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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO GUSTAVO JAVIER REPETTI DA CRÍTICA AO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL À PERSPECTIVA MODERNIZANTE. AS PARTICULARIDADES DO PROCESSO DE RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA ARGENTINA RIO DE JANEIRO 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

GUSTAVO JAVIER REPETTI

DA CRÍTICA AO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL À

PERSPECTIVA MODERNIZANTE. AS

PARTICULARIDADES DO PROCESSO DE

RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA

ARGENTINA

RIO DE JANEIRO

2008

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Gustavo Javier Repetti

DA CRÍTICA AO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL À

PERSPECTIVA MODERNIZANTE. AS

PARTICULARIDADES DO PROCESSO DE

RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA

ARGENTINA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social.

Orientadora: Profª. Drª. Yolanda Demetrio Guerra.

Rio de Janeiro, 2008

FICHA CATALOGRÁFICA

REPETTI, Gustavo Javier.

Da crítica ao Serviço Social Tradicional à

perspectiva modernizante. As particularidades

do Processo de Reconceituação do Serviço

Social na Argentina/

Gustavo Javier Repetti. - 2008. 164f.: il.

Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço

Social, Rio de Janeiro, 2008.

Orientadora: Yolanda Demetrio Guerra

1.Reconceituação. 2.Perspectiva Conservadora. 3.Modernização. Dissertações.

I. Guerra, Yolanda Demetrio (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social. III.

Título.

Gustavo Javier Repetti

DA CRÍTICA AO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL À

PERSPECTIVA MODERNIZANTE. AS

PARTICULARIDADES DO PROCESSO DE

RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL NA

ARGENTINA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social.

Realizada em 03 de Março de 2008

________________________________________

Prof. Dra. Yolanda Demetrio Guerra - UFRJ

________________________________________

Profª. Dra. Ana Maria de Vasconcelos - UERJ

________________________________________

Prof. Dr. Carlos Montaño - UFRJ

RESUMO

REPETTI, Gustavo Javier. Da crítica ao Serviço Social

Tradicional à perspectiva modernizante. As particularidades

do Processo de Reconceituação do Serviço Social na

Argentina. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Escola

de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Rio de Janeiro, 2008.

A presente dissertação de mestrado propõe um estudo sobre os fundamentos

históricos e teórico-metodológicos das particularidades do Processo de Reconceituação

do Serviço Social argentino, no contexto e na conjuntura latino-americanos. Trata-se de

um estudo histórico-bibliográfico que visa contribuir com o debate para pensar a

profissão a partir da teoria social fundada por Marx. Nos três capítulos constitutivos do

corpo da dissertação explora-se, em primeiro lugar, a trajetória da tradição marxista na

América Latina, algumas particularidades que permitem compreender o cenário aberto

pela Revolução Cubana e o trajeto particular do contexto ídeo-politico argentino, a

propósito do período histórico em que se desenvolveu o chamado processo de

Reconceituação latino-americano. O segundo capítulo tenta captar as particularidades

desse processo centrando o eixo nas determinações do caso argentino, identificando as

suas próprias mediações. Finalmente, o capítulo III centra-se na critica à produção de

Ezequiel Ander-Egg, autor significativo do Movimento de Reconceituação na

Argentina, assim como em vários paises da América Latina. Trata-se da análise do

percurso da sua produção a propósito do processo de reconceituação, chamando atenção

para o que esse autor denominou “o marxismo dos não marxistas”.

Palavras-chave: Reconceituação. Perspectiva Conservadora. Modernização.

Dedico este trabalho

a meu querido avô “Negro” (In memoriam)

Agradecimentos

Quero expressar nestas linhas minha gratidão para um grupo humano que fez

com que o produto da minha pesquisa, que aqui apresento, cobrasse caráter coletivo. As

preocupações político-intelectuais que movimentaram a elaboração desta dissertação

inserem-se em um projeto que transcende as fronteiras das minhas necessidades e

interesses individuais. Inscrevem-se, por isso, na convicção de que um projeto de

profissão crítico é possível sempre que orientado pela luta por um outro projeto

societário.

A origem desse caminho encontra-se geograficamente distante do meu cotidiano

atual, como das minhas inquietações intelectuais, que foram fazendo importantes

rupturas graças a certos processos que só foram possíveis na interlocução critica no

interior da Universidade Argentina, particularmente na Faculdade de Trabalho Social da

Universidade Nacional de La Plata.

Mas, tem ainda uma instancia anterior. É, então, aos meus pais o meu primeiro

agradecimento. Esse agradecimento cobra um valor inexpressável porque tendo sido

negada para eles a possibilidade de acesso ao ensino superior, foram capazes de me

transmitir um profundo respeito pela Universidade Publica, que no meu próprio

processo de crescimento pessoal e intelectual se converteu na necessidade e na

responsabilidade ética de lutar na sua defesa. Junto com eles, a minhas queridas avós, a

meus três irmãos, a Ana e Santy, pelo apoio incondicional na distância. Mas, quero

fazer uma menção espacial a minha mãe e a minha querida vovó Tita, sem cujo apoio

cotidiano na distância, no dia a dia da escrita, não teria conseguido o resultado obtido.

Em segundo lugar, meu profundo agradecimento a minhas queridas colegas e

amigas com quem iniciei o caminho da vida universitária, Maria Lia, Mariana,

Florência e Valeria. Colegas de aula primeiro, interlocutores válidos das minhas

preocupações intelectuais, grandes amigas depois, até formar parte da minha família

escolhida.

A meus queridos amigos Viviana e Juan Pablo, grandes amigos e companheiros

na estrada da vida.

A Rosana, Manuel, Juliana, Eugenia e Susana queridos colegas dos inícios da

minha intervenção profissional e grandes amigos na atualidade, que fazem com que as

distâncias diminuam.

Disse no inicio que esta dissertação de mestrado tinha um caráter coletivo e é a

equipe de cátedra da disciplina “Trabalho Social V”, da Faculdade de Trabalho Social

da Universidade Nacional de La Plata, a responsável por me fazer acreditar na

necessidade de pensar e construir coletivamente. Quero expressar meu grande

agradecimento a essa equipe nas pessoas das minhas queridas colegas e amigas: Prfª

Marina Capello, Prfª Carolina Mamblona, Profª Valeria Redondi, e por meio delas aos

meus 22 colegas de cátedra que acreditaram em mim para iniciar este caminho de

formação pós-graduada no Brasil, sem cujo apoio – em todo o sentido do termo:

humano, intelectual e até econômico – não teria conseguido chegar tão longe.

Meu grande agradecimento aos meus queridos amigos, companheiros de

inquietações teóricas, políticas e membros, também, da minha família escolhida:

Leandro, Soledad e Simon (que esta chegando), Adriana e Paloma e Lucila que junto

com Mariel, Ramiro, Inês, e todas as pessoas que nomeei até aqui me ajudaram a

transitar um dos momentos mais difíceis da minha vida.

Meu profundo agradecimento à Profª Drª Margarita Rozas Pagaza pelo seu apoio

incondicional neste projeto.

Até aqui se trata da reconstrução do caminho que me permitiu chegar, em

dezembro de 2005, na Escola de Serviço Social da UFRJ.

Meu grande agradecimento a Kátia e Ramiro que me fizeram sentir em casa

desde o inicio e cujas orientações foram inestimáveis nos tempos iniciais do meu

mestrado, tendo chegado a ser, hoje, dois grandes amigos.

A meus queridos Mariela e Javier, que me receberam em casa na minha segunda

chegada no Rio, inestimáveis interlocutores de debates teóricos, políticos, humanos.

Grandes amigos que souberam tornar menos dolorosa a distância, o desarraigo, a

ausência dessa “estrutura” que parece dar segurança.

Meu profundo agradecimento a minhas queridas amigas Solange e Elaine. Elas

levaram a parte mais difícil, conviver com uma pessoa em processo de elaboração da

sua dissertação de mestrado. Pelo prazer que significa partilhar com elas meu cotidiano.

A Silvina, Felipe e Lorenzo, amigos com quem sempre posso contar.

A Fernanda, Ernesto e Roberth, novos amigos deste caminho escolhido.

A Rai, Glauce, Sara, Flavio, Selma, Paula, Josiane, Nailsa, Luci e Nivia que me

emprestam o seu país e me fazem sentir em casa cada dia com a sua amizade.

A Rita, Ximena, Fernando, German e Maria Fernanda, seres humanos

excepcionais, que me orgulho de ter encontrado neste caminho.

Meu grande agradecimento ao professor José Paulo Netto, à Profª Marilda

Iamamoto e ao Profº Carlos Montaño pelas suas valiosas contribuições neste processo

de crescimento intelectual e humano e, no seu nome, a todos os professores da Escola

de Serviço Social da UFRJ. Meu reconhecimento também para Luiz Fernando, Luiza,

Fabio e Sergio pelo seu importante labor.

Quero expressar um agradecimento especial à Professora Drª Ana Maria de

Vasconcelos, pela sua generosidade.

Finalmente, e não por isso menos importante – muito pelo contrário, como

forma de salientar o meu reconhecimento - o meu eterno agradecimento à Profª. Drª

Yolanda Guerra. Orientadora inestimável e excepcional ser humano. Sua pertinência

teórica, suas exigentes orientações e, sobretudo, a sua qualidade humana neste processo

que tem a particularidade de ocorrer em situação de “estrangeiro” é de um valor

inenarrável. Por tudo isso MUCHAS GRACIAS!

Meu agradecimento ao CNPq pelo apoio econômico, que gerou as condições

para o desenvolvimento da pesquisa.

Índice

INTRODUÇÃO............................................................................................................... 12

CAPÍTULO I: O Processo de Reconceituação latino-americano historicamente situado . 18

1.1 A propósito da trajetória da teoria social de Marx na América Latina ..................... 21

1.2 O novo cenário aberto pela revolução cubana. A sua influência no

desenvolvimento do Serviço Social latino-americano ................................................... 27

1.3 Aproximações para situar histórico-socialmente o Processo de Reconceituação na

particularidade da Argentina ........................................................................................ 42

CAPÍTULO II: As particularidades da Reconceituação do Serviço Social na Argentina . 76

2.1 A particularidade como campo de mediações ......................................................... 77

2.2 A propósito do Movimento de Reconceituação argentino, no contexto latino-

americano .................................................................................................................... 79

CAPÍTULO III: Para uma análise dos fundamentos do Movimento de Reconceituação

na Argentina, na ótica da obra de Ezequiel Ander-Egg................................................... 122

3.1 A critica ao Serviço Social Tradicional na ótica do Desenvolvimentismo: o

Assistente Social como Agente de Mudança............................................................... 123

3.2 O Trabalho Social como ação libertadora. De agentes de mudança para

conscientizadores-revolucionários. ............................................................................. 135

3.3 A critica de Ander-Egg ao “Marxismo dos não Marxistas”. .................................. 144

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 171

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................ 176

INTRODUÇÃO

A presente dissertação de mestrado é produto de uma pesquisa que parte de

compreender que a teoria social de Marx é a tradição teórico-metodológica que melhor

se debruçou sobre a crítica da economia política para captar a natureza do capitalismo, e

em conseqüência, as suas contribuições permitem a compreensão dos mecanismos de

produção e reprodução do capital entendido como relação social.

Com sustentação nessa perspectiva teórica, a nossa preocupação teorico-política

inicial estava orientada pelo estudo da presença e da incidência da teoria social de Marx

na formação profissional dos Assistentes Sociais na Argentina. Em face do fato de que

essa interrogação promoveria o desenvolvimento de uma pesquisa cujo resultado

parecia evidente antes de iniciá-la, a investigação foi redefinida na tentativa de pensar

uma contribuição para o diálogo entre o Serviço Social argentino e a tradição marxista.

Partindo – então - da necessidade de pensar os fundamentos do Serviço Social

contemporâneo na Argentina nos baseando na teoria social de Marx e, em uma tentativa

de contribuir na apreensão das possibilidades efetivas de apropriação rigorosa do

marxismo por parte do Serviço Social argentino, iniciamos um estudo do percurso

histórico de nossa profissão nesse país, tendo como pressuposto de que a primeira

aproximação do serviço social ao marxismo se remontava ao período histórico

compreendido entre os anos 1965-1975, com o desenvolvimento do Movimento de

Reconceituação da nossa profissão na América Latina.

Dessa forma, no memento inicial, o processo de pesquisa centrou a sua atenção

nas produções de intelectuais brasileiros1, o que permitiu uma primeira aproximação ao

1 Essa escolha vincula-se com a minha própria trajetória intelectual, já que o acesso a esse debate se deu através das produções de autores brasileiros. Esse fato responde, em primeiro lugar, à quantidade, qualidade e rigor teórico-metodológico dessas produções. Em segundo lugar, foi fundamental o convênio entre a Escola de Serviço Social da Universidade nacional de La Plata com a PUC de São Paulo, que permitiu a instauração

debate contemporâneo do Serviço Social em uma perspectiva histórico-crítica –

especificamente nos posicionando na teoria social de Marx -.

Então, a partir dessa primeira aproximação e considerando que o nosso ponto de

partida sustentava-se na premissa de que tinha se desenvolvido uma primeira articulação

entre o Serviço Social argentino e a tradição marxista na primeira metade da década de

60’ do século passado até finais da primeira metade da década seguinte – com o

processo de Reconceituação -; avaliou-se relevante um estudo rigoroso nesse campo.

Partimos, então, de considerar que a produção bibliográfica a respeito dessa

aproximação era ausente ou pelo menos insuficiente e fundamentamos a relevância da

nossa pesquisa nos três pontos seguintes.

• Considerava-se que um estudo destas características poderia contribuir na

compreensão dessa aproximação (Serviço Social argentino-marxismo),

compreensão que poderia ser relevante para a apreensão das possibilidades

atuais desse diálogo, ou seja, o seu potencial.

• Considerávamos que o estudo aprofundado das obras dos autores argentinos

mais relevantes do Movimento de Reconceituação – em particular as

publicações das editoras ECRO e Humanitas - ia nos permitir avaliar,

problematizar e questionar como se deu esse encontro – ou desencontro -. Ou

seja, de qual “Marxismo se tratou”, e qual foi a sua via de aproximação.

Fazíamos essa avaliação apesar das diversas filiações teóricas desses autores,

identificando conceitos – mesmo que resgatados de forma enviesada ou

mecânica -, que considerávamos como expressão de uma primeira aproximação

do primeiro Mestrado em Serviço Social do país, constituindo um aporte significativo para o acesso a essa perspectiva.

com a tradição marxista; qual seja as referências à Revolução e ao Método

dialético, por exemplo.

O desenvolvimento da investigação e a identificação de alguns equívocos de

ordem teórica nos orientaram na redefinição do objeto da pesquisa abandonando a

premissa inicial e redefinindo o objeto. Dessa forma o estudo das particularidades do

Processo de Reconceituação na Argentina orientou as reflexões que apresentamos na

presente dissertação, o que permitiu – mesmo recorrendo às contribuições de autores

representativos de outros países – transcender o risco de um estudo anacrônico.

Esta produção, então, tem sustentação não só em um interesse meramente

acadêmico, ou seja, há um interesse teórico-acadêmico, mas há também, e ao mesmo

tempo, um interesse ético-político. Isto é, o estudo da compreensão da história é

pensado em termos de possibilidade de compreender as determinações atuais desse

campo. Significa pensar uma contribuição que permita “revitalizar” o Marxismo em um

campo profissional impregnado de conservadorismo e transformado pelo neoliberalismo

na sua tradução da compreensão e intervenção sobre a “questão social”. Trata-se de

pensar uma contribuição para a recuperação da teoria social de Marx em um contexto

profissional atravessado por essas determinações.

Nesse contexto, toda tentativa de aproximação e diálogo entre o serviço social e

a tradição marxista, a tese fundamental de Marilda Iamamoto que concebe o Serviço

social como profissão inserida na divisão sócio-técnica do trabalho quebrando o

fundamento da evolução das protoformas, as reflexões de Netto vinculada à emergência

do Serviço social no trânsito do capitalismo concorrencial para a era monopolista e

imperialista, etc.; são desqualificadas por considerar que essa perspectiva gera uma

“sociologização” do Serviço social. “Esquece-se do sujeito” disse aquela argüição, em

uma perspectiva aonde “(...) não há sociedade, só indivíduos” (Cf. Netto, 1995: 98).

Nesta lógica, o grande desafio do presente trabalho esta posto na possibilidade

de contribuir com a categoria profissional em um momento histórico que questiona a

formação profissional crítica – sustentada em uma perspectiva de totalidade - e promove

uma “tecnificação” e fragmentação da formação profissional. Conhecer a gênese dos

encontros e desencontros da nossa profissão como a teoria social marxista, captar a sua

contemporaneidade significa resgatar para o coletivo a perspectiva totalizante que

permita desvendar o significado social da profissão e, a partir daí, aportar para um

projeto profissional qualificado e capaz de combater os embates do conservadorismo

que não geram outra coisa do que práticas profissionais sustentadoras e promotoras de

relações sociais reificadas.

A presente dissertação consta de três capítulos que propõem – em primeiro lugar

- uma análise dos fundamentos do processo de Reconceituação do Serviço Social

argentino, historicamente situado no contexto e na conjuntura latino-americana,

baseando essa reflexão na perspectiva teórico-metodológica da tradição marxista.

Apresenta-se, então, uma analise das determinações da trajetória da teoria social de

Marx na América Latina, uma contextualização do processo histórico do subcontinente,

aos fins de captar as particularidades do processo histórico argentino no período de

tempo compreendido entre a segunda metade da década de ’60 do século passado e a

primeira metade da década seguinte, que constituiu o cenário do chamado processo de

Reconceituação do Serviço Social.

O capitulo II apresenta uma discussão que visa captar algumas particularidades

do processo de reconceituação na Argentina, no contexto e na conjuntura latino-

americana. Finalmente o capitulo III propõe uma análise do Processo de Reconceituação

à luz de algumas produções de Ezequiel Ander-Egg a propósito desse processo. A

escolha desse autor para desenvolver algumas reflexões – a través de algumas das suas

obras - sobre o Processo de Reconceituação na Argentina responde a uma necessidade

de delimitação, mas não é uma escolha qualquer. Segundo mostraremos no primeiro

capítulo, Ezequiel Ander-Egg é um autor que continua tendo uma influência

significativa na formação profissional dos Assistentes Sociais, tanto em alguns centros

de formação da Argentina quanto em diferentes paises da região. Consideramos que –

na atualidade – as produções do autor fornecem uma alternativa à tendência crítica –

particularmente àquela fundada na tradição marxista - no Serviço Social. Entendemos,

então, a relevância da nossa crítica a partir dessas condições.

Esse último capítulo mostra o Movimento de Reconceituação como fenômeno

que emergiu do ideário desenvolvimentista e conseguiu transcendê-lo. Apresentaremos

uma discussão em face das determinações dessa “transcendência” e colocaremos a

nossa atenção em uma critica feita por esse autor ao que ele entende que foi “O

marxismo dos não marxistas”, que teria ferido de morte o processo de Reconceituação

no subcontinente. Essa critica nos permite pensar as reflexões do autor como

fornecedoras de sustentação para uma perspectiva que repõe uma lógica conservadora e

que desenvolve uma crítica desse processo nos termos em que Netto (1981)

compreendeu à Crítica Conservadora à Reconceituação.

CAPÍTULO I:

O Processo de Reconceituação latino-americano

historicamente situado

Analisar os fundamentos do processo de Reconceituação do Serviço Social

argentino, historicamente situado no contexto e na conjuntura latino-americana,

baseando essa reflexão na perspectiva teórico-metodológica da tradição marxista, exige

uma leitura cuidadosa da particularidade histórica desse país, que no seu processo

apresentou condições próprias para o avanço do debate nesse sentido. Esse processo é

uma condição que vai para além das fronteiras do Serviço Social, que condiciona a vida

intelectual e política do país, de uma geração e que deixa toda uma herança para as

gerações ulteriores.

O estudo histórico-bibliográfico que apresentamos se funda na compreensão da

necessária relação entre a abordagem teórica e a trajetória histórica. Isto é, compreende-

se que a análise teórica deve – necessariamente – se debruçar sobre o processo histórico,

significa entender o caráter ontológico dos fundamentos teóricos, a serem apreendidos

do e no processo histórico. É a própria historicidade do Processo de Reconceituação que

coloca os temas centrais a serem desenvolvidos, orientando o caminho percorrido pelas

nossas reflexões teóricas.

A preocupação intelectual e política, colocada no inicio, promoveu a elaboração

do que foi a nossa premissa inicial, isto é, orientou a nossa pesquisa com base em uma

suposta primeira aproximação entre nossa profissão e a teoria social de Marx no marco

do Movimento de Reconceituação do Serviço Social na América Latina. Entendemos

que esse movimento surge como resposta à necessidade de uma critica ao Serviço

Social que foi nomeado como Tradicional. Quando falarmos de Serviço Social

Tradicional, “(...) deve entender-se a pratica empirista, reiterativa, paliativa e

burocratizada que os agentes realizavam e realizam efetivamente na América Latina”

(Netto, 1981: 60).

Esse processo se funda - o “ato da sua emergência” - a partir do Encontro de

Porto Alegre, Brasil, em 1965 e – segundo Netto - vai se estender ao longo de uma

década, adquirindo um caráter “tipicamente latino-americano”.

O percurso da investigação2 abre interrogações que provocam e orientam estas

reflexões. Em primeiro lugar é necessário resgatar o processo de reconceituação como

um Movimento heteróclito3, que apresentou particularidades em cada país. Em segundo

lugar, salientar que esse processo apresenta na sua trajetória dois grandes momentos que

serão analisados no percurso de nosso trabalho. Isto é, um primeiro momento situado a

partir de 1965 e que se estende até finais dessa década e um outro momento que se pode

situar a partir de 1969 e que vai até meados da década seguinte.

Se este processo tinha-se gestado – como já se colocou – como resposta crítica

em face do Serviço Social Tradicional, a ruptura que permite um incipiente dialogo com

o Marxismo só vai começar a emergir em um processo que se dá entre os anos ’69-‘71.

É nesse momento histórico que a Frente Ampla da Reconceituação, que questionava o

Serviço Social Tradicional, mas o fazia na perspectiva desenvolvimentista e da

modernização vai entrar em confronto com uma outra perspectiva que começa, de forma

incipiente, a promover a emergência das primeiras tendências marxistas no Serviço

Social latino-americano. A avaliação da bibliografia disponível mostra não só que essa

tendência se gestou fora de Argentina, mas que a sua influencia chegou muito mais

tardiamente e por outras razões e vias. Essa tendência teve centralidade no Chile,

precisamente na Universidade de Valparaíso – com a presença de Vicente de Paula

Faleiros –, com as contribuições de Diego Palma, Teresa Quiroz, Manuel Manrique

Castro e via CELATS.

2 Nesse percurso foi fundamental a interlocução com os professores José Paulo Netto, Marilda Iamamoto, Carlos Montaño e Yolanda Guerra. 3 Nos termos de Netto (1981: 60).

1.1 A propósito da trajetória da teoria social de Marx na América Latina

Para compreender e interpretar os fundamentos do Processo de Reconceituação

do Serviço Social argentino, na perspectiva teórico-metodológica marxista, optamos

pela leitura de obras de autores como Löwy (2003), Khoan (1998), Tarcus (1996), Aricó

(1980) e Agustín Cuevas (1983). Esses autores permitem uma compreensão do percurso

da teoria social de Marx na América Latina, base sobre a qual se buscará apreender a

trajetória do Serviço Social argentino, especialmente no seu período de reconceituação.

A leitura desses autores apresenta eixos comuns do debate, alguns dos quais

questiona uma suposta lacuna – ou incompreensão - no desenvolvimento teórico de

Marx no que diz respeito a análise desse autor sobre a realidade do subcontinente latino-

americano. Sobre esse assunto foi resgatada a crítica desenvolvida pela obra de Aricó,

que oferece elementos para derrubar essa premissa. Por outra parte, aparece como

importante a necessidade de compreender a grande diversidade de movimentos

históricos que em nome do marxismo foram construídos.

“Alguns pretendem derivar disto a impossibilidade presente e futura de constituir, a partir de Marx, uma teoria da transformação social e da conquista de uma sociedade sem classes. Outros vislumbram ‘na crise do marxismo’ a surpreendente vitalidade de uma teoria que pugna por se aproximar a uma realidade totalmente distinta da que o viu nascer”. (Aricó, 1980: 45, tradução nossa).

Nessa lógica, o mesmo autor faz referência ao desenvolvimento do movimento

social vinculado à complexidade maior das relações econômicas e políticas, fato que

tem repercussão sobre as construções teóricas.

“(...) A crise do marxismo, em conseqüência, antes do que o signo da sua inevitável morte é o indicador da sua extrema

vitalidade, a morfologia que adquire a transformação das relações entre teoria, movimento e crise, é verdade que ajusta contas com um passado, mas faz emergir também as potencialidades novas liberadas no processo mesmo da redefinição da teoria nas suas relações com sua própria história, com o movimento social e com o caráter epocal do desenvolvimento capitalista”. (Ídem: 47, tradução nossa).

A idéia da crítica à teoria social de Marx como uma construção teórica

eurocentrica é questionada por Aricó na obra citada. Em primeiro lugar, o autor vai

questionar a idéia que explica uma posição determinada de Marx no que diz respeito ao

subcontinente baseada num suposto desconhecimento da realidade latino-americana na

Europa. Derrubado esse suposto, e afirmando que – não na Europa toda, mas sim na

Inglaterra - existia, na metade do século XIX, um conhecimento amplo de nosso

continente, o recurso a uma limitação epocal do pensamento marxiano “(...) encobre a

aceitação a-crítica de um teto insuperável do conhecimento que nos restitui ao euro-

centrismo de Marx”. (Idem: 55, tradução nossa). Esse autor afirma que o movimento

socialista de filiação marxista constituiu-se antes que a obra de Marx fosse conhecida na

sua totalidade, cujo acesso a leituras e divulgações de Marx e Engels foi feito a partir de

uma perspectiva fortemente positivista “(...) a sustentação teórica da constituição de

uma ideologia sistematizadora do pensamento de Marx, de nítidos perfis cientificistas, à

qual os social-democratas europeus do final do século denominaram ‘marxismo’”

(Idem: 56, tradução nossa).

“(...) Daqui para frente, para Marx e Engels será a emancipação nacional da Irlanda a condição primordial para a emancipação social do proletariado inglês. Estamos em face de uma verdadeira ‘viragem’ no pensamento de Marx que abre toda uma nova perspectiva de análise no exame do conflituoso problema das relações entre luta de classes e luta nacional, desse verdadeiro punctum dolens de toda a história do movimento socialista. (...) O Marx eurocêntrico privilegiador dos efeitos objetivamente progressivos do capitalismo, que emergiu da leitura do Manifesto, para se converter no único Marx da teoria e da pratica social-democrata, deve ceder seu lugar a uma nova

figura (...) aberta aos novos fenômenos operados no mundo pela universalização capitalista”. (Idem: 65, tradução nossa).

Assim, a crítica “eurocentrica” – segundo o mesmo autor - (Idem:96) é superada

pelo fato de que Marx,

“(...) evita identificar com o desenvolvimento capitalista e a presença de uma classe operária internacionalmente homogênea as condições de ‘libertação’ dos povos dominados e, além disso, quando não a submete ao comportamento do proletariado europeu ocidental. Pelo contrário, Marx entrevê a possibilidade de que as lutas desses povos quebrem a estabilidade da ordem capitalista no mundo e na própria Europa. (...) Os pressupostos teóricos e políticos, a partir dos quais podia ser pensada a ‘autonomia’ da região latino-americana existiam, então, no pensamento marxiano (...)” (Idem: 96, tradução nossa).

Neste sentido, Portantiero (1989) vai aportar o que ele entende que é uma chave

para a compreensão histórica do continente - e que teria obtaculizado a perspectiva

socialista -, isto é, as formas que assumiram as relações Estado - Sociedade na América

Latina. Assim, essas relações vão aparecer como estranhas para a visão da Europa. Essa

estranheza vai se vincular à articulação dos processos de construção do Estado com

aqueles de construção da nação. Ou seja, essas relações entre Estado-Sociedade, não

entravam – e daí a estranheza - na forma clássica de compreender a Revolução moderna

nos parâmetros da França de 1848. Tratou-se, melhor, de uma revolução na lógica da

Reforma.

Segundo o autor citado, os Estados nacionais na América Latina teriam sofrido

um processo de transformação “pelo alto”, trataria-se de “semi-estados” que modelando

a si mesmos, modelavam a sociedade. Os exércitos erigiam Estados territoriais e

criavam um mercado econômico, a partir do qual a América Latina se integrasse ao

mercado mundial. Então, essa constituição é diferente do modelo europeu e diferente,

também, da sua contrapartida, o modelo asiático. Assim, segundo Portantiero, essa

particularidade que gerou a visão particular de Marx sobre o sub-continente teve

continuidade na II e na III Internacional que não tinham muito para dizer a respeito.

Processo que –voltando para as contribuições de Aricó - seria um dos fundamentos da

leitura feita por Marx no que diz respeito ao Estado “Bolivariano”. Segundo esse autor,

para Marx o autoritarismo bolivariano era concebido como uma ditadura “educativa”

imposta coercitivamente ás massas que não pareciam estar maduras para uma sociedade

democrática. Mas o autor vai acrescentar que o projeto bolivariano não se esgotava no

bonapartismo nem no seu autoritarismo (Cf. Aricó, 1980: 134 e ss.).

Com relação à afirmação do parágrafo anterior, Portantiero salienta uma

dificuldade na tradição comunista para apreender uma situação que não pertence ao que

foi chamado como “questão colonial” e que tampouco pode ser assimilado ao

movimento anticapitalista nos paises avançados. (Cf. Portantiero, 1989: 336).

Assim, o autor citado afirma que uma produção latino-americana do socialismo

não consiste na aplicação ou na adaptação de uma ideologia pré-existente, mas na

capacidade de gerar e construir sujeitos políticos complexos, no duplo plano de uma

teoria capaz de dar conta das singularidades nacionais e de uma pratica hábil na

organização das massas. Assim, segundo Portantiero, os socialismos da II e da III

Internacional foram incapazes de elaborar essa problemática4.

Em termos de Aricó:

“A singularidade latino-americana não pôde ser compreendida por esse movimento não tanto pelo seu ‘eurocentrismo’, quanto pela singularidade dela. A condição nem periférica nem central dos Estados-nação do continente; o fato de ter sido o produto de um processo que gramscianamente poderíamos definir como de revolução ‘passiva’; o caráter essencialmente estatal de suas

4 As características do presente trabalho não permitem aprofundar nos debates da II e da III Internacional, mas mesmo que esse debate não seja desenvolvido aqui, é necessário salientar que tratou-se de processos que apresentam diferenças consideráveis.

formações nacionais; o rápido isolamento ou destruição daqueles processos tingidos de uma forte presença da mobilização de massa, foram todos elementos que contribuíram para fazer da América Latina um continente alheio à clássica dicotomia entre Europa e Ásia que atravessa a consciência intelectual européia desde a Ilustração até nossos dias. (…) A presença obnubilante dos fenômenos de populismo que caracterizam a história de nossos países no século XX levou curiosamente a identificar eurocentrismo com resistência a toda forma de bonapartismo ou de autoritarismo. O resultado foi uma fragmentação cada vez mais acentuada do pensamento de esquerda, dividido entre uma aceitação do autoritarismo como custo iniludível de todo processo de democratização das massas, e um liberalismo aristocratizante como único resguardo possível do projeto de uma sociedade futura, ainda ao preço de perder o apoio das massas”. (Aricó 1980: 140-141, tradução nossa).

Segundo Michael Löwy (Cf., 2003: 9) a compreensão do percurso do Marxismo

na América Latina precisa da definição de três períodos:

� Um período revolucionário entre os anos 1920 e 1935. Nesse momento, a obra

mais importante é a de José Carlos Mariategui e a sua manifestação política

vincula-se à Insurreição Salvadorenha de 1932. A revolução latino-americana

era caracterizada como socialista, democrática e antiimperialista. A contribuição

de Mariategui é apresentada como uma possibilidade de superação entre as

posições contrapostas para pensar o Marxismo no sub–continente,

particularmente no que diz respeito à critica eurocêntrica e à argumentação

endógena, como já fora salientado nos parágrafos precedentes.

� O período Stanilista entre os anos 1935 y 1959. Nesse momento a interpretação

soviética do marxismo foi hegemônica. A teoria da revolução por etapas de

Stalin coloca aquele momento como a etapa nacional democrática.

� O novo período revolucionário, após a Revolução Cubana. Considera-se que as

inquietações que promoveram o presente trabalho exigem colocar a atenção

neste item. Por essa razão tentaremos daqui para frente dar conta dos debates

centrais desse momento histórico na América Latina. Para compreender esses

processos é necessária uma leitura crítica de toda a obra marxiana que nos

termos de Aricó, ao

“(...) evitar os fáceis recursos da justificação ‘epocal’ e da limitação ‘eurocentrica’, nos permita estabelecer nos mesmos textos os momentos de continuidade e de ruptura, a recíproca relação entre teoria e história, entre análise morfológico e nível do movimento de classe. É possível pensar que o Marx que emergiria dessa operação estaria bastante longe da imagem estereotipada e ‘cientificista’ à qual nos tem habituado o marxismo oficial ” (Aricó,1980: 76, tradução nossa).

Como já fora dito no inicio do presente capitulo, o Movimento de

Reconceituação do Serviço Social é um fenômeno que apresenta características

tipicamente latino-americanas. Já foi salientado, também, que foi um processo

heterogêneo que apresentou particularidades nos diferentes paises da região, com

heterogeneidades – ao mesmo tempo – nos debates no interior de cada país. As análises

publicadas no livro organizado por Alayón (2005), que apresentam uma leitura deste

processo 40 anos depois na Argentina, na Bolívia, no Brasil, no Chile, na Colômbia, na

Costa Rica, em Cuba, no Equador, em El Salvador, na Guatemala, em Honduras, no

México, na Nicarágua, no Panamá, em Porto Rico, no Uruguai, na Venezuela, como

também suas repercussões em paises da Europa, tal o caso da Espanha e Portugal, não

só dão conta das particularidades nacionais em face desse processo como também

apresentam alguns eixos comuns para a análise. A critica ao Serviço Social tradicional

presente na sua trilogia metodológica de caso, grupo e comunidade é uma constante. A

necessidade de resposta aos problemas da região dos quais as teorias e metodologias

importadas da Europa e dos Estados Unidos não davam conta é –também - uma

constante. O deslocamento dos profissionais do Serviço Social das instituições do

Estado de Bem-estar para as organizações de base, para as organizações não

governamentais, para as favelas e comunidades parece ser outra constante. A

caracterização desse movimento como processo vinculado à academia, às universidades,

parece uma afirmação que encontra consenso nesses artigos. É um processo inserido em

um complexo mais amplo de questionamento das ciências sociais, de institucionalização

– em alguns dos paises – da nossa profissão no mundo universitário e em um contexto

de Reforma universitária em muitos desses paises sob influencia do maio francês.

Finalmente, na hora de caracterizar e analisar o contexto histórico-social no qual

esse processo se insere e a partir do qual ele se origina, as análises feitas na obra citada

de Alayón coincidem na influência decisiva da Revolução cubana e no cenário aberto

por ela no subcontinente todo. Considera-se necessário – então – nos determos nos eixos

centrais do processo que essa revolução inaugura na América Latina.

1.2 O novo cenário aberto pela revolução cubana. A sua influência no

desenvolvimento do Serviço Social latino-americano

A vitória da revolução cubana de 1959 e a proclamação de Fidel Castro, em abril

de 1961, acerca do “caráter socialista do regime” significaram uma mudança radical

para o Marxismo na América Latina, cuja difusão tinha tido origem com a chegada das

primeiras idéias socialistas no subcontinente aos finais do século XIX. Terá lugar,

assim, uma consolidação de correntes radicais que vão afirmar a natureza socialista da

revolução e a legitimidade – em algumas ocasiões - da luta armada.

Esse novo período aberto para a América Latina cujo representante mais

importante é Che Guevara, vai gerar novas correntes revolucionárias no continente.

Assim os eixos colocados por Guevara salientados por Löwy (Cf. 2003: 43 e ss.)

tem a ver com:

� A importância de uma ética comunista no processo revolucionário.

Trata-se de uma rejeição das medidas econômicas de construção socialista que se

baseavam “nas armas podres do capitalismo”. É uma critica ao modelo econômico,

político e social do socialismo real, na busca de um caminho alternativo, igualitário e

solidário.

� O caráter socialista da revolução na América Latina, que implica a derrota do

imperialismo e da exploração local.

� A luta armada como forma de combate aos regimes ditatoriais da América

Latina, é a compreensão da guerrilha rural como continuação da luta política

revolucionária, mas por outros meios.

Em 1967 teve lugar o Congresso da Organização latino-americana de

Solidariedade (OLAS), que se reuniu em Havana; numa tentativa de coordenação

continental – pela primeira vez desde Bolívar - do processo revolucionário latino-

americano. É, também, a proclamação da unidade do conteúdo democrático-socialista

da revolução latino-americana.

Assim, o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT) e o Exército

Revolucionário do Povo (ERP) na Argentina, o Movimento de Esquerda Revolucionária

(MIR) no Chile, os Tupamaros no Uruguai e o Exército de Libertação Nacional (ELN)

na Bolívia vão formar parte de uma junta de coordenação revolucionária que vai

organizar a corrente Guevarista em meados da década de ’70 do século passado e que

vai entrar em crise no final dessa década.

Nos anos ’60 juntamente com o Guevarismo, o Trotskismo5 e o Maoismo6

cresceram significativamente na América Latina. Esse crescimento é resultado da crise

5 “A pedra fundamental do Trotskismo foi, e continua sendo, a tese da revolução permanente, formulada originalmente por Marx, que Trotsky reformulou em 1906, aplicando-a a Rússia, e voltou a desenvolver em 1928. Trotsky via a transição para o socialismo como uma serie de transformações sociais, políticas e econômicas, ligadas entre si e interdependentes, que ocorrem em vários níveis e em diversas estruturas sociais – feudal, subdesenvolvida, pré-industrial e capitalista - e em diferentes conjunturas históricas. Esse “desenvolvimento desigual e combinado” seria motivado pelas circunstâncias e pela sua própria dinâmica, a partir de sua fase burguesa antifeudal, até sua fase socialista anticapitalista. Nesse processo, transcenderia as fronteiras geográficas fixadas pelo homem e passaria de sua fase nacional a uma fase internacional, no rumo da criação de uma sociedade sem classes e sem Estado em escala global.(...) O estabelecimento de uma sociedade socialista sem classes não pode, de acordo com o Trotskismo, ocorrer senão por meio de um rompimento revolucionário com a ordem existente. O Trotskismo rejeita o progressivo caminho parlamentar dos votos como ilusório; em sua concepção, as classes exploradas não serão capazes de tomar o poder sem uma luta contra as classes proprietárias, que defenderão sua dominação econômica. A vitória do proletariado nessa luta de classes terá de ser, segundo o esquema trotskista, protegida pela criação de uma “ditadura do proletariado””. (Bottomore, 1983: 394-395). Para um aprofundamento dessas reflexões, ver Campos (1986). Sugerem-se também as obras do próprio Trotsky: “A revolução permanente”: Ciências Humanas, 1979. “A revolução traída”: Antídoto, 1977. 6 Segundo o dicionário de pensamento marxista de Bottomore (Idem: 231-233), “A China da década de 1920, quando Mao começou o seu aprendizado da revolução, era, é claro, um país economicamente muito atrasado significava que, apesar de tudo o que pudesse dizer sobre a hegemonia do proletariado (ou de sua vanguarda), o partido comunista tinha de recorrer aos camponeses como a maior força social suscetível de apoiar a causa revolucionária. (...) sua estrutura de classes era constituída igualmente por um numero limitado, mas em rápido crescimento, de trabalhadores urbanos e de empresários chineses, uma “burguesia nacional”, por uma classe pequena, mas extremamente poderosa, de proprietários de terras, por camponeses (ricos e pobres, com terra e sem ela) e por uma grande variedade de outras categorias(...) As conseqüências dessa situação refletem-se nos conceitos de “contradição principal” e de “aspecto principal da contradição principal”, que desempenham um papel tão grande na interpretação dada por Mao à dialética. (...). Ele tinha por axiomático que a principal contradição era a que existia entre o proletariado e a burguesia e que assim continuaria sendo até que o conflito fosse resolvido pela revolução socialista. Mao, por sua vez, considerava como sua tarefa prática mais premente determinar, à luz do que lhe parecia uma análise marxista, onde era possível abrir brechas decisivas, tanto na China como no mundo. De certa forma, é claro, ele estava simplesmente seguindo uma linha de análise esboçada pelo próprio Marx e desenvolvida por Lênin (e Stalin), segundo a qual não só os camponeses, mas outras classes e grupos em uma sociedade pré-capitalista, poderiam participar da fase democrática da revolução, e o comportamento das diferentes classes em um determinado país poderia ser afetado pela realidade da dominação estrangeira. O problema é que Mao sistematizou e desenvolveu essas idéias, delas extraindo

do movimento comunista tradicional e do fato de que a Revolução Cubana foi vista

como uma confirmação de teses defendidas pelos partidários da IV Internacional. Qual

seja, a teoria da revolução permanente compreendida como um processo que conduziria

ao avanço da revolução democrática em uma revolução socialista.

