universidade luterana do brasil pró-reitoria de pesquisa, pós
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UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
ANTONIO METZGER KÉPES
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES
CANOAS
2008
ANTONIO METZGER KÉPES
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil como requisito para qualificação à banca de obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração: Direitos Fundamentais. Orientador: Dr. Jayme Weingartner Neto
CANOAS
2008
ANTONIO METZGER KÉPES
A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração: Direitos Fundamentais.
_________________________________ Prof. Dr. Jayme Weingartner Neto
(Orientador)
________________________________ Prof. Dr. Wilson Steinmetz
_______________________________ Prof. Dr. Germano Schwartz
________________________________ Prof. Dr. Nereu José Giacomolli
AGRADECIMENTOS
À minha família, responsável pela minha formação moral e pelos
ensinamentos da vida.
Ao Prof. Dr. Germano Schwartz, que me fez enxergar que não existe um
limite para o conhecimento, muito menos uma verdade absoluta e conceitos
definitivos.
De uma forma especial, ao meu orientador, Dr. Jayme Weingartner Neto, pela
dedicação e atenção dispensadas, bem como pelos seus sábios conselhos para
concretização deste trabalho.
“‘Saber pensar’ não é somente ver a lógica das coisas, exagerar raciocínios corretos, mas principalmente surpreender lógicas onde aparentemente não haveria, pensar reflexivamente para dar conta da realidade flexível, decifrar o que é ambíguo e contraditório, ordenar a importância dos elementos embaralhados numa situação, encontrar similaridades ou diferenças onde parece não haver, construir o reconhecimento anterior e formular perspectivas inovadoras".
Pedro Demo
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo propor uma reflexão a respeito de uma forma diferente de pensar o sistema contemporâneo de justiça. Para tanto, parte-se de noções gerais acerca da Teoria dos Direitos Fundamentais, apresentando, logo em seguida, uma abordagem dos novos direitos que surgem em uma sociedade, em constante evolução. Com a crise dos antigos modelos de direito, iniciou-se uma transição de paradigmas. Várias outras formas de justiça mais informais, tal como a justiça restaurativa, começaram a se expandir. O Direito, concentrado tão-somente no Positivismo, começou a esboçar problemas decorrentes do avanço das novas culturas e de outras ciências. A justiça restaurativa é, então, apresentada como um novo paradigma voltado para a justiça penal e, em especial, para a justiça juvenil. Após uma revisão teórica sobre essa nova forma de justiça, é feita uma análise histórica de suas origens, bem como de seus conceitos, princípios e de suas práticas. Inúmeras experiências de práticas restaurativas estão sendo iniciadas em nosso território, mas já estão em estado avançado em outros países. Por fim, defende-se que esta nova forma de gestão de justiça criminal seja um complemento para um processo penal que apresenta sinais de crise. É, também, uma contribuição para efetivação de princípios e de direitos fundamentais, tais como os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade; o direito a uma tutela efetiva e o efeito colateral positivo da menor reincidência. Palavras-chave: Delinqüência juvenil. Direitos fundamentais. Justiça restaurativa. Novos direitos. Princípio da solidariedade. Ressocialização.
ABSTRACT
The main objective of this study is to reflect upon a different way of thinking the contemporary justice system. In order to achieve that, we present the Theory of Fundamental Rights, and, after that, an approach of the new rights that has appeared in a society which has constantly changed. Due to the crisis of the old law models, there is a transformation in the paradigms. Different informal types of justice, such as the restorative justice, have expanded nowadays. The Law that is only focused on Positivism started to have problems trigged by the advance of new cultures and other sciences. Thus, restorative justice is presented as a new paradigm that is concerned to the penal justice and especially to the youth rights. After the review of the literature about this new type of justice, we analyze its origins, as well as its concepts, principles and practices. Many experiences of restorative practice have been applied in Brazil, but they have been successfully developed in other countries. Finally, we propose that this new type of criminal justice management can be a complement of the penal process that is under crisis conditions. It is also a contribution to the establishment of the principles and of the fundamental rights, such as human beings’ dignity, solidarity; the right of effective tutelage as well as the positive collateral effect that is related to lower rates of recurrence. Key-words: Youth delinquency. Fundamental rights. Restorative justice. New rights. Principles of solidarity. Resocialization
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................8 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS, TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS E NOVOS
DIREITOS ..............................................................................................................11 1.1 CONCEITOS PRELIMINARES............................................................................11 1.2 DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS................................................17 1.3 TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS E DE NOVOS DIREITOS .................................29 2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM CONTRIBUTO PARA JURISDIÇÃO PENAL E
INFRACIONAL ......................................................................................................58 2.1 BREVE HISTÓRICO............................................................................................59 2.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS E NOÇÕES.......................................65 2.2.1 O encontro restaurativo.................................................................................74 2.2.2 Princípios da justiça restaurativa .................................................................78 2.3 PRÁTICAS RESTAURATIVAS ............................................................................87 2.3.1 Recepções normativas das práticas restaurativas .....................................87 2.3.2 Experiências de práticas restaurativas ........................................................93 3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO
CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES102 3.1 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A DIGNIDADE DOS SUJEITOS ADOLESCENTES 103 3.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA E O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL E
COMUNITÁRIA .................................................................................................114 3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A SUPERAÇÃO DO TECNICISMO
PROCESSUAL DAS JURISDIÇÕES TRADICIONAIS ......................................120 3.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E O EFEITO COLATERAL POSITIVO: MENOR
REINCIDÊNCIA.................................................................................................129 CONCLUSÃO .........................................................................................................136 REFERÊNCIAS.......................................................................................................142
INTRODUÇÃO
O tema abordado neste trabalho despertou interesse no sentido de estarmos
tratando de um pensar além do habitual e complexo pensamento formalista de
direito. É um pensar diferente, focado na tentativa de resgate daquilo que
verdadeiramente se almeja com a aplicação do direito, ou seja, a paz e a justiça
social.
O questionamento que se deseja fazer é o seguinte: a justiça restaurativa
seria possível como uma alternativa ou um complemento para o sistema de justiça
contemporâneo, capaz de atender à expectativa de seus operadores e,
principalmente, à de grande parte desacreditada da população? O certo é que
estaremos apresentando e discutindo novas racionalidades, novas formas de pensar
a justiça e, principalmente, novas opções para ela.
O trabalho tem por escopo este pensar diferente e quiçá dar início a uma
atitude inovadora. Assim, nesta linha de pensamento, é que foi escolhido este tema.
O pensamento principal está no sentido de que não se deseja substituir o
modelo formal de justiça, conquistado após séculos de lutas e de ganhos históricos.
Não se pretende substituir o Estado Democrático de Direito com a imposição de
formas desautorizadas legalmente.
O que se deseja é buscar uma complementação para o atual sistema de
justiça que se encontra indubitavelmente em crise, principalmente, quanto ao
processo penal como resultado da emergência de novas formas de justiça.
Assim, a justiça restaurativa é uma forma colaborativa de resolver conflitos
existentes, na qual são envolvidos membros da comunidade, autor, vítima e demais
interessados, ou seja, neste há a participação cidadã. Além disso, pode-se
considerá-la uma maneira democrática e pluridisciplinar de enfrentar os problemas.
9
A curiosidade por este tema aumentou a partir do momento em que tivemos
acesso a materiais, a reportagens, a artigos e a estudos feitos acerca das práticas
restaurativas existentes. Proporcionalmente, a idéia passava a se tornar mais
instigante na medida em que nos aprofundávamos a respeito do assunto.
O desafio que se propõe concretizar, no primeiro capítulo, será definir, com
noções básicas, os direitos fundamentais, para posteriormente fazermos uma
exposição da transição de paradigmas e a chegada dos novos direitos. Serão
trabalhadas, nesse capítulo, as dimensões dos direitos fundamentais, justamente
para tentarmos situar em qual momento histórico houve o surgimento dos novos
direitos.
No segundo capítulo, será feita uma revisão teórica acerca do instituto da
justiça restaurativa. Para tanto, um breve histórico será realizado, a fim de realmente
entendermos as suas origens e práticas. Em seguida, serão trabalhados os seus
conceitos e demais noções pertinentes, tais como o encontro e os princípios
restaurativos. Após, será feita uma exposição no sentido de analisar se o nosso
sistema legal seria capaz de recepcionar a justiça restaurativa em nosso país. Por
fim, serão apresentas, de maneira sintética, experiências espalhadas pelo mundo de
práticas restaurativas.
No terceiro capítulo, abordaremos a relação da justiça restaurativa com a
concretização dos princípios e dos direitos fundamentais, ou seja, a forma pela qual
ela pode contribuir para a efetivação destes princípios e direitos. Nesse sentido,
faremos uma relação do instituto da justiça restaurativa, utilizando os seus conceitos
e princípios, com os chamados novos direitos e verificaremos como um novo
paradigma de justiça poderá efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana,
com ênfase na pessoa do adolescente, bem como no próprio princípio da
solidariedade.
Finalmente, será feita uma abordagem mais voltada para o problema da
delinqüência juvenil, referentes ao efeito colateral positivo que ela implicará, isto é, a
10
de possibilitar uma menor reincidência. Esta é a lógica do sujeito-objeto, sendo
deixada de lado, para a valorização do diálogo e da inclusão.
Ressalta-se que o objetivo a ser atingido neste estudo é a reflexão sobre este
tema: primeiro, conhecê-lo, para depois enfrentá-lo; seja também para absolvê-lo ou
condená-lo.
11
1 DIREITOS FUNDAMENTAIS, TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS E NOVOS DIREITOS
1.1 CONCEITOS PRELIMINARES
Inicialmente, cumpre tecer algumas considerações a respeito do termo
“direitos fundamentais” que será utilizado com freqüência neste estudo.
Não obstante diversas conceituações existentes sobre os direitos
fundamentais, é preciso que sejam observados outros termos igualmente utilizados
para a mesma definição, tais como direitos humanos, direitos do homem, direitos
individuais, direitos subjetivos públicos, dentre outros.
Esta imprecisão semântica é notada inclusive na nossa própria Constituição
Federal de 1988, quando, em seu corpo, notamos as expressões, como “direitos e
garantias fundamentais”, “direitos e liberdades constitucionais”, “direitos humanos”,
entre outras.
Em nossa sistemática, os “direitos fundamentais” são considerados cláusulas
pétreas, o que os torna protegidos de supressão pela ação do poder Constituinte
derivado. Já os termos “direitos humanos” e “direitos do homem” são utilizados com
maior freqüência entre os autores anglo-americanos e latinos, sendo que a
expressão “direitos fundamentais” teria a preferência dos alemães1.
Sarlet traça uma distinção didática dos termos, afirmando que os “direitos
do homem” podem ser considerados os direitos naturais ainda não positivados,
ao contrário dos “direitos humanos” que já seriam os positivados na esfera do
direito internacional e, por fim, os “direitos fundamentais”, expressão, adotada
pelo autor, como sendo os direitos reconhecidos ou outorgados e protegidos pelo
1 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 514.
12
direito constitucional interno de cada Estado2.
Canotilho também esclarece que
Os direitos fundamentais serão estudados enquanto direito jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional. Como iremos ver, o local exacto desta positivação jurídica é a constituição. A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo [...] Sem esta positivação jurídica, os direitos dos homens são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou, até, por vezes, mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional (Grundrechtsnormen)3.
Nota-se a íntima relação dos termos e de seus significados, razão pela qual
são utilizados por diversos autores, quando se referem aos direitos fundamentais.
Não se cuidam de termos excludentes ou incompatíveis, mas, sim, de expressões
que se relacionam.
Os direitos humanos, conforme referido, ainda dependem de ser
recepcionados pela ordem jurídica interna de um determinado Estado, para terem a
sua efetividade plena garantida, porém continuam tendo uma relação estreita em
sua significação. Segundo Sarlet,
Importa, por ora, deixar aqui devidamente consignado e esclarecido o sentido que atribuímos às expressões “direitos humanos” (ou direitos humanos fundamentais) e “direitos fundamentais”, reconhecendo, ainda uma vez, que não se cuida de termos reciprocamente excludentes ou incompatíveis, mas, sim, de dimensões íntimas e cada vez mais inter-relacionadas, o que não afasta a circunstância de se cuidar de expressões reportadas a esferas distintas de positivação, cujas conseqüências práticas não podem ser desconsideradas. Os direitos fundamentais, convém repetir, nascem e se desenvolvem com as Constituições nas quais foram reconhecidas e assegurados4.
2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 36. 3 CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
1997, p. 371. 4 SARLET, op. cit., p. 41.
13
Bonavides afirma que criar e manter os pressupostos elementares de uma
vida na liberdade e na dignidade humana é o que os direitos fundamentais almejam,
sendo que, de forma mais restrita e normativa, ele sugere que os direitos
fundamentais são aqueles que o direito vigente qualifica como tais5.
Portanto, podemos concluir que os direitos fundamentais, em sentido geral,
são os que garantem a dignidade, a liberdade e a igualdade, isto é, são os direitos
imprescindíveis à pessoa humana.
Para compreendermos os direitos fundamentais, é preciso, primeiro,
apontarmos para os direitos naturais do homem, sendo necessário relacionar o
primeiro ao processo de constitucionalização dos direitos naturais do homem.
Colaborando para esta noção de co-relação entre os dois tipos de direito, cita-
se, novamente, o constitucionalista português, Canotilho, o qual esclareceu que os
Direitos do homem são válidos para todos os povos e em todos os tempos, no qual
se denomina “dimensão jusnaturalista-universalista”. Afirma igualmente o autor que
os direitos fundamentais são direitos do homem, jurídico-institucionalmente
garantidos e limitados no espaço e no tempo6.
Inicialmente, os direitos fundamentais foram visualizados tão-somente como
“direitos de defesa”, contra ingerências do Estado em sua liberdade pessoal e
propriedade (autonomia individual), resguardando-se os direitos naturais do
indivíduo. Os direitos, assim denominados, limitam o poder estatal, assegurando ao
indivíduo uma esfera de liberdade, outorgando-lhe direitos subjetivos que lhe permita
evitar interferências indevidas no âmbito de proteção do direito fundamental. É a
abstenção por parte dos poderes públicos, e, entre eles, temos os direitos de
liberdade, de igualdade e do direito à vida (oriundos do Direito Natural).
5 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 514. 6 CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
1997, p. 387.
14
Após, passou-se a exigir do Estado, além da não intervenção na esfera da
liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de
colocar à disposição do indivíduo os meios materiais e implementar as condições
fáticas que possibilitem o efetivo exercício dos direitos fundamentais. Esta é, sem
dúvida, uma postura ativa dos poderes públicos. As ações do Estado passaram a
ser imprescindíveis com a implementação de políticas públicas que viessem a
garantir os ideais de justiça social e igualdade e, por fim, os de fraternidade e de
solidariedade, já englobando grupos, coletividades.
No direito brasileiro, há uma grande dificuldade de classificação dos direitos
fundamentais com critérios objetivos e funcionais. Sarlet citou como exemplo dessa
problemática a ausência de sistematicidade por uma precária técnica legislativa do
texto constitucional7. Nos chamados direitos sociais, por exemplo, encontram-se os
prestacionais e os de defesa. O autor cita como sendo de direitos sociais, tratados
como direitos de defesa, boa parte dos direitos dos trabalhadores (art. 7º da CF), tais
como jornada de trabalho, direito de greve, entre outros. Estes podem ser tratados
também como direitos prestacionais, quando versarem a respeito dos direitos à
saúde, à educação, à assistência social, etc. Ainda na parte referente aos direitos
trabalhistas, temos direitos com titulares diversos, tudo a corroborar com esta falta
de critério classificatório.
Encontramos, também na nossa Constituição, normas de conteúdo
programático (normas de proteção ao consumidor, etc.), outras de garantias
institucionais (Tribunal do Júri, etc.). Assinala-se ainda que existem direitos
fundamentais escritos ou expressamente positivados na Constituição Federal –
catalogados ou não em seu art. 5º8 – ou também em tratados internacionais, bem
como os direitos fundamentais não escritos (implícitos ou decorrentes do regime e
7 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 175. 8 Aqueles direitos fundamentais formalmente constitucionais fora do catálogo são denominados, por
Canotilho, de direitos fundamentais dispersos (CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 398).
15
dos princípios). Tudo isso, portanto, não contribui para uma apresentação
sistemática e funcional dos direitos fundamentais. Vieira diz que
Esta tentativa de conciliar princípios liberais, democráticos, sociais e comunitários ou solidários gera necessariamente uma enorme dificuldade não apenas ao intérprete da Constituição, mas especialmente àqueles que têm como responsabilidade primária implementá-la9.
Ressalta-se que, até a classificação proposta sob o critério funcional,
mencionada pelo professor Sarlet, ou seja, aquela que divide os direitos
fundamentais em dois grandes grupos: direitos fundamentais como direitos de
defesa e direitos a prestações (em sentido amplo e em sentido estrito), deixa
dúvidas, já que várias normas definidoras de direitos fundamentais exercem
simultaneamente duas ou mais funções. Assim, o melhor seria utilizar o critério da
predominância do elemento defensivo ou prestacional10.
É necessário, também, ao conceituar os direitos fundamentais, apresentá-lo
sob o enfoque formal e material, conforme ensinamento de Sarlet:
[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, pelo seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo ou não assento na Constituição formal (aqui considerada abertura material do catálogo11.
Da mesma forma, Canotilho ressalta que
Os direitos consagrados e reconhecidos pela constituição designam-se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais, porque eles são enunciados e protegidos por normas com valor constitucional formal (normas que têm a forma constitucional). A constituição admite, porém,
9 VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais. Uma leitura da jurisprudência do STF. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 41. 10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 218-220. 11 Ibidem, p. 89.
16
outros direitos fundamentais constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional. Em virtude de as normas que os reconhecem e protegem não terem a forma constitucional, estes direitos são chamados direitos materialmente fundamentais [...] A orientação tendencial de princípio é a de considerar como direitos extraconstitucionais materialmente fundamentais os direitos equiparáveis pelo seu objecto e importância aos diversos tipos de direitos formalmente fundamentais12.
Como conseqüência desta consideração dos direitos fundamentais – os quais,
independente de estarem catalogados ou dispersos no texto da Constituição
(conceituação formal), são considerados fundamentais pelo seu conteúdo e importância
(conceituação material) – estes recebem do legislador tratamento diferenciado.
Importante também a observação feita por Canotilho no sentido de que há
direitos fundamentais consagrados na Constituição que somente, por estarem
positivados na Constituição, merecem a classificação de fundamentais, embora o
seu conteúdo não possa ser considerado materialmente fundamental. Outros, ao
contrário, além de serem considerados da forma constitucional pela sua natureza
intrínseca, também são considerados materiais, o que ele denomina direitos formais
e materialmente constitucionais13.
Os direitos fundamentais, pela sua reconhecida importância, fazem com que a
limitação do poder estatal se reflita até mesmo sobre o próprio poder constituinte
reformador, ao serem tidos como cláusulas pétreas, ex. vi. art. 60, § 4º, inc. IV, CF,
caracterizados pela imutabilidade.
Sarlet aborda ainda a dupla perspectiva dos direitos fundamentais: subjetiva e
objetiva dos direitos fundamentais. Esta se refere ao fato de que os direitos
fundamentais poderão ser tratados tanto como direitos subjetivos individuais quanto
elementos objetivos fundamentais da comunidade14.
12 CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
1997, p. 397. 13 Ibidem, p. 400. 14 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p.155-170.
17
Segundo o autor, os direitos fundamentais não se limitam à função precípua
de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público,
mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva
da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem
diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos15.
É por causa desta dimensão, da função objetiva dos direitos fundamentais –
uma vez que, decorrentes da idéia de que estes incorporam e expressam
determinados valores objetivos fundamentais da comunidade – que se chega à
constatação de que os direitos fundamentais devem ter sua eficácia valorada não só
sob um ângulo individualista, como homem ou cidadão (perspectiva subjetiva), mas
também sob o ponto de vista da sociedade, da comunidade. Salienta-se, no entanto,
que um mesmo direito pode assumir um panorama subjetivo e objetivo16.
1.2 DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Ao longo das constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas
transformações em seus conteúdos, titularidade, eficácia e efetivação. Essas
modificações muitos autores as classificam como diferentes gerações de direitos
fundamentais. Em tese, teríamos três gerações, sendo que, para alguns
doutrinadores, quatro ou até cinco gerações.
Nesse ponto, cumpre tecer alguns breves comentários acerca do termo
“geração” e “dimensão de direitos fundamentais”, já que ambos são utilizados pelos
autores quando se referem à evolução dos direitos fundamentais. O termo “geração”
15 Canotilho aponta como exemplos de dimensão subjetiva dos direitos fundamentais os direitos à
saúde, à habitação, ao ensino etc. Quanto aos direitos com dimensão objetiva, ele exemplifica com as normas consagradoras de direitos econômicos, sociais e culturais. (CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 403-404).
16 Canotilho também aponta outra função dos direitos fundamentais, qual seja a de não discriminação. “A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. Esta função de não discriminação abrange todos os direitos.” [...]. É com base nesta função de não discriminação que se discute o problema das quotas (Ibidem, p. 403-404).
18
de direitos fundamentais é objeto de crítica por parte de alguns constitucionalistas,
em virtude de não transmudar a idéia de cumulação de direitos fundamentais no
decorrer da história, ou seja, de um processo cumulativo e não substitutivo, como
deixa transparecer o termo “geração”. Nota-se, entretanto, que, na moderna
doutrina, há mais referência ao termo “dimensões dos direitos fundamentais”.
As transformações, ocorridas ao longo do tempo, com novas realidades
sociais, econômicas, políticas, em que novos e diversos direitos fundamentais são
recepcionados pelas constituições, deixam claro que há uma complementação e não
uma pura e simples substituição de direitos fundamentais. Esta é a adequação dos
novos direitos com os novos tempos. Nesse sentido, seria mais adequada a
utilização da expressão “dimensão” dos direitos fundamentais.
A Teoria Dimensional do Direito é o reconhecimento progressivo dos direitos
fundamentais, com caráter de um processo cumulativo, de complementaridade e
não de alternância. As diversas dimensões mostram que os direitos constituem
categoria materialmente aberta e mutável17.
Assim, temos os direitos de primeira dimensão como sendo os referentes aos
direitos individuais, civis, políticos, de liberdade, de igualdade e de segurança. São
direitos de defesa do cidadão contra o poder do Estado.
Segundo Ferrajoli, “As garantias liberais ou negativas consistem unicamente
nos deveres públicos negativos ou de não fazer – de deixar viver e de deixar fazer –
que têm por argumento prestações negativas ou não prestações”18.
Os direitos fundamentais da primeira dimensão encontram suas origens
especialmente na doutrina iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII,
mormente pelos princípios revolucionários do século XVIII: liberdade, igualdade e
fraternidade, com destaque para a Revolução Francesa.
17 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 53. 18 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 794.
19
Nesse contexto, a finalidade principal do Estado consistia na realização da
liberdade do indivíduo: era a não-intervenção do Estado em respeito aos direitos do
indivíduo. Exigia uma abstenção por parte do Estado, por isto, apresentando como
direitos de cunho “negativo”, os “de resistência ou de oposição perante o Estado”. É
o direito à vida e à propriedade. Logicamente, são os primeiros direitos que
constaram nas constituições escritas19.
Os direitos de primeira dimensão – civis e políticos – continuam a integrar as
cartas magnas posteriores, permanecendo no tempo, mesmo que se tenha, em
alguns destes direitos, atribuído significados diversos a eles.
