

contra a loucura.4 Pérsio, de fato, a usa algumas vezes como um eufemismo para dizer que

alguém está sem sua plena razão, ou que algo é loucura.5 Essa expressão aparece já

consagrada em autores gregos; Aristófanes dirá na peça As Rãs6 "Bebes heléboro",

querendo justamente dizer que o outro está louco. Na literatura latina, desde os seus

primórdios, o termo elleborus (ou helleborus) aparece empregado com esse sentido

metafórico. O médico, por exemplo, na peça Menaechmi, ao julgar que um dos gêmeos

1 Não se sabe com certeza se as maenae eram de fato sardinhas ou algum outro tipo de peixe miúdo. 2 MIGLIORINI (1997), p. 128. 3 Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 144-145. 4 Em Português temos um nome popular sugestivo para o heléboro: erva-besteira! 5 Cf. Pérsio 1, 51; 4, 16; 5, 100. 6 Aristófanes, As Rãs, v. 1489. Tosi apresenta várias outras passagens em que a expressão é usada na literatura clássica; cf. TOSI (2000), p. 65, §144.

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está fora do juízo, diz ao sogro deste7: non potest haec res ellebori iugere optinerier [A doença

dele não pode ser curada nem com um alqueire de heléboro!].

A expressão que o poeta usa no verso 64, occurite morbo, é amplamente atestada no

léxico médico com valor de 'socorrer'8, e acaba incorporada também ao léxico estóico,

com sentido metafórico. Assim, numa carta em que busca consolar sua mãe, Hélvia,

Sêneca dirá9: dolori tuo (...) sciebam occurrendum non esse [Eu sabia que não deveria vir em

socorro à tua dor]. Quanto à idéia de que se devam atacar as doenças logo no seu

princípio, Ovídio também a aproveitará ao falar da cura do espírito apaixonado10: principiis

obsta: sero medicina paratur/ cum mala per longas conualuere moras [Estanca a doença no seu

início: tardiamente aplica-se o remédio, quando os males já se acentuaram pela longa

demora]. Sêneca, em uma carta a Lucílio, usa a metáfora da doença do corpo para alertar

o quanto a "profilaxia filosófica" é fundamental para a saúde da alma11:

quid nos decipimus? non est extrinsecus malum nostrum: intra nos est, in

uisceribus ipsis sedet, et ideo difficulter ad sanitatem peruenimus quia nos aegrotare

nescimus. si curari coeperimus, quando tot morborum tantas uires discutiemus?

nunc uero ne quaerimus quidem medicum, qui minus negotii haberet si adhiberetur

ad recens uitium; sequerentur teneri et rudes animi recta monstrantem.

[Por que nos enganamos? Não está fora nosso mal, mas está dentro de nós; tem em nossas vísceras sua morada, e, como não sabemos que estamos doentes, por essa razão dificilmente recuperamos a saúde. Ainda que comecemos a nos tratar, quando conseguiremos debelar tantas e tão grandes forças que têm as doenças? Nem mesmo procuramos médico, agora que a doença está em seu princípio e seria mais fácil saná-la. Espíritos dóceis e inexperientes seguirão aquele que mostra o reto caminho.]

Se a doença for sanada no seu princípio, não será necessário dispender magnos

montis para sua cura12. A expressão escolhida por Pérsio para designar grande quantia de

7 Plauto, Menaechmi, v. 913; cf. tb. Plauto, Pseudolus, v. 1185. 8 Cf. MIGLIORINI (1997), p 131. 9 Sêneca Ad Heluiam 1, 2. Em sentido próprio, i.e., em relação ao corpo – mas, de todo modo, usado numa comparação com o espírito –, cf. Sêneca, Ad Lucilium VII 68, 7. 10 Ovídio, Remedia Amoris, vv. 91-92. 11 Sêneca, Ad Lucilium V, 50, 4. Cf. tb. Sêneca, Ad Lucilium XVII-XVIII 104, 18. 12 Sêneca diz, em contexto semelhante, que não será necessário agarrar-se aos joelhos do médico (genua tangere); cf. Sêneca, De Breuitate Vitae, 8, 2.

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dinheiro encontra paralelo já na comédia latina. Assim temos em Plauto aureos montis, e

em Terêncio, montis auri pollicens. 13 Crátero foi um médico famoso nos tempos

ciceronianos; sua fama fez seu nome tornar-se epônimo de médico. Porém, não nos

parece haver dúvida de que a escolha do nome de Crátero por Pérsio é uma lembrança de

um verso de Horácio, que também se valera dele na terceira sátira de seu segundo livro14:

non est cardiacus (Craterum dixisse putato)/ hic aeger [Este doente não sofre do estômago15 –

imagina que o próprio Crátero o tenha dito]. No contexto do poema horaciano, temos

um diálogo em que o Stoicus está justamente a dizer que o auarus é um homem doente, e

precisa navegar sem demora para Antícira.16

Pérsio exorta todos ao estudo, que é o remédio para a doença espiritual: discite, o

miseri, et causas cognoscite rerum (v. 66). A exortação ganha realce pelo inusitado hiato

entre o imperativo e o vocativo; este retoma o vocativo miser do verso 15, dirigido ao

jovem preguiçoso, que criava subterfúgios para não começar a estudar. O conhecimento

da origem do mal como maneira de nos curarmos aparecerá em moralistas diversos17.

Celso, em seu prefácio, escreve18: occursurum enim uitio dicunt eum qui originem non

ignorarit [Há de curar a doença, dizem, aquele que não ignorar sua origem]. Vergílio, por

seu turno, dissera19: felix qui potuit rerum cognoscere causas [Feliz aquele que pôde conhecer

as causas das coisas]. Vemos que, enquanto Celso fizera sua prescrição tendo doenças

físicas como preocupação, o ponto de vista de Vergílio é filosófico, ou, mais

especificamente, diz respeito à origem da natureza. De certo modo, podemos dizer que

Pérsio une os dois sentidos em sua exortação: o sentido físico vale como metáfora para o

sentido filosófico. Esse verso, de fato, situa-se entre versos que tratam de doenças físicas e

versos em que Pérsio apresentará a finalidade do estudo filosófico, dando um resumo dos

pontos principais de busca de compreensão para uma vida plena.

13 Respectivamente: Plauto, Aulularia, v. 701, e Terêncio, Formião, v. 68. Cf. tb. Salústio, A Conjuração de Catilina, 23, 3: maria montisque polliceri. 14 Horácio, Sátiras, II, 3, vv. 160-161; como vimos no início deste capítulo, esta sátira de Horácio é aquela com que Pérsio dialoga mais diretamente em seu terceiro poema. 15 kardia, na língua hipocrática, fazia referência não ao coração, mas ao estômago. 16 Local de onde provinha o heléboro; cf. hic, capítulo 3.2, p. 109. 17 Cf. MIGLIORINI (1997), p. 131. 18 Celso, I, Praefatio, 18. 19 Vergílio, Geórgicas, II, v. 490.

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quid sumus, no verso 67, não é uma referência a um preceito individual, mas uma

referência à natureza humana, questão fulcral da escola estóica. Sêneca, ao abordar esta

questão, escreve20: quaeris quid sit? animus, et ratio in animo perfecta [Queres saber o que é

essencial na natureza do homem? Sua alma, e, na alma, a razão perfeita]. A razão, para um

estóico, é uma parte do espírito divino, presente nos corpos humanos. Sendo divina, a

razão é também o centro ordenador da natureza; a razão humana, pois, é algo que indica

como se deve viver. A continuação do verso, quidnam uicturi gignimur, está ligada à

primeira parte; Marco Aurélio chega mesmo a escrever, em suas Meditações, o seguinte21:

"Quem não sabe para o que nasceu não sabe o que é".

No verso seguinte, Pérsio usará a corrida de cavalos como metáfora para a vida. O

circo, onde se realizavam as carreiras, era um longo recinto retangular; na verdade,

apresentava uma das extremidades semicircular, na outra estavam os carceres, de onde

partiam os carros. No meio, havia uma espécie de mureta, chamada spina, e, nas duas

extremidades dela, ficavam as metae, por onde os carros deviam fazer a volta. O ordo é o

lugar reservado nos carceres para a largada. Durante a corrida, os cavaleiros tinham de dar

voltas nas metae, e portanto deveriam encontrar qual o melhor caminho por onde fazer a

volta (qua) – isto é, o mais rápido, mas que, ao mesmo tempo, não representasse risco, que

poderia ser mortal – e desde que ponto (unde) deveriam começar a dar a volta.

Em seguida, Pérsio entra no tema das riquezas:

a) qual a medida (modus) para a riqueza? A riqueza não era um bem para os

estóicos, e apegar-se sofregamente a ela era entregar-se à perturbatio animi

ligada à avareza, e isso certamente era um mal. Em sua famosa definição para

uirtus, Lucílio escrevera22: uirtus quaerendae finem rei scire modumque [uirtus é ter

ciência do termo e da medida para o ganho];

b) o que nos é lícito (fas) desejar? Ao utilizar a palavra fas, o poeta esclarece que

não faz referência a leis mundanas; o que há, de fato, é um sentido

transcendente e moral para essa licitude;

20 Sêneca, Ad Lucilium, IV, 41, 8. 21 Marco Aurélio, Meditações, VIII, 52. 22 Lucílio, v. 6 do fragmento 23 dos hexametri incertae sedis, na edição de Charpin (= 1331, Marx).

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c) qual a utilidade da moeda recebida? O único bem verdadeiro para os estóicos é

a virtude; algumas coisas podem ser consideradas 'preferíveis', em determinadas

circunstâncias, pelo sábio, se elas de algum modo forem auxiliares úteis para

que se possa alcançar a virtude; assim, a saúde, a riqueza material e mesmo a

vida23. Propriamente a imagem da moeda áspera traz em si a idéia de uma

moeda recém-cunhada; não nos parece, porém, que a escolha do adjetivo tenha

sido apenas por seu valor físico – embora não fosse inusitada a expressão24 –,

mas também e sobretudo pela carga moral negativa que traz em si;

d) quanto convém despender com a pátria e os entes queridos? Pérsio, em sua

sexta sátira, traz-nos exemplo do dever moral que temos para com um amigo

que teve sua riqueza arruinada25: "at uocat officium, trabe rupta Bruttia saxa /

prendit amicus inops remque omnem surdaque uota / condidit Ionio. (...) frange

aliquid, largire_inopi, ne pictus oberret/ caerulea in tabula. " [Mas te chama o teu

dever; um amigo necessitado, pois teve destruída sua embarcação, está preso

nos rochedos de Brútio, e escondeu suas riquezas e seus votos não ouvidos no

mar Jônio. (...) Sê generoso com o necessitado, para que não acabe

perambulando pintado num quadro azul-marinho]26. Cabe ainda trazer à

colação o que Lucílio, ao final da mesma definição de uirtus, a que há pouco

nos referíamos, dissera27: commoda praeterea patriai prima putare, / deinde

parentum, tertia iam postremaque nostra [E, além disso, colocar em primeiro lugar

o interesse da pátria, / depois o dos pais, em terceiro e último lugar, o nosso].

Podemos também lembrar um excerto da Arte Poética, em que Horácio – com

uma fórmula semelhante à usada por Pérsio, mas falando de modo mais amplo,

a respeito de deveres morais – ensina ao jovem escritor que, antes de escrever

23 Cf. BOURDIN (2009), p. 31. 24 Cf. Suetônio, Nero, 44: exegit (...) nummum asperum. 25 Pérsio, 6, vv. 27-33. 26 i.e., num quadro representando o naufrágio. Era comum que uma pessoa que sofrera naufrágio, a fim de receber ajuda dos passantes, representasse a cena de sua tragédia numa pintura. Pérsio faz referência a esse costume também em sua primeira sátira: cf. Pérsio, 1, vv. 89-90; cf. tb. SCHERER (2004), pp. 69-71. 27 Lucílio, vv. 11-12 do fragmento 23 dos hexametri incertae sedis, na edição de Charpin (= 1337-1338, Marx).

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alguma coisa, ele deve ter pleno conhecimento do tema28: qui didicit patriae quid

debeat et quid amicis, / quo sit amore parens, quo frater amandus (...)/ ille profecto /

reddere personae scit conuenientia cuique [Quem aprendeu o que deve à patria e

aos amigos, com que amor um pai deve ser amado, ou um irmão (...), este com

certeza sabe atribuir a cada personagem as coisas que lhe convêm].

O próximo ponto trata do papel que a divindade nos deu para exercer nesta vida. A

expressão humana res parece um jeu des mots cunhado a partir de romana res, e faz-nos

lembrar o conceito estóico do Universo como polis.29 Nossa missão, pois, é desempenhar

da melhor maneira possível o papel que nos foi destinado dentro da harmonia cósmica.

Epicteto, de modo bastante feliz, dirá a respeito disso:

Tem em mente de que és, na verdade, o ator de uma peça de teatro, longa ou curta,

na qual o Autor quis que tomasses parte. Se te cabe o papel de um mendigo, de um

comerciante, de um príncipe ou de um plebeu, é mister que o executes da melhor

maneira possível, entrando e saindo do palco no momento em que o Autor tiver

decidido. Tua tarefa, pois, é esta: executar bem esse papel; e é somente isso que te

cabe escolher.

Após os preceitos positivos30, Pérsio apresenta uma proibição: não invejar. Em sua

segunda sátira, Pérsio tratara também da inveja. Escrita em forma epistolar, e dedicada a

seu amigo Macrino, por ocasião de seu aniversário, ela trata da verdadeira religião. Após

elogiar Macrino por ser um dos poucos que podem aperto uiuere uoto (v. 7), i. e., fazer suas

preces em voz alta, passa a criticar aqueles que querem mostrar-se pios aos concidadãos,

pedindo em voz alta coisas justas, mas que murmuram, sub lingua (v. 9), pedidos, em nada

dignos, aos deuses31. Um exemplo descrito pelo poeta de tal hipocrisia é o do sujeito que

28 Horácio, Arte Poética, vv. 312-316. 29 Cf. Marco Aurélio, Meditações, IV, 4: "O mundo é como uma cidade". 30 Esta bela passagem do poeta volaterrano, entre os versos 66 e 72, é citada integralmente por Santo Agostinho, em seu livro A Cidade de Deus. O filho de Santa Mônica expõe, a certa altura da obra, que as cidades que não apresentavam nenhum aviso ameaçador que coibisse os vícios acabava por permitir que estes, a pouco e pouco, pervadissem a alma de seus cidadãos. Então, como exemplo do que deve ser aprendido, para que se evite a auaritia, a ambitio e a luxuria, o Bispo de Hipona cita nosso poeta. Cf. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, II, 6, 1-2. 31 Lembra-nos a recomendação dada por Nosso Senhor Jesus Cristo, no Sermão da Montanha: et cum oratis, non eritis sicut hypocritae, qui amant in synagogis et in angulis platearum stantes orare ut uideantur ab omnibus; amen dico uobis: receperunt mercedem suam; Mt., 6: 5.

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inveja Nério, que tem sobrevivido às suas ricas esposas32. A frase, além de apresentar a

leitura de 'alguns como Nério têm muita sorte, por que não eu?', também pode ser lida

como se encobrira um desejo mais perverso: um anseio secreto de que também ele

pudesse ficar viúvo para casar-se outra vez. Essa é a leitura do Professor Villeneuve33: "Je

crois que Perse a voulu indiquer ici un souhait plus odieux encore que les précédents, si odieux

qu'on n'ose pas l'exprimer d'une manière explicite même à voix basse."

A passagem de que falávamos, na terceira sátira, é composta de quatro versos, e sua

formulação é irônica. Não se deve invejar um advogado que recebeu diversos presentes

pelo sucesso de seus pronunciamentos. Só que sua advertência vai além, e mostra que não

apenas não se deve invejar como também aquele que é invejado na realidade não é sequer

digno de tal sentimento34. A despensa está cheia de jarros (multa fidelia é um singular

poético) que já começam a apodrecer; de fato, temos aqui uma hipálage, afinal o que

apodrece são os produtos dentro dos jarros. Foram presentes de úmbrios pingues, adjetivo

que apresenta um valor equívoco: pode-se ler tanto 'ricos' como 'obesos'. A orca, que no

verso 50 o menino tentava encher de nozes, reaparece no verso 76, agora repleta de

maenae, isto é, de pequenos peixes sem valor. Ou seja, temos um advogado coberto de

recompensas materiais, que, bem analisadas, não passam de bens supérfluos, fúteis e que já

apodrecem. É tal quadro algo digno de inveja? É este o alvo que se mira quando se almeja

uma vida bem vivida?35 Pois esse será o resultado se o jovem continuar preocupado com

dedicar sua vida a encher ânforas, em vez de escutar o chamado em direção à sabedoria.

Terminada a exortação, Pérsio passa da classe dos advogados aos centuriões:

hic aliquis de gente hircosa centurionum

dicat: 'quod sapio satis est mihi. non ego curo

esse quod Arcesilas aerumnosique Solones

obstipo capite et figentes lumine terram, 80

murmura cum secum et rabiosa silentia rodunt

32 Nerio iam tertia conditur uxor; Pérsio, 2, v. 14. 33 VILLENEUVE (1918²), p. 58. 34 Difícil é não lembrar aqui a máxima schopenauriana: "Ninguém é realmente digno de inveja, e tantos o são de lástima!" 35 Cf. Pérsio, 3, v. 60; e hic, capítulo 2.1, p. 37.

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atque exporrecto trutinantur uerba labello,

aegroti ueteris meditantes somnia, gigni

de nihilo nihilum, in nihilum nil posse reuerti.

hoc est quod palles? cur quis non prandeat hoc est?' 85

his populus ridet, multumque torosa iuuentus

ingeminat tremulos naso crispante cachinnos.

[Neste ponto, alguém daquela gente com bafo-de-bode dos centuriões Diria: "O que sei é bastante para mim. Eu não procuro Ser o que são Arcesilau e os desventurados Sólons, De cabeça baixa e fixando a terra com os olhos, 80 Quando remoem murmúrios consigo mesmos e silêncios raivosos, E, com os labiozinhos alongados, pesam bem as palavras, Meditando sobre os sonhos de um velho enfermo: 'Nada Pode ser gerado do nada; nada pode ser revertido a nada.' 84 É essa a razão pela qual empalideces? É por isso que alguém se abstém

| de comer?" O público ri dessas discussões, e uma juventude cheia de músculos Redobra suas vibrantes gargalhadas, com o nariz franzido.]

Não será a única vez que Pérsio pintará soldados, em especial centuriões, como

pessoas pouco afeitas ao estudo, e sobretudo desdenhosas da filosofia36; com toda a

evidência, o centurião que se contrapõe ao estudo da filosofia é uma caricatura bastante

reconhecível ao ouvinte. O adjetivo hircosus (v.77), isto é, com características próprias a

um bode – mal-cheiroso ou peludo – parece apontar para uma pessoa com pouco ou

nenhum cuidado, desleixada. Num fragmento de Sêneca37, hircosus aparece em oposição a

unguentatus; também Horácio usará expressão semelhante, para indicar uma pessoa que

exala um odor desagradável38: facetus / [...] olet Gargonius hircum [O elegante Gargônio

cheira a bode].

A afirmação do centurião 'quod sapio satis est mihi', no verso 78, faz-nos recordar a

pergunta retórica 'hoc satis?', que o Stoicus fizera ao jovem no verso 27. Em seguida, o

militar, ao querer mostrar que conhece o que desdenha, citará nomes famosos – Arcesilau,

chefe da Nova Academia, que ficou conhecido como aquele que não ensinava senão a

36 Cf. em especial o final da quinta sátira, vv. 189-191; cf. tb. hic, capítulo 3.2, pp. 132 e ss. 37 in: Aulo Gélio, XII, 2, 11. 38 Horácio, Sátiras, I, 2, v. 27

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colocar as coisas em dúvida, e Sólon, legislador ateniense –, mas que, pelo fato de serem

mal escolhidos, acabam antes por revelar sua parca cultura. O adjetivo aerumnosus, que o

centurião usa para designar os seguidores de Sólon, parece uma referência a Aristófanes,

que fizera Fidípides empregar o adjetivo kakadai/mwn (infeliz), para descrever Sócrates39.

Tanto mais porque, neste ponto da peça, o pai, Estrepsíades, está justamente a exortar o

filho, Fidípides, que recém acordara, ao estudo da filosofia. A expressão obstipo capite (v.

80) é uma reminiscência de Horácio, que escrevera40: Dauus sis comicus atque/ stes capite

obstipo multum similis metuenti [Faz como o personagem de comédia Davo: fica de

cabeça baixa como se estivesse com muito medo]. Os rabiosa silentia (v. 81) parodiam a

expressão vergiliana amica silentia41. De fato, este verso, murmura cum secum et rabiosa

silentia rodunt, é construído com palavras da linguagem familiar42; no entanto, não será

coincidência o fato de rabiosus e rodere – propriamente palavras que pertencem ao léxico

técnico da veterinária43 – terem sido aqui escolhidas44. Além disso, a combinação murmura

et silentia rodere é inédita, e une, como complemento ao mesmo verbo, duas palavras que,

do ponto de vista semântico, são contrastantes. Esse verso é um ótimo exemplo do

preceito dos uerba togae e da iunctura acris, que o poeta apresenta na quinta sátira45.

Acrescente-se ainda o fato de que Pérsio escolhe palavras que, com sua sonoridade

composta de SS e RR, fazem que ouçamos murmúrios e sussurros, ilustrando, assim, o

próprio sentido do verso.

O velho enfermo (aegrotus uetus, v. 83) é Epicuro, que ironicamente foi chamado

'médico de almas' – antes de dedicar-se à filosofia, exerceu a medicina – e morreu após

um longo período de doença. O uso por parte do soldado de aegrotus por aeger pode ser

reminiscência da linguagem da comédia, ou referência a um uso coloquial, talvez pouco

recomendável no período imperial; em todo caso, é mais um traço pitoresco a caracterizar

39 Aristófanes, As Nuvens, v. 104. 40 Horácio, Sátiras, II, 5, vv. 91-92. 41 Vergílio, Eneida, II, v. 255. 42 Cf. DOLÇ (1944), p. 163. Já no início de sua fala, o centurião dissera non ego curo (v. 78), em que aparece o pronome pessoal redundante, próprio da língua vulgar. 43 É verdade nos Cativos, Plauto apresenta um precedente para rabiosus referido a um ser humano; cf. Plauto, Cativos, v. 547. 44 Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 173-174. 45 Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 72-74.

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a linguagem da personagem. Os somnia aegroti ueteris são sem dúvida uma bem humorada

lembrança da conhecida frase da sátira varroniana46: postremo nemo aegrotus quicquam

somniat / tam infandum quod non aliquis dicat philosophus [Por fim, nenhum doente

conseguirá sonhar nada que não possa ser dito por um filósofo]47. Parece que não nos

enganaremos se entendermos que, para o centurião, o estudo da filosofia está ligado à

rabugice da velhice, à fantasia do sonho, ao delírio da doença. A máxima citada nos versos

83 e 84 foi desenvolvida pelo epicurista Lucrécio, no primeiro livro do seu De Rerum

Natura48, e será retomada pelo estóico imperador Marco Aurélio, em suas Meditações49:

Assim como de alguma terra foi tirado o que há de terreno em mim, de outro

elemento o líquido, de alguma fonte o alento e de alguma fonte especial o quente e

o ígneo – pois nada procede do nada e tampouco para o nada se vai –,

assim também de algum lugar veio a inteligência.

Pérsio, no entanto, para dar mais ênfase ao ridículo da fala do centurião, repete por

quatro vezes a palavra nihil/nil no mesmo verso50. Parece que escarnecer da palidez do

homem de estudo era uma constante aos espíritos vulgares. No trecho que citamos há

pouco de Aristófanes, Fidípides também chamara os filósofos, e Sócrates em especial, de

"charlatães pálidos e descalços". Pérsio volta à expressão em várias oportunidades, às vezes

devolvendo-a aos críticos, outras vezes admitindo aos filósofos tal característica, mas

dando-lhe então um valor positivo51. Em todo caso, a idéia do filósofo que não se

preocupa com as refeições – e que o faz ficar pálido – é um lugar-comum. De novo

teremos em Aristófanes a expressão desabonadora; o Corifeu ironizará aquele que em

Atenas quer ser sábio: dentre outras renúncias relativas ao conforto físico, deve abster-se

do almoço e do vinho52. Horácio mesmo dirá, ainda na terceira sátira do livro II53:

46 Varrão, Sátira Menipéia, fr. 122. 47 Cícero dirá, de modo semelhante: nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum; Cícero, De Diuinatione, II, 58. 48 Cf. Lucrécio, I, vv. 151-267. 49 Marco Aurélio, Meditações, IV, 4. 50 Para Villeneuve, o que o centurião acha ridículo é a repetição da palavra, pois esse preceito "est un des plus simples et un des moins contestés de la philosophie", VILLENEUVE (1918²), p. 89. 51 Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 89-90. 52 Aristófanes, As Nuvens, v. 416. 53 Horácio, Sátiras, II, 3, v. 257.

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"inpransi corretpus uoce magistri" [reprovado pelas palavras de um Mestre em jejum]. A

juventude multum torosa que parva e folgazã ouve as inépcias do centurião refere-se

certamente a jovens soldados. O emprego de multum reforçando um adjetivo no grau

normal, e conferindo-lhe um valor de superlativo, é próprio da linguagem familiar; tanto

na comédia de Plauto como nas sátiras de Horácio tal emprego se verifica com alguma

freqüência54. O riso que eles não podem segurar lembra a jocosidade a que se presta o

homem que saíra da caverna platônica e, ao voltar, em vão tenta ensinar aos que cá dentro

estão as coisas que lá fora vira.

Pérsio, então, voltando à metáfora da saúde do corpo/saúde do espírito, apresenta

um diálogo em que o doente, tão logo sente que convalesce, põe de lado os conselhos do

médico55:

'inspice, nescio quid trepidat mihi pectus et aegris

faucibus exsuperat grauis halitus, inspice sodes'

qui dicit medico, iussus requiescere, postquam 90

tertia conpositas uidit nox currere uenas,

de maiore domo modice sitiente lagoena

lenia loturo sibi Surrentina rogabit.

'heus bone, tu palles.' 'nihil est.' 'uideas tamen istuc,

quidquid id est. surgit tacite tibi lutea pellis.' 95

'at tu deterius palles, ne sis mihi tutor.

iam pridem hunc sepeli; tu restas.' 'perge, tacebo.'

turgidus hic epulis atque albo uentre lauatur,

gutture sulpureas lente exhalante mefites.

sed tremor inter uina subit calidumque trientem 100

excutit e manibus, dentes crepuere retecti,

uncta cadunt laxis tunc pulmentaria labris.

hinc tuba, candelae, tandemque beatulus alto

conpositus lecto crassisque lutatus amomis

54 No verso 46, Pérsio já empregara multum laudanda; construção semelhante aparece no verso 13: ultra miser; cf. hic, capítulo 2.1, p.19, n. 28. 55 mutatis mutandis, lembra-nos o dito medieval: aegrotat daemon, monachus tunc esse uolebat; daemon conualuit, daemon ut ante fuit.

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in portam rigidas calces extendit. at illum 105

hesterni capite induto subiere Quirites.

["Examina, não sei por que meu coração bate descompassado, E de minha garganta enferma exala um hálito desagradável; Examina, por favor"; aquele que diz isso ao médico, e é ordenado

| ao repouso, 90 Pedirá para si - depois que a terceira noite lhe viu o sangue correr | compassadamente –, Ao ir banhar-se, suaves vinhos sorrentinos, presentes De um amigo rico, em uma garrafa modicamente sedenta. "Ei, amigo, estás pálido!" "Não é nada!" "Cuidado, porém, com isso, 94 Seja o que for. Tua pele, amarelecida, começa silenciosamente a inchar-se." "Não me venhas querer dar lições, tu estás ainda mais pálido do que eu, Já há bastante tempo sepultei meu tutor, tu ainda restas..." "Faze então

| o que bem entenderes, eu me calarei!" Então, inchado pelo banquete e com o ventre esbranquiçado, vai banhar-se, Com a garganta que exala, a pouco e pouco, emanações mefíticas. Mas, entre os vinhos, é tomado por um tremor, que lhe faz cair das mãos A quente taça; os dentes, postos à mostra, passaram a ranger, 101 E então iguarias requintadas começam a cair dos lábios descerrados. Depois disso, vem a tuba, as candeias, e por fim o senhorzinho,

| bem acomodado Em um leito comprido, empapado com oleosos amomos, 104 Estende seus pés rijos para a porta. Por sua vez, os que se tornaram ontem | Quirites, Com a cabeça coberta, levaram-no.]

Voltamos, pois, à metáfora médica: o jovem se torna o doente, e o Stoicus, o

Medicus56. O paciente implora a seu médico que o examine, porque não se sente bem.

inspicere (vv. 88 e 89) é termo técnico, empregado comumente no vocabulário médico com o

significado de 'examinar, fazer um diagnóstico'57. O repouso era o conselho habitual aos

enfermos58. O adjetivo grauis qualificando halitus, usado por Pérsio no verso 89, refere-se ao

56 Com efeito, no verso 96, o conselho ne sis mihi tutor dado pelo paciente nos remete ao comes, do verso 7; cf. DESSEN (1996), p. 51. 57 Com esse valor, temos exemplo na literatura latina já em Plauto, que escrevera nos Persas: inspicere morbum tuom lubet; Plauto, Persas, v. 316. 58 Celso, por exemplo, aconselha aos doentes, antes de tudo, quies et abstinentia; Celso, III, 2, 5.

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odor presente na boca doente59. Usá-lo com esse sentido para seres humanos parece uma inovação

de Pérsio, os demais exemplos para esse valor semântico são encontrados em referência ao hálito

de animais60; o poeta parece tomar de empréstimo o vocábulo do âmbito veterinário para tornar a

imagem mais expressiva. No mesmo verso, a fórmula de cortesia 'sodes' (por favor) é um

coloquialismo, usado comumente sobretudo nas peças de Terêncio61.