Essas correntes estabeleceram – as vezes - relações de colaboração. A fusão, em

1965, do grupo castrista e trotskista no PRT - que constituiu a seção Argentina da IV

internacional entre 1969 e 1973 -, foi exemplo disso na Argentina.

A relação Guevarismo-Maoismo, por sua vez, foi conflituosa na maioria das

vezes. A expressões maoístas propunham um retorno à política ofensiva do tempo da

Guerra Fria (1949 – 1953) e à tentativa de aplicar a estratégia do P.C. Chinês. Seguindo

o exemplo chinês propunha um “bloco de quatro classes” e o estabelecimento de um

governo revolucionário pela guerra popular. Uma revolução antiimperialista e

anticapitalista. O Partido Comunista Marxista-Leninista (P.C.M.L.) da Bolívia se

recusou a apoiar Che Guevara em 1967, o que gerou um confronto entre o Maoismo e o

Guevarismo no continente.

A corrente maoísta vai entrar em crise no continente como resultado da política

exterior da China nos anos ’70 do século passado, particularmente na sua aproximação

aos Estados Unidos e a sua ambigüidade diante de Pinochet no Chile.

Então, após 1960, o Guevarismo, o Trotskismo e o Maoismo enfrentaram um

grande desafio pela hegemonia dos partidos comunistas.

Nem o surto revolucionário na América Central (Cf. Löwy, 2003: 58) nem a

formação de novos movimentos operários populares no Brasil podem ser

conclusões filosóficas às quais atribuía validade geral. Pode-se argumentar que foi essa dimensão de sua abordagem da revolução, juntamente com a sua concepção de que a prática era primordial e a teoria secundária, que levou a uma tão grande variedade de interpretações, por vezes categoricamente opostas, do homem e de seus ideais”.

compreendidos sem a consideração de um fenômeno novo e inesperado, a radicalização

de amplos setores cristãos e a sua atração pelo marxismo, a partir do Concilio Vaticano

II. Segundo alguns autores como Gutierrez, citado na obra de Löwy, a proposta da

Teologia da Libertação apresentava-se mais radical do que os Partidos Comunistas

latino-americanos naquele período. Assim, a teologia da libertação é produto dessa

abertura da Igreja Católica.

Inicia-se (Cf. Portantiero, 1989: 339) – então - para o socialismo latino-

americano um novo momento histórico. Ele vai aparecer marcado pela influencia do

castrismo como fusão ideológica de nacionalismo e socialismo, que sintetizava décadas

de histórias paralelas, e influenciado também pelo guevarismo enquanto inspiração de

ação política.

Continuando com o raciocínio do autor, além da Revolução Cubana,

“A crise cada vez mais aguda do movimento comunista internacional provocará importantes efeitos, sobretudo a partir do cisma chinês e da virada maoísta para a ‘revolução cultural’, e, em alguns paises, como Argentina, através da difusão do pensamento Gramsciano. Nos inícios dos anos ’70, por outro lado, e em meio de uma segunda onda de ascensão “guerrilheira”, chegara a seu apogeu no Chile uma outra versão do crescimento do socialismo: a vitória eleitoral de Salvador Allende, como prolongamento tardio da linha do VII congresso do Comitern, que os partidos comunistas ortodoxos jamais haviam abandonado”. (Idem: 340)

O autor vai colocar que aquela vontade de “latinoamericanizar“ o socialismo, na

geração de uma revolução continental não teria encontrado sucesso por ter considerado

a América Latina como uma unidade.

Essa onda revolucionária esteve presente em quase todos os paises do

subcontinente. A bibliografia consultada revela a derrota dessa primeira onda

revolucionária na segunda metade dos anos ’60, colocando como baliza disso a captura

e assassinato de Che Guevara em 1967.

É interessante, a partir destas reflexões, chamar a atenção para o lugar que o

processo de Reconceituação teve em Cuba. Segundo o artigo da Assistente Social

cubana Odalys González Jubán, que é parte do citado livro de Alayón (2005), Cuba não

teve participação nesse processo. Certamente ao tempo em que aquele processo se

estendia pela América Latina, a Revolução estava triunfando nesse país e as

inquietações que mobilizavam os profissionais do Serviço Social no subcontinente, em

termos de mudança social, mostravam signos de realidade naquele país. Apesar disso, a

autora citada coloca o fato de ter se gerado – com o triunfo da revolução – (Cf.

González Jubán, in Alayón, 2005: 144) uma concepção idealista na população que

acreditava que problemas sociais, como a pobreza, seriam erradicados. A autora

apresenta como dificuldade no desenvolvimento do Serviço Social Cubano o fato da não

re-abertura do curso de Serviço Social após o fechamento e posterior re-abertura das

Universidades e acrescenta – avaliando o desenvolvimento do serviço social desde os

anos ’50 do século passado - que o Serviço Social não foi considerado uma profissão

necessária. Considera-se que o raciocínio é coerente com o movimento histórico de um

país onde triunfava a Revolução na direção de uma sociedade sem classes.

As afirmações feitas no parágrafo anterior devem ser cuidadosamente tratadas

para evitar uma compreensão que nos leve ao risco de fazer uma leitura reducionista

desse processo. Isto é, o fato de estarmos colocando algumas interrogações no que diz

respeito ao processo cubano – e pontualmente o lugar da profissão de Serviço Social

nesse processo – não deve, de forma alguma, ser entendido em termos da eliminação da

profissão como produto desse processo. Ou seja, a sociedade sem classes na qual o

Serviço Social não faria sentido, não pode ser reduzida à experiência de um país e,

menos ainda, em um processo de transição pós-revolução. Feita essa aclaração, é

possível pensar que foi a particularidade daquele processo que imprimiu uma trajetória

diferente ao Serviço Social da Ilha. Tentemos compreender as nossas interrogações a

partir das contribuições de Marx e Engels na Ideologia Alemã (1979: 72). Segundo os

autores, as idéias da classe dominante são em cada época as idéias dominantes “(...) isto

é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força

espiritual dominante” (Ibidem). Nessa lógica, a classe que tem a sua disposição os

meios de produção material, tem também a sua disposição os meios de produção

espiritual “o que faz com que a ela sejam submetidas e em média, às idéias daqueles aos

quais faltam os meios de produção espiritual” (Ibidem). E ainda mais:

“As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação” (Ibidem).

Entendemos – seguindo a Iamamoto - que o Serviço Social, como profissão

inserida na divisão social e técnica do trabalho, participa na legitimação do poder dos

grupos e/ ou frações de classe dominante que controlam o aparelho estatal, através da

implementação de políticas sociais especificas. Isto é, a profissão não se insere de forma

imediata no processo de produção de produtos e de valor, ou seja, no processo de

valorização do capital (Cf. Iamamoto, 2000: 111), e continuando na lógica da autora,

“O modo capitalista de produzir supõe, pois, um ‘modo capitalista de pensar’, que expressa a ideologia dominante, na sua força e nas suas ambigüidades. Esse modo de pensar necessário à ‘reelaboração das bases de sustentação – ideológicas e sociais – do capitalismo’, é retriado [sic] a partir do modo de produzir a riqueza material, da reprodução do modo de vida instituído pelo capital. A economia capitalista, quando comparada a períodos históricos anteriores, prescinde de laços extra-econômicos de dependência pessoal, já que a própria lei da oferta e procura estabelece uma dinâmica ‘natural’ às relações econômico-sociais. Porém, não prescinde de novas formas de controle social que garantam e fortaleçam o ‘consensus’ social. É indispensável um mínimo de unidade na aceitação da ordem do capital pelos membros da sociedade, para que ele sobreviva e

se renove. Uma vez que não existe sociedade baseada na pura violência, é necessário recorrer à mobilização de outros mecanismos normativos e adaptadores que facilitem a integração social dos cidadãos e a redução do nível de tensão que permeia as relações antagônicas. A burguesia tem no Estado, enquanto órgão de dominação de classe por excelência, o aparato privilegiado no exercício do controle social, embora aí não se esgote, abarcando as instituições da sociedade civil. Porém, o controle social, não se reduz ao controle governamental e institucional. É exercido, também, através de relações diretas, expressando o poder de influencia de determinados agentes sociais sobre o cotidiano de vida dos indivíduos, reforçando a internalização de normas e comportamentos legitimados socialmente. Entre esses agentes institucionais encontra-se o profissional do Serviço Social” (Iamamoto, 2000: 106-108).

Assim, parece necessário colocar a interrogação no que diz respeito ao lugar da

profissão em um cenário onde estava triunfando um processo no qual as relações

materiais dominantes estavam mudando radicalmente na direção de uma sociedade sem

classes. Esse ganho revolucionário que é colocado como um acontecimento que abria

um novo cenário político e social para América Latina, que abria um horizonte novo

apresentando possibilidades de mudanças radicais e que teve uma influencia

considerável nos avanços e retrocessos do Serviço social latino-americano, abriu – pelas

mesmas razões – um novo cenário com novos desafios para o Serviço Social Cubano

que daria conta da inexistência de um processo de Reconceituação da profissão nesse

país como se conheceu em quase todos os outros paises da região.

Esse cenário político-social que a Revolução Cubana abriu para o subcontinente

latino-americano apresentava-se como um grande perigo para os interesses do

imperialismo, razão pela qual a resposta norte-americana não tardou em chegar. A

Aliança para o progresso constituiu a resposta dos Estados Unidos em face do perigo de

“exportação” da experiência cubana para outros paises da região. Tratou-se de uma

estratégia tendente a garantir a ordem no “quintal” dos Estados Unidos. Essa resposta de

claro caráter econômico-político foi apresentada em termos de projeto técnico. Em

termos de “contribuições” ou “sugestões” técnicas que acompanhavam uma proposta de

oferta de créditos que, juntamente com essas tais “sugestões técnicas”, permitiriam o

desenvolvimento da região. No discurso pronunciado por Che Guevara na 5ª sessão

plenária do Conselho Interamericano econômico e social, pronunciado em 8 de agosto

de 1961 no Uruguai7, é possível encontrar uma minuciosa análise da realidade da

região, do significado da Revolução Cubana nos caminhos do Subcontinente, como

também do sentido daquela Conferencia e dos objetivos da Aliança para o Progresso

como estratégia tendente ao isolamento de Cuba e o disciplinamento dos restantes

paises que conformam o nomeado “quintal” do império. Em termos de Guevara:

“Disse Fidel Castro, com motivo da conferência de Costa Rica, que os Estados Unidos tinham ido ‘com uma sacola de ouro em uma mão e um capacete na outra’. Hoje, aqui, os Estados Unidos vieram com uma sacola de ouro -afortunadamente maior - em uma mão, e a barreira para isolar Cuba na outra. É, de qualquer maneira, um ganho das circunstâncias históricas” (Discurso de Guevara, Op. Cit., tradução nossa).

No percurso do discurso todo, Guevara mostra que trata-se de uma estratégia

que des-economiza e des-politiza o problema do desenvolvimento/ subdesenvolvimento

da região, e denuncia o fato de que aquele Conselho, mesmo se apresentando como um

conselho “Técnico”, encobre um claro caráter econômico-político. O documento

denuncia com clareza a preocupação central dos Estados Unidos em termos da

necessidade de que os países de América Latina entrem em um processo de

crescimento, processo que evitaria o “perigo” de um fenômeno chamado "castrismo",

fenômeno que constituía um dos maiores riscos para o país do norte. Dizia Che Guevara

no discurso citado:

7 Disponível em: www.marxists.org.

“Temos denunciado que a «Aliança para o Progresso» é um veículo destinado a separar o povo de Cuba dos outros povos de América Latina, a esterilizar o exemplo da Revolução cubana, e, depois, domesticar os outros povos segundo as indicações do imperialismo” (Tradução nossa).

Se a partir do assassinato de Guevara em 1967 teria se fechado uma primeira

onda revolucionária, nos anos ’70 do século XX, teria se gestado uma outra onda

revolucionária com a volta para a luta armada. Essa segunda onda teria apresentado

características diferentes das do momento histórico anterior. Em primeiro lugar

produziu-se um deslocamento desde o ponto de vista geográfico, quer dizer, o centro da

cena teria se deslocado do norte da América Latina para o Cone Sul,

“(...) para os paises relativamente mais desenvolvidos (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile), e, metodologicamente, por causa das características dessas sociedades o tipo de organização se modificará: os novos grupos insurgentes (PRT-ERP na, Argentina; ALM, no Brasil; Tupamaros, no Uruguai; e MIR, no Chile) desenvolverão uma estratégia predominantemente urbana”. (Portantiero, 1989:346).

Aqueles grupos insurgentes a que o autor faz menção na citação anterior, no

contexto urbano, vinculam-se – fundamentalmente - ao movimento operário e

estudantil. Esses movimentos vão apresentar, com a influência do maio francês de 1968,

uma modalidade de luta que vai além das reclamações vinculadas somente à questão

salarial, quer dizer, em muitas dessas lutas coloca-se com clareza uma perspectiva

classista.

Em parágrafos anteriores se chamou a atenção sobre as dificuldades que

apresenta o fato de pensar a realidade latino-americana como uma unidade ou região

homogênea8. Por essa razão o momento histórico no subcontinente nos anos ’70 do

século passado apresentou particularidades. No caso particular de Argentina, significou

uma radicalização do antigo “movimento populista”que, segundo Portantiero, vai

combinar “a revolta operária guiada pelos sindicalistas, o progressismo militar e a

‘tradição populista’ do nacionalismo revolucionário”. (Idem: 348-349). Nos casos do

Uruguai e do Chile, a frente ampla no primeiro e a frente popular no segundo

respondem à aplicação, por parte de alguns partidos comunistas, da estratégia de

oposição proclamada pelo VII Congresso da Internacional.

As sangrentas ditaduras militares espalhadas desde os anos ’60 até meados dos

anos ’80 e inclusive até os noventa, como no caso chileno, foram constitutivas de uma

estratégia do capital – nacional e internacional -, da forma que assumiu a dominação

para a remodelação das sociedades latino-americanas em face de uma nova crise de

acumulação. Foi a “inauguração” a nível mundial do que depois amadureceria como a

política neoliberal.9 Essa afirmação é válida para o processo argentino liderado pelo

8 Para Netto, a unidade potencial da América Latina vincula-se com a luta de classes e a conformação dos Estados, mas não há uma identidade latino-americana. Segundo esse autor, todos os processos na América Latina apresentam antagonismos similares: as classes dominantes nacionais e o imperialismo, que no sub-continente está representado principalmente por EE.UU. Assim, o que daria caráter de unidade à América Latina é que todos os processos para a organização política e social nos Estados nacionais encontraram como oposição os mesmos protagonistas. Mas as mediações históricas são diferentes em cada Estado nacional, o que lhes dá uma base comum: Unidade de diferenças (“América Latina na dinâmica capitalista contemporânea”. Palestra proferida no GEAL / ESS. UFRJ. Outubro de 2006). 9 Pensar o modelo neoliberal como estrutural permite observar as respostas que, segundo Hayek, apresentou em face de diversos problemas vinculados ao poder dos sindicatos e, de forma geral, do movimento operário, que tinha socavado as bases da acumulação privada com as suas pressões reivindicativas sobre os salários, para que o Estado acrescentasse cada vez mais os gastos sociais. A solução, então, foi clara: manter um Estado forte na sua capacidade de quebrar o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas limitado no inerente aos gastos sociais. Então, foi necessária uma disciplina orçamentária, com a limitação do gasto social e a restauração de uma taxa “natural” de desemprego, ou seja, a criação de um exército industrial de reserva para quebrar os sindicatos. Foram necessárias, também, reformas fiscais para incentivar os

ministro de economia da ditadura José Martinez de Oz e para o caso paradigmático do

Chile. O resto dos paises apresenta particularidades neste sentido.

Seguindo as análises de Agustín Cuevas (1983), o panorama da América Latina

na segunda metade dos anos setenta do século passado se apresentava como um cenário

nada alentador. A conjuntura política da América Latina é apresentada pelo autor nos

termos da citação seguinte:

“A ditadura militar do país mais importante do subcontinente, o Brasil, parecia estar plenamente consolidada, ao cabo de mais de doze anos de exercício do poder, e dotada de uma grande capacidade de expansão em todos os sentidos. Na Bolívia, país tradicionalmente turbulento, a ditadura de Banzer parecia ter imposto, ‘por fim’, uma estável ordem pró-imperialista . Uruguai e Chile sofriam, por sua parte, os mais rigorosos efeitos dos regimes fascistas instaurados desde 1973; enquanto na Argentina o governo da Sra. Estela Martinez de Perón se desmoronava, dando lugar à férrea ditadura do General Videla. Subjugado pela tirania de Stroesser desde 1954, o Paraguai não fazia mais que corroborar o trágico quadro do Cone Sul latino-americano (...) Esgotado no plano político, afetado por uma aguda crise econômica e tendo inclusive seu líder histórico fisicamente extenuado, o processo nacionalista e reformista do

agentes econômicos. Em outras palavras, significava reduções de impostos sobre as atividades mais lucrativas e sobre as rendas. Assim, uma “nova e saudável” desigualdade voltaria a dinamizar as economias avançadas, prejudicadas pela estagflação (estancamento econômico com inflação). Isto significou uma forte propaganda ideológica anti-estatista, privatista e de incentivo do medo à inflação e a necessidade da estabilidade, ainda sobre grandes custos sociais. Anderson coloca os resultados do neoliberalismo em três esferas: 1) Político-ideológico: logrou, com êxito debilitar os sindicatos e as organizações da classe trabalhadora e constituiu-se como modelo único, como única alternativa possível, para o senso comum da maioria da população e também para partidos social-democratas que foram em muitos casos os responsáveis pela implementação dessas políticas. Gerou individualismo e despolitização como resultados buscados. 2) Social: êxito, na expansão e aprofundamento da desigualdade e o desemprego. Foi um êxito porque não são conseqüências não desejadas do projeto neoliberal, são objetivos dele. 3) Econômico com um objetivo histórico: a reanimação do capitalismo avançado, sustentada em um discurso que colocava a possibilidade de restauração das altas taxas de crescimento estável próprias da onda expansiva dos ‘50 e ’60 (Cf. Anderson, 1999). Um debate acabado sobre o neoliberalismo excede as possibilidades da presente dissertação. Nossa intenção limita-se a colocar os pontos centrais que dão conta do significado da política neoliberal.

Peru encerrava sua fase progressita em 1973, com a substituição de Velazco Alvarado pelo general Morales Bermúdez. Quase simultaneamente, no Equador, outra experiência militar nacionalista, a do General Rodriguez Lara, expirava vitima das suas próprias contradições: em janeiro de 1976, assumia o poder o almirante Poveda Burbano, assinalando uma clara virada para a direita” (Cuevas, 1983: 13)

O próprio Cuevas (Idem: 14 e ss.) continua apresentando esse panorama aberto

para a região assinalando a situação da Venezuela como uma situação de exceção onde

se desenvolvia uma forma democrático-burguesa de governo. A situação na América

Central não era diferente; no entanto, a Costa Rica tinha conseguido manter o seu

regime democrático, a Nicarágua continuava sob o regime do ditador Somoza e

Honduras encontrava-se fazendo um giro à direita após um período com matizes

progressistas que se estendeu até 1975. “Quanto a situação de El Salvador e da

Guatemala, é quase desnecessário comentar: ditaduras ‘eleitas por sufrágio universal’ e

a repressão terrorista na ordem do dia” (Ibidem). A situação do Caribe apresentava a

particularidade de Cuba com a consolidação econômica e política do seu processo de

transição ao socialismo, mas esse regime continuava isolado no contexto universal.

Segundo Cuevas, no resto das Antilhas o panorama encontrava-se longe de mostrar

sinais alentadores.

“Como se pode comprovar através deste breve relato histórico, a América Latina e o Caribe chegaram a formar uma área em que a pax imperialista parecia ter-se imposto plenamente, assegurando a estabilidade do ‘quintal’ estadunidense. O Sr. Kissinger havia cumprido cabalmente sua missão e o ‘gorilismo’ crioulo também podia orgulhar-se do seu trabalho. O triunfo da contra-revolução era um fato consumado em nove décimos da região. E sobre essa base política, que significou uma substancial alteração da correlação de forças existente no inicio da década de ’70, o grande capital estava em condições de levar adiante o reordenamento da economia latino-americana em função da nova fase, de crise e de reacomodação, em que havia entrado todo o sistema capitalista mundial ” (Cuevas, 1983:14).

É necessário salientar – acompanhando o raciocínio de Cuevas (1983: 15 e ss.) –

que no contexto descrito o nosso subcontinente oferecia certos incentivos que eram de

interesse para o capital transnacional. Isto é, a região contava com uma mão de obra

altamente desenvolvida, por causa da sua experiência no período da industrialização

anterior e de baixo custo. A América Latina oferecia uma estrutura viária e portuária

importante, um mercado interno desenvolvido e oferecia, também, a existência de

matérias primas, dentre as quais incluía recursos naturais e energéticos baratos.

“Trata-se de um desenvolvimento relativamente importante do capitalismo que, em sua extrema complexidade, por um lado, não deixava de aguçar uma série de contradições no processo de acumulação de capital e, por outro, gerava simultaneamente uma série de novas forças sociais empenhadas em articular projetos alternativos de desenvolvimento para as sociedades latino-americanas. Em muitos casos esses projetos apresentavam não só direções progressistas como também trajetórias com objetivos revolucionários” (Cuevas, 1983: 16).

Houve um importante crescimento da classe operária, tanto em termos

quantitativos, por causa do próprio desenvolvimento capitalista a que a citação anterior

faz referência, quanto em termos qualitativos; a raiz da capitalização de experiências e

triunfos reais como a Revolução Cubana em 1959 e o triunfo boliviano de 1952. Essa

realidade permitiu uma radicalização dos setores populares da região, que deu lugar as

mais diversas formas de luta a partir dos anos ’60 do século passado, situação que

converteu o subcontinente em um “perigo” constante para o imperialismo.

As respostas imperialistas em face desse “perigo” vão adquirindo novas formas

no devir do processo histórico. Já foi apresentada – em parágrafos anteriores – a Aliança

Para o Progresso como resposta ao “perigo” de empalhação do “exemplo” da Revolução

Cubana nos primeiros anos da década de sessenta. A resposta reacionária em face dessa

segunda onda revolucionária situada nos anos setenta do século XX, adquiriu a forma de

férreas ditaduras militares.

“(...) tal resposta, por exitosa que pudesse parecer, era em si mesma uma faca de dois gumes: de imediato, diminuía e desarticulava determinadas forças sociais portadoras de projetos transformadores, conjurando momentaneamente o “perigo iminente”, mas tal ‘conjuro’ estava muito longe de constituir uma solução definitiva. Ao não modificar em um sentido ‘descompressor’ a base estrutural geradora deste acúmulo explosivo de contradições – e, aliás, agindo ao contrário - , a própria repressão passava a converter-se em mais um elemento de exasperação dessas mesmas contradições” (Cuevas, 1983: 16-17).

Cuevas continua a sua análise mostrando a forma em que esse contexto foi

compreendido pelo império e como a política de Carter “em favor dos direitos

humanos” constituiu uma resposta nessa direção.

“(...) em síntese não passava de uma inútil tentativa de recuperação da hegemonia ideológica perdida pelo capitalismo no ultimo período. Tratava-se, para o caso de América Latina, de abrir uma válvula de escape, incentivando formulas de mudanças governamentais capazes de apresentar uma fachada democrática e civil, que tornasse menos explícita e odiosa a dominação burguesa imperialista, sobretudo onde esta havia posto a descoberto sua fase mais terrorista. Se com a política Kissingeriana a repressão estivera na ordem do dia, agora, com a política de Carter , parecia que ingressávamos na fase de construção de um ‘consenso’ Assim foram concebidas as coisas; mas ocorre que a história tem sua densidade objetiva. Os dois ingredientes inerentes a toda dominação burguesa – isto é, a violência física e a manipulação ideológica – não podem ser dosados à vontade em qualquer ponto do sistema, pois o índice de predomínio de um ou outro elemento corresponde a uma lei estrita: a do desenvolvimento desigual das contradições do capitalismo. A democracia burguesa como forma de dominação sólida e estável – recordemo-lo – não é a superestrutura ‘natural’ do modo de produção capitalista, e sim a modalidade que tal dominação adquire nos elos mais fortes (ou relativamente fortes) do sistema, em função de determinadas características nacionais e internacionais da luta de classes” (idem: 17).

O autor vai colocar a questão de uma contradição entre o “modelo econômico

que o sistema precisava aplicar para reativar seu processo de acumulação e o modelo

político que o próprio sistema requeria idealmente para ‘descongestionar’ a situação”

(Idem: 18).

É possível, nesta lógica, compreender a posição dos setores fascistas da região

que pareciam não entender o fato de que o mesmo imperialismo que havia apoiado a sua

emergência aos fins da realização do “trabalho sujo” – em termos de Cuevas – agora se

apresentasse sob a bandeira dos “direitos humanos”.

Assim, segundo as colocações do Löwy na obra citada (2003: 61) os finais dos

anos ’80 com a ofensiva neoliberal triunfante, com o impacto nas esquerdas marxistas

latino-americanas em face da queda do Muro de Berlim, o fim da URSS, a derrota

Sandinista e o desarmamento da Guerrilha na América Central, com o sinistro resultado

das ditaduras militares que não só reprimiram, mas fizeram desaparecer parte

significativa da massa critica em alguns paises, somado às dificuldades com que Cuba

começou a se defrontar, dariam conta do fim do período aberto pela Revolução Cubana

em 1959 e que atravessou esses diferentes momentos no percurso histórico, segundo

tentamos dar conta no nosso desenvolvimento.

A partir das análises apresentadas até aqui e com o objetivo de avançar na

caracterização histórico-social e política que conforma o cenário de um momento

histórico da profissão de Serviço Social, tentaremos, no ponto seguinte, indicar –

voltando a alguns temas já tratados - algumas particularidades do processo argentino.

1.3 Aproximações para situar histórico-socialmente o Processo de Reconceituação

na particularidade da Argentina

Pensemos agora na particularidade nacional da Argentina, situada nesse cenário

que a Revolução cubana abriu para o subcontinente e, tentemos também captar – ou

pelo menos problematizar – as mediações que permitem essa compreensão como

também as mediações que dão um caráter particular aos caminhos e descaminhos do

marxismo dentro das suas fronteiras nacionais. É nesse cenário e a partir dessas

mediações que acharemos algumas luzes para situar o desenvolvimento do Movimento

de Reconceituação - que teve um papel central nos avanços e retrocessos do percurso da

profissão de Serviço Social na região – que teve na Argentina um epicentro importante,

como veremos nos dois próximos capítulos.

A análise que interessa aos fins de compreender o nosso objeto limita-se ao

espaço de tempo entre os anos de 1966 e 1976. Este é um período que começa e acaba

com regimes ditatoriais os quais chegam ao poder com a legitimação do apoio de grande

parte da população, embora com argumentos e características diferentes para cada uma

dessas ditaduras. Dentro dessa década há apenas um período de governo democrático,

caracterizado por uma democracia fraca e intermitente.

A ditadura que se inicia em 28 de junho de 1966 na Argentina - que leva ao

poder o General Carlos Onganía após a queda do governo constitucional do Dr. Illia -

gerou grandes expectativas para os grandes empresários, o establishment econômico

com interlocutores no governo militar, e significou o fim da democracia “burguesa”

segundo a ótica de alguns grupos da extrema esquerda. Os partidos Radical, Socialista e

Comunista não apoiaram esse consenso (Cf. Romero, 2006: 160 e ss.).

O período inicial desse novo governo ditatorial significou a dissolução do

parlamento - ficando nas mãos do presidente os dois poderes (executivo e legislativo) -,

a dissolução dos partidos políticos cujos bens foram vendidos e confiscados, situação

que – em termos do autor citado - fechou a vida política no país. Esse processo foi

caracterizado pelo próprio governo como uma etapa revolucionária e nomeado como

Revolução Argentina.

“(...) foi criado uma espécie de estado-maior da Presidência, integrado pelos conselhos de Segurança, Desenvolvimento econômico e ciência e tecnologia, pois segundo a nova concepção, o planejamento econômico e a pesquisa cientifica eram considerados insumos da segurança nacional” (Romero, 2006: 161)

Os setores que tinham apoiado o golpe de Estado compunham um grupo bem

heterogêneo, mas todos eles iam se unir na luta contra o comunismo, repressão que

incluía toda expressão de pensamento critico ou diferente daquele expressado pelo

Poder.

“O alvo principal foi a universidade, vista como o ambiente típico de infiltração, berço do comunismo, lugar de difusão de todo tipo de doutrina de dissolução da sociedade, foco da desordem (...) as manifestações que reivindicavam um orçamento maior eram um caso de exercício subversivo” (Ibidem).

De fato, no dia 29 de julho de 1966 as universidades nacionais sofreram uma

intervenção, num ato de repressão contra estudantes e professores que silenciou a

intelectualidade crítica da academia, que tinha se fornecido na década anterior. Num

fato que foi conhecido como “a noite dos capacetes” a policia invadiu algumas

faculdades da Universidade de Buenos Aires espancando alunos e professores.

Instaura-se, assim, um forte processo de militarização das universidades e cria-se

(no mês de abril de 1967) a lei 17.245 que se propunha entre os seus objetivos a

“eliminação do estado de subversão interna”. Nesse sentido, cria-se em 1968 um

Tribunal Acadêmico cuja função estava vinculada a controlar e submeter os professores

relacionados à “atividades subversivas”, ou seja, com visões críticas. Implementam-se

dispositivos de negação da universalidade do direito ao acesso à universidade, dentre

eles, a cobrança de taxas para o acesso ao exame.

Esses fatos inscrevem-se em uma lógica geral, vinculada aos programas de

racionalização e planificação dos organismos do Estado com fundos norte-americanos.

A ação repressiva alcançou não só a esfera acadêmica e política, mas também

teve atuação na área da cultura e dos novos costumes que eram interpretados como ante-

salas do comunismo, neste sentido a igreja jogou um papel importante. Essa leitura

gozava também de certo consenso social.

O percurso que vem sendo reconstruído até aqui, a partir das contribuições de

Romero (2006), apresenta um cenário onde o inimigo central do novo governo ditatorial

é o comunismo ou a ameaça que ele representa, razão pela qual todo espaço, expressão

ou grupo que faça sentir esse perigo será censurado ou reprimido.

Nesta lógica de análise poder-se-ia compreender que esse novo governo militar

vai se inscrever na linha do ideário desenvolvimentista, na sua versão autoritário-

ditatorial. Esses programas aos quais já se fez referencia em parágrafos anteriores –

vinculados à racionalização e planificação dos organismos do Estado com fundos norte-

americanos – devem ser compreendidos de maneira articulada com as formas

organizadas de repressão e “luta” contra o comunismo, formando parte de uma

estratégia econômico-política orientada á defesa da ordem social vigente.

Considera-se que é nessa lógica na qual deve-se compreender o Serviço Social,

inserido em um processo que exige dele algumas reformulações, pelo menos no inicio

do que depois foi nomeado como Movimento de reconceituação da Profissão. Isto é,

como será desenvolvido no ponto seguinte da presente dissertação, é necessário

compreender a emergência desse movimento inserida na lógica do ideário

desenvolvimentista que no percurso do mesmo processo vai apresentar fragmentações

que geram uma rachadura a qual imprime a tentativa de outra direção naquele processo.

Neste sentido – e como já fora exposto no ponto anterior – a Aliança para o Progresso

constitui uma resposta dos Estados Unidos como estratégia em face do perigo da

emergência de novas revoluções no cenário aberto pela revolução cubana. Então, a

Aliança para o Progresso junto com as teorias desenvolvimentistas da CEPAL,

apresentavam um cenário onde a “contribuição técnica” que o Serviço Social podia

oferecer no processo de desenvolvimento era fundamental. Essa estratégia articulada a

ditaduras militares – como no caso argentino – constituíam uma forte resposta em face

do já mencionado “perigo de surto revolucionário”.

No inicio da ditadura (de 1966), a política econômica não estava muito definida,

mas mesmo assim algumas medidas foram implementadas: redução de pessoal nas

empresas publicas e mudanças nas condições de trabalho foram impostas com o

objetivo de reduzir os custos. Essas medidas geraram conflito que foi fortemente

reprimido. Com a cena política fechada pela proscrição do peronismo e a repressão ao

sindicalismo, o movimento foi derrotado e o governo tinha gerado, assim, as suas

próprias condições para avançar na re-estruturação econômica e social sem oposição.

“Todas as esferas de expressão das tensões da sociedade , e também as suas opiniões, tinham sido silenciadas. Assim, o governo podia criar políticas com tranqüilidade, sem presa – a revolução não tem prazos, dizia-se – e com um instrumento estatal poderoso nas mãos” (Romero, 2006: 162).

Os seis primeiros meses do governo Onganía se apresentaram –segundo o estudo

do autor (Idem: 163) – sem um rumo muito claro, direcionado por uma equipe social-

cristã e longe das expectativas do establishment.

Chegando aos finais do ano 1966, a designação de Julio Alsogaray como

comandante-chefe do exército e de Krieger Vasena como ministro de economia e

trabalho – ambos vinculados a grupos empresariais e a organismos internacionais –

constituiu uma decisão favorável para os grupos liberais.

Já no ano de 1967 o novo ministro da economia vai propor a superação da crise

cíclica tentando, a longo prazo, racionalizar o funcionamento de toda a economia. Para

isso contava com as ferramentas de um Estado intervencionista. Recorreu à autoridade

estatal para a regulação da economia, congelou os salários por um prazo de dois anos e

suspendeu as negociações coletivas. Essas ultimas medidas foram possíveis pelo fato de

o governo ter submetido os sindicatos. Efetuaram-se acordos de preços com as

principais empresas. O déficit fiscal foi reduzido a partir da “racionalização” de pessoal,

de uma rigorosa arrecadação, de uma desvalorização de 40% e da cobrança de um

percentual similar sobre exportações agrárias.

Conseguiu-se a estabilidade cambial e em 1969 a inflação foi reduzida

drasticamente. Os investimentos estatais e as obras públicas na época foram

consideráveis. Foram tomados empréstimos do FMI. O PIB cresceu e o desemprego se

manteve relativamente baixo apesar do desemprego gerado pela re-estruturação estatal.

Os investimentos mencionados no parágrafo anterior foram só concentrados nas

obras publicas, o investimento privado foi inexistente, por isso – segundo o autor

consultado (Idem: 164) - por volta de 1969 o crescimento parecia alcançar o seu limite.

O setor estrangeiro viu-se fortemente beneficiado por um processo de desnacionalização

da economia, pela compra das empresas nacionais por parte das empresas estrangeiras.

Os setores mais prejudicados foram: o setor rural pelos altos impostos sobre as

exportações; os setores empresariais nacionais pela falta de proteção e a

desnacionalização e as economias provinciais pelo fim das proteções.

“(...) tratava-se de um projeto próprio e específico da alta burguesia, que só podia ser proposto nessas circunstâncias sociais e políticas. Apoiados pelos que gostavam de se chamar de liberais, na verdade, era uma política que apesar de reduzir as funções do Estado de Bem-Estar, conservava e ainda expandia as do Estado intervencionista . Nem os empresários queriam renunciar a essa poderosa alavanca, nem os militares teriam aceitado a perda de importância das partes do Estado com as quais se identificavam com mais facilidade: as empresas militares orientadas de uma maneira ou outra à defesa, e as próprias empresas estatais, que eles com freqüência eram chamados a administrar. Nesses anos, a expansão do Estado parecia perfeitamente funcional com a reestruturação do capitalismo, mas provavelmente seus beneficiários sabiam dos perigos em potencial de conservar uma ferramenta tão poderosa em atividade” (Idem: 165).

Poder-se-ia dizer que já no ano de 1968 vai ter inicio um processo que

anunciaria o fim da suposta paz. Nesse ano a CGT dos argentinos (que era a linha

ativista) promoveu um protesto que foi controlado pelo governo através de

favorecimentos e ameaças. Esse protesto conseguiu reunir grupos antagônicos, entre

eles, um denominado participacionista que estava disposto a aceitar as regras do jogo do

regime, ou seja, assumir a função de expressão corporativa, ordenada e despolitizada do

setor trabalhista.

Achava-se que terminada a re-estruturação econômica poder-se-ia passar para a

social com o apoio da CGT (Confederação Geral do Trabalho) domesticada, mas os

protestos eram crescentes. Os setores rural e empresarial nacional achavam que era

possível um desenvolvimento mais “nacional, popular e justo”. Em meados de 1968 o

comandante-chefe do exercito é substituído por outro menos definido do que o anterior

que era claramente liberal. O establishment vai criticar o excessivo autoritarismo do

General Onganía e vai começar a pensar numa saída política.

No ano de 1969 na cidade de Córdoba (capital do estado do mesmo nome) teve

lugar um fato histórico que foi conhecido como Cordobazo10. A data exata dos

acontecimentos foi o dia 29 de maio daquele ano, fato precedido por diferentes protestos

universitários e agitação sindical. A cidade de Córdoba era centro de uma concentração

industrial automotriz importante e sede de uma das universidades mais importantes do

país, condição que fez possível a confluência da militância estudantil e operária. A CGT

convocou para uma greve geral. A repressão policial foi a resposta oficial e produziram-

se violentos enfrentamentos. Segundo Romero (2006: 166-167), aqueles acontecimentos

constituíram um protesto espontâneo que não apresentava reivindicações nem

organizadores. Assim, os sindicatos, os partidos e os centros acadêmicos das

universidade foram pegos de surpresa. Já no dia 31 de maio a ordem tinha sido re-

estabelecida com um saldo de 20-30 mortos, 500 pessoas feridas e 300 presas. Um

conselho de guerra condenou dirigentes sindicais como responsáveis daquele fato, entre

eles o sindicalista Agustín Tosco.

É necessário resgatar a trajetória da profissão de Serviço Social nesse contexto,

cujo devir dá conta de um processo de avanços e retrocessos – no interior da profissão-

que acompanhou esse movimento histórico. Se pensarmos no percurso do Movimento

de Reconceituação em termos gerais, essas mudanças a que fazemos referência na

trajetória histórica argentina constituem o cenário no qual o mencionado processo da

profissão começa a apresentar uma rachadura com o momento anterior – que no nosso

raciocínio estava vinculado ao ideário desenvolvimentista-. Isto é, o novo cenário

10 Deve-se chamar a atenção para a compreensão desses acontecimentos sob influencia do Maio francês.

apresenta os limites da resposta desenvolvimentista e, em conseqüência, os próprios

limites da estratégia Aliança para o Progresso. Esse panorama exige, – como

desenvolveremos no ponto seguinte – uma redefinição, uma critica, uma nova direção

no Processo de Reconceituação da profissão.