Bonavides ressalta que:
Os direitos da primeira geração ou os direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado20.
Ao lado dos tradicionais direitos de liberdade, as constituições deste século
têm, contudo, reconhecido outros direitos vitais ou fundamentais: os direitos, já
recordados, à subsistência, à alimentação, ao trabalho, à saúde, à instrução, à
habitação, à informação e similares. Para Ferrajoli,
Diferentemente dos direitos de liberdade, que são direitos de (ou faculdade de comportamentos próprios) a que correspondem a vedações (ou deveres públicos de não fazer), estes direitos, que podemos chamar “sociais” ou também “materiais”, são direitos a (ou expectativas de comportamentos alheios) que devem corresponder a obrigações (ou deveres públicos de fazer)21.
19 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 55. 20 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 517. 21 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 794.
20
Os direitos de segunda dimensão, em síntese, refletem uma nova posição de
proteção em relação à dignidade humana. Eles já buscam a satisfação das
necessidades mínimas para a vida do ser humano – são os direitos sociais,
econômicos e culturais, direitos de prestação, exigindo-se do Estado uma
realização, uma atitude positiva, para alcançá-los.
Nesses, há uma necessidade de o Estado tomar uma atitude positiva no
sentido de buscar uma justiça social, já que a liberdade e a igualdade, anteriormente
reconhecidas, não mais se mostravam efetivas.
A nova realidade social e econômica, com a industrialização e os problemas
sociais, exigiam a criação de direitos que pudessem ser, de fato, aferidos. Durante o
século XIX, com diversos movimentos reivindicatórios, é que foram reconhecidos, de
forma progressiva, os direitos de segunda dimensão. Estes já apareciam na nossa
Constituição de 1824 e continuam a existir, exigindo uma prestação social por parte
do Estado. Já no século XX, os direitos de segunda dimensão se expandiram para
um número significativo de constituições e foram objetos de diversos pactos
internacionais22.
Conforme Bonavides, os direitos de segunda dimensão dominaram o século
XX e tiveram, inicialmente, pouca eficácia e eficácia duvidosa em razão de sua
própria natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações
materiais, nem sempre possíveis, até por carência de recursos23.
Por tais motivos, surgiu o questionamento na doutrina de que, ao contrário
dos direitos de primeira dimensão, eles não poderiam ter a sua aplicação imediata,
ou melhor, seriam normas de eficácia diferida em contraposição às normas de
eficácia imediata da primeira geração.
22 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 56. 23 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 518.
21
Porém, tal questão tornou-se resolvida no momento em que a nossa e outras
atuais constituições determinaram a aplicação imediata para as normas de direitos
fundamentais, não fazendo diferença quanto as suas dimensões. Estes são os
direitos elencados nas áreas da saúde, da alimentação, da habitação, da educação,
do trabalho etc.
Em que pese ser uma marca dos direitos desta dimensão o caráter positivo,
prestacional por parte do Estado, eles também revelam direitos de liberdade, que
são as liberdades sociais, como, por exemplo, a de sindicalização, o direito à greve,
os direitos a férias, à limitação da jornada de trabalho, garantia de um salário
mínimo, assim como outros referentes aos trabalhadores em geral24.
É importante salientar que os direitos sociais, em conformidade com os
direitos de primeira dimensão, dizem respeito ao indivíduo, sendo que os direitos
coletivos e difusos já são considerados direitos de uma terceira dimensão, os
referentes aos direitos transindividuais. Nesses, já encontramos os chamados novos
direitos, tais como direitos para proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à
infância e à juventude e outros, para proteção da vida em sociedade e não somente
direitos analisados sob a ótica do indivíduo. São direitos fundados na fraternidade e
na solidariedade25. É o direito de todos, da universalidade, que alcança um número
de titulares indeterminados.
Dessa forma, Bonavides aponta
[...] que a consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida26.
24 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 56. 25 A partir da década de 60, começou a desenhar-se uma nova categoria de direitos humanos,
vulgarmente chamados direitos da terceira geração. Nessa perspectiva, os direitos do homem reconduzir-se-iam a três categorias fundamentais: os direitos de liberdade, os direitos de prestação (igualdade) e os direitos de solidariedade (CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 380).
26 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 522.
22
Sarlet, aprofundando o tema, sugere que
[...] os direitos fundamentais de terceira dimensão, também denominados direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação) e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa27.
São exemplos de direitos fundamentais de terceira dimensão os direitos à
paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e à
qualidade de vida, bem como o direito à conservação e à utilização do patrimônio
histórico e cultural e o direito de comunicação. Ressalta-se igualmente que os
direitos da terceira dimensão são aqueles que possuem titularidade coletiva, por
vezes, indeterminável e indefinida, tal como o direito ao meio ambiente.
Sarlet, resumindo a questão, dizendo que
Compreende-se, portanto, porque os direitos da terceira dimensão são denominados usualmente como direitos de solidariedade ou de fraternidade, de modo especial em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação28.
No entanto, muitos desses direitos ainda não encontraram reconhecimento
em nossa legislação constitucional, sendo objeto de discussão no âmbito do direito
internacional.
Para Bobbio, os direitos de terceira geração constituem uma categoria
excessivamente heterogênea e vaga, impedindo uma melhor compreensão do que
realmente se trata. Para o autor, o mais importante deles é o reivindicado pelos
movimentos ecológicos: o direito de viver em um ambiente não poluído29.
27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 57. 28 Ibidem, p. 57. 29 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25.
23
Alguns doutrinadores discutem se os novos direitos tendentes à informática e
ao avanço crescente dos meios de comunicação seriam integrantes da categoria de
direitos de terceira dimensão. Quanto aos novos direitos referentes à bioética, existe
igualmente esta indefinição. O certo é que não há uma unanimidade a respeito do
tema.
Também, em virtude da relação dos direitos de terceira dimensão com os
direitos de liberdade (liberdade de informática, de expressão e de comunicação),
poderiam, para alguns juristas, serem enquadrados como direitos de primeira
dimensão.
Há uma gama de diversidade e de complexidade destes direitos que, por sua
vez, também dizem respeito a uma atitude negativa do Estado, o que gera, muitas
vezes, dificuldades em classificá-los como direitos de terceira dimensão. A revolução
tecnológica, com a informática e os meios de comunicação, exige por parte do
Estado uma atitude negativa de respeito à liberdade. Observa-se que esses direitos
estão em processo de desenvolvimento e de evolução. A própria engenharia
genética e o biodireito exigem uma atitude negativa e de respeito à liberdade por
parte do Estado. É a conquista de novos direitos que também englobam a liberdade
e a proteção da vida.
Logo, nota-se que, mesmo os direitos de terceira dimensão, que exigem uma
atitude positiva do Estado em efetivar os direitos fundamentais, possuem também
um viés de direitos de primeira dimensão, já que lidam com o direito fundamental de
liberdade.
Para Sarlet,
Na sua essência e pela sua estrutura jurídica de direitos de cunho excludente e negativo, atuando como direitos de caráter preponderantemente defensivo, poderiam enquadrar-se, na verdade, na categoria dos direitos da primeira dimensão, evidenciando, assim, a
24
permanente atualidade dos direitos de liberdade, ainda que com nova roupagem e adaptados às exigências do homem contemporâneo30.
O certo é que esses direitos se diferenciam quanto à sua titularidade e
destinação.
Nesse sentido, Bonavides sugere que
[...] com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor da humanidade e de universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Tem primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta31.
Em contrapartida, Brandão afirma que os direitos de primeira geração ou de
dimensão de cunho individual, que foram reconhecidos em outro momento histórico,
podem também fazer parte dos chamados novos direitos:
Assim, é preciso ter claro que, quando se trata de “novos” direitos, deve-se atentar para o fato de que direitos de gênese individual que foram reconhecidos inicialmente em outro momento podem estar inseridos no contexto desses novos direitos, porque na atualidade sua conformação e sua forma de defesa – como ocorre, por exemplo, com os direitos individuais homogêneos – são de tal forma diversas que já não se pode mais enunciá-las como integrantes da primeira ou da segunda geração de direitos32.
Nesse raciocínio, o autor justifica também o fato desta classificação não
poder ser entendida no sentido de que a evolução dos direitos fundamentais se dá
sempre quanto à coletivização, já que o exercício dos direitos individuais continua a
existir plenamente e até se amplia, como no caso, por exemplo, da tutela à
intimidade.
30 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 58. 31 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 523. 32 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis:
Habitus, 2001, p. 127-128.
25
Brandão ainda critica essa classificação e estruturação dos direitos
fundamentais, porquanto confusa a partir do momento em que existem direitos
individuais, sociais e transindividuais como sendo de quarta e até de quinta
dimensões33.
Nessa mesma linha, o autor sugere que os direitos, decorrentes da
biotecnologia e da bioengenharia, geram direitos sociais, do consumidor (quando
tratam de alimentos geneticamente modificados); direitos referentes ao meio
ambiente (desequilíbrio do ecossistema em razão de novos experimentos
científicos); direitos individuais, em razão do princípio da autonomia (no caso de
transplante de órgãos, direito à morte ou à manutenção da vida artificial).
Da mesma forma, os direitos, oriundos do mundo virtual, da informática, terão
reflexo nos direitos individuais (invasão de privacidade), interesse de ordem coletiva
e até difusa (por exemplo, a propagação de vírus que causam prejuízos e lesões em
determinadas pessoas e até países).
Assim, conforme demonstrado, não há uma classificação única a respeito da
evolução dos direitos fundamentais, bem como se percebe que um direito fundamental
de uma determinada geração ou dimensão pode gerar ou até ser considerado direito de
outra fase evolutiva. Assinala-se que a Constituição brasileira de 1988 foi inovadora ao
tratar da proteção destes direitos de interesses difusos e coletivos.
Segundo Bonavides, existe uma quarta dimensão, como sendo resultado da
globalização dos direitos fundamentais, no sentido de universalização no plano
institucional, que corresponde, em sua opinião, à derradeira fase de
institucionalização do Estado Social. Para o constitucionalista, são direitos de quarta
dimensão o direito à democracia, à informação e ao pluralismo34.
O autor ainda conclui dizendo que
33 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis:
Habitus, 2001, p. 127-130. 34 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998,
p. 524-525.
26
Os direitos de quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o provir da liberdade de todos os povos. Tão-somente com eles será legítima e possível a globalização política”. Somente com uma democracia direta e livre de contaminações haveria este nível de evolução, o que só se tornaria possível se a informação e o pluralismo vingarem por igual como direitos paralelos e auxiliares da democracia35.
Sarlet vai mais além, propondo que todas as demandas, na esfera dos
direitos fundamentais, gravitam, direta ou indiretamente, em torno dos tradicionais e
perenes valores da vida: liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo,
na sua base, o princípio maior da dignidade da pessoa36.
Ainda, conforme Bonavides, os direitos da segunda, da terceira e da quarta
gerações não se interpretam, concretizam-se. “É na esteira dessa globalização que
reside o futuro da globalização política, o seu princípio de legitimidade, a força
incorporadora de seus valores de libertação”37.
Também, segundo a classificação adotada por Oliveira Jr. em relação aos
direitos de quarta dimensão, encontramos os relacionados à engenharia genética,
à biotecnologia, à bioética, aos direitos que tratam diretamente com a vida humana
e com a morte38. Conforme Wolkmer, estes direitos dizem respeito à inseminação
artificial, ao aborto, à eutanásia, às cirurgias intra-uterinas, aos transplantes de
órgãos, à “clonagem”, à contracepção e a outros desta natureza. Denota-se o
surgimento dos novos direitos para regular tais situações39. Os novos direitos
referentes à informática, com ênfase na internet, nos sistemas de comunicação,
para o autor, seriam enquadrados nos direitos de quinta dimensão.
35 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros, 1998,
p. 526. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 61. 37 BONAVIDES, op. cit., p. 525. 38 OLIVEIRA JÚNIOR: José Alcebíades: Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 100. 39 WOLKMER, Antonio Carlos. Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 12.
27
Esta breve análise foi realizada para mostrar a própria evolução do Direito
que tenta adequar-se à crescente aceleração do desenvolvimento das outras
ciências e da transformação da sociedade.
Ressalta-se que a velocidade em que nascem os novos direitos faz com que
não se possa diferenciar, em momentos isolados, quando ocorre uma geração e
quando ocorre outra. Não é possível fazer esta diferenciação de forma estanque.
Mais importante do que tentar estabelecer precisamente as fases evolutivas
dos direitos fundamentais é ressaltar que eles são o resultado de reivindicações no
decorrer da história, em face de agressões aos bens e aos direitos dos seres
humanos. São reconhecidos de forma gradual e, ao mesmo tempo, são dinâmicos,
havendo avanços e retrocessos em seu entendimento.
Nesse sentido, segundo Ferrajoli,
Pode-se tranqüilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que tivesse caído do céu ou nascido de uma escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas constitucionais. Todos são fruto de conflitos, às vezes seculares, e foram conquistados com revoluções e rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e sofrimentos[...]40.
Quem muito bem definiu os marcos evolutivos dos direitos fundamentais,
demonstrando que o surgimento de novos direitos estava diretamente vinculado às
mais variadas necessidades, foi Norberto Bobbio, ao dizer que
Liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; A liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, do crescimento e do amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, dos primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo,
40 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 870.
28
depois da assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos41.
As dimensões, portanto, marcam a evolução dos direitos fundamentais ao
longo do tempo, bem como os seus reconhecimentos nas legislações internas e
internacionais, nos seus diferentes países.
Boa parte dos direitos fundamentais de primeira e de segunda dimensões
ainda permanece da mesma forma que foi reconhecida inicialmente. Outros, por sua
vez, foram modificados e atualizados para uma nova realidade. O que importa é que,
fundamentalmente, todos eles visam a proteger a vida, a liberdade, a igualdade e a
dignidade da pessoa humana.
Esta é a dinâmica dos direitos fundamentais. Eles dependem, cada vez mais,
para as suas efetivas implementações de esforços conjuntos, ganhando especial
relevo os de segunda dimensão, tais como os da solidariedade e da fraternidade.
Para Bobbio,
Os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc42.
Ao criticar a busca do fundamento absoluto dos direitos do homem, no
sentido de que não existem direitos fundamentais por natureza, Bobbio defende,
com razão, que aquilo que parece fundamental em uma época histórica e em
uma determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras
culturas.
41 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25. 42 Ibidem, p. 38.
29
A certeza é que grande parte dos direitos fundamentais, independente da
dimensão que ocupa, indiferente do critério de classificação utilizado, ainda está
carente de efetivação.
Quanto à falta de efetividade ainda hoje dos nossos direitos fundamentais,
Sarlet, com muita propriedade, afirma que
[...] aliás, ainda que no âmbito dos direitos da primeira dimensão o déficit de efetivação seja mais reduzido (pelo menos se considerarmos a possibilidade amplamente reconhecida de sua exigibilidade judicial), é preciso reconhecer que também nesta esfera longe nos encontramos, mesmo entre nós, de um patamar que se possa considerar tendencialmente satisfatório. A vida, a dignidade da pessoa humana, as liberdades mais elementares continuam sendo espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo um arcabouço de instrumentos jurídico-processuais e de garantias constitucionais43.
Considerando a classificação da Teoria Dimensional ou de Gerações de
Direitos Fundamentais, somente a título exemplificativo, indicamos, na Constituição
Federal brasileira de 1988, direitos de primeira dimensão (vida, liberdade,
igualdade), bem como direitos de segunda dimensão (saúde, educação, trabalho e
outros contidos no Título II, capítulo II) e, por fim, os direitos de terceira dimensão,
quais sejam, os relativos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225),
direito a informações (art. 5°, XXXIII), à proteção do consumidor (art. 5°, XXXII), ao
desenvolvimento (art. 3°, II), direitos da Infância e da Juventude (art. 227) e outros
espalhados em seu texto constitucional ou em tratados internacionais dos quais o
Brasil faça parte, em face de seu sistema aberto expresso em seu art. 5°, § 2°.
1.3 TRANSIÇÃO DE PARADIGMAS E DE NOVOS DIREITOS
A nossa sociedade está em constante transformação, defrontando-se, a cada
momento, com mudanças na forma de organização social, no relacionamento
43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 63-64.
30
humano, nos novos sujeitos sociais, nas novas estruturas políticas e,
conseqüentemente, nos novos direitos.
É importante retomarmos a trajetória do direito moderno na tentativa de
entender melhor o contexto da crise na qual ele se encontra hoje. Esta foi dividida
em eras ou gerações e confunde-se também com a classificação anteriormente
abordada a respeito da Teoria Dimensional dos Direitos Fundamentais.
A primeira era dos direitos surge a partir do ideário da Revolução Francesa. Os
princípios de igualdade, de liberdade e de fraternidade eram os desejos da burguesia
em ver respeitados os seus direitos individuais. Nessa ocasião, prevaleceram os
paradigmas da sociedade liberal, a visão patrimonialista, o individualismo, a autonomia
da vontade e as liberdades civis. O capitalismo, que se impôs como modelo a partir do
século XIX, avançou na Europa, provocando o acirramento das injustiças sociais. Cada
vez mais o homem era explorado pelo seu semelhante, o que acarretou reflexos para o
Direito. Os trabalhadores eram submetidos a extensas jornadas de trabalho em
condições insalubres e perigosas, não gozavam de benefícios sociais, a mão-de-obra
de mulheres e de crianças era explorada de forma cruel, os salários eram miseráveis, o
que gerou condições de vida indignas. Nesse cenário, surgiu, portanto, a segunda era
dos direitos.
Já a segunda era do direito é fortemente marcada por um cunho social. O
Estado, antes caracterizado por uma interferência mínima, assume o papel de
promotor do bem estar social. É a mudança de uma atitude passiva do Estado para
a de ação, a fim de adequar-se às novas transformações sociais, conforme explica
Weingartner:
Tal imobilismo legislativo seria confrontado com a Revolução Industrial, a exigir do Estado planejamento em face de produção e de consumo massivos. Em poucas palavras, o Estado liberal, como nomocracia estática, transmuda-se no Estado telecrático contemporâneo, legitimado na medida da sua capacidade de realizar certos objetos vivos determinados (Estado Dirigente, Estado Providência)44.
44 WEINGARTNER, Jayme. O Estado Democrático de Direito, apontamentos histórico-críticos. Revistas
do Direito (Faculdades Atlântico Sul), v. 01, p. 9, 2007.
31
Com a pressão social, exercida pelos trabalhadores (movimentos sindicais),
surgem os direitos, tutelando o emprego, o salário mínimo, a aposentadoria, a
licença maternidade e outros benefícios.
Ferrajoli ressalta que a noção liberal de “Estado de Direito” deve ser ampliada
para incluir também a figura do Estado vinculado por obrigações além de vedações.
É neste sentido que o autor faz a diferenciação de “Estado de Direito Liberal” para
“Estado de Direito Social”:
Digamos, pois, que, onde um ordenamento constitucional incorporar somente vedações, que requerem prestações negativas para garantia dos direitos de liberdade, este se caracteriza como Estado de direito liberal; onde, ao invés, este também ao incorporar obrigações, que requerem prestações positivas para a garantia dos direitos sociais, este se caracteriza como Estado de direito social45.
Weingartner acrescenta que
Seja como for, a aposta democrática fez o Estado avançar e, de Estado Liberal de direito, alçar-se a Estado Social de direito, o que acarreta, também, é verdade, a crise do Welfare State e nos aproxima dos dias de hoje46.
A humanidade alcança o século XX, e inicia-se a terceira era dos direitos.
Ainda, esclarece Weingartner que: “Perante as novas exigências de socialidade e de
democracia no século XX, o Estado de direito torna-se Estado social e democrático
de direito – com a correlata alteração dos elementos do Estado liberal”47.
O autor segue dizendo que
Estado patrocinou formidável desenvolvimento dos serviços públicos (do comportamento negativo aos comportamentos positivos), com singular incremento do Poder Executivo. A tarefa, de algum modo, é a realização da
45 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 794-795. 46 WEINGARTNER, Jayme. O Estado Democrático de Direito, apontamentos histórico-críticos.
Revistas do Direito (Faculdades Atlântico Sul), v. 01, p. 16, 2007. 47 Ibidem, p. 17.
32
justiça distributiva. A ciência do Direito procura atenuar o individualismo, numa perspectiva mais solidária (a função social do contrato e da propriedade etc.), incorporando crescentes expectativas individuais de felicidade (dignidade da pessoa humana), aprendendo a lidar com a economia social de mercado48.
As sociedades capitalistas, mormente pela década de 70, caracterizam-se
pelo consumo. Nessa situação, com a exploração das grandes empresas, o direito
sente a necessidade de tutelar os chamados direitos metaindividuais. São interesses
que respeitam categorias de pessoas ou de grupos de pessoas, interesses
indivisíveis, de sujeitos indeterminados, podendo ser difusos ou coletivos. Como
exemplo desses direitos, temos o direito ambiental e o do consumidor, e há ainda
uma preocupação em ampliar os direitos da mulher, da criança e do idoso.
No Brasil, a terceira era chegou à década de 80, expressando-se na Lei
8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e
do Adolescente), em uma avançada legislação de proteção ambiental e, mais
recentemente, na Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).
São novos paradigmas que começam a surgir, com novos atores sociais e
novos conflitos. Conforme Touraine,
Durante um longo período, descrevemos e analisamos a realidade social em termos políticos: a desordem e a ordem, a paz e a guerra, o poder e o Estado, o rei e a nação, a República, o povo e a revolução. Em seguida, a revolução industrial e o capitalismo libertam-se do poder político e apareceram como a base da organização social. Substituímos então o paradigma político por um paradigma econômico e social: Classes sociais e riqueza, burguesia e proletariado, sindicatos e greves, estratificação e mobilidade social, desigualdades e redistribuição passaram a ser nossas categorias mais comum de análise. Hoje, dois séculos após o triunfo da economia sobre a política, estas categorias sociais tornaram-se confusas e deixam na sombra uma grande parte de nossa experiência vivida. Precisamos, portanto, de um novo paradigma, pois não podemos voltar ao paradigma político, sobretudo porque os problemas culturais adquiriram tal importância que o pensamento social deve organizar-se ao redor deles49.
48 WEINGARTNER, Jayme. O Estado Democrático de Direito, apontamentos histórico-críticos. Revistas
do Direito (Faculdades Atlântico Sul), v. 01, p. 18, 2007. 49 TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. 3. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 09.
33
De forma semelhante, ressalta Santos:
Penso que vivemos um momento em que se está a ensaiar uma nova fase. O neo-liberalismo revelou as suas debilidades. Não garantiu o crescimento, aumentou tremendamente as desigualdades sociais, a vulnerabilidade, a insegurança e a incerteza na vida das classes populares, e, além disso, fomentou uma cultura de indiferença à degradação ecológica50.
Também, assim como na sociedade, novos paradigmas começam a surgir em
relação ao Direito, como é o caso de justiças mais informais, como a justiça
restaurativa. Constata-se ainda que o direito monista, centrado tão-somente no
Positivismo, começou a apresentar problemas decorrentes deste avanço do direito
moderno. Iniciou-se uma transição de paradigmas com a crise dos antigos
paradigmas existentes. Weingartener destaca que este é “[...] o contexto estatal,
poroso, como substrato de sociedades plurais e complexas – e num quadro de
crescente interculturalismo. Novos paradigmas a desafiar o direito, na sua
capacidade de instituir o social”51.
Marques Neto e Martins, ao trabalharem a questão da crise dos paradigmas
jurídicos, apontaram três correntes ao longo da história da filosofia do direito, quais
sejam: as monistas, as dualistas e as pluralistas52.