No entanto, mal o doente se sente melhor, ele volta a deixar de lado as prescrições

médicas. A doença retratada nesses versos é a hidropsia, que tradicionalmente simbolizava

o vício da insaciabilidade62. Uma das ações mais decididamente vetadas a quem sofria esse

tipo de doença era a de banhar-se. Assim, a simples menção de que, ao sentir-se um

pouco melhor, seu primeiro ato fora justamente banhar-se bastava ao ouvinte para que ele

compreendesse a inadequação do gesto. Era costume de pessoas com posses presentear um

amigo doente com vinhos63. O uso do plural pelo singular, ao se falar de vinho, não era

incomum64; o adjetivo lene, quando relacionado com vinho, se refere a vinho envelhecido.

A garrafa modice sitiente, de acordo com o escoliasta, significa65: minus plena uel quod

uetustate decoquatur [não completamente cheia, ou porque parte do vinho teria evaporado

devido ao envelhecimento]. Acrescentamos, com o Professor Villeneuve66, que, mais do

que isso, ao pedir uma garrafa não cheia, nosso homem acreditaria estar fazendo uma

concessão à prudência. O amigo não se deixa enganar, e tenta dissuadi-lo do ato

temerário: sua pele ainda está amarelecida, ele parece inchar-se; a resposta, porém, vem

ríspida.

Em sua primeira sátira, também construída com diálogos, Pérsio se volta contra as

modas poéticas fúteis de seu tempo, ridicularizando poesia e poetas que mais buscavam

59 Alguns autores, como Villeneuve, preferem a leitura de uma respiração dificultosa ou entrecortada, mas as 'emanações mefíticas' do verso 99 parecem ratificar nossa leitura; cf. MIGLIORINI (1997), pp. 147-148. 60 Plínio Velho, por exemplo, escreve, a respeito do leão: grauem odorem, nec minus halitum; Plínio Velho, História Natural, VIII, 46. 61 Mas também em Plauto e em cartas de Horácio e de Cícero podemos encontrar a expressão. De fato, o que temos nesta palavra é uma contração de si audes, em que o valor etimológico de audere se faz presente – i. e. 'agradar a, desejar', cf. auidus. Semelhante ao que ocorre com a fórmula sis, que possui o mesmo significado de sodes, e é proveniente da contração de si uis. 62 Cf. MIGLIORINI (1997), pp. 145-146. 63 Juvenal também fará menção a esse costume; cf. Juvenal 5, v. 32. 64 Cf. v. 93: lenia Surrentina; cf. Horácio, Sátiras, II, 4, vv. 55-56. 65 Commentum Cornuti, p. 91. 66 Cf. VILLENEUVE (1918²), p. 91.

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alimentar sua vaidade do que construir uma obra sincera. Do círculo de poetas que Pérsio

atacava, fazia parte o próprio princeps, e na boca do interlocutor sai mesmo (pelo menos)

uma citação de Nero67: claudere sic uersum didicit Berecynthius Attis [Aprendi a encerrar

um verso desta maneira: Berecynthius Attis]. Quando fica explícito, pois, na sátira, o fato

de que Pérsio sabe que as poesias do princeps são ridículas, quando ele faz todos

descobrirem que o rei tem orelhas de asno, quando ele grita, enfim, a todos que o

Imperador está nu, o interlocutor avisa que os poderosos ficarão irritados, e que a littera

canina já está ressoando contra ele (v. 109). Ou seja, o ataque do interlocutor passa a ser

contra a pessoa de Pérsio, o diálogo se torna, pois, impossível e as idéias sobre o fazer

poético têm de ser deixadas de lado. Pérsio responde ironicamente que se é assim, não

criticará mais ninguém, para ele tudo estará bom; por fim, exclama discedo! (v. 114). A

mesma impossibilidade de diálogo reaparece agora na terceira sátira, e o interlocutor,

irritado com as ponderações justas que ouve, responde ameaçadoramente que seu tutor já

morreu, mas o Stoicus que o está a aconselhar ainda não... (v. 97). Então, resta a este

somente exclamar: tacebo! (ibidem)68.

A sátira é retomada por um narrador, que descreve as conseqüências da

imprevidência. No verso 98, vemos o doente indo banhar-se, inchado pelo tanto que se

refestelara em um banquete. É interessante cotejar a ação com a passagem em que Celso69

diz que, ao doente, após três dias de melhora70, cibus dandus est, sed exiguus, quia quartana

quoque timeri potest. [deve ser dado alimento, mas pouco, porquanto também há de

temer-se a febre quartã]. Pois é justamente um conselho como esse que, segundo se

depreende do poema, nosso doente não levou em conta. Como resultado, vemos as

emanações mefíticas voltando (v. 99, retomando o v. 88), num verso em que Pérsio

parodia a Eneida71. A cena que segue (vv. 100-103) é uma nova versão para o quadro

surrealista pintado nos versos 58-59: lá era o jovem que não seguia com disciplina os

67 Pérsio, 1, v. 93; cf. Dião Cássio, LXI, 20. 68 O assíndeto que aparece aqui (perge, tacebo) marca com mais ênfase a ruptura do diálogo. 69 Embora pouco se conheça da biografia desse enciclopedista, de que nos restaram apenas os escritos sobre medicina, em oito livros, consta como certo o fato de que estava em atividade no período de Tibério; portanto, pode-se afirmar que seu De Re Medica continha as principais idéias a respeito desse assunto que circulavam em Roma na época de Pérsio. 70 Celso, III, 5. 71 Cf. Vergílio, Eneida, VII, v. 84: saeuam ... exhalat opaca mephitim; cf. DESSEN (1996), p. 51.

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conselhos prudentes do Stoicus, e aparecia desconjuntado, com o laxum caput (v. 59),

depois de mais uma noite de ebriez; aqui é o doente, que não observou os conselhos

médicos, e agora é a taça que lhe cai das mãos trêmulas, e são agora as iguarias que correm

dos laxa labra (v. 102), enquanto os dentes se põem à mostra, e passam a ranger.

A conseqüência é trágica: seu corpo, por fim, não agüenta mais, e ele é levado para

seu último passeio. O diminutivo beatulus (v. 103) é um hápax persiano, carregado de

ironia, e, como sublinha Pasoli72, la voce è polisemica, in quanto designa sia la richezza

(beatus è, in armonia con l'etimologia, anzitutto il 'rico'), sia la condizione di defunto, come il

nostro 'buonanima'. A cena primeiramente é a da exposição do cadáver73, que antecedia o

funeral propriamente dito. Um instrumento de sopro costumava ser tocado durante a

cermiônia, para manter afastados os espíritos malignos. Sobre essa cena, Pasoli escreve o

seguinte74:

tutta la rappresentazione è condotta dal punto de vista di chi, dall'esterno, è attirato

verso il luogo dove è esposto il cadavere; finalmente (tandemque), entrato nella

casa, si trova davanti il catafalco (alto...lecto), su cui è conpositus il morto. Si

potrebbe parlare quasi, in termini cinematografici, di "zoomata".

Após a exposição, temos o cortejo fúnebre, evocado já com o ritmo alternado nos

quatro primeiros pés, com espondeus nos pés ímpares e com dátilos, nos pares. Os Quirites

são os cidadãos romanos, em oposição aos Romani, ou milites, que são o povo em armas, i.

e., os soldados. A expressão hesterni Quirites (v. 106) está a indicar os escravos do senhor

cujo funeral estamos presenciando, e que desde a morte deste ganharam a alforria e

passaram à condição de libertos; capite induto (ibidem) remete-nos ao pileus, ou seja, o

gorro que recém-libertos punham na cabeça para indicar sua nova condição75.

Confundir níveis de linguagem é um dos recursos de que a comédia com mais

freqüência lança mão para produzir o riso. A imagem do doente que não deu a

importância devida à saúde do corpo, nos versos vistos acima, é claramente uma metáfora.

72 PASOLI (1976), p 225. 73 De hinc tuba (v. 103) até extendit (v. 105). 74 PASOLI (1976), p. 225. 75 Pérsio faz menção ao mesmo costume em sua quinta sátira, v. 82; cf. hic, capítulo 3.2, pp. 95-96.

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55

Pérsio, porém, dá ao interlocutor uma fala que somente poderia ser justa se o discurso que

a motivou tivesse sido literal:

'tange, miser, uenas et pone in pectore dextram;

nil calet hic. summosque pedes attinge manusque;

non frigent.' uisa est si forte pecunia, siue

candida uicini subrisit molle puella, 110

cor tibi rite salit? positum est algente catino

durum holus et populi cribro decussa farina:

temptemus fauces; tenero latet ulcus in ore

putre quod haut deceat plebeia radere beta.

alges, cum excussit membris timor albus aristas; 115

nunc face supposita feruescit sanguis et ira

scintillant oculi, dicisque facisque quod ipse

non sani esse hominis non sanus iuret Orestes.

["Toma-me o pulso, ó infeliz, põe a destra sobre meu coração; Nada está febril aqui. Toca-me as pontas dos pés e das mãos: 108 Não estão gélidas." Mas se pões o olho casualmente num montante

| de dinheiro, Ou então se a bela namorada do vizinho te sorri de modo insinuante Teu coração continua batendo no mesmo ritmo? Serviu-se um legume duro Em um prato frio e uma farinha76 passada numa peneira simplória, 112 Vejamos o estado de tua garganta: esconde-se em tua delicada boca

| uma úlcera Pútrida, de modo que não convenha tocar numa acelga vulgar. Ora tens calafrios quando um pálido temor faz eriçar os pêlos do teu corpo, Ora, como se teu corpo estivesse sobre uma fogueira, teu sangue ferve e

| os olhos Brilham de raiva, e dizes e fazes aquilo que o próprio 117 Orestes, homem insano, juraria não ser próprio de um homem são.]

Se o interlocutor não apresenta sinais de doença física, Pérsio mostra que seu

espírito está tão fragilizado que, assim como o corpo enfraquecido não resistiu há pouco

aos excessos, assim também qualquer objeto de tentação que lhe aparecer fará a doença de

sua alma vir à luz. Na fala do insanus, temos uma construção simétrica: tange – non calet /

attinge – non frigent, com as duas negativas no princípio de verso, a deixar mais enfática

sua apóstrofe.

76 Metonímia, por pão (de qualidade inferior).

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O Stoicus inicialmente aceita que ele possa estar bem de saúde do ponto de vista

físico, mas mostra que, se ele não consegue dominar suas paixões, sua alma está doente.

Neste último trecho de sua terceira sátira (vv. 109-118), Pérsio elencará um bom número

de perturbationes animi: auaritia (v. 109)77; luxuria (vv. 110-111); gula (vv. 111-112); ira (vv.

117-118). O espírito sadio é aquele que sabe resistir e abster-se, como diz a famosa

sentença estóica. Aulo Gélio nos relata que Epicteto considerava mesmo a incapacidade de

resistir e abster-se o pior dos vícios78:

[5] praeterea idem ille Epictetus, quod ex eodem Fauorino audiuimus, solitus

dicere est duo esse uitia multo omnium grauissima ac taeterrima, intolerantiam et

incontinentiam, cum aut iniurias quae sunt ferendae non toleramus neque ferimus,

aut a quibus rebus uoluptatibusque nos tenere debemus, non tenemus. [6] “itaque,”

inquit, “si quis haec duo uerba cordi habeat eaque sibi imperando atque obseruando

curet, is erit pleraque inpeccabilis uitamque uiuet tranquillissimam.” uerba haec duo

dicebat: ἀνέχου et ἀπέχου.

[Além disso, o mesmo ilustre Epicteto, como ouvimos do mesmo Favorino, costumava dizer que entre todos os vícios havia dois que de longe eram os mais graves e perniciosos: a incapacidade de resistir e a incapacidade de abster-se, quando ou não resistimos aos sofrimentos que devem ser suportados, ou não nos abstemos de coisas e desejos em relação aos quais devemos nos conter. “Assim,” diz Epicteto, “se alguém tomar a peito estas duas palavras e as velar por meio do governo e da observação de si mesmo, na maior parte do tempo não cometerá faltas e viverá uma vida tranqüilíssima”. Estas duas palavras Epicteto dizia que eram: ἀνέχου (Resiste) e ἀπέχου (Abstém-te).]

Pérsio mostra, pois, como as doenças espirituais acabam provocando mesmo

reações físicas. Assim, temos uma resposta em quiasmo ao argumento do interlocutor:

alges (v. 115) responde a non frigent (v. 109), e feruescit (v. 116) responde a nil calet (v. 108).

Os olhos que agora brilham, tomados por uma ira insana (v. 117), são os olhos que a

criança cegou para fugir ao estudo (v. 44). Além disso, podemos ver na expressão feruescit

77 Na segunda sátira, Pérsio descrevera os sintomas provocados pela auaritia de modo semelhante: si tibi creterras argenti incusaque pingui/ auro dona feram, sudes et pectore laeuo / excutiat guttas laetari praetrepidum cor [Se eu te trouxer jarros de prata e presentes incrustados de grossas camadas de ouro, suarás e teu coração, batendo rápido de alegria, fará correr gotas de suor do lado esquerdo do teu peito]; Pérsio, 2, vv. 52-54. 78 Aulo Gélio, XVII, 19, 5-6.

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sanguis uma reminiscência de feruens uenenum que aparece no verso 37, quando Pérsio

lançou sua maldição aos tiranos. E o feruens uenenum causava perturbação na mente do

tirano; e, tão imponente se mostra agora a insanitas, que o próprio Orestes o julgará non

sanus.

Essa evocação a Orestes no último verso pode ter um significado especial, afinal

Orestes é aquele cuja mãe, Clitemnestra, mata seu marido e pai de Orestes, Agamenão.

Como vingança, Orestes mata a própria mãe. Se lembrarmos a trajetória de Nero,

perceberemos que há similitude nos acontecimentos: sua mãe, Agripina, teria assassinado

seu esposo, o imperador Cláudio, para que Nero fosse o sucessor do trono. E Nero, ao

mandar matar sua mãe, começa a dar os sinais de que foi tomado pelas Fúrias79. Mas

Orestes tem uma justificativa que se quer razoável, afinal ele estava vingando a memória

do pai. Em Horácio80, Orestes, depois de matar a mãe, não prosseguiu com sua loucura, e

Pílades e Electra, insultados embora, têm contudo preservada a vida. A morte da mãe de

Nero81, porém, é apenas o começo de uma tirania que ceifará a vida de muitos e muitos

romanos. Para o mesmo enfurecido Orestes, as loucuras de Nero estariam além de toda e

qualquer compreensão.

Embora possamos ver aqui uma alusão crítica a Nero, o caminho de Pérsio é

direcionado para questões filosóficas. Se Nero pode ser usado como exemplo de alguém

que se deixa escravizar pelas paixões, Pérsio se vale do modelo para alertar aos demais que

não caiam na mesma armadilha. Os vícios, apontados e ilustrados de maneira viva pelo

poeta, apontam todos para a insanitas; todos eles impedem que se alcance a verdadeira

liberdade, que somente a sabedoria pode trazer, como veremos, com mais detalhe, no

capítulo seguinte.

79 Fato que se dá em 59; Pérsio escreve sua obra até 62. 80 Não por casualidade, certamente, ao final de sua sátira, Pérsio alude ainda uma vez mais a sátira II, 3 de Horácio; cf. Horácio, Sátiras, II, 3, vv. 137-141. 81 O Senado Romano chega ao cúmulo de homenagear Nero pela morte de sua mãe; o único senador a se indignar com gesto tão aviltante é o amigo dileto de Pérsio, Trásea Peto – tido por Tácito como o mais nobre opositor do princeps –, que abandona a sessão.

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3

LIBERTAS

"Os homens estão preparados para a liberdade civil na proporção exata de sua disposição a reprimir moralmente seus apetites;

na proporção em que seu amor à justiça estiver acima de sua rapacidade;

na medida em que sua objetividade e sobriedade de compreensão estiverem

acima de sua vaidade e presunção; na medida em que estiverem mais dispostos a ouvir

o conselho dos sábios e dos bons e não as adulações dos patifes (...)

A sociedade só pode existir se um poder de controle sobre a vontade e os apetites for colocado em algum lugar;

e quanto menos houver desse poder dentro de nós, tanto mais haverá fora de nós.

Pois está ordenado na eterna constituição das coisas que os homens de mente destemperada não podem ser livres.

Suas paixões forjam suas próprias algemas"

(Edmund Burke)

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3. LIBERTAS

Poucos substantivos abstratos possuem o apelo emocional da palavra Liberdade. É

uma palavra que parece ligar-se aos mais nobres ideais, e, no entanto, talvez nenhuma

outra traga em seu nome uma história tão eivada de crueldade. Uma encantadora palavra

que, usada de modo irrefletido ou aleivoso, esconde atrás de si rios de sangue. Justamente

porque seria 'elevada' no plano moral, ela inspira um alto valor afetivo no ouvinte, ainda

que, de fato, no plano semântico, ela possa aparecer confusa ou mesmo esvaziada. Quem

em verdade consegue dar-se conta das dificuldades, contradições, enganos quando a ouve

belamente empregada em um discurso? E assim, quanta tirania, autoritarismo,

totalitarismo não vêm chancelados por esta ofuscante palavra? Daí a famosa frase de

Bossuet que Grimal usou como epígrafe a seu livro sobre os erros da liberdade: "Quand

une fois on a trouvé le moyen de prendre la multitude par l’appât de la liberté, elle suit en

aveugle, pourvu qu’elle en entende seulement le nom."

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Lembremos, como ilustração ao que se acaba de dizer - entre tantos e tantos

exemplos da equivocidade que pode envolver o uso dessa palavra –, um dos momentos

mais conhecidos da História Romana, e cujas conseqüências foram decisivas para o rumo

que ela tomou. Em 49 a.C., César atravessa o Rubicão com o exército em armas,

contrariando a norma romana que dizia que um general sempre, ao atravessar

determinados limites, deveria antes liberar seu exército, e somente entrar em Roma como

civil. Essa determinação visava justamente a evitar o derramamento de sangue num

combate entre cidadãos romanos1. Ocorre que César lançara sua candidatura a um novo

consulado in absentia – i.e., ele não abdicou de seu proconsulado, nem liberou seu

exército, para, como civil, apresentar-se como candidato –, a qual não foi aceita.

Inconformado com essa recusa, César atravessa o Rubicão – quando teria pronunciado a

famosa frase 'alea iacta est' –, indicando com esse ato que declarava guerra a seus

adversários políticos. E em nome de quê César transgredia a limitação imposta a todo

general romano? Em nome da liberdade. E em nome de quê os adversários de César lhe

negavam o que ele pedira? Em nome da liberdade. A situação, pois, chega a um ponto em

que se percebe que, como diz Grimal, "havia não uma só liberdade, mas duas: a que César

reclamava e a que reclamavam os adversários. Um tal conflito só poderia encontrar

solução na violência, que dando vitória a uma tornava a outra inexistente."2 Foi assim

iniciada a Guerra Civil entre César e Pompeu. Pompeu é derrotado em Farsália no ano de

48 a. C., e César passa a ser senhor absoluto de Roma.

Poucos anos depois, mais exatamente nos idos de março de 45 a. C., César é

morto, antes de uma sessão do senado romano. Em nome de quê, nobres como Cássio e

Bruto assassinaram César diante da estátua de Pompeu? Da Liberdade! Mas os conjurados,

por sua vez, foram vencidos (sempre em nome da liberdade) por Antônio – lugar-tenente

de César – e Otávio – herdeiro oficial do autor do Bellum Ciuile. Vieram as proscrições, e

uma multidão de nobres romanos foi condenada e morta; dentre eles, um dos mais ilustres

1 Sila, depois de uma batalha civil em que derrota Mário – general romano, nove vezes cônsul, casado com a tia de César –, estabeleceu novas leis, dentre as quais aquela segundo a qual o exército romano ficava proibido de entrar em armas na Itália (entre Mégara e o Rubicão), justamente para evitar que romanos se voltassem contra outros romanos. 2 GRIMAL (1990), p. 20.

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romanos - e que pouco menos de uma quinzena de anos antes havia evitado uma

conspiração contra o Estado tramada por Catilina3 -: o célebre orador Marco Túlio

Cícero.

Em seu testamento político, a famosa inscrição de Ancira, Otávio – ou melhor, já

Otaviano Augusto – dirá: "Na idade de 20 anos reuni um exército, por iniciativa própria e

a minhas próprias expensas, graças ao qual restitui a liberdade ao Estado oprimido pela

tirania de uma facção." (Deve-se lembrar que Augusto eliminou toda oposição, e muitos

talvez possam dizer que, ao fazê-lo, também ele proporcionou a tirania de uma facção – a

sua própria.) A ironia sombria é que o próprio Cícero havia de certo modo formulado o

mesmo discurso, como se pode ver em sua Terceira Filípica, em que apóia Otávio contra o

então inimigo deste, Marco Antônio, dizendo que o jovem havia libertado Roma do

flagelo que era o futuro amante de Cleópatra...4

O fato é que, após essa sucessão de batalhas sangrentas em nome da liberdade,

Roma deixa de ser República e torna-se um Principado. E aqui temos outra ironia –

sombria também, por certo: para o romano dos tempos republicanos, a própria

insinuação de que voltariam a ter um rei era a mais temível afronta à liberdade, e isso

desde o tempo da expulsão dos reis, no século VI a. C. Por isso, nos primórdios da

República Romana, os filhos do primeiro cônsul e personagem-símbolo da libertas

Romana, Bruto, os quais foram descobertos participando de uma conspiração para que o

rei fosse reconduzido ao poder em Roma, receberam a condenação capital, que foi

executada na presença do próprio pai. Por isso, já nos estertores da República, César é

morto, sob a alegação de que tinha a ambição íntima de se tornar o rei de Roma.

Cabe salientar, como destaca Ortega y Gasset, que a visão que a modernidade deu

à noção de liberdade no campo social apresenta contrastes com a noção romana de libertas

no tempo de Cícero5:

3 Após ter em vão tentado conquistar o posto de cônsul, Lúcio Sérgio Catilina – um nobre da gens Sergia (que, de acordo com a Eneida, descenderia de Segesto, companheiro de Enéias), cuja personalidade era invulgar e forte, nos vícios e nas virtudes – trama uma conspiração para tomar o poder em Roma. O ano é 63 a.C. O golpe é descoberto, e Cícero, então um dos cônsules, com o pronunciamento de suas célebres Catilinárias (Orationes in Catilinam), consegue, por fim, debelar o projeto revolucionário de Catilina. 4 Cf. GRIMAL (1990), p. 21. 5 ORTEGA Y GASSET (1960), p. 125.

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La libertad europea ha cargado siempre la mano en poner límites al poder público e impedir que invada totalmente la esfera individual de la persona. La libertad romana, en cambio, se preocupa más de asegurar que no mande una persona individual, sino la ley hecha en común por los ciudadanos. Esto último es lo que representaban para Cicerón las instituciones republicanas tradicionales de Roma, y a vivir dentro de ellas llamaba libertas.

Fica patente nesse exemplo da História Romana o imenso problema que pode

acarretar o uso – ou o mau uso – da palavra liberdade. E tantos outros poderiam ser

citados6. Mas cabe-nos ressaltar que vimos referindo-nos à liberdade civil, a liberdade que

diz respeito à nossa 'vida exterior', quando a vontade de um pode entrar em choque com a

vontade de outro, e aí ambos talvez queiram reclamar a liberdade de fazer sua vontade

prevalecer, e desse choque muitas vidas por vezes acabam sendo ceifadas. Mas há outra

liberdade, que, para muitos – um filósofo estóico, por exemplo –, não só é mais

importante, mas mesmo a única liberdade de fato verdadeira, e que diz respeito à nossa

'vida interior'.

No século V a. C., nasce na Grécia o filósofo que mudará completamente a

compreensão humana não apenas sobre o que são as coisas e de onde elas se originam,

mas sobretudo quem somos nós. Seu nome é Sócrates e a sua filosofia foi tão importante,

decisiva e inovadora, que todos os filósofos que vieram antes dele são hoje enfeixados num

mesmo e relativamente heterodoxo grupo conhecido por Pré-Socrático. É justamente

com Sócrates que a reflexão filosófica adentra o plano moral; sua mais famosa divisa será o

nosce te ipsum. Segundo uma fórmula recorrente, temos que7:

Sócrates 'restabeleceu a filosofia do céu sobre a terra'. Poder-se-ia também dizer que ele restabeleceu a liberdade da praça pública no interior das almas, e essa foi uma inovação de infinitas conseqüências, mesmo no domínio do político, pois a

6 Pode-se fazer um paralelo com a seguinte opinião de Kirk Russel sobre questões complexas e semelhantes da política moderna: "Não compartilho da opinião de que seria bom jogar o inebriante vinho de uma nova ideologia goela abaixo dos jovens norte-americanos. Se invocarmos os espíritos das profundezas abissais, será que poderemos esconjurá-los? O que precisamos transmitir é prudência política, não beligerância política. A ideologia é a doença, não a cura. Todas as ideologias, incluindo a ideologia da vox populi vox Dei, são hostis à permanência da ordem, da liberdade e da justiça. A ideologia é a política da irracionalidade apaixonada". RUSSEL, K., p. 98: “Os Erros da Ideologia”. In: A Política da Prudência. Trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo, É Realizações Editora, 2013. Cf. tb. ORTEGA Y GASSET (1960), em especial o capítulo "libertas", pp. 107-124. 7 GRIMAL (1990), pp. 108-109.

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liberdade não mais estava nas coisas, ela se tornara uma atitude do ser, um bem próprio do homem e não era um sentimento que era preciso defender com armas na mão, mas um sentimento que era preciso proteger no mais íntimo de si mesmo.

Por volta da época em que Pérsio era dado à luz, o mundo conheceu as palavras de

Cristo, e a nova aliança que ele apresenta entre Deus e os homens. Ao subir a montanha e

pronunciar seu mais famoso sermão, ele indica que fará uma nova aliança, mais elevada do

que a primeira – no dizer de Santo Agostinho. E Cristo ampliará o espectro de visão a

respeito de nossas ações, chamando a atenção justamente para as 'ações' que praticamos

em nosso interior. Assim, se tínhamos, por exemplo, entre os dez mandamentos, uma

interdição ao adultério8, Nosso Senhor Jesus Cristo irá mais adiante: "audistis quia dictum

est: 'non moechaberis', ego autem dico uobis: omnis qui uiderit mulierem ad concupiscendum eam

iam moechatus est eam in corde suo."9

A filosofia estóica nasce na Grécia com Zenão de Cício, e tem em Sócrates sua

primeira e principal referência10. Em Roma, o estoicismo passa a ser a escola filosófica com

maior prestígio; e, visto que se coaduna perfeitamente com o espírito romano do mos

maiorum a exaltação das virtudes morais que preconizava o estoicismo, sua doutrina se

enraíza fortemente no coração da Vrbs. Partindo dessa busca da correção moral, o

estoicismo em Roma acaba por conduzir seus adeptos a formarem uma oposição política

ao princeps, que ficou conhecida como a "oposição estóica".

Conforme já mencionamos11, Trásea Peto foi, durante o período de Nero, o mais

destacado membro da oposição estóica, e voltou-se com firmeza e dignidade contra os

despropósitos do imperador. Foi Trásea casado com uma prima de Pérsio, e um de seus

melhores amigos. O filósofo estóico Sêneca, ao menos num primeiro momento, era nota

destoante, pois não apenas estava ao lado de Nero, como fora seu tutor e em seguida

8 'non moechaberis', Êxodo, 20: 14. 9 Mateus, 5: 27-28; podemos aqui lembrar uma bela reflexão de Ratzinger: "O homem é um ser relacional; se fica perturbada a primeira relação fundamental do homem - a relação com Deus -, então nada mais pode estar verdadeiramente em ordem. É dessa prioridade que trata a mensagem e atividade de Jesus: Ele quer, em primeiro lugar, chamar a atenção do homem para o cerne do seu mal, fazendo-lhe ver: se não estiveres curado nisso, então, apesar de todas as coisas boas que possas encontrar, verdadeiramente não estarás curado." in: RATZINGER, J. (Bento XVI) A Infância de Jesus. Tradução: Bruno Bastos Lins. São Paulo, Planeta, 2013, p.43. 10 Cf. MARÍAS (1968), p.139. 11 Cf. hic, capítulo 2.2.

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conselheiro. Pérsio não lhe tem grande simpatia. Quando Sêneca cai em desgraça junto ao

princeps, Pérsio já morrera. Um liberto da gens Annaea, porém, o filósofo estóico Aneu

Cornuto, foi o grande mestre de Pérsio.

A importância fundamental da liberdade interior e a pouca importância dada aos

bens exteriores fazem que, dentre os maiores filósofos estóicos do período imperial, se

encontrem um imperador, Marco Aurélio, e um escravo, o grego Epicteto. Uma das mais

célebres máximas deste filósofo dizia que "ninguém é livre não sendo senhor de si

mesmo." A fundamentação capital dessa filosofia vincula-se à vida prática: o estoicismo,

com efeito, é uma filosofia prática, é sobretudo uma 'arte de viver'12; ou seja, saber dizer

belamente palavras certas, mas não ter domínio sobre suas emoções mais mesquinhas, é

uma demonstração irrefutável da falta de sabedoria, e, conseqüentemente, de liberdade.

Epicteto ilustra essa premissa fundamental deste modo13:

Observa-te: como tu te comportas quando és informado – não digo da morte de teu filho, como suportarias tu essa notícia? – mas de que teu azeite foi derramado, que beberam todo o teu vinho? Poderiam muito bem dizer-te, no estado de perturbação em que então te encontras, estas simples palavras: "Filósofo, teu discurso na escola é completamente outro. Por que nos enganas? Por que razão, sendo visível que não passas de uma minhoca, te fazes passar por um homem?"

Tendo em vista, pois, que Pérsio nasce quando Roma está sob o poder de Tibério,

passa por Calígula e Cláudio, e sua curta vida adulta se dará durante o principado de

Nero, isto é, Pérsio vive no momento em que Roma ainda vive de certo modo a tensão,

os desdobramentos e descontentamentos trazidos pela mudança de regime (e todo o luto

que consigo trouxeram as sucessivas lutas em nome da liberdade), e que a mensagem do

cristianismo se faz presente já nesse momento na Vrbs; tendo em vista, pois, que Pérsio

está fortemente ligado à filosofia estóica, esta ligada, por sua, vez aos ensinamentos de

Sócrates, nada será mais natural do que ver Pérsio crer que a liberdade verdadeira não é

12 Para Veyne, em Sêneca, a filosofia se resume quase exclusivamente a isto: uma arte de viver; VEYNE (1993), p. 12. 13 Epicteto, Discursos, IV, 1, 141-142.