Os acontecimentos que caracterizam esse novo cenário deram lugar a uma onda

de mobilização que se estendeu até 1975. A partir daí o inimigo tinha sido identificado

na figura do poder ditatorial, que encarnava a presença multiforme do capital. Nesse

contexto se gerou uma nova atividade sindical que ultrapassava os limites da burocracia

sindical.

O ano de 1972 é colocado pelo autor como o momento da chegada dessa

mobilização na área metropolitana de Buenos Aires, que até aquele momento tinha sido

controlada pela burocracia sindical, a qual vinha sendo questionada. Nessas condições,

parecia possível passar de reivindicações concretas a um questionamento mais amplo

das relações sociais e da propriedade. A capacidade de mobilização vai gerar uma ação

sindical que assume o caráter da intervenção ativa e concreta, como invasão de fabricas

e tomada de reféns. O fenômeno iniciado em Córdoba se deslocou e aconteceu assim o

Rosariazo (cidade do estado de Santa Fé) e movimentos similares na cidade de Cipolleti

no sul do país.

Por volta dos anos de 1971-1972 a mobilização chegou a gerar uma agitação

rural principalmente no norte do país, aonde as ligas de camponeses protestam pelos

baixos preços do algodão e da erva mate. Somam-se protestos nos subúrbios das

grandes cidades e favelas e o descontentamento com o poder ditatorial foi se estendendo

para todos os ramos, até chegar ao empresariado nacional. A ditadura e os grupos que a

apoiavam foram identificados como os responsáveis pelos males da sociedade e se

enfrentaram assim com o povo em irmandade solidária.

“(...), pois toda a realidade parecia transparente e pronta para ser transformada por homens e mulheres que seguiram o caminho entre reivindicações imediatas e a imaginação de mundos diferentes. Quais eram esses mundos e como se chegava a eles eram questões que começavam a ser discutidas em outras esferas.”(Idem:169).

Claro que essa onda de mobilização, de reivindicação e luta não foi um

fenômeno que aconteceu na Argentina de forma isolada, o mundo todo dava sinais de

acontecimentos nesse sentido.

“Os grandes acordos sociais que tinham regido o amplo ciclo de prosperidade posterior à Segunda Guerra Mundial estavam-se esgotando, como se podia ver na onda de descontentamento que percorria a sociedade, e principalmente na revolta do grupo mais sensível, os estudantes. Isso se manifestou em Praga, no México ou em Berkeley, e teve o seu auge em Paris, em maio de 1968, quando jovens bradaram contra o autoritarismo e a favor do poder da imaginação. (...) – Imperialismo - cambaleava diante da onda de movimentos de emancipação” (Ibidem).

No que diz respeito á situação particular da América Latina no seu conjunto,

Romero faz as seguintes afirmações:

“Na América Latina, onde as perspectivas da aliança para o progresso e o apoio as democracias tinham sido definitivamente arquivados, os campos estavam bem delimitados. Se para o poder autoritário, o desenvolvimento era um fruto da segurança nacional,para aqueles que o enfrentavam a única alternativa à dependência era a revolução, que levaria à libertação” (Idem: 170).

Como fora dito, Cuba constituía um claro exemplo e a ação de Che Guevara

mostrou as possibilidades e limites do enfoque revolucionário e – segundo Romero - a

sua morte se converteu em símbolo para aqueles que lutavam pela libertação.

As guerrilhas urbanas de Brasil e Uruguai (tupamaros), os partidos marxistas

que levaram Allende ao poder pela via eleitoral no Chile e militares nacionalistas na

Bolívia e no Peru se alinhavam unidos pelo inimigo comum.

A igreja católica, historicamente oligárquica e tradicional, também se posicionou

neste processo. As mudanças promovidas pelo Papa João XXIII, o Concilio Vaticano II,

permitiram-lhe uma leitura singular.

Em 1967 os bispos do Terceiro Mundo pronunciaram a preocupação, já não

apenas espiritual, mas real, pelos pobres, numa leitura – liderados pelo brasileiro Helder

Câmara - do significado do comprometimento e a reforma social. A Conferência

episcopal latino-americana de Medellín em 1968 que promovera uma teologia da

libertação fazia uma leitura no que diz respeito à compreensão da violência de “baixo”

como conseqüência da violência “de cima”. Ou seja, a compreensão da “injustiça

social” como expressão de violência.

No caso particular da Argentina, os Sacerdotes do Terceiro Mundo promoveram

– em 1968 - reivindicações e ações de protesto em favelas e assim – segundo Romero

(Idem: 170-171) - a linguagem evangélica foi se tornando política.

Nesta lógica, a igreja, na sua leitura, compreendia o Povo como “os pobres e

marginais” e aparecia, assim, uma diferenciação das organizações classistas segundo as

quais o Povo era compreendido no marco dos trabalhadores assalariados.

Essa compreensão da igreja vinculou-a com o peronismo. Deu-se um processo

de politização de jovens de escolas católicas, educados no nacionalismo católico.

Mesmo assim, a igreja manteve aproximações com a esquerda o que permitia um

diálogo entre cristãos e marxistas.

Neste contexto – seguindo com o raciocínio do autor - o peronismo constituía

uma forte atração; Perón, no exílio, fez movimentos para se adaptar à nova situação

histórico-social do país, abrindo assim múltiplos discursos que atingiam o catolicismo, o

nacionalismo, o revisionismo histórico e a esquerda.

É evidente que a análise do processo histórico argentino nos introduz em um

fenômeno altamente complexo, mas que se apresenta como iniludível para compreender

as mediações que explicam o processo desse país. Estamos nos referindo ao fenômeno

peronista. Atendendo essa complexidade e nos marcos de um trabalho das

características do presente, não temos a pretensão de esgotar a análise desse processo.

Tentaremos formular algumas interrogações e sistematizar algumas contribuições que

nos permitam nos aproximar a esse debate, isto é, colocar algumas determinações como

insumo para um futuro estudo aprofundado das suas mediações para o caso do Serviço

Social na Argentina.

Em primeiro lugar é necessário fazer uma leitura desse fenômeno nos termos

apresentados por Julio Parra:

“Nós acreditamos que o peronismo foi um movimento histórico que tentou um projeto de desenvolvimento capitalista independente, através de um governo bonapartista que controlasse a classe operária para se apoiar nela” ( Parra, in: De Santis, 2004: 20, tradução nossa).

O autor desenvolve uma fundamentação do fenômeno peronista a partir das

contribuições de Marx em “O XVIII Brumario de Luis Bonaparte”11. Isto é, apresenta o

peronismo direcionando um processo de ‘reacomodação’ do próprio sistema capitalista

em face de uma crise das velhas estruturas do sistema, mas, que em um processo no

qual a classe operaria ainda não conseguiu constituir o seu próprio partido por causa de

uma imaturidade que diz respeito ao seu processo histórico, a saída não pode ser a

revolução e sim essa mencionada ‘reacomodação’ no interior da ordem capitalista.

Desta forma, Perón vai apresentar um ‘projeto bonapartista’ se apoiando no proletariado

– que lhe dará legitimidade -, em uma tentativa de desenvolvimento burguês nacional

independente, que as próprias condições do cenário internacional – marcado pelo fim da

Segunda Guerra Mundial – faziam possível, mas sem assumir a representação de

nenhuma fração da burguesia em particular. Considera-se que o seguinte depoimento de

Perón, tomado de Parra é esclarecedor neste aspecto:

“’Se tem dito, senhores, que sou um inimigo dos capitais e se vocês observarem o que acabo de dizer, não encontraram nenhum defensor, diríamos, mais decidido do que eu, porque sei que a defesa dos interesses dos homens de negócios, dos industrias, dos comerciantes, é a defesa mesma do Estado’ (...) ‘Eu sou feito na disciplina. Há tinta e cinco anos que exercito e faço exercitar a disciplina e durante esses anos tenho apreendido que a disciplina tem uma base fundamental: a justiça’ (...) ‘Por isso acredito que se eu fosse dono de uma fabrica, não me custaria ganhar o afeto dos meus operários com um seguro social realizado com inteligência. Muitas vezes isso se consegue com o medico que vai na casa do operário que tem um filho doente, com um pequeno presente em um dia particular, o patrão que passa e da uma palmada amavelmente nos seus homens e lhes fala, assim como nós fazemos com nossos soldados’” (Parra, in: De Santis, 2004: 22, tradução nossa)12.

11 Marx, Kart. El XVIII brumario de Luis Bonaparte. Buenos Aires: Editora NEED, 1998. 12 Parágrafos tomados pelo autor do discurso pronunciado por Juan Domingo Perón – ainda Coronel e Secretario de Trabalho e Previsão – em 25 de agosto de 1944, na Bolsa de Comercio de Buenos Aires.

O autor vai mostrar a particularidade desse processo na Argentina, no

qual, diferente da Inglaterra e da Revolução Francesa, o Projeto de Perón mesmo

apresentado um caráter burguês – de desenvolvimento capitalista independente –

não respondia ao impulso de uma burguesia em ascensão. A burguesia Argentina

nesse tempo é caracterizada como mesquinha, parasitaria e submissa do

imperialismo de turno, o que fez com que nunca conseguisse entender o

fenômeno peronista, ou seja, não conseguiu entender que Perón representava, em

parte, os seus interesses, enquanto tratava-se de um projeto burguês.

Diz Parra:

“Isto é, o bonapartismo apoiado na prosperidade conjuntural pretendia eliminar a luta de classes, ‘equilibrar’ as forças da burguesia, o imperialismo e a classe operária, se constituindo no arbitro de todas as decisões (...) Esta é uma das contradições mais explosivas do peronismo: a extração de classe da sua base. Ainda não lutando pelos seus próprios objetivos históricos, a classe operária penetra profundamente nas fileiras peronistas e coloca seu selo em muitas das medidas do governo peronista” (Idem: 29, tradução nossa).

Segundo o autor citado, a partir desta análise, poder-se-ia dizer que se tratava de

um projeto de desenvolvimento capitalista independente destinado a frear um processo

revolucionário frustrado pelas suas limitações de classe. Isso significa que em face da

inexistência de uma classe operária forte e madura, que fosse capaz de acompanhar a

expansão das forças produtivas por uma via de desenvolvimento socialista e em face,

também, de uma burguesia nacional incapaz de promover uma via de desenvolvimento

capitalista independente, “terá que surgir então o agente histórico dessa expansão,

adequada a todo esse conjunto de características contraditórias. Esse agente histórico

será a equipe militar conduzida por Perón” (Idem: 57, tradução nossa).

Resgatemos mais uma citação de Parra retomando conceitos de Perón. Essa

definição permite compreender com clareza o que foi nomeado como “terceira posição”.

“A tese de que capital e trabalho são dois elementos indispensáveis da produção, que não devem lutar entre si, senão confluir juntos na elaboração da riqueza e a grandeza da pátria. O Estado, colocado por cima de ambos como pai protetor, se encarregará de harmonizar interesses e limitar diferenças quando estas surgirem, de ‘botar as coisas no seu lugar’” (Idem: 37, tradução nossa).

Na obra citada, organizada por De Santis (2004), apresenta-se um outro artigo de

Julio Parra onde esse autor faz uma análise dos caminhos e descaminhos do marxismo

antes, durante e depois de Perón na Argentina13. O autor mostra o processo mediante o

qual nasce o Partido Comunista argentino no ano de 1918 e segue os caminhos do

movimento internacional, isto é, o surgimento da terceira Internacional e o seu posterior

processo de burocratização stanilista após a morte de Lênin.

“A classe operária perde então a sua alternativa de classe. Só aparecem na sua frente diferentes variantes de reformismo burguês ou pequeno burguês; disfarçados ou não com fraseologia marxista. A classe operaria opta então pela variante que aparece como mais atrativa. A que implementa o homem que, desde a Secretaria de Trabalho primeiro e desde a Presidência da nação realiza por decretos muitas conquistas pelas quais os operários tem lutado durante tantos anos. (...) Durante mais de uma década, o peronismo sepultará sob o peso da sua força numérica, toda tentativa de construir um partido marxista-leninista independente” (Parra, in: De Santis, 2004: 16).

13 Trata-se de um artigo extraído do trabalho Pequena burguesia e revolução, publicado em El combatiente, Nº 54 e 55, janeiro e fevereiro de 1971.

No que o autor nomeia como o marxismo depois de Perón, vai mostrar um

processo mediante o qual se dá uma experiência que ele define como ‘entrismo14 no

peronismo’ e que se vincula ao que é conhecido como ‘peronismo de esquerda’. Essa

possibilidade permitiu um dialogo entre peronismo e marxismo, mais precisamente

entre setores marxistas e a classe trabalhadora disputada.

Embora sabemos que uma leitura do lugar que ocupou o fenômeno peronista nas

décadas de ’60 e ’70 do século passado não pode desatender o percurso do processo

histórico entre a sua derrubada do poder em 1955 e a sua volta em 1973, depois de 17

anos de proscrição e exílio do seu líder, consideramos que os elementos salientados até

aqui – no que diz respeito ao peronismo – estão postos nas lutas políticas do ultimo

quarto do século XX e contribuem para a compreensão desse processo.

Assim, atendendo ao movimento histórico – como já foi dito – Perón desde o

exílio – nos inícios dos anos ’70 do século passado - fez movimentos de adaptação

atingindo no seu discurso ao nacionalismo, o catolicismo e a esquerda em geral. Isso fez

com que grandes setores da esquerda, considerando os trabalhadores como ator

fundamental no caminho da revolução e consciente de que a massa desses trabalhadores

era peronista, aceitasse “a religião” – isto é, o peronismo, em termos de Romero (2006)

– com o objetivo de um caminho revolucionário em direção ao socialismo.

Mas não foram todas as organizações que aceitaram “a religião”. A experiência

do Cordobazo permitiu a algumas correntes – com uma perspectiva clássica - confiar

nas possibilidades de ação das massas e privilegiar “a classe” em vez do “povo”.

14 “Entrismo”, é uma forma de nomear o fato da “entrada” de algumas vertentes marxistas nas fileiras do Peronismo. Respeitou-se o termo na tradução porque é uma criação que denota uma idéia precisa, que toda tentativa de tradução a esvaziaria da sua riqueza na explicação do fenômeno histórico

“Aqueles que optaram pelo peronismo acabaram por ajustar sua revisão ideológica e encontrar o lugar que esse movimento ocupava no grande processo de construção do socialismo. (...) Alguns vindos do marxismo (...) e outros do nacionalismo (...) acabaram criando – pelo menos aos olhos de quem os lia – uma via intermédia, na qual as exigências do socialismo eram complementadas pelas da libertação nacional, um tema com o qual contribuíam tanto o velho nacionalismo, quanto o leninismo. (...) No pós-guerra, o peronismo tinha sido o ambiente para um primeiro surgimento do povo – no contexto da industrialização, da burguesia nacional e do Estado nacionalista – e tornaria a sê-lo para um segundo, que estava em preparação, no qual o contexto levaria à redefinição das bandeiras históricas na direção da emancipação do imperialismo e do socialismo”. (Romero, 2006: 172, 173).

Neste contexto, o debate sobre a concepção do “Povo” como “os miseráveis”

necessitados de uma direção, de um guia paternal e autoritário, ou compreendido como

a massa de trabalhadores assalariados, a classe operária segura e orgulhosa; perpassava

o âmbito da esquerda e do ativismo. Esse debate era superado pela exigência de ação no

novo contexto, no qual a ação tinha prioridade sobre a reflexão.

“A revolução era possível. Isso era o que mostravam Cuba, o Cordobazo e a mobilização social, tão intensa quanto carente de direção e programa. Encontrar-se na própria ação era a intenção do novo ativismo. A alternativa democrática –desprestigiada para os velhos militantes e sem sentido para os mais jovens – esteve totalmente ausente das discussões. A esquerda ofereceu uma leitura clássica da mobilização e de suas possibilidades, por meio do ‘classismo’ sindical, forte principalmente em Córdoba. (...) os trabalhadores de Córdoba seguiam os classistas no nível sindical, mas, em política, continuavam sendo peronistas”. (Romero, 2006: 173).

O final da citação que precede faz referência ao fato de que o questionamento

das relações sociais e da propriedade ultrapassava os limites das reivindicações dos

protestos dessa massa trabalhadora. Essa fusão de marxistas, católicos “terceiro

mundistas” e nacionalistas era possível, posto que se identificavam como amigos em

face de um inimigo comum.

Segundo o raciocínio de Romero, a falta de condições reais era compensada pela

vontade. Os Grupos que procuravam a mudança buscavam aval em tendências muito

diferentes, desde o leninismo até o guevarismo, por sua vez, o fascismo era o aval da

ditadura. Trata-se de uma concepção da política sob a lógica da guerra, num contexto de

mobilização popular que dispensava a realização ou aprofundamento do debate.

No que diz respeito às organizações guerrilheiras15, elas surgiram na Argentina

por volta dos anos ’60 no cenário da onda revolucionária iniciada pela Revolução

Cubana de 1959. A ação de Che Guevara na Bolívia incentivou-as e por causa da

ditadura militar, gerou-se a convicção de que não existia alternativa nenhuma para além

da luta armada. A partir de 1967 –coincidindo com a ação de Che Guevara na Bolívia -

surgiram diferentes grupos vinculados à esquerda e /ou ao peronismo. As duas

organizações que tiveram uma importância maior foram Montoneros nascido do

integrismo católico e do nacionalismo e o Exercito Revolucionário do povo (ERP)

vinculado ao grupo trotskista do partido revolucionário dos trabalhadores. Sem entrar

em uma análise minuciosa da conformação das organizações armadas, dos seus marcos

ideológicos, teóricos e políticos, é necessário aqui marcar a diferencia entre essa duas

organizações que foram salientadas como as mais fortes. No entanto, pode-se dizer que

o PRT e o ERP, como seu braço armado, constituíram uma organização armada

revolucionária com uma clara visão de classe, em uma perspectiva marxista leninista; a

organização Monotoneros, por sua parte, foi uma organização armada surgida dentro do

15 Sobre a conformação das organizações guerrilheiras, as suas linhas, as suas orientações políticas e o papel desempenhado por cada uma delas no contexto analisado, foi consultado o livro LA NUEVA IZQUIERDA ARGENTINA: 1960-1980 de Claudia Hilb e Daniel Lutzky, Biblioteca Política Argentina Nº 70. Para os fins deste trabalho não nos propomos a aprofundar este debate.

Movimento Peronista e atravessada – então – pelas próprias contradições desse

movimento. O artigo de Julio Parra, já citado, dá conta de uma contradição constitutiva

do que se nomeou ‘peronismo de esquerda’ ou ‘revolucionário’. Mesmo mostrando que

no percurso histórico a perspectiva do ‘peronismo revolucionário’ nos anos ´70 do

século passado mudou com relação à velha Resistência peronista pós 1955, observa-se a

expressão dessa contradição que – como já se salientou - lhe é constitutiva.

Diz Parra, neste sentido:

“No peronismo há uma contradição, como já temos assinalado, entre o caráter predominantemente operário da sua base e a sua ideologia burguesa. No caso da luta armada manifesta-se como a contradição entre os métodos revolucionários utilizados e a ideologia burguesa, a cujo serviço esses métodos são usados. Isto é assim porque a luta armada e, em geral, o uso da violência popular constitui a forma mais alta de luta de classes, o meio pelo qual se expressa a luta de classe quando os meios pacíficos da luta têm se esgotado total ou parcialmente. Em conseqüência, os militantes peronistas ao fazerem uso da violência, estão utilizando o método mais revolucionário possível, mas em função de um objetivo que não tem nada de revolucionário, como é a volta de Perón e a reconstituição do seu governo burguês que tente a conciliação de classes” (Parra, in: De Santis, 2004: 52-53, tradução nossa).

Então, mesmo quando nessas novas condições - a diferença da resistência pós

’55 - o caráter revolucionário dos métodos da organização seja fundamental e mesmo

que de forma não muito clara a necessidade do socialismo esteja colocada, a volta de

Perón é entendida como um requisito fundamental desse processo de mudança

revolucionária, e é esse o eixo da contradição assinalado pelo autor citado.

A mobilização popular em face do cenário histórico fazia – às vezes – com que

organizações de diversas perspectivas confluíssem na luta, como mostra a seguinte

citação.

“Havia grandes diferenças teóricas e políticas entre todas as organizações, mas elas compartilhavam de um mesmo espírito. Todas aspiravam transformar a mobilização espontânea da sociedade em um levante generalizado, e tinham em comum uma cultura política que retomava e reforçava a dos grupos de esquerda, mas que, de alguma forma, a usurpava de seus adversários. A lógica de exclusão –essa constante da política no século XX- era levada até as ultimas conseqüências. O inimigo –lacaios do imperialismo, exército de ocupação- devia ser aniquilado”. (Romero, 2006: 174-175).

A mobilização popular que está sendo descrita foi se identificando cada vez mais

com o peronismo, o que levou a força militar a considerar a possibilidade de uma saída

política que ia exigir negociações com diferentes forças políticas mas, sobretudo, com o

peronismo.

Neste contexto, nos inícios dos anos ’70 do século XX, questões vinculadas ao

funcionamento da economia e que tinham sido apresentadas pela ditadura como

sucessos que davam conta de uma ordem, começaram a mudar. Assim, a ameaça da

volta da inflação era persistente e capitais estrangeiros entraram em processo de

migração. Em face dessa realidade, o ministro da economia foi trocado por um outro da

mesma linha, mas com uma perspectiva “mais social”. Não obstante, o contexto tinha

mudado. As Forças Armadas encontravam-se divididas entre posições vinculadas a uma

saída que tinha a ver com o nacionalismo e um outro setor que mantinha uma posição

direcionada à implementação de uma ditadura mais extrema ou numa saída política.

Para essa ultima alternativa, o nome possível era o do General Aramburu, mas em 29 de

maio de 1970 - exatamente um ano depois do cordobazo - ele foi seqüestrado e

assassinado, fato que se constituiu – segundo Romero - no nascimento publico da

organização armada Montoneros. Poucos dias depois Ongania foi derrubado e

substituído pelo General Levington.

Nessas circunstâncias, houve mudanças na economia, impulsos de distribuição

salarial e uma tentativa por parte do governo de mobilizar o povo promovendo a criação

de novos partidos, criticando as velhas estruturas. A convocatória à CGT para

estabelecer uma negociação devolveu-lhe a sua vida e as demandas sociais foram

crescendo. A necessidade de uma saída política foi reconhecida.

O novo presidente também não foi capaz de conduzir o espaço de negociação

que a nova realidade impunha. Em março de 1971 uma nova mobilização de massas

teve lugar na cidade de Córdoba com uma forte presença de organizações armadas.

Após essa situação Levington foi substituído por Lanusse. Nessas condições, em março

do mesmo ano, a atividade política partidária foi restituída e foi feita uma convocatória

para próximas eleições gerais.

Na nossa leitura histórica sobre o percurso da profissão de Serviço Social,

algumas reflexões devem ser colocadas neste contexto que estamos expondo. Na análise

desenvolvida por Gustavo Parra (2000) a propósito do movimento de Reconceituação,

pode-se observar que é entre os anos 1969 e 1971 que emerge uma corrente que

apresenta divergências e constitui o que seria uma primeira aproximação da profissão

com a tradição marxista. Como já fora colocado, esse desenvolvimento não teve o seu

epicentro na Argentina. Então, no contexto historio descrito e com a emergência dessa

“rachadura” no interior do Movimento de Reconceituação, é necessário chamar a

atenção para a tradução desse movimento na particularidade da profissão na Argentina.

Como será exposto no próximo capitulo, o devir do processo histórico apresentou para o

Serviço Social latino-americano em geral, e para o argentino em particular, os limites e

a posterior critica do desenvolvimentismo como resposta aos problemas do nosso

subcontinente. Essa leitura gera movimentos no interior da profissão que são coerentes

com uma visão vinculada à necessidade de “mudança de estruturas”. Essa mudança será

questionada no capítulo seguinte, na critica da proposta do Assistente Social como

Conscientizador-Revolucionário.

Então, por volta de meados do ano de 1971, a saída política era iminente, mas as

Forças Armadas não podiam garantir a segurança. No interior dessas forças

apresentavam-se discrepâncias sobre o enfrentamento das organizações armadas.

Foram criados um foro anti-subversivo e tribunais especiais para julgar guerrilheiros,

mas alguns setores das forças iniciaram um processo de repressão ilegal, torturas,

seqüestros e desaparição de pessoas.

A situação econômico-social do país apresentava-se com uma inflação

descontrolada, fuga de divisas, queda do salário real, desemprego e importantes

protestos.

Nesse contexto, no dia 25 de maio de 1973, Cámpora assume o governo

constitucional produto das eleições gerais feitas em março daquele ano. Foram muitas

as negociações naquele processo de “saída política”, entre elas a queda da proscrição do

peronismo em troca da autoproscrição de Perón. O peronismo, com o lema “Cámpora

ao governo, Perón ao poder”, obteve mais do 50% dos votos. As duas experiências

socialistas do subcontinente na época – Chile e Cuba - presenciaram a assunção de

Cámpora nas pessoas de seus presidentes, Allende e Osvaldo Dorticós.

Segundo Moljo (Cf. 2005: 219 e ss.) a ascensão de Campora gerou uma grande

expectativa de mudança, a juventude mobilizada e altamente politizada exigiu e

consegui a anistia dos presos políticos o que provocou um clima de liberdade e o fim da

censura em todos os âmbitos. A juventude peronista considerava que esse seria o

governo do Povo. Apesar disso, a designação dos titulares dos diferentes Ministérios

dava conta da heterogeneidade do Peronismo que incluía personagens vinculados à

Juventude Peronista, à liderança sindical e até à direita peronista, tal o caso de Lopez

Rega no Ministério de Bem-Estar Social. Se observarmos essa heterogeneidade e se

observarmos, também, o fato da presença de Dorticós e Allende na ascensão de

Cámpora no poder, podemos reafirmar – nessa terceira chegada do partido liderado por

Perón no poder – a caracterização que apresentamos no que diz respeito as contradições

que são constitutivas do projeto peronista.

No que diz respeito a essa expressão de heterogeneidade que o movimento

peronista apresentava na volta para o poder, Romero afirma:

(...) a figura simbólica de Perón, ao mesmo tempo uma e muitas, chegou a substituir a sua figura real. Para todos Perón expressava um sentimento geral nacionalista e popular, de reação contra a recente experiência de desnacionalização e privilégio. Para alguns –os peronistas de sempre, sindicalistas e políticos-, isso se encarnava no líder histórico, que, como em 1945, traria a antiga bonança, distribuída pelo Estado protetor e generoso. Para outros –mais jovens, ativistas de todas as correntes-, Perón era o líder revolucionário do Terceiro Mundo, que eliminaria os traidores de seu próprio movimento e conduziria à libertação, nacional ou social, potencializando as possibilidades de seu povo. Outros, ao contrário, encarnando o anticomunismo ancestral do movimento, viam em Perón o homem que decapitaria (...) a hidra [sic] da subversão. (...) para muitos outros – os setores de classe média ou alta, (...) Perón era o pacificador (...) canalizar os conflitos da sociedade, realizar a reconstrução e botar o país no caminho do crescimento rumo à “Argentina potência”. (Romero, 2006: 180-181).

Ou seja, o ponto de encontro era o inimigo comum, os militares, o autoritarismo

que – com Perón - pareciam sair para não voltar. Essa análise, como já dissemos,

reafirma a contradição constitutiva do peronismo no que diz respeito a um movimento

com uma ‘base popular’ mas, sustentado em uma ideologia de claro caráter burguês.

“A onda de mobilização, que estava levando o enfrentamento social a um ponto extremo, tinha, em suas origens um importante elemento de participação (...) elementos potencialmente democráticos se cruzavam com toda uma cultura

política espontânea -formada em longos anos de autoritarismo e democracia fingida-, que levava à identificação do poder com o inimigo e à repressão, a menos que esse poder fosse ‘tomado’, para reprimir por sua vez o inimigo. (...) a mobilização popular foi afastada da alternativa democrática e levada a empreender o combate final em outro terreno” (Idem: 185-186).

No dia 20 de junho de 1973 Perón, voltou para o país e no aeroporto

internacional no meio de uma multidão aconteceu um enfretamento entre distintas

tendências que acabou no que foi conhecido depois como o massacre de Ezeiza.

“Sem duvida, a juventude Peronista se mostrou capaz de desdobrar um nível importante de organização de massas, o que se mostrou em Ezeiza; embora, ao passar das horas, e em face da demora do general, que não chegava ao esperado encontro, o clima em redor de Ezeiza, donde se encontravam todas os diferentes ‘ramos do movimento’ tornava-se cada vez mais denso. Finalmente começou o enfrentamento armado (Cf. Bonasso, 200: 131), e o que devia ter sido um dia de festa, se transformou em uma tragédia, com mortos e pessoas pressas. A partir daqui, a direita peronista, somada à ‘pátria sindical’, começara a ganhar cada vez mais peso dentro do governo” (Moljo, 2005: 225-226, tradução nossa).

Seguindo o raciocínio da autora citada, Perón – na sua volta – expressa o seu

apoio tanto aos setores sindicais quanto aos setores tradicionais do peronismo, e critica

fortemente os setores “radicalizados da juventude” que utilizavam “novas bandeiras,

como a Pátria Socialista”, que eram alheias ao movimento, ao mesmo tempo abandona

as criticas às forças Armadas e à Oligarquia. O discurso de Perón está orientado à

“‘Comunidade Organizada’ , na qual capitalistas e trabalhadores deviam harmonizar os

seus interesses, em prol da ‘união nacional’; assim retornava o discurso do ‘Pacto

Social’, alheio às expectativas da juventude” (Idem: 226-227, tradução nossa).

Em junho de 1973, o presidente e o vice renunciaram sob pressões, foram

programadas novas eleições e a formula Perón-Perón chegou ao poder.

“À noite foram anunciados os resultados das eleições com uma importante maioria da formula Perón-Perón. No dia seguinte das eleições Lastiri decretou a ilegalidade do ERP. Em 25 de setembro foi assassinado em Buenos Aires Rucci, secretario geral da CGT e considerado o dirigente sindical mais próximo a Perón e um ‘ativo militante’ dedicado a ‘purificar’ a infiltração marxista dentro do movimento. (Viano, 2000). Foi uma operação de Montoneros; a partir daí, Perón começou preparar o ‘aniquilamento de Montoneros’, chamando o Conselho Superior Peronista, donde esse emitiu um comunicado reservado para lutar contra a infiltração marxista em todos os níveis do movimento (...) o enfrentamento já era aberto” (Moljo, 2005: 231, tradução nossa).

Nesta lógica, o novo governo de Perón baseava-se no já mencionado “Pacto

Social”, o que requeria um Estado forte e do “bom funcionamento” da economia. A

partir das afirmações resgatadas até aqui, é claro que a proposta do terceiro governo

peronista estava muito longe da “superação capitalista” que os setores da esquerda

peronista esperavam com a volta do seu líder.

“Todo o discurso e a política efetiva de Perón a partir desse momento, se orientara à desmobilização dos diversos setores sociais; começando pelos setores radicalizados do peronismo e continuado com a classe trabalhadora peronista. Como tem colocado Marín: ‘Perón fortalece a sua política através da incorporação de uma ofensiva armada para atingir as frações mais radicalizadas do seu movimento. Desenvolve essa política através de duas táticas: a criação especifica de um organismo ‘pára-policial’, chamada tripla A, ‘AAA’ (Aliança Anticomunista Argentina); e, a legitimação de uma política armada das frações do seu movimento na implementação de ações ‘golpistas’, o ‘Navarrazo’” ( Marín, in: Moljo, 2005: 233).

A mesma autora mostra como nos meses posteriores à ascensão de Perón no

Poder os enfrentamentos armados entre as “Forças de Segurança”, as organizações pára-

militares e pára-policiais e a guerrilha foram se tornando mais intensos, fato que foi

gerando um processo no qual o “Pacto Social” foi se debilitando aos poucos.

No dia 1º de julho de 1974 Perón morreu e foi substituído pela vice-presidente

Isabel Perón até a sua derrubada pelas juntas militares em 24 de março de 1976. Moljo

resgata uma serie de fatos que caracterizam o governo de Isabel Perón e que mostram o

devir de um processo que acaba com o Golpe Militar mencionado.

“As mudanças dentro do gabinete representavam uma nova ofensiva autoritária, em todos os campos da vida social. As universidades, os sindicatos e inclusive Estados inteiros sofreram intervenções. (...) Dentro desse contexto é que os Montoneros anunciaram a sua passagem à clandestinidade, por causa de o governo de Isabel ter traído o Povo. A guerrilha peronista retomava a guerra revolucionaria depois de ter permanecido pouco ativa em termos operativos durante 15 meses (...) as organizações de esquerda foram brutalmente reprimidas, o que permitiu uma ‘aproximação entre o ERP e Montoneros’. Embora os seus alvos foram diferentes: o ERP operava basicamente contra as Forças Armadas e as multinacionais; Montoneros operavam contra a burocracia sindical, o lopezreguismo, seus grupos pára-policiais e a policia. Algo similar aconteceu do outro lado; as Forças Armadas centraram-se sobre o ERP; e os grupos pára policiais e a policia contra Montoneros (...) A tripla A que era financiada através de ‘contribuições’ do Ministério de Bem estar social, continuou a sua matança. (...) Definitivamente a direita peronista tinha tomado o Poder (...) o sindicalismo combativo foi dizimado (...) em meio de uma grande crise o governo entrou na sua etapa final (...) o golpe de março de 1976 vinha se preparando há muito tempo, depois da morte de Perón, mas o plano, nomeado ‘Operativo Aries’, foi posto em marcha 10 meses antes do golpe, ideado pelos generais Videla e Viola” (Moljo, 2005: 239-244, tradução nossa).

A chegada ao poder da última e mais sangrenta ditadura militar Argentina que se

estendeu até 1983 aconteceu com um forte grau de aceitação. A crise de autoridade

(Romero, 2006: 196), as lutas facciosas, a presença cotidiana da morte, a ação

espetacular das organizações guerrilheiras e o terror semeado pela Aliança

Anticomunista Argentina durante o governo de Isabel Perón criaram as condições para

essa aceitação.

“O caráter da solução projetada podia ser percebido nas metáforas empregadas –doença, tumor, extirpação, cirurgia -resumidas em uma expressão clara e contundente: cortar o nó górdio com a espada. O golpe, na verdade, foi uma operação integral de repressão, cuidadosamente planejada pela direção das três armas, ensaiada primeiro em Tucumán, onde o Exército intervinha oficialmente desde 1975, e depois executada sistematicamente em todo o país”. (Idem: 196-197).

O percurso desenvolvido por Romero sintetiza esse processo militar em termos

de genocídio, grande transformação econômica, redução do Estado e ações dirigidas a

silenciar a sociedade.

No que diz respeito ao genocídio - entendendo que a repressão foi uma ação

sistemática do Estado - e considerando que a descrição do funcionamento dessa

maquina repressiva excede as possibilidades deste trabalho16- alguns dados aportados

por Romero são esclarecedores.

“Tratou-se de uma ação terrorista, dividida em quatro momentos principais: seqüestro, tortura, prisão e execução. (...) Assim, não houve mortos, apenas “desaparecidos”. Os desaparecimentos foram massivos entre 1976 e 1978, o triênio sombrio, e depois se reduziram a um numero mínimo. Foi um verdadeiro genocídio. A comissão que investigou os desaparecimentos documentou nove mil casos, mas indicou que poderia haver muitos outros não denunciados, enquanto as organizações defensoras dos direitos humanos procuravam por 30 mil desaparecidos. Eram jovens de entre 15 e 35 anos. Alguns pertenciam às organizações armadas. O ERP foi dizimado entre 1975 e 1976 (...) Os Montoneros, que também sofreram grandes baixas em seus quadros, continuaram a operar,

16 Uma boa síntese desse acionar sistemático se encontra na obra de Romero citada pp. 196-201.

apesar de terem de se limitar a ações terroristas (...) O certo é que quando a ameaça real das organizações desvaneceu, a repressão continuou o seu caminho. Caíram militantes de organizações políticas e sociais, dirigentes sindicais atuantes nas comissões internas da fabricas (...) e junto com eles militantes políticos, sacerdotes, intelectuais, advogados relacionados às defesas de presos políticos, ativistas de organizações de direitos humanos e muitos outros, pela única razão de serem parentes de alguém, terem seu nome em um caderno de telefone ou serem mencionados em uma sessão de tortura. Mas, apesar dos acidentes e erros, as vitimas foram aquelas desejadas. Com o argumento de enfrentar e destruir as organizações armadas em seu próprio território, a operação procurava eliminar todo ativismo, todo protesto social (...) toda expressão de pensamento crítico, toda direção política possível do movimento popular que tinha se desenvolvido desde meados da década anterior e que estava sendo aniquilado. Nesse sentido, alcançaram exatamente os resultados almejados.” (Romero, 2006: 196 e ss.).

Com uma sociedade aterrorizada, com toda possibilidade de espaço político e de

construção coletiva fechada, estavam dadas as condições, mesmo que sem uma adesão

explícita, para a implementação de transformações econômicas estruturais.

A solução a longo prazo encontrava sustentação no fato de avaliar que o Estado

intervencionista e benfeitor era o responsável pela desordem social e no seu lugar

aparecia o Mercado como órgão regulador por excelência das relações sociais.

“(...) o mercado parecia o instrumento capaz de disciplinar por igual a todos os atores, premiando a eficiência e impedindo os comportamentos corporativos nocivos. (...) No fim da transformação conduzida por Martinez de Hoz, o poder econômico se concentrou de tal modo em um conjunto de grupos empresariais, nacionais e multinacionais, que a disputa corporativa e a negociação já não eram sequer possíveis”. (Romero, 2006: 201).

Essa “solução”, cuja implementação foi possível pelo terrorismo do Estado que

tinha – e continuava fazendo-o - dizimado o jogo corporativo foi apoiada, sobretudo,

pelos Organismos Internacionais, pelos bancos estrangeiros e pelo establishment

econômico nacional.

Assim, as políticas aplicadas em termos econômicos sofreram grandes mudanças

estruturais. Tratou-se de um questionamento ao valor atribuído ao mercado interno (Cf.

Idem: 205-206), donde se deu prioridade às atividades que ofereciam vantagens para a

concorrência no mercado mundial. Essa estratégia fortaleceu o setor financeiro,

promoveu a abertura econômica e o endividamento do país.

“O critério de proteger a industria – criticada por sua falta de competitividade - foi substituído pelo do prêmio à eficiência, e a idéia de que o crescimento econômico e o bem-estar da sociedade estavam associados com a indústria foi abandonada. Tratava-se de um questionamento parecido com o do restante do mundo capitalista, mas a resposta local foi muito mais destrutiva que construtiva”. (Idem: 206).

Assim, a “redução” das funções do Estado foi um dos objetivos proclamados por

essa política, posição orientada ao desgaste do Estado social ou benfeitor e à abertura

para o mercado mundial.

“(...) substituir a direção do Estado pela do mercado –automático, limpo, impessoal-, que, mediante a distribuição racional de recursos, de acordo com a eficiência de cada um, destruiria toda possibilidade de conluio entre corporações. Paradoxalmente, o ministério se propôs a utilizar o poder do Estado para impor, pela força, a receita liberal e redimensionar o próprio Estado” (Idem: 209-210).

Considera-se relevante salientar, na lógica deste trabalho, qual foi o papel

assumido pela Igreja católica neste processo. Segundo Romero, no início, a igreja

assumiu uma posição complacente com o regime, a hierarquia eclesiástica – com

algumas exceções “aprovou a associação que os militares faziam (...) entre terrorismo

de estado e virtudes cristãs, (...) justificou (...) a erradicação da subversão ateia, e

chegou mesmo a tolerar que alguns de seus membros participassem dela”. (Idem: 215).