As correntes monistas, geralmente de cunho positivista, tendem a identificar o
Direito como o conjunto de normas vigentes. Assim, só são jurídicas as normas
como tais reconhecidas pelo Estado. Nesse particular, torna-se indispensável fazer
uma breve análise sobre o sistema positivista estatal.
O positivismo jurídico é o responsável pela transformação do direito estatal
em direito único, incontrastável; nega, desse modo, a possibilidade do pluralismo
jurídico53.
50 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo:
Cortez, 2007, p. 23. 51 WEINGARTNER, Jayme. O Estado Democrático de Direito, apontamentos histórico-críticos. Revistas
do Direito (Faculdades Atlântico Sul), v. 01, p. 20, 2007. 52 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho; MARTINS, José Maria Ramos. Pluralismo jurídico e novos
paradigmas teóricos. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 42-43. 53 Ibidem, p. 43-44.
34
Para Kelsen, pensador do positivismo jurídico, não havia outro direito senão o
direito positivo, isto é, o direito elaborado e imposto pelo Estado. O autor procurou
delimitar o objeto da ciência jurídica no sentido de que são as normas jurídicas o
objeto da ciência jurídica, sendo que a conduta humana só o é na medida em que
constituiu conteúdo de normas jurídicas.
Afirma que a Teoria Pura do Direito concentra a sua visualização sobre as
normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser. Ela abrange e apreende
quaisquer fatos apenas na medida em que são conteúdos de normas jurídicas, ou
melhor, na medida em que são determinadas por normas jurídicas54.
Nesse sentido, Kelsen busca impedir que, em nome da ciência jurídica, se
confira ao direito positivo um valor mais elevado do que ele de fato possui,
identificando-o com um direito ideal, com um direito do justo; ou que lhe seja
recusado qualquer valor e, conseqüentemente, qualquer vigência, por se entender
que está em contradição com um direito ideal, um direito justo. Para o autor,
portanto, o direito é pura norma, isento de uma análise valorativa. É o direito posto,
vigente e oficial55.
Já na visão de Wolkmer, o positivismo
[...] é um conjunto de regras coercitivas vigentes, destinadas às condições históricas de um espaço público particular. Pressupõe-se, na positividade jurídica, a organização centralizada do poder e o funcionamento de órgãos aptos a assegurar o cumprimento das regras56.
Na lógica de Kelsen, por outro lado, o Direito não teria a necessidade de
guardar qualquer relação com a justiça, sendo o seu sistema positivista como algo
perfeito e acabado. Os sistemas jurídicos contemporâneos da modernidade
adotaram este modelo como base para os seus ordenamentos jurídicos.
54 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 118. 55 Ibidem, p. 118. 56 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no Direito.
São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 55.
35
Retomando o tema, a corrente dualista, por sua vez, apresenta duas ordens
jurídicas; havendo, de um lado, o direito positivo e, de outro lado, o direito natural
que seria o direito justo, constante no tempo, absoluto, divino. No caso, as idéias e
os princípios do direito natural vinculariam ética e racionalmente o direito positivo,
porém sem a sua força coercitiva.
Por fim, há o pluralismo jurídico que sustenta a possibilidade da existência de
diversos outros ordenamentos jurídicos vigorando, simultaneamente, no mesmo
espaço social.
Feita essa análise preliminar das correntes monista, dualista e pluralista, bem
como a análise, mesmo que superficial, do positivismo na sua visão clássica,
cumpre referirmos a crise da estrutura do processo penal contemporâneo que se
iniciava.
Os interesses dos indivíduos não estão totalmente resguardados pelas
nossas leis e, principalmente, o interesse social de diminuição da delinqüência e de
repressão aos crimes organizados. O aumento das taxas de criminalidade violenta, o
sentimento de insegurança, a pressão social e a dos meios de comunicação fazem
com que o sistema processual penal fique desacreditado.
Nota-se que, no direito penal, há uma busca constante de segurança por
intermédio da edição de uma grande variedade de leis, com aumento das penas em
abstrato e com a edição de novas espécies de tipos legais. Porém, ao que tudo
indica, o direito penal, aplicado através do processo penal, não surtiu o efeito que
todos desejavam.
As novas formas de resolução dos conflitos penais são indicativas de que o
sistema encontra-se decadente, conforme Arnaud:
Frente à magnitude da mudança, não parece de toda exagerada a constatação, reiterada por inúmeros analistas contemporâneos, de que o discurso jurídico-penal, bem como as práticas de combate ao crime e à violência, característicos da modernidade, e que durante o século XX foram aos poucos se cristalizando no modo concreto de operação das instituições
36
que compõe o sistema de justiça criminal, encontram-se hoje em progressivo estado de apoplexia57.
Ocorre que, em face de diversas situações de injustiças e também de outras
em que não se encontrava uma resposta rápida para as novas necessidades do
homem e a própria globalização da sociedade com o surgimento de novos direitos,
passou-se a perceber que o sistema positivista, conforme pensado por Kelsen, já
não servia para o novo panorama jurídico social. Era a sua abstração normativa que
impossibilitava prever todas as novas situações geradas pela vida humana.
Por fim, no plano da epistemologia, vai sendo suplantada a visão que apontava o método científico como única forma de apreensão racional da realidade, desprezando o senso comum e o saber prático como instrumentos de conhecimento da verdade. Como então manter a teoria do direito acorrentada a um estatuto epistemológico que já não se sustenta mesmo em relação às disciplinas para as quais foi forjada? A dogmática jurídica, que historicamente sempre buscou importar das ciências naturais seus modelos metodológicos, também sofre o influxo da crise de paradigmas. É certo que as recentes mutações na abordagem do Direito foram deflagradas também – e talvez principalmente – pelos fatores sóciopolíticos antes mencionados. Mas não há como dissociar a transformação do pensamento jurídico do processo de “degenerescência” da ciência moderna58.
Nesse raciocínio, surgiram decisões e jurisprudências dos Tribunais com
fundamentos baseados no bem comum, no sentimento de justiça. Nota-se a nítida
mudança de mentalidade e a própria transição de paradigmas.
É o período de transição de paradigmas, no qual se tenta romper o paradigma
da modernidade para um futuro a se chamar de pós-modernidade, em que se busca
a consciência de que muitos conceitos do passado têm que ser reformulados.
Tal transição torna-se fundamental no momento em que temos o avanço das
outras ciências, das práticas democráticas e das sociedades pluralistas que não
57 ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da globalização – Direito
ciência política. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 106. 58 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Uma
contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro. Renovar, 2006, p. 30.
37
mais admitem a vigência de um único direito estatal positivista concebido na ótica de
Kelsen, inflexível ao mundo externo.
Já Marques Neto e Martins, quanto à crise de paradigmas, concluem:
Trata-se da insuficiência intrínseca a todo e qualquer paradigma, jurídico ou não. Essa crise traduz uma tensão entre a amplitude do universo que o paradigma se propõe abarcar e o quantum desse universo do qual ele efetivamente consegue dar conta. Todo paradigma é necessariamente limitado. Sua própria formalização sistemática já o limita59.
A questão central que se coloca é a reforma de paradigma. Paradigma, que
em grego significava modelo, é a estrutura de pensamento que controla todos os
pensamentos que daí se origina60.
“Um paradigma não é só um instrumento nas mãos da ordem dominante, mas
igualmente a construção de defesas, de críticas e de movimentos de libertação”61.
O paradigma determinista e cartesiano, dominante ao longo de três séculos,
começa a sofrer fortes abalos. Necessita-se resgatar o homem como ser de relação,
e tudo é relação. Não se pode tentar compreender a realidade isolando ciência de
cultura, de política e de vida. É impossível para a ciência eliminar ou mesmo reduzir
a complexidade. Ela é inerente aos fenômenos. Seu reconhecimento deverá
determinar as condições de visão complexa do universo62.
Nessa mesma linha de raciocínio, Capra, em sua obra “A Teia da Vida”, traça
um paralelo, com muita propriedade, entre comunidades ecológicas e comunidades
humanas:
O sucesso da comunidade toda depende do sucesso de cada um de seus membros, enquanto o sucesso de cada membro depende do sucesso da
59 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho; MARTINS, José Maria Ramos. Pluralismo jurídico e novos
paradigmas teóricos. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 75. 60 PENA-VEGA, Alfredo. O pensar complexo: Edgar Morin e a crise da modernidade. 3. ed. Rio de
Janeiro: Garamond, 1999, p. 32. 61 TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. 3. ed. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 13. 62 PENA-VEGA, op. cit., p. 32.
38
comunidade como um todo. Entender a interdependência ecológica significa entender relações. Isso determina as mudanças de percepção que são características do pensamento sistêmico – das partes para o todo, de objetos para relações, de conteúdo para padrão. Uma comunidade humana sustentável está ciente das múltiplas relações entre seus membros. Nutrir a comunidade significa nutrir essas relações63.
A partir dessa trajetória do direito moderno, torna-se mais fácil compreender a
sua crise atual. Como fenômeno social que retrata determinado contexto, o Direito
busca a realização da justiça, mas, na maior parte do tempo, imprime regras que já
nascem defasadas da realidade. Instituições defasadas que permanecem ainda
pensando o direito como forma fragmentada (direito de família, sucessório, etc). Em
face dessas transformações sociais e dos avanços da biotecnologia, os paradigmas
da sociedade liberal burguesa estão francamente em crise, e a saída para ela tem
de ser pensada a partir de uma nova percepção64.
Novamente, cabe citar Capra que, ao discorrer acerca da Teoria dos
Sistemas Vivos, faz uma consideração a respeito de como a sociedade precisa se
adaptar às novas condições:
A teia da vida é uma rede flexível e sempre flutuante. Quanto mais variável forem mantidas flutuando, mais dinâmico será o sistema, maior será a sua flexibilidade e maior será sua capacidade para se adaptar a condições mutáveis. [...] o princípio da flexibilidade também sugere uma estratégia correspondente para a resolução de conflitos. Em toda comunidade haverá, invariavelmente, contradições e conflitos, que não podem ser resolvidos em favor de um ou do outro lado. Por exemplo, a comunidade precisará de estabilidade e de mudança, de ordem e de liberdade, de tradição e de inovação. Esses conflitos inevitáveis são muito mais bem-resolvidos estabelecendo-se um equilíbrio dinâmico, em vez de sê-lo por meio de decisões rígidas65.
63 CAPRA, Fritjof. A teia da vida – uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São
Paulo: Cultrix, 1997, p. 232. 64 Quando o “sistema jurídico” regulativo alargou a sua intervenção para dar guarida às dimensões da
socialidade e do Estado-providência, a “legislatio” converteu-se em comando dirigente, inflacionado e desadequado de regulação de uma sociedade cada vez mais complexa e diferenciada. “Juridicização”, “legalização” da vida era uma resposta pouco “realista” face à autonomia e pluralidade do mundo social. A passagem de um direito de concepção cibernética (teoria do mando) a um direito de concepção autor-organizativo (teoria da autonomia) anuncia, pois, a emergência do novo paradigma – o paradigma da auto-organização (CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 1333).
65 CAPRA, op. cit., p. 234-235.
39
Os avanços tecnológicos e as alterações que causam são de uma velocidade
inigualável, o que gera um impasse entre a necessidade de produção de normas e o
ritmo acelerado das descobertas. O processo legislativo é lento e não tem condições
de acompanhar este ritmo, já que é oriundo de uma estrutura arcaica.
Nessa visão, o operador do Direito dos novos tempos não pode estar atrelado
aos antigos paradigmas, aos modelos ultrapassados, uma vez que novas situações
se apresentam, e, para elas, novas soluções têm que ser encontradas.
As transformações das sociedades contemporâneas modificam as condições deste esquema operacional do direito, à medida que as estruturas e as relações de poder assumem novas configurações e inovam-se as formas de solução e de operação do direito. Assim, o campo de aplicação de conceitos jurídicos torna-se menos nítido, os modelos explicativos, insuficientes, e os paradigmas teóricos dominantes, estreitos, limitados, inadequados. O tema da globalização põe em relevo essas mudanças, pois, com ela, geram-se novas formas de direito que estão em relações variadas com as fronteiras do direito estatal66.
De acordo com Bobbio67, o surgimento e o desenvolvimento de novos direitos
estão relacionados ao aumento na quantidade de bens considerados merecedores
de tutela; pelo fato de ter sido estendida a titularidade de alguns direitos típicos a
sujeitos diversos do homem (aumento do número de sujeitos de direitos) e porque o
próprio homem não é mais considerado como ente genérico, abstrato, mas é visto
na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em
sociedade (ampliação do status dos sujeitos).
Em síntese, na visão desse jurista, são três os motivos pelos quais os direitos
têm se multiplicado.
Quanto ao primeiro motivo, além dos direitos individuais, passou-se a tutelar
também os direitos sociais, tal como todos os direitos dos trabalhadores. No que se
refere ao segundo motivo, está relacionado ao aumento do número de sujeitos de
direito, já que a titularidade passa a ser de grupos, sociedade e até humanidade. Por
66 ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da globalização – Direito ciência
política. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 147. 67 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 74-80.
40
fim, a ampliação do status deve-se ao fato de que o homem passou, como referido
anteriormente, a ser considerado na sua especificidade e não mais de forma
genérica, surgindo, assim, os direitos dos idosos, das crianças, etc.
O Direito que se expressava tão-somente na lei escrita, tendo o Estado como
a única fonte de todas as normas válidas, começou a ter alterações significativas
nas últimas décadas do séc. XX, conforme já referido, com a globalização entre os
povos, tanto na economia, no meio ambiente quanto nas diversas áreas sociais e
científicas. As necessidades, como decorrência dessa constante transformação,
aumentaram, e os problemas se estenderam.
Sarlet afirma que
Neste contexto, aponta-se para a circunstância de que, na esfera do direito constitucional interno, esta evolução se processa habitualmente não tanto por meio da positivação destes “novos” direitos fundamentais no texto das Constituições, mas principalmente em nível de uma transmutação hermenêutica e da criação jurisprudencial, no sentido do reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já tradicionais. Com efeito, basta aqui uma referência ao crescente controle do indivíduo por meio dos recursos da informática, tais como rede e bancos de dados pessoais, novas técnicas de investigação na esfera do processo penal, avanços científicos (atente-se para a recente controvérsia em torno da fabricação de clones humanos ou mesmo dos assim designados “direitos reprodutivos”), bem como as ameaças da poluição ambiental, apenas para nos atermos aos exemplos mais habituais68.
Nessa realidade, o direito positivado, rígido e arcaico, tornou-se, não raras
vezes, ineficaz, não atendendo à demanda que a nova sociedade exigiu e está a
exigir neste novo século. Em decorrência, os novos direitos começaram a surgir, a
fim de tentar solucionar os novos conflitos e problemas sociais.
O Direito precisou se adaptar aos conflitos coletivos, difusos, deixando de ser
apenas individualista, formal, com as características da dogmática jurídica
tradicional.
68 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2005, p. 62.
41
Assim, esclarece Wolkmer:
Trata-se de uma verdadeira revolução inserida na combalida e nem sempre atualizada dogmática jurídica clássica. O estudo atento desses novos direitos relacionados às esferas individual, social, meta individual, bioética, ecossistêmica e de realidade virtual exige pensar e propor instrumentos jurídicos adequados para viabilizar sua materialização e para garantir sua tutela jurisdicional, seja por meio de um novo Direito Processual, seja por meio de uma Teoria Geral das Ações Constitucionais69.
Os chamados novos direitos, conforme já mostrado, poderão ser
considerados direitos de terceira, de quarta e de quinta dimensão, variando
conforme a classificação que se deseja aderir.
Temos, como novos direitos, os direitos relacionados à criança e ao
adolescente, novos direitos relacionados às mulheres, direitos dos idosos, do
consumidor, direitos para proteção do meio ambiente, direitos para tutelar a
informatização, a realidade virtual e direito relacionado à vida e à morte e demais
questões tratadas pelo biodireito70.
Atualmente, encontramos uma mudança no panorama jurídico em face da
criação desses novos direitos. O reconhecimento dos novos direitos trouxe, também,
no mundo jurídico, novas formas de conflitos, aumentando, de forma avassaladora,
o número de demandas levadas à apreciação do Poder Judiciário.
Assim, surge a necessidade de mudanças em nosso sistema jurídico atual,
com uma nova forma de pensar os litígios, com simplificação de procedimentos e
desburocratização do sistema.
O direito tradicional, centrado na norma, tornou-se defasado e, muitas vezes,
inerte frente aos avanços sociais. Há necessidade de mudança, utilizando-se os
69 WOLKMER, Antonio Carlos. Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 3. 70 OLIVEIRA JÚNIOR: José Alcebíades: Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 167-168.
42
novos sujeitos e instrumentos processuais, novos institutos, enfim, uma nova teoria
geral do direito. Faria, acerca do assunto, ressalta que
Em face das formas coletivas de conflito emergentes dos novos níveis de correlação de forças entre grupos e classes sociais em luta, os conceitos básicos da Ciência do Direito foram perdendo sua operacionalidade. E seus efeitos, sucedendo-se com intensidade cada vez maior, bem como expressando a polarização do confronto entre irracionalidade política e racionalidade tecnocrática, assumiram o caráter de uma crise global do modelo liberal de organização do Estado, rompendo na prática com o efetivo equilíbrio de poderes71.
Poderíamos pensar em uma verdadeira revolução democrática da justiça, na
melhor expressão de Santos que identificou, sucintamente, os vetores principais
dessa transformação: profundas reformas processuais; novos mecanismos e novos
protagonismos no acesso ao direito e à justiça; nova organização e gestão
judiciárias; revolução na formação de magistrados desde as Faculdades de Direito
até à formação permanente; novas concepções de independência judicial; uma
relação do poder judicial mais transparente com o poder político e a media, e mais
densa com os movimentos e as organizações sociais; uma cultura jurídica
democrática e não corporativa72.
Nesse aspecto, surgiram novos institutos processuais que visam à tutela
desses novos direitos. A lei da Ação Civil Pública, o Código de Defesa do
Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outras legislações
específicas para defesa de interesses metaindividuais.
A própria Constituição Federal traz uma abertura para o reconhecimento de
novos direitos, conforme prevê o seu art. 5°, § 2°:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
71 FARIA, José Eduardo. A noção de paradigma na ciência do direito: notas para uma crítica ao
idealismo jurídico. In: FARIA, José Eduardo (Org.). A crise do direito numa sociedade em mudança. Brasília: Universidade de Brasília, 1988, p. 15.
72 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007, p. 33.
43
Nota-se que mesmo estes novos institutos jurídicos já se tornam, muitas
vezes, ineficazes para os direitos emergenciais. A mudança social é muito grande, e
o direito positivado não consegue atender toda essa demanda, tornando-se
fundamental uma modificação na estrutura tradicional do direito estatal, para deixá-lo
mais descentralizado, multidisciplinar e pluralista, em que se estabeleça maior
participação comunitária.
Vemos, ainda, inovações na técnica jurídica, inspiradas num modelo institucional que cria arenas e procedimentos que permitam a cooperação entre juristas, agentes políticos, especialistas e cidadãos nos processos de tomada de decisão. A legislação passa a adotar princípios diretores, códigos deontológicos, agências reguladoras e procedimentos informais de resolução de conflitos. A decisão é produzida de modo negociado, levando em consideração não só o texto legal, mas a programação das políticas públicas, os aspectos éticos e técnicos, e as demandas e as expectativas dos afetados73.
Dessa forma, são as atividades extrajudiciais, não-oficiais, que possibilitarão
a complementação do direito oficial e a renovação de uma teoria jurídica.
Nesse sentido, Wolkmer diz que
[...] novas modalidades não-institucionais de negociação e mediação, juízos arbitrais e Júri popular; formas ampliadas e socializadas de juizados especiais de pequenas causas; extensão e fragmentação de comitês ou conselhos populares de Justiça; criação de tribunais de bairros e de vizinhança; Justiça distrital, Juizado e Juntas itinerantes74.
Cumpre destacar aqui, na construção de uma justiça democrática de
proximidade, as inovações institucionais. Santos ressaltou a justiça itinerante como
um novo marco institucional brasileiro, a título de exemplo, bem como outras
inovações, tal como a justiça restaurativa (que será analisada no próximo capítulo):
No novo marco institucional brasileiro, salientam-se a experiência da justiça itinerante, da justiça comunitária, dos meios alternativos de resolução de
73 ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da globalização – Direito ciência
política. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 147-148. 74 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 151.
44
litígios, da mediação, da conciliação judicial e extrajudicial, da justiça restaurativa e, sobretudo, dos juizados especiais75.
Oliveira Júnior76 defende a relação existente entre os novos direitos e a
mediação, porquanto entende que a mediação é uma solução alternativa de
controvérsias que se estabelece a partir de novos pressupostos epistemológicos. A
mediação aparece como uma alternativa a um direito estatal em crise e como uma
solução transdisciplinar. A conseqüência desse descompasso é o não
reconhecimento ou o reconhecimento tardio de alguns novos direitos.
Uma teoria geral que tratasse a respeito dos direitos da internet, do biodireito,
dos problemas decorrentes da inseminação artificial, da engenharia genética, de
determinados tipos de aborto que, ainda, não são reconhecidos, como o aborto
eugênico, e de uma diversidade de outros direitos que o atual sistema jurídico não
consegue abarcar, seria de fundamental importância para a efetivação destes novos
direitos fundamentais.
A biotecnologia e a engenharia genética, somente a título exemplificativo,
causam profundas modificações em nossos direitos. Nessa seara, temos o
transplante de órgãos e de tecidos, muito comum em nossa sociedade atual; as
novas técnicas de reprodução, o uso da “barriga de aluguel”, a fertilização “in vitro”,
a clonagem de seres vivos, provocando discussões na ordem jurídica que o Direito
igualmente deverá se posicionar.
A nova tecnologia da comunicação e da informação, a internet, já causou uma
transformação radical sobre a sociedade, sobre o Estado e conseqüentemente sobre
todas as relações humanas, tanto na área econômica, social, política, internacional
quanto na jurídica. Diversos novos direitos surgem com a revolução da informática, e
outros tantos conflitos aparecem como ameaça constante nas relações humanas.
75 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: Cortez,
2007, p. 58. 76 OLIVEIRA JÚNIOR: José Alcebíades: Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 167-168.
45
A lesão aos direitos da privacidade, com reflexos em danos morais, materiais,
lesão patrimonial, oriundos de contratos virtuais, crimes pela utilização indevida da
internet, pirataria eletrônica, tudo exige uma atuação mais forte de nosso direito.
É indispensável afirmar que o Direito somente irá se posicionar a respeito no
sentido de dar uma resposta eficaz a esta variedade de novas situações,
decorrentes do avanço tecnológico, quando estiver em consonância com as demais
ciências.
O Positivismo, com os seus princípios e institutos, não serve para regular os
novos paradigmas. Este é problema central, a formulação de uma nova teoria geral
que se adapte à evolução social. Os operadores do direito já não conseguem
resolver os novos litígios com os instrumentos jurídicos atuais, postos à disposição.
Em realidade, o sistema atual não se presta para atender à demanda de
novas necessidades. Por mais que houvesse a produção de normas, pelo poder
legitimado, nunca teríamos um sistema capaz de acompanhar a nossa realidade. A
crescente revolução social, em todas as áreas, faz com que o paradigma positivista
produza um número cada vez maior de normas e, principalmente, de normas pouco
efetivas.