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externa, mas ao contrário só é alcançada pelo espírito, por meio da prática e estudo da

filosofia.

Como veremos neste capítulo, no verso 124 da quinta sátira de seu livro, há um

diálogo em que um interlocutor diz: 'liber ego!' [Eu sou livre!] – tal afirmação para ele é

justa porque não possui um dominus –, ao que o poeta retorquirá: unde datum hoc sumis, tot

subdite rebus? [Baseado em que afirmas isso, tu que estás subjugado por tantas coisas?].

Como dissemos, este é o ponto que Pérsio quer fazer que compreendamos: o homem não

é livre graças à sua liberdade civil, ele somente será verdadeiramente livre se não estiver

subjugado por suas paixões.

Esta sátira, que passaremos a analisar, se estrutura claramente sobre dois pilares: o

primeiro (vv. 1-72), em que o autor faz uma bela homenagem a seu mestre, Cornuto, que

lhe apontou os caminhos da verdadeira liberdade; e o segundo (vv. 73-191), em que o

poeta discorrerá sobre a questão da verdadeira liberdade, desenvolvendo justamente o

paradoxo estóico "solum sapientem esse liberum, et omnem stultum seruom"14.

14 Esse mesmo paradoxo foi comentado por Cícero, no seu livro Paradoxa Stoicorum, livro em que o Arpinate analisará seis paradoxos que estão presentes entre as máximas dos filósofos estóicos. O quinto paradoxo analisado por Cícero nesse livro é justamente o mesmo de que Pérsio se valerá para construir sua quinta sátira.

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3.1 Ad Annaeum Cornutum Stoicum cuius fuit auditor

Escrita em forma epistolar, a quinta sátira de Pérsio é dedicada a Cornuto. Numa

sátira em que desenvolverá o tema da liberdade, é absolutamente pertinente e

compreensível que o poeta inicie o texto homenageando aquele que lhe apontou os

caminhos para alcançar a liberdade verdadeira, seu mestre e amigo Aneu Cornuto, a quem

Pérsio comparará com Sócrates (v. 36-37), pelo amor de ensinar e pela busca pela verdade.

Em linhas gerais, o percurso de Pérsio nesta sátira divide-se em duas partes bastante claras,

e é o seguinte:

1) na primeira parte (vv. 1-72), temos a laus Cornuti, em que o poeta homenageia,

com uma demonstração de grande estima e gratidão, seu mestre, Cornuto; em

seguida, afirma que um mesmo astro deve ter presidido o nascimento de

ambos, dada a harmonia entre eles. Cada homem tem seu próprio querer, sua

vocação: a de Cornuto é o estudo e o ensino da filosofia aos jovens;

2) Passa a uma segunda parte (vv. 73-191), em que teoriza a liberdade: não basta a

liberdade civil para ser livre; a verdadeira liberdade é dada pela sabedoria. A

paixão é um tirano interior que escraviza o coração; deve-se vencer a avareza, a

luxúria, a ambição e a superstição. Conclui dizendo que essa é a doutrina, mas

os vulgares centuriões não dão nada por ela.

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O poema se abre com um tom altissonante, próprio à poesia elevada:

VATIBVS hic mos est, centum sibi poscere uoces,

centum ora et linguas optare in carmina centum.

fabula seu maesto ponatur hianda tragoedo,

uolnera seu Parthi ducentĭs ab inguine ferrum.

[Os poetas têm este costume: pedir para si cem vozes, cem bocas e desejar cem línguas para compor seu poema. Quer se componha uma peça que deva ser recitada por um triste

| autor trágico, Quer se componham as feridas do Parto que arranca1 de sua virilha o ferro

| de uma flecha.]

Está claro que o poeta aqui ironiza poetas grandiloqüentes, ironia esta em acordo

com o prólogo e sua primeira sátira, quando tratará da questão literária2. O hemistíquio

que abre o poema é calcado em um verso de Horácio. No segundo poema de seu

primeiro livro de sátiras, o venusiano escrevera3:

REGIBVS hic mos est, ubi equos mercantur: opertos

inspiciunt; ne, si facies, ut saepe, decora

molli fulta pede est, emptorem inducat hiantem.

[Os reis4 têm este costume, quando compram cavalos: examinam Todos os detalhes, para que, se uma bela aparência – como sói acontecer – está apoiada sobre pés frágeis, não induza em engano o cobiçoso

| comprador.]

No excerto evocado por Pérsio, vemos Horácio chamar a atenção para o fato de

que pessoas versadas em determinado assunto não se deixam levar por uma aparência

enganadora, mote esse absolutamente coincidente com a idéia que é aportada por Pérsio

1 ducere = educere; cf. VILLENEUVE (1918²), p. 111. 2 Cf. nossa Dissertação (2004), Pérsio e a Arte Poética, em especial os capítulos 4 e 5. 3 Horácio, Sátiras, I, 2, vv. 86-88. 4 "Sono un tipo della letteratura morale dell'antichità. Astuti, diffidenti, circondati da nemici, oltre che favolosamente ricchi"; nota de M. Labate à palavra regibus; in: Orazio (2004).

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no início do seu poema. O interessante é que Pérsio – seguindo sua virtude mais

característica, i. e., a quebra de expectativa – acabará por mostrar que também essas

palavras grandioloqüentes podem ser verdadeiras, quando o que se quer exaltar é uma

realidade elevada5. Pois, como se verá na seqüência do poema (vv. 1-29), este início não

deixa de revelar que suas palavras serão sempre poucas para demonstrar sua gratidão a

Cornuto. A imagem das cem bocas pedidas por Pérsio já aparecera na Ilíada, só que

Homero ali pedia não mais que dez bocas...6; o número cem, no entanto, não é um

exagero de Pérsio, ele já aparece consagrado na poesia latina pelo próprio Vergílio7.

Os versos 3 e 4 são uma perífrase a autores de tragédia (v. 3) e de epopéias (v. 4).

Há no uso de ponere um sentido duplicado, visto que o verbo é usado tanto para a idéia de

'compor (versos, peças)', como de 'servir (à mesa)'8. O jogo de palavras conjugando poesia

e alimento seguirá durante o primeiro trecho deste poema. A citação de um Parto ferido

para fazer alusão a uma epopéia aparece já em uma sátira Horácio9.

Do verso 5 ao 18, aparece uma voz que acumulará metáforas e referências

mitológicas, com o intuito de mostrar o ridículo da ênfase de poetas trágicos. Os

comentadores em geral estão de acordo que tal voz seria de Cornuto10, que interrompe a

invocação grandiosa de Pérsio, para chamá-lo de volta à sua escrita modesta. Na primeira

parte de sua fala (vv. 5-13), se faz presente a combinação entre alimento e obra literária,

numa crítica a obras que transbordam de dramaticidade:

"quorsum haec? aut11 quantas robusti carminis offas 5

ingeris, ut par sit centeno gutture niti?

grande locuturi nebulas Helicone legunto,

si quibus aut Procnes aut si quibus olla Thyestae

feruebit saepe insulso cenanda Glyconi.

tu neque anhelanti, coquitur dum massa camino, 10

folle premis uentos nec clauso murmure raucus 5 Cf. infra, pp. 78 ss. 6 Homero, Ilíada, II, 489. 7 Cf. Georgicas II, 43-44 e Eneida VI, 625-626; antes dele, o poeta Hóstio, contemporâneo de César, já pedira cem bocas para compor seu poema; cf. Macróbio, Saturnais, VI, 3, 6. 8 O próprio Pérsio já usara esta palavra com essas duas acepções em sua primeira sátira: no verso 70, "ponere lucum", com o sentido de 'compor'; e no v. 53, "scis ponere sumen", com o sentido de apponere, i. e., 'servir'. 9 Horácio, Sátiras, II, 1, 13-15. 10 O vocativo 'Cornute' do verso 23 parece não deixar dúvida quanto a isso. 11 aut introduzindo uma pergunta irônica: cf. Pérsio 2, 29 e 3, 16.

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nescio quid tecum graue cornicaris inepte

nec scloppo tumidas intendis rumpere buccas.

["Aonde levam essas coisas? Quão numerosas fatias de robusta poesia Tens ingerido, de modo a que seja próprio dispores de

| uma centena de gargantas? Os que hão de recitar um tema grandiloqüente recolham as | nuvens do Helicão, Se para eles ferver a panela de Procne ou a de Tiestes, Que repetidas vezes deverá servir de alimento para um insulso Glicão12. Mas tu não comprimes num fole que assopra os ventos 10 Enquanto o metal fundido ferve no forno, nem rouco Grasnas estupidamente não-sei-o-quê de grave contigo mesmo, Nem pretendes esvaziar com ruído as bochechas inchadas.

Seguindo o jogo de palavras entre alimento e obra literária, Cornuto quer mostrar

a Pérsio que a este não convém um estilo grandiloqüente. Possivelmente haja uma crítica

irônica na pergunta dos vv. 5 e 6, pois Cornuto pretexta querer saber que tipo de poemas

Pérsio anda lendo para que, de repente, fugindo de seu estilo franco habitual, passe a usar

de hipérboles vazias na abertura de sua sátira. Ao se valer desse tipo de recurso, o poeta

estaria também fugindo do estilo coloquial do gênero satírico, que, como em seguida

deixará claro, é próprio de Pérsio. Não sem ironia, Cornuto fará remissão ao Helicão,

monte em que se encontra a fonte de Hipocrene, que teria sido aberta pelo casco do

cavalo Pégaso, e era tida como um local consagrado às Musas. Para lá iam os poetas – ao

menos em seus versos – beber de sua água para receber, como num passe de mágica,

inspiração13. A expressão 'nebulas legere' (v. 7) é calcada num verso da Arte Poética de

Horácio, que, ao tratar da linguagem empregada pelos sátiros, diz que não é conveniente

que, dum uitat humum, nubes et inania captet14 [Enquanto evita a terra, se perca nos ares

e nas nuvens].

Cornuto diz que Pérsio deve deixar a pomposidade aos que escolhem seus temas

em dramas intensos, que, independentemente de sua qualidade literária, conseguem

12 Segundo o escoliasta: "Glicon tragoedus fuit Neronis temporibus", Commentum Cornuti, p. 111. 13 No prólogo a suas sátiras, Pérsio já negara enfaticamente ter molhado seus lábios no fons caballinus (forma irônica usada pelo poeta para designar a fonte de Hipocrene – palavra grega que significa exatamente 'fonte do cavalo') para se tornar, de inopino, poeta; cf. SCHERER (2004), pp. 25-27. 14 Horácio, Arte Poética, v. 230.

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chamar a atenção do público pela mesma extravagância do tema; dá como exemplos desse

tipo de argumento duas personagens mitológicas cuja vida chega ao extremo de

apresentar um banquete antropofágico em que se serve a carne de entes queridos:

1) Procne → filha de Pandião, rei de Atenas, serviu, como forma de

vingança, a Tereu – seu marido, que se havia tornado amante de sua

irmã, Filomela15 – uma refeição cujo prato principal era o filho de

ambos, Ítis.

2) Tiestes → irmão de Atreu. O ódio recíproco entre esses dois irmãos

criou uma das mais terríveis histórias da mitologia grega. Tiestes se

tornou amante de sua cunhada; Atreu, como despique, matou os filhos

do irmão e serviu-lhos num jantar. Tiestes soube por um oráculo que só

alcançaria a desforra por meio de um filho nascido num incesto; assim,

tem de sua filha bastarda um filho, Egisto, que matará Atreu – e depois

Agamenão, filho de Atreu.

Cabe ressaltar que aqui não faz referência Pérsio a toda e qualquer epopéia ou

tragédia, e sim as que a literatura contemporânea vinha produzindo a mancheias. Sua

primeira sátira esclarece bem o alvo de sua crítica. Vergílio, por exemplo, não é

mencionado com desdouro por Pérsio, pelo contrário, quem vai criticá-lo é um poeta da

moda, chamando os versos vergilianos de 'rudes como um tronco seco'16. Contra esses sim

é que o satírico desferirá seus golpes17. Lembramos uma história muito conhecida – e que

envolve justamente seu mestre, Cornuto, e Nero – e que pode servir de subsídio para justa

ilustração deste ponto.

Cornuto foi exilado por Nero quando da conjuração de Pisão, em 65 d.C.

Segundo Dião Cássio, porém, o exílio se deveu antes a uma impertinência do filósofo do

que à sua participação na conjuração; conta o historiador que, após Nero ter declamado

versos que compusera sobre a guerra de Tróia, quis saber a opinião das pessoas que ali

15 Mais propriamente, ele a estuprou, e depois lhe cortou a língua, para que ela não o pudesse denunciar; cf. GRIMAL (2000), p. 173. 16 Cf. Pérsio 1, vv. 96-98. 17 Cf. SCHERER (2004), pp. 72-73.

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estavam, dentre as quais Cornuto, sobre quantos livros deveria escrever para compor um

épico que contasse todos os grandes acontecimentos da história romana; ao parecer de

alguns presentes que disseram que o imperador deveria escrever quatrocentos livros,

Cornuto respondeu que seria este um número exagerado e que não teria ele leitores.

Quando alguém lhe replicou que o estóico Crisipo, a quem tanto o filósofo admirava,

compusera setecentos livros, ele imediatamente pontuou: “Sim, mas aqueles eram úteis à

vida das pessoas.” Tal resposta lhe teria valido o exílio em uma ilha (provavelmente em 65

d.C.).

Com um assíndeto, o verso seguinte (v. 10) marca uma forte oposição que há na

linguagem desses poemas com a linguagem de Pérsio. Com o recurso de deixar na boca

de seu mestre a caracterização de seu estilo de escrita, Pérsio evita um auto-elogio18, e

tudo nos faz crer que a idéia contida nessas palavras realmente descreva o pensamento de

Cornuto. Observe-se que do verso 10 ao verso 16, Cornuto não endereçará conselhos a

seu discípulo, mas antes vai descrever qual é de fato o estilo natural de Pérsio, e o uso do

presente do indicativo – e não do imperativo – deixa isso patente; o que se poderá

entrever nessa constatação é simplesmente uma exortação a que ele siga o caminho que

lhe é próprio; o único imperativo da fala de Cornuto, no verso 17, ratifica essa

interpretação.

Cabe lembrar que o estoicismo apresenta como um de seus eixos fundamentais a

idéia de que devemos viver de acordo com nossa natureza, i. e., seguir tendências naturais

que estão inseridas no destino de cada um. A Natureza concede aptidões, tendências e fins

diferentes a cada ser humano. Por meio da razão aprendemos a viver de acordo com ela,

ou seja, a respeitar o que ela atribui a cada um. E o homem que vive de acordo com sua

razão, com a vida que lhe foi destinada – determinismo estóico –, não se deixará

escravizar pelas paixões e pelas ilusões do mundo exterior, mas, ao invés, será livre e feliz19.

O que Cornuto espera, pois, do jovem poeta é que ele siga sua natureza, em vez de

querer render-se a artifícios ensejados pela paixão mais sedutora a quem quer que tenha

18 Cf. DESSEN (2002), p. 72. 19 Epicteto descreverá com simplicidade e clareza o paradoxo da submissão do sábio à natureza e sua liberdade, numa metáfora em que mostra que somos atores teatrais e que recebemos do Autor um papel a cumprir; nossa tarefa é executar esse papel da melhor maneira possível; cf. hic, capítulo 2.2, p. 45.

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inclinação artística: a Vaidade. No tempo de Pérsio, em especial, os poetas estavam

dominados por ela, como o próprio poeta demonstra com muito bom humor em sua

primeira sátira. Temos, com efeito, no trecho há pouco citado, elementos que remontam

a um episódio desse poema20: scribimus [...] / grande aliquid quod pulmo animae praelargus

anhelet [Escrevemos [...] / algo grandioso, para que seja pronunciado com o pulmão

cheio de ar!]. Pérsio está nesses versos introduzindo um poeta que se prepara para uma

leitura pública e que, após encher os pulmões para uma grandiosa poesia, revela, nos

versos seguintes, que sua maior preocupação está no penteado dos cabelos, os adornos –

como o anel natalício –, a toga nova, a garganta preparada para sua voz melíflua... ou, em

outras palavras, sua vaidade21.

Cornuto fica apenas no primeiro ponto, ou seja, uma composição apelativa para

arrancar lágrimas ao público. Pela própria escolha das palavras, percebe-se a combinação

entre esses dois momentos: grande (1, v. 14 e 5, v. 7) e anhelare (1, v. 14 e 5, v. 10). Uma

questão poderia ser levantada: será que Pérsio esperaria que tivéssemos a primeira sátira

em mente para que fosse evocada pela memória neste momento?

Em seguida, temos uma passagem bastante conhecida, que dirá qual é o estilo

natural a Pérsio, e serve como uma espécie de chave para compreendermos como o

volaterrano construía suas imagens e suas combinações tantas vezes surpreendentes de

vocábulos.

uerba togae sequeris iunctura callidus acri,

ore teres modico, pallentis radere mores 15

doctus et ingenuo culpam defigere ludo.

[Segues as palavras de toga, hábil na combinação surpreendente | de palavras

Modelado por boca modesta, perspicaz em zombar dos costumes | que empalidecem de vergonha

E em apontar o erro com a jovialidade do homem livre.] 16

20 Pérsio, 1, vv. 13-14. 21 Cf. SCHERER (2004), pp. 47-52.

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Ao enunciar o estilo de Pérsio, Cornuto traz informações precisas e preciosas sobre

o ideário poético de seu discípulo22. As 'palavras de toga' (uerba togae) referem-se às

palavras simples, do dia-a-dia, usadas pelo romano comum, em contraposição justamente

a palavras empoladas, muitas vezes grecismos, que há pouco Cornuto havia rejeitado.

Quando a literatura grega começou a ser importada por romanos, houve uma torrente de

imitação quase literal desta na Vrbs. Fato que acabou ocasionando uma forte reação

nacionalista, da qual se originaram dois tipos de tragédia: a fabula praetexta – tragédia

baseada em temas da história de Roma, em que os atores usavam a pretexta, toga própria

dos magistrados romanos; e a fabula togata, também de temas romanos, em que as

personagens usavam a toga do romano comum. Essa imagem usada por Cornuto (uerba

togae) faz remissão justamente à fabula togata, e, por conseguinte, ao uso de palavras

próprias ao falar simples e habitual dos romanos.

A expressão iunctura calidus acri é especialmente feliz ao descrever uma

característica essencial na poética persiana, ou seja, a habilidade em usar elementos

conhecidos, mas unidos de forma inusual e sagaz, causando surpresa e, com isso,

conferindo sabor ao escrito. Essa expressão é baseada num trecho da Arte Poética de

Horácio23:

in uerbis etiam tenuis cautusque serendis

dixeris egregie, notum si callida uerbum

reddiderit iunctura nouum.

[Cauteloso e sutil, também dirás de modo eficiente em palavras entrelaçadas, se uma juntura sagaz deixar como nova uma palavra conhecida.]

Horácio, nesses versos, nos ensina que, mais do que usar palavras que sejam pouco

conhecidas, a maneira mais inteligente de provocar uma sensação de novidade no ouvinte

é a combinação hábil das palavras. Nos versos seguintes do poema, com efeito, Horácio

prosseguirá dando conselhos a respeito da escolha das palavras em função do texto que se

22 Estes três versos da quinta sátira foram já comentados por nós, em um contexto um pouco diverso: cf. SCHERER (2004), pp. 62-65. 23 Horácio, Arte Poética, vv. 46-48.

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escreve24. A maneira criativa com a qual Pérsio retoma o mote horaciano – em vez de

uma iunctura callida, temos em Pérsio uma iunctura acris, e callidus passa a ser o adjetivo

que descreve o autor – atualiza-lhe o preceito, e o exemplifica. Demais, em Pérsio, isso é

válido não somente com grupos de palavras, mas também com idéias e com jogos

intertextuais25.

Em seguida, Cornuto reporta a modéstia na fala (teres)26, em contraposição a

tumidas buccas, do verso 13. Temos propriamente uma hipálage, pois gramaticalmente o

adjetivo teres se liga ao sujeito; logicamente, porém, a referência é ao estilo da escrita. A

utilização dessa figura de linguagem faz, com efeito, ressaltar o uso de palavras cotidianas

como espelho da modéstia na vida.

Na continuação de sua fala, aborda a questão do uso do gênero satírico como arma

para combater os vícios. Quanto à expressão pallentis radere mores, M. Villeneuve faz a

seguinte observação27:

pallentis radere mores comme un médecin qui, pour nettoyer une plaie, la racle

avec un instrument tranchant [...] Perse est habile à porter le fer de la satire dans les

parties malades des mœurs humaines.

Aqui podemos observar a influência do estoicismo como modelo também para a

composição poética: assim, além do uso de linguagem coloquial e modéstia, também o

uso da sátira para corrigir os erros. Como é notório, o estoicismo nesse período tem como

sua principal característica o aspecto moral, e uma de suas armas para atacar os vícios é

ridicularizá-los. E este é o objetivo de Pérsio: provocar o riso para ajustar os costumes, o

castigat ridendo mores, que será a divisa de Arlequino; isto é, seu objetivo não é

simplesmente provocar o riso, ao contrário, o riso angariado com o deboche a algo que

não é um vício de costume e que não pode ser emendado é para o nosso poeta

24 idem, ibidem, vv. 46-71. 25 A intertextualidade de Pérsio, sobretudo em relação à obra de Horácio, foi analisada por nós na Dissertação de Mestrado, Pérsio e a Arte Poética (2004), em que se analisa, em especial, o jogo intertextual do volaterrano em sua primeira sátira e suas remissões à Arte Poética (Ars Poetica ou Epistula ad Pisones) de Horácio. 26 "teres: de elocutione neque humili neque tumida", NIKITINSKI (2002), p. 204. 27 VILLENEUVE (1918²), p. 114.

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vergonhoso, como ele próprio anunciará em sua primeira sátira, em que condena quem

chama ‘caolho’ um caolho28 com o intuito de mostrá-lo, ipso facto, ridículo.

Por isso, ao chamar a atenção para os nossos vícios, diz Cornuto no verso 16,

Pérsio o faz com jovialidade, i. e., sem rancor, sem preconceito, sem maldade, mas, ao

invés, de modo bem-humorado. E essa é uma das características da sátira horaciana que

certamente mais levaram Pérsio a ter o poeta venusiano como principal modelo.29 (O que

não quer dizer que sua sátira não lhe tenha granjeado inimigos diversos e poderosos.30)

Essa expressão de Cornuto nos enseja a fazer uma rápida digressão sobre um ponto

por vezes controverso: o uso do gênero satírico por um estóico. Pià observa que os

antecessores de Pérsio na sátira, Lucílio e Horácio, evitaram fechar-se numa escola

filosófica particular, ao contrário escarneceram de todo discurso dogmático; assim, levanta

a questão31: “La satura ne risque-t-elle pas d’atténuer ou même ridiculiser l’orthodoxie

stoïcienne?”. Saliente-se, porém, que o elemento cômico apresenta em si um caráter

moralizante, e isso pode ser facilmente depreendido, por exemplo, na comédia latina;

Plauto e Terêncio constantemente provocam o riso escarnecendo de comportamentos

pouco recomendáveis. A famosa divisa de Arlequino, que há pouco lembrávamos,

resumirá de modo bastante eficaz esta característica do cômico. É preciso também que

lembremos o fato de que o estoicismo, no período de Pérsio, enfatiza o aspecto moral, e,

mais do que isso, é justamente esse o ponto que Pérsio vai desenvolver em seus poemas –

seguindo, portanto, muito de perto o teor da sátira de seus antecessores. Porque, à

diferença de Lucrécio, que com seu De Rerum Natura busca apresentar de maneira

estruturada todos os elementos da filosofia epicurista, fazendo assim como que um

compêndio da doutrina da escola – e, por isso mesmo, seu poema costuma ser enquadrado

no gênero didático –, Pérsio terá, é verdade, como régua do bom percurso, os

ensinamentos do pórtico, mas não buscará, com sua obra, apresentar sistematicamente

uma doutrina geral e ordenada do estoicismo.

28 Cf. Pérsio 1, v. 128. Também aqui Pérsio aproveita para fazer uma crítica evidente a Nero; cf. Suetônio, Domiciano, 1. 29 Cf. Pérsio 1, vv. 116-118. 30 Cf. Pérsio 1, vv. 107-110. 31 PIÀ (2007), p. 2.

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Por isso também não nos parece justa a avaliação de Nisard32: “Cornutus manqua de

sens en le [Perse] laissant faire des satires; Perse était beaucoup plus propre à faire des traités [...]

Un stoïcien ne peut que disserter” Pérsio é, para nós, antes de mais nada, um poeta. Como

dissemos, embora seja inegável que diversos pontos da doutrina estóica apareçam em sua

sátira, e que uma exortação ao estudo da filosofia faça parte de seus objetivos na

elaboração de seus versos, tanto o estilo, como a linguagem, e a maneira de apresentar

idéias e fazer alusões a outras obras e pessoas são próprias de um poeta, e, se nos é

permitida tal apreciação, de um verdadeiro poeta.

Quanto aos ensinamentos estóicos – ao menos os de cunho moral – serem

absolutamente compatíveis com a sátira, podemos ainda lembrar o filósofo Sêneca,

contemporâneo de Pérsio, que escreverá em diversas de suas epístolas que seus mestres

usavam habitualmente a sátira para combater os vícios de seu tempo. Na carta 108 a

Lucílio, v. g., ele dirá33:

ego certe cum Attalum audirem in uitia, in errores, in mala uitae perorantem, saepe

miseritus sum generis humani [...] cum coeperat uoluptates nostras traducere,

laudare castum corpus, sobriam mensam, puram mentem non tantum ab inlicitis

uoluptatibus sed etiam superuacuis, libebat circumscribere gulam ac uentrem.

[Eu, sem dúvida, com ouvir as perorações de Átalo contra os vícios, os erros e os males da vida, muitas vezes me compadeci do gênero humano [...] Quando começava a ridicularizar os nossos prazeres e a enaltecer a castidade do corpo, a frugalidade da mesa e a pureza da mente, não apenas no que tange aos prazeres ilícitos, mas também aos absolutamente inúteis, a minha vontade era cercear os prazeres do estômago.]

O próprio Sêneca não escreverá, por sua vez, uma sátira menipéia, a

Apocolocynthosis, ridicularizando o imperador Cláudio? Não será demais lembrar o mesmo

Cornuto, o estóico erudito e mestre de Pérsio, que, como lembramos no início deste

capítulo, não deixa de ironizar o projeto literário megalomaníaco do imperador. 32 NISARD (1849), pp. 215-216; de resto, Nisard não parece nem muito justo nem cuidadoso em suas críticas, nem em relação a Pérsio, de quem diz: “Je dois dire en commençant que je fais un médiocre cas de ce poëte” (p. 201); nem em relação a Cornuto, de quem dirá: “Je juge que l’enseignement de Cornutus se réduisait à développer des aphorismes stoïciens” (p. 216); nem Quintiliano é poupado, a quem Nisard acusa de ‘très-contradictoire’, por seu julgamento favorável em relação ao nosso poeta... (p. 218) 33 Sêneca, Ad Lucilium, XVII-XVIII, 108, 13-14. Outros exemplos são arrolados por BURNIER (1903), p. 14.

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Encerrada a digressão, voltemos à fala de Cornuto. Finalizando sua intervenção

(vv. 17-18), e usando, agora sim, um imperativo (trahe), Cornuto exorta Pérsio a seguir o

estilo dentro dos temas que lhe são próprios e, retomando a metáfora dos banquetes,

encerra dizendo que Pérsio deve buscar as refeições simples, do romano comum, deixando

os banquetes com partes de corpos humanos aos reis de Micenas. Essa alusão remete-nos

ao verso 8, em que Cornuto falara de Tieste, pois, segundo a tradição, foi em Micenas que

ocorreu o banquete macabro, de que tratamos acima.34

hinc trahe quae dicis mensasque relinque Mycenis

cum capite et pedibus plebeiaque prandia noris."

[Tira disso teus argumentos, e deixa as mesas, com a cabeça e os pés, | aos reis de Micenas,

E poderás saborear os manjares do homem comum."]

Pérsio retoma o diálogo e, respondendo a Cornuto, faz uma belíssima homenagem

a seu mestre, dulcis amicus, que representa para o satírico grande parte de sua alma (quanta

pars animae nostrae).

non equidem hoc studeo, pullatis ut mihi nugis

pagina turgescat dare pondus idonea fumo. 20

secrete loquimur. tibi nunc hortante Camena

excutienda damus praecordia, quantaque nostrae

pars tua sit, Cornute, animae, tibi, dulcis amice,

ostendisse iuuat. pulsa, dinoscere cautus

quid solidum crepet et pictae tectoria linguae. 25

[Com efeito, não busco isto, que minha página fique inchada | com gratuitos

Vestidos de luto, própria para dar peso à fumaça. 20 Estamos conversando entre nós. É para ti agora que, ordenando as Musas, Oferecemos nosso coração para ser examinado; agrada-me que

| eu possa mostrar-te Quão grande parte de minha alma é tua, Cornuto,

34 Cf. supra, p. 70.

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Meu prezado amigo. Faz o julgamento, tu que tens prudência | para distinguir

Aquilo que ressoa com consistência e o que é apenas revestimento | de uma língua enfeitada.] 25

Pérsio esclarece que, quando usou, no início do poema, de palavras altissonantes,

não o fez para dar ao vazio uma aparência de grandiosidade, mas antes sua fala é um

sincero reconhecimento; não busca convencer ninguém nem impressionar um público

possível, mas, ao invés, são frases que em privado se dizem, sem testemunhas necessárias.

As Musas realmente fazem brotar em Pérsio essas palavras; elas, mais do que isso, ordenam

a Pérsio fazer Cornuto conhecer sua gratidão. O emprego de pars animae é freqüente

entre os poetas, quando querem referir-se a uma grande amizade35, pois esta é, com efeito,

como que o sopro vital de nossa existência. E Cornuto saberá examinar a sinceridade que

elas trazem consigo. A respeito desse trecho, M. Villeneuve, com grande acuidade, faz a

seguinte observação36:

hortante Camena: un élan porte le poète à découvrir tout son cœur devant

Cornutus. En faisant honneur de cet élan à la Muse, Perse laisse entendre que son

amitié pour le philosophe n'est pas une source d'inspiration moins haute que celles

dont les poètes épiques ou tragiques prétendent tirer leurs accents.