Apesar de exceções, a igreja católica Argentina assumiu o mais vil dos papeis, dentre o

resto das igrejas latino-americanas. Sem pretensões de aprofundar nas relações mantidas

entre a igreja católica e a ditadura militar17, é preciso fazer algumas observações. Tanto

a leitura da obra de Mignone (1999), quanto as observações de Gorini (2006) a respeito

dessa questão, permitem pensar que a igreja católica – Argentina em particular, mas

também a cúpula vaticana - assumiu um papel que transcende o que Romero denomina

de “complacência inicial”. A igreja católica Argentina desempenhou um papel orgânico

à ditadura militar e com participação direta na prática sistemática de desaparição de

pessoas, tortura e morte18. Tanto Romero quanto Mignone19 coincidem no fato de que

essa posição da Igreja católica mostrou raras exceções. Nesse sentido, Mignone coloca

que dos mais de oitenta prelados que cumpriam funções e compunham o corpo

episcopal argentino, apenas quatro adotaram uma linha de denuncia aberta das violações

dos direitos humanos cometidas pelo regime terrorista (Cf. Mignone, 1999: 43, tradução

nossa).

“Tanto Tortolo quanto os cardeais Aramburu e Primatesta que integravam em 1976 a Comissão Executiva da Conferencia Episcopal, fecharam as portas às famílias das vitimas e apenas por exceção as receberam (...) a mesma atitude adotaram a

17 Para uma melhor compreensão dessa relação ver Mignone (1999) 18 Os julgamentos contra membros da igreja católica Argentina – na atualidade – não deixam lugar para duvidas, cite-se a modo de exemplo a recente sentencia contra o Capelão da policia do Estado de Buenos Aires, Christian Von Wernich. 19 Emilio Mignone (1922-1998) foi advogado, fundador e reitor da Universidade de Luján, no Estado de Buenos Aires, com ativa participação política e fervente militante católico, pai de Mônica Mignone, desaparecida pela ditadura militar em 14 de maio de 1976. Na atualidade Mônica forma parte dos 30.000 argentinos “detenidos-desaparecidos”.

respeito das organizações de direitos humanos às quais qualificavam de ‘comunistas’ e subversivas” (Idem: 44).

Mignone analisa o primeiro documento episcopal sobre essa problemática que

foi emitido em maio de 1976, a partir da pressão das famílias dos “desaparecidos”.

Consideramos que esse documento condensa com clareza a posição da Igreja Argentina

em face do governo ditatorial e a sua política.

“Tem fatos que são mais do que um erro: são um pecado – expressa o documento -, os condenamos sem matizes, seja quem for o seu autor [...] é o assassinar – com seqüestro prévio ou sem ele – e qualquer seja o bando do assassinado [...], mas, é preciso lembrar que seria fácil errar com boa vontade contra o bem comum se pretendera-se... que os organismos de segurança atuaram com pureza química do tempo de paz, enquanto corre sangue cada dia; que se arrumaram desordens, cuja profundidade todos conhecemos, sem aceitar os cortes drásticos que a situação exige; ou não aceitar o sacrifício, em aras do bem comum, daquela cota de liberdade que a conjuntura pede, ou que se procurasse com pretendidas razões evangélicas implantar soluções marxistas (...) se poderia errar se (...) procurando uma necessária segurança, se confundissem com a subversão política, com o marxismo ou a guerrilha, os esforços generosos, de raiz freqüentemente cristã, para defender a justiça, os mais pobres ou os que não tem voz” (Primeiro Documento Episcopal. Emitido em 15 de maio de 1976. In: Mignone, 1999: 44-45)

A citação anterior de Mignone expõe com clareza que a igreja assumiu um papel

fundamental na legitimação da estratégia ditatorial a partir – como já afirmamos – da

participação direta na política sistemática de repressão, mas também na legitimação da

idéia da “guerra suja”, daí a referencia continua a “bandos”, subversão política, soluções

marxistas.

Levando em conta a situação de censura, perseguição política e desaparição

física de pessoas, os protestos mais importantes vinculavam-se ao reclamo pelos direitos

humanos. As autoridades eclesiásticas constituíam para muitos uma esperança de

resposta em face da desaparição de pessoas, a partir das influencias da igreja sobre a

ditadura, isto é, levou tempo para se tirar o véu da conivência entre igreja e ditadura. O

Movimento de denuncia foi se constituindo em diferentes vertentes, desde a Liga

Argentina pelos Direitos do Homem, a Assembléia Permanente pelos Direitos

Humanos, familiares de presos e desaparecidos por razões políticas e um grupo de mães

de pessoas “detenidas-desaparecidas”20– pelo terrorismo de Estado - começou se

organizar e foi se convertendo em um referente que transcendeu as fronteiras nacionais

no que diz respeito à luta pelos direitos humanos. Essa organização [Madres de Plaza de

Mayo] – que na atualidade apresenta fragmentações - surgiu como organização de mães,

que em procura do destino dos seus filhos desaparecidos, consideraram que essa luta

devia ser coletiva e não individual. Esse Movimento constituiu a primeira manifestação

publica contrária à ditadura militar, e, aproveitando a Copa do Mundo de 1978 – a

organização desse evento foi capturada pela ditadura com fins de mostrar uma imagem

do país na imprensa mundial que encobrisse as graves violações aos direitos humanos

que começavam a se denunciar – adquiriram visibilidade mundial. A organização foi

transcendendo a reivindicação particular – da procura dos filhos - que tinha lhe dado

origem e foi se constituindo em um referente nacional e internacional na luta pelos

Direitos Humanos. A Organização constituiu, também, uma referência para outras

organizações, exemplo de luta e resistência. Essa organização incipiente soube utilizar

as novas determinações da política estadunidense no que diz respeito aos direitos

humanos a partir da estratégia de Carter que já foi analisada em paginas anteriores, claro

20 Conforme expressão textual do Movimento, razão pela qual se respeitou a expressão em espanhol.

que os resultados não foram os esperados21. A seguinte citação de Gorini representa o

processo do surgimento e transformação dessa organização.

“Quando Hebe de Bonafini22 disse que as mães foram paridas pelos seus próprios filhos assinalou, com razão, que foi o processo da busca dos desaparecidos o fatos que lhes deu origem, o qual constituiu uma busca dupla. A física, que incluía a recuperação dos corpos seqüestrados, e a ideológica, que implicava o descobrimento ou o reconhecimento de uma identidade que os militares pretendiam apagar para sempre da face da Argentina. Nesse caminho nasceram as mães. E não nasceram de uma vez e para sempre. Sucessivos partos de lutas e alegrias, frustrações e conquistas fizeram vir ao mundo esse movimento que não parou de se transformar a si próprio ao longo de toda a sua história” (Gorini, 2006: 301-301).

A opinião publica começava a reaparecer, e os partidos políticos –fechados e

dizimados desde 1976 - começavam a se movimentar. Nesse contexto, já em 1981 o

governo convocou os grupos de direita para pensar em uma saída política.

Os partidos políticos não aceitavam uma saída política condicionada nem uma

democracia submetida à tutela militar. Os protestos foram crescendo “(...) sindicalistas,

empresários, estudantes, religiosos, intelectuais e, principalmente, defensores dos

direitos humanos -, foram formando um coro que, no inicio de 1982, era difícil de

ignorar”.(Romero, 2006: 217).

Em 1982 a guerra das Malvinas constituiu o último intento dos militares por

gerar uma ação legitimadora em face do novo contexto. A derrota abriu a porta para a

saída eleitoral que foi o fim – em 1983 - do período mais trágico da história Argentina.

21 Para um aprofundamento na história de Madres de Plaza de Mayo, ver Gorini (2006). Nessa análise aparece com muita clareza também o papel atroz assumido pela igreja católica Argentina no terrorismo de Estado. 22 Presidente de Madres de Plaza de Mayo.

Esse cenário político e social aberto em 1976, é o cenário de derrubada do

movimento de Reconceituação da nossa profissão na Argentina, mas também no resto

dos paises do subcontinente. Embora não exista consenso no que diz respeito à data do

fim desse processo, é inegável que a instauração dos processos ditatoriais na região o

ferem de morte.

As possibilidades da Aliança para o Progresso, que já foi apresentada como

resposta em face do ‘perigo’ de expansão revolucionária, tinham sido enterradas como

alternativa viável de resposta frente à ‘nova onda’ revolucionária. Esse lugar será

ocupado, então, pelas ditaduras militares da região. Essa nova resposta em face desse

cenário já não tentará somente despolitizar a economia e deseconomizar a política, tal

fora uma das estratégias da Aliança para o Progresso. A nova resposta para a

manutenção da ordem social se orientará diretamente em direção da eliminação –

física!- de todo perigo de questionamento.

Nessa lógica grande parte da produção critica foi censurada junto com os seus

representantes que foram no exílio, na clandestinidade, desaparecidos ou mortos.

CAPÍTULO II:

As particularidades da Reconceituação

do Serviço Social na Argentina

2.1 A particularidade como campo de mediações

Iniciamos o segundo capitulo da nossa dissertação após uma análise que

reconstruiu um processo orientado no esforço de situar sócio-históricamente o

Movimento de Reconceituação latino-americano – na particularidade da Argentina –

que constitui o objeto que norteia a nossa pesquisa. Como foi dito no capítulo anterior, é

a própria historicidade do Processo de Reconceituação que coloca os temas centrais a

serem desenvolvidos, orientando o caminho percorrido pelas nossas reflexões teóricas.

Captar essa particularidade vincula-se ao movimento intelectual de apreensão

das leis sociais em direção ao conhecimento dos fenômenos da sociedade. Nesse

sentido, Pontes – fazendo uma análise das categorias de Mediação e Particularidade –

retoma a seguinte afirmação de Netto.

“Buscar a legalidade de cada processo social é, em primeiro lugar, determinar os processos sociais; em segundo lugar, compreender sua dinâmica específica; e, em terceiro lugar, vincular essa dinâmica específica a outras dinâmicas específicas em outros processos sociais” (Netto, 1991: 5. In: Pontes, 1997: 84).

A partir dessa reflexão de Netto, Pontes afirma que a categoria de

particularidade assume um papel central na dinâmica do conhecimento, porque se

constitui em campo de mediações, conforme a colocação lukacsiana23 (Cf. Pontes, 1997:

84-85).

23 “[…] Todavia, se nós considerarmos corretamente o movimento dialético do universal ao particular e vice-versa, devemos observar que o meio mediador (a particularidade) pode ainda menos ser um ponto firme, um membro determinado, e tampouco dois pontos ou dois membros intermediários, como diz Hegel [...], mas sim em certa medida, um inteiro campo de mediações, o seu campo concreto e real que, segundo objeto ou a finalidade do conhecimento, revela-se maior ou menor” (Lukács, 1978: 113. In: Pontes, 1997: 85, grifos do autor).

Seguindo as reflexões de Pontes e, valendo-nos da afirmação de que a

compreensão dialética da seqüência aportada por Netto “reside na elucidação da tríade

universalidade-particularidade-singularidade”, e de que “A dialética dessa tríade se

expressa na realidade da vida cotidiana de cada ser social” (Cf., idem: 85), é que nos

propomos captar um movimento histórico, na particularidade de um país, precisamente,

o caso argentino. Um estudo orientado a transcender o plano da imediaticidade, no qual

as categorias aparecem como formas autônomas do ser e “emergem despidas de

determinações históricas” (Ibidem), exige direcionar a atenção nas determinações do

objeto, no campo das suas mediações. Mas, o que significa isto em termos de Pontes?

Vejamos a seguinte reflexão.

“Assim, para se operar à ultrapassagem da singularidade é preciso ‘buscar a legalidade de cada processo social’, através da apreensão das determinações onto-genéticas dos processos sociais. Não se trata de uma busca externa ao objeto, de nenhuma determinação transcendente ao ser; trata-se de uma captação a partir dos próprios fatos – aqui entendidos como ‘sinais empíricos’ – o do seu automovimento, das mediações com a dimensão de Universalidade” (Ibidem).

Citando Marx, Pontes aponta que é no plano da universalidade que estão

colocadas as grandes determinações gerais de uma dada formação histórica.

Determinações que, segundo Marx, são regidas por “leis tendenciais”. “A legalidade

social é a expressão da universalidade do processo. Há uma totalidade social e não

partes com totalidades autônomas”(Pontes, 1997: 86)24.

24 “a ciência autentica [referindo-se à dialética de Marx – R.P.] extrai da própria realidade as condições estruturais e suas transformações históricas e, se formula leis, estas abraçam a universalidade do processo, mas de um modo tal que deste conjunto de leis pode-se retornar – ainda que freqüentemente através de muitas mediações – aos fatos singulares da vida. É precisamente esta dialética concretamente realizada de universal, particular e singular” (Lukács, In: Pontes, 1997: 86).

Então, se entendermos – a partir do método histórico-dialético – a centralidade

da perspectiva da Totalidade, como “complexo de complexos”, “é imperativo apreender

as mediações que vinculam e determinam esses processos”, enquanto cada complexo

tem a sua existência mediatizada com os demais (Cf. Idem: 87-88).

Compreender a categoria de particularidade nos termos de Lukács, como um

campo de mediações , como espaço onde a legalidade universal se singulariza e a

imediatidade do singular se universaliza, é captar a própria essência dialética da tríade

universal-particular-singular. É captar o papel da mediação, o que permite transcender a

leitura dicotômica entre universal e singular, polarização que esvazia a categoria da

particularidade (Cf. Idem: 87).

A partir da perspectiva apresentada até aqui é que devem ser entendidas as

reflexões que apresentamos neste segundo capítulo, cujo direcionamento perpassa toda

a nossa produção.

2.2 A propósito do Movimento de Reconceituação argentino, no contexto latino-

americano

“Durante aproximadamente uma década – 1965/1975 -, desenvolveu-se, experimentando apogeu e refluxo, o compósito processo a que se convencionou chamar de reconceptualização do Serviço Social, algo tipicamente latino-americano. Enquanto fenômeno sócio-cultural, o processo de reconceptualização articulou-se como conseqüência da crise estrutural que, gestada desde meados dos anos cinqüenta, afetou os padrões de dominação sócio-política vigentes na América Latina. Enquanto fenômeno profissional, ele instaurou-se como uma resposta possível elaborada por setores da comunidade profissional como alternativa à evidente falência do Serviço Social institucional que, no continente sempre foi um Serviço Social a que cabe a caracterização de tradicional” (Netto, 1981:59)

Começando o segundo ponto deste capitulo, consideramos pertinente explicar as

razões pelas quais temos optado por iniciá-o com a citação anterior. A necessidade

dessa explicação responde a – pelo menos – duas razões. Em primeiro lugar chamar a

atenção para o fato de que embora o objeto da nossa pesquisa seja orientado pelo estudo

do Movimento de Reconceituação na Argentina, a apelação à obra de um autor

brasileiro não deve nos levar a supor um anacronismo no nosso desenvolvimento. Isto é,

e sobretudo no capitulo III, apresentaremos questões que darão conta do processo

argentino, mas consideramos necessária a leitura de autores que contribuíram na análise

desse fenômeno latino-americano e, como é o caso do autor citado, a partir de uma

perspectiva crítica.

A citação que dá inicio ao segundo ponto do presente capitulo foi extraída de um

artigo publicado na Revista Serviço Social e Sociedade Nº 5, em junho de 1981. Esse

artigo sob o titulo “A Crítica Conservadora á Reconceptualização” pode ser lido como

a resposta a uma critica de caráter conservador publicado no numero anterior da mesma

revista, de autoria de Helena Iracy Junqueira25.

A segunda razão responde ao fato de que a perspectiva crítica sustentada pelo

autor nos introduz na análise da Reconceituação propriamente dita como fenômeno

sócio-histórico e politicamente situado. A partir disso as nossas reflexões do capítulo I

cobram uma importância fundamental para compreender que:

“Na escala em que o processo de reconceituação inscreveu-se num momento histórico em que as sociedades latino-americanas fraturavam-se diferencialmente pelo mecanismo de uma crise estrutural (a própria reconceptualização, aliás, é um dado dessa fratura), era inevitável que o âmbito profissional fosse percorrido pelas fissuras que trincavam a sociedade como um todo. Pretender que a profissão não registrasse, em si mesma, as incidências da Revolução Cubana, do rotundo fracasso do programa modernizador e liberal da Aliança para o Progresso, da guerrilha urbana e rural, dos novos padrões da dominação

25 Trata-se de JUNQUEIRA, H. I. Quase duas décadas de Reconceituação do Serviço Social: uma abordagem critica. In: Revista Serviço Social e Sociedade Nº 4. São Paulo: Cortez, 1980.

imperialista (que determinaram, nos paises de maior peso no continente, a emergência dos modelos militares-fascistas), da hipertrofia urbana, da crise fundiária, do colapso e da renovação de instituições tradicionais (como a igreja católica), das novas pautas culturais de comportamento, etc. (mil etc.) – essa pretensão não merece mais que um sorriso de piedade” (Netto, 1981: 66).

Essas reflexões do autor são expostas em face de uma das críticas que

conformam a crítica conservadora à Reconceituação e, que diz respeito a uma suposta

des-profissionalização como resultado da politização da profissão a partir desse

movimento. Então, com base na nossa análise histórico-política de América Latina e da

Argentina em particular, nos anos ‘60/’70 do século XX e, resgatadas estas reflexões

que apresentam o Movimento de Reconceituação do Serviço Social historicamente

situado, estamos em condições de mergulhar nesse movimento que evidenciou, segundo

Netto, um caráter heteróclito (Cf., 1981: 60). Isto é, esse movimento albergou

tendências heterogêneas e até conflitantes. Poder-se-ia representar essa divergência de

tendências em um caminho de orientação modernizadora e em um outro caminho

orientado na direção da intenção de ruptura.

“Constituinte do processo internacional de crítica ao tradicionalismo profissional, a Reconceituação está intimamente vinculada ao circuito sócio-político latino-americano da década de sessenta do século XX – em nosso subcontinente, como observou um dos seus protagonistas, ‘a ruptura com o serviço social tradicional se inscreve na dinâmica de rompimento das amarras imperialistas, de luta pela libertação nacional e de transformações da estrutura capitalista excludente, concentradora, exploradora’ (Faleiros. In: Netto, 2005:74). (...) a reconceituação foi comandada por uma questão elementar: qual a contribuição do Serviço Social na superação do subdesenvolvimento? (...)”. (Netto, 2005: 74).

A citação de Netto é clara em termos de colocar o ponto central da emergência

do movimento reconceituador vinculado ao Desenvolvimento num nível mais amplo.

Assim, ele vai dizer que aquela necessidade do Serviço Social contribuir na superação

da condição de subdesenvolvimento gerou um movimento amplo e muito heterogêneo.

A crise do serviço social tradicional, que gera esse movimento no interior da

profissão e como tentativa de acompanhamento do movimento sócio-político da região,

coloca em xeque os aportes teóricos, metodológicos, ideológicos e operativos que

fundamentavam o serviço social tradicional26.

Netto (2005: 76-77) propõe quatro pontos centrais que tem a ver com as

conquistas do Movimento reconceituador na América Latina:

• Articulação de uma nova concepção da unidade latino-americana.

• A explicitação da dimensão política da ação profissional.

• A inauguração do pluralismo profissional.

• A interlocução crítica com as ciências sociais.

É justamente essa interlocução crítica que vai permitir ao Serviço social se

afastar daquela posição passiva e de receptor acrítico da produção das ciências sociais,

permitindo uma interlocução com essa produção e, nesse marco, com a tradição

marxista.

Assim, segundo a colocação do autor “A principal conquista da Reconceituação,

porém, parece localizar-se num plano preciso: o da recusa do profissional de Serviço

Social a situar-se como um agente técnico puramente executivo (quase sempre, um

executor terminal de políticas sociais)”. (Idem: 77).

Se fizermos uma avaliação da bibliografia existente no que diz respeito ao

processo de reconceituação vamos nos encontrar com uma obra coletiva de 1971 que

tenta uma primeira aproximação a esse respeito27.

26 Entendemos o Serviço Social tradicional nos termos de Netto. “Por ‘Serviço Social tradicional’ entendo aqui o desempenho profissional asistemático, intuitivo, carente de procedimentos técnico-científicos mais refinados guiado por valores de origem liberal burguês, orientado à correção (em uma perspectiva claramente funcionalista) de disfunções sociais e apoiado em uma concepção (concientizadora ou não) idealista e/ ou mecanicista do universo social, apenas compreendido enquanto universo social capitalista” (Netto, 1974: 7, tradução nossa). 27 Trata-se de VV. AA. Reconceptualización del Servicio Social. Primera aproximación. Buenos Aires: Humanitas, 1971.

Na obra citada, Herman Kruse28 coloca a Reconceituação do Serviço Social no

final de um processo que ele reconstrói, através de uma lógica do que entende ser a

aplicação de um esquema dialético na compreensão da “evolução histórica” do Serviço

Social. Reconhecendo que essa “evolução” respondeu à influência do processo histórico

latino-americano e à trajetória do desenvolvimento do Serviço Social europeu e –

particularmente – estadunidense, a “seqüência evolutiva” teria o seguinte percurso. O

caminho teria se iniciado no que se conheceu como Serviço Social pára-médico, teria se

dado uma passagem para o Serviço Social pára-jurídico articulado ao Serviço Social

Beneficial, um terceiro momento daria lugar ao Serviço Social Tradicional em uma

perspectiva metodologista, teria se passado para um momento que o autor denomina

como cientificismo asséptico vinculado ao ideário desenvolvimentista e teria-se

chegado – nessa lógica “evolutiva”, carregada de positivismo e sustentada na lógica

formal abstrata - no momento da Reconceituação do Serviço Social (Cf. Kruse, In: VV.

AA., 1971: 26).

“Em meados da década de sessenta, os assistentes sociais jovens do cone sul reagiram contra os programas de formação copiados do 3º Estudo Internacional sobre Ensino do Serviço Social, contra a falta de textos em espanhol que refletissem nossa realidade e contra a falta de canais de comunicação entre as novas gerações. 1965 foi um ano chave. No Uruguai, se começou a discutir um novo currículo para a formação em cuja elaboração participaram, pela primeira vez, os estudantes, ao amparo do co-governo universitário que tinha-se conquistado em 1958. Na Argentina, aparecia a revista ‘Hoy em el Servicio Social” e pouco depois surgiria “Selecciones del Servicio Social”. E no Brasil, organizava-se o I Seminário Latino-americano de Serviço Social, onde organizadores e oradores já não eram os velhos ‘monstros sagrados’ da profissão, senão figuras novas e desconhecidas que traziam uma mensagem diferente. Falou-se naquela época da ‘geração do ‘65’ para se referir aos atores desses fatos. Pouco depois imporia-se a

28 Assistente Social uruguaio, referência intelectual e política do processo de Reconceituação no seu país e na região.

denominação mais precisa ‘a reconceituação’” (Kruse, 1986: 19-20, tradução nossa).

Esse processo que é apresentado pelo autor como uma nova corrente dentro do

Serviço Social, é caracterizado como uma “olla hirviente” 29, isto é, condensando uma

heterogeneidade que não permite compreendê-lo como unidade homogênea.

“A Reconceituação são os ganhos de não menos de cinqüenta pequenos grupos que discutem criticamente o Serviço Social desde o México até Montevidéu, desde Lima até o Rio de Janeiro, chegando – às vezes – a descobrimentos muito distintos, sem esquecer que a ênfase da discussão desses grupos às vezes é completamente diferente. Mais ainda, os grupos que iniciaram primeiro esse debate crítico tem passado por períodos nos quais os temas examinados tem variado com o passar do tempo” (Kruse, In: VV. AA., 1971: 27, tradução nossa).

Em primeiro lugar consideramos necessário nos determos nas determinações da

critica ao Serviço Social Tradicional na perspectiva do Desenvolvimentismo,

entendendo – como já foi dito - que o questionamento critico da profissão em face do

tradicionalismo se inscreve nessa perspectiva.

“O arrogante triunfo da Revolução cubana pôs a descoberto as vergonhosas condições de vida que se davam no continente. Sua bandeira de denuncia do subdesenvolvimento foi rapidamente tomada também pelo bando contrário, quando o presidente Kenedy ofereceu no C.I.E.S30 a aprovação da Aliança para o Progresso” (Kruse, In: VV. AA., 1971:28).

O autor mostra a emergência de uma tendência desenvolvimentista no interior da

profissão, que foi formalizada através dos congressos Pan-americanos de Serviço

Social, Em São Jose de Costa Rica em 1961 e Lima, Peru em 1965.

29 Cuja tradução para o portugués seria “panela em ebulição”. 30 Trata-se do Conselho Interamericano Econômico e Social da OEA.

“No IV congresso31 inaugurou-se uma nova corrente no Serviço Social. A reunião se realizou apenas três meses depois da sessão do CIES [Conselho Interamericano Econômico e Social] que tinha institucionalizado a Aliança para o Progresso e orientou o Serviço Social no que temos denominado como uma concepção desenvolvimentista. O assistente social começou a ser visto como um dos profissionais mais aptos para promover programas de bem-estar individual ou familiar e de desenvolvimento comunal que fortalecessem o sistema e impedissem a propagação continental do exemplo cubano. As reuniões de Lima, 1965 e de Caracas, 1968 foram a culminação desta corrente” (Ander-Egg e Kruse, s/d: 12, tradução nossa).

No desenvolvimento do capítulo I do presente trabalho – e voltaremos sobre isso

também no próximo capítulo – apresentamos a Aliança para o Progresso como resposta

imperialista, em face dos “riscos” de surtos revolucionários na região, sobretudo de

exportação da experiência cubana para outras latitudes. Agora, é necessário chamar a

atenção para o significado da Aliança para o Serviço Social e a sua influência decisiva

no seu processo de redefinições.

“Quando já estava amplamente difundido o sentido de frustração dos Assistentes Sociais pelo divórcio entre a sua formação teórica e as suas possibilidades práticas nas instituições, pela ineficácia do método de caso para resolver problemas de fundo, pela impossibilidade funcional de ir à causa dos problemas, um fato político sacudiu o continente: a Revolução Cubana. Vista pelos Estados Unidos como um perigo, o presidente Kennedy decidiu afrontá-la com uma ação social de vastas proporções. Foi assim como na reunião do CIES [Conselho Interamericano Econômico e Social] de agosto de 1961, em Punta del Este, a OEA aprovou um enorme programa que se denominou ‘Aliança para o Progresso’. Os projetos da Aliança para o Progresso transcenderam o estritamente político abordando o econômico e o social, e obviamente incluíram também o serviço (Sic). O seu ponto de partida foi um fato real, tangível, incontrastável: os países da América Latina eram – e desgraçadamente seguem sendo – subdesenvolvidos. O Propósito da Aliança para o Progresso era atacar o subdesenvolvimento. Como? Com uma pluralidade de projetos econômicos e sociais e algumas

31 Trata-se do IV Congresso pan-americano de Serviço Social, realizado em São Jose de Costa Rica em 1961.

mudanças estruturais secundarias que viabilizassem aos países latino-americanos conseguir a superação do subdesenvolvimento. Subjacente a isso, estava a concepção do subdesenvolvimento como etapa anterior e prévia ao desenvolvimento do que se podia emergir com determinadas cotas de inversão e algumas mudanças no sistema de posse e exploração da terra, nos sistemas administrativo e fiscal e, logicamente, superando os desníveis da balança de pagamentos, etc., etc. (Kruse, 1986: 15-16, tradução nossa).

Considera-se necessário fazer algumas observações com relação à citação

anterior de Kruse. O autor continua analisando o significado da Aliança para o

Progresso no que diz respeito à inserção do Serviço Social em uma série de projetos em

nível continental. Coloca o fato de o Serviço Social ter conseguido reconhecer a

dimensão ideológica e afirma que a Aliança para o progresso “teve a franqueza de se

apresentar como o que realmente era: um programa político” (Idem: 17). Ainda sob o

risco de repetir uma argumentação que, em parte, já foi desenvolvida no capitulo I da

presente dissertação, entendemos fundamental salientar novamente que a Aliança para o

Progresso constituiu uma resposta imperialista em face do novo cenário aberto no

Subcontinente e, portanto, esse projeto teve um claro caráter político. Esse caráter só

aparece na Assembléia do CIES de 1961, a partir da denuncia nesse sentido expressa no

Discurso de Guevara que no capitulo anterior citamos oportunamente. Por essa razão é

que consideramos imperioso colocar entre aspas a questão de que o “ataque ao

subdesenvolvimento” tenha sido o propósito dessa proposta. Isto é, parece necessário

salientar mais uma vez que essa Aliança perseguiu como seu objetivo central des-

politizar, des-economicizar e des-historicizar o problema do subdesenvolvimento na

região, convertendo a questão do desenvolvimento em um assunto puramente técnico,

que exigia – portanto – intervenções tecnocráticas para resolver o grave problema. Esse

problema – na lógica do império - não era outro que a possibilidade de se espalhar as

experiências revolucionárias desde que os graves problemas da região não encontrassem

resposta oficial. Isto é, constituiu um “ganho” das lutas sociais, na lógica de uma

resposta de caráter adaptativo. Por isso a necessidade de chamar a atenção para o fato de

compreendê-la não como resposta em face de uma suposta preocupação pelo

subdesenvolvimento da região e sim como alternativa para a reprodução da ordem

social.

Kruse continua mostrando um processo através do qual esse papel

“transcendental” do Serviço Social no Desenvolvimento não conseguiu ir além do

verbalismo e rapidamente os limites dessa concepção começaram se manifestar (Cf.

Krusse, In: VV. AA., 1971: 28 e ss.). Assim em 1965 por causa do I Seminário

Regional de Serviço Social, realizado em Porto Alegre, Brasil,

“Começaram-se analisar com uma lupa as graves falhas do Serviço Social Tradicional e do cientificismo asséptico e – sem sair ainda do desenvolvimentismo – se começou a ver o rol revolucionário do Serviço Social. Passo a passo, a contribuição marxista e a liberdade de expressão que existiam no Uruguai e no Chile facilitaram ver as coisas desde outro ângulo. Não tem uma, senão duas concepções de subdesenvolvimento: a que o considera a etapa anterior ao desenvolvimento, e a que o considera o preço do desenvolvimento de uns poucos” (Ibidem, tradução nossa).

Considera-se, a partir daqui, que aparece a base do que será a ‘rachadura’ no

interior do Movimento no final da década de ’60. Isto é, compreendemos que o

Movimento de Reconceituação na América Latina condensa no seu interior duas

grandes perspectivas. Se esse movimento foi caracterizado como heterogêneo, mostra –

também – uma importante heterogeneidade no seio de cada uma dessas duas tendências.

Poderíamos distinguir uma primeira tendência sob a designação de Desenvolvimentista

e uma segunda tendência vinculada a uma tentativa de diálogo com o campo marxista.

Kruse mostra, ainda, que essas duas concepções exigem do Serviço Social funções

diferentes. Toma o exemplo da necessidade da educação – que é proclamada pelas duas

correntes – mas salientado que “uma coisa é educar com métodos tradicionais para

integrar o homem ao sistema, e outra muito diferente educar, mediante técnicas de

conscientização, para ajudar o homem a se desalienar e se des-massificar” (Idem: 30,

tradução nossa). É evidente, nesta ultima citação do autor, a influência do pensamento

de Paulo Freire na compreensão e no papel outorgado à educação nesse processo. É

interessante salientar que Kruse chama a atenção para o fato de que, mesmo

apresentando essa heterogeneidade, o processo de Reconceituação não alberga no seu

interior corrente nenhuma que se posicione em defesa do Status quo.

Então, surgido nos marcos do ideário desenvolvimentista, o Processo de

Reconceituação enfrentou uma série de problemas ou necessidades que a profissão de

Serviço Social começou a identificar, produto do processo histórico que estamos

analisando no percurso da nossa dissertação. Os pontos centrais da crítica ao

tradicionalismo profissional teriam colocado para o Serviço Social o desafio de

questionamentos no que diz respeito aos temas seguintes (Cf, Idem: 30 e ss.).

Em primeiro lugar é necessário colocar o papel assumido pela teoria nesse

processo e a emergência do debate sobre a necessidade de uma teoria própria do Serviço

Social. A questão da teoria – historicamente desprezada pela categoria profissional – vai

dar um giro a partir da criação do ECRO na Argentina. Trata-se do Esquema Conceitual

Referencial Operativo, vinculado ao Psiquiatra Pichón Riviere. Essa proposta surge da

necessidade de criação de uma teoria que superasse a histórica importação de teorias

provenientes dos Estados Unidos e da Europa e que pouco ou nada tinham a ver com a

realidade do subcontinente. Consideravam-se teorias obsoletas que não davam resposta

aos problemas da região. Inicia-se, assim, a busca de uma teoria própria do Serviço

Social latino-americano e nesse debate o encontro de Araxá ocupou um lugar central.

Agora, vejamos o que nos diz Netto sobre esse encontro e a perspectiva que afirma.

Tínhamos dito nos parágrafos anteriores que é possível identificar no processo de

Reconceituação duas grandes tendências, mas, para Netto (1998: 154) uma vez erodidas

as bases do Serviço Social Tradicional, a reflexão do Serviço Social – no Brasil - se

desenvolveu em três direções principais no processo de renovação. Uma perspectiva

Modernizadora, uma perspectiva que se orienta na direção da Reatualização do

conservadorismo e uma terceira perspectiva que conforma a Intenção de ruptura.

“A primeira direção conforma uma perspectiva modernizadora para as concepções profissionais – um esforço no sentido de adequar o Serviço Social, enquanto instrumento de intervenção inserido no arsenal de técnicas sociais a ser operacionalizado no marco de estratégias de desenvolvimento capitalista, às exigências postas pelos processos sóciopolíticos emergentes no pós ´64. trata-se de uma linha de desenvolvimento profissional que, se encontra o auge da sua formulação exatamente na segunda metade dos anos ’60 – seus grandes monumentos, sem duvidas, são os textos dos seminários de Araxá e Teresópolis (...) o núcleo central desta perspectiva é a tematização do Serviço Social como interveniente, dinamizador e integrador, no processo de desenvolvimento” (Netto, 1998: 154)

Essa primeira perspectiva identificada pelo autor e, que pode ser entendida na

lógica mais ampla do ideário desenvolvimentista na região, parte da crítica ao

tradicionalismo profissional, mas não como forma de reação para a sua superação e sim

para “inseri-los [a esses valores e concepções] numa moldura teórica e metodológica

menos débil, subordinando-os aos seus vieses ‘modernos – donde, por outro lado, o

lastro eclético de que é portadora” (Idem: 155). Nesse sentido é que se pode identificar,

no documento de Araxá, uma subsunção do tradicional no moderno. A despeito de que a

análise feita por Netto em Ditadura e Serviço Social, foi a partir do desenvolvimento do

Serviço Social no Brasil, consideramos que os traços centrais dela contribuem para uma

análise que pode abranger a região, para além das fronteiras do Brasil. Assim, podemos

dizer, junto com o autor, que essa perspectiva modernizante – no caso do Brasil a partir

dos documentos de Araxá e Teresópolis – constituiu (Cf. Netto, 1998, 165) um

instrumento profissional de suporte às políticas de desenvolvimento.

“E é compreensível: a relação subdesenvolvimento / desenvolvimento é pensada como um continuum, o desenvolvimento aparecendo como uma etapa de um processo cumulativo que, submetida a intervenções racionais e planejadas, ver-se-ia ultrapassada e deslocada pela dinâmica que conduziria ao outro pólo do continuum” (Idem: 166).

No capitulo III desta dissertação vamos nos deter em uma análise de algumas

das obras do sociólogo e cientista político argentino Ezequiel Ander-Egg, cuja

influencia no processo de Reconceituação nesse país – mesmo que para além das suas

fronteiras – foi significativa. Nessa análise identificaremos – na trajetória da sua obra –

a presença do que podemos entender como uma perspectiva modernizadora, onde o

papel outorgado ao Serviço Social adquiriu um caráter claramente tecnocrático na

lógica do desenvolvimentismo.

A leitura dos artigos que conformam o livro já citado sob o nome A

Reconceituação do Serviço Social. Primeira aproximação, de 1971, mostra alguns

eixos que estão presentes nas reflexões de todos os autores. Assim, debates sobre a

ideologia, sobre a antinomia ciência / técnica, sobre a necessidade de criatividade

metodológica, de uma metodologia própria para o Serviço Social, norteiam o processo

de reflexão de grande parte dos autores significativos desse Movimento.

Kruse chama a atenção para o fato de que é a partir de dois trabalhos

apresentados no Seminário Regional de Montevidéu, em 1966, que começa a

“desgarrar-se o véu ideológico que alienava os profissionais e a profissão”. Isto é,

segundo o autor, o questionamento da premissa que colocava a incompatibilidade do

Serviço Social “com o existencialismo, com o marxismo ou com qualquer corrente de

pensamento que não fosse de forma insuspeitada ‘ocidental e cristã’”. O autor cita em

face desse processo de “emergência” da questão ideológica a influência de estudos do

ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) e de autores como Althusser e Paulo

Freire, esse ultimo particularmente no Chile, país que atravessava uma situação política

diferente das condições dos seus paises vizinhos, o que gerava um cenário favorável

para essas reflexões (Cf. VV. AA., 1971: 33).

Com relação à questão metodológica, encontramos tanto em Kruse como na

maioria dos autores significativos da época um questionamento orientado à necessidade

de ‘ruptura’ com a importação de metodologias, sobretudo provenientes dos Estados

Unidos. As condições histórico-sociais imperantes, que denunciavam uma realidade que

era lida na perspectiva do subdesenvolvimento, geraram um processo de

questionamento. Isto é, essas “metodologias importadas” não ofereciam respostas

concretas na intervenção nos problemas autóctones e impunham a urgente necessidade

de redefinição, de uma “Metodologia Básica”, segundo a expressão da época.

“Em finais de 1968 era notória e difundida a necessidade de achar meios de ação mais eficazes. Abriram-se duas linhas de procura (...) A linha externa orientou-se ao conhecimento e à adaptação dos novos instrumentos criados pelas ciências sociais (...) interesse na subcultura da pobreza de Oscar Lewis, no método de conscientização de Paulo Freire, nas técnicas conflitantes de Saul Alinsky, nos instrumentos para formular tipologias, nos aportes da Psicologia do Eu, etc., etc. A procura interna orientou-se a revisar a metodologia tradicional do Serviço Social. Assim, vira moda a expressão ‘metodologia básica’. A procura metodológica segue hoje três vias diferentes. Uma, tem o seu centro no Brasil e até agora tem conseguido a sua expressão máxima em trabalhos preparatórios (Jose Lucena Dantas e Tecla Machado Soeiro) e no relatório de Teresópolis. (...) a outra tem o seu centro na Escola de Serviço Social da Universidade Católica do Chile. Primeiro procurou a ‘integração de métodos’, quer dizer, aplicar conjuntamente caso, grupo e comunidade, para ir vendo, aos poucos, que essas opções operativas não são métodos, senão que Trabalho Social em si é um método (...) tem se lançado à formulação de uma metodologia autóctone valida para a realidade latino-americana. A terceira, finalmente, orienta-se a um estudo em profundidade dos métodos tradicionais avaliando as suas possibildiades na

realidade continental e propondo as modificações indispensáveis” (Kruse, In: VV. AA., 1971: 39-41, tradução nossa).

Essa preocupação pela re-definição metodológica parece central na maioria dos

autores que produziram reflexões na época. Em um artigo da obra citada sob autoria de

Eliana Moreau de Young32, a autora coloca a questão da procura do Serviço Social de

uma resposta em face da “ETAPA PRE-REVOlucionária [maiúsculas da autora] que

esta vivendo América Latina”. E porque dissemos que a questão metodológica é uma

preocupação para a autora? O texto apresenta a incapacidade histórica do Serviço Social

para desenvolver uma ação que fosse significativa e questiona a ‘assepsia ideológica’

que levou a acreditar que o caráter neutro da técnica social serviria melhor ao homem

do que o caráter comprometido. Voltaremos depois sob a questão do compromisso, mas

avaliemos agora a citação seguinte da autora:

“Sorte tiveram aqueles a quem pretendíamos servir, que a nossa candidez chegasse a extremos tais que uma análise superficial hoje, nos permite afirmar que fomos muito pouco eficazes ao sistema, porque nossas ações importadas não tinham nenhuma validez cientifica. Isto nos levou a fazer menos dano que o que tivéssemos podido com uma técnica mais depurada” (De Young, E. M., In: VV. AA., 1971: 78-79, tradução nossa).