Portanto, urge a criação de uma teoria geral do direito que delegue maior
participação comunitária, evitando o aglomerado de processos em nosso Judiciário,
uma teoria geral que acompanhe o desenvolvimento, utilizando-se,
fundamentalmente, da contribuição das outras ciências, ou seja, uma teoria menos
centralizada e pluridisciplinar.
A nova realidade almeja novos direitos. As outras ciências evoluem a cada
dia que passa, e o Direito continua a utilizar os mesmos instrumentos que eram
utilizados séculos atrás.
Os direitos transindividuais são características de uma nova sociedade, uma
realidade marcada pelos avanços tecnológicos e, principalmente, pela globalização
46
nas comunicações, nas informações e nas relações econômicas. Surgem os
conflitos em massa, como característica deste novo panorama social, mormente por
se tratar de uma sociedade com culturas tão diversas como as existentes em nosso
país e no plano internacional.
Hoje não há Estado e, sim, Estados distintos em diferentes países com realidades totalmente distintas. Não posso comparar facilmente o Estado da Argentina com o Estado de Moçambique ou mesmo com o da Colômbia. São coisas distintas, e é preciso ver as possibilidades de alternativas77.
Uma nova sociedade exige uma nova forma de pensar e de agir, e é assim
que surgem os novos direitos.
Nesse contexto, Brandão afirma que
[...] todas as transformações no relacionamento entre Estado e Sociedade Civil – quer nos momentos de transformação absoluta, como ocorreu no surgimento do Estado Moderno e na passagem deste para o Estado Contemporâneo, quer nas modificações cada vez mais intensas e velozes experimentadas por este último – vão induzir importantes modificações no Direito, com o surgimento de direitos que eram impensáveis no interior do Estado Contemporâneo e estes, por sua vez, vão desafiar a criação de instrumentos capazes de dar-lhes a tutela devida78.
Brandão79 ainda considera que a relação entre os direitos da atualidade já
não permite mais se pensar que eles possuam caráter absoluto, posto que há uma
evidente relatividade na manifestação dos direitos.
Ele utiliza o exemplo do direito de paternidade em oposição ao direito social
de colocar as crianças e os adolescentes a salvo da negligência, da discriminação,
da exploração, da violência, da crueldade e da opressão. É o limite imposto pela
norma. Da mesma forma que a defesa dos direitos ambientais poderá causar um
77 SANTOS, Boaventura de Souza. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social.
São Paulo: Boitempo, 2007, p. 125. 78 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis:
Habitus, 2001, p. 74. 79 Ibidem, p. 131.
47
prejuízo a um direito de ordem econômica ou social. É o próprio direito à vida em
contraposição ao direito à morte com dignidade, pela eutanásia80.
O conflito destes direitos fundamentais é o que a doutrina moderna chama de
“colisão de direitos fundamentais”81. Esta conflituosidade mostra que os novos
direitos possuem um conceito aberto e em constante transformação, e que já não
existem mais direitos absolutos. Este é o critério da preponderância dos direitos, que
não será objeto de análise neste trabalho.
Além dessa diversidade apresentada, não há como falar em novos direitos
sem retomarmos à questão do pluralismo jurídico. Assim, cumpre mencionarmos
uma definição dada por Wolkmer que referiu o pluralismo jurídico como:
[...] a multiplicidade de manifestações ou de práticas normativas num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais82.
Para Santos, são importantes para uma concepção pós-moderna de direito o
pluralismo jurídico e a interlegalidade. No que se refere ao pluralismo jurídico, o
autor esclarece que:
Não se trata do pluralismo jurídico estudado e teorizado pela antropologia jurídica, ou seja, da coexistência, no mesmo espaço geo-político, de duas ou mais ordens jurídicas autônomas e geograficamente segregadas. Trata-se, sim, da sobreposição, da articulação e da interpenetração de vários espaços jurídicos misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajetórias pessoais e sociais, quer na rotina morna do cotidiano sem história83.
80 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e acesso à justiça. Florianópolis:
Habitus, 2001, p. 131. 81 A colisão de direitos fundamentais se caracteriza por um conflito in concreto de direitos fundamentais.
[...] Em outras palavras, os direitos colidem porque não estão dados de uma vez por todas; não se esgotam no plano da interpretação in abstracto. As normas de direito fundamental se mostram abertas e móveis quando de sua realização ou concretização na vida social. Daí a ocorrência de colisões. STEINMETZ, Wilson. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 63.
82 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. XII.
83 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente - Contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 221.
48
Canotilho denominou a Teoria Democrático-pluralista como um processo de
formação da vontade democrática não assentada nem no povo indiferenciado dos
sistemas plebiscitário, nem no indivíduo abstrato da Teoria Liberal, mas, sim, em
grupos definidos através da freqüência de interações sociais84.
Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma pluralidade heterogênea de direitos dentro do mesmo campo social. O pluralismo de direitos pressupõe uma sociedade multicultural (pluralismo cultural) formada por vários grupos culturais (índios, hispânicos, cabo-verdianos, africanos, turcos, indianos) que produzem normas (relativas, por ex., a casamentos, modas, contratos, ensino de religião) que atuam no mesmo espaço social e interagem com as normas produzidas pelas macroculturas dominantes nesse mesmo espaço85.
Boaventura de Souza Santos, em sua obra “O discurso e o poder”; ensaio
sobre a sociologia da retórica jurídica86, traz um exemplo de pluralismo jurídico. Ele
utiliza-se do seu trabalho de campo, realizado no início da década de 70, segundo o
método sócio-antroplógico da observação participante, no interior de um grande
bairro da Lapa do Rio de Janeiro, que chamou de Pasárgada. Nesse, a associação
de moradores transformou-se em verdadeiro fórum jurídico, à volta do qual se foi
desenvolvendo uma prática e um discurso jurídico – o direito de Pasárgada que é
um direito paralelo, não oficial, cobrindo uma interação jurídica muito intensa à
margem do sistema jurídico estatal, que ele denominou direito do asfalto.
O segundo conceito-chave de sua visão pós-moderna87 do Direito é o
conceito de interlegalidade, que seria uma dimensão fenomenológica do pluralismo
84 CANOTILHO, J.J.G..Direito constitucional e Teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina,
1997, p. 1357. 85 Ibidem, p. 1389. 86 SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da retórica
jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 09 a 42. 87 Pós-moderno também não contempla uma conceituação unívoca. Da mesma forma como a
modernidade tem sido associada ao estilo, categoria de época ou a forma de organização social, os conceitos de pós-modernidade variam no mesmo diapasão. Nela se abrigam uma pluralidade de discursos de pensamento acerca de temas dispersos, unidos talvez pelo liame da defesa, em maior ou menor grau, de uma cultura ante ou pós-iluminista. [...] O estatuto do saber pós-moderno se diferencia do seu precedente antes de tudo pelo ceticismo quanto ao status legitimador conferido às idéias unificadoras e totalizantes pela racionalidade moderna. [...] Torna-se evidente uma inequívoca mudança na forma de olhar o “real”, entre a visão moderna e a visão pós-moderna do mundo. Percebe-se, nos ambientes sociais, o emergir de um novo olhar, de um novo “estado de espírito”, ditado em larga medida pelas peculiares condições históricas mundiais instaladas nos últimos decênios. [...] Funcionando com os seus conceitos e os seus modelos, o pós-modernismo
49
jurídico. Trata-se, nessa concepção, de um processo dinâmico porque os diferentes
espaços jurídicos não são sincrônicos, o que justificaria esta mistura de leis. O que
Santos deseja é a construção de um novo senso comum jurídico capaz de sustentar
a inteligibilidade e as lutas emancipatórias na transição paradigmática88.
Wolkmer aborda também a questão da transição de paradigmas, da crise do
modelo jurídico liberal-individualista, que não oferece respostas satisfatórias frente
ao processo cada vez mais rápido de desenvolvimento social.
[...] os paradigmas que produziram um ethos, marcado pelo liberalismo individual, pelo racionalismo instrumental e pelo formalismo positivista, bem como os que mantiveram a logicidade do discurso filosófico, científico e jurídico têm sua racionalidade questionada e substituída por novos modelos de referência89.
Segundo o autor, o novo pluralismo engloba a legitimidade dos novos sujeitos
coletivos, a implementação de um sistema justo de satisfação das necessidades, a
democratização e a descentralização de um espaço público participativo, o
desenvolvimento pedagógico para uma ética concreta de alteridade e a
consolidação de processos conducentes a uma racionalidade emancipatória.
O pluralismo jurídico é apontado como sendo aquele modelo aberto e
democrático, privilegiando a participação direta dos sujeitos sociais, a defesa da
legalidade a partir da multiplicidade de fontes normativas, não obrigatoriamente
estatais90.
tem valor paradigmático. Ele é a pedra angular de todo um sistema de pensamento fundamentado sobre a idéia do “plural”, do “negociado”, do “complexo”. Mas, como todo o paradigma, ele engendra seus próprios paradoxos. Encontramos, assim, antinomias que surgem no decorrer do processo da globalização: a do universal e do particular; a do global e do local, a desregulação e da re-regulação, a do enfraquecimento e do retorno do Estado, a da igualdade entre sujeitos do Direito na sociedade diferenciada que se anuncia com a “grande sociedade” ou a “sociedade aberta” louvada pelo neoliberalismo. Pós-modernidade e globalização se encontram, por vezes, lado a lado: contra o intervencionismo do Estado e pelo desenvolvimento da sociedade civil, a favor da flexibilidade, de estar atento às transformações (ARNAUD, André-Jean; JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Dicionário da globalização – Direito ciência política. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 351-356).
88 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente - Contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 220.
89 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 208.
90 Ibidem, p. 69.
50
Nessa mesma linha de pensamento, podemos citar Häberle91, com o seu
método de interpretação concretista da “Constituição Aberta”. O autor indaga sobre
os participantes do processo de interpretação. A interpretação constitucional,
segundo ele, tem sido até agora coisa de uma “sociedade fechada”, concentrada,
primeiramente, na interpretação dos juízes e nos procedimentos formalizados. Mas,
na realidade, a interpretação constitucional é mais um elemento de uma sociedade
aberta. Os critérios de interpretação constitucional serão mais abertos, quanto mais
pluralista for a sociedade. É uma verdadeira democratização da interpretação
constitucional. Cidadãos, grupos, órgãos estatais, sistema público, opinião pública,
autor e réu no processo, associações, partidos políticos, imprensa, igreja, dentre
outros, são pré-intérpretes da Constituição, ou seja, intérpretes em sentido amplo.
Subsiste, ainda, a última palavra da jurisdição constitucional. É uma mediação entre
Estado e sociedade.
Para o autor, em uma sociedade aberta, o cidadão é intérprete da
Constituição, e a democracia se desenvolve, especialmente, mediante a realização
dos direitos fundamentais. Uma sociedade é livre e aberta na medida em que se
amplia o círculo dos intérpretes da Constituição.
As idéias, defendidas por Häberle, se coadunam com as desse pluralismo
jurídico comunitário92. O que visa o pluralismo jurídico é que a criação de novos
direitos não se vincule tão-somente aos órgãos representativos do Estado,
porquanto a verdadeira origem do Direito são justamente as práticas sociais, e, aqui,
ressalta-se a importância das associações, dos sindicatos, dos diversos movimentos
sociais e comunitários.
Wolkmer afirma que
Em cada um desses grupos comunitários de interesses, livremente organizados, ocorre um Direito “interno”, “informal”, “autônomo” e “espontâneo”, paralelo e independente do Estado, dos códigos oficiais, das
91 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre:
Sérgio Fabris (Safe), 1997, p. 52. 92 Ibidem, p. 52.
51
legislações elaboradas pelas elites políticas dominantes e dos juízes nos tribunais estatais93.
Trata-se do pluralismo de formulações jurídicas, provenientes diretamente da
comunidade, emergindo de vários e de diversos centros de produção normativa,
adquirindo um caráter múltiplo, informal e mutável. A validade e a eficiência desse
“Direito Comunitário”, que não se sujeita ao formalismo a-histórico das fontes
tradicionais (lei escrita e jurisprudência dos tribunais), está embasado nos critérios
de uma “nova legitimidade” gerada a partir de valores, de objetivos e de interesses
do todo comunitário e incorporados através da mobilização, de participação e de
representação dos movimentos sociais94.
É a idéia de que a revolução democrática do Direito e da justiça só faz sentido
no âmbito de uma revolução democrática mais ampla que inclua a democratização
do Estado e da sociedade, conforme amplamente defendido por Santos95. O autor
prossegue, destacando que as sociedades atuais são, por natureza, pluralistas,
coexistindo vários sistemas judiciais, sejam eles estatais ou não-estatais:
É, no entanto, importante ter presente que as sociedades contemporâneas são jurídica e judicialmente plurais. De um ponto de vista sociológico, circulam nelas vários sistemas jurídicos e judiciais e o sistema jurídico estatal nem sempre é, sequer, o mais importante na gestão normativa do quotidiano da grande maioria dos cidadãos96.
Os novos direitos nascem das necessidades humanas fundamentais. Na
realidade, os chamados novos direitos, muitas vezes, não se concretizam como
inteiramente novos, uma vez que já existiam, inclusive na ordem constitucional,
porém nunca efetivados. Somente após um processo de lutas de classes, de
reivindicações de grupos sociais, é que esses direitos se tornaram realizados,
muitas vezes, reformados com nova interpretação e aplicação.
93 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 140. 94 Ibidem, p. 142. 95 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: Cortez,
2007, p. 9. 96 Ibidem, p. 9.
52
Assim, a designação de novos direitos refere-se à afirmação e à materialização de necessidades individuais (pessoais) ou coletivas (sociais) que emergem informalmente em toda e qualquer organização social, não estando necessariamente previstas ou contidas na legislação estatal positiva97.
Ressalta-se que a idéia de pluralismo jurídico, com participação direta da
sociedade na organização social, política e até jurídica, contribuindo para criação de
novos direitos, já existe na Constituição Federal brasileira de 1988.
O art. 1°, parágrafo único, traz a idéia da democracia direta: “Todo o poder
emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”. Da mesma forma, o art. 14, inc. III (“A soberania
popular será exercida [...] mediante: I-plebiscito; II – referendo; III – iniciativa
popular”), art. 29, inc. XI (“O Município reger-se-á por lei orgânica [...] atendidos [...]
os seguintes preceitos: XI - iniciativa popular de projetos de lei de interesse
específico do município, da cidade ou de bairros [...]” e art. 61, §2° (“ A iniciativa
popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto
de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional [...]”, todos da
Constituição Federal.
A própria Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347 de 1985) dispõe em seu art. 5°
a legitimidade de agir das associações ou dos entes coletivos para impetrar medidas
legais, objetivando a defesa do meio ambiente e dos consumidores. Outros
inúmeros exemplos poderiam ser trazidos, todos eles procedimentos já codificados,
oficiais que disciplinam a participação da sociedade.
Essa participação social, prevista ou ainda não prevista em lei, é de
fundamental importância para o crescimento de uma nação e, também, para criação
de novos direitos. É a democracia na luta pelos direitos sociais.
A “democracia” é o regime político que consente o desenvolvimento pacífico dos conflitos, e, por meio destes, as transformações sociais e institucionais. Legitimando e valorizando igualmente todos os pontos de vista externos e
97 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 151.
53
as dinâmicas sociais que os exprimem, ela legitima a mudança por meio do dissenso e do conflito98.
A constituição de um novo paradigma da política e do jurídico está
diretamente vinculada ao surgimento comunitário-participativo de novas agências de
jurisdição não-estatais espontâneas, estruturadas por meio de processos de
negociação, de mediação, de conciliação, de arbitragem, de conselhos e de tribunais
populares.
Não se trata aqui, segundo Wolkmer99, das formas de conciliação, dos juízos
arbitrais e dos juizados especiais, já previstos e consignados no interior da
legislação estatal positiva, mas de instâncias e de procedimentos mais amplos, em
regra, informalizados e independentes, nascidos e instaurados pela própria
sociedade e pelos seus múltiplos corpos intermediários, quase sem nenhuma
vinculação com os órgãos do Estado. Para o autor, é necessário que essas formas
de conciliação e de arbitragem, já previstas em nossa legislação, sejam ainda mais
ampliadas, socializando-as muito mais.
Há toda uma diversidade de procedimentos não-institucionalizados, informais
de produzir direitos que são legitimados pelo surgimento de novos sujeitos coletivos
de juridicidade. É a chamada mudança ou transição de paradigmas.
A transposição de uma cultura monista centralizadora para uma cultura pluralista descentralizadora acaba alcançando, nas novas identidades históricas, o ponto mais amplo e culminante do complexo processo de reconstrução paradigmática100.
É o que a doutrina chama de lenta e gradual mudança paradigmática, o que
corresponde a uma nova cultura político-jurídica pluralista. Um novo modelo de
direito se relaciona diretamente com uma mudança nos padrões teóricos, ou melhor,
com novos paradigmas.
98 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 872. 99 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 276-280. 100 Ibidem, p. 306.
54
Santos chama esta mudança de ruptura epistemológica com o modelo
científico de racionalidade dominante. Para tanto, o autor defende o reconhecimento
da diversidade cultural e da inesgotável experiência social que é desperdiçada pela
imposição de uma única cultura dominante estatal. Ele defende que a discussão
paradigmática do direito moderno, em conjunto com a da ciência moderna, irá
esclarecer os termos e as direções possíveis da transição para um novo paradigma
societal:
A primeira questão é a do reconhecimento de que, na sociedade, há uma pluralidade de ordens jurídicas, de formas de poder e de formas de conhecimento. É o resultado mais importante da minha crítica, quer ao paradigma positivista moderno do direito e do poder, centrado no Estado, quer ao paradigma positivista moderno do conhecimento, centrado na ciência101.
Santos conclui que
[...] estamos a entrar num período de transição paradigmática entre a sociabilidade moderna e uma nova sociabilidade pós-moderna cujo perfil é ainda quase imperscrutável e até imprevisível. Uma transição paradigmática é um longo processo caracterizado por uma suspensão “anormal” das determinações sociais que dá origem a novos perigos, riscos e inseguranças, mas que também aumentam as oportunidades para a inovação, a criatividade e a opção moral102.
Nesse contexto, constatou-se que os paradigmas que explicam a condição e
a possibilidade de existência, delineadas pelo idealismo individual, pelo racionalismo
liberal e formalismo positivista, que mantiveram o rigor lógico do discurso filosófico,
científico e jurídico, têm seus substratos abalados, questionados e substituídos por
novos padrões valorativos de referência, de fundamentação e de legitimação.
Wolkmer, a respeito do assunto, salienta que
[...] o reconhecimento de uma outra cultura jurídica só pode ocorrer sob a condição de deslocamento, de transformação e de ruptura substancial com as formas tradicionais e centralizadoras de se fazer o “jurídico”. Daí que pensar em mudança paradigmática no Direito a partir de fundamentos de efetividade “material” e “formal” nos encaminha para uma proposta “prático-
101 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente - Contra o desperdício da
experiência. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 261. 102 Ibidem, p. 186.
55
teórica”; de pluralismo viabilizador das condições de um Direito Comunitário103.
No que se refere à questão do pluralismo, convivendo com o direito oficial do
Estado, o autor faz a consideração de que o direito formal do Estado e o direito
informal dos sujeitos sociais emergentes podem ocorrer por “supremacia de um dos
dois”, “complementação” e “interdependência”104.
No primeiro caso, dependerá do grau de organização e do avanço em que se
encontra a ordem jurídica (estatal ou não). No caso de complementação, não sendo
o direito informal (comunitário) suficientemente forte e eficaz, poderá ser integrado
ao ordenamento jurídico formal do Estado. No último caso, cada sistema respeitará
a existência do outro, cada um com a sua área de atuação.
Ainda, segundo Wolkmer,
A criação permanente de novos direitos, assumindo dimensão individual, política e social, está diretamente relacionada com o grau de eficácia de uma resposta à situação ou condição de privação, negação ou ausência de necessidades reinvindicadas por sujeitos coletivos105.
O reconhecimento de um novo paradigma de validade para o Direito,
representado pelo pluralismo, é o que ele chama de pluralismo jurídico comunitário-
participativo.
Quando se afirma que a ciência jurídica atual não está apta para dar conta
dos ditos novos direitos, é porque ela, por um lado, centrou a problemática jurídica
no âmbito dos Estados-nações e de suas soberanias, e isto precisa hoje ser
relativizado; por outro, porque, em nome da democracia e do relativismo valorativo,
103 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico - Fundamentos de uma nova cultura no
Direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 314. 104 WOLKMER, op. cit., p. 317. 105 Ibidem, p. 323.
56
fundou-se em um isolamento disciplinar que hoje não se sustenta, pois os conflitos
de que o Direito tem que dar conta requerem uma visão inter ou transdisciplinar106.
Para Oliveira Júnior,
O direito só existe no plano das relações humanas, devendo então ser pensado não como um instrumento que opõe um contra o outro, mas como um instrumento que harmoniza a convivência de ambos. E é esta ampla revolução na mentalidade que ainda está por ser feita, para que a ciência jurídica possa dar conta dos novos direitos107.
O autor ainda cita dois exemplos de ineficácia e de inefetividade dos direitos
fundamentais108. Um dos mais importantes direitos fundamentais que, para grande
parte da população, ainda fica distante, é o acesso à justiça, que será
posteriormente objeto de análise no presente trabalho.
Descentralização, controle e participação, simplificação dos procedimentos judiciários e administrativos, desregulação, desprofissionalização e promoção de um espírito de colaboração e da pacífica coexistência (especialmente no âmbito das relações contínuas, de comunidade e de vizinhança), representam, de fato, os cuidados que se procura introduzir contra os perigos e a opressão do burocatismo governativo, do legalismo, do tecnicismo jurídico-administrativo, com todos os seus riscos inerentes de retardo, de despesas inúteis e de complicações, de excessiva litigiosidade de falsa separação das reais e permanentes exigências da sociedade109
Os direitos das crianças e dos adolescentes também, conforme o autor, são
outro exemplo de inefetividade e ineficácia dos direitos fundamentais, mesmo depois
de quase vinte anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que
também será objeto de estudo nesta dissertação.
A posição que se pretende adotar na elaboração deste trabalho é a defesa
de novos institutos pluridisciplinares e democráticos, com ênfase nos adolescentes
106 OLIVEIRA JÚNIOR: José Alcebíades: Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2000, p. 104. 107 OLIVEIRA JÚNIOR, p. 107. 108 Ibidem, p. 146-148. 109 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso alla giustizia come programa di riforma e come método di pensiero.
Rivista di Diritto Processuale, Padova, v. 27, n. 2, p. 243, 1982.
57
infratores, objetivando estimular a participação comunitária na resolução dos
conflitos e a conseqüente diminuição da reincidência.
É a busca de um novo parâmetro de justiça ou de um complemento
qualitativo aos seus atuais princípios, a que se denomina justiça restaurativa, de
acordo com Giacomolli:
O que se propõe é uma Justiça Restaurativa, capaz de reconstruir o que foi destruído pela infração criminal, a qual representa a ponta da espada. Esta destruição se opera numa relação réu-réu, réu-vítima e réu-Estado, abarcando sujeitos individuais, familiares e o entorno vital. A pirâmide existencial necessita ser reconstruída com emprego de material sólido e confiável. O cárcere dificilmente cumprirá esta missão. Ao contrário, representa a matéria fétida, pútrida, inconsistente, propiciadora da próxima queda. O recolhimento à prisão soterrará o que sobrou dos escombros vitais. Em suma, a Justiça clássica, repressiva, como é concebida, está longe de fornecer as soluções eficazes110.