É por isto que, como afirmará em seguida, Pérsio se atreve a pedir cem vozes: para

que possa mostrar com palavras sinceras (uoce pura, v. 28) o quanto os ensinamentos de

seu mestre estão impressos em sua alma (in pectore fixi, v. 27).

hic ego centenas ausim deposcere fauces, 26

ut quantum mihi te sinuoso in pectore fixi

uoce traham pura, totumque hoc uerba resignent

quod latet arcana non enarrabile fibra.

[Por essa razão, eu ousaria rogar centenas de gargantas 26 Para que eu possa mostrar com palavras sinceras o quão profundamente Eu te trago fixado no recôndito de meu peito, e para que as palavras

35 Cf. Ovídio, Metamorfoses, VIII, v. 406 e Pônticas, III, 4, v. 69; Horácio, Carmina, II, 17, v. 5. No terceiro poema de seu primeiro livro de Odes, Horácio dá a seu dileto amigo Vergílio o epíteto de 'animae dimidium meae' (v. 8) [metade de minha alma]. 36 VILLENEUVE (1918²), p. 115.

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Revelem tudo aquilo que, inenarrável, se esconde nos arcanos de | minhas fibras.]

Os poetas do período imperial passam a valer-se, freqüentemente, da forma arcaica

de subjuntivo potencial do verbo audere, i. e., 'ausim'. Segundo Conte, "nel congiuntivo

potenziale rientra anche un tipo di congiuntivo che possiamo definire dell'affermazione

atenuata; si tratta non di un potenziale vero e proprio, ma di una sorta di formula di cortesia o

di modestia, che serve a esprimere un'affermazione meno netta e recisa rispetto all'indicativo".37

Pérsio o utiliza para dar, a um tempo, elevação e modéstia ao seu discurso; neste

momento, as palavras próprias da poesia elevada não são de modo algum usadas para

ridicularizar uma poesia que se esmera em encontrar fórmulas brilhantes que não passam

de bijuterias sem valor, mas, ao contrário, aqui tais palavras se apresentam com sua

significação plena, porque buscam justamente traduzir o elevado sentimento de gratidão

do discípulo por seu mestre. Demais, no mesmo verso, vemos o poeta escolher centenas

fauces, expressão que está posta, com certeza, em contraposição a centeno gutture,

empregado por Cornuto no verso 6, em que gutture apresentava um valor irônico que

fauces aqui, no verso 26, não possui.

Note-se o uso do indicativo fixi na interrogativa indireta que aparece no verso 27,

em lugar do esperado fixerim; com tal emprego, o poeta reforça no ouvinte a sensação da

verdade indubitável de seus versos. As palavras sinceras, uoce pura (v. 28), se contrapõem às

palavras 'de uma lingua enfeitada', pictae linguae (v. 25). A expressão totumque hoc (v. 28) é

certamente lembrança de Lucílio, quando este, modestamente, oferece seus versos a seus

leitores38:

rem populi salute et fictis uersibus Lucilius,

quibus potest, inpertit, totumque hoc studiose et sedulo.

[Lucílio compartilha com o Estado sua saudação e os versos Que sua imaginação pode conceber, e tudo isso feito

| com aplicação e sinceridade.]

37 CONTE (2006), pp. 195-196 (o grifo é do autor). 38 Cf. Lucílio, fragmento 1 do livro XXVII, na edição de Charpin (688-689, ed. Marx).

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Enfim, sua abertura se justifica: ele pede cem bocas porque pretende narrar o

inefável. enarrabile (v. 29), palavra de uso raro, por sua vez, é retomada de Vergílio

(enarrabile textum)39. Dolç observa, com absoluta justiça, "la perfección técnica de este verso,

lleno de profundo sentimiento : preludio del tono grave del pasaje siguiente".40

Nos versos seguintes (vv. 30-36), o poeta evocará a memória, lembrando o

momento decisivo de sua trajetória, quando deixava para trás a infância para adentrar,

inseguro ainda, na vida adulta. Foi então que conheceu aquele que, com grandeza e

sabedoria, iria indicar-lhe o caminho para alcançar a verdadeira liberdade: seu mestre

Aneu Cornuto.

cum primum pauido custos mihi purpura cessit 30

bullaque subcinctis Laribus donata pependit,

cum blandi comites totaque inpune Subura

permisit sparsisse oculos iam candidus umbo,

cumque iter ambiguum est et uitae nescius error

diducit trepidas ramosa in compita mentes, 35

me tibi supposui.

[Tão logo deixei – não sem algum receio – minha proteção púrpura, 30 E minha bula ficou pendurada, oferendada aos lares; Quando os complacentes companheiros e meu escudo branco

| me permitiram Lançar impunemente meu olhar por toda a Suburra; Quando o caminho se bifurca e a marcha desconhecida e sem direção

| definida Conduz nossos espíritos inseguros para encruzilhadas ramosas, 35 Eu me coloquei sob tua tutela.]

Para dar realce ao momento em que se pôs sob a tutela de Cornuto (me tibi

supposui, v. 36), Pérsio se vale de uma anáfora - da conjunção temporal cum –, no início

39 Vergílio, Eneida, VIII, 625. 40 DOLÇ (1949), p. 199.

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dos versos 30, 32 e 34. Com essa bela estrutura simétrica, o poeta nos apresenta então sua

passagem para a vida adulta:

1) (vv. 30-31) Fala de quando deixou a toga praetexta e consagrou sua

bulla aos deuses Lares,, numa referência à cerimônia em que os jovens romanos,

ao fim dos dezesseis anos, deixavam a toga pretexta para receber a toga viril, a

qual simbolizava a entrada do jovem na vida adulta41. A expressão poética

empregada por Pérsio para significar a toga pretexta é custos42 purpura, pois a

esta toga era guarnecida por uma tira de púrpura43. Além disso, a escolha do

epíteto custos, como observa Dolç, "indica el carácter de dicha toga como

'salvaguardia' de la infancia y símbolo de la santidad."44 A bulla era um medalhão

esférico que a criança recebia no seu batizado – o dies lustricus –, e que trazia

dentro um amuleto para protegê-lo do mau-olhado (fascinum)45. O jovem a

trazia presa ao pesoço, até o momento em que passava para a vida adulta,

quando oferecia sua bulla aos deuses Lares.

2) (vv. 32-33) A Suburra era um bairro em que se viam pessoas e coisas

não apropriadas para crianças; na passagem para a vida adulta, Pérsio pôde

enfim contemplar o que acontecia naquela espécie de 'bairro maldito', com a

complacência de seus companheiros – ancorado na qual, podia vencer sua

insegurança. De fato, a expressão 'companheiros complacentes' (blandi comites)

marca uma oposição a pauido mihi do verso 30. O escudo branco46 é uma

metáfora a significar a 'toga viril', cuja cor era branca.

41 Até os sete anos, o romano é considerado infans; depois, até os dezesseis, puer; no dia 17 de março – dia das festas em homenagem a Baco – do ano de seu décimo sétimo aniversário, ele ingressa na maioridade, tornando-se adulescens. 42 custos → no feminino, por se referir a uma toga. 43 Para que não haja dúvida, visto que há pouco falávamos da toga praetexta como a toga própria dos magistrados romanos: essa toga era usada "pelos principais magistrados nas cerimônias públicas e pelos filhos dos patrícios com menos de 17 anos" (Gomes Ferreira). 44 DOLÇ (1949), p. 200. 45 Cf. BORNECQUE et alii (1955), p. 166. 46 Dolç, a respeito de umbo, escreve o seguinte: "umbo era propriamente la protuberancia central del escudo, metafóricamente el conjunto de pliegues que formaba la toga ajustada con elegancia sobre el pecho [...] y, por consiguiente, la toga misma", DOLÇ (1949), p. 200.

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3) (vv. 34-35) Os pitagóricos apresentavam a passagem para a vida

adulta como o momento de uma opção entre o caminho à direita, da virtude e

da sabedoria, e à esquerda, caminho do vício e da servidão; representavam eles

essa bifurcação com a letra Y47. Daí Pérsio falar do caminho que se bifurca

nesse momento de passagem, momento a um tempo de incertezas e decisões

fundamentais sobre a condução de nossa vida, e que nos vemos diante dessa

encruzilhada ramosa.

Quando, pois, Pérsio veste a toga viril e ingressa na vida adulta; quando os prazeres

proibidos lhe são apresentados; quando, enfim, ele se encontra no ponto em que a vida lhe

apresenta sua ramificação, em que ele tem de optar pelo caminho a seguir - se o da

virtude ou o dos vícios –, ele encontra Cornuto, e se coloca sob sua orientação. A

expressão utilizada pelo poeta, subponere se alicui (v. 36), é própria da linguagem técnica

jurídica, e indica 'colocar-se sob a custódia de alguém', e, conseguintemente, 'confiar-se a

alguém como um filho ou um discípulo'48.

Expandindo seu elogio, o poeta falará do ensino de seu mestre, que, como Sócrates,

recebe a juventude para lhe apontar, com generosidade, onde se encontram as falhas em

sua compreensão das coisas. Detectada a ignorância, o espírito começa a busca pela

verdade subjacente à aparência enganadora.

teneros tu suscipis annos

Socratico, Cornute, sinu. tum fallere sollers

adposita intortos extendit regula mores

et premitur ratione animus uincique laborat

artificemque tuo ducit sub pollice uoltum. 40

[ Tu, Cornuto, acolhes as idades tenras Em teu peito socrático. Então, quando é aplicada a régua sagaz,

| ela mostra Que nossos costumes retorcidos nos enganam. E o espírito é pressionado pela reflexão e se esforça por ser por ela vencido

47 Pérsio chamará a letra Y, com esse mesmo significado, na terceira de suas sátiras (v. 56), a 'letra com ramos Sâmios', justamente porque Samos é a ilha em que teria nascido Pitágoras; cf. nosso comentário no capítulo 2.1 deste trabalho, pp. 35-36. 48 Cf. DOLÇ (1949), p. 201. Em Plauto encontramos a expressão sibi supponere puerum, significando exatamente 'fazer passar um filho por seu' (cf. Cistelária, v. 553 e Truculento, v. 804).

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E se apresenta sob tua orientação com um aspecto de obra de arte. 40]

Cornuto recebe os jovens discípulos e os ensina o modo de corrigir os costumes

por meio do estudo da filosofia: Pérsio lança mão de uma imagem – a correção, feita por

uma régua, do traçado de uma linha – para fazer uma descrição poética e material dessa

idéia. Assim, a palavra regula – que tanto significa 'régua' como 'regra'49 – corresponde à

filosofia, com a qual se endireitarão as linhas (/os costumes) que não estão seguindo uma

direção reta.

O espírito que se deixa subjugar pela razão é aquele que percebeu que, se não o

fizer, serão as paixões que o dominarão, e por isso ele se esforçará para apreendê-la – e

aqui, nessa ilustração do ensinamento de Cornuto, vemos já a ilustração do paradoxo

estóico: solum sapientem esse liberum. De modo geral, o estudo do estoicismo é apresentado

com uma subdivisão em três partes – que na realidade são indissolúveis50: a natureza

(physis), a razão (logos) e moral (ethos). Há uma lei natural que rege o mundo; como a

natureza harmoniza tudo o que há, ela é passível de ser apreendida pela razão. Buscar

conhecer as coisas como elas são, e viver de acordo com a natureza – por meio da razão –

é o que predica a moral.51 Sábio é aquele que consegue seguir este caminho; para segui-lo,

é necessário estar livre do jugo das paixões, e, enfim, para estar livre do jugo das paixões, é

necessário que a razão seja a guia.

No verso seguinte, Cornuto é apresentado como o mestre que molda seu discípulo

como um grande artista molda sua obra52; a metáfora é caracterizada pela expressão tuo sub

pollice – literalmente, 'sob teu polegar', i. e., o dedo empregado para dar o último retoque

e deixar perfeita e cinzelada a modelagem da escultura. Essa mesma metáfora, com o

mesmo sentido, aparece também em sua terceira sátira (vv. 21-24), como vimos no

capítulo 253.

49 Podemos lembrar que, de fato, ambos os vocábulos portugueses, 'régua' e 'regra', são evoluções divergentes deste mesmo vocábulo latino: regula. 50 Uma das imagens mais conhecidas para ilustrar essa tripartição interdependente é a do corpo de um animal: assim, os ossos seriam a física; os nervos, a lógica; a carne, a ética. 51 Cf. BOURDIN (2009), p. 12. 52 Em realidade, a metáfora já aparece antecipada no verso 39, com a utilização do verbo premitur; cf. VILLENEUVE (1918²), p. 119. 53 Cf. hic, p. 23.

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Em seguida, o poeta fala da perfeita afinidade que existe entre ele e seu mestre, e,

com um eficiente jogo de palavras, diz que nasceram sob o mesmo signo – não fica claro

se é Libra ou Gêmeos, em todo caso, a própria referência de ambos os signos traz já em si

a idéia de afinidade: para os antigos, eram as constelações que mais influíam na união das

pessoas54.

tecum etenim longos memini consumere soles55

et tecum primas epulis decerpere noctes.

unum opus et requiem pariter disponimus ambo

atque uerecunda laxamus seria mensa.

non equidem hoc dubites, amborum foedere certo 45

consentire dies et ab uno sidere duci.

nostra uel aequali suspendit tempora Libra

Parca tenax ueri56, seu nata fidelibus hora

diuidit in Geminos concordia fata duorum

Saturnumque grauem nostro Ioue frangimus una, 50

nescio quod certe est quod me tibi temperat astrum.

[Lembro-me, com efeito, de consumir contigo dias inteiros, E de reservar o início das noites para as refeições. Ambos distribuímos de igual modo o mesmo trabalho e o repouso. E deixamos de lado, à frugal mesa, os assuntos sérios. Certamente não hás de duvidar disto: que os dias natalícios 45 De ambos nós dois estão acordados por uma aliança incontestável,

| e que são guiados por um único e mesmo astro. A Parca, fiel ao destino, suspende nossas vidas Em uma balança equilibrada, ou bem a hora do nascimento,

| propícia às amizades fiéis, Divide entre os Gêmeos o destino harmônico de duas pessoas, 49 E, tendo Júpiter ao nosso lado, juntos rompemos a influência

| maléfica de Saturno; É certo que um astro – não sei qual – me harmoniza contigo.]

54 Cf. DOLÇ (1949), p. 204. 55 O verso 41 é uma clara reminiscência da nona Bucólica de Vergílio (vv. 51-52): saepe ego longos/ cantando puerum memini me condere soles [Lembro-me de, muitas vezes, ainda menino, passarem os longos dias enquanto eu cantava]. 56 A expressão Parca tenax ueri é calcada em Horácio, que escrevera Parca non mendax e ueraces Parcae, respectivamente, in: Horácio, Carmina, II, 16, v. 39 e Carmen Saeculare v. 25.

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Entre os versos 41 e 44, temos o relato do poeta de que ele e Cornuto passavam os

dias dedicados ao estudo, reservando apenas o início da noite para um jantar frugal,

quando então aproveitavam para falar de assuntos amenos. A afinidade de temperamento

sendo definida pelos astros – que Pérsio descreve na seqüência do poema – pode ser um

exemplo dessas conversas travadas durante o jantar.

A influência dos astros, que destina duas almas a se tornarem amigas diletas uma da

outra, já havia sido cantada por Horácio, em seu segundo livro de Odes, para justificar

poeticamente a amizade profunda que o unia a Mecenas57, conselheiro do imperador

Augusto58:

seu Libra, seu me Scorpios adspicit formidolosus, pars uiolentior

natalis horae, seu tyrannus Hesperiae Capricornus undae, 20

utrumque nostrum incredibili modo consentit astrum; te Iouis impio

tutela Saturno refulgens59 eripuit

[Quer a Balança quer o funesto Escorpião Tenha sido o primeiro que me tenha visto O nascimento60, quer ainda o Capricórnio, Tirano sobre os mares do Ocidente61, 20

Nossos astros se unem um ao outro Com uma inacreditável harmonia; Júpiter, opondo Seu brilho tutelar, arrebatou-te do ímpio Saturno.]

57 Mecenas formou um círculo intelectual que congregou nomes que vieram a se tornar os mais destacados da poesia latina, como Vergílio, Horácio e Propércio. O auxílio generoso que prestou a artistas proeminentes foi tão importante e conhecido que acabou fazendo que seu nome passasse a ser usado como nome comum, com o significado 'patrono das Letras'. 58 Horácio, Carmina, II, 17, vv. 17-24. 59 refulgens = fulgens contra. 60 O significado que Horácio quis dar a pars uiolentior não é absolutamente seguro; para alguns comentaristas, ele recai sobre as duas constelações (segundo Cerrati: pars uiolentior natalis horae: 'la parte che più influisce nell'ora della nascita'; in: Odi Scelte, a cura di Michele Cerrati. Torino, SEI, 1946, p. 140); para outros, ele tem um valor negativo, e liga-se exclusivamente a Scorpios; cf. Horace (1981), p. 81, nota do Professor Villeneuve ao verso. 61 Quando a constelação de Capricórnio está dominante sobre os céus italianos, costuma haver chuvas torrenciais sobre o mar Tirreno; o adjetivo hesperius diz respeito ao Ocidente de modo geral; aqui, conforme M. Villeneuve, refere-se, mais especificamente, a 'águas italianas'; cf. Horace (1981), p. 81.

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Dificilmente poder-se-ia dizer que Horácio tivesse sincero apreço pela astrologia62;

temos aqui um artifício poético, possivelmente ensejado pelo fato de que Mecenas, ao que

parece, não desprezava o poder de influência dos astros63. Sendo certamente os versos de

Horácio a fonte na qual Pérsio se abeberou para compor sua homenagem a Cornuto,

parece-nos bastante plausível que tenhamos no tema da influência dos astros no destino e

na personalidade das pessoas, como dissemos há pouco, um exemplo das conversações

amenas que Pérsio e seu mestre travavam durante as frugais refeições noturnas64.

Podemos destacar alguns pontos de convergência entre os dois poemas. Ambos os

poetas justificam a amizade que os unem ao dedicatario pela influência do astro que

presidira seus nascimentos65. Ambos falam da constelação de Libra, que era tida como

amplamente favorável. Em Horácio, porém, Libra refere-se especificamente à constelação;

já na construção elaborada de Pérsio, não apenas Libra mas também Gemini, além de

evocarem as constelações, podem ser lidos com seu sentido próprio de 'balança' e '(irmãos)

gêmeos'. Ambos falam que Júpiter, de algum modo, protegeu-os de Saturno. Ocorre que

a influência astrológica de Júpiter era tida como positiva, ao passo que Saturno

apresentava uma influência negativa; na verdade, mais do que isso: o influxo de Saturno

no nascimento de alguém determinava mesmo uma morte precoce.66 Mas a influência de

um astro bom anulava – ou ao menos diminuía – a dos maus.67

62 Cf. em especial a décima primeira Ode do primeiro livro. 63 Cf. Suetônio, Vida de Augusto, 94. 64 Cabe, não obstante, lembrar a afinidade dos estóicos com a astrologia – é verdade que o termo ‘astrologia’ para os estóicos deva ser tomado com sentido mais amplo do que aquele pelo qual hoje é entendido; para um estudo sobre tal relação, cf. A. JONES, “Os estóicos e as ciências astronômicas”, em especial as pp. 373-378, in: INWOOD (2006). 65 Pérsio, v. 51 e Horácio, v. 21. 66 Pode-se, outrossim, supor que Horácio, ao chamar Saturno de ímpio, se reporte ao fato de que ele teria – segundo o mito de Crono, um dos titãs, com o qual Saturno fora identificado – devorado seus próprios filhos; cf. CERRATI, op. cit., p. 141. 67 Cf. DOLÇ (1949), p. 204.

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No verso 52, dirá que as espécies de homens são muitas (mille hominum species), e

passará a enumerar diversas ocupações que eles exercem. Tais atividades levam à dispersão

e à alienação, e tardiamente acabam por dar-se conta disso.

mille hominum species et rerum discolor usus;

uelle suum cuique est nec uoto uiuitur uno.

mercibus hic Italis mutat sub sole recenti

rugosum piper et pallentis grana cumini, 55

hic satur inriguo mauult turgescere somno,

hic campo indulget, hunc alea decoquit, ille

in uenerem putris; sed cum lapidosa cheragra

fregerit articulos ueteris ramalia fagi,

tunc crassos transisse dies lucemque palustrem 60

et sibi iam seri uitam ingemuere relictam.

[Inúmeras as espécies de homens e variada a necessidade de coisas: Cada um tem seu querer, e não se vive com um único objetivo. Este troca, sob o sol nascente, mercadorias Itálicas pela rugosa pimenta e por grãos do cominho que amarelece68; 55 Outro, saturado, prefere inchar-se com o irrigante sono; Outro se entrega ao Campo de Marte, os dados arruínam este outro,

| aquele Se deixa corromper por Vênus; mas quando a pedregosa gota Tiver rompido as articulações, ramas de uma faia envelhecida, 59 Então lamentarão tardiamente os dias grosseiros e a luz pantanosa

| que passaram, E a vida que foi deixada por eles para trás.]

Nos versos 52-53, Pérsio reelabora formalmente o conceito do famoso dito de

Terêncio69: quot homines tot sententiae, e a expressão uelle suum cuique (v. 53) é calcada na

continuação do mesmo verso terenciano, suus quoique mos; a alteração de suus mos 'seu

costume' por suum uelle 'seu querer', no entanto, é significativa, e é esse ponto que Pérsio

desenvolve em seguida.

68 Segundo Plínio Velho, um dos efeitos provocados pelo cominho era o de provocar a palidez; cf. Plínio Velho, História Natural, XX, 159. 69 Terêncio, Formião, v. 454. Horácio dissera o mesmo, com outras palavras (Sátiras, II, 1, vv. 27-28): quot capitum uiuunt, totidem studiorum/ milia [Quantas milhares de cabeças vivem, tantos milhares são os interesses]; cf. tb. Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 80-81.

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Entre os versos 54 a 58, enumera, com a anáfora de pronomes demonstrativos (hic,

hic, hunc, ille), diversos caracteres humanos e suas atividades. O vazio a que conduz a alma

que leva uma vida assim é denunciado a partir do verso 58 – quando chegar o momento

de olhar para trás e vir que sua vida foi desperdiçada, virá o arrependimento tardio70. De

fato, podemos entrever nas atividades elencadas, diversas paixões – a avareza, a gula, a

preguiça, a vaidade e a luxúria – que, se não forem domadas e limitadas, acabam por

limitar e domar o homem. Chama a atenção o poeta para o engano de ver nessas coisas

mesmas o sentido da vida, e temos aqui uma reelaboração dos seguintes versos de

Horácio71:

quemuis media elige turba: 25

aut ob auaritiam aut misera ambitione laborat.

hic nuptarum insanit amoribus, hic puerorum:

hunc capit argenti splendor; stupet Albius aere;

hic mutat merces surgente a sole ad eum, quo

uespertina tepet regio 30

[ Escolhe quem queiras em meio à turba: 25 Ele sofre ou pela avareza ou por uma infeliz cobiça. Este enlouquece pela paixão a uma mulher comprometida, aquele

| por rapazes; O brilho da prata cativa este, Álbio estupefaz-se pelo bronze;

Este outro transfere mercadorias do local do sol nascente para o local Que está aquecido ao pôr-do-sol.72 30]

Além da forma, que se vale da anáfora do pronome demonstrativo – seguindo uma

fórmula oratória –, que é retomada por Pérsio, vemos também Horácio descrever

personagens que irrefletidamente obedecem a suas paixões, seja a avareza seja a luxúria. Já

aparece, com efeito, em Horácio, o tema do mercador que troca mercadorias itálicas por

outras vindas do Oriente, que Pérsio apresenta no verso 54. De fato, quando o volaterrano

70 Como vimos no capítulo anterior, em sua terceira sátira (vv. 35-38), Pérsio pede como castigo aos tiranos que eles possam um dia contemplar a virtude que deixaram de buscar, quando se darão conta de que deixaram de lado o que realmente importava na vida; cf. hic, capítulo 2.1, p. 27 ss. 71 Horácio, Sátiras, I, 4, vv.25-30. 72 i. e., do Oriente para o Ocidente.

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diz sub sole recenti (sob o sol nascente)73, constrói uma expressão que contém duplo

sentido, pois que, além da idéia do comerciante que acorda cedo para fazer seu negócio74,

temos, como se mostra no verso seguinte, um comércio com produtos vindos do Oriente:

a pimenta da Índia, de que diz rugosum porque era deixada ao sol até ficar escura e

enrugada, e o cominho, vindo sobretudo do Egito e da Etiópia, usado como condimento,

e também para prevenir náusea e acidez no estômago75.

No verso 56, Pérsio menciona o ato de 'inchar-se com o sono irrigante' (turgescere

inriguo somno). Essa imagem se explica pelo fato de que o sono teria a propriedade de

irrigar as artérias cansadas, segundo a fórmula dada por Vergílio, em sua Eneida76: fessos

sopor inrigat artus.

Com a conjunção at (v. 62) marcando uma forte oposição ao que foi exposto nos

versos acima vistos, Pérsio contrapõe aquelas atividades à de Cornuto, que passa as noites

debruçado em livros para poder transmitir aos seus discípulos os ensinamentos de

Cleantes.

at te nocturnis iuuat inpallescere chartis;

cultor enim es77 iuuenum purgatas inseris aures

fruge Cleanthea. petite hinc, puerique senesque,

finem animo certum miserisque uiatica canis. 65

[A ti, ao contrário, agrada empalidecer por sobre os papéis noturnos, És, com efeito, um cultivador: semeias os purgados ouvidos dos jovens Com as messes de Cleante. Buscai aqui, crianças e senhores, A finalidade certa para o espírito e as provisões para as infelizes cãs. 65]

O verbo inpallescere contrapõe-se ao particípio presente pallens do verso 55. Lá era

o cominho que fazia a pessoa pálida, aqui a palidez tem um sentido positivo, ela é

adquirida pela dedicação aos estudos. O uso do incoativo serve para ressaltar a progressiva

73 Cf. surgente a sole de Horácio, v. 29. 74 Mais abaixo, Pérsio apresentará de novo esta idéia, quando elaborar a alegoria da Auaritia, vv. 132-141; cf. hic, capítulo 3.2, pp. 117 ss. 75 Cf. Plínio Velho, História Natural, XII, 26 e 29, e XIX, 160. 76 Vergílio, Eneida, III, v. 511; cf. também Lucrécio, IV, 904-905. 77 Em alguns manuscritos o es não aparece; seguimos a leitura de Villeneuve.

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mudança de estado78, em outras palavras, utilizando-o, quer Pérsio aqui representar a

palidez que vai adquirindo seu mestre à medida que avançam seus estudos. Demais, pode-

se ressaltar que Pérsio apresenta em diversos momentos de sua obra palavras que se

referem à 'palidez'79: por vezes com um valor positivo, uma palidez adquirida pela leitura,

estudo e reflexão; por vezes, no entanto, a palidez apresenta um aspecto negativo ligado à

loucura ou à vergonha80.

Em seguida temos uma metáfora em que a figura do mestre, do mesmo modo

como ocorre na famosa 'Parábola do Semeador'81, se confunde com a daquele que deita

sementes à terra. Cícero já chamara a filosofia 'cultura animi'82. O verbo purgare no

contexto da metáfora apresenta a idéia de limpar o campo de pedras e outros obstáculos ao

plantio; não é inusitado esse valor, tendo o mesmo Cícero empregado a construção

purgare locum falcibus a fim de indicar a ação própria para que, em seguida, se pudesse

proceder à semeadura83. O mais ousado da imagem é a mistura de planos, pois dentro da

metáfora aparecem os ouvidos que hão de ser o campo a ser semeado pelas messes de

Cleante. Diga-se ainda que a própria construção inseris aures fruge por inseris auribus

frugem é insólita84.

Temos em purgatas aures um valor material – a limpeza dos ouvidos, feita com

vinagre –, e outro metafórico, significando um espírito que foi preparado para receber a

boa doutrina85. O uso de ouvidos (aures) para indicar o instrumento pelo qual se recebe o

ensinamento é freqüente. Lembremos a primeira Epístola do primeiro livro de Horácio,

em que ele dissera86: nemo adeo ferus est, ut non mitescere possit,/ si modo culturae patientem

commodet aurem [Ninguém é tão selvagem que não possa ser amansado/ Se tão-somente

78 Cf. CONTE et alii (2006), p.176. 79 Além de inpallescere, serão utilizados em sua sátira o adjetivo pallidus, o substantivo abstrato pallor e nada menos que dez vezes o verbo palleo; cf. BOUET et alii (1978), p. 154. 80 Cf. v. 15 desta mesma sátira: pallescentis mores [costumes que empalidecem (de vergonha)]; cf. supra, p. 72. 81 Mateus 13: 1-8, Marcos 4: 1-9 e Lucas 8: 4-8. 82 Cícero, Tusculanas, II, 5, 13. 83 Cícero, ibidem, V, 23, 65. 84 Cf. DOLÇ (1949), p. 209. 85 Em relação ao uso metafórico de (purgatae) aures, cf. RECKFORD (1962), p. 497. 86 Horácio, Epístolas, I, 1, vv. 39-40; cf. nossa introdução, pp. 3-4.

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aplicar um ouvido atento aos ensinamentos]87. Acrescente-se ainda que Cleantes aqui

está metonimicamente pela escola estóica como um todo88.

Em seguida, Pérsio exorta jovens e anciãos a buscar o reto caminho, com uma

exortação que, na realidade, é uma paráfrase à fórmula epicurista para chamar os jovens a

participar da escola. Conforme as palavras da Professora Ilaria Ramelli89:

Persio – secondo un modulo che trova un antecedente celebre nell'apertura della

Lettera a Meneceo di Epicuro – esorta tutti, giovani e vecchi, a mettersi alla

scuola di filosofia di Cornuto. Non è mai troppo presto per iniziare a praticare la

filosofia (vv. 66-73), poiché questo equivale a perseguire la libertà, che è necessaria

a ognuno (libertate opus est, v. 73).