Essas reflexões da autora permitem pensar que a questão metodológica que está

sendo questionada [particularmente a metodologia importada] ocupa um lugar central na

‘eficácia’ da intervenção do Serviço Social, a partir da possibilidade de lhe outorgar um

status técnico-científico. Isto é, segundo esse raciocínio, essas ações importadas teriam

32 No momento da publicação do artigo, a autora é assistente social e professora da Escola de Serviço Social da Universidade do Chile, em Valparaíso.

levado inclusive a uma ação que nem na sua funcionalidade para a manutenção da

ordem social teria sido totalmente eficaz.

A mesma autora introduz uma outra questão fundamental para a compreensão do

Processo de Reconceituação na Região, qual seja, a articulação com setores religiosos,

particularmente setores da igreja Católica.

“Justo é reconhecer que os que produziram este impacto foram pensadores cristãos, que com as suas idéias movimentaram fortemente o Serviço Social latino-americano: Ander-Egg, Herman Kruse; as idéias renovadoras da Escola de Serviço Social da U. Católica de Santiago, que foi a primeira que iniciou ações para re-orientar o Serviço Social; e a influencia de Paulo Freire com toda a doutrina do seu método de conscientização” (Idem, 79, tradução nossa).

Nessa lógica de pensamento a autora coloca como problema o fato de que esse

processo de renovação se circunscreveu a um grupo de elite que atingiu os alunos das

escolas de Serviço Social, a partir de cujas posições os professores se viram na

obrigação de se posicionar, mas, segundo essa reflexão o campo permaneceria virgem

no que diz respeito aos chamados ‘profissionais de campo’. Embora essa preocupação

esteja fundada em um fato que encontrava sustentação na realidade da época, a questão

deve ser lida com o cuidado necessário que evite o recurso a uma critica do processo

que pode se enquadrar em uma das oito críticas que Netto definiu como constitutivas da

Crítica Conservadora à Reconceituação a que fizemos referência em parágrafos

anteriores. Isto é, deve-se entender junto com Netto que:

“(...) Todo movimento revolucionário ou renovador se realiza, inercialmente, engendrando uma estratificação própria, reforçada, inclusive, pela solidariedade que os seus pioneiros desenvolvem entre si. O que pode ser elemento judicativo é a relação entre esses pequenos grupos, no seu processo de maturação, e a comunidade profissional – e não há qualquer indicio confiável de que os grupos reconceptualizadores tenham

implementados políticas sistemáticas de exclusão” (Netto, 1981, 64).

A partir dessa critica, Moreau de Young se pergunta se o Serviço Social não terá

passado demasiado tempo discutindo sobre o problema ideológico e sobre o caráter

dicotômico – da profissão - entre ciência e tecnologia, debilitando dessa forma o

necessário debate sobre “uma construção metodológica de validez cientifica que de fato

levará a uma definição do status tecnológico ou cientifico da profissão e a transformar o

Serviço Social em um instrumento eficaz de mudança” (Moreau, E. de Y., In: VV. AA.,

1971: 80-81).

A autora coloca que o fato de o Serviço Social ter percorrido desde a sua

institucionalização um processo no qual a questão ideológica foi negada ou não

abordada, teria gerado neste novo cenário – que ela definiu como Pré-revolucionário –

um interesse que define como ‘exagerado’ no que diz respeito a essa questão. Nesse

sentido, chama a atenção para o fato de que – como já dissemos – foi um grupo cristão

que promoveu o ‘despertar critico’ do Serviço Social nos anos ’60 do século XX, se

inserindo nesse grupo – depois – outros grupos de tendência marxista. A autora continua

a sua análise acrescentando que não teriam se apresentado diferenças fundamentais

entre as opções de um e outro grupo. Segundo a autora, “Os grupos renovadores do

Serviço Social se jogam atualmente pelas mudanças estruturais, com ênfase em uma

ação conscientizadora do profissional junto com os indivíduos, grupos e comunidades,

para uma práxis que produza essas mudanças” (Moreau, In: VV. AA., 1971: 82,

tradução nossa).

Consideramos que uma avaliação dessa natureza acaba apagando algumas

diferenças fundamentais que dão forma ao caráter heterogêneo que, como dissemos, o

Movimento apresentou. Neste sentido, não consideramos acertada essa avaliação já que

essas opções diferentes imprimiram leituras, ações e propostas diferentes das que

tentaremos dar conta ao longo da nossa dissertação.

A autora põe ênfase na influência de Paulo Freire, afirmando que todos os

assistentes sociais encontrar-se-iam tentando seguir as linhas do método desse autor que

“se constitui na metodologia que utiliza o povo para a criação da sua cultura e a

expressão da sua palavra” (Freire, ‘Sobre a ação cultural’; Icira, 1969. In: Moreau,

1971: 82).

Parece, então, que em face dessa perspectiva teria chegado o momento para o

Serviço Social abandonar a sua histórica posição de adaptação dos indivíduos ao

sistema, para assumir um lugar de “conscientização” das próprias injustiças do sistema,

promovendo a participação ativa do povo nas mudanças sociais.

Esta perspectiva parece já introduzir elementos do que denominamos

anteriormente como uma “rachadura”, na frente ampla da reconceituação, que vai tomar

forma nos finais da década de ’60 do século passado e que se afastaria da concepção

desenvolvimentista, mas voltaremos a isso.

Uma outra perspectiva é apresentada na mesma obra, no artigo sob autoria de

Sela Sierra33. A citação seguinte da própria autora vai nos colocar em face da sua

posição.

“(...) a tentativa de alguns colegas de chegar à Reconceituação do Serviço Social partindo da sua negação desde a sua base. Ou seja, considerando não já que o Serviço Social é hoje ineficaz ou ainda atentatório para a mudança que se impõe, senão que o foi desde a suas origens porque nasceu como o instrumento de um sistema atualmente inaceitável, para contribuir à sua sobrevivência. Entendo que como toda instituição social não

33 No momento da publicação do livro, a autora era assistente social, professora da Escola de Assistentes Sociais da Universidade de Buenos Aires, presidenta da Federação Argentina de Assistentes Sociais, e do Ateneo de Assistentes Sociais de Buenos Aires.

pôde nem pode escapar aos condicionantes socioculturais – incluído o filosófico, o econômico, o político, o ideológico – de cada momento histórico. Mas entendo também que se a temos escolhido é porque temos reconhecido nela uma validez essencial, um sentido prospectivo que agora haverá que reconsiderar, admito, mas cuja vigência essencial é indispensável manter para dar sentido a qualquer tentativa de reformulação. Toda eleição livre supõe um ato de valoração e de adesão à coisa escolhida. É em ultima instância um ato de amor e de fé. Esse ato de amor e de fé por um Serviço Social, o qual se supõe que temos escolhido livremente, é a condição a partir da qual pode se tentar a sua Reconceituação” (Sierra, S. In: VV. AA., 1971: 119-120, tradução nossa).

Considera-se relevante fazer uma leitura das contribuições da autora na lógica de

análise que Netto definiu como a Reatualização do Conservadorismo. Isto é, não se

trata de importar uma lógica de análise e inseri-la na nossa realidade. Trata-se de captar

à luz das contribuições de Netto essa heterogeneidade, esse caráter heteróclito, do

processo que estudamos. Incluir nesta análise essa perspectiva é importante enquanto

permite apresentar o Processo na sua contradição. Em parágrafos anteriores e analisando

algumas contribuições do uruguaio Herman Kruse, dissemos que – segundo esse autor –

existia no interior do grupo mais ativo da reconceituação uma heterogeneidade que

respeitava um patamar mínimo, isto é, o autor considerava que nenhum desses grupos

podia ser identificado com uma perspectiva teórico-ideológico-política que promovesse

a manutenção do Status quo. Agora, a nosso ver, as considerações da autora contribuem

para colocar interrogações em face da afirmação anterior de Kruse. Uma análise que

coloca em questão a compreensão do Serviço Social – tal como começava a ser

entendido na época - no seu caráter de “instrumento de um sistema atualmente

inaceitável, para contribuir à sua sobrevivência [do sistema]”, constitui um dos

fundamentos das nossas interrogações nesse sentido. A autora faz referência à

necessidade de “reconsiderar” uma tal “validez essencial” da profissão, mas, coloca

expressamente a necessidade de manter essa “vigência essencial” em um possível

processo de reformulação. O fato de afirmar que toda tentativa de Reconceituação

profissional deve partir de “um ato de amor e de fé” – ato que, segundo a autora, seria o

ponto de partida para tentar a Reconceituação de uma profissão que temos escolhido

livremente – não só mostra – como já dissemos – uma perspectiva na lógica da

reatualização do conservadorismo, como também parece se contrapor com às

preocupações posteriores que a autora coloca no texto citado. Mas, uma leitura

cuidadosa permite entender que não se trataria de uma contradição nos termos e sim da

confirmação dessa perspectiva conservadora. Isto é, a preocupação pelo “Retorno ao

Apostolado”, pela dicotomia “Profissionais ou Redentores” (Idem: 120-126) e mais

claramente a contraposição entre “O Profissional e o Político” constituem elementos

para compreender essa perspectiva. O que estamos querendo salientar é o fato de que

subjacente à crítica a esse suposto “retorno ao apostolado” e, subjacente também, à

critica do lugar de “profissionais ou redentores”, parece se ocultar uma argumentação

que rejeita fortemente a dimensão ídeo-política que a profissão começava a reconhecer,

a partir do processo que vinha desenvolvendo em nível regional e continental. Mais

ainda, nessa lógica, o Serviço Social não é analisado em termos de profissão e sim como

vocação.

A autora continua a sua argumentação tratando uma questão que ela desenvolve

sob o titulo de “A limitação geográfica” (Cf. Idem: 126 e ss.). Vai apresentar uma

critica ao caráter latino-americano da Reconceituação. Nessa lógica chama a atenção

para o fato de que esse “fraternalismo” que perpetuaria a divisão entre “nós e eles”

restringiria “perigosamente o sentido da solidariedade universal, único que pode levar o

mundo a um sistema autenticamente humano de convivência” (Ibidem). Segundo a

autora, as mudanças pelas quais se lutava deviam compreender a sociedade toda e só se

conseguiriam de forma “eficaz e duradoura”. Isto é, quando a consciência dessa

mudança atingisse a sociedade toda – em uma projeção que a autora chama de

totalizante – e não apenas América Latina. Nas afirmações da autora aparece –

subjacente - uma concepção sustentada no universalismo abstrato e a-histórico, baseada

em princípios neotomistas.34

“Evidentemente, se para a Geração do ’65 uma das preocupações centrais era construir um Trabalho Social genuinamente latino-americano, a Editorial Humanitas, e particularmente esta revista35, se coloca na antípoda dessa intenção. A preocupação se centrava, fundamentalmente, em trazer o mais atualizado do “Social Work” norte-americano” (Parra, 2002: 112-113, tradução nossa).

Porque a importância de resgatar essa citação de Parra? Porque a publicação

dessa revista, na qual Sela Sierra teve ativa participação36 cristalizou a perspectiva que

vimos desenvolvendo e que segundo Parra não teria feito nenhuma referência durante

1968 à questão da Reconceituação do Serviço Social.

“Nos quatro números publicados em 1968 (março, junho, setembro e dezembro) não existe a menor referência, nem direta nem indireta, a um processo de ‘renovação’, ‘reforma’ ou ‘reteorização’ do Trabalho Social. Os trabalhos que se publicam são as traduções da revista norte-americana, principalmente referidos aos métodos clássicos do Trabalho Social ou a campos específicos da intervenção profissional, embora caiba salientar a existência de uma importante quantidade de informação sobre eventos no âmbito latino-americano e mundial” (Parra, 2002: 114, tradução nossa).

34 Voltaremos sobre a questão do neotomismo no próximo capítulo. 35 O autor esta se referindo à Revista “Selecciones del Social Work”, que a Editorial Humanitas publicou a partir do mês de março de 1968 e que a partir do seu número 9, do ano 1970, muda de nome para se chamar Selecciones del Servicio Social. 36 Deve-se lembrar que essa revista esteve sob a responsabilidade editoria de Aníbal Villaverde, pedagogo argentino, marido de Sierra.

È necessário fazer uma diferenciação entre as publicações editadas pela

mencionada Editorial Humanitas e a Editorial ECRO37. Diz Parra nesse sentido:

“Se tivéssemos que assinalar uma distinção entre as publicações realizadas pela editorial ECRO e as da Editorial Humanitas, poderíamos indicar que estas primeiras, vinculadas à perspectiva desenvolvimentista, procuravam adaptá-la à realidade latino-americana e, em conseqüência, esboçavam – muito timidamente – alguma possibilidade de critica ao tempo que, como já indicamos, vão incorporando outras temáticas ou discussões para além da questão do ‘desenvolvimento’. Diferente disso, nas publicações de Humanitas encontramos uma ‘tradução’ – exclusivamente em termos da linguagem – das propostas que se desenvolviam no Trabalho Social norte-americano como das provenientes das Nações Unidas e a OEA” (Parra, 2002: 111).

No aprofundamento da análise que estamos desenvolvendo, consideramos que a

seguinte contribuição de Netto vai nos ajudar em algumas aclarações, embora –

permita-se a reiteração – as reflexões desse autor estejam orientadas à análise do

processo brasileiro.

“A empresa restauradora possível, portanto, deveria travar um duplo combate: deter e reverter a erosão do ethos profissional tradicional e todas as suas implicações sociotécnicas e, ao mesmo tempo, configurar-se como uma alternativa capaz de neutralizar as novas influências que provinham dos quadros de referência próprios da inspiração marxista. Fazê-lo, porém, supunha inovar na operação mesma da restauração – supunha reatualizar o conservadorismo, embutindo-o numa ‘nova proposta’, ‘aberta’ e ‘em construção’” (Netto, 1998: 203).

Consideramos necessário fazer uma ultima referência à perspectiva que vimos

desenvolvendo até aqui, a partir das contribuições de Marta Azcurra38. As reflexões têm

37 Trata-se do Esquema Conceitual Referencial Operativo que resgata as contribuições de P. Rivière e José Bleger e analisa as suas relações com o Trabalho Social. “Os trabalhadores sociais tem que ter um ECRO. É requisito fundamental que durante a sua formação como aluno cada futuro profissional de Serviço Social introjete um Esquema Conceitual Referencial Operativo, o que tem que ficar indelevelmente apreendido em toda a sua personalidade e o que exercitará permanentemente através da práxis” (Barreix, 1967: 16. In: Parra, 2002: 105, tradução nossa).

sustentação em uma definição de serviço Social da UCISS apresentada no Congresso

internacional de Roma em 1925 e que a autora cita da seguinte forma:

“O Serviço Social é a atividade tecnicamente realizada por profissionais capacitados para esses fins, que procura promover ou fazer funcionar corretamente aqueles marcos sociais necessários ou úteis para os homens, sempre que eles não possam realizá-los por si próprios” (Azcurra, In: VV. AA., 1971: 130).

Em todas as respostas da autora parece clara uma referencia à necessidade de

volta para esse “verdadeiro sentido social” que essas velhas concepções no seu

dinamismo continham, segundo o raciocínio da autora. Deve-se se salientar, também,

que em face da pergunta sobre os fatores que moviam o Movimento de Reconceituação

– que ela escolhe chamar de reformulação – não faz nem a mínima referencia ao cenário

histórico–político no qual a maioria dos autores da época situam esse processo. Parece

que o único fator externo tem a ver com a “incompreensão do papel profissional” do

Serviço Social e a partir dessa incompreensão ter-se-ia movimentado esse “processo de

reformulação”. A única referência, fora a questão do papel da profissão, diz respeito a

“outro fator que consiste na procura de soluções fora da essência e conteúdo próprio da

profissão” (Idem: 131).

38 Assistente Social de Buenos Aires e Presidente da UCISS, União Católica Internacional de Serviço Social. Trata-se das resposta da autora em face de um questionário titulado “Encuesta sobre el tema de la Reconceptualización del Servicio Social” Esse questionário incluía as seguintes questões. 1) O que se entende por “Reconceituação” do Serviço Social (ou atualização, ou reformulação, etc.)? 2) É hoje necessária essa Reconceituação? Por que? 3) A que fatores responde esse movimento atual de reconceituação do Serviço Social? 4) Quais deveriam ser os “novos conceitos”, ou orientações novas, ou nova filosofia do Serviço Social para América Latina? 5) Que aspectos do Serviço Social deveria abranger essa “reconceituação”? 6) Acrescente o que desejar. (Publicada In: VV. AA., 1971: 129 e ss, tradução nossa).

Consideramos que com as reflexões realizadas até aqui pode-se identificar uma

corrente no interior da Reconceituação a partir dessas duas referencias para o caso

argentino. Avalia-se de grande relevância essa leitura já que em termos gerais os

estudos sobre reconceituação para o caso argentino apresentam – geralmente – o

processo como um movimento de ruptura com o tradicionalismo profissional. Quer

dizer, apesar de concordarmos com essa afirmação, é preciso salientar o fato de que essa

critica nem sempre apresentou avanços, por isso consideramos que esta leitura nos

permite resgatar o movimento de avanços e retrocessos próprio do movimento

contraditório da realidade.

Fazer uma leitura do processo de Reconceituação na América Latina com o eixo

centrado na trajetória desse Movimento na particularidade da Argentina exige observar

atentamente algumas contribuições de um autor que protagonizou o processo nesse país,

tal o caso de Natalio Kisnerman.

“Ninguém pode negar que a Reconceituação foi o produto de uma atitude critica em face do modelo positivista funcionalista. E a afirmação de um Trabalho Social consubstanciado com o propriamente latino-americano, frente aos ataques dominantes do poder norte-americano, de cujas formas profissionais tínhamos sido transmissores desde os anos da nossa formação (...) Já temos afirmado que ‘surgiu como processo de questionamento, revisão e busca’. Que ‘o questionamento levou a um estudo aprofundado da realidade latino-americana, seu subdesenvolvimento e crescente dependência econômica, que a revisão partiu das fontes mesmas da profissão, analisando métodos, técnicas e procedimentos, categorias de análises da realidade e a sua pratica institucional e formativa de trabalhadores sociais, e de procura no sentido de conseguir alternativas científicas de intervenção que contribuam para transformar basicamente as situações-problema nas quais atuamos (Kisnerman, 1998: 84)” (Kisnerman, In: Alayón, 2005: 35-36, tradução nossa).

Em uma análise do processo histórico do Serviço Social, Kisnerman citando

Hegel diz que “o mundo não esta construído por coisas acabadas, senão por um

conjunto de processos que só uma lógica dialética do seu desenvolvimento poderia nos

facilitar a sua compreensão. Cada fenômeno histórico se produz através da ação de

processos históricos contrários”. Nessa lógica o autor diz compreender o processo

histórico da profissão de Serviço Social, “procurando-lhe um sentido efetivo às

necessidades históricas que tem produzido o seu desenvolvimento, como processo de

transformações na relação homem-mundo”. Isto é, não é do interesse de Kisnerman –

segundo ele afirma - apresentar uma seqüência cronológica de fatos e sim uma análise

das ideologias com as quais o Serviço Social tem trabalhado e nutrido os seus conteúdos

(Cf. 1972: 14).

Nessa lógica, Kisnerman – na obra anteriormente citada – inicia a sua

formulação histórica a partir do Positivismo de Comte, passando pelas contribuições de

Stuart Mill, pela ideologia positivista liberal de Spencer, Parsons e até as contribuições

de – “coetâneo e enfrentado com eles”, segundo Kisnerman – Wright Mills. Chama a

atenção para os fatos que constituíam o cenário mundial ao tempo que Comte e Spencer

escreviam as suas obras e faz um percurso que o leva à análise da criação da COS

(Charity oraganization society) em Londres, no ano de 1869. Desta forma o autor teria

chegado à origem da Assistência Social como forma organizada de Assistência39.

Kisnerman avança nessa lógica de análise e chega em 1965, com contribuições que mais

interessam aos fins do nosso trabalho, em uma perspectiva que evidencia uma ausência

de rigor teórico-metodológico.

“Resumindo, dizemos que no processo histórico do Serviço Social, a superação de cada etapa cria uma nova que a contem e a nega. A etapa Assistência Social tem sido o ponto de partida. Dura desde 1869, fundação da COS em Londres até 1917,

39 Não vamos nos determos aqui no debate sobre a concepção do autor em face da gênese do Serviço Social como profissão. Um estudo aprofundado encontra-se em Montaño (1998).

aparição do Social Diagnosis, de Mary E. Richmond. Surge então o Serviço Social, o que começa a ser negado desde 1965 pelo movimento de reconceituação latino-americano, o que, a modo de síntese, pretende superar o chamado Serviço Social Tradicional de caso, grupo e comunidade, como entidades isoladas e abstratas” (Kisnerman, 1972: 24, tradução nossa).

A leitura de diversas obras de Kisnerman, a propósito do Movimento de

Reconceituação, revela afirmações que dariam conta de um ecletismo a partir da

sustentação das suas contribuições em diversas correntes de pensamento. Encontram-se

reflexões referenciadas em Mao Tse Tung, em Lukács, em Weber, em Durkheim e na

influencia de Paulo Freire, como também referencias a Karel Kosik; o qual mostra –

como já dissemos - a ausência de rigor teórico-metodológico.

No desenvolvimento da sua obra Servicio Social Pueblo, de 1972, aparecem uma

serie de formulações que evidenciam diferenças entre o que seria a concepção de objeto,

sujeito e objetivos entre o Serviço Social Tradicional e os avanços de um Serviço Social

reeconceituado.

“Objeto é aquilo que uma disciplina estuda e transforma pela sua ação. Para o Serviço Social tradicional, o objeto foi o homem, ou melhor, as formas de previsão e controle do comportamento, para o qual os fins – adaptação do homem a sua sociedade – justificam os meios. Para o Serviço Social reconceituado, o objeto são as situações problemas gerais por carências e necessidades sociais, cujo antecedente aparece no Social Diagnosis, em 1917, quando Mary E. Richmond assinalou que era ‘a tentativa para definir com a maior exatidão possível a situação e a personalidade de um ser humano em uma carência social qualquer, não só em relação com outros seres humanos dos que depende ou que dependem dele, mas também em relação com as instituições sociais da sua comunidade” (Kisnerman, 1972: 41-42, tradução nossa).

No que diz respeito ao sujeito do Serviço Social o autor diz que enquanto para o

tradicionalismo profissional o homem era um objeto que vivenciava problemas sociais,

razão pela qual tinha que ser adaptado à sociedade, para o Serviço Social reconceituado

o homem é um transformador do mundo. Isto é, faz o mundo e se faz a si próprio, é um

sujeito.

O desenvolvimento teórico de Kisnerman, na obra citada, coloca a preocupação

com uma teorização do Serviço Social que pode se entender em uma orientação – no

interior do processo de Reconceituação – cientifica. A citação seguinte expressa

claramente essa posição do autor.

“A partir desse ano [o autor esta se referindo ao ano de 1965] se começam a produzir formulações reconceituadoras em diferentes lugares de América Latina, sendo o inicial o dado pela Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Santiago de Chile. Essas formulações adquirem hoje duas formas ou orientações: tecnológicas e cientificas. Nessa última, nos colocamos nesta primeira aproximação, já que o nosso esquema reconceituador se baseia no método cientifico” (Kisnerman, 1970a: 16, tradução nossa).

Essa posição vinculada a um esquema inserido em produções baseadas no

“método cientifico”, associa-se – segundo o mesmo autor (Cf. Kisnerman, 1970a: 15) –

a uma revisão da metodologia tradicional que apresentaria “a falta de uma sincronização

e adequação dos três métodos básicos à realidade latino-americana”.

Essa posição esta contida nas proposições da sua critica à questão do

desenvolvimento, o que faz com que as contribuições do autor estejam inseridas em

uma lógica modernizante. O autor (Cf. Kisnerman, 1970: 108-119) mostra a trajetória

do conceito de desenvolvimento, em uma análise da Ética do Desenvolvimento. Dessa

forma chega à definição do Padre Lebret – que retomaremos no próximo capitulo –

entendendo o desenvolvimento como se expressa na citação seguinte;

“(...) a serie de passos para que uma população determinada passe de uma fase menos humana a uma fase mais humana, ao ritmo mais rápido possível, ao custo financeiro e humano menos elevado possível, levando em conta a solidariedade entre todas as populações” (Idem: 108, tradução nossa).

As determinações dessa concepção baseadas em uma ética de caráter neotomista

serão tratadas no capitulo seguinte. O que importa resgatar aqui é o fato de que embora

o autor – nessa obra como nas outras citadas – se posicione criticamente em face da

compreensão do Assistente Social como “agente de mudanças” e defenda a necessidade

de o assistente social se colocar como promotor dessas mudanças e, mais ainda,

proponha a urgência de uma mudança nas estruturas, a sua lógica de análise não

transcende os limites de uma interpretação modernizante. Citando mais uma vez o Padre

Lebret, Kisnerman afirma:

“O desenvolvimento econômico ou mecanicista, como também foi chamado, procura mais produção, mais riqueza, ter mais. A sua ordem é quantitativa. O homem é só um meio para consegui-lo. Uma posição intermédia é o marxismo, para o qual pondo em ordem a economia se solucionam todos os problemas, o que a nosso juízo não deixa de ser mais do que uma forma de novo idealismo. O desenvolvimento socioeconômico procura, pelo contrário, a elevação humana a todos os níveis. Centra-se no homem. Procura que ele valha mais, quer dizer, seja mais homem. Interessa o valor qualitativo, porque ser mais significa realização ótima de todas as potencialidades humanas” (Idem: 111, tradução nossa).

Essa ultima citação evidencia mais uma vez não apenas uma leitura neotomista,

coloca claramente uma leitura mecanicista e economicista do marxismo e rejeita – no

que pareceria uma influencia durkheimiana40 – toda possibilidade de revolução. Isto é, a

necessidade de uma mudança em um marco de solidariedade, em um esforço

mancomunado de mudança integral e harmônica. O autor entende, junto com Paulo VI,

que o desenvolvimento é “o novo nome da paz”. Pode-se identificar, porém, a influência

de Paulo Freire enquanto entende que “a educação básica deve ser o primeiro objetivo

40 Sugere-se a recorrência às obras do próprio Durkheim: “Las Reglas del Método Sociológico”. Buenos Aires: Entrelíneas, 1996 e “Da Divisão do Trabalho Social”. São Paulo: Martins Fontes,

de um plano de desenvolvimento”, em termos da conscientização da necessária

mudança. Citando mais uma vez Paulo VI, Kisnerman entende que,

“Não se trata só de vencer a fome, nem de fazer retroceder a pobreza. Trata-se de construir um mundo donde todo homem, sem exceção de raça, religião ou nacionalidade, possa viver uma vida plenamente humana, emancipado das servidões que lhe vem de parte dos homens e de uma natureza insuficientemente dominada; um mundo onde a liberdade não seja uma palavra vã (...) Insistimos: o maior mal do subdesenvolvimento radica nas estruturas mentais” (Idem: 113, tradução nossa, grifos nossos).

Seguindo as contribuições de Paulo Freire, Kisnerman afirma que trabalhar para

o desenvolvimento significa pôr a disposição dos outros o que se tem para “criar o

espírito de convivência e fazer descobrir o sentido de complementaridade social, e ter

sobretudo uma consciência crítica de quais sãos os problemas e como posso militar

ativamente junto aos outros na sua solução” (Idem: 119, tradução nossa).

“E acreditamos que a única forma de educar é utilizando o método de conscientização, aplicando a doutrina do seu criador Paulo Freire (brasileiro, s. XX) (Sic.). Criado para alfabetizar adultos, acreditamos que na sua essência pode ser aplicado para criar consciência de mudança e desenvolvimento. O método propõe a promoção do homem para que seja livre. Freire diz que ‘só livre é homem’” (Kisnerman, 1970: 117, tradução nossa).

A partir das nossas reflexões até aqui, podemos dizer que a direção adotada na

análise do objeto nos levou a identificar algumas tendências no interior do Movimento

de Reconceituação, que apresentamos em termos de uma perspectiva (seguindo as

análises de Netto) modernizante, uma outra perspectiva que se vincula com à

Reatualização de Conservadorismo e entraremos na próximas paginas em outra

perspectiva que o autor citado denominou como Intenção de ruptura. Colocamos

também os eixos dos debates vinculados à metodologia, como também a discussão que

se centra na suposta dicotomia de uma perspectiva cientifica versus uma outra com

ênfase no “tecnológico”. Agora antes de entrar nas reflexões que dariam conta da

denominada intenção de ruptura, consideramos esclarecedor resgatar algumas

definições de Serviço Social sistematizadas por Alayón (1987: 19 e ss., tradução nossa)

que apontam essas diferentes perspectivas, expressas nas diferentes concepções de

profissão. Embora o autor apresente uma sistematização de 140 definições de Serviço

Social que abrangem quase todos os países da América Latina, vamos nos deter, apenas,

naquelas contribuições mais significativas de autores argentinos que se relacionam com

o momento histórico do Movimento de Reconceituação, incluindo algumas dos anos

imediatamente anteriores, isto é, dos inícios da década de 1960.

Consideramos de grande importância o resgate de algumas das definições de

Serviço Social sistematizadas por Alayón (1987) porque na avaliação histórica dessas

definições é possível acompanhar alguns movimentos no interior do Processo de

Reconceituação, agora na particularidade Argentina.

Se analisarmos a seqüência apresentada é possível identificar posições

vinculadas (nos primeiros anos da década de 1960) ao “desenvolvimento harmônico de

possibilidades latentes”, definições vinculadas a “normas ou procedimentos de ajuda em

face de dificuldades” ou perspectivas orientadas ao tratamento de desajustes

socioeconômicos e culturais em face da busca do bem-estar. É a partir de 1965 que,

segundo essa crônica, começam a aparecer definições que propõem a necessidade de

“soluções de fundo”, isto é, a necessidade de transcender “o paliativo”, em uma

proposta de desenvolvimento individual e social, a um desenvolvimento “físico,

espiritual e socioeconômico harmônico”. Chegando no final da década de ’60 as

definições, mesmo ainda – algumas delas – dentro da lógica dicotômica marginalidade-

integração, apresentam uma orientação fortemente marcada pela necessidade de

“Conscientização”. Conscientização para a mudança, conscientização para a libertação

dos homens, compromisso humano com a transformação social. Embora essas novas

determinações mostrem uma “superação” - nos debates do Serviço Social argentino - no

que diz respeito ao ideário desenvolvimentista, ideário a partir do qual o movimento de

Reconceituação tinha emergido nesse país, considera-se que essas determinações ou

essas novas críticas não conseguiram transcender – no caso argentino – a lógica da

perspectiva modernizante. De fato em algumas das definições aparece a questão da

conscientização, da necessidade de mudança para a libertação dos homens, vinculada á

necessidade de mudanças mentais.

Vejamos, textualmente, quais são as afirmações das diferentes definições de

Serviço Social ou Trabalho Social apresentadas na citada obra de Alayón.

“A Assistência Social é a ‘ciência que equilibra as medidas preventivas e protetoras para assegurar à sociedade em geral e a seus indivíduos em particular, o desenvolvimento harmônico de todas as possibilidades latentes que signifiquem progresso físico, moral, econômico e/ ou social’” (Trillo, M. C. In: Heredia, P. V., 1961: 21). “Assistência Social: ‘disciplina ou ciência normativa que se ocupa de estabelecer os princípios, normas e procedimentos para ajudar os indivíduos, grupos e comunidades, na solução dos seus problemas e dificuldades’” (Sierra, S., 1963, grifos nossos). “... define-se o Serviço Social como a atividade destinada a promover o bem-estar social mediante o diagnóstico, tratamento e prevenção dos desajustes sócio-econômicos-culturais dos indivíduos, grupos e comunidades, como também a organização e administração de serviços de bem-estar social, a investigação social e política social’” (Ley 259/64, Estado de Misiones, Argentina, 1964, grifos nossos). “O Serviço Social profissional é um todo que não aponta aos efeitos, mas, que atua sobre as causas que os provocam, não só cura ou dá paliativo, senão que o seu objetivo final é a ação preventiva e construtiva por excelência, a do melhoramento do meio social, a de orientar e lhes ensinar as pessoas a ‘se ajudar

a si próprios na procura e encontro de um caminho para uma vida melhor’ e, ao mesmo tempo e simultaneamente, promover

novas formas de convivência humana que façam possível soluções de fundo para alcançar níveis adequados do seu desenvolvimento não só individual mas também social’” (Associação de trabalhadores sociais de Buenos Aires. In: revista Hoy em el Servicio Social . Buenos Aires: ECRO, 1965, grifos nossos). “O Serviço Social é o conjunto de técnicas cientificas adequadas, tendentes a prevenir, atenuar e suprimir os

problemas sociais, promovendo o harmônico desenvolvimento físico, espiritual e socioeconômico, para conseguir o bem-estar e as melhores relações que possam se dar em uma sociedade em determinado tempo, mediante a atividade profissional interdisciplinar e a participação livre, ativa e responsável dos interessados, sobre a base da justiça social” (Heredia, P. V., 1967: 165, grifos nossos). “O serviço Social é uma técnica social; esta no plano da ação e da engenharia social; de nenhuma forma pode ser considerada como uma ciência ou como um método de investigação aplicado, embora se apóie neles”. “O Serviço Social tem uma função de conscientização no processo de promoção do auto-desenvolvimento de indivíduos, grupos e comunidades, a fim de que, por meio da participação, passem de uma situação de marginalidade a outra de integração na sociedade global” (Ander-Egg, E., 1968: 61 e 58, grifos nossos). “O Assistente Social, à diferença do psicólogo e do sociólogo, que descrevem os fenômenos pessoais e coletivos; tende a controlar construtivamente as mudanças que se operam no individual e no social. Daí que os princípios práticos que devem orientar a ação do Assistente Social suponham um objetivo de bem-estar individual e social” (Escola de Assistência Social da Universidade nacional de Córdoba, 1968, negrito nosso, grifos do autor). “Serviço Social: é a tecnologia que, em face da existência de situações sociais de marginalidade, vulnerabilidade, e/ ou opressão, que afetam os seres humanos, procura o

reconhecimento das raízes profundas responsáveis por elas, para, a partir daí, desenvolver uma ação conscientizadora destinada a promover as ações individuais, grupais e coletivas necessárias para a mudança ou para a sua constante evolução quando as condições sócio-culturais básicas de vida digna lhe estejam asseguradas” (Grupo ECRO, 1970, grifos nossos). “O Serviço Social é uma tecnologia social; conseqüentemente, a sua função principal se coloca fundamentalmente ao nível da

praxis. Dentro deste contexto, tudo o que diz respeito ao método

adquire uma centralidade indiscutível” “O Serviço Social tem

uma função de conscientização no processo de promoção do autodesenvolvimento independente de indivíduos, grupos e comunidades, a fim de que, por meio da sua inserção crítica na realidade e a sua participação ativa, passem de uma situação de marginalidade para outra de integração em uma sociedade global que permita a realização de todo o homem e de todos os homens” (Ander-Egg,, 1971: 129 e 105, grifos nossos). “O Serviço Social é uma atividade profissional que, estudando as situações problemas, traduz necessidades sociais em ações concretas” (Kisnerman, 1972: 206). “O fim do Serviço Social é: contribuir e participar na

libertação do homem, entendendo por tal um processo de personalização solidária através do qual o homem seja ator de uma mudança pessoal de mentalidade, atitudes e conduta, e de uma transformação simultânea da realidade social na que lhe toca viver” ( Escola de Serviço Social de Mendoza, 1972, grifos nossos). “O trabalho Social é o conjunto de técnicas sociais, orientadas pelo conhecimento científico, para conseguir o bem-estar, na justiça social” ( Heredia, P. V., 1973: 33). “O trabalho Social é uma profissão universitária que tem um corpo de conhecimentos, princípios e metodologias próprios que o identificam e o distinguem de outras profissões. É uma profissão na qual o acúmulo de conhecimentos técnicos deve se ver superado pelo compromisso humano dos que assumem a responsabilidade da sua operacionalização. Deve atuar como resposta das expectativas crescentes, cumprindo uma função conscientizadora e dinamizadora que promova e oriente aptidões e atitudes de responsável realização de indivíduos (Sic.), grupos e comunidades” (Escola de Serviço Social. Universidade nacional do nordeste, Misiones, Argentina, 1973). “O Trabalho Social, na atualidade, é uma atividade profissional de cada vez mais sólida base científica, de inspiração humanista, com uma metodologia operativa e técnicas adequadas para promover no meio no qual se aplica o pleno desenvolvimento da personalidade humana, o crescimento dos sentimentos de cooperação e o êxito de formas e sistemas de vida comunitária cada vez mais elevados” (Escola de Serviço Social, Universidade Nacional do nordeste, Misiones, Argentina, 1973). “Serviço Social: forma de ação social que supera a Assistência

Social, que organiza de maneira mais sistemática do que a sua antecessora e mediante procedimentos técnicos mais elaborados, a ajuda a indivíduos, grupos e comunidades, com o objetivo de

que possam satisfazer as suas necessidades, e resolver os seus problemas de adaptação a um tipo de sociedade em mudança e realizar ações de tipo cooperativo, para melhorar as condições econômicas e sociais de vida” (Ander-Egg, 1974, grifos nossos). “Trabalho Social: Forma de ação social que supera a

Assistência Social e o Serviço Social. Na América Latina não deve se confundir com o ‘Social Work’ norte-americano, porque diferem substancialmente no que diz respeito à concepção metodológica e intencionalidade. O Trabalho Social tem uma função de conscientização, mobilização e organização do povo, para que em um processo de promoção do autodesenvolvimento independente, indivíduos, grupos e comunidades, realizando projetos de Trabalho Social, inseridos criticamente e atuando nas suas próprias organizações, participem ativamente na realização de um projeto político que signifique o trânsito de uma situação de dominação e marginalidade para outra de plena participação do povo na vida política, econômica e social da nação, que crie as condições necessárias para uma nova forma de ser homem” (Ander-Egg, 1974, grifos nossos). “O Serviço Social é uma atividade profissional que contribui à transformação da sociedade através de uma práxis, (ação-

reflexão) sistemática, libertadora, em e desde o povo, no qual o homem seja fazedor da sua história, desenvolvendo integralmente os valores de solidariedade e responsabilidade social, com a finalidade principal de eliminar todos aqueles fatores que obstaculizam a tomada de decisões e a participação dos esforços para a construção de uma sociedade na qual o homem possa SER” (Escola de Serviço Social da Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, 1974, grifos nossos).

Agora bem, antes de apresentarmos essa série sistematizada de definições sobre

a profissão, afirmamos que o caso argentino mostrava um aggiornamento discursivo que

parecia ter superado a sustentação do ideário desenvolvimentista, mas que, de fato, não

tinha conseguido transcender a perspectiva modernizante. Algumas questões devem ser

ditas nesse sentido.