Assim, pretende-se, no próximo capítulo, abarcar as principais idéias da
justiça restaurativa, com uma visão baseada no que Giacomolli afirmou como sendo
um material a ser utilizado na reconstrução da pirâmide vital do ser humano, ou seja,
uma conciliação educadora, participativa, tolerante e pacificadora, capaz de
comprometer o ser humano111.
110 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 98. 111 Ibidem, p. 98.
58
2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM CONTRIBUTO PARA A JURISDIÇÃO PENAL E INFRACIONAL
Assim como os novos direitos, há necessidade de reconhecermos outras
formas de lidar com a justiça, outras culturas jurídicas. No capítulo anterior,
buscamos justamente tratar da transição de paradigmas que nos leva ao pluralismo
jurídico e aos chamados novos direitos. Encontrar um sistema jurídico que seja
capaz de se adequar aos novos tempos é o grande questionamento que se faz. Um
sistema jurídico que seja capaz de aproximar o cidadão, que seja capaz de dar
efetividade aos direitos fundamentais é o que se deseja.
A nossa meta deve ser a criação de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a sentirem-se mais próximos da justiça. Não haverá justiça mais próxima dos cidadãos, se os cidadãos não se sentirem mais próximos da justiça112.
Com esse pensamento, é que se procuram apontar alternativas,
complementos à justiça tradicional. No nosso entendimento, não há como se pensar
em um novo modelo de justiça sem a participação cidadã. Da mesma forma, em
relação à justiça penal, Giacomolli sugere que
A justiça penal se enquadra dentro desse contexto sociológico, que exige um tratamento voltado à participação cidadã, mais solidário na aceitação de uma solução dialética, menos hierarquizada, menos formalizada, menos coativa, capaz de comunicar-se com o acusado e com a sociedade113.
Na busca de um modelo participativo, pluridisciplinar e, principalmente,
democrático, capaz de lidar com os novos direitos, é que surge a justiça
restaurativa.
112 SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: Cortez,
2007, p. 89. 113 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 77.
59
É neste contexto que trabalhamos a justiça restaurativa, como um
complemento e uma alternativa114 ao sistema tradicional e contemporâneo de
justiça. Neste capítulo, apresentaremos as noções básicas destas práticas
restaurativas, iniciando com um breve histórico, conceitos e seus principais
princípios, com ênfase na mediação penal. Em seqüência, procuraremos apontar as
legislações existentes, em nosso país, capazes de recepcionar esta forma de justiça.
Por fim, será feita uma breve exposição das experiências já vivenciadas por alguns
países.
2.1 BREVE HISTÓRICO
Uma nova maneira de pensar a delinqüência juvenil e adulta está sendo alvo
de debates e de estudos atualmente, em nosso País. É a denominada justiça
restaurativa. Tal expressão começou a ser idealizada, refletida e até utilizada em
alguns seguimentos sociais, mormente no que tange à prática jurídica. De acordo
com Neto:
A justiça tal como a conhecemos é provavelmente a mais sofisticada e acabada obra do engenho humano. Mas está sobrecarregada e tende ao colapso, por força da tensão entre a missão própria do Direito Penal (“investigar e castigar os culpados”) e os processos cada vez mais adornados de garantias e direitos dos acusados115.
Sabe-se que, antigamente, nas tradições de alguns povos, no oriente e no
ocidente, práticas de justiça restaurativa eram utilizadas. Tais princípios teriam
norteado e caracterizado os procedimentos de justiça comunitária na maior parte da
história dos povos do mundo. Tais tradições foram sendo afastadas pelo modelo
114 Gize-se que o termo alternativa, o qual será utilizado muitas vezes no decorrer deste trabalho, não
significa substituição e, sim, uma nova opção existente que irá se somar com outra. No caso, a justiça restaurativa poderá vir a acrescentar algo à justiça tradicional retributiva, porém jamais substituí-la.
115 SCURO NETO, Pedro. Justiça, quem aproveita? Disponível em: <http://www.nest.org.br/textos.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
60
dominante de justiça criminal, conforme nos deparamos hodiernamente. A justiça
criminal como forma de punição tomou frente aos demais parâmetros de justiça116.
Principalmente, pode-se dizer que práticas restaurativas eram notadas em
comunidades nativas, onde havia formas de negociações, baseadas nos costumes,
nas resoluções dos problemas, nos próprios grupos internamente, em que não se
descartava a vingança e, também, a morte. Nos códigos de Hammurabi (1700 AC),
de Eshunna (1700 AC), no sumeriano (2050 AC) e de Lipit-Ishar (1875 AC.), havia
normas tendentes às práticas restaurativas117.
Antes da “justiça pública”, não teria existido tão-somente a “justiça privada”, mas, mais amplamente, práticas de justiça estabelecidas consensualmente nas comunidades e que operavam através de processos de mediação e de negociação, em vez de imposição pura e simples de regras abstratas118.
Conforme Rolim119, o pesquisador Albert Eglash é normalmente apontado
como o primeiro a ter empregado a expressão “justiça restaurativa” em um texto
datado em 1977, com o título “Beyond Restitution: Creative Restitution”.
Na realidade, o modelo restaurativo de justiça foi dominante na maior parte da
história humana, sendo que o paradigma punitivo preponderou nos últimos dois ou
três séculos120.
A partir dos séculos XI e XII, com a revalorização da Lei Romana e com a Lei
Canônica, oriunda da Igreja Católica, começou a se observar uma transição das
práticas restaurativas ou da justiça comunitária para um sistema público de justiça
116 SCURO NETO, Pedro. Justiça, quem aproveita? Disponível em: <http://www.nest.org.br/textos.html>. Acesso
em: 17 nov. 2007. 16h. 117 JACCOULD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa.
Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
118 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 237.
119 Ibidem, p. 236. 120 BRAITHWAITE, John. Experiments in restorative policing - reintegrative shaming of violence,
drink driving & property crime: a randomised controlled trial. Disponível em: <http://www.aic.gov.au/rjustice/rise/progress/1997.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
61
retributiva. Em meados do século XIX, o modelo contemporâneo de justiça
retributiva tornou-se praticamente a única regra aceitável. Houve a criação, com tal
mudança, de um modelo de justiça criminal separado do modelo de justiça civil, em
que a idéia de punição passa a ser normativa, e o monopólio, a ser estatal. Portanto,
a idéia de punir, de uma prática coercitiva sobrepõe-se a qualquer outro modelo de
justiça que se possa imaginar121.
Em que pese esta supremacia do poder estatal em suas práticas punitivas e
do modelo retributivo de justiça penal, o movimento restaurativo integrava-se em
vários domínios da vida social e jurídica. No final do século XIX, o movimento
restaurativo dava as suas primeiras demonstrações nas disputas laborais. No século
XX, os seus programas e instrumentos eram aplicados a conflitos comerciais, a
discriminações e a conflitos étnicos, de cor de pele ou de origem nacional, a
questões de ordem sexual, familiar, penal, ambiental e de consumo. Na década de
oitenta, assistir-se-ia a um significativo incremento da mediação vítima-agressor e,
na década de noventa, à sua internacionalização em larga escala, inicialmente
suscitado pelo interesse em promover um paradigma menos repressivo e punitivo do
sistema global de reeducação dos jovens agressores e pela necessidade de
reparação das vítimas do crime. Por fim, aplicavam-se, também, as práticas
restaurativas aos adultos122.
Segundo Pinto123, o país pioneiro na implementação de práticas restaurativas,
inspiradas nos costumes dos aborígines Maoris, foi a Nova Zelândia, que tem
adotado o modelo dos chamados family group conference (para os infratores jovens
e para as crianças) e dos community group conferences (para os infratores adultos),
com grande sucesso em termos de prevenção de reincidência de infratores naquele
país.
121 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século
XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 237.
122 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 21.
123 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa. Disponível em: <http://www.damasio.com.br/index.php?category_id=32&page_name=art_031_2004>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
62
As reuniões de restauração surgiram em 1989, com a aprovação da Lei sobre
Crianças, Jovens e suas Famílias, na Nova Zelândia. As raízes dessas reuniões
encontram-se nas reuniões Whanau, dos Maories, aborígines desse país. Com sua
forte família estendida e suas relações de parentesco, os Maories haviam
empregado as reuniões Whanau como um meio para abordar os problemas com
seus jovens124. Na realidade, a aprovação da lei surgiu da insatisfação que sentiam
os Maóries, quanto ao dominante e tradicional sistema ocidental de justiça para com
os menores que, cada vez mais, os privava de suas responsabilidades com relação
aos mesmos125.
A lei estabeleceu um novo modo de tratar os menores: em lugar de processá-
los através dos tribunais, com a ajuda da polícia e dos serviços para a proteção das
crianças, a lei outorgou maior poder de tomada de decisões à família do jovem
delinqüente, a fim de que esta decida, com o aporte da vítima e de outros grupos de
apoio da comunidade, a sanção apropriada para o menor126.
Já no Canadá, as raízes do modelo restaurativo de justiça originaram-se dos
tradicionais métodos aborígines de resolução de conflitos, conforme os
pesquisadores, com o envolvimento comunitário. O motivo apontado para a sua
criação era o das superpopulações de pessoas de origem aborígine nas instituições
correcionais do país, o que alertava para uma nova abordagem mais adequada, que
foram os sentencing circles para os criminosos aborígines127.
124 BARRISTER, Helen Bowen. Restorative Justice and the Court of Appeal’s Consideration in
the Clotworthy Case. Disponível em: <http://www.firstfound.org/vol.%201/bowen.htm>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
125 UMBREIT, Mark S. Impact of restorative justice conferencing with juvenile offenders: What we have learned from two decades of victim offender dialogue through mediation and conferencing. Disponível em: <http://rjp.umn.edu/img/assets/13522/Victim_Impact_RJC_with%20_Juvenile_Offenders.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
126 MAXWELL Gabrielle. Restorative justice developments in the pacific region: a comprehensive survey. Contemporary Justice Review, v. 9, n. 2, p. 127-154, June 2006.
127 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 23.
63
Rolim128 observa que sociedades pré-coloniais africanas também se
preocupavam em enfrentar as conseqüências sofridas pelas vítimas, ao invés de,
simplesmente, punir os agressores. Tal procedimento visava a restaurar a posição
anterior experimentada pelas vítimas. As sanções aplicadas eram nesse sentido e
tinham esse objetivo. Sua finalidade era a de restaurar o equilíbrio sofrido na
comunidade, de reparar o mal causado e de restabelecer o relacionamento entre as
pessoas: é a prática de justiça comunitária.
Conforme Neto, na década de setenta, estudiosos, professores e ativistas
começaram a debater a viabilidade da mediação entre vítimas e infratores. As idéias
evoluíram e, em 1990, em uma conferência sobre processos de justiça penal na
Europa, os participantes deram-se conta do surgimento de um novo modelo ou
paradigma de justiça. A partir daí, o interesse nesse modelo de justiça não parou de
crescer129.
O sucesso de diversos projetos restaurativos em todo o mundo levou a ONU
a compor, em 2002, uma declaração sobre os princípios básicos de justiça
restaurativa, um documento conhecido por “Declaração de Viena”, em 20 de abril de
2002130.
Em síntese, apesar de registros, na época antiga, de práticas comunitárias ou
restaurativas, elas originaram-se nos anos 70 como uma mediação entre vítimas e
transgressores, sendo que, em 1990, a justiça restaurativa foi ampliada para incluir
comunidades de assistência com as famílias e os amigos das vítimas e os
transgressores, participando de processos colaborativos denominados conferências. A justiça restaurativa despontava, dessa forma, como um poderoso movimento
global de reformulação do modo convencional de definir crime e justiça.
128 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século
XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 237.
129 SCURO NETO, Pedro. Movimento restaurativo e a justiça do século XXI. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
130 Ibidem.
64
O discurso tradicional alternou entre as doutrinas retributivas e as de
prevenção, geral ou especial. Porém, a crise da justiça incita a encontrar soluções, a
fazer reformas e, em certos casos, colocar radicalmente em causa os fundamentos
do sistema anterior. Para tal, era fundamental um novo discurso, que foi chamado de
restorative justice, isto é, justiça restaurativa131.
De acordo com Sica132, especialmente, a partir dos anos 70, vários fatores
motivaram o ataque à justiça tradicional. Inicialmente, os fortes movimentos entre
advogados e acadêmicos para proteger os direitos dos condenados, as restrições
ao uso da prisão e o aperfeiçoamento das condições dentro das instituições, tudo
isso impulsionado por uma nova compreensão do comportamento criminoso e de
sua ligação com o ambiente social. Depois, as crescentes taxas de criminalidade
nas zonas urbanas e a organização de grupos de apoio às vítimas (vitimologia).
Todos esses movimentos levaram ao aparecimento de alternativas garantidoras dos
direitos humanos.
O que se percebe é a preocupação com a (re) legitimação do sistema de justiça: a correspondência entre o funcionamento das instituições e aspirações da comunidade; a relação de aproximação entre “autoridades” e “jurisdicionados”; a observância dos valores próprios a cada base cultural local e até subculturas (que num país como o Brasil são múltiplas); a informalização no sentido de evitar as cerimônias degradantes do processo penal e a liturgia incompreensível para a população e, principalmente, o estabelecimento de uma linguagem, de um procedimento comunicativo de integração, não de distanciamento133.
Para Jaccould134, a justiça restaurativa é o fruto de uma conjuntura complexa.
A autora faz a ressalva no sentido de que seria errôneo atribuir a origem da justiça
restaurativa tão-somente às práticas dos povos nativos, mas, sim, a das sociedades
comunais em geral. Apenas para referir, Jaccould aponta outros fatores que
131 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da
desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Disponível em: <http://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h.
132 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 24.
133 Ibidem, p. 25. 134 JACCOULD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa.
Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
65
encorajaram o aparecimento do modelo da justiça restaurativa, tais como os
movimentos, surgidos em diversos países, de contestação das instituições
repressivas; da descoberta da vítima e da exaltação da comunidade. Eram
movimentos que permitiam situar bem o terreno auspicioso no qual a justiça
restaurativa tomou dimensão.
Por fim, Jaccould ainda aponta que:
As profundas transformações estruturais, como as que acontecem tanto dentro como fora do campo penal, são igualmente decisivas no desenvolvimento da justiça restaurativa. A descentralização do poder Estado-controlado, a desagregação do modelo estatal de bem-estar social, a diferenciação e a complexidade crescente das relações sociais, o simbolismo jurídico, o aparecimento de uma sociedade civil, a elevação do neo-liberalismo e a fragmentação dos centros de decisões remodelaram profundamente as relações entre os cidadãos e o estado135.
Estes, pois, são alguns dos fatores que acarretaram o surgimento da justiça
restaurativa.
2.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA: CONCEITOS E NOÇÕES
Segundo o dicionário de Língua Portuguesa, restaurativo é o adjetivo que
significa o que tem poder de restaurar (pôr em bom estado)136.
Restaurar, conforme Ottoboni, é:
[...] consertar, reparar, construir o que foi em parte destruído. Se alguma coisa está quebrada, mas a base de suas formas e dimensões de origem foi preservada, é possível refazer o que foi semi-destruído. Entretanto, é necessário que, ao menos, parte de sua identidade espiritual tenha sido
135 JACCOULD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa.
Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
136 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1986, p. 704.
66
preservada. Nisto consiste a restauração: recuperar a parte de uma coisa que foi destruída, devolvendo-lhe sua identidade completa137.
Pedroso, Trincão e Dias138 enfrentaram problemas para traduzir para
português a expressão “Restorative Justice”. A dúvida foi no sentido de qual seria o
termo mais adequado: justiça reparadora, justiça restauradora ou justiça
restaurativa.
Marshall aponta um significado genérico e outro específico, técnico para justiça
restaurativa. Para o autor, o termo é usado no sentido genérico, para abraçar todas as
abordagens cooperadoras para o tratamento do conflito que mutuamente buscam
obter resultados benéficos. É qualquer estratégia, para resolução de conflitos, com
intenção restaurativa. No uso mais restrito do termo, ele utiliza a expressão “justiça
restaurativa”, com o objetivo de designar as respostas restaurativas, para os episódios
específicos dos malfeitos interpessoais e a expressão “transformação de conflito” ou o
termo “reconciliação”, para iniciativas de apaziguamento que buscam trazer à tona
mudanças sistêmicas abrangentes nos estabelecimentos de conflitos139.
Assim, a opção foi pelo termo “justiça restaurativa”, justamente pelo fato de ser
mais abrangente, na opinião desses autores, do que propriamente um conceito que traz a
idéia de reparo. Ademais, o movimento em análise não se limita pretender uma justiça
que repare a vítima ou reponha a situação anterior ao crime.
Pinto assim definiu as práticas restaurativas:
Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja,
137 OTTOBONI, Mário. Seja solução, não vítima!: justiça restaurativa, uma abordagem inovadora.
São Paulo: Cidade Nova, 2004, p. 88. 138 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da
desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Disponível em: <http://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h.
139 MARSHALL, Christopher. Pelo amor de Deus! Terrorismo, violência religiosa e justiça restaurativa. Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
67
um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator140.
É a proposta de promover, entre os verdadeiros envolvidos do conflito,
iniciativas de solidariedade, de diálogo e, contextualmente, de programas de
reconciliação. É o que se denomina “justiça restaurativa”, “restorative justice”,
“giustizia riparativa”,” justice réparatrice”, “justicia restauradora” etc141.
Na visão de Zher, considerado um dos principais teóricos da justiça
restaurativa, o crime é fundamentalmente uma violação de pessoas e de relações
interpessoais; as violações criam obrigações e responsabilidades; e a justiça
restaurativa busca curar e corrigir injustiças142.
A justiça restaurativa é o processo por meio do qual todas as partes, com
interesse em uma particular situação problemática, encontram-se para resolver
coletivamente como lidar com as conseqüências do fato e as suas implicações
futuras143.
A orientação da justiça restaurativa é no sentido de colocar de lado a idéia de
que somente uma parte é lesada pela infração, para também entender que todas as
partes e a própria comunidade podem ser igualmente lesadas144.
140 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa é possível no Brasil? Disponível em:
<www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h. 141 CERETTI Adolfo. Droit penal entre abolitionnisme et tolerance zero/criminal law between
abolitionism and zero tolerance/el derecho penal entre abolicionismo y tolerancia cero. Disponível em: <http://www.defensesociale.org/revista2003/2003.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 19h.
142 ZEHR, Howard. Avaliação e princípios da justiça restaurativa. In: SLAMON, Cathereine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasilia: Ministerio da Justiça, 2006, p. 411-432.
143 STRANG, Heather. The crime victim movement as a force in civil society. In Restorative justice and civil society. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 69-82.
144 Diversos são os conceitos de justiça restaurativa, já que inúmeros autores atualmente já estão tratando do assunto. Assim, a título de conhecimento: justiça restaurativa é uma aproximação que privilegia toda a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as conseqüências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a este (JACCOULD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa. Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h). [...] um processo onde todas as partes ligadas de alguma forma a uma particular ofensa vêm discutir e resolver coletivamente as conseqüências práticas da mesma e as suas implicações no futuro (MARSHALL, Tony. Restorative justice: an overview. Justiça Restaurativa – uma coletânea de
68
A proposta da justiça restaurativa é, justamente, reavivar as relações
comunitárias, aproveitando-se da inevitável oportunidade que surge de cada conflito
para criar novos espaços de transparência e de acesso para o sistema de justiça e
construir uma comunidade em lugar da insegurança145.
Pedroso, Trincão e Dias146 ainda apontam um exemplo de aplicação de
justiça restaurativa: quando uma bicicleta for roubada, o autor da infração for
apreendido e a bicicleta restituída. A perda patrimonial que se sofreu com o roubo é
compensada com a devolução da bicicleta. No entanto, o que não é devolvido é o
sentimento de segurança que existia antes. A justiça restaurativa pretende,
precisamente, restabelecer a confiança perdida, esforça-se para reparar o prejuízo
sofrido, transformando as relações entre os sujeitos envolvidos, de maneira que a
mesma situação não se repita. Está em foco o prejuízo causado pelo delito, o
desrespeito pelas regras que foram infringidas, além da preocupação da vítima e
pelo agente do crime, envolvendo ambos no processo de justiça.
Rolim afirma que:
Definições descritivas do tipo, entretanto, podem autorizar uma compreensão limitada a respeito da justiça restaurativa, permitindo que muitas pessoas identifiquem o arcabouço teórico proposto com a idéia de restituição. Ocorre que restituição, pura e simples, pode ser o resultado de um processo de Justiça Criminal e, nesse caso, nada possui de restaurativo. Trabalho duro em uma prisão ou o cumprimento de uma agenda de serviços comunitários podem ser formas de restituição dentro de um contexto punitivo. Em alguns casos, este tipo de providência pode, inclusive, tornar impossível a restauração. Bastaria, para isso, imaginar um
artigos. Disponível em: <www.undp.org/governance/docs/Justice_Pub_Restorative%20Justice.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2007. 11h). [...] Sua ênfase volta-se, de um lado, à procura por amparo às vítimas e ao atendimento de suas necessidades, dando-lhe um papel ativo na condução das negociações em torno do conflito. De outro lado, busca não apenas a responsabilização do causador do dano, valendo-se de recursos outros à punição e à sua estigmatização, mas também pelo encontro que se dá entre um envolvido e outro no conflito, dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superação ou transfiguração (MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios historico-culturais. Um ensaio crítico sobre os fundamentos éticos filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h).
145 PARKER, Lynette. RSVP: Restorative justice in a county jail. Disponível em: <http://www.sdrjmp.org/rsvp.htm>. Acesso em: 17 nov. 2007. 18h.
146 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Disponível em: <http://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h.
69
roubo praticado por alguém que passa fome ou por um dependente químico em busca de meios para adquirir uma droga ilegal. Em casos do tipo, a exigência pura e simples de restituição dos valores subtraídos só agravaria a situação do infrator, fazendo com que fosse impossível para ele alcançar uma situação de igualdade, de dignidade e de respeito. Em geral, o que temos aqui, como em todos os processos retributivos, é uma transferência do dano para o infrator o que parece ser sustentado, pelo senso comum, com a idéia de que fazê-lo pior fará com que a vítima fique melhor147.
A própria Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de
13 de agosto de 2002, conceituou a justiça restaurativa148.
Importante afirmar também que a justiça restaurativa não deve ser entendida
como uma forma privada de realização de justiça, tampouco como uma justiça
pública ou “oficial”, mas, sim, como uma justiça tendencialmente comunitária, menos
punitiva, mais equilibrada e humana149.
A justiça restaurativa assemelha-se a uma terapia, tanto para a vítima como
para o delinqüente. Nesse raciocínio, considera-se que a justiça depende da
realização de um sentimento de bem-estar psicológico e emocional. Como
intervenção terapêutica, a terapia restaurativa pode ser invocada em qualquer etapa
do processo penal.
Ela é um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais
diretamente por um crime, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano
147 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século
XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 247.
148 Os conceitos enunciados na Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas são os seguintes: 1. Programa Restaurativo – se entende qualquer programa que utilize processos restaurativos voltados para resultados restaurativos. 2. Processo Restaurativo – significa que a vítima e o infrator e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo abrange mediação, conciliação, audiências e círculos de sentença. 3. Resultado Restaurativo – significa um acordo alcançado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do infrator. (PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa é possível no Brasil? Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h).
149 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 24-25.
70
causado pela transgressão150. Pode-se dizer que é um processo de mediação, no
qual participam a vítima, o autor do fato delituoso, bem como os familiares das
partes e, por fim, a própria comunidade envolvida, seja diretamente ou
indiretamente.