Após o convite, aparece um interlocutor disposto a conhecer os ensinamentos. Mas

pretende começar no dia seguinte... Com esse mote, aparece, entre os versos 66 e 72, um

pequeno diálogo, em que Pérsio condena aquele que sempre adia o início dos estudos

para amanhã, pois o hoje já é o amanhã de ontem, e, quando o amanhã chegar, será ele

novamente um hoje, e assim se seguirá indefinidamente o adiamento, até que os anos se

tenham passado, sem que a escolha fundamental da vida tenha sido feita, que é a busca da

sabedoria.

"cras hoc fiet." idem cras fiat. "quid? quasi magnum

nempe diem donas!" sed cum lux altera uenit,

iam cras hesternum consumpsimus; ecce aliud cras

egerit hos annos et semper paulum erit ultra.

nam quamuis prope te, quamuis temone sub uno 70

uertentem sese frustra sectabere canthum,

cum rota posterior curras et in axe secundo.

["Farei isso amanhã", e amanhã farás o mesmo... "Quê!?, | naturalmente parece excessivo

O dia que me concedes." Mas, ao raiar o outro dia,

87 No verso 7 do mesmo poema, Horácio usara a expressão purgatam aurem com o mesmo significado. Cf. tb. Lucrécio V, 44. 88 Há um estudo de N. Festa que mostra a relação de Pérsio com Cleantes (‘Persio e Cleante’); nele, o estudioso italiano demonstra que Pérsio traz presente não só o ‘Hino a Zeus’, como outras obras do estóico; um ponto interessante em relação a tal influência nesta sátira é o fato de que Cleantes costumava apresentar os vícios de modo alegórico, como Pérsio fará no decorrer do poema; cf. PIA (2007), pp. 3 e 7. 89 Cf. RAMELLI, I. "Saggio Introduttivo", p. 24, in: Cornuto (2003).

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Já consumimos o amanhã de ontem. Eis que um outro amanhã Terá levado embora estes anos, e sempre haverá um outro amanhã

| um pouco adiante. Pois, embora tu estejas próximo, e embora tu estejas sob um único e

| mesmo carro, Ainda que, como uma roda traseira e no segundo eixo, corras , 71 Em vão ficarás tentando alcançar a roda que gira à frente.]

Este diálogo retoma o início da terceira sátira, em especial os versos 10 a 14, em

que o protagonista começa a se utilizar de falsos argumentos para não começar a estudar90.

A imagem dos versos 70-72 ilustra materialmente – dar uma imagem concreta e material

a um conceito é recurso habitual do poeta91 – a advertência ao interlocutor: isto é, aquele

que nunca se apresenta decididamente para seu intento, e adia mais e mais um pouco,

ficará sempre como uma roda traseira, que, por mais que gire e gire, estará sempre atrás da

roda dianteira. Tanto temo, 'timão do carro, da charrua', como canthus, 'aro de ferro que

envolve a roda', são usados metonimicamente, isto é, são partes que significam o todo,

'carro' e 'roda', respectivamente.

Se na terceira sátira Pérsio usara uma metáfora para elucidar o quanto é importante

que se comecem os estudos enquanto se é ainda barro úmido e maleável, aqui Pérsio

entrará diretamente no debate sobre o que é liberdade, e da importância de alcançar a

verdadeira liberdade. Se lá tínhamos o caminho da sabedoria por meio do estudo, aqui

teremos o caminho da liberdade por meio da sabedoria.

Assim, no verso 73, inicia-se a segunda parte do poema.

90 Cf. hic, capítulo 2.1, pp. 17 ss. 91 Cf. RECKFORD (1962), p. 484.

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3.2 Solum sapientem esse liberum, et omnem stultum seruom

Após o surgimento de um interlocutor que, ao mesmo tempo em que se interessa

em ingressar numa vida de estudos, tem preguiça de fazê-lo, Pérsio, aproveitando a deixa

– que, de fato, serviu como uma rápida e eficaz transição1 –, passará a buscar definir o que

é a verdadeira liberdade, por meio de um discurso com diversas observações agudas, com

definições pictóricas e entremeado de diálogos. Justamente para iniciar esta segunda parte,

Pérsio dirá a frase que nos serve de título a este trabalho: ‘libertate opus est’, fazendo em

seguida a ressalva de que não se trata da liberdade do escravo liberto (vv.73-82).

libertate opus est. non hac2, ut quisque Velina Publius emeruit, scabiosum tesserula far possidet. heu steriles ueri, quibus una Quiritem 75 uertigo facit! hic Dama est non tresis agaso, uappa lippus et in tenui farragine mendax. uerterit hunc dominus, momento turbinis exit Marcus Dama. papae! Marco spondente recusas credere tu nummos? Marco sub iudice palles? 80 Marcus dixit, ita est. adsigna, Marce, tabellas. haec mera libertas, hoc nobis pillea donant.

[A liberdade é necessária. Não aquela pela qual cada um da tribo Velina | que mereceu chamar-se

1 "Esta transición a la necesidad de la libertad, aunque parezca abrupta, es lógica y natural si se piensa en el estado de esclavitud moral a que está sometido quien se pasa la vida difiriendo siempre el estudio de la sabiduría"; DOLÇ (1949), p. 210 2 A crítica textual apresenta aqui divergências com relação à pontuação: para alguns editores ela deveria ser: ‘libertate opus est. non hac: [...]’ (Villeneuve, Clausen). Para outros, a leitura mais adequada seria: ‘libertate opus est non hac: [...]’ (Nikitinski).

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Públio tem direito a receber uma cota de farinha mofada ao apresentar Sua senha. Ah estéreis da verdade!, aos quais uma volta sobre si mesmo Gera um Quirite. Este Damas é um palafreneiro que não vale três tostões. Remelento por causa do mau vinho e mentiroso até por um

| insignificante grão. Seu senhor o faz dar uma volta sobre si mesmo, e no espaço do tempo

| de um giro Eis que sai Marco Damas. Caramba! Sendo Marco fiador, recusas-te tu A emprestar dinheiro? Empalideces quando Marco é juiz? 80 Se Marco disse, é verdade. "Marco, assina o contrato." Esta é a liberdade pura! Os barretes no-la proporcionam!]

Duas são as intervenções do Estado no aprovisionamento alimentar: a annona e a

frumentatio. Enquanto a primeira diz respeito à atribuição genérica do Estado para garantir

que haja alimento suficiente com preços estáveis para a população, a segunda garante a

distribuição pública de alimentos a pessoas carentes. A frumentatio tem, a partir de

Augusto, um praefectus frumenti dandi; o alimento é distribuído mensalmente, por turnos,

em um único lugar (a porticus Minucia frumentaria). Pérsio se refere justamente à

frumentatio nos versos 73-75. O scabiosum far faz alusão aos grãos de má qualidade que

eram distribuídos na ocasião das frumentationes; o diminutivo tesserula3 (v. 74) é também

depreciativo. A construção Velinā Publius é recorrente em inscrições, para indicar que

alguém pertence a determinada tribo – no caso, 'Públio da tribo Velina'. Ao relacionar

quisque a Publius, o poeta indica todo aquele que alcançou sua cidadania.

A crítica de Pérsio por certo abrange uma questão social importante, pois de um

lado deixa entrever aquele que mantém o poder angariando demagogicamente o apoio

popular com a distribuição de provisões que, de fato, não passam de uma espécie de

eufemístico suborno; por outro lado, os cidadãos que aceitavam esse aliciamento, de certo

modo não só vendiam a sua liberdade, como também restringiam a liberdade civil dos

demais cidadãos. Com efeito, segundo narra Suetônio, Augusto cogitou abolir in

perpetuum as frumentationes, pois, ao fiar-se nelas, o cultivo dos campos acabava

3 tessera é, em linguagem técnica, a senha que se precisava apresentar para que se obtivesse o alimento, quando de sua distribuição.

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descuidado. Percebendo, porém, que as frumentationes necesariamente acabariam

voltando, devido à sua popularidade, desistiu do intento4.

Em todo caso, o objetivo de Pérsio é certamente mostrar que a liberdade civil não

é liberdade genuína, por isso ele usa a forte expressão steriles ueri ao referir-se àqueles que

acreditam que a manumissio pode transformar uma pessoa, como que por encanto, de

escravo em um ser humano pleno de liberdade. O ato da manumissio consistia dos

seguintes passos: na presença de um praetor, o lictor, depois de tocar o escravo com uma

vara – a qual Pérsio designa, no verso 88, por uindicta; no verso 175, por festuca –,

pronunciava a fórmula 'hunc hominem liberum esse aio'. Em seguida, o dominus tomava a

mão do escravo – donde a designação manumissio –, e, como sinal de que este estava livre

para ir para onde quisesse, o fazia dar uma volta sobre si mesmo (uertigo, v. 76). Por fim,

ratificando as palavras do lictor, dizia 'hunc hominem liberum esse uolo'. 5

Como exemplo de que este ato transforma a condição social da pessoa, mas não ela

própria, Pérsio mostra o palafreneiro6 Marco Damas7, um escravo cuja conduta sempre

fora desprezível, a ponto de, a par de ser preguiçoso e 'beberrão', chegar a mentir para

obter em troca um insignificante grão. Será que, ao receber a sua manumissio, ele

imediatamente se tornará, ipso facto, um cidadão respeitável? Alguém o aceitaria de bom

grado como fiador? Não ficarás pálido se Damas te aparecer como juiz? Passariam a ser

tidas como confiáveis todas as coisas que ele diz?

Pérsio, no verso 81, exclamará ironicamente: haec mera libertas! (Esta é a liberdade

pura!), isto é, complementa, aquela libertas que os pillea representam. A forma pilleum é

rara em textos literários, tendo sido empregada anteriormente por Plauto; no uso comum,

era masculina – pileus. A opção de Pérsio por pilleum possivelmente também traga sua

carga de ironia, fazendo referência a um falar desleixado, quiçá próprio de um Marco

4 Suetônio, Vida de Augusto, 42, 4. 5 Cf. Tito Lívio II, 5, 10. 6 A imagem de um servo como alguém inepto é proverbial; é famoso o verso de Varrrão (Sátira Menipéia, v. 367B): infantiorem quam meus est mulio [É mais incapaz que meu almocreve]. Horácio já usara o mesmo agaso que aparece em Pérsio, em referência a um camarista desastrado, incapaz de servir um prato sequer sem criar problemas (Sátiras, II, 8, v. 72); cf. tb. TOSI (2000), p. 193, § 415. 7 O nome Damas para um escravo é também freqüente em Horácio; cf. VILLENEUVE (1918²), p.128.

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Damas. Seja como for, o pileus – ou pilleum – era o gorro que o recém-liberto punha em

sua cabeça para indicar sua nova condição8.

Convém lembrar que, nesta separação entre liberdade civil e liberdade espiritual,

Cornuto era, ele próprio, um liberto, ao que tudo indica da gens Annaea, e, como sugere

Ramelli9:

questa riflessione poteva essere ben presente negli insegnamenti del maestro di Persio, ad esempio come l'esperienza personale dell'esilio è ben presente nelle Diatribe di Musonio Rufo. Persio prosegue, forse proprio ricordando le considerazioni di Cornuto, che libertà non significa vivere come ci pare e che non basta questo per essere, iperbolicamente, 'più libero di Bruto', colui che assassinò Giulio Cesare in nome, appunto, della libertas – ma intesa in senso politico.

Uma voz surge para contrapor-se, e o poeta então é questionado sobre o que seria

a liberdade, se não for ela poder fazer aquilo que se deseja.

"an quisquam est alius liber, nisi ducere uitam cui licet ut libuit? licet ut uolo uiuere, non sim liberior Bruto?" "mendose colligis" inquit 85 Stoicus hic aurem mordaci lotus aceto, "hoc relicum accipio, 'licet' illud et 'ut uolo' tolle." "uindicta postquam meus a praetore recessi, cur mihi non liceat, iussit quodcumque uoluntas, excepto siquid Masuri rubrica uetauit10?" 90

"E por acaso alguma outra pessoa é livre, se não aquela a quem | é permitido conduzir sua vida

Como ela bem entende? É-me permitido viver como eu quero: Não seria eu mais livre que Bruto?" "Fazes uma falsa dedução" , responde Este estóico, tendo lavado seu ouvido com acetona mordaz: 86 "Aceito esta parte: 'é permitido'; mas suprime aquele 'como eu quero.'" "Depois que, recebido o golpe da varinha, eu me afastei do pretor,

| como senhor de mim mesmo, Por que não me seria permitido (fazer) o que quer que tenha

| ordenado a vontade, Exceto aquilo que a rubrica de Masúrio Sabino11 tiver proibido?" 90

8 Cf. Pérsio, 3, 106, cf. hic, capítulo 2.2, p. 54. 9 RAMELLI, I. "Saggio Introduttivo", pp. 24-25, in: Cornuto (2003). 10 Clausen prefere aqui a versão 'corrigida' uetabit; seguimos neste passo a opção de Villeneuve.

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A indagação do interlocutor é introduzida pela partícula an; com ela, indica que

sua pergunta de fato é retórica, ou seja, ele quer deixar manifesto que, em sua opinião, a

resposta à questão proposta é necessariamente negativa12. Com isso, marca claramente que

não consegue imaginar pessoa mais livre do que aquela a quem é permitido viver

conforme sua vontade. Para tornar sua fala mais impactante, o interlocutor evoca a figura

de Bruto – em uma pergunta retórica em que se vale de um subjuntivo de protesto (non

sim /liberior Bruto?, vv. 84-85)13 –, com o que quer mostrar que nem ele, Bruto, o

símbolo da liberdade romana, pode ser mais livre do que aquele que tem em suas mãos a

condição de conduzir seu destino seguindo os rumos apontados por seus anseios14.

Como vimos há pouco, para a professora Ilaria Ramelli, a personagem invocada,

Bruto, é o assassino de César; porém, de fato, nada impede que o interlocutor se refira

(também) ao primeiro cônsul de Roma15: ambos ligaram seu nome à libertas, entendida do

ponto de vista político. Essa referência evidencia novamente que o interlocutor de Pérsio

está sempre e necessariamente relacionando liberdade à liberdade civil. Como exemplo

diverso, podemos ver Epicteto que, ao buscar personagens históricos para ilustrar seu

conceito de pessoas livres, lembra o cínico Diógenes e Sócrates: não porque fossem

libertos ou filhos de homens livres, mas porque nada nem ninguém tinha o poder de

aprisionar sua alma.16

O estóico que a seguir toma a palavra teve seus ouvidos purgados com acetona

mordaz. Como já vimos, a palavra aures é empregada muitas vezes com o sentido de

11 "Masurio Sabino era un famoso jurista de los tiempos de Nerón [...] ; fué autor de obras de derecho civil, donde comentaba las antiguas y contemporáneas disposiciones legales. Se escribían en minio los títulos o primeras palabras de cada ley : de donde, la voz rubrica, significando texto o página [...] ; parece ser éste el primer pasaje poético en que se usa rubrica en el sentido que había tomado en la lengua jurídica." DOLÇ (1949), p. 214. 12 Cf. CONTE (2006), p. 50. 13 A lição dos melhores manuscritos, faça-se esta ressalva, hesita entre a forma sim e a forma sum; a mesma hesitação é encontrada nos editores. 14 Construção semelhante à de Pérsio (cui licet ut libuit, vv. 83-84), fora empregada por Cícero, em referência à liberdade de expressão: cui quod libet hoc licet [A quem é lícito aquilo que (lhe) agrada] (Filípicas I, 13, 33). Interessante é a reflexão, com o aproveitamento da mesma paronomásia – licet / libet –, feita por Santo Agostinho: ne fiat quod non licet etiamsi libet [Para que não se faça o que é não lícito, ainda que agrade] (Cidade de Deus, XXII, 23). 15 Nikitinski, por exemplo, ao comentar o nome Bruto (v. 85) afirma, peremptoriamente: "L. Iunius Brutus, qui populum Romanum a rege Tarquinio Superbo oppressum in libertatem uindicauit". (2002), p. 226. 16 Cf. Epitcteto, Discursos, IV, 1, 151-169.

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'instrumento com o qual se recebem os conhecimentos de um mestre'; os ouvidos

purgados são aqueles que apreenderam as boas lições17. A iunctura – acris, sem dúvida –

entre o substantivo 'acetona' (acetus) e o adjetivo 'mordaz' (mordax, v. 86) põe em relevo o

fato de que, no aprendizado, muitas vezes o tom satírico é empregado para que se possa

fazer entender o ridículo de verdades aparentes e falsas idéias18. O Stoicus quer fazer seu

interlocutor ver que, diferentemente do que este supõe, não basta a liberdade civil para

que se possa fazer o que se queira. Parece-nos plausível a hipótese de que, ao dizer que a

liberdade interior é a única verdadeira, Pérsio também nos esteja a dizer que muitas vezes,

como nos tempos de Nero, ela é a única verdadeiramente permitida, e então um segundo

nível de leitura nos trouxesse outra vez uma crítica política cifrada em sua sátira. Trilha

por esse caminho a tese de Coviello19:

El adversario concluye que la libertad que le acaban de otorgar le permitirá ser más libre que Bruto, y el estoico de orejas lavadas con vinagre intenta desengañarlo: la libertad civica nada vale mientras el poder de un solo hombre esté supra leges, y el ejemplo más claro en este sentido es, precisamente, el caso de Tarquinio al que se alude con la mención de Bruto. De esta manera, Persio consigue establecer un paralelismo entre las situaciones políticas a las que se refiere y su propio presente de enunciación, esto es, entre la situación de injusticia y despotismo con las que Bruto acaba, y un presente político en el que el poder absoluto habitualmente degenera en tirania, con la diferencia de que el presente aún no ha dado Bruto alguno que valga. Sin mencionar a Tarquinio, y sin mencionar a Nerón, Persio pone a ambos en relación al cuestionar la validez de la actual libertas civica y distanciarla del tipo de libertad que Bruto había conseguido para los romanos en el pasado.

O interlocutor, no entanto, segue o primeiro plano do diálogo. Para ele, a partir do

momento em que alguém passou a ser um cidadão livre - o uso da forma coloquial uetauit

por uetuit parece fazer ressaltar de maneira realista a condição social de origem do recém-

liberto interlocutor –, a única ação que lhe será vedada praticar advirá dos limites impostos

pelas rubricas de Masúrio, i.e., pelas leis. Observe-se, contudo, que esses limites, para um

cidadão romano, não eram de modo algum uma diminuição de sua liberdade. É preciso

17 RECKFORD (1962), p. 497. 18 Cf. hic, capítulo 3.1, p. 76. 19 COVIELLO (2005), pp. 314-315.

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deixar claro que as idéias modernas de liberdade civil de um indivíduo não são as mesmas

que possuía um romano. No dizer de Ortega y Gasset20:

[el] sentido negativo de libertas – vida pública sin reyes – tiene, por fuerza, su reverso positivo, a saber: vida pública según las instituiciones republicanas y tradicionales de Roma. [...] Por tanto, Cicerón se sentía libre cuando era mandado por las magistraturas, conforme las leyes que el pasado romano había establecido hasta la fecha. Ahora bien, esas leyes no habían jamás ortogado ninguna de las libertades que proclamó el liberalismo europeo contemporáneo ni, en verdad, ninguna otra parecida. La constituición política de Roma no fué nunca 'liberal'. Y, sin embargo, se sentía libre bajo ella nuestro Cicerón.

O estóico retoma a palavra e mostra que a afirmação do interlocutor está, na

realidade, longe de se comprovar. Como exemplo, demonstra que não se pode fazer

aquilo que não se sabe fazer, isto é, quem não conhece a arte de um ofício não tem

condições de exercê-lo:

disce, sed ira cadat naso rougosaque sanna, dum ueteres auias tibi de pulmone reuello. non praetoris erat stultis dare tenuia rerum officia atque usum rapidae permittere uitae; sambucam citius caloni aptaueris alto. 95 stat contra ratio et secretam garrit in aurem, ne liceat facere id quod quis uitiabit agendo. publica lex hominum naturaque continet hoc fas, ut teneat uetitos inscitia debilis actus. diluis elleborum, certo conpescere puncto 100 nescius examen? uetat hoc natura medendi. nauem si poscat sibi peronatus arator luciferi rudis, exclamet Melicerta perisse frontem de rebus.

[Aprende: mas que de teu nariz caia tua ira e um rugoso gracejo, Enquanto arranco de teu pulmão velhas avozinhas. Não era tarefa do pretor dar aos tolos os sutis deveres morais das coisas, E, mais ainda, permitir o imediato bom uso da vida; 94 Mais rapidamente poderás adaptar uma sambuca21 a um valete

| bem fornido.

20 ORTEGA Y GASSET (1960), pp. 119-120; o grifo que consta da citação é do autor. 21 Instrumento grego; espécie de lira com várias cordas, semelhante a uma harpa.

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A razão se levanta contra (isso), e sussurra em teu ouvido Que não é lícito fazer-se aquilo que alguém que, ao fazê-lo,

| cometerá um erro. A lei comum dos homens e a natureza contêm esta norma sagrada: Que a ignorância incapaz se abstenha de ações que lhe são vetadas. Preparas o heléboro não sabendo parar o fiel da balança 100 No ponto certo? A natureza do ofício do médico te proíbe de exercer

| a profissão. Se um arador de belas botas que desconhece a estrela da tarde Pedir um navio, Melicertes há de exclamar que já não existe Vergonha de nada.]

Em sua primeira sátira, o interlocutor de Pérsio aconselha-o a ter cautela, pois

pessoas poderosas poderiam se incomodar com sua mordacidade.22 Ao defender seu direito

de escrever sátira, Pérsio invoca Lucílio e depois Horácio, dizendo que este 'tocava na

ferida' do amigo e, ao mesmo tempo, ensinava-lhe e o fazia rir, com seu nariz

zombeteiro.23 Pérsio aqui pede a seu interlocutor exatamente isto: que não se deixe tomar

pela ira ao ouvir seus defeitos serem mencionados, mas que aprenda ao ver o quanto eles

são ridículos. O verso 91, com efeito, dialoga com os versos 108 a 110 da primeira sátira,

em que ele dissera: "uide sis ne maiorum tibi forte/ limina frigescant: sonat hic de nare

canina/ littera" [Acautela-te, por favor, para que os limiares dos senhores não se esfriem

para ti, lá ressona do nariz a letra canina]24. Pérsio pede, pois, que seu (poderoso?)25

interlocutor troque a littera canina – famosa definição criada por Pérsio da letra R26 para

ilustrar, com um som, a irritação de alguém – por um rugoso gracejo.

A plástica e feliz metonímia 'velhas avozinhas' (ueteres auiae, v. 92) que habitam os

pulmões do interlocutor – e que Pérsio quer arrancar – está a indicar as inveteradas idéias

que estão incrustadas em sua alma, e que são verdadeiras como contos de velhinhas27.

22 Pérsio 1, vv. 107-110. 23 Pérsio, 1, vv. 116-118. 24 Cf. SCHERER (2004), pp. 76-77. 25 Talvez aqui possamos encontrar ainda um indício de que Nero é intermitentemente evocado como interlocutor ou personagem na sátira persiana. 26 Cf. BROUWERS (1973), p. 253. 27 Referências às aniles fabellae, com esse preciso sentido, são encontradiças na literatura latina; cf. Cícero, De Natura Deorum, III, 5, 12 e Horácio, Sátiras II, 6, 77. Tosi apresenta diversos exemplos na literatura clássica, em que se marca clara oposição entre o que seriam superstitiones aniles (expressão cunhada por Cícero, De Natura Deorum, II, 28, 70) e a verdade filosófica; cf. TOSI (2000), p. 313-314, §657.

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pulmo (v. 92) pode ser entendido como praecordia ou pectus; a opção por essa palavra,

contudo, não é gratuita, e remete ao início do poema, em especial aos versos 10 a 13 desta

sátira28.

Na seqüência, a liberdade como algo que somente o sábio pode alcançar – própria

ao estoicismo e que é o mote desta sátira – aparece na declaração de que o pretor, ao

oficializar a manumissio29, não tinha o poder de também transmitir sabedoria ao liberto;

assim, fora este um stultus e sua manumissio não lhe pudera trazer a mera libertas. As

sutilezas que se escondem por detrás de um conceito pouco claro30, as razões para os

deveres morais e as coisas que se devem pesar para que se possa escolher o justo em

momentos de divergência31, enfim as coisas cujo conhecimento é fundamental para se

alcançar a liberdade verdadeira, e que Pérsio apresentará em resumo entre os versos 104 e

112 – nada disso será magicamente recebido por alguém que possui liberdade civil: é

necessária a busca da sabedoria. Este é o bom uso da vida, e, com uma imagem cômica,

faz ver que ensinar isso a um tolo é mais difícil do que um sujeito grosseiro – a aparência e

o ofício traduzem fisicamente aqui sua alma32 – possa se adaptar a um instrumento

delicado, difícil e requintado como o era a sambuca, a qual costumava ser, aliás, executada

por uma mulher.

A liberdade de poder fazer o que se quer, enfatizada pelo interlocutor, apresenta

limites justamente na falta de conhecimento, como Pérsio mostra nos versos seguintes.

Assim, se alguém de condição livre sente a vontade de ser médico, ele não estará

automaticamente livre para exercer tal profissão. Para fazê-lo é necessário conhecimento

sobre a arte da medicina. Se um homem do campo cujo conhecimento das coisas do mar é

insignificante quiser comandar um navio, Melicertes – filho que Ino arrastou consigo

quando se jogou no mar, e que se transformou em Palemão33, deus marinho – ficará

indignado com a falta de vergonha que grassa nos tempos hodiernos.

28 Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 71-72. 29 Cf. supra, p. 95. 30 Cf. a introdução a este capítulo. 31 Cf. Pérsio 4, vv. 10-13. 32 calo altus, v. 95. 33 Os romanos assimilaram o deus Palemão a sua divindade Portunus, cujo atributo principal é o de ser um deus marinho a quem compete tomar conta dos portos.

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A ignorância – e este é um postulado que a própria natureza traz em si como

norma sagrada – deve abster-se de ocupar cargos para os quais não está preparada: a cada

um seu ofício, cada um exerce atividades para as quais está preparado. Os versos em que o

poeta menciona coisas que, por esta mesma razão – de não serem conhecidas –, seriam

ilícitas estão calcados nesta passagem da epístola que abre o segundo livro de Horácio34:

nauim agere ignarus navis timet, abrotonum aegro non audet nisi qui didicit dare; quod medicorum est 115 promittunt medici; tractant fabrilia fabri.

[Aquele que não conhece um navio, teme pilotá-lo; ninguém | ousa dar abrótano35

A um doente, senão aquele que aprendeu; o que é da competência | de médicos,

Só os médicos o fazem; quem trata de ferragens são os ferreiros. ]

A liberdade, como se verifica, encontra limites na própria falta de conhecimento,

independentemente da condição civil da pessoa. A substituição do abrótono, que fora

usado no exemplo horaciano, pelo heléboro é significativa, visto que o heléboro era a

planta usada para o tratamento de doenças mentais. E, enquanto Horácio lança uma

máxima genérica quanto ao fato de que só o marinheiro deve se aventurar a pilotar uma

embarcação, Pérsio traça um perfil divertido em que até um deus marinho acaba por

perder a paciência contra aqueles que, não tendo vocação para uma coisa, em nome de

uma pretensa liberdade de poder fazer o que bem entendem, se aventuram a singrar mares

desconhecidos. E isso é, indubitavelmente, uma desmesurada vergonha!

No prosseguir de sua sátira, Pérsio lançará uma série de interrogações que levam à

reflexão a respeito do que seria o recte uiuere, a ser conquistado por meio da filosofia: saber

diferenciar das aparências o que é verdadeiro, e aquilo que devemos buscar do que

devemos evitar; ser moderado, austero, afável para com os amigos; não ser pródigo nem

avaro.

34 Horácio, Epístolas, II, 1, vv. 114-116. 35 Planta medicinal.

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tibi recto uiuere talo ars dedit et ueris speciem dinoscere calles, 105 ne qua subaerato mendosum tinniat auro? quaeque sequenda forent quaeque euitanda uicissim, illa prius creta, mox haec carbone notasti? es modicus uoti, presso lare, dulcis amicis? iam nunc adstringas, iam nunc granaria laxes, 110 inque luto fixum possis transcendere nummum nec gluttu sorbere saliuam Mercurialem?

[ O estudo te tem dado a possibilidade de viver 104 Com talão escorreito, e te aplicas a distinguir aquilo que é aparência

| e o que é verdadeiro, Para que nenhuma aparência tintile enganadoramente com um cobre

| coberto de ouro? E as coisas que deveriam ser seguidas e as que, contrariamente, deveriam

| ser evitadas, Marcaste primeiramente aquelas com giz e, em seguida, estas com carvão? És moderado em teus desejos, mesmo que teu patrimônio seja modesto,

| és atencioso para com os amigos? Fecharias agora teus celeiros, abri-los-ia agora, 110 Poderias passar por cima de uma moeda caída na lama Sem engolir num sorvo a saliva Mercurial?]

Usando de perguntas, pois, nosso poeta faz ver uma série de requisitos para alguém

poder dizer-se verdadeiramente livre, coisas que estão muito além da simples manumissio.