Observam-se, nas diferentes definições, distintas referências que outorgam um

caráter particular à profissão segundo esta seja compreendida em termos de técnica, de

tecnologia social, de ciência ou de práxis, ou, ainda, se coloque a centralidade na

questão metodológica; é suficiente para identificar essas diferenças atender para os

grifos que fomos colocando nas citações com o objetivo de chamar a atenção para essa

questão. Agora, podem se identificar duas grandes ausências que permitiriam

compreender os limites das propostas que – embora pareçam mostrar uma superação,

como já dissemos – não conseguiram transcender as fronteiras da modernização. Em

primeiro lugar trata-se da ausência de uma referência que permita pensar o Assistente

Social na sua relação de assalariamento. Esta forma de conceber o Serviço Social, qual

seja como profissão assalariada, se confronta com aquela que a define como profissão

liberal. Vinculado à afirmação anterior não existe indicio nenhum que oriente a

discussão em termos de pensar a profissão como uma forma de especialização do

trabalho coletivo, que a insira na divisão social e técnica do trabalho. Essas ausências

colocam um véu sobre a forma de compreender a profissão que oculta o papel do

Serviço Social na produção e reprodução das relações sociais. Isto é, o vazio no que diz

respeito a um debate aprofundado sobre a natureza da profissão oculta o seu significado

social, que só pode ser apreendido a partir das determinações expostas. Colocadas essas

determinações por fora, apenas resta espaço para o voluntarismo, o fatalismo ou o

messianismo, nos termos de Iamamoto e aos que voltaremos no capítulo seguinte.

“A superação do fatalismo e do messianismo na análise da pratica social – com as suas derivações no exercício profissional – implica desvendar a própria sociedade que gesta essas concepções e a sua critica teórica radical historicamente construída. Em outros termos, supõe resgatar a tradição intelectual instaurada por Marx na análise da sociedade capitalista. Por um lado, mostrar a atualidade do método e do arsenal de categorias que permitiram expressar, no nível do pensamento, as condições de existência real da sociedade. Por outro lado, resgatar a dimensão pratica como ‘pratica-critica’, com explícito caráter de classe. Essa são condições para apreender a pratica profissional como parte e expressão da pratica social, determinada pela divisão social do trabalho” (Iamamoto, 1992: 184).

A citação anterior de Iamamoto permite compreender os limites aos que fazemos

referência a partir da ausência da critica radical da sociedade capitalista, da ausência da

‘prática critica’ e da ausência do caráter de classe. Isto é, as condições para apreender o

Serviço Social determinado pela divisão social do trabalho estão ausentes.

O mesmo acompanhamento – feito a partir de uma seleção de definições de

Serviço Social - dos avanços e retrocessos nos debates constitutivos do Processo de

Reconceituação pode ser feito em uma leitura do que foram os Seminários Regionais e

Pan-americanos na época.

Ander-Egg e Kruse41 fazem uma análise dos Seminários pan-americanos de

Serviço Social apresentando a seqüência seguinte: Santiago (Chile) 1945, Rio de Janeiro

(Brasil) 1949, San Juan (Puerto Rico) 1957, San José (Costa Rica) 1961, Caracas

(Venezuela) 1968 e Quito (Equador) 1971. Aos fins da nossa pesquisa é interessante

salientar as observações de Ander-Egg e Krusse a propósito da trajetória dos Seminários

a partir do IV Seminário celebrado em Costa Rica em 1961. Em termos dos autores:

“No quarto Congresso se inaugurou uma nova corrente no Serviço Social. A reunião se realizou apenas três meses depois da sessão do CIES [Conselho Interamericano Econômico e Social] que tinha institucionalizado a Aliança para o Progresso e orientou o Serviço Social no que temos denominado uma concepção desenvolvimentista. O Assistente Social começou a ser visto como um dos profissionais mais aptos para promover programas de bem-estar individual ou familiar e de desenvolvimento comunal que fortalecessem o sistema e impedissem a propagação continental do exemplo cubano. As reuniões de Lima, 1965 e de Caracas, 1968 foram uma culminação desta corrente. Mas, já em Caracas pôde-se observar que as conclusões finais supunham um difícil equilíbrio entre duas tendências; a desenvolvimentista propriamente dita e outra, mas ousada, mais incisiva, talvez mais revolucionária” (Ander-Egg e Kruse, s/n: 12, tradução nossa).

41 Estamos nos referindo ao livro Del Paternalismo a la conciencia de cambio. Los congresos Panamericanos de Servicio Social. Editado pela Editorial Humanitas em Buenos Aires. Não consta nele o seu ano de edição, como acontece com quase todas as obras desse editorial consultadas na elaboração do presente trabalho.

Essa trajetória, a partir da qual a frente ampla da Reconceituação – que como já

salientamos ao longo do nosso trabalho nunca se constituiu num grupo homogêneo,

apresentando diferentes tendências – inicia um processo de diversificação ainda maior, é

claramente analisado por Parra (2002) e datado a partir do ano de 1968

aproximadamente. Diz o autor:

“Aos poucos, a partir de 1968 e nos anos sucessivos, as posições no que diz respeito à renovação profissional começam a diversificar-se, a dividir-se e a radicalizar-se. As premissas que, originalmente, uniam à Geração 65 em torno à construção de um Trabalho Social genuinamente latino-americano, adaptando as teses desenvolvimentistas às particularidades de nossos países começam a se quebrar. Para alguns o tão ansiado ‘desenvolvimento’ era possível e, em conseqüência, o Trabalho Social devia continuar o seu ‘aggiornamento’ modernizante na procura dele. Para outros, a opção do desenvolvimento já tinha fracassado e o Trabalho Social deveria ir noutra direção. Assim, alguns setores profissionais de perspectiva conservadora, começam se fazer eco da necessidade de uma renovação profissional – evidenciando no VI Congresso Pan-americano ou no labor de ALAESS durante o período 1968-1971 – e começam a se somar nesse processo. Para esses grupos a renovação estava mais acorde com as discussões que a Geração 65 tinha desenvolvido nos dois primeiros anos de Seminários Regionais que sobre as que avançavam no final da década de 1960 e os inícios da década de 1970” (Parra, 2002: 109, tradução nossa).

Em referência a essa “inflexão” no interior do Movimento e citando a Barreix –

ativo membro da denominada Geração do 65 – Parra (Cf. 2002: 114) coloca como

baliza dessa “rachadura” o fracasso da Aliança para o Progresso e das propostas

desenvolvimentistas. Isto teria feito com que os trabalhadores sociais começassem a

abandonar o discurso de “‘um Trabalho Social genuinamente latino-americano para

colaborar de forma comprometida com o desenvolvimento’ e começassem a incorporar

‘o conceito de ‘TRANSFORMAÇÃO’, de ‘MUDANÇA DE ESTRUTURAS’”

(Barreix, 1971: 54-55. In: Parra, 2002: 114).

Embora não exista consenso no que diz respeito ao momento do “debilitamento”

do Processo de Reconceituação do Serviço Social, o fato da instauração de ditaduras

militares na maioria dos paises de América Latina deve ser considerado como dado

iniludível para uma boa compreensão histórica. Mas, como já dissemos, não se tratou de

um processo homogêneo e se o ano de 1965 é salientado como ponto de inflexão na

critica ao Serviço Social tradicional, poder-se-ia indicar um outro momento de inflexão

entre os anos de 1969-1971- como já fora dito -. Seguindo a análise de Parra (2002) no

que diz respeito ao importante papel que jogaram os Seminários latino-americanos neste

processo, pode-se observar que essa rachadura vai ter inicio no Seminário de Concepção

(Chile) de 1969 e vai se consolidar no Seminário de Quito (Equador) em 1971. Trata-se

de perspectivas que emergem à luz da crise do ideário desenvolvimentista, do Fracasso

da Aliança para o Progresso, da necessidade de criação de um Serviço social latino-

americano quebrando com a “importação de teorias e metodologias” dos Estados

Unidos, que tinha se instaurado – por sua vez - como critica à importação européia

anterior. Assim, vai começar a se falar em transformação, mudança de estruturas, o que

faria posicionar o profissional já não como agente de mudança e sim como

revolucionário (Cf. Parra, 2002: 116).

Segundo o percurso dos seminários regionais latino-americanos analisado por

Parra é no IV Seminário, ocorrido em Concepção (Chile, 1969), que aparecerá pela

primeira vez a questão do Marxismo no Serviço Social. É nesse mesmo Encontro que

segundo o autor (Cf.: 123) vai se gerar uma confrontação entre os setores mais

progressistas representados pelo Grupo ECRO e o setor mais conservador e reacionário

representado pela UCISS42. Segundo dados de Parra, a presidente da UCISS – a

Assistente Social Argentina Marta Ezcurra – teria divulgado um documento acusando o

42 União Católica Internacional de Serviço Social.

grupo ECRO de comunista. Nesse contexto são colocadas preocupações, tais como a

possibilidade de inserir o Serviço Social no Processo Revolucionário jogando um papel

conscientizador.

Em face dessa inflexão, onde parecia ter consenso no que diz respeito à

necessidade de uma renovação – a exceção dos setores mais conservadores -, o caráter

heterogêneo do Movimento passa a se expressar mais uma vez, de forma que essa

necessária “transformação” ou “mudança de estrutura” encontrará diversas tendências

de interpretação. Se a inquietação teórico-política que promoveu a nossa pesquisa se

orientava na direção de uma investigação que contribuísse no que diz respeito a um

dialogo entre o Serviço Social argentino com a tradição marxista, e se no inicio a nossa

premissa se sustentava em uma primeira aproximação para esse diálogo a partir do

desenvolvimento do Processo de Reconceituação latino-americano, o percurso da nossa

pesquisa vai mostrando, aos poucos, que esse diálogo foi nascendo – ainda que de forma

incipiente – para além das fronteiras argentinas.

Assim parecem mostrar as produções de Boris Alexis Lima, Vicente de Paula

Faleiros, Teresa Quiroz, e Diego Palma, como forte presença no Chile e via CELATS43.

No caso de Boris Alexis Lima44 (1986) é possível identificar uma tentativa de

construção de um “método dialético” da intervenção a partir do Método dialético do

43 Para a análise desse processo de inflexão duas questões, pelo menos, devem ser salientadas. Em primeiro lugar, chamar a atenção para a importância que representou a criação do CELATS e ALAETS. Essas organizações profissionais articularam encontros, seminários e publicações, qual seja o caso da revista “Acción Crítica”. Em segundo lugar, é necessário fazer referência à criação, em 1978, do primeiro mestrado latino-americano em Serviço Social, em Honduras. Essa experiência articulou estudantes de toda a região e contou com o fundamental suporte financeiro da fundação Konrad Adenauer. O “Magister latinoa-americano” teve sede na Universidade Nacional autônoma de Honduras, em Tegucigalpa. Foi criado por iniciativa do CELATS, que se afirmou como o organismo acadêmico da ALAETS. Formou quadros de docentes e pesquisadores para quase todos os países do subcontinente, num momento histórico no qual a formação pós-graduada estava institucionalizada apenas no Brasil. 44 Assistente Social Venezuelano.

conhecimento. Trata-se de uma análise que distingue o que seria o momento sensível e o

momento racional da intervenção em uma analogia do que Leila Lima Santos – no

conhecido Método BH – definiu como o momento sensível, que constituiria o ponto de

partida do conhecimento, e o momento abstrato, vinculado à reprodução de conceitos,

juízos e raciocínios. Ambas as contribuições identificam o momento sensível com uma

pratica contemplativa vinculada à experiência, razão pela qual a teoria se definiria como

uma abstração ou racionalização de sensações surgidas dessa experiência sensível. Esse

raciocínio leva consigo o risco da emergência de tantas teorias quantos sujeitos tenham

racionalizado as suas experiências individuais na realidade45.

Boris Lima (1986) apresenta um estudo do processo histórico do trabalho Social

que em lugar de centrar atenção para a oposição Tradicional-Progressista,

“(...) faz ênfase na polarização técnica-ciência, discutindo quatro fases do Serviço Social: a pré-técnica, a técnica, a pré-científica e a científica. Essas fases se caracterizam pelo tipo de conhecimento predominante na profissão conforma à utilização de instrumentos ou desenvolvimento de generalizações. Ao Movimento de Reconceituação lhe corresponderia uma etapa ‘científica’ racional” (Faleiros, V. de P., 1987: 54, tradução nossa).

A análise de Boris Lima (Op. Cit.) apresenta uma discussão que segue o

percurso da critica à metodologia tradicional do Serviço Social – na conhecida trilogia

de Caso, Grupo e Comunidade -, passando por uma análise do que ele denominou a

Metodologia de Transição – em uma discussão do Método Integrado, o Método Único e

o Método Básico do Serviço Social -, chega em uma proposta que o autor define como

O Método de Intervenção na Realidade e que, como já fora colocado, tenta – em uma

pretendida perspectiva dialética – traduzir o método dialético do conhecimento em um

45 Uma boa análise vinculada à critica do ‘praticismo profissional’ que aprofunda os debates aqui apresentados, encontra-se em Montaño: 1998: 146 e ss.).

método dialético para a intervenção. “Não basta ter presente as formas gerais do

pensamento – conceitos, juízos, raciocínios. É imprescindível conhecer as formas em

que científica e sistematicamente se sucede o pensamento. Ele se expressa no Ascenso

metódico do abstrato ao concreto” (Lima, 1986: 148, tradução nossa). Nessa lógica,

Lima – citando a Dialética da Natureza de Engels – coloca a questão de que o caminho

do conhecimento – da natureza, da sociedade e do pensamento – seguiria uma lógica

que tem inicio na observação direta do fenômeno estudado – do seu movimento como

totalidade concreta – para depois passar para o estudo dos seus elementos constitutivos.

A caracterização de Faleiros que coloca o momento da Reconceituação – na

lógica de Boris Lima – como uma etapa da profissão “científico-racional”, parece clara

na seguinte formulação de Lima, que citando a Mao Tse Tung diz:

“Mao Tse Tung explica que o desenvolvimento do processo do pensamento vai das aparências, dos aspectos isolados, das conexões externa, que constituem a etapa das sensações, para depois passar ao conhecimento racional por meio da utilização de conceitos desenvolvidos com o cérebro, os quais ao se inter-relacionarem dão lugar aos juízos e raciocínios. Então o conhecimento é uma unidade dialética entre o ‘sensível’ e o ‘ racional’” (Lima, 1986: 150, tradução nossa).

A citação anterior expressa uma perspectiva que – já dissemos que de pretensão

dialética – não consegue transcender – inclusive fazendo referências a citações de obras

de Marx, tal o caso das Teses sobre Feuerbach e Elementos fundamentais para a Crítica

da Economia política como também se referindo à obra de Kosik (2002) – uma leitura

que equipara o abstrato ao sensível e o concreto ao racional ou científico.

Nesse sentido Faleiros faz a afirmação seguinte:

“Esta classificação levanta um dos problemas centrais da Reconceituação que o diferencia, por exemplo, das preocupações predominantes dos anos 65: a construção do conhecimento através do Serviço Social e não apenas o uso e

técnicas mais ou menos sofisticadas como o planejamento. Esta construção de conhecimentos válidos, no movimento de Reconceituação não significa simplesmente o seguimento de uma lógica hipotético-dedutiva como aquela defendida por Boris Lima e inspirada em P.V. Kopnin, que chega a afirmar que ‘a reunião de fatos é a parte mais importante entre os componentes da pesquisa científica. (1978 pp. 229), em uma clara adoção do positivismo, sob a denominação de dialética. Kopnin, quem inspirou a alguns formuladores do Movimento de Reconceituação ( ver, para além de Boris Lima o método B.H.) formula um ponto de vista positivista, sob a denominação de dialética, confundindo a análise marxista. Ele chega a afirmar que ‘a fundamentação de origem experimental das idéias constitui um momento essencial na concepção marxista da idéia’(1978, pp. 315)” Faleiros, 1987: 54-55, tradução nossa).

A pesar destes equívocos, a proposta do Grupo de Belo Horizonte, é resgatada

por Netto como uma formulação renovadora na direção de uma alternativa global ao

tradicionalismo profissional (Cf. Netto, 1998, 276). Tratar-se-ia – segundo o autor – de

uma ruptura com os procedimentos típicos do tradicionalismo que apresenta uma

diferencia substancial com as perspectivas modernizadora e de reatualização do

conservadorismo.

“Este foi o traço mais visível da explicitação do projeto da ruptura que se plasmou na atividade da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Minas Gerais na primeira metade dos anos setenta – o ‘método’ que ali se elaborou foi além da crítica ideológica, da denuncia epistemológica e metodológica e da recusa das práticas próprias do tradicionalismo; envolvendo todos esses passos, ele coroou a sua ultrapassagem no desenho de um inteiro projeto profissional, abrangente, oferecendo uma pauta paradigmática dedicada a dar conta inclusive do conjunto de suportes acadêmicos para a formação de quadros técnicos e para a intervenção do Serviço Social” (Netto, 1998: 276-277).

Netto, analisando esse processo no Serviço Social brasileiro, identifica três

fenômenos que sustentam uma primeira aproximação do Serviço Social à tradição

marxista (2003: 162, tradução nossa). Trata-se das determinações seguintes.

• Crise do serviço social tradicional.

• Pressão exercida pelos movimentos sociais revolucionários.

• Rebelião46 estudantil.

Assim, o autor vai dizer que essa aproximação foi realizada com uma exigência

teórica muito reduzida, com exigências de caráter ideo-político e com uma forte

determinação instrumental.

Nesse sentido, Netto acrescenta:

“(...) incorporação de um acervo de núcleos que, desvinculados do seu contexto tenderam mais para o clichê e a consigna, que para componentes teórico-metodológicos e crítico-analíticos (…) aproximação contaminada de setores do serviço social à tradição marxista – contaminação derivada das exigências políticas, do ecletismo teórico e do desconhecimento das fontes ‘clássicas’”. (Netto, 2003: 164, tradução nossa).

Aquele clichê ao qual o autor faz referência vinculava-se a uma aproximação à

tradição marxista apenas na sua projeção revolucionária, presente no contexto histórico-

social latino-americano, sem uma apreensão do cariz teórico na compreensão da

“reprodução ideal do movimento real constitutivo do ser social na ordem burguesa”

(Cf., Netto, 1991: 78), que inclui a alternativa da revolução socialista.

Os equívocos nessa aproximação encontram fundamento naqueles limites que

Netto (Cf., 2005: 78) salienta com relação ao Movimento reconceituador, e que tem a

ver com:

• A denuncia ao conservadorismo próprio do tradicionalismo, disfarçado em

“apoliticismo”, conduziu ao ativismo e obscureceu as fronteiras entre a profissão

e o militantismo, conduziu – assim - ao messianismo.

• Relativização da universalidade teórica e valorização da teoria “autóctone”.

46 No texto em espanhol : “Rebelión estudiantil”. Tradução nossa.

• Confucionismo ideológico. Assim, recolheu no dialogo com a tradição marxista

“o que nela havia de menos vivo e criativo”.

Até ai, a impossibilidade de pensar o desenvolvimento da profissão para além da

leitura endógena do seu próprio percurso e, em conseqüência, a impossibilidade de

desvendar o seu significado histórico, gerou um movimento que tentou instrumentalizar

uma teoria na necessidade de negar e superar um cenário profissional tradicional.

Assim, uma critica profissional se confundiu com mudança social.

É fundamental compreender essas aproximações iniciais com a tradição marxista

à luz das contribuições de Consuelo Quiroga47 (1991), que permitem tirar o véu da

invasão positivista no Marxismo. Sobre esta questão voltaremos no seguinte capitulo da

presente dissertação.

47 Cf. QUIROGA, C. Invasão positivista no marxismo: manifestações no ensino da metodología no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1991.

CAPÍTULO III:

Para uma análise dos fundamentos do Movimento de

Reconceituação na Argentina, na ótica da obra de Ezequiel

Ander-Egg

3.1 A critica ao Serviço Social Tradicional na ótica do Desenvolvimentismo: o

Assistente Social como Agente de Mudança.

Chegamos ao terceiro capítulo de nosso trabalho após a apresentação – em

termos gerais - do significado, historicamente situado, do Processo de Reconceituação

na Argentina, no contexto latino-americano. Considerando que as nossas preocupações

encontram-se centradas na particularidade desse processo no cenário argentino,

tentaremos dar conta dos avanços e retrocesso do Movimento de Reconceituação nesse

país, a partir do estudo de algumas obras significativas de Ezequiel Ander-Egg. Em

primeiro lugar é necessário salientar que essa escolha – como qualquer escolha – não

tem um caráter arbitrário, de modo que apresentaremos as argumentações que

consideramos relevantes. Isto é, fazer uma leitura do Processo de Reconceituação na

Argentina através da obra de Ander-Egg, não significa desconhecer as contribuições de

outros autores que foram protagonistas desse Movimento - tanto na Argentina como no

subcontinente todo - no mesmo nível que Ander-Egg; tal o caso de Kisnerman, Alayón,

Barreix, só por nomear alguns deles. Por que, então, essa escolha? Em primeiro lugar,

os limites e possibilidades das características de uma dissertação de mestrado fazem

necessária uma delimitação. Mas essa delimitação não é uma delimitação qualquer.

Considera-se que na atualidade é Ezequiel Ander-Egg o autor que continua tendo uma

significativa influencia na formação de profissionais em alguns paises da região, do

mesmo modo que em alguns centros de formação argentinos, sobretudo naqueles de

caráter não universitário48. Essa premissa faz com que as contribuições de um autor que

48 Considera-se necessário salientar que na Argentina coexistem instituições de formação universitárias com outras de caráter não universitário. Essas instituições de terciárias apresentam um currículo que sustenta uma formação técnica, inclusive mantendo – às vezes – a clássica trilogia de caso grupo e comunidade. Seria possível pensar como argumento da sua influência a exigência que uma formação dessas

nos anos de 1960/1970 oferecia uma perspectiva que se apresentava como crítica em

face do que o Serviço Social tinha de mais “atrasado” e tradicional, na atualidade a sua

influência responde ao fato de que as suas contribuições fornecem argumentações que

se constituem em alternativas à tendência crítica no Serviço Social. No percurso do

presente capitulo tentaremos mostrar a ausência do debate – na sua produção – no que

diz respeito ao significado social da profissão de Serviço Social e a ausência da inserção

da profissão na divisão social e técnica do trabalho, perspectiva que não permite uma

critica à sociedade capitalista e, portanto, outorga a essas proposições – na lógica da

análise apresentada no capitulo anterior – um caráter conservador.

Feitas essas aclarações introdutórias, comecemos revisando algumas concepções

do autor que nos permitirão situar as suas contribuições a partir de compreender a sua

visão de profissão.

Partiremos, então, de compreender a concepção do autor no que diz respeito à

historicização da nossa profissão a qual, segundo ele, teria seguido um longo processo

que abrange o trânsito desde a perspectiva de “ajuste” até a de “transformação”. Essa

leitura histórica vai se remontar aos antecedentes da Assistência Social e do Serviço

Social na “ajuda aos necessitados na antiguidade”, isto é, desde o Código de

Hammurabí no ano 2100 A.C., passando pelas normas morais de ajuda ao próximo em

Confúcio nos anos 551-478 A.C., vai se remeter a Grécia, Esparta, Atenas e as

contribuições de Platão e Aristóteles; a Israel e o Antigo Testamento e ao Toráh; aos

Evangelhos e ao Cristianismo primitivo (Cf. Ander-Egg e outros, 1975: 15-26). Em

uma lógica que se insere claramente numa análise endógena da gênese profissional49, o

percurso da obra citada continua essa reconstrução analisando distintas formas de ação

características apresenta em face da necessidade de respostas imediatas, que exigem a instrumentalização da produção teórica. 49 Ver Montaño (1998).

social fazendo referência à Esmola e à ajuda social das corporações como formas de

assistência social; ao Bem-estar social na Indoamérica e na América pós-colombiana,

até chegar nos primórdios da Assistência Social na forma de Ação Benéfico-assitencial

como forma de Assistência Social. Essa trajetória que continua com a

institucionalização do Serviço Social na sociedade capitalista do século XX – o autor a

define como um processo que vai do intervencionismo estatal até o neoliberalismo –

para chegar a uma análise do Serviço Social na América Latina em uma seqüência que o

autor apresenta como a evolução do Serviço Social partindo da beneficência

paternalista, a assepsia tecnológica, o desenvolvimentismo e a ação libertadora. É a

lógica desse ultimo trajeto dessa análise evolutiva que tentaremos captar nas obras do

autor que no percurso do presente capitulo analisaremos. Essa evolução é apresentada

pelo autor nos termos seguintes (Cf. Ander-Egg, 1975: 193 e ss., tradução nossa).

• Assistência Social. a) Concepção benéfico-assistencial, b) Concepção

pára-médica e / ou pára-jurídica.

• Serviço Social. a) Concepção asséptico-tecnocrática. b) Concepção

desenvolvimentista.

• Trabalho Social. Concepção conscientizadora-revolucionária.

No estudo da obra de Ander-Egg, para fins do presente artigo, observa-se – e já

Parra (2002: 192-193) chama a atenção para esse fato – que os seus textos produzidos

na época de auge e refluxo do Movimento de Reconceituação, tem sido editados em

diferentes obras e revistas, o que faz com que um texto apareça em diversas versões,

mas com o mesmo conteúdo. Esse é o caso de “Achaques e Manias do Serviço Social

Reconceituado”. A primeira versão aparece no número 23 da Revista Selecciones del

Servicio Social no ano de 1974. Esse artigo vai, depois, formar parte do livro “O

Trabalho Social como ação libertadora” 50 e mais tarde vai ser editado pela editorial

Humanitas com o nome do artigo original, isto é, “Achaques y Manias do Serviço

social Reconceituado”.

Considera-se necessária uma observação do que parece – salvo erro na nossa

leitura – uma característica nas obras consultadas para o presente artigo. As análises

feitas por Ander-Egg, no que diz respeito ao Movimento de Reconceituação, são

colocadas, quase sempre, em termos de análise do Serviço Social latino-americano.

Embora seja inegável que este processo tenha tido um caráter latino-americano,

considera-se que as análises devem resgatar as particularidades locais, ou poder-se-ia

correr o risco de homogeneizar o processo e de considerar a América Latina como uma

totalidade homogênea, as conseqüências dessa homogeneização são salientadas na nota

de rodapé 851. Essa característica se apresenta como uma grande dificuldade

distinguirmos quem é o interlocutor das criticas ou leituras feitas pelo autor.

No estudo de três obras de Ezequiel Ander-Egg podemos identificar três eixos

aos fins analíticos dessas obras, que são coerentes com a lógica evolutiva apresentada na

obra citada de 1975. Na obra “Serviço Social para uma nova época” (de 1967), o eixo

está colocado no ideário desenvolvimentista. Por sua vez, na obra “O trabalho Social

como ação libertadora” (de 1971), o eixo parece estar colocado em uma perspectiva

que tenta questionar a resposta desenvolvimentista e introduz a necessidade de

“mudanças radicais”. Finalmente, na obra “Achaques e manias do Serviço Social

50 Livro que, por sua vez, é considerado como uma segunda edição de um outro livro: “Servicio Social para una nueva época”. 51 Diz Netto em uma nota de rodapé: “Deve-se evitar o erro de considerar a América Latina uma totalidade integrada – sabe-se da diversidade problemática que constitui o continente” (1981: 59).

Reconceituado” (de 1984)52, o eixo central responde a uma crítica ao Movimento de

Reconceituação, na lógica do que Netto (1981) chamou de Crítica conservadora à

Reconceituação.

Antes de analisar os pontos centrais das obras do autor, considerando que a

análise de uma produção requer um estudo historicamente situado, chamamos a atenção

para o fato de que a primeira obra que analisaremos foi produzida em 1967, isto é, essa

produção não pode se compreender isoladamente, não pode se explicar sem olhar para o

contexto do subcontinente e para a particularidade Argentina na época, razão pela qual

as reflexões do capitulo I da presente dissertação são fundamentais para compreender o

sentido da produção de Ander-Egg.

Em termos gerais53 o Movimento de Reconceituação emerge como necessidade

de resposta crítica ao Serviço Social Tradicional, e no caso particular da Argentina –

coerentemente com o que acontecia no resto da região -, vinculado ao ideário

desenvolvimentista, seja na sua versão democrática seja na sua versão autoritário-

ditatorial.

Teremos, então, que resgatar algumas formulações que nos permitam nos

aproximar ao esse tema. Diz Francisco de Oliveira, se referindo ao subdesenvolvimento:

“No plano teórico, o conceito do subdesenvolvimento como uma formação histórico-econômica singular, constituída polarmente em torno da oposição formal de um setor ‘atrasado’ a um setor “moderno”, não se sustenta como singularidade: este tipo de dualidade é encontrável não apenas em quase todos os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição na maioria dos casos é tão-somente formal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado “moderno” cresce e se alimenta da existência do “atrasado”, se se quer manter a terminologia. O

52 Como já fora salientado essa obra se baseia num artigo do mesmo nome de 1972, e em mais dois de 1979 e 1980. 53 Segundo as reflexões propostas no capítulo II.

“subdesenvolvimento” pareceria a forma própria de ser das economias pré-industriais penetradas pelo capitalismo, em ‘trânsito’, portanto, para as formas mais avançadas e sedimentadas deste; todavia, uma tal postulação esquece que o “subdesenvolvimento” é precisamente uma “produção” da expansão do capitalismo (...) em resumo, o “subdesenvolvimento” é uma formação capitalista e não simplesmente histórica” (Oliveira, 2003: 32-33).

Parece necessário, a partir das colocações do autor citado – acerca do

subdesenvolvimento como produto da expansão capitalista, e não simplesmente como

uma produção histórica - nos perguntarmos sobre a particularidade histórica em cujo

processo a expansão capitalista se expressa nesse período. Teremos que nos perguntar

também como é que uma profissão como o Serviço Social vai se inscrever nesse devir.

Parece claro que o panorama aberto pela Revolução Cubana, que foi apresentado nos

capítulos anteriores, é central para compreender a expressão do desenvolvimentismo

desses anos. Nesse sentido Netto diz:

“Com efeito, a reconceptualização esta intimamente vinculada ao circuito sócio-político latino-americano da década de sessenta: a questão que originalmente a comanda é a funcionalidade profissional na superação do subdesenvolvimento. Indagando-se sobre o papel dos profissionais em face de manifestações da ‘questão social’, interrogando-se sobre a adequação dos procedimentos profissionais consagrados às realidades regionais e nacionais, questionando-se sobre a eficácia das ações profissionais e sobre a eficácia e legitimidade das suas representações, inquietando-se com o relacionamento da profissão com os novos atores que emergiam na cena política (fundamentalmente ligados às classes subalternas) – e tudo isso sob o peso do colapso dos pactos políticos que vinham do pós-guerra, do surgimento de novos protagonistas sóciopolíticos, da revolução cubana, do incipiente reformismo gênero Aliança para o Progresso (Sic.) -, ao mover-se assim, os assistentes sociais latino-americanos, através de seus segmentos de vanguarda, estavam minando as bases tradicionais da sua profissão” (Netto, 1998: 146).

É necessário chamar a atenção – embora já fora apresentada a questão nos

capítulos anteriores – do que diz respeito à centralidade assumida pela Aliança para o

Progresso nesse cenário político-social latino-americano, aberto pela Revolução cubana.

Isto é, a Aliança para o Progresso deve ser entendida como resposta dos Estados Unidos

em face do perigo de “exportação” da experiência cubana para outros paises da região.

Dizia Che Guevara no seu discurso na 5ª sessão plenária do Conselho Interamericano

Econômico e Social, pronunciado em 8 de agosto de 1961 no Uruguai54:

“Temos denunciado que a «Aliança para o Progresso» é um veículo destinado a separar o povo de Cuba dos outros povos de América Latina, a esterilizar o exemplo da Revolução cubana, e, depois, domesticar os outros povos segundo as indicações do imperialismo” (Tradução nossa).

Na tentativa de nos aproximarmos à apreensão do processo através do qual o

Serviço Social como profissão se insere na lógica da análise que vimos apresentando,

voltemos para as afirmações no que diz respeito à profissão e ao desenvolvimento

apresentados na Obra de Ander-Egg (1967). Afirma o autor, se referindo à “evolução

histórica” do Serviço Social:

“Embora o Serviço Social ‘surgiu da necessidade de levar alguma solução aos problemas derivados da miséria e da doença, logo o seu campo de ação se ampliou por causa da rápida evolução dos processos sociais, da complexificação das relações indivíduo-sociedade, e da aparição de novos conhecimentos e interpretações a respeito desses fatos. Assim, progressivamente a sua significação adquiriu cada vez maior transcendência’. Colocada no mundo contemporâneo a problemática do desenvolvimento, é pertinente formular a

54 Discurso do Comandante Ernesto Che Guevara na quinta sessão plenária do Conselho Interamericano Econômico e Social, em Punta del Este, Uruguai. Pronunciado em 8 de agosto de 1961. Disponível em: www.marxists.org.

questão do papel do Serviço Social” (Ander-Egg, 1967: 37, tradução nossa).

Essa consideração deixa de fora uma análise do processo de desenvolvimento –

em termos históricos – do sistema capitalista, que exige o aggiornamento dos

instrumentos que lhe são funcionais para a sua produção, reprodução e legitimação. Isto

é, a referencia à evolução dos processos sociais, da complexificação das relações

indivíduo-sociedade, a aparição de novos conhecimentos e interpretações a respeito

desses fatos, ampliará realmente o campo de ação? Ou trata-se das metamorfoses – no

próprio sistema e como produto da sua expansão - das expressões da “questão social” 55

traduzidas em problemas sociais que requerem uma forma particular de intervenção do

Estado para a manutenção da ordem? Coerentemente com essa lógica, o autor

acrescenta:

“(...) queremos advertir que o ‘case work’ é um luxo para os paises em vias de desenvolvimento. Não se trata de deixá-o ou abandoná-o por ser inútil como método – sempre será necessário -, mas a magnitude dos nossos problemas nos exige um esforço

55 Para compreender o que estamos considerando “Questão social”, é esclarecedora a contribuição de Netto que se referenciando em Marx, faz a afirmação seguinte: “A análise marxiana da ‘Lei geral de acumulação capitalista’, presente no vigésimo terceiro capítulo do livro publicado em 1867, revela a anatomia da ‘questão social’, a sua complexidade, o seu caráter de corolário (necessário) do desenvolvimento capitalista em todas as suas fases. O desenvolvimento capitalista produz necessariamente a ‘questão social’ – diferentes fases capitalistas produzem diferentes manifestações da ‘questão social’, esta não é uma seqüela adjetiva ou transitória do regime do capital: a sua existência e as suas manifestações são indissociáveis da dinâmica específica do capital transformado em potencia social dominante. A ‘questão social’ é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a primeira conservando-se o segundo. (...) a ‘questão social’ esta basicamente determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho – a exploração. Embora a exploração apenas remeta à determinação molecular da ‘questão social’; na sua integra, longe de qualquer unicausalidade, implica a confluência mediada por componentes históricos, políticos, culturais etc. Sem ferir de morte os dispositivos exploradores do regime do capital, toda luta contra as suas manifestações sócio-políticas e humanas (precisamente o que se designa ‘questão social’) está condenada a enfrentar sintomas, conseqüências e efeitos” (Netto, 2003a: 62-63, tradução nossa).

de impacto mais massivo” (Ander-Egg, 1967:18, tradução nossa).

A citação anterior coloca a “necessidade” de ruptura com o Serviço Social

tradicional. O contexto apresentado gera a necessidade de criação de um “Serviço

Social latino-americano” que desse resposta aos “novos” problemas do subcontinente,

que estavam longe de ser semelhantes aos que a realidade européia ou norte-americana

apresentava. Introduz-se, assim, a questão do problema da metodologia, do

questionamento à clássica trilogia de caso, grupo e comunidade, emergindo, inclusive,

um debate sobre a necessidade do Método próprio do Serviço Social. Agora, é

interessante salientar que essa crítica – na citação anterior – não aparece vinculada aos

fundamentos filosóficos, nem ídeo-políticos do método, e sim, a uma avaliação que diz

respeito à necessidade de atingir um “publico alvo” maior. Ou seja – e seguindo essa

lógica - em uma região com graves problemas sociais dos quais o subdesenvolvimento

parece ser o responsável, a atenção individualizada é inviável. Isto é, trata-se de um

problema metodológico de ordem quantitativa no que diz respeito ao impacto, a eficácia

e a eficiência da intervenção profissional.

Seguindo essa lógica, vejamos o que o autor entende como o papel da profissão

de Serviço Social. Diz Ander-Egg nesse sentido:

“Profissão baseada no reconhecimento da dignidade do ser humano e na sua capacidade de superação, que através dos procedimentos técnicos próprios, ajuda os indivíduos, grupos ou comunidades a se valer por si próprios e conseguir o seu desenvolvimento integral, especialmente nas situações sociais que necessitam de ajuda alheia para atender às suas necessidades e desenvolver as suas potencialidades” (Ander-Egg, 1967: 32, tradução nossa).

Nos próximos parágrafos vamos nos deter no que significa para o autor o

problema do subdesenvolvimento, e se verá como essa concepção de Serviço Social é

coerente com aquela de desenvolvimento. Mas, no que diz respeito à sua concepção de

Serviço Social a citação anterior se insere em uma lógica conservadora com sustentação

em princípios éticos fundados no neotomismo56. Deve-se chamar a atenção para o fato

de que a obra de Ander-egg a que fazemos referência – Servicio Social para uma nueva

época – foi publicada na sua primeira edição em 1967, no mesmo ano da realização do

Seminário de Araxá, que aconteceu em março desse ano no Brasil. No capitulo anterior

chamamos a atenção – seguindo as análises de Netto (1998) – para o lugar ocupado por

esse Seminário na afirmação da perspectiva modernizante. Então, é interessante

salientar que a referência à “dignidade do ser humano” nos termos da citação anterior

de Ander-egg – e que vinculamos a uma perspectiva neotomista - é coerente com a

definição dos objetivos do Serviço Social sistematizados no Documento de Araxá (cf.

Documento de Araxá, 1967: 7)57. O citado documento chama a atenção para a

necessidade de fazer uma distinção entre o Objetivo remoto do Serviço Social “(...) o

provimento de recursos indispensáveis ao desenvolvimento, à valorização e à melhoria

de condições do ser humano, pressupondo o atendimento dos valores universais (...)”

(Ibidem), que se vincula diretamente com esses princípios neotomistas, e os Objetivos

operacionais entendidos como fins imediatos e intermediários58.

Poder-se-ia dizer que é uma perspectiva que despolitiza, naturaliza e, portanto

des-historiza e psicologiza essas situações sociais nos determinados grupos ou

56 “O neotomismo repõe, sob novas determinações históricas, a filosofia tomista. Para esse pensamento filosófico a base teológica, o principio da existência de Deus confere uma hierarquia aos valores morais, tendo em vista sua subordinação às ‘leis naturais’ decorrentes das ‘leis divinas’. A natureza humana é considerada a partir de uma “ordem universal imutável”, donde as funções inerentes a cada ser apresentarem-se como necessárias à ‘harmonia’ do conjunto social, cuja realização leva ao ‘bem comum’ ou à ‘felicidade geral’” (Barroco, 2003:91). 57 Recorremos ao documento de Araxá porque, embora se trate de um encontro realizado no Brasil, consideramos que ele expressa o debate latino-americano da época. 58 Entendemos o Documento de Araxá, nos termos de Netto, como a expressão da afirmação da perspectiva modernizadora (Cf. Netto, 1998: 167 e ss.).

comunidades que precisam da ajuda alheia para atender às suas necessidades e

desenvolver as suas potencialidades. Essa perspectiva é expressa com toda clareza na

seguinte afirmação de Ander-Egg:

“A convicção de que todos os homens – ainda aqueles que estão em situação infra-humana – têm capacidade de superação, e que se não o fazem é por falta de orientação e porque carecem de uma razão para fazê-lo” (Ander-Egg, 1967: 32, tradução nossa).

Podemos já afirmar as razões pelas quais a obra de Ander-Egg oferece uma

alternativa conservadora. Uma análise sustentada nesses fundamentos não diz nada a

respeito do significado social da profissão. Embora as análises que permitiram

compreender a profissão inserida na divisão social e técnica do trabalho são publicadas

apenas nos anos ’80 (especificamente Iamamoto e Carvalho, 1982), existiam condições

na época de publicação desta obra de Ander-Egg para inserir o debate da profissão pelo

menos em uma perspectiva que transcendesse a individualização dos problemas sociais.

Desta forma, as refrações da “questão Social” são captadas e abordadas como

problemáticas individuais59.