Considerada uma nova proposta de abordagem na área criminal, a justiça
restaurativa fundamenta-se na reparação dos danos causados às pessoas, ao invés
da simples punição dos transgressores pelo Estado, como ocorre na justiça
“tradicional” ou “retributiva”. Para isso, o transgressor precisa assumir a
responsabilidade pelo seu ato e repará-lo, o que é feito por meio das “Câmaras
Restaurativas”.
As práticas restaurativas têm sido aplicadas principalmente nas transgressões
juvenis, na tentativa de evitar o contato desnecessário de crianças e de
adolescentes com o sistema penal.
Assim, a justiça restaurativa é diferente da justiça penal contemporânea em
muitos aspectos. Primeiro, ela vê os atos criminais de forma mais ampla – ao invés
de defender o crime como simples transgressão às leis, reconhece que os infratores
causam danos às vítimas, às comunidades e, ainda, a eles mesmos. Segundo,
envolve mais as partes na resposta ao crime – ao invés de dar papéis chave
somente ao governo e ao infrator, incluem, também, vítimas e comunidades.
Finalmente, mede, de forma diferente, o êxito – ao invés de medir quanto castigo foi
infringido, quantos danos são reparados ou prevenidos.
Nessa mesma linha de raciocínio, ou seja, de que a justiça restaurativa
assume um sentido mais amplo, cumpre transcrever as palavras de Ferreira:
A idéia restaurativa assume aqui, portanto, um sentido bastante amplo, que vai desde a restauração da paz pública e da normalização das relações
150 MCCOLD Paul. Em busca de um paradigma: uma teoria de justiça restaurativa. Disponível em:
<http://iirp.org/library/paradigm_port.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h.
71
sociais até a recuperação do status quo econômico da vítima anterior à ofensa, passando pela sua reabilitação psico-afetiva151.
O autor ainda acrescenta que
Por outro lado, o sentido da reparação que aqui vai implicado não abrange apenas o nível jurídico que lhe conhecemos, ligado à restituição, à reabilitação e à indenização dos danos físicos, materiais, psicológicos e sociais da vítima, mas também uma dimensão emocional e simbólica, plena de significado e de esperança, que se pode materializar num pedido informal de desculpas por parte do agressor ou em gestos simbólicos como um aperto de mão ou um abraço entre aquele e a vítima152.
Maccold e Wachtel153 fazem uma diferenciação no que se refere à tipologia
das práticas restaurativas. Para os autores, quando as práticas da justiça penal
envolvem apenas um dos grupos de partes interessadas principais, como no caso
de compensação financeira do governo às vítimas, o processo só pode ser chamado
de “parcialmente restaurativo”. Quando a vítima e o transgressor participam de um
processo de mediação sem a participação de suas comunidades, esse será “na
maior parte restaurativa”. Apenas quando os três grupos participam ativamente,
como em conferências ou círculos, pode ser dito que o processo é “totalmente
restaurativo”.
O raciocínio é no sentido de que o crime causa dano não somente à vítima,
mas também para toda uma comunidade, pelo que a justiça requer que o dano seja
reparado ao máximo. O crime envolve pessoas e relacionamentos, ao cabo que a
justiça restaurativa é alcançada através de, justamente, um processo cooperativo,
envolvendo também pessoas e relacionamentos.
Nesse sentido, Mccold e Wachtel154 concluem que um sistema de justiça
penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas não leva
151 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 25. 152 Ibidem, p. 25. 153 MCCOLD, Paul. Em busca de um paradigma: uma teoria de justiça restaurativa. Disponível em:
<http://iirp.org/library/paradigm_port.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h. 154 Ibidem.
72
em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles afetados por um
crime:
[...] em um mundo onde as pessoas sentem-se cada vez mais alienadas, a justiça restaurativa procura restaurar sentimentos e relacionamentos positivos. O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades emocionais e de relacionamento é o ponto chave para a obtenção e a manutenção de uma sociedade civil saudável155.
Portanto, a idéia central é a de buscar a restauração de relacionamentos ao
invés de buscar apenas o autor da culpa e a sua punição. Por outro lado, segundo
esses autores, a abordagem punitiva, com alto controle e baixo apoio, também
chamada de “retributiva”, tende a estigmatizar as pessoas, rotulando-as
indelevelmente de forma negativa. A abordagem permissiva, com baixo controle e
alto apoio, também denominada “reabilitadora”, tende a proteger as pessoas das
conseqüências de suas ações erradas. Baixo controle e baixo apoio são
simplesmente negligentes, uma abordagem caracterizada pela indiferença e
passividade. Já a abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e
desaprova as transgressões e afirma o valor intrínseco do transgressor.
A justiça restaurativa é um complemento no contexto do processo penal e
propicia benefícios para todas as partes envolvidas, incluindo o próprio sistema de
justiça. Segundo Ferreira,
Para além de colmatar a actual ineficiência do sistema formal de justiça em face das denominadas “bagatelas” penais e de veicular um paradigma de justiça mais participado, consensual e conciliatório, a justiça restaurativa favorece, ainda, uma certa revalorização institucional e reforça a confiança dos cidadãos na função pública de administração da justiça, sobretudo, nos segmentos criminais que continuem a justificar um maior empate de meios humanos e materiais156.
155 MCCOLD, Paul. Em busca de um paradigma: uma teoria de justiça restaurativa. Disponível em:
<http://iirp.org/library/paradigm_port.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h. 156 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos.
Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 132.
73
Nesse mesmo raciocínio, Pinto ainda menciona que a justiça restaurativa
afigura-se de forma assemelhada a um modelo complementar e não propriamente
alternativo de política criminal:
[...] se forem consideradas, porém, essas ponderações e definidos criteriosamente os limites de aplicação desse novo paradigma, um projeto brasileiro de justiça restaurativa pode funcionar bem para certas infrações penais e para os casos em que for possível sua utilização, à luz da Lei dos Juizados Especiais, do Estatuto da Criança e do Adolescente e das penas alternativas previstas no Código Penal. É melhor do que a impunidade das cestas básicas157.
Nota-se que trabalhamos a idéia de que a justiça restaurativa não pretende
substituir o atual modelo retributivo, mas, sim, complementá-lo 158. Nesse sentido,
Sica ressalta:
Evidentemente, esse hipotético novo paradigma de justiça penal não pretende eliminar o modelo vigente (punitivo-retributivo), mas passa pela quebra de alguns de seus fundamentos básicos e pretende uma configuração mais aberta e flexível que desemboca no sistema de dupla entrada: mediação e punição, onde a atuação da justiça punitiva possa ser residual, intervindo apenas nos casos de extrema necessidade, nas situações-limite159.
É a idéia do Sistema Penal como ultima ratio. Weingartner160, citando Roxin,
no que se refere à subsidiariedade do direito penal na proteção dos bens jurídicos,
esclarece que o direito penal interviria nos casos em que falharem os outros meios
sociais de solução dos problemas. Ele aponta para “descriminalizações setoriais,
para eventuais penas privadas, para a necessária bipartição entre delitos graves e
menos graves, comportando procedimentos abreviados e suspensão, quanto aos
processos, à última categoria”161.
157 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa. Disponível em:
<http://www.damasio.com.br/index.php?category_id=32&page_name=art_031_2004>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
158 Há consenso que, ao longo da história, conviveram ou alternaram-se três modelos de justiça penal: o punitivo-retributivo, o reabilitativo (está ligado à idéia de justiça terapêutica) e o restaurativo (SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 37).
159 Ibidem, p. 02. 160 ROXIN, apud WEINGARTNER, Jayme. O princípio da diversão e o Ministério Público: um viés
lusitano. In: CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Introdução ao estudo do direito. Canoas: ULBRA, 2001, p. 26.
161 WEINGARTNER, Jayme. O princípio da diversão e o Ministério Público: um viés lusitano. In: CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Introdução ao estudo do direito. Canoas: ULBRA, 2001, p. 26.
74
2.2.1 O encontro restaurativo
Podemos dizer que a justiça restaurativa existe para possibilitar o encontro
entre as pessoas envolvidas e este é o seu principal momento. As reuniões, os
círculos, as câmaras restaurativas, enfim, todas são expressões que existem para
identificar aquilo que denominaremos “encontro restaurativo”.
Nesse aspecto, iniciaremos chamando atenção para a Teoria que Marshall
chamou de “a comunicação não violenta”. Esta pode ser entendida como sendo um
processo de linguagem em que as partes irão falar, ouvir, de forma a sentir e a
transmitir as suas próprias necessidades e angústias. Segundo o autor, a
comunicação não-violenta orienta os participantes do diálogo no processo de
reformulação sobre a forma utilizada para expressão e escuta, mediante a
concentração em quatro componentes: observação, sentimento, necessidades e
pedido162.
Com tais componentes, o autor descreve basicamente como deverá ser um
encontro restaurativo. A observação é fundamental para que os participantes
possam identificar os sentimentos envolvidos, as suas necessidades e chegarem, ao
final da reunião, a um resultado que será efetivado através do pedido. Os
participantes deverão, antes de tudo, ouvir, escutar; para somente após chegarem
ao que realmente desejam. Assim, pode-se dizer que a comunicação não-violenta é
uma ferramenta que operacionaliza os diálogos de todos os participantes no
encontro restaurativo.
Nessa linha de raciocínio, torna-se imperativo também citar a Teoria da Ação
Comunicativa de Habermas, na qual a utilização da linguagem é orientada para o
entendimento em que os participantes unam-se em torno da pretensa validade de
suas ações de fala ou constatem dissensos. De acordo com o autor, a
comunicação, em si, através da linguagem, pressupõe sempre uma tentativa de
162 MARSHALL, Rosenberg. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos
pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Agora, 2006, p. 21.
75
consenso e de acordo entre os homens. A ação comunicativa, para Habermas, tem
como premissa a relação social que está voltada à comunicação com o outro. Ela é
orientada pela intersubjetividade (mais de duas pessoas) e cooperação mútua. A
razão está voltada para o fazer se entender através do diálogo163.
Justamente, utilizando-se as premissas das Teorias de Habermas e de
Marshall, é possível identificar os princípios que norteiam os encontros restaurativos.
Conforme Scuro Neto:
O modo restaurativo de fazer justiça outorga grande valor ao fato de vítima e infrator se encontrarem pessoalmente, na presença de um supervisor ou agente facilitador – quando isso não é possível, pode-se promover aproximação por meio de carta, de fita gravada, de mensagens entregues por um portador. Não obstante, encontros em si e tão-somente não bastam para dar a um procedimento características restaurativas, que se conformam através da convergência de cinco elementos (reunião, relato, emoção, entendimento, acordo)...164.
No sistema da justiça restaurativa, portanto, temos as partes: vítima, infrator,
estranhos ou membros da comunidade, atingidos pelo mal causado por uma
transgressão. Há, igualmente, a figura do mediador, que deve conhecer os costumes
das comunidades envolvidas, agir de forma imparcial frente aos fatos expostos,
procurando resolver os conflitos da melhor forma possível. O facilitador desempenha
um papel fundamental, não devendo intervir no conteúdo ou no resultado do
processo, podendo desempenhar um papel simbólico, representando a coletividade
da qual provém. Esse facilitador, preferencialmente, será um psicólogo ou
profissional da área da educação, assistente social ou até uma pessoa identificada
com aquela determinada comunidade, desde que capacitado para esta tarefa165.
163 HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa, I: racionalidad de la acción y racionalización
social. Madrid: Taurus, 1999, p. 367. 164 SCURO NETO, Pedro. Fazer justiça restaurativa – padrões e práticas. Disponível em:
<http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/ARTIGO+-+JR+-+PADR%D5ES.HTM>. Acesso em: 18 nov. 2007. 17h.
165 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
76
Técnicas de mediação serão usadas. Nada é feito com participação direta do
juiz. O magistrado apenas recomenda a realização da mediação e recebe o
resultado das reuniões.
Rolim166 traz exemplos de que, no sul da Austrália, as partes podem consultar
seus advogados antes de firmarem qualquer compromisso; nos EUA, os advogados
podem suspender o processo, caso considerem que as garantias de seus clientes
estejam sendo desrespeitadas e, na Nova Zelândia, o facilitador pode requisitar a
presença de um advogado para amparar uma das partes, sendo que o Estado
mantém sua obrigação de garantir a assistência jurídica aos que não podem
contratar um advogado.
Os participantes têm chance de relatar os acontecimentos a partir do seu
próprio ponto de vista, bem como dizer o que aconteceu desde então. Todos
adquirem claro entendimento acerca das conseqüências do comportamento em
questão, tomam consciência do que deve ser feito para que os danos físicos e
emocionais, de algum modo, sejam reparados e minimizados os efeitos negativos
futuros.
Segundo Llewellyn167, a justiça restaurativa não procura fazer diplomacia por
interposta pessoa, o objetivo é que as partes se encontrem e sejam confrontadas
com as versões contraditórias do incidente.
É nesta confrontação que se pode encontrar a verdade. Ao defrontarem-se
“cara a cara”, vítima e infrator superam os mitos e os estereótipos mútuos. A vítima
vê o agente da infração como um ser humano, não já como um criminoso insensível,
a coletividade percebe então que a vítima e o autor não são muito diferentes das
outras pessoas. Todos os envolvidos (vítima, réu, parentes, amigos e outras
pessoas relacionadas ao caso) podem apresentar seu próprio ponto de vista sobre a
166 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século
XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 252.
167 LLEWELLYN Jennifer. Restorative justice - A conceptual framework. Disponível em: <www.lcc.gc.ca>. Acesso em: 25 set. 2003. 11h.
77
ocorrência. O objetivo é fazer com que a comunidade, afetada pelo conflito, e os
envolvidos negociem a melhor forma de reparar o dano e alcancem a reconciliação.
Braithwaite168, um dos mais influentes teóricos restaurativos, muito bem refere
que, em algumas abordagens da justiça restaurativa, a vergonha, experimentada
pelo infrator diante de pessoas que lhe são importantes – não apenas familiares,
mas, amigos etc. – e que são chamada em audiências ou encontros, cumpre um
papel positivo em todo o processo. “O objetivo das audiências e dos encontros, de
qualquer forma, é a superação da vergonha através de uma legitimada integração
do infrator à comunidade”.
A reparação pode se dar através de pagamento em dinheiro à vítima, por
trabalho feito para a vítima, por trabalho para uma causa comunitária, escolhido pela
vítima, através também de determinadas obrigações ou tarefas por ele assumidas,
como, por exemplo, freqüentar um curso ou iniciar um tratamento ou, ainda, por uma
composição destas possibilidades.
As medidas de reparação dirigem-se para as vítimas imediatas ou para as
secundárias – membros da família ou amigos da vítima ou para a coletividade a que
pertence. Para os casos em que não se conhece o infrator, ou as vítimas não
desejem qualquer tipo de contato com o infrator, podem ser realizados encontros
“temáticos” para os quais são selecionados, de um lado, um grupo de infratores que
tenham cometido um mesmo tipo de infração e, de outro, pessoas que foram
vitimadas por esse tipo de infração. Assim, mesmo na ausência de uma relação
direta e causal entre vítima e infrator, teríamos um encontro que simbolizaria
legitimamente esta relação.
O programa pode ser acionado em qualquer fase, ou seja, antes do início da
ação penal (ainda na investigação), depois de promovida a ação penal e também
168 BRAITHWAITE, John. Experiments in restorative policing - reintegrative shaming of violence,
drink driving & property crime: a randomised controlled trial. Disponível em: <http://www.aic.gov.au/rjustice/rise/progress/1997.html>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
78
após a sentença condenatória 169. Nesse aspecto, De Vitto170 entende que, embora
não haja um momento rigidamente estabelecido dentro do organograma
procedimental para sua realização, deve haver indícios que sustentem o
recebimento de uma acusação formal para se que possa dar início a ela.
Um termo deve ser lavrado e assinado por cada um dos participantes, que
recebem cópia do acordo. Os termos de acordo podem incluir, repita-se, pedido
formal de desculpas, garantia que o comportamento prejudicial não voltará a ocorrer,
ressarcimentos dos danos, reparação de danos materiais, serviço comunitário,
compromisso de assumir comportamento adequado.
Segundo Neto171, as próprias vítimas têm oportunidade e um foro seguro para dizer
como foram afetadas, decidindo acerca da melhor maneira de reparar o dano sofrido e
amenizar as conseqüências futuras. Os familiares e demais membros da comunidade
interessada comentam também o problema, inclusive, dando as suas sugestões.
2.2.2 Princípios da justiça restaurativa
Muitos dos princípios da justiça restaurativa já foram abordados, mesmo que
indiretamente, no momento em que o tema foi conceituado. No entanto, é importante
elencá-los e redefini-los para uma melhor compreensão.
Sica adverte:
Para que a mediação não seja mais um paliativo para a crise do sistema de justiça, nem entendida como mero instrumento de alívio dos tribunais, de
169 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no
sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
170 DE VITTO, Renato Campos. Justiça criminal, justiça restaurativa e direitos humanos. Disponível em: <www.undp.org/governance/docs/Justice_Pub_Restorative%20Justice.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2007. 11h.
171 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
79
extensão da burocracia judiciária ou de indulgência, deve ser implementada sobre dois fundamentos: ampliação dos espaços democráticos e construção de novas modalidades de regulação social172.
Assim, no que tange aos princípios da justiça restaurativa, adotamos a
classificação feita por Ferreira173, porquanto exposta, em sua obra, de forma didática
e elucidativa. O autor expõe que a justiça restaurativa orienta-se pelos princípios do
voluntarismo, da consensualidade, da complementaridade, da confidencialidade, da
celeridade, da economia de custos, da mediação e da disciplina.
O princípio que Ferreira denominou voluntarismo (voluntariedade) é a
participação dos sujeitos a mediar, devendo ser esta séria e de uma vontade livre,
esclarecida e atual acerca dos seus direitos, das conseqüências do acordo,
afastando-se de uma atuação impositiva e unilateral, própria do sistema judicial.
Nesse ponto, é importante destacar que toda decisão voluntária é mais aceita do
que aquela imposta por uma autoridade.
Assim, ninguém é obrigado a participar das chamadas “câmaras
restaurativas”. Este deve ser um processo de participação voluntária, o que é
característica fundamental do processo restaurativo, uma vez que não funcionaria se
as partes fossem obrigadas a integrá-lo, a exemplo do que ocorre na justiça criminal.
É a busca de um encontro voluntário, em que as partes possam falar e ser ouvidas,
em que as vítimas, os infratores e as comunidades irão confrontar as suas versões e
chegarem a um consenso. No modelo atual, bem pelo contrário, as partes possuem
todo o incentivo para esconder a verdade, para diminuir as suas responsabilidades,
podendo mentir para sua defesa. É um sistema voltado para comprovar a culpa e
fixar a pena. Logo, todos os empreendimentos possíveis são realizados, a fim de
que o infrator possa amenizar a sua culpa e, por conseqüência, diminuir a sua pena.
Isto gera a mentira e até, repita-se, a impressão de que o seu ato não foi tão grave
assim, ou que o infrator estava sendo injustiçado com a pena sofrida.
172 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 244. 173 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 29-33.
80
Outro princípio apontado pelo autor é a consensualidade. É o entendimento
das partes envolvidas, é o desfecho bem sucedido. Nesse aspecto, Ferreira assim
ponderou:
Apostando numa plataforma de entendimento com o agressor, os mecanismos de justiça restaurativa permitem à vítima a reparação e a sua reabilitação em termos razoáveis e de exeqüibilidade, bem como uma satisfação moral que lhe permita mitigar os efeitos psicológicos do crime, obter o reconhecimento de determinado estatuto, a recuperação da sua auto-estima e o restabelecimento de um relacionamento normal174.
Aliás, a respeito do consenso, Giacomolli esclarece que
[...] representa uma discussão horizontal, não hierarquizada da solução do problema criminal, com mais comunicação entre os sujeitos processuais. Nessa concepção, são inadmissíveis os mecanismos de coação para alcançar o término do procedimento ou do processo175.
A confidencialidade, outro princípio da justiça restaurativa, é no sentido de
que todos os conteúdos dos contatos, estabelecidos entre as partes envolvidas na
mediação, sejam confidenciais. Nisso, inclui os fatos revelados, as afirmações
destinadas a solucionar o conflito e as sugestões ou as propostas apresentadas pelo
mediador ou pelas partes176.
O princípio da complementaridade, apontado por Ferreira177, significa que
nem sempre os mecanismos da justiça restaurativa evitarão um processo criminal.
Nesse particular, o autor entende que, até nos crimes de maior gravidade, tais como
o homicídio, o roubo, a justiça restaurativa teria viabilidade para complementar a
justiça tradicional, servindo, por exemplo, como causa de diminuição de pena ou de
outros benefícios legais.
174 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 35. 175 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 73. 176 FERREIRA, op. cit., p. 37. 177 Ibidem, p. 38-39.
81
A celeridade como princípio é um ponto de grande vantagem em relação à
morosidade dos ritos e dos instrumentos postos à disposição da justiça estatal punitiva.
As partes envolvidas na mediação é que irão adaptar o tempo necessário, conforme a
gravidade do delito e a sua repercussão na comunidade, para chegarem ao consenso.
A economia de custos que a adoção pelas práticas restaurativas ensejará
também é inegável. É a redução dos custos materiais pelo Estado pelo simples
motivo de não precisar acionar todo o aparato oficial para resolução do conflito.
Nesse caso, a mediação poderá ser feita por iniciativa dos próprios particulares ou
com a atuação do Estado. Porém, nessa última hipótese, o Estado apenas
incentivará a prática restaurativa ou até a financiará muitas vezes, mas sempre com
um custo bem menos dispendioso do que o trâmite judicial.
A mediação também é apontada como um dos princípios da justiça
restaurativa, embora entenda tratar-se de um dos seus principais instrumentos para
viabilização de suas práticas. Na mediação, que constitui uma forma de
autocomposição de interesses, terá a participação de um terceiro intermediário,
conforme já exposto, que será o mediador. Weingartner, salientando o papel da
mediação, diz que:
Ademais, ao revés da arbitragem, na mediação há que se encontrar solução que seja aceita pelas partes, já que os mediadores não têm poder para compelir à resolução do conflito. Sem embargo, o terceiro imparcial tem grande valor nos casos que envolvem “relações permanentes” – família, vizinhança, colegas de trabalho178.
Ainda, a respeito de mediação, destacam-se as lições trazidas por Paz179:
A mediação é um fenômeno múltiplo, não existe um modelo único, visto que deve fazer frente a diferentes formas de conflito, sendo submetida à realidade social em que cada conflito se incorpora, deve ser dotada de particularidades de acordo com o tema. Esta capacidade metamórfica da mediação é uma das características da repercussão que ela alcança em nossos dias.
178 WEINGARTNER, Jayme. O princípio da diversão e o Ministério Público: um viés lusitano. In:
CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Introdução ao estudo do direito. Canoas: ULBRA, 2001, p. 18. 179 PAZ, Silvana Sandra. Justiça restaurativa – processos possíveis. Disponível em:
<www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 de nov. 2007. 16h.
82
Nesse aspecto, cumpre apontar o princípio da “diversão”, tema abordado de
forma elucidativa por Weingartner. O autor, citando Faria Costa, define diversão
como:
[...] um conceito reflexivo, que não prescinde de sua referência a um processo normal/padrão de solução dos litígios penais. Assim, toda tentativa de solucionar um conflito jurídico-penal fora do curso normal da Justiça Penal é, genericamente, um modo desviado, diferente, divertido180.
Continuando, pondera o autor que “ainda, previamente, convém ressaltar que
é do cerne do próprio instituto a participação voluntária do infrator/argüido/suspeito,
sendo sua adesão consciente às finalidades, o elemento fundamental”181.