As perguntas não se apresentam, porém, despidas de cores; ao contrário, Pérsio lança mão

de recursos estilísticos vários para torná-las mais vívidas, com o fito de gerar no ouvinte

maior interesse, evitando com isso que um discurso monocórdio – mesmo que justo – crie

dispersão na atenção do público. Assim, o poeta desafia os que se dizem verdadeiramente

livres a antes de mais nada se perguntarem se conseguem realizar plenamente as seguintes

condições:

1) Saber distinguir o verdadeiro do aparente (vv.104-106): A ars para os

romanos referia-se tanto à conduta, maneira de agir, quanto à habilidade ou o

conhecimento técnico para a realização de algo. Assim, temos diversos títulos de obras

que tratam de conhecimentos específicos para realizar determinados ofícios com o título

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de ars.36 No verso 105, o uso da palavra ars por Pérsio refere-se claramente à filosofia, por

meio de cujo estudo se alcança o conhecimento, o qual possibilita o reconhecimento da

ilusão e, conseguintemente, sua evitação; na célebre definição de Sêneca, lemos 'sapientia

[...] ars uitae est'37. A expressão rectus talus (v. 104) é a imagem a indicar uma vida em que

se tem firmeza pela capacidade de reconhecer o verdadeiro sem se deixar seduzir pelo

falso, e em que não se corre o risco de dar um mau passo. É ela tomada de Horácio, o

qual, numa dura crítica que faz a Plauto, diz que este quer encher seus bolsos de moedas,

não importando se para isso38 "cadat an recto stet fabula talo" [o enredo da peça fique

firme de pé ou tombe ao solo]. O som produzido pela moeda como metáfora para

identificar quando algo é verdadeiro e quando é uma falsificação era, ao que tudo indica,

proverbial39; em todo caso, a comparação entre filósofo e um experto em moedas não é

estranha ao estoicismo. Uma passagem em que Epicteto usa a mesma metáfora, e com o

mesmo intuito, é bastante ilustrativa40:

Por isso, a primeira e principal função do filósofo é testar suas representações e as distinguir, e não aceitar nenhuma que não tenha sido posta à prova. Notate bene: quando se trata de moeda – objeto que para nós oferece, suponho eu, interesse – inventamos uma ars e vários processos de que o experto em moedas se vale para testá-la: a visão, o tato, o olfato, e por fim a audição: ele joga ao chão a moeda e observa o som que ela produz. Ele não se contenta com fazê-la soar uma única vez, mas, pelo contrário, ele repete o experimento diversas vezes, tomando de empréstimo para si um ouvido de músico a fim de poder realizar a distinção necessária. Assim, ao tratarmos de assuntos em que nos parece importante distinguir quando nos enganamos e quando não nos enganamos, prestamos grande atenção às coisas que nos podem induzir em erro. Mas se se trata, ao invés, desta infeliz parte essencial de nossa alma, nós bocejamos, nós dormimos, e aceitamos a primeira representação que nos aparece: é que a antevisão do dano que nos causará não nos perturba.

2) Saber distinguir entre o que é bom (e deve ser seguido) e o que é mau (e

deve ser evitado) (vv. 107-108): Após podermos divisar a realidade com firmeza, cabe-nos

36 Assim, temos desde a Ars Poetica de Horácio até obras que brincam com esse conceito de 'livro para ensinar determinado ofício', como a Ars Amatoria (ou Ars Amandi), de Ovídio. 37 Sêneca, Ad Lucilium, 117, 12. 38 Horácio, Epístolas, II, 1, 176. 39 Cf. DOLÇ (1949), p. 218. 40 Epitcteto, Discursos, I, 20, 7-11.

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saber fazer a separação dentro dela entre o que é bom e o que é mau. O bem moral como

escopo principal da vida era, com efeito, fundamento essencial da moral estóica, daí

primeiramente encontrar o bem (prius, v. 108), conforme bem define M. Villeneuve41:

illa prius 'celles-là d'abord', parce que la position du bien moral comme fin de la vie était le principe fondamental de l'éthique stoïcienne. La vertu, pour les stoïciens, était quelque chose de positif: 'vivre conformément la nature'; le vice, étant la violation de cette loi, se définissait après la vertu et par rapport à elle.

Quanto à imagem usada por Pérsio, i. e., marcar algo positivo (quae sequenda) com

pedras brancas e algo negativo (quae euitanda)42 com pedras negras, ela já fora empregada

em contextos algo diversos pelo autor em outras sátiras. Na primeira sátira, após receber a

ameaça da littera canina43, ele diz ironicamente que tudo então para ele passará a ser honesto

– o termo que ele emprega é albus, que se tornara ao lado de niger proverbial para

distinguir o inocente e o culpado, respectivamente44. Na segunda sátira, Pérsio faz uma

homenagem a seu amigo Macrino, no dia de seu aniversário; para tanto, diz45: "hunc,

Macrine, diem numera meliore lapillo, / qui tibi labentis apponet candidus annos" [Marca este

dia, Macrino, com a melhor pedrinha / Que, branca, acrescentará para ti um ano aos anos

que passam]. A menção a um albus lapillus faz remissão ao costume de assinalar um dia

particularmente feliz com uma pedrinha branca, que acabou tornando proverbial a

expressão46. Segundo Plínio Velho, os trácios tinham por costume colocar numa arca uma

pedra branca para contar os dias felizes e uma negra para os tristes. No final da existência,

contavam-se as pedras para fazer um levantamento de sua vida.47

41 VILLENEUVE (1918²), pp. 135-136. 42 "Les expressions sequenda et euitanda répondent aux termes αἱρετά et φευκτά que les stoïciens appliquaient aux vertus et aux vices (cf. Sén. : Épist. 71, 2 : 'quotiens quid fugiendum sit aut quid petendum')", VILLENEUVE (1918²), p. 135. 43 Cf. supra, p. 100. 44 Cf. SCHERER (2004), p. 78. 45 Pérsio, 2, vv. 1-2. 46 Cf. Plínio Jovem, Ep. VII, 11, 3: diem notare candido calculo; cf. Catulo, 68, 147 e Marcial, IX, 52, vv.4-5; cf. também: ELVIRA, A. R. de. "Albo lapillo." in: Cuadernos de Filología Clásica - Estudios Latinos, 1 (2003), pp. 37-43. 47 Plínio Velho, História Natural, VII, 131; cf. DOLÇ (1949), p. 116.

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3) No verso 109, Pérsio menciona características pertinentes a um sábio, a

humildade, a afabilidade, a generosidade. Pérsio faz uma ligeira mudança na fórmula

consagrada de dulcis amicus, que ele passa a dulcis amicis; o sentido geral permanece o

mesmo, mas a expressão – que, ao que tudo indica, é uma novidade persiana48 – realça a

nossa ação frente ao outro. Nos versos seguintes, o poeta empregará o subjuntivo

potencial para indagar do interlocutor se ele é capaz de não ser pródigo nem avarento, se

ele é capaz não ser movido pela ganância. A divertida expressão saliua mercurialis (v. 112)

une a fórmula corrente mouere saliuam49 a Mercúrio, que, a par de ser o mensageiro dos

deuses, era também considerado o deus do lucro e da ganância. Talvez também possamos

ver com Dolç uma assacadilha de Pérsio dirigida contra os comerciantes de Roma, que

formavam a corporação dos 'mercuriales'50.

Serás livre quando puderes dizer verdadeiramente que alcançaste essas coisas; afinal,

a sabedoria, a liberdade e as virtudes são interdependentes, conforme nos ensina a

primeira parte do paradoxo estóico: solus sapiens est liber.51

'haec mea sunt, teneo' cum uere dixeris, esto liberque ac sapiens praetoribus ac Ioue dextro. sin tu, cum fueris nostrae paulo ante farinae. 115 pelliculam ueterem retines et fronte politus astutam uapido seruas in pectore uolpem, quae dederam supra relego funemque reduco.

["Essas coisas são minhas, tenho-lhes a posse." Quando puderes | dizer isso sinceramente, sê então

Livre e sábio, com a proteção dos pretores e de Júpiter. Se não, continuas sendo – como eras há pouco: de nossa farinha. 115 Manténs a mesma antiga pele, mesmo se, elegante apenas no rosto, Conservas a raposa astuta em teu coração desvaído.

48 Cf. DOLÇ (1949), p. 219. 49 Cf. expressões nossas, como 'salivar' ou 'ficar com água na boca'; Petrônio emprega construção semelhante, em que a expressão está em sentido próprio, i. e., refere-se a um prato saboroso (48, 2): quidquid ad saliuam facit [Tudo aquilo que dá água na boca]. Em sentido metafórico, aparece também em outros autores; Sêneca, por exemplo, escreve (Ad Lucilium, IX, 79, 7): Aetna tibi saliuam mouet [O Etna te dá água na boca], ou seja, a contemplação do vulcão provoca em Lucílio a vontade de escrever poemas. 50 Cf. DOLÇ (1949), pp. 219-220. 51 Cf . Horácio, Sátiras II, 7, vv. 83-84: ‘quisnam igitur liber? sapiens, sibi qui imperiosus, / quem neque pauperies neque mors neque uincula terrent’.

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(Assim sendo), retiro o que acima te outorgara e puxo de volta a corda.]

Para o interlocutor afirmar que é livre terá de poder dizer que possui as virtudes

elencadas a partir das perguntas feitas por Pérsio entre versos 104 e 112; a expressão

empregada pelo satírico na abertura do verso 114, haec mea sunt, é tomada de empréstimo

a uma fórmula jurídica usada para expressar solenemente direito de propriedade52. Ao

dizer, em seguida, esto liberque ac sapiens, Pérsio invoca, para tal, o favor de Júpiter e dos

pretores. Há de fato aqui um jogo de palavras: os pretores eram os magistrados

encarregados da manumissio53, e Ioue dextro faz alusão ao epíteto Liberator, dedicado a

Júpiter, i. e., era ele considerado o deus protetor da liberdade. Pode-se também lembrar

que era Júpiter o deus supremo dos estóicos, alma e razão soberana do mundo. liberque ac

sapiens, embora seja um equivalente sintático de et liber et sapiens, apresenta, no entanto,

uma especificidade semântica que justifica o opção do poeta por aquela forma: a

conjunção ac é usada sobretudo para dar relevo ao termo que introduz, sublinhando "il

passaggio dal membro più debole al più forte"54. Marca, pois, Pérsio, fazendo-a introduzir

sapiens, a precedência da sapientia em relação à libertas.

Mas se o interlocutor não puder cumprir os requisitos listados, então ele deve

deixar de lançar jactâncias sobre a sua liberdade, e admitir que no fundo não passe de uma

pessoa como as demais, ou seja, subjugada por paixões e vícios. Pérsio usa uma expressão

proveniente da linguagem comum, nostra farina55. O possessivo nostra tem caráter

sociativo e de modéstia, inclui Pérsio no rol das pessoas que ainda buscam a sabedoria e,

conseqüentemente, a liberdade. Mais uma vez fica patente aqui que a crítica que se fez

muitas vezes ao poeta, de que se coloca de fora e/ou acima para exigir dos outros uma

perfeição sobre-humana, é infundada e injusta.

Nos versos 116 e 117, Pérsio sobrepõe referências, tornando o dístico talvez um

pouco carregado demais. No entanto, há que se ressaltar a justeza das evocações persianas.

52 Cf. VILLENEUVE (1918²), p.137. 53 Cf. supra, p. 101. 54 Cf. CONTE (2006), pp. 236-237. 55 nostra farina: equivalente à nossa expressão coloquial = '(és) farinha do mesmo saco (que nós)'.

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Fedro, em Leo et asinus uenantes56, retoma uma fábula de Esopo, com pequena

modificação de cenário57. Nesta fábula, o leão esconde o asno sob folhagens, e ordena que

ele comece a soltar os sons mais aterrorizantes que puder. Quando este se põe a gritar, os

animais começam a fugir assustados, e o leão, que esperava em um ponto do caminho,

passa a abatê-los um a um. Depois que estava cansado da carnificina, pede ao asno que

silencie seus berros; este então pergunta como lhe parecera sua voz, e o leão: "insignis,

inquit, sic ut, nisi nossem tuum/ animum genusque, simili fugissem metu" ["Admirável",

responde, "de tal modo que, se não conhecesse tua coragem e tua raça, eu também teria

saído fugindo com semelhante medo"]58. É exatamente essa a idéia aportada por Pérsio,

quando diz que, embora possa ter mudado sua aparência e estar fronte politus, o

interlocutor não abandonou sua pelliculam ueterem ao se tornar um liberto59, i. e., continua

não sendo mais do que um stultus.60

Essa distinção entre a beleza aparente e a beleza interior já havia sido apresentada

pelo volaterrano em outras sátiras. Faremos aqui um breve parêntese, para apresentar um

excerto da quarta sátira em que vemos a mesma crítica, apresentada de maneira bastante

apurada pelo poeta. Nos versos 14 a 16 da quarta sátira, ao criticar o jovem que anseia

pelo poder, sem possuir ainda sabedoria para isso, diz que a beleza deste é apenas exterior,

56 Fedro, I, 11. 57 Enquanto em Esopo o jumento entra numa caverna para não ser reconhecido, Fedro cobre o asno com ramagens, cf. Esopo (1999), p. 202. 58 Na segunda fábula do livro 4, Fedro apresenta a mesma idéia, em forma de máxima: "non semper ea sunt quae uidentur dispici". 59 Demais, parece que a imagem do liberto que permanece com sua 'antiga pele' era comum. Platão, no Alcibíadesˡ, usa expressão equivalente ao fazer referência a libertos provenientes do Oeste da Ásia: "gente que procura administrar os negócios públicos enquanto ainda possui cabelos de escravo." (O grifo é do tradutor). 60 Fica esclarecida, assim, a aparente contradição que alguns comentadores quiseram ver entre 'mudar a aparência' e 'manter a mesma pele', cf. VILLENEUVE (1918²), p. 119. A famosa expressão bíblica 'lobo em pele de cordeiro' talvez possa também ajudar a explicar esse ponto. Em uma de suas parábolas, Jesus aconselha a que se tome cuidado com os falsos profetas, "qui ueniunt ad uos in uestimentis ouium, intrinsecus autem sunt lupi rapaces" (Mt, 7, 15). Podemos claramente entender que as vestes ou a pele de cordeiro é uma pele falsa, que apenas na aparência se incorpora em quem a veste. Em verdade, por baixo da pele do cordeiro, a pele do lobo permanece intacta, i. e., ele não trocou propriamente de pele, apenas ocultou a verdadeira para praticar o dolo. Parece-nos, por fim, interessante ressaltar que a traiçoeira aparência, neste caso, tenha um escopo exatamente oposto ao do asno na fábula de Fedro, que buscava aparentar ser muito mais feroz do que era de verdade. Em todo caso, em ambas as histórias, temos uma aparência que é usada como meio de enganar o homem desprevenido.

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e deixa a entender que, no fundo, ele está louco, ao sugerir que deixe de beber o heléboro,

bebida que era usada no tratamento da loucura61:

quin tu igitur summa nequiquam pelle decorus ante diem blando caudam iactare popello 15 desinis, Anticyras melior sorbere meracas?

[Por que tu não deixas, pois – belo inutilmente na aparência – De abanar antes do tempo a cauda ao brando populacho, 15 Por que não deixas – para te tornar melhor – de beber o heléboro?]

A palavra escolhida por Pérsio para designar o heléboro é Antícira, cidade da

Fócida – na baía de Corinto, na Grécia -, de onde provinha o heléboro. Horácio diz em

uma de suas sátiras62: nauiget Anticyram [Que navegue para Antícira], com o que quer

significar que o sujeito estava louco, ou, em outras palavras, que estava "pronto para ir

para o hospício". O uso do plural em Pérsio é um exagero cômico, conforme comenta o

escoliasta63: "merito pluraliter Anticyras dixit, ut appareat eius tam magnae insaniae unam

sufficere non posse." [Com razão escreve Anticyras no plural, de modo que fique claro que

uma única não seria suficiente para tão grande loucura.]

Na continuação da quarta sátira, Pérsio mostra que, para seu interlocutor, o que há

de mais importante, o mais elevado bem, a par do poder, são a beleza exterior

(representado no verso 19 por uma pele curada com o contínuo banho de sol), prazeres –

em especial, aqui, os da mesa – e nobreza de linhagem. O que torna sua opinião sobre o

Bem tão perspicaz como a de pessoas vulgares, como uma velha e enrugada verdureira,

preocupada em vender manjericão a um escravo desleixado.

quae tibi summa boni est? uncta uixisse patella semper et adsiduo curata cuticula sole? expecta, haut aliud respondeat haec anus. i nunc, "Dinomaches ego sum" suffla, "sum candidus." esto, 20 dum ne deterius sapiat pannucia Baucis,

61 Pérsio, 4, vv. 14-16. 62 Horácio, Sátiras II, 3, v. 166; também no verso 83, Horácio fizera referência ao mesmo local, com o mesmo intuito. 63 Commentum Cornuti (2004), pp. 98-99.

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cum bene discincto cantauerit ocima uernae.

[Qual é para ti o bem supremo? Poder viver sempre com um cardápio Refinado e ter a pelezinha curada pelo banho de sol contínuo? Olha, essa velha não responderia de modo diverso. Vai, agora, 19 Infla-te dizendo: "Sou descendente de Dinômaca64, sou formoso65!"

| Que o sejas, Contanto que não pretendas que a velha enrugada tenha menos sabedoria

| (do que tu) Quando, com boa conversa, oferece manjericão ao escravo

| displicentemente trajado.]

O contraste com que Pérsio apresenta essas duas personagens – que afinal possuem

a mesma profundidade moral – é cômico: Pérsio contrapõe o adjetivo pannucia (v. 21) ao

candidus (v. 20); assim, apresenta duas pessoas exteriormente absolutamente

dessemelhantes (e certamente essa aparência de trapos da velha verdureira haveria de

causar asco no Alcibíades do diálogo de Pérsio66). O prazer encontrado nos cardápios

refinados é contraposto ao manjericão vendido a um escravo displicente. E, em

contraposição à nobre linhagem de Alcibíades67, temos Baucis, uma velha verdureira68. Ou

seja, há uma oposição a todas as qualidades apontadas como importantes para o

interlocutor, mas a sabedoria vulgar dessas pessoas vulgares – que, na aparência, em tudo

diferem de Alcibíades - é equivalente à do jovem político.

Fechado o parêntese, voltemos à quinta sátira. No verso 117, conservando a

moldura fabulística que Pérsio empresta a esse dístico, aparece a astuta uolpes, que se

mantém no coração do interlocutor, e que é a representação típica da maldade

dissimulada. Horácio, na Epístola aos Pisões, usara, com um torneio sintático algo diverso,

a mesma imagem: o venusiano aconselha àqueles que ambicionam ser verdadeiramente

poetas que não se deixem levar por elogios que ocultam interesses, ou, em outras palavras

64 Alcibíades é filho de Dinômaca, descendente dos Alceônidas. 65 Lit. 'branco'; cf. supra, p. 110. 66 Há, inevitavelmente, nesse Alcibíades persiano, referência a Nero. 67 O tema do orgulho pela nobreza da linhagem já aparecera na sátira 3; cf. hic, capítulo 2.1, p 25. 68 O nome Báucis parece remeter à esposa de Filemão; a história desse casal de anciãos é muito conhecida, e foi contada por Ovídio, no oitavo livro de suas Metamorfoses (vv. 640 e ss.). Alguns autores, contudo, discordam de que haja aqui essa referência, e pensam tratar-se de outra personagem, cf. DOLÇ (1944), pp. 179-180. O escoliasta diz apenas "Baucis nomen fictum inopis anus", Commentum Cornuti (2004), p. 100.

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– segundo a imagem desenhada pelo poeta –, pelas 'intenções que se ocultam sob a (pele

da) raposa' (animi sub uulpe latentes)69. Para o peito onde a astuta raposa é mantida, Pérsio

encontra um adjetivo tão insólito quanto merecido: uapidus. Propriamente, esse adjetivo –

ligado etimologicamente ao substantivo uappa (vinho estragado), empregado no verso 77

desta sátira, justamente quando é apresentado um recém-liberto cujos valores morais são

baixíssimos70 – caracteriza o vinho evaporado e/ou que perdeu sua força, isto é, que já se

estragou, azedou.

Tendo em vista que está evidente que o interlocutor continua o mesmo que era

antes da manumissio, Pérsio puxa de volta a corda que havia deixado solta – referência

certamente a cordas ou correias com as quais animais de estimação são amarrados, e às

quais, depois de terem eles passeado à vontade por algum tempo, voltam a ser sujeitos –, e

retira aquilo que lhe outorgara nos versos 113-114, isto é, esto liberque ac sapiens.

Na seqüência, conclui o poeta: como pensas que podes ser livre, se nada alcançaste

por meio da razão?

nil tibi concessit ratio; digitum exere, peccas, et quid tam paruum est? sed nullo ture litabis, 120 haereat in stultis breuis ut semuncia recti. haec miscere nefas nec, cum sis cetera fossor, tris tantum ad numeros satyrum71 moueare Bathylli.

A razão não te concedeu nada; erras até quando estendes o dedo, 119 E, no entanto, que pode ser tão pequeno? Não alcançarás bons presságios

| graças a um incenso, De modo a que nos tolos possa ficar impregnada uma migalha do que é o | correto. Misturar essas coisas é um sacrilégio, e, como não passas de um rude peão, Não conseguirias dançar nem mesmo três compassos de um sátiro

| de Batilo.]

69 Horácio, Ars Poetica, 437; cf. SCHERER (2004), pp. 56-58. 70 Cf. supra, p. 93 ss. 71 Alguns autores, como Villeneuve, preferem a variante satyri (Bathylli); além disso, há divergências quanto a se tratar de uma peça com o nome de 'O Sátiro' – opção de Clausen – ou de uma personagem interpretada por Batilo. A nossa opção leva em conta o fato de que um sátiro dançando era motivo freqüente no balé da pantomima, cf. VILLENEUVE (1918²), p. 140.

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digitum proferre (ou porrigere) era expressão habitual dos estóicos para significar algo

de pouquíssima monta. No livro De Finibus, por exemplo, Cícero nos relata que tanto o

estóico Crisipo quanto o cínico Diógenes "de bona fama (...) detracta utilitate ne digitum

quidem eius porrigendum esse dicebant"72 [diziam que, no que tange à boa fama,

abstraídas as motivações de ordem utilitarista, não se deve mover nem mesmo um

dedo por ela]73.

Analisando de um ponto de vista estóico os versos 119 a 121, M. Villeneuve tece os

seguintes comentários74:

L'homme qui n'a pas la liberté morale ne saurait avoir la sagesse ; or, chez ceux qui n'ont pas la sagesse, chez les stulti, il ne saurait y avoir, aux yeux des stoïciens, le plus petit grain de vertu (...). C'est que, dans leur doctrine, le bien et le mal moral ont un caractère absolu : tout ce que l'homme fait est bien fait s'il a la sagesse, mal fait s'il ne l'a point (...), même l'acte en lui-même le plus insignifiant (et quid tam parum est?), comme de tendre le doigt (l'exemple était classique, cf. Épict. : Fragm., 53 Schweigh. (...)). En effet, au point de vue moral ils n'admettent pas de milieu entre le bien et le mal (...) Les choses indifférentes ne sont telles que prises en elles-mêmes : c'est une matière dont nous pouvons faire un bon ou un mauvais usage.

A idéia de haereat in stultis (v. 121) aparece já em Horácio75: stultis haerentia

[(vícios) que estão pegados nos tolos]; é como se Pérsio dissesse que o bem não pode

fixar-se no coração de um tolo, não pode ser agregado à sua personalidade. Essa mistura,

como se vê no verso seguinte, apresenta em si mesma uma incompatibilidade essencial e

divina (haec miscere nefas). Finalizando esta fala, Pérsio se vale de uma comparação cômica,

em que o recém-liberto, querendo usar de sua liberdade, se parece com um sujeito rude

querendo executar os passos de um sátiro tais quais os executava Batilo – pantomimo

célebre dos tempos augustanos, liberto e favorito de Mecenas76. Por fim, parece-nos

interessante frisar a forma passiva moueare (v. 123), em que o verbo aparece com um valor

72 Cícero, De Finibus, III, 17, 57. 73 Outro exemplo freqüentemente citado é o de Epicteto, Fragmentos, 53 Schweighäuser. 74 VILLENEUVE (1918²), p. 139. 75 Horácio, Sátira I, 3, v. 77. 76 Ao lado de Pilades, Batilo foi um inovador na dança do teatro romano; enquanto aquele se ligou à tragédia, este vinculou-se à comédia. Batilo é citado diversas vezes na literatura latina; cf. Sêneca Rétor, Controuersiae III, praefatio, 10; Fedro V, 7, v. 5; Juvenal 6, v. 63.

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de voz médio-passiva, equivalendo à idéia de 'dançar representando'. A mesma construção

já fora usada por Horácio em contexto muito semelhante77: nunc satyrum, nunc agrestem

Cyclopa mouetur [Dança ora como um sátiro, ora como um rude ciclope].

A voz discordante volta e insiste: ‘liber ego’ (v. 124), e Pérsio indaga quem lhe deu

essa liberdade, visto que está sujeito a tanta coisa. Em seguida, faz uma pergunta retórica:

o único senhor que ele conhece é aquele que pode dar a liberdade com um toque de

vara?78 Pérsio observará que, embora nada do exterior lhe venha dar ordens, dentro, no

fígado doente, surgem outros senhores.

'liber ego.' unde datum hoc sumis, tot subdite rebus? an dominum ignoras nisi quem uindicta relaxat? 125 'i, puer, et strigiles Crispini ad balnea defer' si increpuit, 'cessas nugator?', seruitium acre te nihil inpellit nec quicquam extrinsecus intrat quod neruos agitet; sed si intus et in iecore aegro nascuntur domini, qui tu inpunitior exis 130 atque hic quem ad strigilis scutica et metus egit erilis?79

["Eu sou livre!" Baseado em que afirmas isso, tu que estás subjugado | por tantas coisas?

Acaso não conheces outro senhor se não aquele a quem a varinha | torna livre?

"Vai, meu rapaz, e leva os estrígilos aos banhos de Crispino" 126 Se ele vocifera, ficas parado contando vantagens? Nenhuma áspera

| escravidão Te obriga a nada, nem coisa alguma externa te penetra De tal modo que te movimente os nervos; mas, se dentro e no fígado

| adoentado Nascem senhores, de que modo receberias uma punição menor 130 Do que aquele a quem o chicote e o medo ao senhor conduziram

77 Horácio, Epistulae II, 2, v. 125. 78 Gesto característico, indicando a manumissio, i.e., a libertação de um escravo; cf. supra, p. 95. 79 Morgan, baseado no manuscrito P (Montpelier, considerado o mais importante), em que se lê scytice, propõe 'scuticae metus egit erilis', em que erilis, em vez de genitivo objetivo ligado a metus, passa a modificar scuticae, que por sua vez passa a ser o genitivo ligado a metus: 'medo do chicote do senhor'; MORGAN (1988), pp. 567-568.

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| aos estrígilos?]

Ao responder à nova declaração de liberdade feita pelo interlocutor, Pérsio se vale

de expressões encontradas nas sátiras de Horácio. Assim, unde datum hoc sumis (v. 124) é

reminiscência de unde datum sentis80; i, puer (v. 126) é tomado literalmente da última sátira

do primeiro livro de Horácio, v. 92. O verbo relaxare (v. 125) retoma a idéia da correia

que, afrouxada, dá maior possibilidade de movimento ao animal81. Sêneca já empregara a

mesma metáfora, quando dizia que a virtude é o fundamento da vida feliz, mas mesmo o

virtuoso depende da indulgência do imponderável. A diferença, assim, entre o que se

dedica à virtude e os demais é de gradação; o virtuoso82: "laxam catenam trahit nondum

liber, iam tamen pro libero" [traz afrouxada a corrente: ainda não está livre, mas já se move

como se o estivesse]. De resto, esses versos trazem a mesma questão explorada por

Horácio em um trecho da sétima sátira do segundo livro, em que Davos, servo do poeta

venusiano, numa conversa com seu amo no período das saturnais, faz uma reflexão sobre a

questão da escravidão:

tune mihi dominus, rerum imperiis hominumque 75 tot tantisque minor, quem ter uindicta quaterque inposita haud umquam misera formidine priuet? adde super, dictis quod non leuius ualeat; nam, sive uicarius est, qui seruo paret, uti mos uester ait, seu conseruus, tibi quid sum ego? nempe 80 tu, mihi qui imperitas, aliis seruis miser atque duceris ut neruis alienis mobile lignum.

[És tu realmente meu senhor? Tu, que estás sujeito a tantas e tão grandes | imposições

Dos homens e das circunstâncias? Tu, a quem uma varinha três ou quatro | vezes Colocada sobre tua cabeça não poderá jamais afastar de ti teu medo infeliz83? Demais, ajunta algo que não deve ter menos peso do que aquilo que já

| se disse: Com efeito, quer seja um vicário – que obedece a outro escravo – como é

80 Horácio, Sátira II, 2, v. 31. 81 Cf. supra, p. 111. 82 Sêneca, De Vita Beata, 16, 3. 83 Hipálage, por: 'medo que te torna infeliz'.

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| vosso costume Chamar, quer seja um companheiro de escravidão, que sou eu para ti? Pois tu, que me dás ordens, és um infeliz para outros servos, 81 E és movido como um lenho móvel por meio de nervos que outros

| manuseiam.]

Comparando a sua sorte com a de seu dominus, Davos deixa entender que sua

condição de escravo poderia deixar-lhe a ilusão de receber da uindicta sua liberdade.

Horácio não pode sonhar com esse instrumento para conseguir enfim libertar-se de seus

medos. Ambos são escravos, por isso Davos diz que no fundo têm eles a mesma condição;

Horácio no máximo poderia gabar-se de ser um vicário84, por ser dono de outro escravo.

Seus movimentos, no entanto, dependem de como manipulam as cordas às quais ele,

simples boneco de madeira, está amarrado.

A marionete que somos, em Horácio, é movida por nervos que estão em mãos

alheias (v. 82). Na recriação de Pérsio, ele vai deixar de lado esses senhores externos, mas

não sem antes fazer um jogo de palavras de duplo sentido, no intuito de ilustrar o

movimento provocado por outros em nós: os nervos agora são os da própria pessoa,

nervos esses movidos por agentes externos (os fios da marionete agora movimentam os

nervos da pessoa subjugada). Inserida na imagem persiana há uma alusão erótica, e sua

leitura é clara: temos um homem dominado pela luxúria85. Pérsio, depois de se ter

aproveitado da intertextualidade com os versos de Horácio para fazer essa brincadeira

maliciosa, mostra, em seguida, que não é desse senhor externo o de que ele fala. O poeta,

de fato, quer deixar de lado toda idéia de um comando externo, para mostrar que é dentro

da pessoa que estão os senhores mais tirânicos. Assim, se permitires que eles nasçam, como

pensar que ficarás livre ou que receberás um castigo menos cruel do que outro que possui

apenas um senhor externo? Demais, Pérsio, não sem uma razão específica, faz nascer os

84 "Il uicarius era uno schiavo acquistato da un altro schiavo (sopratutto nelle familiae delle case grandi e ricche) sul proprio peculio (i beni guadagnati con lavori accessori, che egli metteva da parte e coi quali di solito finiva per riscattare la propria libertà): originariamente questo schiavo 'di secondo grado' era impiegato per svolgere servizi per conto dello schiavo 'di primo grado'", nota de Labate, in: Orazio (2004), p. 319. 85 Ressalte-se o fato de que neruus em latim apresenta também como significado possível o de 'membro viril'. Parece-nos ainda clara a referência à 'alma inferior', que, segundo Platão, se deixa escravizar pelas coisas mundanas.