Vamos ver nos parágrafos seguintes que a concepção de desenvolvimento

apresentada por Ander-Egg é coerente com a lógica que estamos questionando. Em

termos gerais tratar-se ia da passagem “do menos humano para o mais humano”,

colocada essa afirmação em contraposição àquela centrada no aumento da renda

59 Nessa perspectiva [conservadora] o limite é claramente apontado por Netto na seguinte citação: “(...) a intervenção estatal sobre a ‘ questão social’ se realiza, segundo as características que já assinalamos, fragmentando-a y particularizando-a. E não pode ser de outra forma: tomar a ‘questão social’ como problemática configuradora de uma totalidade processual especifica é remetê-la concretamente à relação capital/ trabalho – o que significa, preliminarmente, colocar em xeque a ordem burguesa” (Netto, 1992: 22, tradução nossa).

nacional. Nesse processo geral de desenvolvimento – segundo o autor - o papel do

Serviço Social seria imprescindível. Vejamos o que nos diz Ander-Egg textualmente:

“(...) nos parece mais conforme à realidade a noção proposta por François Perroux, segundo a qual “o desenvolvimento é a combinação de mudanças mentais e sociais de uma população, que a tornam mais apta para fazer crescer, acumulativa e duravelmente, o seu produto real global” (...) Segundo o Padre Lebret, diremos que “o desenvolvimento é a serie de passos para uma população determinada, de uma fase menos humana a uma fase mais humana, ao ritmo mais rápido possível, ao custo financeiro e humano menos elevado possível, levando em conta a solidariedade entre todas as populações”” (Ander-Egg, 1967: 36-37, tradução nossa).

É clara a posição do autor nessa citação, e no avanço do presente capitulo vamos

apresentar o processo no qual essa concepção vai mudando e se aggiornando

historicamente. Veremos, também, que é um processo com fortes continuidades. A

referência à necessidade de mudanças mentais e sociais de uma população não deixa

lugar para duvidas na compreensão de que se trata de um raciocínio que individualiza os

problemas sociais e “libera” o próprio sistema da sua responsabilidade na geração

desses problemas sociais que não são outra coisa do que expressões da contradição

fundamental entre capital e trabalho, como já foi dito.

Se voltarmos para o discurso de Che Guevara no Uruguai (Op. Cit.),

observaremos que a sua critica à Aliança para o progresso que estava se apresentando

naquela sessão plenária, tinha entre os seus fundamentos algumas das questões

seguintes. Em primeiro lugar, a clara intencionalidade daquele Conselho para

deseconomizar a política e despolitizar a economia. Essa intencionalidade traduzia-se

em formulações técnicas orientadas por técnicos. A outra questão se centra na

colocação desses técnicos no que diz respeito à Educação e à Saúde como condição sine

qua non para iniciar o caminho do desenvolvimento. Nos parece que é essa “lógica

técnica” a que outorga para o Serviço Social um papel fundamental no processo de

desenvolvimento, fundamental segundo as indicações técnicas surgidas à luz dos planos

da Aliança para o Progresso. Fundamental, também, a partir da perspectiva apresentada

no parágrafo anterior. Isto é, essa “necessidade de mudanças mentais e sociais” exige

“inovações” técnicas, sobretudo em saúde e educação, para promover o suposto

processo de desenvolvimento.

Nessa lógica, e se referindo à modalidade operativa do Serviço Social no

processo de desenvolvimento, Ander-Egg se pronuncia preocupado pelo seu caráter

conformista e conservador “numa sociedade que, para sair do subdesenvolvimento,

exige de forma indefectível mudanças radicais” (Idem: 39, tradução nossa). Acrescenta

o autor: “(...) o serviço social tem uma função de conscientização e dinamização para

promover e orientar as mudanças estruturais da nossa sociedade” (Ander-Egg, 1967: 41,

tradução nossa).

Consideramos que esse caráter conformista e conservador a que o autor faz

referencia vincula-se à critica ao Serviço Social Tradicional que, como já fora dito,

coloca em questão a sua sustentação teórico-metodológica em uma perspectiva de

Modernização Conservadora. É por essa razão que se considera que a afirmação do

autor no que diz respeito às “mudanças radicais ou mudanças estruturais da nossa

sociedade”, deve ser posta em questão e deve ser apreendida na lógica até aqui

apresentada.

3.2 O Trabalho Social como ação libertadora. De agentes de mudança para

conscientizadores-revolucionários.

A segunda obra central, proposta para a nossa análise foi produzida no ano de

1974 sob o titulo de O trabalho Social como ação libertadora. Considera-se pertinente

chamar a atenção – como fizemos com a obra anterior – para a necessidade de situar

historicamente esta nova produção. Quer dizer, as mudanças histórico-sociais e ideo-

políticas ocorridas entre 1967 e 1974 devem ser cuidadosamente estudadas no cenário

latino-americano para uma correta apreensão da posição do autor em face dos

acontecimentos da época, e para um melhor entendimento de algumas diferenças entre

as afirmações de 1967 e as de 1974. Se tivermos que colocar essas diferenças em termos

de rupturas e continuidades, poderíamos afirmar – segundo iremos mostrando no

percurso do capítulo – que não se trata de um processo de ruptura e sim de um processo

que apresenta continuidades com alguns aggiornamentos que o próprio processo

histórico impôs.

Consideramos necessário lembrar, também, que – segundo a nossa análise no

capitulo II – os anos de 1969-1971 constituem um momento de inflexão no interior do

Movimento Reconceituador. É preciso salientar novamente que é à luz da Crise do

ideário desenvolvimentista e o “fracasso” da Aliança para o Progresso, que começa a se

gestar uma perspectiva que na crítica ao desenvolvimento introduz a possibilidade de

um diálogo com a tradição marxista. Já foi dito, também, que o seminário regional de

Concepção (Chile) de 1968 e o Seminário Pan-americano ocorrido em Quito em 1971

constituíram espaços que possibilitaram a visibilidade dessa tendência incipiente. A

inflexão a que fazemos referência enfrentou claramente duas tendências que podem ser

colocadas em termos de “conservadores versus progressistas ou revolucionários”. Deve-

se chamar a atenção para a ausência na citação de Kruse – na nota de rodapé – de

qualquer intervenção Argentina afirmando essa perspectiva revolucionária60.

Tentaremos, então, nos parágrafos seguinte analisar quais são as repercussões na

obra de Ander-Egg (1974) dessa inflexão no debate do Serviço Social a nível latino-

americano. Debate, esse, que se insere em um cenário ideo-político particular e a partir

do qual alguns autores colocavam – na época – a necessidade de uma nova

Reconceituação.

A obra intitulada “O Serviço Social como ação libertadora” (Andder-Egg,

1974) apresenta algumas diferenças – como já foi dito - que poderiam ser lidas como

uma tentativa de aggiornar as reflexões de 1967, das que essa obra é continuidade61. No

inicio da parte 1, intitulada o Serviço Social na América Latina, o autor já chama a

atenção para o fato de que: “A correlação entre o processo social e o processo das

ciências e das profissões, é um fato demais evidente” (Idem: 13, tradução nossa). Nesse

sentido, no prólogo para a 6ª edição de 1974 é colocada uma referencia explicita à

60 Trata-se do VII Congresso Interamericano de Bem-estar Social realizado em Quito, Equador, entre os dias 25 e 31 de julho de 1971. Segundo Parra, em 28 de julho o Congresso foi encerado pelo próprio presidente do Equador, Velazco Ibarra. “A versão oficial assinalava que o Congresso tinha sido encerrado – fundamentalmente para lhe evitar problemas aos congressistas estrangeiros – já que um participante equatoriano tinha solicitado que esse Congresso realizasse um voto de apoio à greve geral organizada pela Central de Trabalhadores Equatorianos” (Parra, 2002: 167, tradução nossa). Mas, Parra introduz uma citação de Kruse, que salienta outros motivos para esse encerramento. “A partir de que o Congresso se dividiu em comissões para fazer um estudo aprofundado dos sub-temas em que tinha se dividido o temário principal, o Serviço de Segurança começou gravar com nome, sobrenome e nacionalidade as intervenções de todos os congressistas. Dos mil participantes, pelo menos 700 se mostraram abertamente como pessoas de esquerda: camilistas colombianos, neo-soviéticos bolivianos, marxistas chilenos, boschianos dominicanos, nacionalistas peruanos, independentes porto-riquenhos, etc. Os agentes de segurança se alarmaram quando ouviram todas essas pessoas falando livremente de marxismo, de materialismo dialético e de revolução” (Kruse, 1971: 33. In: Parra, 2002: 167, tradução nossa). 61 Deve-se levar em conta que a edição consultada para a presente dissertação é de 1974 (6ª edição), o que faz com que ela guarde diferenças, também, com a sua versão original de 1971.

situação chilena, em termos de angustia: “o acontecido no Chile, país que marchava na

direção de uma libertação nacional e social (o que fazia sentido para toda América

latina), mas cujo processo tem sido esmagado pelas ações criminais sem precedentes na

história do país” (Idem: 9, tradução nossa).

Já nas primeiras paginas dessa obra aparece uma posição que se distanciando da

obra de 1967 se coloca como critica ao desenvolvimentismo, salvo erro na nossa

interpretação. Neste sentido o autor retoma uma citação de Barreix, Alayón e Cassineri

(1971) na qual é salientada a necessidade de substituir a forma “Serviço Social” pela

denominação TRABALHO SOCIAL como nova forma de ação social que é reclamada

pelas circunstâncias latino-americanas daquele momento, diz o autor:

“(...) uma forma de ação social distinta (talvez com objetivos e intencionalidade histórica diferente – e até opostos) deve substituir o que já não dá para mais [o autor esta se referindo ao Serviço Social], porque já não da mais o seu ‘gestor’ ideológico (o desenvolvimentismo) derivado das concepções liberal-capitalistas”. (Idem: 31, tradução nossa).

Assim, o debate colocado por Barreix, Alayón e Cassineri (1971) no que diz

respeito à denominação Trabalho Social, faz referencia a uma reconstrução da evolução

histórica da profissão que deve ser entendida em termos do que Carlos Montaño (1998)

chama de tese endogenista62. Essa lógica parece colocar o Serviço Social em uma

perspectiva desenvolvimentista, enquanto que o Trabalho Social assumiria uma posição

“concientizadora-revolucionária”.

“Quando procurava-se – ainda – ‘a vinculação entre os objetivos do Serviço Social e os da política nacional do desenvolvimento’ (o que tivesse permitido criar uma concepção desenvolvimentista do Serviço Social), alguns dos que se colocam na vanguarda da Reconceituação encontraram-se com a

62 Já foi sugerida a recorrência à Montaño (1998) para o aprofundamento desse debate.

formulação da insuficiência do desenvolvimentismo (formulação que provém de fora do Serviço Social)” (Ander-Egg, 1974: 40, tradução nossa).

No que diz respeito ao que se nomeou – nessa seqüência evolutiva – como

Serviço Social, Ander-Egg resgata a diferenciação de duas concepções formuladas por

Barreix, a Concepção asséptico-tecnocrática63 e uma concepção desenvolvimentista.

Essa ultima concepção - segundo Ander-Egg (Cf. 1974: 38) situa-se na centralidade que

o desenvolvimento adquiriu em todos os campos após um processo que começou com

um primeiro relatório da CEPAL (de 1949) e de posteriores estudos sobre a economia

latino-americana e sobre cada país em particular, impondo a idéia do desenvolvimento.

Mas vejamos o que Ander-Egg entende por concepção desenvolvimentista nesta

segunda obra dele que agora analisamos:

“(...) estamos fazendo referência a uma corrente de pensamento e ação que surge na década de ’50, apoiada em diversos estudos sobre o desenvolvimento latino-americano, cujo modelo analítico examina situações em termos de transição de uma sociedade tradicional para uma sociedade moderna, apresentando ambas as situações como tipos ideais ou pólos de um continuum conceitual, dentro de uma análise que quer ser cientifica, a-ideológica e despolitizada. Este enfoque considera o desenvolvimento econômico como um processo ou etapas que abrangem diferentes aspectos, mas, em geral consiste na indução da mudança em direção de uma situação modernizante, segundo o modelo (nem sempre explícito), dos chamados paises desenvolvidos” (Ander-Egg, 1974: 38, tradução nossa).

Segundo o autor teria se conformado um processo no qual pereciam estar dadas

as condições para a elaboração desenvolvimentista do Serviço Social, “(...) mas a

63 Concepção que faz referencia à influencia do Serviço Social norte-americano no Serviço Social latino-americano, vincula-se à uma preocupação técnico-científica, com um marco referencial psicologista na suposta tentativa de elevação do status profissional.

dinâmica do processo leva a situações que parecem negar essa possibilidade, e colocam

o Serviço Social na sua atual crise profunda” (Ander-Egg, 1974: 40, tradução nossa).

O autor continua o raciocínio mostrando que essa centralidade posta no

Desenvolvimento perpassa as ciências sociais em geral e atinge o Serviço Social que

será compreendido como uma técnica social que deve contribuir no processo geral de

desenvolvimento econômico do país.

No que diz respeito à emergência do que foi nomeado como Trabalho Social,

Andder-Egg (Op. Cit.) vai salientar alguns fatores que levaram ao abandono do

desenvolvimentismo e ao novo enfoque do problema do desenvolvimento. Assim vai

colocar duas linhas de leitura: por um lado a inoperância dos planos de desenvolvimento

e o fracasso da Aliança para o Progresso; e por outro lado novas proposições com uma

perspectiva ideológico-política que “(...) fizeram ver e compreender os problemas de

nosso desenvolvimento de maneira diferente” (Ibidem).

Essa compreensão de “nossos problemas de maneira diferente” esta claramente

expressa na concepção de desenvolvimento que Ander-Egg oferece no seu Diccionario

de Trabajo Social (1974a), vejamos as afirmações do autor textualmente.

“(...) Tem-se afirmado que ‘o desenvolvimento como prática e como ideologia constitui o desafio por excelência do homem latino-americano; a sua teoria como ciência constitui o maior desafio intelectual da América Latina’. Embora mais decisiva que a própria problemática do desenvolvimento, é a luta pela libertação que abrange e polariza o verdadeiro desafio latino-americano, e do qual, o desenvolvimento é um aspecto particular. E não qualquer desenvolvimento, senão aquele que cada país latino-americano quer conforme ao seu modelo ou projeto nacional. Isto significa que o desenvolvimento, mais que como técnica de indução de mudanças sociais, se concebe como uma manifestação do movimento de libertação que emerge da situação de dependência e exploração que vivem nossos povos. (...) o problema do desenvolvimento se coloca com um novo caráter e de maneira global e totalizante; já não se trata de ‘passar’ de uma situação de subdesenvolvimento para outra de desenvolvimento, senão de ‘romper’ uma situação na qual existem posições de interesses contrapostos entre dominadores e

dominados. Em conseqüência, as transformações qualitativas tem prioridade sobre as mudanças quantitativas, e a superação da dependência e a ruptura com o sistema capitalista, aparecem como tarefas iniludíveis para alcançar o desenvolvimento” (Ander-Egg, 1974a: 77-78, tradução nossa).

Apresentamos a citação anterior não apenas por considerarmos que aponta uma

mudança a respeito da concepção de desenvolvimento proposta pelo autor em 1967,

mas por considerarmos – também – que introduz elementos para pensarmos os limites

das contribuições do autor no que diz respeito à possibilidade de uma mudança radical.

Uma chave fundamental para a apreensão desses limites vincula-se ao que

consideramos um esvaziamento de algumas categorias que permitiriam sustentar uma

crítica radical. Pode-se observar – e aprofundaremos essa discussão nas paginas

seguintes – na citação anterior, uma referência ao suposto novo caráter “global e

totalizante” da problemática do subdesenvolvimento, que poderíamos ler como um

esvaziamento da categoria de Totalidade.

Ander-Egg, se referindo ao debate em face do Serviço Social e a sua

“passagem” para o Trabalho Social, vai colocar que não foi a crise desenvolvimentista

que deu origem à necessidade de reformulação do Serviço Social. Ele afirma que o

desenvolvimentismo foi o impulso da reconceituação como um aspecto das suas

políticas modernizantes, mas diz o autor:

“(...) quando se teve consciência clara – e a realidade o mostrava – de que o desenvolvimentismo era uma via morta para o desenvolvimento e libertação de nossos povos, se deu o salto do Serviço Social reconceituado (ou em vias de reconceituação), para a aparição de um Trabalho Social latino-americano, que se insere na busca da libertação de nossos povos” (Ander-Egg, 1974: 67, tradução nossa).

Essas colocações do autor mostram um processo que daria conta da emergência

do Movimento de Reconceituação no interior do ideário desenvolvimentista –

caracterisitca que já foi analisada no capitulo anterior - e que teria conseguido – a partir

de posições mais “radicalizadas” - superar a proposta desenvolvimentista. Agora,

considera-se que resgatar a leitura que o autor faz daquele processo ajudará introduzir

uma reflexão sobre a crítica que ele faz – depois – ao “Marxismo dos não marxistas”.

Nesse sentido, o autor coloca que alguns setores afirmam que o fato de pensar na

possibilidade de uma concepção concientizadora-revolucionária da ação social é uma

utopia ou uma contradição. Isto é, o sistema não toleraria uma profissão que atenta

contra ele próprio e que foi criada para a correção de disfunções. Mas diz o autor:

“Na nossa opinião, é ingênuo pensar que haja possibilidades de uma profissão revolucionária; o que pode ter são profissionais revolucionários. Por outra parte, estamos muito longe de que essa seja a direção dominante no Serviço Social. Embora, o que os fatos mostram é que, na medida em que a situação social foi virando critica, a aqueles que promoviam determinados programas sociais aconteceu-lhes o que ao aprendiz de bruxo: têm criado forças e impulsado processos que hoje não podem controlar. Isto explica, ou melhor, ajuda para compreender a natureza da reconceituação colocada nos últimos anos. De outra forma, como poderia se explicar que o sistema capitalista tenha gerado profissionais do Serviço Social comprometidos com a libertação? Não se aplica aqui a predição de Marx acerca da incapacidade do capitalismo para controlar as forças que gera? Hoje, em 1974, isto não é uma aspiração de desejos; é a realidade de alguns grupos profissionais – geralmente os mais ativos e eficazes - que estão surgindo em todos os cantos da América Latina. O Serviço Social na América Latina, parece estar dando lugar ao Trabalho Social latino-americano; o que tinha de importado esta morrendo, enquanto nasce algo propriamente nosso” (Ander-Egg, 1974: 40-41, tradução nossa).

As afirmações do autor na citação anterior dão lugar a uma serie de

interrogações no que diz respeito a sua leitura e apreensão da teoria social de Marx e

que nas paginas seguintes aparecerá com clareza. Em primeiro lugar o autor confunde as

formulações de Marx em relação ao que se deve entender por tendência histórica, que é

pensado com uma base material, e o coloca – equivocadamente segundo a nossa leitura

– em termos de predição. Pensar em termos de predição significa colocar a categoria de

tendência histórica na ordem da especulação ideal. Isto é, tratar-se-ia de afirmações

surgidas na base de um raciocínio abstrato eliminando a sustentação material que é a

base dessa tendência e que desvinculada dela carece de qualquer sentido. Porém, como

apresentaremos nas paginas seguintes, esse tipo de leituras da obra marxiana parece ser

questionada pelo próprio Ander-Egg na sua obra de 1984. Em segundo lugar, quando

coloca a questão – em termos dessa suposta “predição” – acerca da “incapacidade do

capitalismo para controlar as forças que gera” consideramos que o autor confunde a

categoria profissional com a conformação do proletariado como classe social, nos

termos de Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista (Marx e Engels, 1998: 12

e ss.). Dessa forma, o Serviço Social é pensado em uma perspectiva que Marilda

Iamamoto denominou de messianismo profissional. Isto é, “(...) uma visão heróica do

Serviço Social que reforça unilateralmente a subjetividade dos sujeitos , a sua vontade

política sem confrontá-la com as possibilidades e limites da realidade social”

(Iamamoto, 1998:22). Colocado nesses termos, então, entendemos que se trata de uma

reflexão unilateral sobre a profissão no movimento de reprodução da sociedade, diz

Iamamoto nesse sentido:

“A reflexão teórica sobre o Serviço Social no movimento de reprodução da sociedade não se identifica com a defesa da tese unilateral que tende a acentuar, aprioristicamente, o caráter ‘conservador’ da profissão como esforço e apoio ao poder vigente. Não significa, ainda, assumir a tese oposta, amplamente divulgada no movimento de Reconceituação, que sustenta, a principio, a dimensão necessariamente ‘transformadora ou revolucionária’ da atividade profissional. Ambas as posições acentuam, apenas e de modo exclusivo, um pólo do movimento contraditório do concreto, sendo nesse sentido unilaterais” (Iamamoto, 2000: 74).

Após essa passagem pela obra de Ander-Egg de 1974 que, como já dissemos,

apresenta formulações aggiornadas a respeito da obra anterior pelas razões expostas,

vamos nos deter em uma terceira obra do autor – Achaques e manias do Serviço Social

reconceituado (1984) -.

3.3 A critica de Ander-Egg ao “Marxismo dos não Marxistas”.

Começamos este ponto – da mesma forma que os dois anteriores do presente

capítulo – chamando a atenção para o cenário ideo-político em que essa nova obra do

autor é publicada. Como fora analisado no capitulo I, trata-se de um momento histórico

marcado pela volta para a democracia após um processo ditatorial com as graves

conotações já estudadas e já enfrentando – essa é uma particularidade do processo

histórico argentino – uma abertura democrática vinculada à abertura neoliberal.

Nesse contexto é publicada uma nova obra de Ander-Egg. A particularidade

dessa publicação não é o conteúdo em si mesmo, que tinha sido publicado pela primeira

vez por volta dos inícios dos anos ’70 do século passado. O que chama a atenção nessa

publicação é uma entrevista feita por Diana Müller64 em Alicante, Espanha, em março

de 1983. Na apresentação a autora diz que se trata de uma “avaliação parcial do que o

autor denomina [se referindo a Ander-Egg] “o uso não marxista do marxismo”. A autora

coloca o fato da data da entrevista, no mês e ano em que se comemorava o centenário

da morte de Marx.

64 Não consta na publicação outra informação sobre a autora da entrevista.

Parece claro que a critica central de Ander-Egg ao Movimento de

Reconceituação na América Latina65 tem a ver com – segundo palavras do autor – “o

uso não marxista do marxismo”. Agora, considera-se necessário chamar a atenção para

os pontos centrais dessa critica que poderia se dizer que não consegue transcender

certos erros na leitura da obra de Marx. Nesse sentido, o autor enuncia três pontos para

fazer a sua critica na seguinte seqüência. Em primeiro lugar vai falar de um discurso

idealista com roupagem marxista, em segundo lugar de um sectarismo vanguardista e

finalmente de um manualismo de corte e confecção (Cf. Ander-Egg, 1984: 19 ess.,

tradução nossa).

Na critica feita no que diz respeito ao discurso idealista com roupagem

marxista, vai colocar o que ele compreende como um erro e que tem a ver com o uso da

retórica marxista “em lugar de aplicar o marxismo para analisar a realidade e orientar a

pratica” (Ibidem). O autor considera que essa “ilusão discursiva” preparou o fim do

movimento de Reconceituação. Considera, também, que – levando em conta, segundo

ele, que o Serviço Social é uma profissão destinada ao atendimento dos problemas das

pessoas – essa “infecundidade” intelectual é menos grave do que a “infecundidade” de

serviço, porque esta afeta a todos.

“Esta pretensão os levou a escrever questões de epistemologia, metodologia, lógica e uma série de problemas teóricos que, quem deseje informar-se e documentar-se sobre eles, é evidente que não recorrerá aos escritos de um trabalhador social. No entanto, as questões que lhes concernem, são tratadas lateralmente, ou se inserem em um discurso teórico que não contribui em nada à compreensão da realidade, nem ao melhoramento das praticas” (Ander-Egg, 1984: 20, tradução e grifos nossos).

65 A critica é feita no livro “Achaques e Manias do Serviço Social reconceituado” (Op. Cit.). A referência – como já se chamou a atenção – é sempre em termos de América Latina, o que faz difícil saber exatamente quem são os interlocutores do autor.

Até aqui o raciocínio do autor parece se fundar por um lado – e dar fundamento

para – a já muito conhecida consigna que diz que na pratica a teoria é outra. Por outro

lado, se encontra explicita nesta citação uma clara perspectiva no que diz respeito ao

debate sobre a especificidade profissional. Assim, segundo Montaño (1998: 147) o

“espaço” ou a “especificidade” na divisão da ciência e da técnica parece ser o espaço da

pratica.

Segundo coloca Ander-Egg, a sua critica se baseia no que ele entende que foi a

transformação da teoria marxista em uma doutrina dogmática, em “algo acabado que

pretende explicá-lo todo” (Ander-Egg, 1984: 21). Neste sentido vai colocar, como

tentativa de compreensão desse fato, a interlocução marxismo-igreja católica66,

argüindo que a “conversão” do catolicismo para o marxismo teria possibilitado a troca

de uma escolástica por outra. Continua o autor o seu raciocínio argumentando que esse

reducionismo do pensamento deriva no maniqueísmo e sectarismo. . Nesse sentido,

argumenta o autor, tudo o que não fosse “(...) ortodoxia marxista, é funcionalismo ou

idealismo” (idem: 23). Nessa lógica, Ander-Egg entende que o uso que esses

“reconceituadores” 67 fizeram do marxismo é um uso “manualista”.

“Trata-se, simplesmente, de utilizar textos marxistas, expressões e categorias marxistas, parafrasear e glosar escritos marxistas, tudo isto sem muita preocupação por ter referência empírica, salvo aquelas que filtro e que me servem para conferir o que afirmam os textos. (...) Obnubilado no seu discurso marxista – ou pretendidamente tal - não são capazes de perceber as contradições em que incorrem, além da sua desconexão com a

66 Essa interlocução exige um estudo particular que forma parte do nosso projeto intelectual, mas que os limites da presente dissertação não nos permitem um aprofundamento dessa questão. 67 Já se chamou a atenção para o fato da ausência de referencia explícita no que diz respeito a essas criticas, o que dificulta a compreensão de quem são os interlocutores de tal critica, atendendo à heterogeneidade do processo de reconceituação na América Latina.

realidade que está na base de tudo. Teoricamente reconhecem – é um principio básico do marxismo admitido por todas as tendências – que nenhuma formulação teórica é valida senão na medida em que é capaz de resistir à confrontação com a realidade. A validez de uma teoria se mede precisamente pela sua capacidade de nos orientar para interpretar a realidade e transformá-la” (1984: 25 e ss., tradução e grifos nossos).

Essa validez da teoria, que segundo a citação precedente estaria dada pela sua

capacidade de nos orientar para interpretar a realidade e transformá-la, parece

reproduzir o recurso positivista que tenta encaixar uma teoria na compreensão da

realidade ou vice-versa. Isto é, a validez de uma teoria não pode ser colocada em termos

de “resistência” em face da confrontação com a realidade e sim em termos da sua

capacidade de reproduzir no campo das idéias o movimento do real.

Neste sentido, é esclarecedora a recorrência às reflexões de Sanchez Vazquez

enquanto nos permite compreender o caráter relativo da oposição teoria-prática, a qual –

segundo o autor – deve se compreender mais como uma diferença do que como uma

oposição.

“(...) quando se formulam com justeza as relações entre teoria e prática, vemos que se trata mais de uma diferença do que de uma oposição. Na verdade, só se pode falar de oposição – e, sobretudo, de oposição absoluta – quando as relações entre teoria e prática são estabelecidas em uma base falsa, seja porque esta última tende a desligar-se da teoria, seja porque a teoria se nega a vincular-se conscientemente com a prática” (Sanchez Vasquez, 2007: 239-240).

A partir das contribuições de Sanchez Vázquez, podemos compreender a

perspectiva de Ander-Egg na lógica do pragmatismo, isto é, a elevação ao nível de

doutrina filosófica de um modo de conceber as relações teoria-prática que não

transcende o ponto de vista do senso comum.

“Seu praticismo manifesta-se, sobretudo, em sua concepção de verdade; do fato de nosso conhecimento estar vinculado a necessidades práticas, o pragmatismo deduz que o verdadeiro se reduz ao útil, com o que solapa a essência do conhecimento

como reprodução na consciência cognoscitiva de uma realidade, ainda que só possamos conhecer essa realidade – reproduzi-la idealmente – em nosso trato teórico ou prático com ela. É preciso advertir, por outro lado, que, fiel ao ponto de vista do senso comum, do ‘homem da rua’, o pragmatismo reduz o prático ao utilitário, com o qual acaba por disolver o teórico no útil” (Sanchez Vázquez, 2007: 241).

Dessa forma, fica claro que a pretendida validez de uma teoria a partir da sua

capacidade de orientar na interpretação da realidade para a sua transformação, é uma

clara concepção que coloca Ander-Egg na lógica do pragmatismo e do utilitarismo.

É necessário apontar para outro eixo significativo na pretendida crítica de

Ander-Egg a respeito do “marxismo dos não marxistas”. O autor apresenta uma série de

questões que dizem respeito ao “âmbito da metodologia no Trabalho Social” onde,

segundo ele, “a dialética produziu uma sedução especial” (1984: 32).

“Surpreendente simplificação: a dialética não é o método do Trabalho Social. Também não se pode falar – como se faz com freqüência – de que o método dialético é o método do Trabalho social... outros dizem, de maneira mais atenuada, ‘a dialética é o método para a análise e transformação da realidade social’, mas pensando que isto se faz a partir do trabalho Social (...) Uma leitura por correta e meditada que seja, não é per se garantia de compreensão de um método e menos ainda da sua aplicação” (Idem: 33, tradução e grifos nossos).

Mais uma vez nessa critica aparece a confusão na compressão do método, em

termos de método de aplicação. Essa interpretação pode se vincular às reflexões

anteriores à respeito da sua perspectiva pragmática e à sua posição utilitarista, o que é

coerente com uma perspectiva que pretende a instrumentalização do método. Parece

necessário para uma melhor compreensão resgatar algumas reflexões no que diz

respeito ao método dialético. Vejamos a contribuição que Jose Paulo Netto faz na sua

obra O que é Marxismo sobre o método:

“O seu procedimento consistia sempre em avançar do empírico (os ‘fatos’), apanhar as suas relações com outros conjuntos empíricos, investigar a sua gênese histórica e o seu desenvolvimento interno e reconstruir, no plano do pensamento todo este processo. O circuito investigativo, recorrendo compulsoriamente à abstração, retornava sempre ao seu ponto de partida – e, a cada retorno, compreendia-o de modo cada vez mais inclusivo e abrangente. Os fatos, a cada nova abordagem, se apresentam como produtos de relações históricas crescentemente complexas e mediatizadas – podendo ser contextualizados de modo concreto e inseridos no movimento maior que os engendra. É um método, portanto, que, em aproximações sucessivas ao real, agarra a história dos processos simultaneamente às suas particularidades internas. Um método que não se forja independentemente do objeto que se pesquisa – o método é uma relação necessária pela qual o sujeito que investiga pode reproduzir intelectualmente o processo do objeto investigado“ (Netto, 2006: 30-31).

Vejamos, agora o que significa essa reprodução intelectual do objeto

investigado. Neste sentido, Karel Kosik vai se referir ao método de ascensão do abstrato

ao concreto como método de pensamento, como elemento que atua nos conceitos, no

elemento da abstração, e continua o autor:

“A ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagem de um plano (sensível) para outro plano (racional); é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é negação da imediatidade, da evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abtrato ao concreto é um movimento para o qual todo inicio é abstrato e cuja dialética consiste na superação desta abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte ao todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. O processo do abstrato ao concreto como método materialista de conhecimento da realidade, é a dialética da totalidade concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e dimensões. O processo do pensamento não se limita a transformar o todo caótico das representações no todo transparente dos conceitos; no curso do processo o próprio

todo é concomitante delineado, determinado e compreendido” (Kosik, 2002: 36-37)68.

À luz das reflexões anteriores é possível identificar – recorrendo mais uma vez a

Netto – qual o núcleo do equívoco de Ander-Egg na sua forma de compreender a

questão do método. Diz Netto:

“(...) Da confusão entre método de exposição e método de investigação. Isto, evidentemente, é a típica pauta positivista, o formalismo é uma característica do positivismo (...) Supõe-se que o método é uma pauta determinada de procedimentos para conhecer alguma coisa – daí a idéia de ‘aplicar’ o método. Se o método é, na verdade, a relação constituinte, necessária e objetiva entre o investigador e o objeto investigado, é evidente que não posso ‘aplicar’ método do mesmo jeito que aplico injeção na veia (...) Confunde-se método como pauta de intervenção, ou seja, como estratégia de intervenção, como estratégia de ação. É evidente que as estratégias de ação são intercambiáveis. Elas são selecionáveis – eu posso escolher as estratégias de ação alternativas. Mas isso não é método. Algumas pessoas tendem a reduzir a questão dizendo: Bom, mas nós chamamos a isso metodologia de ação. Podem até chamar, mas não tem nada a ver com método. Isto é um conjunto de procedimentos prático-empíricos, prático-imediatos, implementados para atingir determinados resultados” (Netto, 1986: 56).

Então, evidenciado por essas reflexões e partindo de uma perspectiva que tem

sustentação no pragmatismo, posto que, se baseando em uma concepção de verdade na

lógica do utilitarismo, Ander-Egg apreende a questão do Método como pauta de

procedimento para conhecer e daí a sua compreensão em termos de método de

aplicação.

Consideramos que um outro equivoco de Ander-Egg, na sua compreensão do

que é a totalidade concreta nos termos de Marx, explicitado por Kosik, o levam a fazer

68 Embora o autor indique tratar-se de um movimento no pensamento do pensamento, entendemos que a sua referência tenta captar o movimento da realidade conforme Marx no item 3 da Introdução à Crítica da Economia Política.

afirmações no que diz respeito à dialética em termos de dialética interdisciplinar e

pensamento polinucleado (Cf. Ander-Egg, 1984: 56 e ss.). É necessária uma citação do

autor para demonstrar de que se trata a sua apreensão equivocada a que fazemos

referencia:

“Por uma parte o pensamento de Marx é dialético e ao mesmo tempo interdisciplinar (economia, filosofia, política, história, antropologia...) todas as perspectivas ou disciplinas se integram. Por outro lado a teoria de Marx, como o explica Morin, é ricamente polinucleada, (comporta como núcleos as idéias de dialética, materialismo, luta de classes, necessidade do socialismo, missão do proletariado). Algumas variantes marxistas só dão importância a um núcleo e acabam se convertendo em doutrinas” (Ander-Egg, 1984: 56)69

Partimos, então, de entender que o método na teoria social de Marx deve ser

compreendido não apenas como a relação necessária na reprodução do movimento da

realidade no nível do pensamento, senão também, a partir do principio de Totalidade.

Isto é, compreendendo a realidade nas suas leis e descobrindo a superficialidade e

causalidade dos fenômenos, as suas conexões internas. Isso é oposto ao empirismo que

considera as manifestações fenomênicas e causais e não chega à compreensão dos

processos do desenvolvimento do real (Cf. Kosik, 2002: 37).

Considera-se esclarecedora a contribuição de Carlos Nelson Coutinho que,

citando Lukács, oferece as seguintes afirmações para compreensão do princípio da

Totalidade:

“(...) é extremamente pertinente a célebre afirmação do jovem Lukács segundo a qual a distinção básica entre o marxismo e a ciência burguesa (na expressão dele) não é o predomínio de motivos econômicos na explicação do social, mas sim o principio da totalidade. Essa decisiva indicação metodológica,

69 Essas afirnações são feitas pelo autor na entrevista já mencionada em face da pergunta sobre o que é central no pensamento de Marx.

recolhida pelo marxismo da herança dialética de Hegel, significa a necessidade de conceber a sociedade como totalidade, isto é, como uma realidade complexa e articulada, formada por mediações, contradições e processos. Por isso, o método mais adequado para pensá-la é compreendê-la, em sua estrutura ontológica básica, é precisamente aquele que privilegia a totalidade. E essa totalidade, na trilha de Hegel, deve ser compreendida como uma totalidade concreta, ou, em outras palavras, não como um todo no qual as partes não sejam explicitadas e bem definidas, mas como uma totalidade constituída a partir da autonomia relativa de seus múltiplos momentos parciais (...) A totalidade constituída proposta pela dialética é constituída por diferentes níveis, sendo assim uma totalidade hierarquizada, com momentos que possuem um peso ontológico mais marcante do que outros”. (Coutinho, 1996: 92).

A partir das reflexões resgatadas até aqui podemos afirmar que a proposta de

compreensão de Ander-Egg em termos de “dialética interdisciplinar e polinucleada”

responde a um equivoco de leitura a respeito do qual já tínhamos chamado a atenção a

parir da substituição - feita pelo autor – da categoria de totalidade pela denominação de

“caráter global ou totalizante”. As seguintes afirmações de Netto permitem visualizar

com clareza a questão colocada.

“O traço distintivo desta teoria é que ela toma a sociedade (burguesa) como uma totalidade concreta: não como um conjunto de partes que se integram funcionalmente, mas como um sistema dinâmico e contraditório de relações articuladas que se implicam e explicam estruturalmente. Seu objetivo é reproduzir idealmente o movimento constitutivo da realidade (social), que se expressa sob formas econômicas, políticas e culturais, mas que extravasa todas elas” (Netto, In: Marx e Engels, 1998: XXIX).

A partir da leitura de Ander-Egg que vimos propondo, consideramos que outra

base equivocada na sustentação da sua critica em face do “Marxismo dos não

marxistas” estaria sustentada no que avaliamos como uma confusão entre “pratica

profissional” – como pratica imediata – e “pratica social” – como prática histórica –

(Montaño, 1998: 157 e ss.), concepção que tem vinculação com a concepção

pragmatista que expusemos nos parágrafos precedentes. Seguindo Montaño, se

confunde “teoria” com “abstração”, com “generalização” e com “sistematização”. Diz o

autor citado:

“Para Marx, o concreto é ‘a síntese de múltiplas determinações, depois, unidade da diversidade’ (Marx, 1977:218). O concreto é, portanto, o ‘todo’, o complexo, é o ponto de partida, mas também o resultado do processo de conhecimento (Idem: 218-219). E é precisamente essa afirmação, que incorretamente interpretada, é tomada como ‘fundamento marxiano’ do postulado da ‘prática como fonte de teoria’ e do processo ‘prática-teoria-pratica’: P-T-P (cf. Lima, 1986: 30). É que identificam o ‘concreto’ marxiano com a ‘pratica’” (Montaño, 1998: 159, tradução nossa).

Nesse sentido, Ander-Egg apresenta uma critica à perspectiva que entende a

pratica como fonte de teoria. Assim, ele formula a critica em termos de especulações

teóricas sobre a pratica como fonte de teoria, mas... sem pratica.

“Que a pratica seja fonte de teoria é uma questão de velha data. Mas o tema adquiriu grande significação no âmbito do Serviço Social latino-americano em inícios da década de ’70 com motivo da realização de alguns seminários internacionais que tratavam da questão. Deles tem participado algumas pessoas que nunca tem tido uma pratica de campo ou em terreno, ao ponto que alguém depois de escrever sobre a ‘pratica como fonte de teoria’, reconhece que ‘não existe uma pratica concreta’ que sustente a teorização que faz. Incrível, mas real” (Ander-Egg,1984: 38, tradução nossa).

Ander-Egg entende, adequadamente, que não é a pratica a fonte de teoria e sim a

reflexão teórica que fazemos sobre a pratica a partir de determinadas categorias teóricas

e que permitem elaborações teóricas.