Por fim, diz que “No caso da diversão, remanesce a infração intocada na sua
dignidade penal, mas é em nível de processo, a afastar-se do formalismo regular,
que se busca solução diferente, que prescinde da juridicização”182.
Weingartner183 aponta que a diversão é uma das formas de evitar a
sobrecarga de trabalho, deixando tão-somente os delitos de considerável interesse
jurídico para serem solucionados pela ordem formalista estatal, bem como para
manter e intensificar o ideal de reabilitação do indivíduo, diminuindo a sua
estigmatização.
Nesse sentido, também ponderou Giacomolli que
Modernos mecanismos de atuação da justiça criminal, como ocorre com a mediação penal entre delinqüentes e vítimas, diminuem a tensão entre os envolvidos no fato criminal e facilita a integração social. Considero a mediação penal como uma ferramenta alternativa de solução de certos conflitos penais de menor gravidade, principalmente, os que ocorrem no âmbito doméstico, naqueles em que se envolvem os jovens e os menores184.
180 WEINGARTNER, Jayme. O princípio da diversão e o Ministério Público: um viés lusitano. In:
CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Introdução ao estudo do direito. Canoas: ULBRA, 2001, p. 17. 181 Id., Ibid., p. 17. 182 Id., Ibid., p. 20. 183 Id., Ibid., p. 25. 184 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 97.
83
Assim, pode-se afirmar que a justiça restaurativa é uma forma “divertida” de
solucionar um conflito jurídico penal, já que se trabalha com os seus instrumentos
fora do padrão normal da justiça penal e têm como um de seus princípios basilares
evitar a estigmatização do indivíduo.
A tolerância é um valor importantíssimo nos dias atuais, no qual se
fundamenta o princípio da diversão. A tolerância que, segundo Weingartner185, não
se confunde com permissividade e muito menos com fanatismos. Nesse aspecto,
ressaltamos o chamamento ao diálogo de indivíduos e das comunidades.
A disciplina é um princípio que se traduz na obediência a medidas de ordem
social que se mostram escolhidas ou acordadas pelos próprios sujeitos envolvidos,
bem como diz respeito às responsabilidades creditadas a cada um dos participantes.
Cumpre, também, enumerar os valores pertinentes às práticas restaurativas, já
trabalhados por Neto186 e indicados na obra de Konzen187: a flexibilidade, a
espontaneidade, a voluntariedade, o encontro dialógico, a confidencialidade, a
informalidade, a tolerância, o respeito à diferença, a circularidade, o comunitário, o
cooperativo, o sistêmico, o democrático, o educativo, a inclusão, a pacificação, a
proporcionalidade do razoável e a participação, assim como a responsabilidade ativa.
São valores que fazem parte da principiologia desta modalidade de justiça.
São valores auto-explicativos ou que já foram abordados na própria conceituação de
justiça restaurativa. Conforme Konzen,
A justiça restaurativa fundamenta-se, pois, na compreensão de que o próprio proceder passa a constituir-se em valor de referência. Não mais na rigidez da concepção garantista, em que a forma é valor porque está em defesa do acusado contra o arbitrário dos agentes do Estado, mas na
185 WEINGARTNER, Jayme. O princípio da diversão e o Ministério Público: um viés lusitano. In:
CHRISTOFARI, Victor Emanuel. Introdução ao estudo do direito. Canoas: ULBRA, 2001, p. 59. 186 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em:
<http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h. 187 KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no
itinerário da alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 82.
84
flexibilidade capaz de se ajustar à realidade e às necessidades dos diversos interessados188.
Continuando, o autor, ao citar a lição de Marshall, afirma que um sistema de
valores e de princípios poderia ser discutido em três perspectivas: da importância do
processo dialogal; da participação dos direta e indiretamente envolvidos e dos
acordos restauradores, propriamente ditos.
O diálogo é, realmente, conforme indicado, um dos principais elementos das
práticas restaurativas. É por seu intermédio que se chega a uma conclusão a
respeito de como, de qual forma e quando irá haver a restauração do fato, da
situação atingida pela ocorrência da infração. O diálogo não tem lugar no atual
sistema retributivo da pena, em que a imposição reina no lugar das trocas de idéias,
de experiências e de acordos.
A participação no processo restaurativo é ampla, abrangendo, dessa forma, a
vítima, o ofensor, os familiares e a própria comunidade envolvida no evento
delituoso. A intenção é que se possa concretizar a troca de idéias, de experiências,
com ênfase na figura do mediador, assim como no resultado que deverá ser o
melhor encontrado pelos participantes do evento.
Em síntese, a justiça restaurativa possui como seguintes mandamentos ou
princípios: dar mais prioridade aos danos causados pela conduta nociva do que às
regras que foram infringidas; mostrar igual preocupação e envolver-se, tanto com
infratores envolvidos no processo judicial, quanto com a sorte de suas vítimas;
trabalhar pela reparação do dano causado, apoiando vítimas, famílias e
comunidades, atendendo suas necessidades do modo como elas fazem; apoiar os
infratores, ao mesmo tempo estimulando-os a entender, a aceitar e a cumprir suas
obrigações; reconhecer que as obrigações dos infratores não são tarefas
impossíveis, nem são impostas para causar-lhes danos; oferecer, quando for
apropriado, oportunidades de diálogo, direto ou indireto, entre vítimas e infratores e
188 KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no
itinerário da alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 82.
85
dar condição às comunidades de reconhecerem e de enfrentarem a criminalidade
que viceja no seu entorno; estimular a colaboração e a reintegração, em lugar de
coerção e do isolamento; atentar para as conseqüências indesejáveis de nossas
ações e projetos, assim como respeitar todas as partes, incluindo vítimas, infratores
e membros do sistema de justiça.
Pouco ou quase nada no processo judicial atual leva o infrator a entender as
conseqüências de seus atos e a considerar o mal causado as suas vítimas. Pelo
contrário, o jogo, em que todos são adversários, exige que os infratores não façam
outra coisa a não ser cuidarem de “si mesmos”. Não têm a menor motivação para
reconhecer que são responsáveis e nenhuma chance para expressar tal
responsabilidade de alguma maneira concreta. As “estratégias de neutralização” –
os estereótipos e as racionalizações que os infratores utilizam para se distanciarem
das pessoas que prejudicaram – jamais são questionados. Desse modo, a
sensação de alienação em relação à sociedade, que a maioria dos infratores sente,
o sentimento de que eles próprios são vítimas são maximizados pelo processo
legal e pela experiência na prisão189.
Sica afirmou acerca do assunto:
A justiça restaurativa requer a observação de alguns princípios mínimos: (i) participação ativa, informada e voluntária de ofensor e da vítima; (ii) possibilidade de participação da comunidade; (iii) o crime considerado, primariamente, como um conflito entre indivíduos e um ato que causou danos às pessoas e/ou às relações sociais; (iv) a resposta ao crime deve enfocar a reparação de suas conseqüências, por meio de prestações voluntárias e negociadas, mais simbólicas do que materiais190.
Konzen, em uma fundamentação ético-filosófica da justiça restaurativa, assim
ponderou:
Tem-se, pois, em resumo, a justificativa ético-filosófica para o proceder segundo a justiça restaurativa em face do proceder pelo sistema acusatório da tradição retributiva. Justifica-se o proceder pela justiça restaurativa
189 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em:
<http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h. 190 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 234.
86
porque forma de proceder em que se inaugura, na simplicidade do encontro, a responsabilidade por outrem, uma responsabilidade ativa, pela não-indiferença ao Outro, modalidade de positivação da diferença, modo primeiro para a instalação do justo na convivência entre os humanos. Responsabilidade por outrem com o sentido de responsabilidade ética191.
Nota-se que os princípios da justiça restaurativa são adaptáveis a qualquer
ordenamento jurídico, sendo que já existe um conjunto mínimo e seguro de
princípios e de garantias para a sua implementação, tais como a voluntariedade, a
confidencialidade, a participação ativa das partes, a proporcionalidade e a eqüidade
dos acordos e a sua limitação temporal192.
Conforme Ferreira, “a justiça restaurativa torna os sujeitos mais activos e criativos
na busca de soluções para os problemas levantados com a ofensa, promovendo a
comunicação. Destina-se a planificar o futuro e não a julgar o passado”193.
Por fim, os princípios e os direitos fundamentais, com ênfase no princípio da
dignidade da pessoa humana, deverão ser observados e incorporados pela justiça
restaurativa, como sendo o seu principal postulado básico. Segundo Pinto,
Devem ser rigorosamente observados todos os direitos e as garantias fundamentais de ambas as partes, a começar pelo princípio da dignidade humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação e do interesse público. Certos princípios fundamentais aplicáveis ao direito penal formal, tais como o da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade, da humanidade, da culpabilidade, dentre outros, devem ser levados em consideração194.
Esses, pois, são os princípios que muito se adequam a nossa legislação,
conforme trabalharemos a seguir.
191 KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no
itinerário da alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 143-144. 192 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 116-117. 193 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 42. 194 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no
sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
87
2.3 PRÁTICAS RESTAURATIVAS
Atualmente, diversos países possuem legislações próprias para incentivar a
utilização da justiça restaurativa. As suas práticas variam conforme o país e a
comunidade em que são aplicadas. Alguns utilizam a justiça restaurativa para crimes
cometidos por adultos; outros a utilizam para os atos infracionais cometidos por
adolescentes. Porém, o certo é que os seus princípios permanecem basicamente
inalterados e atendidos.
Em nosso país, não há legislação específica a respeito da justiça restaurativa.
No entanto, ao mesmo tempo em que não há lei a disciplinando, há diversas normas
e princípios que recepcionariam as suas práticas, conforme passaremos a analisar.
2.3.1 Recepções normativas das práticas restaurativas
Nos países do sistema common law, onde a justiça restaurativa primeiramente
aflorou, a cerca de três décadas, o sistema jurídico é mais receptivo à derivação de
casos para a justiça restaurativa, mormente pela grande discricionariedade do
promotor em processar ou não, conforme o princípio da oportunidade195.
No sistema legal brasileiro, onde vige, em regra, o princípio da
indisponibilidade da ação penal pública, tal possibilidade torna-se um pouco mais
restrita, de acordo com a análise a seguir.
Primeiramente, é importante destacar que não há, no sistema legal brasileiro,
uma legislação específica que regulamente a justiça restaurativa. Porém, a utilização
de práticas de justiça restaurativa, mormente no que diz respeito à mediação penal,
195 PINTO, Renato Sóvrates Gomes. Justiça restaurativa é possível no Brasil? Disponível em:
<www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
88
não exige previsão legal específica a respeito, porquanto a flexibilidade desta
modalidade de justiça é uma de suas marcas fundamentais.
Essa adaptabilidade é uma das características marcantes do paradigma de justiça, debatido ao longo deste trabalho e deve ser aproveitada, num primeiro momento, para viabilizar programas experimentais com o objetivo de testar a operatividade real da mediação no contexto nacional e aprender com as falhas para, num segundo momento, pensar-se em legislar a matéria. A existência de legislação, então, permitirá uma definição clara das especificidades que emergirão do confronto empírico dos primeiros projetos com o sistema de justiça e, principalmente, com a atitude dos operadores196.
Assim, o que se deseja, em um primeiro momento, é a existência de regras
capazes de recepcionar medidas de soluções consensuais, que disponibilizem
espaços para práticas restaurativas de mediação. A abertura, para tanto, é o
Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
Enquanto não tratado especificamente como processo de justiça restaurativa,
a lei permite que o juiz, notificado do caso, suspenda o processo legal em casos de
menores infratores primários, nos crimes menos graves. O art. 127 (“a remissão não
implica necessariamente o reconhecimento ou a comprovação de responsabilidade,
nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a
aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime
de semi-liberdade e a internação”) oferece as alternativas de sanções, tais como
reparação do dano, serviços à comunidade ou atendimento em escolas
especializadas.
Logo, o instituto da remissão, previsto na legislação menorista, aplicado pelo
Promotor de Justiça ou pelo próprio Magistrado, com exclusão ou suspensão do
procedimento, é perfeitamente adequado para iniciações restaurativas entre os
conflitos envolvendo adolescentes infratores.
Pelo instituto da remissão, o qual possui a tendência de desjudicializar o
atendimento de infrações penais leves e médias, a lei brasileira permite que o
196 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 225.
89
processo judicial seja excluído, suspenso ou extinto, caso ocorra a composição do
conflito de forma amigável, ainda que importando que o jovem infrator assuma o
compromisso de cumprir medida sócio-educativa, medidas estas estipuladas no art.
112 (“Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar
ao adolescente as seguintes medidas: I- advertência; II- obrigação de reparar o
dano; III- prestação de serviços à comunidade; IV- liberdade assistida; V- inserção
em regime de semi-liberdade; VI- internação em estabelecimento educacional; VII-
qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI do mesmo Estatuto legal, desde que
não privativa de liberdade”).
É importante frisar que o instituto de remissão, embora a legislação não
atribua critérios basicamente objetivos, ficando mais a cargo do subjetivismo do
próprio agente do Ministério Público ou Poder Judiciário, aplica-se a jovens primários
que cometeram atos infracionais semelhantes a crime ou a contravenções penais.
No caso dos crimes, este seriam de pequeno ou de médio potencial ofensivo, o que,
segundo Brancher, corresponderia, na prática, a média de 70 a 80% dos casos
atendidos197.
As medidas aplicadas por intermédio da remissão ainda poderão ser
cumuladas com uma medida protetiva, conforme dispõe o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu art. 101, tais como tratamento para drogas, freqüência e
aproveitamento escolar, atendimentos terapêuticos, entre outras, estipuladas no
mesmo dispositivo legal.
Por fim, como bem salientou Brancher, o modelo se completa com a
possibilidade de os pais ou os responsáveis pelo adolescente assumirem
formalmente compromissos de se submeterem às medidas, conforme dispõe o art.
129 do Estatuto Menorista, tal como a participação em cursos de orientação, a
obrigação de zelar pela freqüência e o aproveitamento escolar do filho, as terapias
etc198.
197 BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça restaurativa e o estatuto da criança e do adolescente. In:
SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
198 Id., Ibid.
90
Também, no próprio título II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
trata das políticas de atendimento, o art. 88, em seu inciso V, dispõe a respeito da
integração operacional de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, da
Defensoria, da Segurança Pública e da Assistência Social, para efeito de agilização
do atendimento inicial ao adolescente autor de ato infracional. São centros de
atendimentos aos adolescentes infratores já existentes em várias capitais brasileiras,
inclusive, em Porto Alegre/RS. Nesses centros de atendimento, o adolescente
infrator, a vítima e os seus familiares são levados a comparecer perante a polícia por
ocasião do registro ou da investigação da ocorrência, e isso ocorre, em regra, no
mesmo local físico onde também atuam, em regime de plantão, os promotores, os
defensores e os juízes que tomarão conhecimento do caso.
O Estatuto da Criança e do Adolescente representa uma esfera natural para o
desenvolvimento do novo modelo restaurativo, lembrando que todas as melhores
experiências de justiça restaurativa e de mediação surgiram nos tribunais de
menores e expandiram-se para a justiça comum. Segundo Sica:
Além de uma fácil adaptação normativa, a adoção da mediação nesse campo poderia ter efeitos positivos, tais como recuperar o sentido da medida socioeducativa, que hoje funciona como punição, e evitar estigmatização e segregação de crianças e de adolescentes em conflito com a lei199.
Portanto, utilizando-se do amparo legal do próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente, seria perfeitamente viável a aplicação dos princípios da justiça
restaurativa, tal como as composições existentes nos Juizados Especiais Criminais.
Em 1995, concretizando o dispositivo constitucional, art. 98, inciso I, da
Constituição Federal, a Lei Federal 9.099/95 formalizou, também, a mediação penal
e a conciliação. A Lei dos Juizados Especiais Criminais criou cortes especiais de
conciliação em crimes com a pena máxima de um ano de prisão. Isso foi expandido
para dois anos em 2001, com a Lei Federal nº 10.259. O processo permite um maior
199 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 226.
91
acesso ao sistema judiciário, a natureza oral aporta transparência e inclusão, bem
como a alternativa de conciliação permite à vítima e ao ofensor acertar seus próprios
conflitos.
No que se refere aos crimes de menor potencial ofensivo, abarcados por esta
lei, é importante ressaltar a posição de Sica. Para o autor, embora tenham a mesma
natureza jurídica das práticas restaurativas, os institutos da Lei 9.099/95 (transação
penal e a conciliação) não possuem os princípios norteadores da justiça restaurativa.
Assim,
Ambas foram concebidas apenas para obter um resultado célere e instrumentalizadas mais como formas mitigadas de punição do que de ampliação dos espaços de consenso e de participação do jurisdicionado na administração da justiça200.
Ademais, todos os crimes de ação penal privada ou de ação penal pública
condicionada também seriam aptos de práticas restaurativas. Nesses, haveria
espaço para que as vítimas e os infratores dialogassem no sentido da reparação do
dano, evitando-se, assim, a judicialização do fato com a renúncia ou o perdão
manifestados pelas vítimas.
Outro espaço normativo, apontado para práticas restaurativas, é a suspensão
condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), em que se permite a solução
consensual em crimes cuja pena mínima seja de até 1 (um) ano e prevê a reparação
do dano como condição do acordo, cujo cumprimento resulta na extinção da
punibilidade (art.89, § 1º, I). Nesse caso, ao receber a denúncia, o juiz, ao invés de
designar o interrogatório, delegaria o caso para o ofício de mediação, que se
incumbiria de estabelecer o contato com as partes, informá-las da possibilidade de
negociar uma solução, de realizar as sessões de mediação e de conduzir o diálogo
que pode ou não resultar na reparação do dano, suficiente para a justiça penal
homologar o acordo e decretar a extinção da punibilidade. Quanto às demais
condições da suspensão (comparecimento mensal em juízo, proibição de ausentar-
se da comarca etc.) não poderiam ser aplicadas pelo juiz, a não ser que as partes,
200 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 227.
92
livremente, acordassem no sentido de utilizá-las como reparação simbólica ou até
para recompor a paz jurídica201.
No mesmo sentido, pode também ser feito o encaminhamento ao Núcleo de
Justiça Restaurativa, pois a par das condições legais obrigatórias para a suspensão
do processo, o parágrafo 2º do art. 89 da aludida lei, permite a especificação de
outras condições judiciais. Assim, essas condições poderiam perfeitamente ser
definidas no encontro restaurativo, para posterior homologação em juízo.
Na idéia de Pinto, o processo restaurativo também seria viável nos crimes
contra os idosos, por força do art. 94 da Lei n 10.741/03 (Estatuto do Idoso), que
prevê a possibilidade de aplicação do procedimento da Lei 9.099/95 para crimes
contra idosos, cuja pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos202.
Sica, ao abordar essa questão, ressalta que
[...] há espaços normativos suficientes no ordenamento jurídico brasileiro para viabilizar a adoção da mediação penal, pois é amplo o universo de crimes abrangidos pelo conceito de infração penal de menor potencial ofensivo e pela suspensão condicional do processo, embora o primeiro inclua uma série de condutas penalmente irrelevantes e meras incivilidades203.
O instituto do perdão judicial, art. 120 do Código Penal, também é apontado
como mais uma possibilidade de se aplicar métodos restaurativos. Nas leis de crimes
contra a ordem econômica, Lei 8.137/90 c.c. e Lei 8.884/94; e contra o meio ambiente,
Lei 9.605/98, verificamos dispositivos que favorecem a solução consensual204.
201 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 229. 202 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no
sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
203 SICA, op. cit., p. 231. 204 Ibidem, p. 230.
93
Tais dispositivos podem ser somados à regra hermenêutica do art. 5º da Lei
de Introdução ao Código Civil, o que respaldaria ainda mais a aplicação das práticas
restaurativas: “art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela
se dirige e às exigências do bem comum”.
Esses são exemplos de que o nosso sistema legal permite métodos de
experimentações restaurativos. Nota-se, então, que a idéia é uma alternativa
constitucional e legalmente sustentável. Porém, em que pese a abertura
demonstrada em nossa legislação, seria relevante uma alteração ou uma inovação
legislativa no sentido de incluir expressamente o paradigma restaurativo, com o
intuito de incentivar a sua aplicação, bem como de sistematizar a sua prática.
2.3.2 Experiências de práticas restaurativas
A Nova Zelândia reformulou o seu sistema de justiça da infância e da
juventude com grande sucesso em termos de diminuição da delinqüência juvenil, de
prevenção e de reincidência. O movimento é independente e foi gerado a partir da
grande insatisfação na comunidade Maori pela maneira que eles e os seus jovens
eram tratados pelas agências sociais e pelo sistema de justiça criminal. O massivo
apoio da comunidade às intervenções restaurativas nos tribunais criminais levou o
governo da Nova Zelândia, em 2001, a patrocinar um programa piloto nacional de
justiça restaurativa com duração de quatro anos205.
A justiça restaurativa na Nova Zelândia tem se manifestado como uma
iniciativa independente, com base comunitária, que recebeu sanção oficial através
da aprovação de três leis de grande impacto em 2002: a Lei das Sentenças, a Lei da
Liberdade Condicional e a Lei dos Direitos das Vítimas. As três fazem menção
explícita à justiça restaurativa e colocam as agências estatais na
205 MARSHALL Chris. Como a justiça restaurativa assegura uma boa prática - uma abordagem
baseada em valores. Disponível em: <www.justica21.org.br/interno.php?ativo= BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 18h.
94
expectativa de acomodar, de encorajar e de assessorar os processos da justiça
restaurativa. O Ministério da Justiça da Nova Zelândia decidiu adotar a justiça
restaurativa como referência na reforma do sistema nacional de justiça de crianças e
de adolescentes, com inúmeros programas também para adultos206.
De acordo com Neto207, uma avaliação feita pelos australianos em 1997
mostrou, em comparação com o método legal convencional, uma nítida vantagem a
favor dos procedimentos restaurativos. Além disso, houve melhor percepção de
justiça nos métodos empregados e nos resultados obtidos. O autor acrescenta:
[...] virtualmente, duas vezes mais resultados positivos no que diz respeito à reincidência e ao maior grau de satisfação das vítimas que, em 82% dos casos receberam desculpas ou restituição material, comparado com apenas 9% dos Tribunais208.
Conforme Moore e O’Connell209, na Austrália, os programas de Reuniões de
Restauração foram adaptadas para seu uso nos planos policiais preventivos da
delinqüência juvenil. Existem programas de justiça restaurativa espalhados em toda
a região do país, no âmbito juvenil.
Rolim210 menciona exemplos contemporâneos de práticas restaurativas
também no Japão. Na realidade, nesse país há uma tradição diferenciada da cultura
de outros, no sentido da “confissão-arrependimento-perdão”, distribuído em todas as
fases da persecução criminal, desde o primeiro interrogatório policial até a última
sessão do Tribunal. A maioria daqueles acusados pela prática de algum delito
confessa, mostra arrependimento, negocia o perdão com suas vítimas e se submete
206 MARSHALL Chris. Como a justiça restaurativa assegura uma boa prática - uma abordagem
baseada em valores. Disponível em: <www.justica21.org.br/interno.php?ativo= BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 18h.
207 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
208 Ibidem. 209 MOORE, D.B.; O'CONNELL, T.A., "Family conferencing in Wagga Wagga: a communitarian model of
justice". In: ALDER, C.; WUNDERSITZ, J. (Eds.). Family conferencing and juvenile justice: the way forward or misplaced optimism?. Canberra: Australian Institute of Criminology, 1994, p. 45-86.