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senhores tirânicos 'no fígado adoentado' (in iecore aegro, v. 129); afinal, era no fígado

que os estóicos viam a sede da vida moral e intelectual.

Essa reminiscência tanto mais é buscada por Pérsio quanto pelo fato de que trará

ela à memória a pergunta que o mesmo Davos procurará responder em seguida: "quem

então é livre?":

'quisnam igitur liber?' sapiens sibi qui imperiosus, quem neque pauperies neque mors neque uincula terrent, responsare cupidinibus, contemnere honores 85 fortis, et in se ipso totus, teres atque rotundus, externi nequid ualeat per lēue morari, in quem manca ruit semper fortuna.

["Quem então é livre?" O sábio, que é senhor de si mesmo, A quem nem a pobreza, nem a morte, nem os grilhões atemorizam, Que é forte para resistir às paixões, e para desprezar 85 As honrarias, que está inteiro em si mesmo86, polido e equilibrado, De tal sorte que nada que venha do mundo exterior possa pousar

| sobre sua lisa superfície: Contra ele a Fortuna sempre se lança estropiada.]

O homem livre de Horácio é o mesmo de Pérsio, isto é, o sapiens. Ele não será

jamais subjugado por nada que venha de fora. Bens exteriores não podem ser a causa de

sua felicidade, nem de sua infelicidade. Assim, a Fortuna acaba por ver-se impotente para

colocá-lo à mercê de sua roda. Marco Aurélio, em suas meditações, traz uma bela reflexão

em que a imagem do fantoche se faz presente87:

Lembra-te! Quem move o títere é aquele poder oculto em teu íntimo; a eloqüência é ele, a vida é ele, o homem, já que é mister dizê-lo, é ele. Não o envolvas na idéia do invólucro que o reveste e desses órgãos plasmados em redor. Porque eles são semelhantes a instrumentos, com a única diferença de serem congênitos. Com efeito, sem a causa que as move e freia, nenhuma dessas partes é mais útil que a lançadeira à teceloa, o cálamo a quem escreve e o relho ao cocheiro.

86 Isto é, não procura bens exteriores nem deles tem carência. 87 Marco Aurélio, Meditações, X, 38.

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No verso 132, Pérsio começa a apresentar as paixões sob forma de alegorias.

Primeiramente temos a Auaritia.

mane piger stertis. 'surge' inquit Auaritia, 'eia surge.' negas. instat. 'surge' inquit. 'non queo.' 'surge.' 'et quid agam?' 'rogas?88 en saperdas aduehe Ponto, castoreum, stuppas, hebenum, tus, lubrica Coa. 135 tolle recens primus piper et sitiente camelo. uerte aliquid; iura.' 'sed Iuppiter audiet.' 'eheu, baro, regustatum digito terebrare salinum contentus perages, si uiuere cum Ioue tendis.' iam pueris pellem succinctus et oenophorum aptas. 140 ocius ad nauem!

[De manhã, roncas como um preguiçoso. "Levanta", diz a Avareza, "Vamos, Levanta!" Não lhe dás ouvidos. Ela insiste, dizendo "Levanta!"

| "Não posso!" "Levanta!" "Por que deveria eu fazê-lo?" "E ainda perguntas? Ora, transporta:

| sardinhas do Ponto, Castóreo89, estopas, madeira de ébano, incenso, suaves vinhos de Cós90; 135 Sê o primeiro a arrancar do camelo ainda sedento a pimenta recém-chegada, Oferece alguma coisa, faze promessas!" "Mas Júpiter ouvirá." "Ora, vamos, Seu estúpido, passarás a vida contente com raspar o saleiro vazio Com o dedo, se tencionas viver com Júpiter." 139 Já com roupas de viagem, amarras às costas de teus escravos um saco de

| pele e um cesto de vinhos. "Mais rápido! Para o navio!"]

Temos neste trecho um diálogo entre a Auaritia e uma personagem que parece

poder identificar-se não somente com qualquer ouvinte de Pérsio, mas também com ele

próprio. Este interlocutor que ronca preguiçosamente lembra, em sua descrição, a

personagem que aparece – também roncando, com o dia já avançado –, no início da

88 Aqui aparece uma dificuldade de crítica textual. Nossa opção por rogaS segue o consenso dos melhores manuscritos; Clausen, por seu turno, baseando-se na lição dos escólios, opta pela forma rogaT, evitando, assim, uma atipicidade de ordem métrica (cf. infra nosso comentário). Nesse caso, teríamos de pensar na Auaritia a falar consigo mesma, à parte; a leitura seria, então, de uma exclamação equivalendo a: "Oh, e ele ainda pergunta!". 89 Substância medicinal extraída do castor, usada como narcótico. 90 Plínio Velho, com efeito, elogiava o vinho branco originário desta ilha; cf. Plínio Velho, H. N. XIV, 73.

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terceira sátira do nosso poeta91. A Auaritia aparece sob forma de alegoria, recurso muito ao

gosto dos estóicos; um dos fundadores do estoicismo, Cleantes, tinha mesmo especial

predileção por essa figura de linguagem, e não será certamente por coincidência que

Pérsio lembra seu nome no verso 64 desta sátira92. A Auaritia insiste com a personagem

que está a roncar para que ela levante (surge! - repetido quatro vezes em dois versos) e se

ponha a trabalhar; cada minuto perdido é dinheiro desperdiçado.

Em especial, nos três primeiros versos (132-134), ouvimos um diálogo rápido, de

frases curtas, lembrando, ipso facto, passagens da comédia latina. A Auaritia insta com o

piger para que ele acorde, este responde que não pode levantar, ela insiste ainda uma vez e

ele então pergunta por que deveria fazê-lo. Em seguida, aparece uma fala um pouco mais

desenvolvida da Auaritia, em que ela demonstra que, se ele não se apressar em fazer seus

negócios, outros o farão antes dele. No início dessa fala, a Auaritia perguntara rogas? (v.

134), e aqui um detalhe nos chama a atenção. Sabemos que os romanos eram bastante

atentos às quantidades, que muitas vezes eram marca distintiva entre palavras93. Cícero

chega mesmo a afirmar que94: "in uersu quidem theatra tota exclamant, si fit una syllaba aut

breuior aut longior" [Os teatros inteiros reclamam se, em um verso, uma única sílaba é

pronunciada mais breve ou mais longa]. No entanto, Pérsio, na pergunta 'rogas?' posta na

fala da Auaritia (v. 134), abrevia o –a do verbo, transformando a palavra iâmbica em

pírrica. Podemos pensar em um uso coloquial que Pérsio traz à cena, mas há também

outro ponto que devemos lembrar. Era uso generalizado entre os comediógrafos latinos a

correptio iambica, abandonada na poesia pós-silana95. Assim, essa passagem de rŏgās para

rŏgăs poderia trazer a lembrança da sonoridade típica da comédia latina, que justamente

caracteriza a ambiência deste trecho. Demais, como veremos um pouco mais abaixo,

91 Cf. hic, capítulo 2.1, pp. 11 ss. 92 Cf. hic, capítulo 3.1, pp. 64 ss.; parece-nos pertinente lembrar também o filósofo estóico alegorista Queremão, que estava dentre os mais próximos amigos de Cornuto, cf. RAMELLI (2003), p. 284. 93 Assim, temos diversos pares como: uĕnit / uēnit; puellă / puellā; pŏpulus / pōpulus, e tantos outros, em que a simples mudança da quantidade de uma vogal pode marcar a distinção entre tempo verbal, entre função sintática, e, mesmo, marcar uma alteração completa de significado. 94 Cícero, Orator, 51. 95 A correptio iambica resta apenas, neste período, em palavras dissílabas invaráveis (ŭbī → ŭbĭ) – ou sentidas como tal (mĭhī → mĭhĭ). Segundo as palavras do Professor Boldrini: "la lingua letteraria avrà operato una scelta cosciente, una scelta, in fondo, di stile, con l'escludere dal proprio ambito un fenomeno prosodico (la correptio iambica) a questo punto sentito, forse, troppo popolare", BOLDRINI (2008), p. 59.

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Pérsio nesta mesma sátira, fará a reconstituição de um diálogo de Terêncio96. Acrescente-

se ainda o fato de que, no verso anterior (133), a correptio iambica já aparecera, quando o

poeta abrevia o –o final de queo (quĕŏ por quĕō). A abreviação do –o final da primeira

pessoa do singular de um verbo, contudo, não era inusual nos poetas do período

imperial97.

O mercador que acorda cedo para ir ao porto fazer seus negócios já aparecera nos

versos 54-55 desta mesma sátira.98 A repetição do produto 'pimenta' (piper), presente nos

versos 55 e 136 ajuda a fazer essa ligação. Em sua busca de unir palavras que surpreendam

com o fito de produzir interesse na imagem, Pérsio faz concordar, no mesmo verso 136,

com o substantivo camelus, animal conhecido por suportar grandes períodos sem sentir

necessidade de beber água, o particípio presente sitiens. Com isso, transmite a idéia do

longo percurso – tão longo que até o camelo ao fim dele está sedento – feito pelo

comerciante até chegar a Roma99. Demais, primus, que aparecera na primeira parte do

verso, dá mais vigor ao discurso, pois temos a idéia de que o interlocutor deve fazer o seu

negócio antes mesmo que o camelo possa ter tempo de matar sua sede. A proximidade de

palavras que apresentam convergências semânticas, recens e primus no primeiro

hemistíquio do verso, e piper e sitiens, no segundo, aliada à aliteração que aparece em

primus e piper – palavras que se encontram na disposição do verso, e se separam pela cesura

–, dá a este hexâmetro uma notável musicalidade e harmonia.

A Auaritia, em seguida, faz que o homem pense mesmo em ardis para conseguir

enriquecer; a consciência quer pôr freios à má-ação, mas a Auaritia volta imperiosa e com

uma chantagem diz que quem segue os conselhos de Júpiter – conselheiro da boa fé –

acaba sem nada. Para tornar mais forte seu discurso, a Auaritia começa empregando uma

interjeição típica da comédia latina, eheu, que aqui tem um valor próximo ao nosso

popular 'Pobre diabo!', para, momento contínuo, chamar seu interlocutor baro (estúpido,

96 Mais exatamente, a partir do verso 161. 97 Cf. BOLDRINI (2008), p. 78. 98 Cf. hic, capítulo 3.1. 99 A leitura de sitiens como um epíteto que significa simplesmente 'que pode suportar a sede' parece-nos que tira força expressiva ao verso, e o deixa 'menos persiano'.

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imbecil). Esta palavra100 é palavra popular e rara na literatura latina; faz parte do

vocabulário de Lucílio e Petrônio101, mas Horácio, por exemplo, nunca a emprega. Após

sacudir os brios do interlocutor, a Auaritia cria uma hipérbole pintoresca, para impedir

que o comerciante dê ouvidos a pruridos pouco rentáveis, sob o risco de ficar o pobre

homem raspando um saleiro vazio, para não deixar de aproveitar até o último grão de sal

que possa ainda estar presente lá dentro.

Ele se deixa convencer, e já está prestes a partir, sob exortações contínuas da

Auaritia ('ocius ad nauem!', v. 141). Mas, se a Auaritia conseguiu vencer a Pigritia, há outra

paixão que será, talvez, mais forte do que ela: a Luxuria (ou Voluptas). É observada e

muito bem construída a ‘personalidade’ de cada vício: enquanto Auaritia irrompera, no

verso 132, imperiosa e insistente, a Luxuria surge na cena seguinte (v. 141 e ss.), de modo

insinuante e sedutor.

nihil obstat quin trabe uasta Aegaeum rapias, ni sollers Luxuria ante seductum moneat: 'quo deinde , insane, ruis, quo? quid tibi uis? calido sub pectore mascula bilis intumuit quam non extinxerit urna cicutae? 145 tu mare transilias? tibi torta cannabe fulto cena sit in transtro Veiientanumque rubellum exhalet uapida laesum pice sessilis obba? quid petis? ut nummi, quos hic quincunce modesto nutrieras, pergant auidos sudare deunces? 150 indulge genio, carpamus dulcia, nostrum est quod uiuis, cinis et manes et fabula fies, uiue memor leti, fugit hora, hoc quod loquor inde est.'

[ Nada impede que te lances arrebatadamente com vasta embarcação Ao Mar Egeu – a não ser que a solerte Luxúria se antecipe E te aconselhe à parte: "Para onde te pões a correr desse modo, insensato,

| para onde? Que queres? Em teu peito ardente inchou tua bílis vigorosa, 144 De tal modo que não possa ser aplacada nem com um jarro de cicuta?

100 Palavra de etimologia obscura, que acaba sendo empregada popularmente na Idade Média por 'homem'; daí o sentido da palavra 'barão/varão' em Português. 101 Cf. Lucílio, fr. 1121 Marx (H 120, na edição de Charpin); e Petrônio, LIII, 11 e LXIII, 7.

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Queres mesmo atravessar o mar? Sustentado por um encordoamento | retorcido,

Comerás num banco de remador, e uma caneca bojuda Exalará o vinho tinto de Veios, estragado devido à pez deteriorada. Que pretendes? Que o dinheiro, que aqui, em Roma, nutriras

| com modestos cinco por cento, Persistam em destilar onze por cento? 150 Sê generoso com teu Gênio, colhamos as delícias da vida, o que vives

| nos é próprio, Tu te tornarás cinzas, manes e assunto de conversação; Vive tendo presente o fato de que vais morrer, o tempo foge, aquilo que

| te digo já é passado."]

Como vemos, a Luxuria aparece mansamente no poema; no primeiro momento

quer dissuadir o rapaz da empreitada a que fora incitado pela Auaritia; com o vocativo

insane (v. 143), a Luxuria quer fazer o interlocutor ver a loucura a que estava sendo

induzido pela Auaritia – sem que ele perceba a armadilha que ela própria, Luxuria, lhe está

lançando. Nos versos seguintes, 144 e 145, há uma perífrase que desenvolve a idéia

contida no vocativo do verso anterior. A bílis do interlocutor estaria inchada (v. 144)? A

imagem se justifica pelo fato de que a bílis era considerada a sede da loucura102. Numa

hipérbole cômica, a Luxuria pergunta se a insania incutida nele pela Auaritia havia sido tão

grande que não se extinguiria nem com uma urna cicutae: a cicuta, com efeito, era

considerada um remédio para a inflamação da bílis. Sêneca, em uma carta a Lucílio,

menciona dois tipos de loucura: uma movida pelas falsas opiniões, a qual diz respeito ao

espírito; outra provocada por uma perturbação física, mais exatamente a bílis negra103. A

Luxuria mescla as duas para deixar sua imagem mais persuasiva: a loucura da falsa opinião

incutida pela Auaritia, e a loucura física, provocada pela bílis inchada.

Mostra a Luxuria, em seguida, por que motivo o rapaz deve considerar uma

loucura as ações movidas pela Auaritia. Em 'tu mare transilias?' (v. 146), a par do pronome

102 Propriamente, segundo a tradição, a bílis estava relacionada com a ira, cf. hic, capítulo 2.1, p. 16. Em Pérsio temos a primeira documentação da bílis ligada à loucura. Em todo caso, essa passagem facilmente se compreende, pois a ira e a loucura eram tidas como coisas da mesma espécie; cf. Horácio, Epistulae I, 2, v. 62: 'ira furor breuis est'; e Sêneca, Ad Lucilum 18, 14: 'immodica ira creat insaniam'. Segundo Cícero, Ênio já afirmara algo semelhante: "an est quidquam similius insaniae quam ira? quam bene Ennius initium dixit insaniae"; Cícero, Tusculanas, IV, 23, 52. 103 Sêneca, Ad Lucilium, XV, 94, 17.

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pessoal redundante, próprio da linguagem familiar – a Luxuria se mostra sempre íntima

do interlocutor –, temos uma construção própria da poesia elevada (mare transilire), a

sublinhar a dificuldade épica da missão a que está prestes a empreender o rapaz. Demais,

note-se o subjuntivo em oração principal, que, neste caso, traduz uma indignação, um

protesto104. Em seguida, descreve cenas que traduzem a falta de conforto por que terá ele

de passar: suas refeições terão de ser feitas sobre um banco, e um vinho de má qualidade

dentro de uma caneca bojuda será sua melhor bebida a bordo. O vinho proveniente de

Veios aparece na literatura latina sempre como exemplo de um vinho de má qualidade105.

A pez (v. 148) pode ser entendida simplesmente como o material usado para fechar a

garrafa. Porém, segundo nos ensina Plínio Velho106, ela era também usada na fermentação

do vinho, sobretudo quando ele era acre. Mas, ao fermentar novamente, seu aroma se

esvaía, e o vinho azedava. Segundo o Professor Villeneuve107, "on comprend dès lors la

valeur de l'épithète uapida donné à pice : c'est n'est pas la poix qui est éventée, mais elle forme

avec le vin un mélange qui a un goût d'évent, un goût de uappa"108.

Após ter feito, na primeira parte de sua fala, um discurso com o intuito de dissuadir

o rapaz de seguir as ordens da Auaritia, a Luxuria agora sussurra-lhe sensualmente nos

ouvidos um convite para que desfrute as delícias que o momento presente pode ofertar.

Ao dar cores à sua alegoria, Pérsio não cria uma caricatura desenhada com o intuito de

acentuar a perversidade desta paixão; pelo contrário, a imagem criada por Pérsio é tão

sedutora como verdadeira, deixando latente o perigo. Pià faz uma interessante

comparação entre o modo de Pérsio criticar a paixão amorosa e o de Horácio109:

Ainsi, au lieu de condamner de façon catégorique la passion amoureuse, comme le faisait Dave, dans la Satire II, 7 d’Horace, l’auteur révèle sa pleine connaissance de la nature humaine qui peut facilement être séduite par les charmes irrésistibles et trompeurs de la passion amoureuse.

104 Com o mesmo valor, fora já usado pelo poeta o subjuntivo no verso 84 desta mesma sátira, cf. supra, p. 97. 105 Cf. Horácio, Sátira II, 3, 143-144. 106 Plínio Velho, História Natural, XIV, 120 e 124. 107 VILLENEUVE (1918²), p. 145. 108 Para uapidus e uappa, cf. supra, p. 111. 109 PIÀ (2007), pp. 3-4.

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Com a Luxuria, Pérsio aproveita para lançar um ataque a outra escola filosófica, o

Epicurismo, que parecia trazer a Voluptas muito próxima de sua finalidade – a ataraxia.

Como poderemos observar, no trecho em questão, Pérsio, como o faz muitas vezes,

reelaborará versos dos mais conhecidos de Horácio. No entanto, neste caso, ele discordará

do preceito horaciano (e epicurista) da busca do prazer imediato. Os versos 151 a 153

remetem claramente aos versos finais da famosa Ode I, 11 de Horácio110:

dum loquimur, fugerit inuida aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.

[ Enquanto conversamos, terá fugido o tempo invejoso111: Colhe o dia de hoje, acreditando o mínimo possível no seguinte.]

A famosíssima expressão carpe diem é, de fato, um topos horaciano, e aparecerá

diversas vezes em sua obra. 112 O uso de carpere, propriamente 'colher', sendo

complementado por algo não concreto parece ser uma inovação de Horácio – que Pérsio

aproveita, fazendo a intertextualidade ainda mais evidente. Talvez marcar esse diálogo

aqui seja especialmente importante, visto que Pérsio no fundo está criticando o preceito

epicurista. Essa crítica, porém, é não feita mostrando uma caricatura monstruosa do vício,

pelo contrário, Pérsio mostra a Luxuria em todo o seu esplendor, chamando a atenção

para o quão difícil é escapar dela. O uso de carpere dulcia, ou seja, 'colher as coisas doces da

vida', pelo diem horaciano deixa o discurso ainda mais sedutor. Também fugit hora113

remete-nos aos versos horacianos. Embora no início da Ode Horácio pareça fugir ao

bordão epicurista memento mori – o futuro, de fato não interessa nem deve ser buscado (ne

quaesieris - scire nefas, v. 1), ele é incerteza: seu conselho é exclusivamente voltado para o

presente: quão melhor será simplesmente aceitar tudo o que nos trouxer a vida! (v. 3) –

esse conceito, de certo modo suavizado, não deixa de estar presente em fugerit aetas (vv. 7-

110 Horácio, Odes, I, 11, vv. 7-8. 111 inuidus apresenta propriamente dupla leitura: cruel (porque não volta) e invejoso (dos nossos prazeres). 112 Cf. v. g.: Sátiras II, 6, vv. 196 ss; Odes, I, 4, vv. 14 ss; II, 16, vv 17 ss; IV, 7, vv. 7 ss. 113 A muito conhecida expressão ruit hora [O tempo passa correndo] não é clássica. No entanto, o uso de hora como sinéque para tempo é freqüente aparece não só neste verso de Pérsio, mas Vergílio e Horácio também já a tinham empregado; cf. TOSI (2000), p. 256, §534.

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8)114. Pérsio explicita essa relação latente em Horácio, e põe na boca da Luxuria não só a

expressão fugit hora, como apresenta, em seguida, a construção antitética uiue memor leti,

que nada mais é do que uma variação mais positiva e atraente do memento mori epicurista.

De fato, a Luxuria persiana destaca a vida que se deve viver, enquanto o enfoque da

máxima epicurista é a morte115.

É certo que Pérsio aponta como fraqueza deixar-se seduzir pelas palavras da

Voluptas; torna-se, porém, ainda mais interessante a leitura do trecho, como aponta Pià116,

se nós pudermos imaginar o poeta reproduzindo um discurso sedutor que lhe é familiar, e,

com isso, mostrando-se consciente de suas próprias fraquezas117. De fato, a construção da

fala da Luxuria não parece ser fruto de alguém que nunca a tenha ouvido falar dentro de si

– ou se tenha negado a ouvi-la –, mas, ao invés, parece mais própria de alguém que

conhece essa perturbatio animi muito bem: a ela, a suas armadilhas e a seus encantos.

Ainda referente à relação entre Pérsio e Horácio, parece-nos ilustrativa a seguinte

observação de Harvey118:

Horace is committed to no philosophy. He is an eclectic, and his attitude to the Stoic paradoxes is at best ambivalent. Further, he has less interest in philosophy than in mankind’s foibles, which he treats with indulgence and humour. This relaxed and ironic stance makes his outlook on life extremely difficult to gauge. Persius, on the other hand, asserts his total commitment to Stoicism, including the paradoxes, and although he clearly admired Horace, his belief in Stoicism sets him in opposition to the smiling wisdom of uninvolvement.

114 O mesmo Horácio, contudo, dissera anteriormente, em uma de suas sátiras (Horácio, Sátira II, 6, 97): uiue memor quam sis aeui breuis [Vive sem esquecer o quanto é breve a vida]. 115 É difícil não lembrar o profeta Isaías, que já criticara, cerca de 700 anos antes de Cristo – i. e., alguns séculos antes de surgirem as escolas filosóficas helênicas – quem conduz sua vida a partir deste lema (Isaías, 22: 13): comedamus et bibamus, cras enim moriemur [Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos]. A crítica é retomada por Paulo, em I Coríntios 15: 32. 116 PIÀ (2007), p. 4. 117 Assim também no início da sátira 3, quando a hipótese de que o jovem que dorme quando deveria estar estudando filosofia é o próprio Pérsio torna a sátira mais flexível, menos dogmática. Essas leituras são também mais uma mostra de que aquele adolescente rígido e devotado exclusivamente aos livros, desprezando a vida comum é absolutamente caricatural e falsa; sobre isso, Burnier dá um veredicto que nos parece definitivo: ‘la vivacité et l’exactitude de ses expressions prouvent qu’il [Perse] a su voir ce qui se passait autour de lui et qu’il ne s’est pas uniquement inspiré des leçons de ses maîtres et des livres de sa secte’; BURNIER (1909) p. 12 118 HARVEY (1981), p. 4.

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Assim, a personagem aparece instigada de um lado pela Avareza, de outro,

seduzida pela Luxúria. Neste ponto, o poeta retoma a palavra.

en quid agis? duplici in diuersum scinderis hamo. huncine an hunc sequeris? subeas alternus oportet 155 ancipiti obsequio dominos, alternus oberres. nec tu, cum obstiteris semel instantique negaris parere imperio, 'rupi iam uincula' dicas; nam et luctata canis nodum abripit, et tamen illi, cum fugit, a collo trahitur pars longa catenae. 160

[E agora, que fazes? Estás dividido por dois anzóis, que te atraem para | direções opostas:

Segues este ou aquele? É necessário que alternadamente sirvas | a um e a outro senhor

Com obediência intermitente, e alternadamente te afastes de um e de outro. E não venhas dizer – ainda que tiveres sido firme uma única vez e te

| recusado a obedecer-lhes Uma ordem veemente –: "Rompi já todos os laços." Pois, uma cadela, após muito se debater, consegue arrancar o nó; no entanto, Quando foge, traz no pescoço uma boa parte de sua correia. 160]

Pérsio mostra a personagem dividida: ora pende para o lado da Avareza, ora para o

da Luxúria. A voz interior, ilustrada pelo poeta por meio de alegorias, a qual busca nos

atrair para o vício é descrita no verso 154 por meio de uma metáfora freqüente na

literatura latina: o anzol (hamus) lançado com uma isca, de molde a fisgar o stultus que a

morde119. De certo modo, Pérsio deixa explícito aqui que o interesse da Luxuria não era

libertar simplesmente o jovem da Auaritia, mas de fato era um ardil para que ficasse

subjugado a ela, Luxuria. O tema de conseguir a libertação de um senhor, e acabar

escravo de outro, já aparece na tradição esópica, com a fábula do javali e do cavalo120. O

verbo subire, usado por Pérsio, no v. 155, para indicar que o interlocutor acabará servindo

a um e outro senhor, indica mais exatamente que terá de 'levá-lo às costas' ou 'sobre os

119 Tosi aponta exemplos da mesma metáfora em Plauto, Horácio, Ovídio e Sêneca; TOSI (2000), p. 118, §255. 120 Esopo (2000), p. 157; cf. tb. Fedro IV, 4. Segundo Aristóteles, esta mesma fábula – alterando apenas o javali por um cervo – fora contada por Estesícoro a seus concidadãos, quando estes cogitavam entregar o poder da cidade ao tirano Fálaris de Agrigento (cf. Pérsio, Sátira 3, 39; hic, capítulo 2.1, p. 28), para poder vingar-se de seus inimigos; Aristóteles, Retórica II, 20.

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ombros'. Tal escolha remete justamente à narrativa mencionada; que fora, aliás, também

contada por Horácio, em uma de suas epístolas121. O cavalo, inferior no combate, para

vingar-se de seu inimigo, aceita a ajuda do homem. Derrotado finalmente o cervo, o

cavalo não consegue mais livrar-se do ginete em seu lombo, nem do freio em sua boca.

Horácio conclui:

sic qui pauperiem ueritus potiore metallis libertate caret, dominum uehit improbus, atque 40 seruiet aeternum, quia paruo nesciet uti.

[Assim, quem, por temor da pobreza, se priva da liberdade, 39 Que é mais preciosa do que metais preciosos, passa a carregar, por ser

| ganancioso, um senhor, e Será seu servo para todo o sempre, por não saber contentar-se com pouco.]

A personagem persiana, ao fim, nada consegue em favor de sua liberdade: quando

escapa de um senhor, acaba servindo a outro. Pérsio adverte que ela não deve vangloriar-

se ante um ato de independência, pois ainda trará consigo e dentro de si o costume da

escravidão. Como é de seu estilo, Pérsio lançará mão de uma imagem concreta para

ilustrar o conceito abstrato. No caso, aproveita a moldura preparada nos versos 118 e

125122, quando mostrara que a sensação de liberdade do interlocutor não era diferente

daquela que um animal doméstico sente quando lhe afrouxam um pouco a correia.

Encerrada a seção em que apareceram as alegorias, Pérsio – continuando sua

exemplificação da tirania das paixões – põe em cena duas personagens da comédia nova: o

escravo Dauus e o senhor Cherestratus, provenientes de uma comédia de Menandro,

Eunuco, que será imitada por Terêncio.

'Daue, cito, hoc credas iubeo, finire dolores

121 Horácio, Epístola I, 10, vv. 34-41. Também na versão de Horácio é um cervo que aparece como oponente do cavalo, e não um javali. 122 Cf. supra, p. 114.

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praeteritos meditor' (crudum Chaerestrătus unguem adrodens ait haec). 'an siccis dedecus obstem cognatis? an rem pătriam rumore sinistro limen ad obscenum frangam, dum Chrysidis udas 165 ebrius ante fores extincta cum face canto?' 'euge, puer, sapias, dis depellentibus agnam percute.' 'sed censen plorabit, Daue, relicta?' 'nugaris. solea, puer, obiurgabere rubra, ne trepidare uelis atque artos rodere casses. 170 nunc ferus et uiolens; at, si uocet, haut mora dicas "quidnam igitur faciam? nec nunc, cum arcessat et ultro supplicet, accedam?" si totus et integer illinc exieras, nec nunc.' hic hic quod quaerimus, hic est, non in festuca123, lictor quam iactat ineptus. 175

["Davo, ordeno-te que creias prontamente nisto: penso que as minhas antigas | dores

Estejam no fim" – Queréstrato diz isso roendo as unhas Em carne-viva. "Por acaso eu poderia apresentar-me a meus sóbrios parentes Como alguém sem honra? Por acaso eu poderia dilapidar o patrimônio

| paterno Dando lugar a rumores maledicentes, enquanto, ébrio, canto junto

| ao obsceno umbral Defronte às úmidas portas de Críside com o facho apagado?" 166 "Bravo, meu rapaz! Mostra agora sabedoria e sacrifica uma cordeira Aos deuses que afastam os males." "Mas achas, Davo, que ela chorará

| ao ver-se abandonada?" "Tolice. Serás castigado com a sandália vermelha, meu rapaz; Não sejas temerário, nem penses em roer redes bem atadas. 170 Uma hora124, feroz e violento; mas, se ela te chamasse, responderias: 'Estarei

| logo aí.'" "Que devo, pois, fazer? Nem então, se ela me chamar e suplicar

| com insistência Nem assim devo encontrá-la?" "Se queres sair daqui inteiro e ileso, Nem então." Aqui, é aqui que está o que buscamos, está aqui E não na varinha que brande o inepto litor. 175]

A peça Eunuchus de Terêncio traz em sua cena de abertura exatamente o diálogo

entre o jovem senhor (Fédria) e seu escravo (Parmenão) a respeito do amor daquele por

123 festuca é sinônimo de uindicta que Pérsio usara no verso 88 para designar a varinha com a qual o litor cumpria o ritual da manumissio, cf. supra, p. 95. 124 Cf. TATE (1925), p. 71.