Desta forma, parece claro que um dos pilares centrais da crítica feita por Ander-

Egg sustenta-se em uma suposta “ausência” de prática, o que mostra a perspectiva

praticista do autor. Diz Sanchez Vazquez a respeito dessa perspectiva:

“O senso comum é o ‘sentido da prática’. Como não há inadequação entre senso comum e prática, para a consciência simples, o critério que esta estabelece em sua leitura direta e imediata é inapelável. A consciência simples se vê a si mesma em oposição à teoria, já que a intromissão desta no processo prático lhe parece perturbadora. A prioridade absoluta corresponde à prática, e tanto mais corresponderá quanto menos impregnada estiver de ingredientes teóricos. Por isso, o ponto de vista do ‘senso comum’ é o praticismo; prática sem teoria, ou com um mínimo dela” (Sanchez Vazquez, 2007: 240).

Seguindo com o seu raciocínio, Ander-Egg reproduz no corpo do seu texto uma

citação de Levi-Strauss:

“Depois de Rosseau e de forma decisiva, Marx ensinou que a ciência não se edifica no plano dos acontecimentos, como tampouco a física se edifica a partir dos dados da sensibilidade: a finalidade é construir um modelo... para aplicá-lo depois à interpretação do que acontece empiricamente” (Idem: 39, tradução nossa).

Com essa citação o autor não só parece voltar para o equivoco de interpretação

já sinalizado, como também mostra o caráter eclético da sua produção. Vejamos a

seguinte reflexão de Montaño:

“Se, para os praticistas, prática é a pratica profissional, localizada especifica e singular, e se a teoria deve ter ‘nesta’ pratica o critério de verdade, então estaríamos pensando, necessariamente, em uma teoria como ‘saber instrumental’ (não como reprodução ideal do movimento da realidade) que deve ser ‘aplicado’ a esta prática. Na verdade ai radica o grave erro de interpretação, Marx pensa a prática histórico-social como um todo, não como uma ‘atividade’ singular – como interpretam os praticistas. (Montaño, 1998: 177, tradução nossa).

Na sua lógica, Ander-Egg afirma que “esses teóricos” do Serviço Social nas

especulações sobre a pratica produzem uma teoria absolutamente divorciada da

realidade. È necessário, para apreender o equivoco dessa interpretação, resgatar alguns

pontos que Montaño (Cf. 1998: 170 e ss.) formula no que diz respeito à relação teoria-

prática na perspectiva praticista. Segundo o autor citado, essa perspectiva exclui a

possibilidade de um conhecimento teórico e cientifico que não surja do sensível, do

vivido, da pratica. Nesse sentido, para ser fiel ao objeto, à realidade, se deve partir do

contato direto, sensível com o objeto. Por causa disso, qualquer racionalização da

prática, qualquer sistematização, qualquer diagnóstico, é suficiente para construir um

conhecimento teórico. E isso leva à desprofissionalização do Serviço Social. E

finalmente – sempre em termos de Montaño -, essa perspectiva não permitiria ou não

aceitaria a acumulação de conhecimento.

Agora voltemos para outra afirmação de Ander-Egg na sua critica ao Marxismo

dos não marxistas:

“A critica se limita quase exclusivamente a salientar o fato de que o Serviço Social tem sido produto do sistema capitalista para assegurar a manutenção dele. As vezes essa critica é tão simplista que parece que o Serviço Social é fruto de uma grande especulação dos capitalistas para criar primeiro, e depois aproveitar, um instrumento para a manutenção do sistema. Não digo que não seja utilizado, mas as classes dominantes tem outros instrumentos mais eficazes para dominar – ou tentar fazê-lo – às outras classes sociais. Minha critica centra-se no infantilismo desse raciocínio. Parece que imaginam a Kissinger e uma horda de cérebros do sistema, horríveis de aspecto e ferozes nos seus atos, tratando e analisando as formas de aproveitar o Serviço Social em favor do capitalismo e do imperialismo e contra o processo de libertação de nossos povos. Ignoram o fato generalizado, tanto nos paises ricos como nos paises do terceiro mundo, de que quando se produz a menor crise ou restrição econômica, o primeiro que recortam são os orçamentos dos serviços sociais. Se estes fossem tão importantes e eficazes para a domesticação do povo, nas situações de crise se acrescentariam os fundos para um melhor controle das classes submergidas” (Ander-Egg, 1984: 45)

Algumas afirmações de Iamamoto – na sua reflexão sobre o Serviço Social na

reprodução do controle e da ideologia dominante - vão nos permitir refletir sobre as

colocações de Ander-Egg na citação anterior:

“Essa dimensão privilegiada na análise da inserção do Serviço Social no processo de reprodução das relações sociais deve ser apreendida dentro dos reais limites em que se encontra circunscrita a pratica profissional. Não se trata de superestimar a importância ou a força dessa profissão como um dos mecanismos mobilizados por aqueles setores sociais que a legitimam e a demandam, dentro de uma estratégia de reforço do controle social, e da difusão da ideologia dominante. O Serviço Social é considerado , portanto, como um instrumento auxiliar e subsidiário, ao lado de outros de maior eficácia política e mais ampla abrangência, na concretização desses requisitos básicos para a continuidade da organização social vigente. Isso, no entanto, não minimiza o esforço de inserir a reflexão sobre a profissão na direção apontada, procurando apreender as implicações históricas desse tipo de intervenção na realidade, inscrita dentro de um projeto de classe” (Iamamoto, 2000: 104-105).

A leitura dessa última critica de Ander-Egg à luz das contribuições de Iamamoto

expressa com clareza o caráter conservador daquela critica. Essas afirmações

condensam uma perspectiva que tende a despolitizar e des-historicizar a profissão,

desconhecendo o seu papel social na produção e reprodução das relações sociais. Parece

suficiente para pôr em questão essas afirmações voltar às páginas precedentes e

observar os papeis diferenciais assumidos pela profissão nos tempos da Aliança para o

Progresso e depois nos processos ditatoriais espalhados por quase todos os paises da

nossa América Latina. E claro que nessa análise, o Serviço Social como instrumento do

Capital, joga papéis diferentes que devem ser historicamente situados. As reflexões de

Ander-Egg mostram uma ausência que permite entender melhor os fundamentos da sua

perspectiva, trata-se da ausência – ao longo de toda a sua suposta crítica – da

perspectiva de classe, o projeto de classe não conforma o universo das preocupações do

autor, o que faz a diferença no momento de compreender a realidade e pensar propostas

para a sua transformação.

Resgatemos a seguinte afirmação de Faleiros no que diz respeito à posição de

Ander-Egg em face da análise de diferentes perspectivas teóricas a propósito da

reconceituação.

“Ezequiel Ander-Egg (1984) reconhece o caráter marxista da Reconceituação, embora o satiriza, o caracteriza como rígido, incoerente, desvinculado de prática conseqüentemente de teorismo e verbo, cheio de ‘achaques e manias’. Assim ele acaba por decretar o final do movimento (...) voltando a propor o esquema do planejamento como guia metodológico da profissão no qual, pelas suas publicações (agora em obras completas (sic!)) nunca deixou de incluir o seu texto ‘Achaques e Manias’, o qual é mais um disparate do que uma tese científica” (Faleiros, 1987: 53-54).

Consideramos que esse “caráter marxista” do Processo de Reconceituação

reconhecido por Ander-Egg – segundo a análise de Faleiros – deve ser colocado entre

signos de interrogação.

Resgatemos as afirmações de Otavio Ianni a propósito da construção das

categorias.

“A construção da categoria é, a meu ver, um desfecho, é a síntese da proposta de Marx, isto é como se explica cientificamente um acontecimento, como se constrói a explicação. Na medida em que a explicação se sintetiza na categoria que poderíamos traduzir, em ‘conceito’, numa lei, então a construção da categoria é por assim dizer, o núcleo, o desfecho da reflexão dialética. Explicar dialeticamente é construir a categoria ou as categorias que resultam da reflexão sobre o acontecimento que esta sendo pesquisado” (Ianni, 1986: 1).

Essa contribuição de Ianni nos permite pensar e entender alguns aspectos da

leitura das produções de Ander-Egg que propomos nos presente capítulo. Isto é, para

além de diferenças teóricas ou de interpretação consideramos que a compreensão da

forma que assume a construção da categoria e da sua função para a ciência é

fundamental para apreender o que consideramos que é uma leitura enviesada das

contribuições marxistas segundo a ótica de Ander-Egg. Dessa forma, nas suas

produções aprecem referências a categorias tais como Revolução e alienação, que

segundo o autor dariam conta por si próprias de uma tentativa de captação da teoria

social de Marx. Na verdade, Ianni nos ajuda a pensar que as categorias não constituem

propriedade de uma teoria social, pelo contrário são construções que contribuem na

teoria social para a reprodução – a partir do método – no nível do pensamento do

movimento da realidade. A análise da obra de Ander-Egg mostra, neste sentido, uma

recorrência à categoria e uma tentativa de encaixá-la na realidade para, a partir daí,

descrever o que acontece de fato e que com a utilização da categoria seria possível

conferir. Não existem mediações70 para re-pensar essa categoria de forma que permita

70 É necessário salientar – embora já foi feita uma reflexão neste sentido no inicio do capitulo II - que partimos de compreender a mediação entanto categoria ontológica nos termos da contribuição de Marx, traduzida por Reinaldo Pontes. Diz o autor: “É assim, como resultado da concepção trazida por Marx, que a mediação vai assumir um sentido historicamente concreto, ultrapassando tanto a ‘acidentalidade’ quanto o ‘idealismo’. As mediações são as expressões históricas das relações que o homem edificou com a natureza e conseqüentemente das relações sociais daí decorrentes, nas varias formações sócio-humanas que a história registrou. Assim, as mediações criadas historicamente na complexa relação homem-natureza são indicadores seguros e fecundos, do ponto de vista histórico-social, porque efetivamente constituem-se na expressão concreta do envolver do processo de enriquecimento humano, na sua dinâmica de objetivar-se no mundo e incorporar tais objetivações; na sua saga de buscar mediações cada vez menos ‘degradadas e bárbaras’ e cada vez mais humano-igualitárias, tanto no plano do ser social quanto no plano do controle da natureza. A edificação de mediações cada vez mais distantes da degradação e da barbárie necessariamente passa pela mediação central da relação homem-natureza/homem-sociedade, que é a mediação do trabalho. Ou seja, a construção de mediações entre as varias instâncias do existir humano que conduzissem estas relações para o progresso econômico-social-cultural-espiritual da espécie, com a plena superação da alienação, da exploração etc. Desta forma, visualizando a mediação como constitutiva das relações sociais historicamente construídas, o seu sentido ontológico nos parece perfeitamente explícito. A seguinte afirmação de Lukács bem sintetiza a dimensão ontológica da categoria de mediação: ‘Não pode existir nem na natureza, nem na sociedade nenhum objeto que neste sentido [...] não seja mediato, não seja resultado de mediações. Deste ponto de vista a mediação é uma categoria objetiva, ontológica, que tem que estar presente em qualquer realidade, independente do sujeito (1979:90)” (Pontes, 1997: 78-79).

traduzir o movimento da realidade, trata-se apenas, de uma leitura da realidade que não

consegue transcender a aparência fenomênica por razão da forma em que a categoria é

apreendida e instrumentalizada.

“Neste sentido, a ontologia marxiana volta-se primordialmente para os ‘processos de produção e reprodução da vida humana’, sendo que as representações que surgem na mente humana, são reflexos do real captados como representações na consciência. Não possuem estas uma existência autônoma em si mesmas. Sobre este tema Lukács diz que: ‘as categorias [...] não são formas lógicas primárias que de algum modo se ‘apliquem’ à realidade; mas sim os reflexos de situações objetivas na natureza e na sociedade’ (1978: 75, grifos nossos)” (Pontes, 1997: 59).

Desse modo, entendemos que nas análises de André-Egg as categorias são

esvaziadas do seu sentido e significado histórico da mesma forma que o próprio autor,

depois, critica o que ele entende que foi o “Marxismo dos não marxistas” que teria

“ferido de morte” o Movimento de Reconceituação latino-americano.

Consuelo Quiroga, em uma análise orientada ao estudo da invasão positivista no

marxismo, a partir da análise do ensino da Metodologia no Serviço Social no Brasil, faz

as seguintes afirmações que oferecem uma chave para compreender alguns dos

reducionismos mais freqüentes e que aparecem – como temos mostrado – nas produções

nas quais Ander-Egg recorre ao marxismo ou critica-o.

“Assimilam-se e reproduzem-se, acriticamente, leituras que apresentam, entre outros pontos discutíveis: um Marx que agiganta a determinação do fator econômico como elemento único, gerador do desenvolvimento da sociedade; um Marx que supervaloriza o papel das classes, de sua luta, do significado do sujeito construindo sua história, desvinculado da base material que o sustenta; um Marx que é metodológico na própria acepção positivista, ou seja, que se reduz ao método; um Marx atrofiado à sua dimensão de cientista social ‘pesquisador’ da sociedade, desligado de sua convicção da necessidade de transformação dela” (Quiroga, 1991: 94).

Consideramos que a citação anterior de Quiroga condensa e sintetiza a crítica

feita até aqui à obra de Ander-Egg pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, é claro

que na leitura do autor a teoria social de Marx não é apreendida na complexidade do

método histórico-dialético, da teoria do valor trabalho e da perspectiva Revolucionária.

Em diferentes pontos das reflexões de Ander-Egg encontram-se distintas referências no

que diz respeito a essas dimensões, mas nos termos da supervalorização de uma dessas

determinações. O final da citação de Quiroga permite voltar para a reflexão de Ander-

Egg apresentada em paginas anteriores sobre o caráter – segundo a sua leitura –

“interdisciplinar e polinucleado” da obra marxiana.

Esse ponto da critica a Ander-Egg é central enquanto vai nos permitir

compreender os limites das suas propostas teóricas. Isto é, toda referência a um

profissional Conscientizador- revolucionário que não consiga se inserir em uma critica

radical da sociedade burguesa, sendo necessário para isso se debruçar sobre a Crítica da

economia política de Marx, sobre a teoria do valor trabalho, esvazia as possibilidades

de transformação e repõe uma alternativa conservadora. A ausência dessa crítica radical

faz com que o moderno se sobreponha ao tradicional, mas, sem transcender o caráter

conservador. Isto significa que a ausência dessa crítica apenas consegue transitar um

processo de aggiornamento, como tentamos mostrar, no qual o profissional abandona o

seu caráter de agente de mudança para se converter em concientizador. Mais ainda,

essa ausência supõe – como já dissemos – o fato de deixar de fora a concepção de

classe, o que significa, portanto, fazer uma análise que desconhece a sua inscrição em

um projeto de classe. Daí que podemos identificar outro grande equivoco na perspectiva

apresentada por Ander-Eggg, que dizer, pensar uma análise – ou neste caso uma ação

profissional – que se coloque como objetivo a transformação social, sem o eixo posto na

centralidade de um projeto de classe, converte-se em um formalismo ou no perigo que

significa supor que através da “concientização” dos sujeitos, da mudança na forma em

que eles explicam e compreendem o mundo, produzir-se-ia uma mudança real.

Nesta lógica de análise, é interessante observar que em outro texto de Ander-

Egg71, no qual faz uma análise do Processo de Reconceituação no subcontinente,

desenvolve – entre outros eixos – a questão vinculada à diversidade de enfoques em

face desse processo. Assim vai formular sete correntes no interior da Reconceituação e

vai classificá-las segundo o eixo onde se coloca a ênfase. Dessa forma vai identificar

uma corrente com ênfase na dimensão cientifica, outra com ênfase no tecnológico-

metodológico, outra corrente com ênfase no ideológico-político, uma quarta corrente

com ênfase na constituição de uma nova ciência (ciência da vida cotidiana), que

será o novo Serviço Social; outra corrente com ênfase na profissionalização; outra que

enfatiza prática; e uma ultima corrente com a ênfase colocada na vida: a renovação

como desafio existencial (Cf. Ander-Egg, 1971: 13, tradução nossa). O autor se coloca

explicitamente no interior da última perspectiva enunciada, razão pela qual vamos nos

deter no significado dessa corrente segundo a sua análise. Essa posição que já é

colocada pelo autor na obra “Servicio Social para una nueva época” (1967), vincula-se

a uma maneira de “viver a profissão”, vejamos isto em termos do próprio autor.

“Nossa proposta é muito pouco intelectual, é antes de tudo existencial, vital. Nossa concepção supõe uma maneira de viver a profissão, um estilo de vida; tudo isso, sem menosprezo algum pelo estritamente cientifico e metodológico e as suas questões conexas (...) se verdadeiramente temos optado por atuar no que diz respeito ao profundo abismo existente entre o que ainda hoje é o Serviço Social e a realidade oprimida, devemos nos enfrentar com o desafio vital que a superação desse antagonismo supõe intimamente em cada um de nós: quebrar a dicotomia Trabalhador Social-Povo, vivendo fundamente a necessidade de

71 Trata-se de: La problemática de la Reconceptualización del Servicio Social Latinoamericano, a comienzos de la década del ’70.

um desclassamento (Sic) existencial. A partir disso – como o básico e o essencial – se coloca todo o demais: filosofia e ideologia do Serviço Social, elaboração metodológica e elaboração da teoria do Serviço Social, papel do trabalhador social e o Serviço Social como profissão” (Ander-Egg, 1971: 20-21, tradução e grifos nossos).

A citação precedente nos chama à reflexão por varias razões. Em primeiro lugar,

entendemos que desconhece a condição de assalariamento – o fato da venda da sua

força de trabalho - do Assistente Social, deixando por fora do debate a sua inserção na

divisão social e técnica do trabalho. Essa perspectiva poderia equiparar a profissão de

Serviço Social com outras profissões de caráter liberal. Mas a partir da citação anterior

consideramos que essa exigência de “desclassamento” aproxima as reflexões do autor

sobre a profissão a uma perspectiva baseada no voluntarismo, ao que voltaremos nas

paginas seguintes. Vinculado a isso, consideramos que essa posição repõe a perspectiva

conservadora que abordamos na análise das contribuições de Sela Sierra - no capítulo II

da presente dissertação – enquanto apresenta a profissão em termos de vocação; isto é o

que – no nosso entender – mostra o fato de defini-la a partir de uma “opção existencial e

de vida”. Associada a essa posição se deriva uma outra questão que diz respeito à forma

na qual o autor entende o conceito de classe, ou, como já dissemos antes o problema da

ausência de uma análise ou compreensão desse conceito. Isto é, a proposta do autor em

relação à necessidade de um “desclassamento” estaria indicando uma concepção de

classe que deve ser questionada. Colocar a compreensão do conceito de classe nesses

termos significa esvaziá-lo no seu caráter marxista, significa entendê-lo como atributo

pessoal do qual individualmente o sujeito pode se despojar. Considera-se que o fato – já

questionado - de deixar fora a condição de assalariamento do Assistente Social faz com

que o autor coloque uma dicotomia entre o Serviço Social e o Povo que parece tentar

resolver a partir dessa proposta de “desclassamento”.

“Sinteticamente: o trânsito de uma classe em si à condição de classe para si reclama tanto a consciência do que esta em jogo nos confrontos quanto a autoconsciência da classe que se dispõe à luta. É da elaboração e explicitação desta autoconsciência, desta consciente perspectiva de classe, que o Manifesto se fez responsável. Esta perspectiva de classe foi, essencialmente, o dado novo posto teoricamente na concreção histórico-social pela atividade de Marx e Engels” (Netto, In: Marx e Engels, 1998: XXXVII).

Se com essa proposta de “desclassamento” Ander-Egg faz referencia a um

“compromisso existencial e vital” que se traduz na exigência de “renuncia” em face de

uma condição de classe, é evidente que se trata mais uma vez de uma leitura enviesada

que – como já foi dito – esvazia a categoria do significado histórico-social que a teoria

social de Marx lhe outorga, aparecendo novamente uma posição que é coincidente com

a pretendida crítica que Ander-Egg diz sustentar.

Continuando com a nossa análise, encontramos que em outra das obras de

Ander-Egg (1986) é proposta uma análise no que diz respeito à ideologia e à política na

esfera do Serviço Social. O autor coloca a emergência da questão ídeo-política na

profissão na década de ’60 do século passado no contexto do processo reconceituador.

“Estes textos foram elaborados no interior de um debate nos finais da década de ’60 e nos inícios dos anos ’70. Simples ‘material de combate’ que contém as reflexões que se fazia naquele tempo, tendo ‘em frente’ (não enfrentados) uma maioria de trabalhadores sociais que entendiam que nem a ideologia, nem a política tinham nada a ver com o Trabalho Social. Essa mesma posição existia, em termos gerais, dentro do campo das ciências sociais, caracterizadas pela importação a-crítica de modelos funcionalistas e de posteriores elaborações do modelo desenvolvimentista... nem a ideologia, nem a política tinham nada a ver – pelo menos isso se pensava – com as Ciências Sociais. A nossa discussão e a nossa preocupação era para demonstrar os mecanismos de encobrimento e domesticação clandestina que leva essa pretendida a-ideologização e a-politicidade do trabalho Social. Preocupação que tinha no interior do meu próprio campo profissional (a Sociologia e a ciência política)” (Ander-Egg, 1986: 9, tradução nossa).

O autor chama a atenção para a centralidade do Chile nesse processo, para o fato

de que o processo de descolonização cultural contribuiu na colocação e compreensão

dos problemas de tipo ideológico e, finalmente, salienta a influência do pensamento

althusseriano, datando esse processo nos anos de 1968-1969 (Cf. Idem: 31).

Na análise da influência althusseriana e da sua discípula chilena Marta

Harnecker72, Ander-Egg enuncia uma série de problemas vinculados a essa leitura que

são apresentados também na sua critica feita em Achaques e manias do Serviço Social

reconceituado. Embora seja indiscutível o fato de que essa influência (a de Althusser e

a sua divulgação por Harnecker) foi responsável por uma leitura enviesada da obra

marxiana, consideramos que a critica feita por Ander-Egg sustenta uma posição que

reproduz a lógica apresentada no percurso do presente capítulo. Vejamos a seguinte

critica de Ander-Egg.

“A maioria dos reconceituadores do Serviço Social eram professores de faculdades e escolas, e geralmente não tinham quase nenhuma experiência de campo; em face dessa situação, a idéia de ‘que não tem ciência possível sem a existência de umas práticas específicas, distintas das obras práticas: a prática científica ou teórica’, foi uma justificativa ‘cientifica’ para fazer formulações sem conexão com a realidade. Pior ainda, ficavam tranqüilos achando ter feito importantes contribuições à profissão” (Idem:39, tradução nossa).

Poder-se-ia dizer que se a crítica em face da proposta de Althusser se vincula a

uma confusão entre prática e prática cientifica ou teórica, a critica de Ander-Egg

reproduz um erro – como já mostramos em paginas anteriores – na identificação entre

prática profissional e prática social. Isto é, outorga fundamentos para sustentar uma

72 Ver Harnecker, M. (1971).

posição praticista73. Mais ainda, Ander- Egg continua reproduzindo uma perspectiva

vulgarizada em face do que ele entende que é a ideologia na tradição marxista,

vulgarização estruturalista que evidencia-se nas seguintes formulações.

“Por outra parte – segundo o marxismo – as ideologias pertencem ao nível superestrutural, baseado na infra-estrutura econômica. Marx expôs isso da seguinte maneira: ‘sobre as diferentes formas de propriedade sobre as condições de existência social se levanta toda uma superestrutura de impressões, de ilusões, de formas de pensamento e de condições filosóficas particulares. A classe como entidade total as cria, as forma partindo da base dessas condições materiais e das relações sociais correspondentes. O individuo que as recebe por tradição ou por educação pode chegar a imaginar-se que constituem as verdadeiras razões determinantes e o ponto de partida da sua atividade’ (...) Evidentemente, em Marx, a ideologia se concebe fundamentalmente como ‘falsa consciência’ e como reflexo das relações sociais que se estabelecem sobre a base de determinadas relações de produção. A reciprocidade dialética das determinações de consciência e as condições de existência, parece ser um ponto pouco discutível. Porém, o que sim parece discutível é que o ideológico se reduza apenas a falsa consciência e que se trate de um simples fenômeno ‘reflexo’ determinado por umas relações de produção determinadas” (Ander-Egg, 1986: 44, tradução nossa)

Porque dissemos, então, antes da apresentação da citação anterior que se trata de

uma vulgarização de caráter estruturalista? Porque se considera que essa leitura que

coloca como contribuição da teoria social de Marx a questão da divisão entre uma

Superestrutura que condensaria a dimensão ideológica e de produção política, uma

Estrutura que seria o espaço das relações de classe e uma Infra-estrutura que

responderia à esfera econômica, é uma leitura que se insere na lógica do marxismo

estruturalista francês próprio da década de 1960, vinculado à vulgata soviética. Significa

estatizar a apreensão da realidade, esvaziando-a do seu caráter dialético que lhe é

constitutivo e colocando a centralidade na economia quando essa centralidade na teoria

73 Nos termos de Montaño (1998).

social marxiana esta posta na Produção, e não apenas na produção de coisas, mas na

produção de relações entre sujeitos e entre classes, isto é, na produção e reprodução de

relações sociais.

No final da citação que apresentamos, Ander-Egg questiona uma suposta

“redução” [da ideologia] apenas a falsa consciência, a simples fenômeno reflexo

determinado por relações sociais específicas de produção. Considera-se que esse

questionamento apresenta vários problemas. Em primeiro lugar, e centralmente, essa

menção a “fenômeno reflexo determinado por umas relações de produção

determinadas”, é feita – como já dissemos antes – sem a menor referência a categorias

que são centrais para fazer uma correta compreensão da teoria social de Marx. Isto é,

falar em “umas relações de produção determinadas” sem aprofundar a categoria

trabalho - partindo do seu caráter ontológico -, sem referência à exploração – que no

modo de produção capitalista lhe é constitutiva -, sem compreender o fetiche da

mercadoria, que é fundamental para entender o processo de trabalho nessa lógica, leva

necessariamente, a uma leitura impertinente da teoria social marxista. Por fim, a

ausência dessas categorias na análise da ideologia feita por Ander-Egg coloca a questão

da ideologia como um aspecto da consciência individual e autonomizada, como aspecto

subjetivo individual, deixando por fora – dessa forma – o seu caráter social, articulado a

um determinado projeto de classe.

No final dos capítulos que Ander-Egg – na obra que estamos analisando – dedica

ao estudo do problema da ideologia, chama a atenção para a critica de uma perspectiva

que segundo ele utiliza a ideologia como resposta mágica. Vincula essa posição a

trabalhadores sociais dedicados à docência sem pratica de campo institucionais e que

não teriam demonstrado “capacidades para fazer coisas, isto é, não são muito

competentes nas tarefas especificas da profissão (...) quando um trabalhador social sabe

fazer coisas: as faz; quando não sabe: fala de ideologia” (Ander-Egg, 1986: 50, tradução

e grifos nossos).

Redunda salientar – mais uma vez – que essa “crítica” repõe a falsa dicotomia -

já abordada – entre teoria e pratica como também repõe um debate sobre a

especificidade profissional, que não aprofundaremos mas que entendemos nos termos

de Montaño (1998), isto é, como esvaziamento de um debate sobre a legitimidade

profissional e o seu papel social. È clara, na citação anterior, a centralidade que o autor

outorga à questão do fazer, consideramos que essa posição representa a sua perspectiva

vinculada ao pragmatismo a qual fizemos referência nas paginas anteriores, expressando

um explicito desprezo pela teoria, ou, pelo menos, por qualquer debate teórico que não

seja instrumentalizável na imediaticidade da ação.

Tentemos visualizar como é que essa concepção equivocada de ideologia se

traduz na análise que - no mesmo livro - Ander-Egg faz sobre a questão da política e,

como ele entende o que foi o processo de politização do trabalho Social que - como já

afirmamos – ele situa historicamente no Processo de Reconceituação. A sua análise

apresenta a Indiferença do Serviço Social em face da política como caráter constitutivo

da profissão até os anos ’60 do século passado mostrando, desse modo, a importância do

Processo de Reconceituação. Nesse sentido, esse Processo teria denunciado o fenômeno

de despolitização que era próprio do tecnocratismo asséptico e do cientificismo no

interior do Serviço Social Tradicional e que se correspondia a um movimento mais

amplo que incluía a sociedade e as suas instituições. Após algumas contribuições que

permitem – para o autor – compreender a a-politicidade como ignorância,

irresponsabilidade ou cumplicidade, apresenta-se a irrupção do político da seguinte

forma.

“Foi necessária uma geração crítica de trabalhadores sociais e de estudantes, capaz de perceber com agudeza o drama e os problemas de América Latina, e capaz de compreender a desconexão que a profissão tinha do seu mundo circundante (...) para que surgisse a problemática da politização do Trabalho Social” (Ander-Egg, 1986: 69, tradução nossa).

Agora consideramos relevante trazer mais uma citação do autor em face do que

ele denominou de politização critica do Serviço Social porque consideramos que nessas

afirmações radica mais um elemento para sustentar a critica que estamos apresentando

no presente capítulo.

“Quando dizemos politização crítica, não estamos afirmando uma politização com signo progressista ou de esquerda. Senão simplesmente ser conscientes dos interesses políticos aos que servimos. Mas ainda, tem que se admitir o pluralismo no interior da politização profissional. Digo isto, ao tempo que devo confessar que me resulta incompreensível um trabalhador social de direita. Não posso compreender como uma pessoa que esta em contato com os problemas sociais, sirva aos interesses dos exploradores... mas existem” (Idem: 70, tradução nossa).

Considera-se que as afirmações anteriores remetem a uma concepção de política,

vinculada a uma forma particular de compreender a ideologia, que se apresentam

descoladas de uma forma de compreender a teoria social desde uma perspectiva

totalizante que permita compreender dialeticamente a questão política, a questão

ideológica e a perspectiva de classe com uma base material que, transcendendo uma

compreensão fenomênica, permita captar o movimento da realidade. Isto é, a citação

anterior repõe vários dos problemas que já identificamos, na critica de Ander-Egg em

face do “marxismo dos não marxistas”. Expressar surpresa frente à presença de

profissionais que portam uma “ideologia de direita” é produto da já mencionada

ausência de reflexão sobre a categoria de classe e os processos da sua constituição. É

produto, também, de uma análise que tem sustentação em uma perspectiva voluntarista

da profissão. Perspectiva que se expressa, que se evidencia na idéia de que o

profissional de Serviço Social “deve” portar uma “sensibilidade” particular em face dos

problemas sociais, de forma universal e desarticulada de qualquer projeto societário

baseado em uma perspectiva de classe. Enfim, repõe a perspectiva messiânica - nos

termos de Iamamoto - abordada em paginas anteriores, a partir do que se entende como

uma identificação entre militância política e prática profissional.

Consideramos pertinente encerrar o presente capítulo com uma ultima reflexão

de Ander-Egg que vai nos permitir colocar algumas interrogações em face dos limites

da sua proposta teórica.

“Em todos os paises existe inquietação por reformular e repensar o Serviço Social. Essas tentativas de Reconceituação da profissão, ainda não tem achado o caminho adequado. A renovação costuma se apresentar sob três formas desvirtuadas: ‘intelectualismo’, ‘ ativismo’ e ‘infantilismo’. O ‘intelectualismo’ está dado naqueles que tentam renovar o Serviço Social; mas que, presos de formulações teóricas e das inacabáveis discussões sobre o ‘dever ser’ do Serviço Social, não conseguem chegar na ação. O ‘ativismo’ é a posição assumida por aqueles que acreditam que a renovação se consegue fazendo coisas novas, e muitas coisas, sem se perguntar claramente para que fazê-las. Por ultimo, o ‘infantilismo’, manifestado em alguns movimentos estudantis revolucionários que tem promovido a renovação, mas querem converter as escolas de Serviço Social numa espécie de campo de adestramento guerrilheiro” (Ander-Egg, 1970: 11, tradução nossa).

Considera-se que essa crítica – embora as preocupações do autor apresentem

uma base material - reproduz mais uma vez uma leitura fragmentada da questão teórica,

da questão prática e da questão política. Isto é, assim apresentado aparecem como

segmentos estanques e não se visualiza na crítica de Ander-Egg tentativa nenhuma de

captar a dialética constitutiva dessas dimensões o que se converte em um limite real

para transcender a reposição constante do conservadorismo profissional. Isto é, se a

preocupação do autor esta colocada no caráter conservador e conformista do Serviço

Social, em uma sociedade que – segundo ele - reclamava uma revolução para

transcender o subdesenvolvimento, em uma critica à neutralidade e assepsia (Cf. Ander-

Egg, s/d: 6), as leituras apresentadas até aqui mostram o resultado contrário. Nesse

texto Ander-Egg faz a seguinte afirmação,

“O Serviço Social tem no processo de desenvolvimento uma função essencialmente conscientizadora, isto é, promotora da tomada de consciência do valor e dignidade pessoal, e do direito que tem todo homem de libertar-se e se sentir integrado e participante dentro da sociedade global (...) O Serviço Social tem uma função conscientizadora e dinamizadora para promover e orientar as mudanças estruturais da nossa sociedade” (Idem: 9-10, tradução nossa, grifos do autor).

Porque afirmamos que as reflexões de Ander-Egg estão longe de uma pretendida

perspectiva revolucionária? Porque para além de toda a fundamentação nesse sentido,

até aqui apresentada, essa suposta função do Serviço Social vinculada a um processo

conscientizador e dinamizador não faz mais do que reproduzir uma perspectiva que

propõe a compreensão das representações como produto da consciência autonomizada,

de forma que a partir desse processo de conscientização seria possível – em uma

perspectiva com um forte componente idealista - mudar a explicação do mundo o que se

traduziria imediatamente em mudança material!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Encerrar a presente dissertação de mestrado, longe de nos permitir a definição de

conclusões acabadas e absolutas, impõe-nos algumas considerações que são produto dos

avanços da pesquisa e gera – a partir de compreender o conhecimento como provisório

em um processo de aproximações sucessivas, historicamente datadas – novos

questionamentos, assentando as bases de futuras pesquisas que constituem o sustento de

nosso projeto intelectual.

Iniciamos a nossa exposição explicitando a premissa que promoveu as presentes

reflexões e que considerava uma suposta primeira aproximação entre o Serviço Social

argentino e a teoria social de Marx a partir do desenvolvimento do que se denominou

Processo de Reconceituação latino-americano. Consideramos que nesta instância

estamos em condições de fazer algumas considerações a respeito dessa formulação.

Netto (2005: 76-77) propõe quatro pontos centrais que tem a ver com as

conquistas do Movimento reconceituador na América Latina:

• Articulação de uma nova concepção da unidade latino-americana.

• A explicitação da dimensão política da ação profissional.

• A inauguração do pluralismo profissional.

• A interlocução crítica com as ciências sociais.

É justamente essa interlocução crítica que vai permitir ao Serviço social se

afastar daquela posição passiva e de receptor acrítico da produção das ciências sociais,

permitindo uma interlocução com essa produção e nesse marco com a tradição marxista.

Assim, segundo as afirmações do autor “A principal conquista da Reconceituação,

porém, parece localizar-se num plano preciso: o da recusa do profissional de Serviço

Social a situar-se como um agente técnico puramente executivo (quase sempre, um

executor terminal de políticas sociais)”. (Idem: 77).

Embora essa premissa seja representativa, em termos gerais, de uma tendência

no interior do heterogêneo processo de reconceituação latino-americano, a

particularidade do caso argentino reconstruída no percurso desta dissertação mostra um

processo onde a aproximação da profissão de Serviço Social com essa teoria social se

desenvolveu para além das fronteiras daquele país. Mais ainda, a análise feita no

capítulo III a propósito da critica de Ander-Egg em face do suposto “marxismo dos não

marxistas” constitui uma alternativa para minar ou desprezar as possibilidades – mesmo

incipientes naquele momento histórico – desse diálogo. A critica feita em face das

reflexões desse autor são pensadas a partir de compreender que essa produção é

representativa de uma tendência, de uma perspectiva teórico-metodologica no interior

do Serviço Social. Isto é, essa crítica é relevante enquanto se trata de uma crítica á

perspectiva que a produção do autor sustenta.

Estas reflexões não significam, de nenhuma forma, o desprezo do Processo de

Reconceituação argentino nem o desconhecimento das suas contribuições na crítica ao

serviço Social Tradicional. Significa uma tentativa de captar – a partir das

particularidades históricas – os avanços e limites desse processo na realidade desse país.

Isto é, reconhecer a importante contribuição a propósito dessa critica, e também, os seus

avanços no que diz respeito aos seus aportes para transcender a resposta

desenvolvimentista. Mas, é necessário captar as particulares determinações que

operaram como limite em face da possibilidade de uma crítica radical, limites que

permitiram a criação de contribuições que repuseram uma perspectiva conservadora

subsumindo o tradicional ao moderno.

Dissemos que as presentes reflexões abriam caminhos para futuras indagações.

Consideramos que esses caminhos se orientam no aprofundamento de – pelo menos –

dois fenômenos que particularizam o processo argentino e que a presente dissertação –

por causa dos seus próprios limites – apenas deixa enunciados ou analisados de forma

preliminar.

Trata-se da necessidade de um estudo aprofundado do fenômeno do peronismo e

a partir dele o singular papel assumido pelo partido comunista argentino no processo

histórico desse país. Por outra parte, considera-se necessário – em forma articulada com

o anteriormente enunciado – um aprofundamento na análise da particularidade da igreja

católica Argentina, especificamente na sua participação política no processo histórico e,

em conseqüência, as determinações colocadas por ela no desenvolvimento profissional.

Articulado a essas reflexões, uma análise aprofundada das singulares características do

projeto político instaurado pela ditadura militar de 1976, outorga uma dimensão ao

processo histórico argentino à luz dos quais o debate profissional deve ser lido.

Considera-se que uma correta compreensão dessas determinações permitirá

captar algumas dimensões do processo de desenvolvimento do Serviço Social argentino

em face de um cenário ídeo-político que constituiu um condicionante histórico para o

seu encontro – ou desencontro – com uma interlocução com a perspectiva teórica

fundada na teoria social de Marx.

Isto é, o significado histórico do fenômeno peronista, em termos de projeto

político, se oferece como alternativa para o operariado – nos termos de um reformismo

burguês -, oferece a concretização de conquistas históricas e – nos termos de Parra –

sepulta qualquer tentativa de construção de um partido marxista-leninista independente.

Nessa lógica, cria uma disputa pela captação da massa do operariado. Essa razão faz

imperiosa uma análise, então, do processo histórico do Partido comunista Argentino, em

face do que parece uma dificuldade na compreensão desse fenômeno histórico, como

também do seu lugar frente à trágica herança que a brutal ditadura militar de 1976

deixou.

Apesar da necessidade de aprofundamento desses processos, as análises

apresentadas na presente dissertação fornecem alguns elementos que foram abrindo

possibilidades de compreensão de um processo histórico que, no que diz respeito aos

avanços e retrocessos do debate profissional, marca certos limites. Limites que foram

configurando os caminhos percorridos pela profissão e que permitem considerar –

contrariando o que apresentamos como o que tinha sido a premissa promotora da nossa

pesquisa – elementos que determinaram o fato de obstaculizar o diálogo da profissão

com a tradição marxista nesse país.

Esse fato - segundo argumentamos nas nossas reflexões – esvaziou a

possibilidade de uma critica radical. Isto é, permitiu uma crítica em face do Serviço

Social tradicional que teve a sua origem no ideário desenvolvimentista, que conseguiu –

depois – questionar esse ideário, mas que, na tentativa de transcendê-lo, acabou repondo

uma perspectiva modernizante. A ausência de uma interlocução com a tradição marxista

– única tradição capaz de questionar teoricamente o modo de produção capitalista e que

propõe uma alternativa política para a sua superação – não permite mais do que a

reposição final de uma perspectiva conservadora, embora, reconhecemos que o Processo

de Reconceituação argentino tem apresentado avanços significativos.

O exposto significa compreender que a ausência dessa interlocução fez com que

essas produções que propunham uma perspectiva “conscientizadora-revolucionária”,

longe de revolucionar – pela sua incapacidade de desvendar o significado social da

profissão, entre outras determinações – acabaram por reproduzir reflexões teóricas e

práticas profissionais que não fizeram mais do que sustentar e reproduzir relações

sociais reificadas.

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