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uma jovem cortesã (Taís)125. O conteúdo é basicamente o mesmo, o jovem está

perdidamente apaixonado, mas não parece ser correspondido na mesma medida. Por isso,

Fédria dispõe-se a esquecer Taís, no que é aplaudido por Parmenão. Este, no entanto,

pondera que, a bem da verdade, será bastante derramar ela uma lagrimazinha fingida que

já fará seu amo sentir-se culpado e aceitar o castigo. "O indignum facinus!" [Oh,

vergonhosa ação!] exclama Fédria no v. 70, pois vê que sua paixão é tão forte que ele se vê

a ponto de se deixar destruir; não sabe mais o que fazer. O escravo responde126: "quid agas,

nisi ut te redimas captum quam queas / minimo" [Que farás senão resgatar-te de tua

escravidão pelo menor preço que puderes?]. É, de fato, notável característica das peças dos

cômicos latinos ver os escravos mostrarem uma personalidade mais livre, mais astuta para

compreender as situações e mais propensa para encontrar soluções, do que seus senhores,

muitas vezes dominados por paixões127.

A construção propriamente da cena apresenta pequenas divergências entre

Terêncio e Pérsio128 – Queréstrato, por exemplo, diferentemente do Fédria terenciano,

preocupado com o patrimônio e a reputação, entra em cena decidido a terminar o

relacionamento com a sua amante, e somente aos poucos muda de posição –, mas nada

que impeça de reconhecer o claro parentesco entre ambos os episódios129. A própria

linguagem que Pérsio usa aproxima o diálogo desse trecho ao tom da linguagem familiar

e da conversação da comédia. Assim, temos, por exemplo, o uso de um freqüentativo sem

que o aspecto iterativo se faça notar, como em canto por cano (v. 166); a forma

(duplamente) apocopada censen, por censesne (v. 168)130; o imperativo negativo ne uelis

trepidare (v. 170), por noli trepidare.131 O objetivo dos dois poetas, contudo, não é o

125 Fédria, Parmenão e Taís correspondem, em Pérsio, a Queréstrato, Davo e Críside, respectivamente. Os nomes escolhidos pelo satírico possivelmente tenham sido tomados da comédia Eunuco de Menandro, cf. Commentum Cornuti, p. 135. 126 Terêncio, Eunuchus, vv. 74-75. 127 Assim, muitas vezes os papéis invertem-se, produzindo um efeito cômico: é o seruus agora que passa a dar ordens ao dominus. No Poenulus vemos a lamentação de um jovem e apaixonado senhor nestes termos exatos: Amor iubet / me oboedientem esse seruo liberum [O Amor ordena que eu, um cidadão livre, obedeça a meu escravo]; Plauto, Poenulus, vv. 447-448. 128 Também Horácio retratará a mesma cena na Sátira II, 3, vv. 258-264. 129 Pode-se, contudo, aventar a hipótese de que a cena persiana é mais dependente de Menandro do que propriamente de Terêncio, cf. ZIETSMAN (1994), p. 46. 130 Cf. censen hodie despondebit; Plauto, Rudens, v. 1269. 131 Cf. GÉRARD (1897), p. 88.

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mesmo. Pérsio quer, com efeito, sublinhar, com a cena, a escravidão provocada pelo amor

sensual. Tendo alcançado essa demonstração, a história é abandonada, e não sabemos o

que acontecerá a Fédria; sabemos apenas – e basta para os fins almejados pelo poeta – que

ele é um escravo de sua própria paixão. O uso do tema do amor escravizador é recorrente

na ilustração do paradoxo estóico sobre a verdadeira liberdade; Cícero, ao analisar este

paradoxo, também empregará o mesmo exemplo.132 A insólita construção udas ante fores

(vv. 165-166) sintetiza a imagem do amante rejeitado recebendo um banho de água

quente perante a porta da cortesã133.

Quando vemos Queréstrato mostrar-se definitivamente derrotado por sua paixão,

ouvimos de Davo a indicação de que seu amo precisaria abandonar a loucura que o está

dominando se ele quiser permanecer totus et integer (v. 173), fórmula que indica o sábio

impenetrável a influências externas e com absoluta integridade moral. Neste ponto, a cena

é interrompida. Com a enfática repetição do advérbio hic - três vezes no mesmo verso!:

hic, hic quod quaerimus hic est (v. 174) –, Pérsio retoma a palavra, e sublinha que aqui, com

o exemplo a que acabamos de assistir, podemos ver a prova inconteste da escravidão a que

está submetido o jovem, por causa da paixão amorosa134. E é então que Pérsio invoca

novamente a imagem do recém-liberto que apareceu no início da segunda parte do

poema135 – quando este dizia que alcançara a liberdade plena com sua manumissio –, para

dizer que a liberdade que este passa a ter quando recebe em sua cabeça o toque da festuca

não o deixa livre de ser escravizado pelos tiranos que nascem dentro de seu espírito. O

lictor é incapaz (ineptus) de lhe dar a liberdade do espírito.

A tirania das paixões volta a aparecer; cidadãos pretensamente livres acabam por

ceder às investidas da Ambitio e da Superstitio.

132 Cícero, Paradoxa Stoicorum 5, 36. Também o servo estóico da Sátira II, 7 de Horácio se valerá desse mesmo mote (vv. 46-94). Cf. ainda Epicteto, Discursos, IV, 1, 7. 133 Cf. FISKE (1916), pp. 165-66. 134 O Professor Walter de Medeiros, em um artigo seu em que busca traços de autobiografia na sátira de Pérsio, aventa a saborosa hipótese de, nessa recomposição do excerto de Menandro, haver um eco – 'literariamente trabalhado' – a uma experiência pela qual pode Pérsio ter passado nos tempos em que foi apresentado por condescendentes amigos à Suburra (cf. hic, capítulo 3.1, p. 81). Dessa experiência traria o poeta em seu peito recordações que teriam deixado 'os requebros das cortesãs arteiras em seduzir os incautos'; cf. MEDEIROS (1998), pp. 89-90. 135 Cf. supra, pp. 93 ss.

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ius habet ille sui, palpo quem ducit hiantem cretata Ambitio? 'uigila et cicer ingere large rixanti populo, nostra ut Floralia possint aprici meminisse senes.' quid pulchrius? at cum Herodis uenere dies unctaque fenestra 180 dispositae pinguem nebulam uomuere lucernae portantes uiolas rubrumque amplexa catinum cauda natat thynni, tumet alba fidelia uino, labra moues tacitus recutitaque sabbata palles . tum nigri lemures ouoque pericula rupto, 185 tum grandes galli et cum sistro lusca sacerdos incussere deos inflantis corpora, si non praedictum ter mane caput gustaueris ali.

É senhor de si (mesmo) aquele adulador a quem a Ambição, vestida | de branco,

Arrasta boquiaberto? "Fica atento e joga à larga grão-de-bico Ao povo em rixa, para que os anciãos, estirados ao sol, Possam lembrar-se das Festas de Flora que oferecemos." Que pode ser

| mais belo? Mas quando Chegarem os dias de Herodes e as lanternas portando violetas, 180 Bem dispostas sobre a gordurosa janela, despenderem uma espessa Fumaça, e a cauda de um atum estiver nadando, abraçando O prato vermelho, e a vasilha branca estiver inchada de vinho, Então moverás calado os lábios e os sábados circuncidados te deixarão

| pálido. Ora são as sombras dos mortos, os perigos do ovo quebrado, 185 Ora galos corpulentos e uma sacerdotisa caolha com o sestro Incutirão deuses que fazem inchar os corpos se não Tiveres provado três vezes pela manhã a cabeça de alho prescrita.]

A Ambitio surge nos versos 176-177 vestida de branco (cretata) – em mais uma

imagem que une o abstrato e o concreto –, e sua aparição é extremamente sucinta. A

análise de palavras-chave contidas nesse pequeno trecho (palpo, 'adulador'; cretata, 'vestida

de branco'; e hians, 'boquiaberto') nos revela de modo inequívoco a intenção do poeta, e

ela aponta em direção ao candidato a um cargo eletivo. Cabe também ressaltar que

ambitio, antes de equivaler a 'ambição' tem como significado primitivo precisamente

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'solicitação legal de votos'.136 Os candidatos, após oficializarem a inscrição de seu nome

para concorrer à eleição (professio nominis), passam a circular pelo Forum, vestidos com

uma toga branca (candida)137, em busca de votos junto aos eleitores. É a Ambitio que os

arrasta boquiabertos – i. e., cansados de ir de um lado para o outro para angariar o voto

dos cidadãos, adulando-os138. A Ambitio toma a palavra, e exorta o candidato a promover

uma festa inesquecível; o possessivo noster usado por ela junto ao nome da festa (nostra

Floralia, v. 178), sela um casamento entre o candidato e a Ambitio. Os Floralia, que

tinham lugar entre os dias 28 de abril e 3 de maio, eram promovidos pelos edis da plebe139;

a Ambitio ordena ao edil que as festas sejam promovidas e que sejam lançados à larga

grãos, no intuito de alcançar uma magistratura mais elevada. A idéia da festividade para

agradar o vulgo serve como transição para o derradeiro exemplo de paixão escravizadora:

a Superstição.

Ritos judaicos são abordados pelo poeta, entre os versos 180 e 184. Pérsio

menciona os Herodis dies (v. 180). A nota publicada por Brunner em 1968140, não nos

deixa dúvidas quanto ao fato de que esta expressão, Herodis dies, é uma remissão ao

sahabbat141 (dia de descanso hebraico), não ao aniversário de Herodes, o Grande –

considerado pela seita dos Herodianos como o Cristo142. O plural em dies indica, de fato,

136 Com efeito, a palavra ambitio é derivada do verbo ambire, 'andar à volta', que, por sua vez, é formado pelo prefixo ambi, 'à volta de' e o verbo 'ire', 'ir'. Assim, o sentido originário de ambitio traz a idéia de 'ação de andar à volta solicitando voto'. É, claro está, a partir desse valor inicial que, por extensão, ambitio passa a significar 'ambição'. 137 É, justamente, a partir da toga 'cândida' (i. e., 'branca') que vestiam, que os postulantes a cargos eletivos passaram a ser conhecidos como 'candidatos'. 138 De fato, eles chegavam a ter ao seu lado um escravo (nomenclator) unicamente para lembrar-lhes o nome e a condição dos eleitores que encontravam durante o período da disputa dos votos (ambitus); cf. BORNECQUE et alii (1955), p. 100. Horácio menciona em uma de suas epístolas: mercemur seruom qui dictet nomina; Horácio, Epístolas, I, 6, v. 50. Cícero, por sua vez, julga que é um dolo (fallis et decipis) valer-se de um nomenclator, e, portanto, que é vergonhoso (turpe est) esse costume; cf. Cícero, Pro Murena, 36, 77. 139 Na primeira sátira, Pérsio já fizera referência – não muito elogiosa, diga-se – a um edil (v. 130). 140 BRUNNER (1968), pp. 63-64. 141 A transcrição dessa palavra hebraica é variada – v. g. sahabbat, xabbat, sabbath. Adotamos a forma empregada por Ernout & Meillet. 142 Essa é a leitura de alguns comentadores. Conington, por exemplo, escrevera o seguinte: "Herodis ... dies seems to be Herod's birthday, which would naturally be celebrate by the Herodians", CONINGTON (1893), p. 119. Cf. tb. VILLENEUVE (1918²), p. 154.

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uma repetição143. Elementos citados por Pérsio, como esclarece Brunner, também evocam

atividades próprias ao sahabbat144:

The obligation of lighting lamps at the onset of the sabbath is reflected in the dispositae ... lucernae of line 181. lucernae would be appropriate, since the seven branched sabbath lamp, which has its origin in the sanctity attached to the number seven by the cabalists, did not come into household use until the middle ages. The fish diet of the sabbath evening is clearly indicated by the rubrumque amplexa catinum / cauda natat thynni (182f), where the natat probably defines the meal as the garum, fish pickled in sauce, a dish which was very popular among the Jews of Persius' time and which is called by Pliny garum castimoniale, i.e., "kosher garum" (Hist. Nat., XXXI, 95). tumet alba fidelia uino (183) : In accordance with the admonition "Remember the Sabbath day, to keep it holy" (Exod. XX, 8), a Kiddush service recited by the Rabbi holding a cup of wine had to play an important part in the sabbath celebration even in Persius' time.

Por fim, a menção aos sabbbata, no verso 184, ajudaria a dirimir quaisquer dúvidas

que pudessem restar.

Entre os versos 185 e 188, Pérsio satiriza ritos egípcios. O sistrum era um

instrumento musical usado nas festas de Ísis. A sacerdotisa cega – ou caolha – que aparece

no verso 186 (lusca sacerdos) é a própria Ísis; Pérsio aqui lança mão de um artifício poético

surpreendente, pois o adjetivo ligado à sacerdotisa se refere realmente ao fato de que se

creditava a ela, Ísis, a ação de deixar cegos aqueles que excitavam sua ira.145 As doenças

que provocavam inchamento do corpo eram freqüentes no Egito, o que justifica o verso

188.146

O fechamento da sátira é bastante rápido: em três versos, em que se destacam as

aliterações em C, Pérsio apresentará um enorme centurião (Pulfenius ingens), exemplo de

pessoa ignara, que não pagaria um asse por um filósofo.

dixeris haec inter uaricosos centuriones, continuo crassum ridet Pulfenius ingens 190 et centum Graecos curto centusse licetur.

143 "dies is plural either because the Sabbath affects two days, or because it is seen as continuing series of festal days recurring weekly", ZIETSMAN (1997), p. 108. 144 BRUNNER (1968), p. 64. 145 Cf. Ovídio, Pônticas I, 1, vv. 51-54, e Juvenal, 13, 93. 146 Cf. VILLENEUVE (1918²), p. 156.

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[Se quiseres explicar essas coisas entre centuriões cheios de varizes, Um enorme Pulfênio há de soltar imediatamente uma gorda risada 190 E avaliará cem filósofos gregos por menos de cem asses.]

Esses três versos formam uma espécie de epílogo à sátira. Pérsio encerra, pois, o

poema fazendo uma brincadeira que nos remete ao início da sátira. Enquanto lá ele pedira

cem vozes, cem bocas e cem línguas para compor seu poema (vv. 1-2), aqui o número volta,

e, novamente, três vezes: os cem filósofos gregos, os cem asses e, certamente não por

coincidência, o militar grosseiro – e talvez não haja imagem que represente mais o

cerceamento da liberdade do que a de um militar –, que não dá nenhum valor ao estudo

da filosofia, é um centurião. Na terceira sátira, também os centuriões haviam sido

escolhidos como os representantes de uma classe de pessoas grosseiras e sem cultura147.

Há uma anedota muito conhecida, a respeito do filósofo estóico Musônio Rufo,

que parece ilustrar perfeitamente a aversão dos militares pela filosofia (e a de Pérsio pelos

centuriões...). Com a conjuração de Pisão, vários filósofos haviam sido banidos de Roma

por Nero, dentre eles Musônio Rufo. Depois da morte do tirano, Musônio volta para a

Vrbs, e, em pouco tempo, consegue bom nome como um professor que sabia estimular o

ardor da juventude. No final do ano de 69, as tropas flavianas se preparam para invadir

Roma. Vitélio envia uma delegação para tentar obter clemência; Musônio se junta à

embaixada com a intenção de dissertar para as tropas sobre estoicismo, e conseguir

convencê-las das vantagens da paz e dos perigos da guerra. Alguns soldados se divertiram

com o filósofo; a maioria, porém, se aborreceu. Ao fim, Musônio fatalmente teria sido

linchado se, sob conselhos de alguns moderados e ameaça de outros, não tivesse deixado

para trás a intempestiua sapientia.148

O contraste da caricatura – o ingente Pulfênio solta uma gorda risada ao ouvir

profundas reflexões sobre liberdade – pode ser comparado com o rude peão dançando

147 Cf. hic, capítulo 2.2, pp. 46 ss. Não nos parece excessivo mencionar a edição crítica da obra de Pérsio elaborada pelo eruditíssimo Professor Léon Herrmann, na qual ele não só muda a ordem das sátiras, como remaneja a ordem dos versos, por vezes trazendo versos de uma sátira para outra. Neste trecho, por exemplo, ele considera que as duas menções aos centuriões pertencem à mesma sátira – a 5, segundo os manuscritos, que ele reposiciona como a primeira. Embora algumas propostas de Hermann pareçam, de fato, bastante interessantes, muitas outras – como esta – carecem de mais elementos para que possamos considerá-las realmente consistentes. 148 Cf. Tácito, Histórias, III, 81.

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sofisticados passos de Batilo (vv. 122-123). O epíteto ingens dado a Pulfênio – próprio da

poesia elevada, que costuma usá-lo de preferência a magnus ou grandis – cumpre

certamente uma função cômica de contraste entre o herói épico e o desajustado militar, e

faz-nos lembrar os grandes galli, que apareceram poucos versos antes (v. 186), isto é,

animais – ignorantes do bem e do mal – que são sacrificados em rituais, com os quais –

rituais e sacrifícios –, terceiros buscam conquistar benefícios próprios. A expressão crassum

ridet, reforça a caricatura do militar: além de sintaticamente pouco habitual149, une, bem

ao gosto de nosso poeta, duas palavras que pertencem a esferas distintas; assim o 'riso' que

ri o centurião se torna 'gordo', ou antes 'grosseiro' e por extensão 'estúpido' – e podemos

perceber que, de fato, a construção traz em si uma hipálage: o adjetivo é pertinente

propriamente a Pulfênio! É um riso, enfim, que, por ser descabido, proveniente da

ignorância e não da compreensão, acaba ele próprio sendo motivo de riso. Faz-nos

lembrar o centurião, na terceira sátira, que, ao querer mostrar sua cultura, escolhe

desastradamente nomes de filósofos150. A aliteração que aparece nesses três versos, e mais

especialmente no último, destacando sobretudo a repetição de C, é muito ao gosto de

brincadeiras populares. Em poesia, a validade desse recurso costuma ser vista com reservas.

O uso excessivo de aliterações, com efeito, acabou sendo uma das críticas preferenciais aos

versos de Ênio151. Pérsio, porém, ao lançar mão aqui desse expediente, visa certamente a

sublinhar o grotesco da personalidade do centurião, e com isso aumenta o efeito cômico

do verso final do poema.

Também de cunho popular é a indicação do insignificante valor que se dá a uma

pessoa, estimada por quantas (poucas) moedas ela vale. Numa cena do segundo ato da

peça Captiui, Plauto faz o escravo Tíndaro comentar, à parte152: Eugepae! Thalem talento

non emam Milesium [Bravo! Eu não pagaria um talento por Tales de Mileto]. Vê-se aqui

149 De fato, a expressão ridere crassum não é encontrada em nenhum outro autor latino; em todo caso, Pérsio já usara construção semelhante em 3, v. 110: subrisit molle. 150 Cf. hic, capítulo 2.2, pp. 47-48. 151 O famoso verso: 'O Tite tute Tati tibi tanta tyranne tulisti' (Ênio, Annales, 108, ed. Warmington), v. g., é citado, na Retórica a Herênio – obra durante muito tempo creditada a Cícero, autoria que hoje costuma ser posta em dúvida por especialistas – (IV, 18), como exemplo de verso a ser evitado. 152 Plauto, Captiui, v. 274.

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não só a coloquialidade da avaliação da pessoa por uma moeda de pouco valor153, mas

também a exígua estima de que, entre os populares, gozavam os filósofos. Tales de Mileto,

com efeito, é considerado o fundador da filosofia grega. Assim como em Plauto, para

Pulfênio, filósofos não valem uma moeda.154 Com efeito, centussis é palavra composta por

centum e ăs, isto é, 'cem asses'; em curto centusse (v. 191) temos um ablativo de preço.

Portanto, para um centurião, vale menos de um asse cada filósofo grego.155 Se lembrarmos

os versos 76 e 77, quando o ébrio e desavergonhado Damas é apresentado como um

palafreneiro que não vale nem três asses (tresis, v. 76), veremos que o ingens Pulfenius

avalia um filósofo grego em ainda menos do que vale o mandrião Marco Damas.

Enfim, o stultus Pulfênio aparece para nos fazer ver o quanto somos ridículos

quando deixamos de tentar entender sinceramente as razões das coisas. Pérsio sabe que

nada do que disse é alcançável por quem não se volta para o estudo da filosofia, por quem

não olha para dentro de si mesmo, em busca da sabedoria. Por isso, generosamente, busca

levar-nos, de maneira cordial e bem-humorada, à compreensão do paradoxo estóico que

afirma que só a sabedoria pode trazer-nos a liberdade. Enfim, uma famosa frase de

Sócrates parece-nos sempre subjazer ao discurso de Pérsio: "A vida sem reflexão não vale a

pena ser vivida".

153 O escravo fala em 'talento' não em 'asse' porque a peça se situa na Grécia. 154 Cabe, porém, ressaltar que o contexto em Plauto é um pouco diverso; Tíndaro, ao dizer que não pagaria um centavo por Tales, estava sobretudo a fazer um elogio a uma observação – que lhe parecera filosoficamente aguda – de Filócrates, que dissera que não o tratavam como escravo de modo muito pior do que se fosse ele filho de família. 155 O asse, cunhado com uma liga de cobre, foi a primeira moeda romana. Quando apareceram as novas moedas – o sestércio, o denário e, posteriormente, o áureo –, o asse tornou-se uma moeda de valor irrisório, e seu nome passou a ser empregado para designar coisas de pouca monta. Com esse sentido, seria equivalente ao nosso 'tostão'.

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CONCLUSÃO

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4. Conclusão

No meio do caminho de sua vida, Dante se encontra em meio à selva escura,

porque la diritta via era smarrita. Vislumbra uma colina, em cujo cimo via o sol brilhar;

tenta montá-la, mas é atacado por uma pantera, em seguida por um leão e, finalmente,

por uma esquálida loba. Prostrado, percebe perto de si um vulto: a sombra do poeta

Vergílio. Assim, na abertura de seu magnum opus, o poeta florentino reconhece que a via

direita dos ramos sâmios era perdida. No entanto, consegue ainda divisar ao longe a luz da

sabedoria a lhe sorrir. Mas enquanto se dispõe a escalar as escarpadas encostas de uma vida

virtuosa, para alcançar a salvação, é atacado por tentações: a luxúria, o orgulho e a avareza,

animais selvagens que tentam empurrá-lo de volta para a profundeza das trevas, dos erros

e dos vícios. Somente um espírito elevado, que conheceu profundamente as alturas e

misérias da alma humana, pode mostrar-lhe o caminho que o faça compreender as

inquietações que o mortificam. Guiado pelo princeps poetarum, Dante adentra o mundo

infernal e, magistral e assustadoramente, descreve-nos o horror das almas que se

entregaram aos vícios.

Pérsio, em seus poemas, convida-nos tomar a via direita do Y pitagórico, a sair da

caverna, a não adiar a busca da luz. Mas isso não é simples, há inimigos a vencer, e eles

estão em nós, sejam eles animais selvagens, sejam sedutoras cortesãs – que nada mais são,

afinal, do que as mesmas feras criaturas, sobreposta uma pele enganadora. Em nosso

percurso, vimos Pérsio descrever com muito humor, ironia e argúcia esses tiranos

interiores, que se confundem com o que hoje conhecemos como pecados capitais. Como

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poeta, ele usa de cores diversas para pintar os senhores que nascem em nosso fígado

doente. Como mestre em sua arte, ele saberá escolher as tintas certas e os tons apropriados

para, com destreza, dar-lhes vida.

Assim, na construção de sua iunctura acris, o callidus poeta usa constantemente o

recurso de mostrar-nos, com substantivos concretos, conceitos abstratos, unindo por

vezes, na mesma expressão, elementos de natureza diversa. Mesmo sensações e

sentimentos soem ser descritos por meio de imagens que, por pitorescas ou surreais que

possam ser, se tornam matéria palpável a nossas mãos e visível a nossos olhos. Outro

recurso basilar na construção da arte persiana é sua arte alusiva. De fato, essa técnica –

que, de certo modo, é uma extensão da iunctura acris – é, em Pérsio, rica e complexa.

Como vimos, as alusões do satírico trazem em si não apenas um diálogo intertextual com

outros autores, e Horácio é seu interlocutor preferido – embora nem sempre sua intenção

seja ratificar o conceito horaciano (não apenas suas propostas não são necessariamente as

mesmas, como também os dilemas específicos de cada época pedem respostas específicas)

–, mas há ainda um diálogo que se dá no interior de sua própria sátira, recurso esse que

serve como um fio-condutor a fornecer unidade mais estreita e estrutura mais sólida à sua

obra. Além disso, as alusões do poeta não se restringem ao nível textual, mas também se

voltam, muita vez, para a conturbada realidade social e política da Vrbs Neroniana. E se

Roma já se vê dentro de uma tirania no momento em que Pérsio escreve seus poemas, e se

a liberdade civil é uma realidade cada vez mais ilusória, resta-nos encontrar em nós

mesmos a liberdade verdadeira (e possível). Para isso, é necessário domar nossas paixões, e

e é para nos fazer entender isso que um poeta nos oferece toda a sua Arte.

Se em diversos pontos Pérsio mostra que vícios como a avareza e a luxúria acabam,

não raro, se imiscuindo sorrateiros em nossas ações, sensações e pensamentos, ele também

mostrará, em alegoria vívida, a Auaritia em cena: poderemos então vê-la imperiosa, numa

tradução impressionantemente realista da 'personalidade' dessa tirânica perturbatio animi. E

o mesmo é feito com a Luxuria, que se transforma em mulher sedutora, de quem

dificilmente um jovem, sem estremada consciência do perigo latente sob a voz macia e

melíflua dessa pérfida hetaira, conseguiria esquivar-se. Também presente em sua sátira

temos a Desidia, sirena traiçoeira, que nos seduz e nos arrebata a vida. E a Gula, que nos

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impede a satisfação com o simples, e a Ira, que nos faz ferver o sangue e acaba por

entregar-nos às Fúrias. A Vaidade aparece tentando o artista a que anseie antes um verso

que receba aplauso do que uma descrição sincera do que vai em sua alma. E, enfim,

também a Inuidia marca sua presença; ela, que nos faz tantas vezes olhar com maus olhos a

aparência de uma vida feliz alheia, a qual vida, porém, observada de perto, escondidos traz

tantas vezes em si os perigos de uma espada suspensa sobre o colo, ou a miséria de dons

inúteis que apodrecem numa despensa esquecida.

Todas essas perturbationes animi estão presentes em cada um de nós, e não é possível

vencê-las sem esforço; o qual, por sua vez, não é possível sem que seja nascido do desejo

sincero de nos tornarmos livres; desejo esse, enfim, que só há de ser despertado em quem

teve a consciência dos grilhões ocultos nos libertinos prazeres do mundo. E é inevitável: se

não as conseguirmos vencer, elas, gélidas e desapiedadas, nos subjugarão. A liberdade é

uma conquista árdua, e não nos foi dado alcançá-la facilmente. Esta contradição, ao

menos em aparência, de que devemos fazer determinadas coisas e não podemos fazer outras

para alcançar a liberdade é das questões filosóficas mais complexas e mais fundamentais

que temos visto; é dela que surge o paradoxo estóico, trabalhado pelo poeta, que ensina

solum sapientem esse liberum et omnem stultum seruom. Se não atentarmos a ela, porém,

perder-nos-emos inevitavelmente em bosque escuro, vigiado de bestas, e inelutavelmente

nosso espírito acabará por vagar, insanus, num inferno dantesco.

Por isso, Pérsio dedica seu alto talento e seu profundo saber a nos mostrar o

caminho por onde possamos ser senhores de nossas ações, e evitar o vermos estiolada a

alma pelos vícios que nos tentam diuturnamente. Por isso, escarnece o poeta os stulti e

louva a frugalidade, por isso despreza ademanes e afetações de um Nero e ama o labor e a

modéstia de um Cornuto. Se, como já se disse, 'a mentira é a religião de senhores e

escravos, e a verdade, a divindade do homem livre', Pérsio sabe que o primeiro passo que

temos de dar é não mascarar nossas fraquezas: é do vício que pensamos ocultar no jardim

do esquecimento que nasce a mais vigorosa figueira a minar, corromper e, por fim,

destruir definitiva e completamente a possibilidade de uma uita beata. Por isso, ainda,

apresenta-se o poeta diante nós, humano, lutando – desembainhado o gládio do riso –

contra o fingimento e contra as paixões que buscam morada nele próprio, para que

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possamos nós mesmos reconhecer o que também em nossa alma se passa. Para que, com a

consciência do mal, busquemos o meio de vencê-lo. E outro meio não há, senão a

sapientia: é ela e somente ela que nos pode conduzir à verdadeira liberdade.

Por tudo isso, certamente, Pérsio foi um autor tão caro aos Patres Ecclesiae; por

tudo isso, para nós, o tão debatido sentido de semipaganus – hápax que o vate volaterrano

dá como epíteto a si mesmo no prólogo de seu livro – parece antecipar uma justa

definição do poeta, a qual definição somente séculos e séculos mais tarde poderá ser

verdadeiramente apreciada e compreendida.

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BIBLIOGRAFIA

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5. BIBLIOGRAFIA

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