210 ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006, p. 238.
95
inteiramente ao poder das autoridades. Assim, ganham a possibilidade de remições
futuras.
Para autores como Halley211, esta tradição japonesa assinala algo de
importante que já não é mais reconhecido no ocidente como um valor: não apenas a
disposição de confessar e de se arrepender por parte dos infratores, mas
especialmente a disposição de perdoar por parte das vítimas, elementos
considerados decisivos para a atividade jurisdicional. Os autores também
acrescentaram que este padrão japonês de reconhecimento de culpa e de
arrependimento, incluindo negociações diretas com as vítimas para a reconstituição
dos prejuízos, tem contribuído para o fenômeno de redução do crime.
Registra-se, de forma semelhante, que, na Europa Continental, os programas
e os mecanismos restaurativos têm conhecido um menor desenvolvimento do que
nos países de origem anglo-saxônica. A explicação para este fato, em tese, seria
pelo fato de o sistema de regulação legal-judiciária européia conferir aos particulares
uma menor possibilidade de intervirem no processo e também pelo fato de as
sociedades européias apresentarem-se mais débeis e menos autônomas, atribuindo
maior preponderância ao papel do Estado. Além disso, verifica-se que as
sociedades européias não receberam a influência de subculturas indígenas ou
tradicionais, tal como sucedeu em muitos dos países de origem anglo-saxônica,
como o Canadá, os EUA, a Austrália e a Nova Zelândia212.
Mas alguns países já começaram a perceber as vantagens dos mecanismos
restaurativos, como, por exemplo, a Inglaterra e o País de Gales, ao implementarem
a Lei de Crianças (Children Act) de 1989, incorporando princípios e programas de
Reuniões de Restauração em seu plano de bem-estar social infantil213.
211 HALEY John. “Victim-Offender Mediation: japanese and american comparisons”. Restorative Justice on
Trial. Pitfalls and Potentials of Victim-Offender mediation – International Research Perspectives. Dordrecht,The Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1992, p. 105-131.
212 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 50.
213 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
96
Na França, a mediação é um procedimento alternativo que poderá se resolver
com a renúncia do exercício da ação penal. O novo Código de Processo Penal
Francês prevê que o Procurador da República possa, depois de um acordo
preliminar entre as partes, ativar a mediação com o objetivo de facilitar a expressão
e a reflexão sobre os fatos e os comportamentos e não apenas o ressarcimento
material que passa a ser, tão-somente, um aspecto da reparação. A experiência
francesa nas atividades de mediação é aplicada para crimes de gravidade menor,
seja para os “menores“, seja para os “maiores”, sendo que a atuação é delegada
para associações externas e começou a aparecer a partir da década de 80, por
iniciativa de alguns magistrados e procuradores214.
Na Itália, a justiça restaurativa tem sido utilizada com ênfase na justiça dos
menores, com destaque para o trabalho desenvolvido no Tribunal de Menores de
Milão e Turim215.
Na Alemanha, os métodos de justiça restaurativa de conciliação entre
vítima e ofensor, na resolução dos conflitos, puderam ser notados a partir da
década de 80, na justiça penal de adultos e na justiça da infância e da
juventude216.
Na Áustria, o ordenamento jurídico prevê o princípio da obrigatoriedade da
ação penal. A mediação, antes de transformar-se em lei como conseqüência da
atuação do novo Código Penal de Menores, foi experimentada como uma
modalidade análoga ao modelo francês. O Procurador da República decide se a
mediação pode ser efetuada entre as partes depois que foi verificada a admissão
da responsabilidade por parte do menor e houver um consenso por parte da vítima.
A atividade de mediação vem efetuada por um mediador, que é um operador social
da justiça, e prevê que os “menores” se empenhem na atividade de ressarcir ou de
reparar o mal causado. No caso, segundo a Comissão Consultiva e de
Coordenação, se a mediação for exitosa, o Ministério Público arquivará o caso.
214 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de
gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 90-91. 215 SICA, op. cit., p. 84-85. 216 Ibidem, p. 87.
97
Na Espanha, também já é patente a preocupação pelas vítimas; disso é exemplo
a compensação estatal dispensada às vítimas de crimes violentos, desde 1995217.
Em Portugal, práticas restaurativas foram realizadas no chamado “inquérito
de vitimação”, em que se constatou que cerca de metade das vítimas inquiridas
mostrava disponibilidade para participar em encontros de mediação com os
respectivos autores, com a finalidade de obtenção de uma reparação dos danos,
além da não demonstração de idéias punitivas para com os agentes do crime218.
Na África do Sul, país com altíssimo índice de violência e de criminalidade no
mundo, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi alterado inteiramente, para
incorporar princípios restaurativos. Ressalta-se que, nos últimos cinco anos,
aumentou de forma notável o número de programas de mediação entre vítima e
infrator, uma das expressões mais antigas e visíveis do paradigma219.
No Canadá, os programas de Reuniões de Restauração existem para a
proteção das crianças, os casos de violência familiar e a delinqüência juvenil. Nesse
País, o programa é definido como forma alternativa e diferente do sistema tradicional
de justiça criminal, abordando a questão criminal a partir da perspectiva de que o
crime é uma violação nas relações entre as pessoas e não apenas um ato típico e
antijurídico, praticado contra a sociedade, representada pelo Estado (Justiça
Pública) e que, por causar mal à vítima, à comunidade e ao próprio autor do delito,
todos esses protagonistas devem se envolver em um processo de restauração de
um trauma individual e social. O modelo, introduzido na legislação, especialmente na
área infanto-juvenil, fez uma reforma para adequar a legislação canadense à
Convenção dos Direitos da Criança da ONU, com alternativas restaurativas de
remissão, a fim de restringir o uso do sistema formal de justiça, reduzindo medidas
217 PEDROSO, João; TRINCÃO, Catarina; DIAS, João Paulo. Percursos da informalização e da
desjudicialização – por caminhos da reforma da administração da justiça (análise comparada). Disponível em: <http://opj.ces.uc.pt/pdf/6.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 17h.
218 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 70-71.
219 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
98
privativas da liberdade e promovendo a reintegração do jovem infrator na
comunidade220.
Nos Estados Unidos, as primeiras experiências com programas restaurativos,
de natureza social, afirma-se nos anos 70, com o objetivo de prevenir os conflitos,
intervindo no estado inicial dos transtornos, através da mediação (Community
Board), antes que os comportamentos desencadeassem em crimes, para, depois,
com o tempo, expandirem-se para outros países ocidentais, como Canadá, países
escandinavos, assumindo conotações mais ou menos autônomas ao modelo
americano e que mais correspondessem às exigências e aos perfis culturais de
singulares realidades nacionais.
As práticas de justiça restaurativa estão se disseminando em todo o mundo a
uma velocidade extraordinária, chegando igualmente à América Latina,
especificamente à Argentina. Lá, o programa está funcionando desde 28 de setembro
de 1998, sendo inspirado na Lei do Ministério Público, combinado com o Código de
Processo Penal da Província de Buenos Aires. Foram criados dois centros – o Centro
de Assistência às Vítimas de Delitos e o Centro de Mediação e Conciliação Penal,
estruturas vinculadas ao Ministério Público. Os principais avanços, em nosso
continente, realmente são registrados na Argentina e na Colômbia221.
Para Sica222, a Colômbia talvez possa ser considerado como o país latino
americano em que as práticas de justiça comunitária encontram-se mais disseminadas.
Tal conclusão pode ser considerada pelo fato deste país escrever, em sua constituição e
em sua legislação, no novo Código de Processo Penal, regras de justiça restaurativa223.
220 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no
sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
221 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
222 SICA, Leonardo. Justiça restaurativa e mediação penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 101.
223 PINTO, op. cit., Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
99
Neto224 aponta que, no Chile, igualmente identificam-se lideranças, e são
formados “agentes comunitários de justiça e cidadania”, capacitados para entender o
sistema de justiça e atuar na resolução de conflitos. A intenção é colocar
determinados momentos do processo judicial sob a responsabilidade de
“consultórios jurídicos de vizinhança”, prevenir o agravamento dos conflitos e
oferecer à população meios para resolver seus problemas, sem depender
exclusivamente dos órgãos de Estado.
Pesquisas em muitos países mostram que 8 ou 9 em cada 10 casos judiciais em que foram usados procedimentos restaurativos os participantes saíram satisfeitos, e os acordos foram cumpridos. Ganham todos: vítimas, infratores, comunidades e até mesmo a Justiça225.
A justiça restaurativa e as suas práticas passam a ser uma nova e promissora
área de estudo das ciências sociais em todo mundo e também no Brasil. Em linhas
gerais, nosso país já experimenta conciliações em questões cíveis e até em
pequenas causas penais. A idéia está sendo experimentada no Distrito Federal, em
São Paulo e, também, no Rio Grande do Sul.
Conforme Pinto226, em São Caetano do Sul, a experiência de práticas
restaurativas foi realizada em escolas. Em Brasília, o programa restaurativo é
voltado para infratores adultos, acontecendo nos dois juizados especiais do Núcleo
Bandeirante, com crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais.
Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a experiência é no âmbito da justiça
infanto-juvenil. Nesse estado, os estudos iniciaram-se em 1999, e as primeiras
experiências ocorreram em 2002. Em março de 2005, foi implementado o projeto de
justiça restaurativa, denominado “Justiça para o Século 21”, junto à 3ª Vara da Infância
224 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em:
<http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h. 225 Ibidem. 226 PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no
sistema de justiça criminal. Disponível em: <http://www.idcb.org.br/documentos/sobre%20justrestau/construcao_dajusticarestaurativanobrasil2.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
100
e da Juventude de Porto Alegre, visando à introdução de práticas restaurativas na
pacificação de situações de violência, envolvendo crianças e adolescentes227.
Portanto, o Brasil apenas agora está iniciando a sua caminhada para
aplicação da justiça restaurativa na área do juizado da infância e da juventude. As
práticas que estão surgindo são todas em caráter complementar e sempre com
acompanhamento do Judiciário, embora a participação de profissionais de Direito
não seja necessariamente um pré-requisito.
Conforme Penido228, no Brasil, há certo estranhamento a nova modalidade de
Justiça sob pena de estar se tirando, segundo alguns juristas, um ganho histórico do
Estado Democrático do Direito.
Apesar dos limites e das contingências que impendem sobre a justiça restaurativa – que apenas devem servir para que se evite a alimentação de esperanças excessivas ou ilusórias –, as práticas restaurativas não deixam de promover a celeridade, a economia de custos – tanto para o Estado como para as partes –, a segurança e a satisfação material e moral da vítima, a libertação do estigma e a reintegração de ambos229.
De acordo com Neto230, a partir da experiência do juizado itinerante (cível),
adquiriu-se consciência acerca do despreparo material (ou seja, falta de
conhecimento de direitos no momento em que negócios jurídicos são celebrados) e
emocional das partes envolvidas em conflitos para composição amigável. Segundo o
autor: “apesar do alto índice de conciliação atingido, cerca de 80%, na maioria dos
acordos, não havia um processo de crescimento, de transformação das pessoas no
exercício da cidadania”231.
227 BRANCHER, Leonardo; AGUINSKY, Beatriz. Histórico de implementação do projeto justiça
para o século 21. Disponível em: <www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
228 PENIDO, Egberto. Justiça restaurativa – um breve esboço. Disponível em: <http://www.epm.sp.gov.br/NR/rdonlyres/E9971AD1-A99C-4DF1-A4C8-1E8D39959384/980/interacao61.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2007. 18h.
229 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Editora Coimbra, 2006, p. 128.
230 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Brasil, 2004. Disponível em: <http://jijserver.tj.rs/jij_site/JIJ_SITE.home>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
231 Ibidem.
101
[...] o que se vê são pessoas bastante desgastadas porque, antes do ingresso nas instâncias formais da justiça, não tiveram a oportunidade de conhecer seus direitos, sobretudo o direito do outro; de amadurecer com os conflitos inevitáveis porque são próprios da natureza humana: enfim, de respeitar as diferenças e aprender a lidar com elas, de forma generosa, fraterna. A partir desse diagnóstico, convencem-nos da necessidade de construir espaços nos quais as pessoas pudessem não somente conhecer os seus direitos, mas também excedê-los com o auxílio de um mediador que necessariamente deveria ser membro da comunidade e apresentar características diferentes das do árbitro, seja o juiz, seja o conciliador. Nesse momento, esboçávamos as primeiras linhas do Projeto “Justiça Comunitária232.
As práticas restaurativas mostram-se hoje assistidas por metodologias que vêm
sendo objeto de teorização e de revisão científica, dando corpo a uma teoria da
mediação, desenvolvida não só por juristas como por profissionais de outras áreas, e
o seu emprego amplamente cultivado e divulgado em um número cada vez maior de
países de diversos continentes, com distintas culturas e sistemas legais233.
De acordo com Paz:
Há mais de 300 programas nos Estados Unidos e mais de 500 na Europa. As análises destes programas vêm demonstrando um aprimoramento na relação vítima-infrator, a redução do medo na vítima e maior probabilidade do cumprimento do acordo por parte do infrator234.
O entendimento é de que, com tais experiências, estaríamos, no mínimo,
fazendo uma tentativa no sentido de efetivarmos e garantirmos inúmeros dos nossos
direitos fundamentais hoje existentes e não realizados. Isto é justamente o que
procuraremos demonstrar no próximo capítulo.
232 FALSARELLI, Gláucia. Projeto justiça comunitária. 63 Tribuna Judiciária, p. 08, 2000. 233 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra:
Editora Coimbra, 2006, p. 49. 234 PAZ, Silvana Sandra. Justiça restaurativa – processos possíveis. Disponível em:
<www.justica21.org.br/j21/interno.php?ativo=BIBLIOTECA>. Acesso em: 17 nov. 2007. 16h.
102
3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS ADOLESCENTES
Neste capítulo, abordaremos a forma pela qual a justiça restaurativa pode
contribuir para a efetivação de alguns dos direitos fundamentais hoje existentes,
porém pouco ou nada efetivados235.
A efetividade da Constituição há de assentar-se sobre alguns pressupostos indispensáveis. É preciso que haja, da parte do constituinte, senso de realidade, para que não pretenda normatizar o inalcançável, o que seja materialmente impossível em dado momento e lugar. Ademais, deverá ele atuar com boa técnica legislativa, para que seja possível vislumbrar adequadamente as posições que se investem os indivíduos e os bens jurídicos e as condutas exigíveis. Em terceiro lugar, impõe-se ao Poder Público vontade política, a concreta determinação e tornar realidade os comandos constitucionais. E, por fim, é indispensável o consciente exercício de cidadania, mediante a exigência, por via de articulação política e de medidas judiciais, da realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais236.
Nesse sentido, apresentamos a justiça restaurativa como uma nova forma de
resolução de conflitos a ser pensada e utilizada.
235 Cumpre tecer breves comentários acerca do termo “efetividade”, muito explorado no presente trabalho
(sem esquecermos a sua diferença terminológica para “eficácia”): efetividade designa a atuação prática da norma, fazendo prevalecer, no mundo dos fatos, os valores por ela tutelados. No ângulo subjetivo, efetiva é a norma constitucional que enseja a concretização do direito que nela se substancia, propiciando o desfrute real do bem jurídico assegurado (BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 231). O princípio da efetividade ou da máxima efetividade é, seguramente, um dos mais importantes na interpretação dos direitos fundamentais. Sem o imperativo da efetividade, os direitos fundamentais seriam reduzidos a meras declarações políticas ou exortações morais, a uma retórica tão impressionante quanto vazia, com a pretensão de dar ares de civilidade a uma sociedade não-civilizada. Sem efetividade, o que se tem é ou uma Constituição nominal ou uma Constituição semântica (STEINMETZ, Wilson. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97-98). A eficácia, por sua vez, é o predicado da norma que se refere à capacidade técnica de produzir efeitos jurídicos. Assim, norma jurídica eficaz é aquela que pode ou deve ser aplicada porque está apta a produzir os efeitos técnicos previstos ou dela esperados. (STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Porto Alegre: Malheiros, 2004, p. 42). A validade normativa não é condicionada e não se confunde nem com a sua eficácia (de cumprimento da norma por seus destinatários e de sanção imposta quando de seu descumprimento), nem com a sua efetividade/eficiência normativa (que a norma seja cumprida, aplicada e apta a atingir os objetivos que justificaram sua criação) (FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 874).
236 BARROSO, Luis Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In: BONAVIDES, Paulo; DE LIMA, Francisco Gérson Marques; BEDÊ, Fayga Silveira. Constituição e Democracia: Estudos em homenagem ao Prof. J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 442-443.
103
A justiça restaurativa será fundamental para efetivação de vários direitos
fundamentais, dentre eles será dado destaque à dignidade dos sujeitos, em
especial dos adolescentes, ao princípio da solidariedade social e comunitária, ao
direito à tutela efetiva e ao próprio efeito colateral positivo em termos de
reincidência.
Para tanto, foi preciso trabalhar, no primeiro capítulo, os direitos
fundamentais, a transição de paradigmas e os novos direitos. Quanto ao segundo
capítulo, foi feita uma revisão teórica da justiça restaurativa, apontando também
experiências de práticas restaurativas no mundo e no país.
Agora, o objetivo é demonstrar que a justiça restaurativa se enquadra
dentro desta transição paradigmática, como novos direitos tendentes à
participação democrática e pluralista de uma sociedade pós-moderna. Nessa
perspectiva, trataremos dos princípios constitucionais e dos benefícios inerentes
a este novo instituto.
3.1 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A DIGNIDADE DOS SUJEITOS ADOLESCENTES
O primeiro princípio a ser discutido será o princípio da dignidade da pessoa
humana, mais especificamente a dos sujeitos adolescentes.
A dignidade é um atributo essencial que nasce com o ser humano, insubstituível e inegociável. O ser humano é um ser digno e assim deve ser reconhecido e tratado. Em nosso sistema jurídico, é o fundamento do Estado de direito, por excelência, ao qual se vinculam todos os direitos, princípios e garantias. Violar a dignidade da pessoa humana é destruir o ser humano, descaracterizá-lo, reduzi-lo a um ser irracional e romper o ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito237.
237 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 79.
104
A justiça restaurativa tem como um dos critérios basilares a natural
valorização da dignidade da pessoa, preservando-a como ser humano detentor de
direitos fundamentais, garantidos pela Carta Magna. Esta é uma forma de
complementar a sistemática atual da justiça em que se dará especial importância,
para a observância do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e dos
direitos fundamentais constitucionais da dignidade e da proteção integral da criança
e do adolescente, à luz do princípio da legalidade.
Como fundamento do Estado Social e Democrático de Direito, a Constituição
Federal de 1988 reconheceu o Princípio Fundamental da Dignidade da Pessoa
Humana, consoante artigo 1º, inciso III238.
Conforme Sarlet, encontramos a seguinte definição:
[...] temos por dignidade da pessoa humana, a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e de deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos239.
Steinmetz apontou, de forma objetiva, os principais aspectos do conceito de
dignidade da pessoa humana:
[...] pode-se dizer que o princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa ordena: (i) o respeito à pessoa como ser autônomo, livre e valioso em si mesmo; (ii) o reconhecimento de cada pessoa independentemente das particularidades (traços ou características) e
238 No Direito brasileiro, após mais de duas décadas de ditadura sob o regime militar, a Constituição
democrática de 1988 explicitou, no artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. A dignidade humana, então, não é criação da ordem constitucional, embora seja por ela respeitada e protegida. A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática (MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 115).
239 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 36.
105
vicissitudes pessoais e sociais, como ser singular, único e irrepetível; (iii) o reconhecimento de cada pessoa como uma manifestação concreta da humanidade; (iv) a criação de condições, de oportunidades e de instrumentos para o livre desenvolvimento da pessoa. Em contrapartida, o princípio constitucional da dignidade da pessoa proíbe: (i) a “coisificação” ou a “objetualização” da pessoa. (ii) a “funcionalização” (política, econômica ou técnica da pessoa, (iii) a privação da pessoa, de condições e de meios para uma sobrevivência livre autônoma e decente. (iv) humilhações ou vexações da pessoa. (v) a submissão da pessoa a uma posição servil. (vi) a eliminação total da vontade e da possibilidade de livre escolha da pessoa240.
Para José Afonso da Silva, a palavra dignidade é empregada seja como “uma
forma de comportar-se, seja como atributo intrínseco da pessoa humana, nesse
último caso, como um valor de todo ser racional. É valor supremo que fundamenta
nossa atual ordem jurídica e implica o reconhecimento de direitos indispensáveis
para realização do ser humano”241.
O princípio da dignidade humana será, sobretudo, considerado para pessoas
que necessitem de especial atenção e de proteção da lei, tal como os adolescentes,
autores de atos infracionais. Assim também ponderou Moraes, ao discorrer acerca
da dignidade humana:
Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente, onde ela se manifeste. De modo que terão precedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei. Nestes casos, estão as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores de deficiência físicas e mentais, os não-proprietários, os consumidores, os contratantes em situação de inferioridade, as vítimas de acidentes anônimos e de atentados a direitos da personalidade, os membros da família, os membros de minorias, dentre outros242.
É por entendermos que os adolescentes sejam alvos de uma atenção
especial que defendemos a aplicação de práticas restaurativas na tentativa de dirimir
as conseqüências danosas que os seus atos infracionais são capazes de deixar.
240 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Porto Alegre:
Malheiros, 2004, p. 116. 241 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros,
2007, p. 92. 242 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 116.
106
A sociedade influenciada pela mídia parece exigir um comportamento cada vez mais adulto daqueles que ainda não o são. Crianças e jovens estão estressados com um horário a cumprir similar ao de um adulto, a ponto de não sobrar tempo para brincar, conversar, se divertir. Outras precisam amadurecer cedo porque os pais colocam sobre seus ombros a responsabilidade de cuidado com os irmãos menores, sem o que, aqueles não poderão trabalhar. O reflexo é um pseudo amadurecimento vazio no qual crianças e jovens se vêm muitas vezes perdidos, desejosos de viver fases da vida para as quais ainda não estão prontas243.
A entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente assegurou que
as crianças e os adolescentes passassem a ser sujeitos de direito pelo Estado, pela
família e sociedade, deixando de ser tratados como “menores”, denominação dada
pelo antigo Código de Menores (Lei nº 6697/79). Dispõe o art. 7º desta nova
legislação: “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,
mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o
desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
Nesse sentido – no de que os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdos distintos dos da personalidade do adulto – é que, penso, pode-se compreender afirmação feita por tantos estudiosos e militantes do Direito da Criança e do Adolescente de que, antes da concepção doutrinária conhecida como Proteção Integral, crianças e adolescentes eram tidos pelos ordenamentos como meros objetos de intervenção do mundo adulto e de que, com a vigência da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, passaram à condição de sujeitos de direitos244.
O novo Estatuto determina, para o atendimento dos adolescentes, uma rede
de proteção, formada pelos profissionais da área, tais como conselheiros tutelares,
responsáveis pelos conselhos de direito, assistentes sociais, psicólogos, promotores
de justiça, juízes de direito, entre outros. São diversos atores sociais na expectativa
de buscar resultados satisfatórios, prometidos com o advento do Estatuto.
Ocorre que, passados quase vinte anos, embora o pioneirismo de suas
normas, as medidas previstas pelo Estatuto não ofereceram a resposta necessária e
243 AMIM, Andrea Rodrigues. Dos direitos fundamentais. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo
Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente – aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 50.
244 MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri: Manole, 2003, p. 116.
107
esperada por todos no que diz respeito à garantia da dignidade dos adolescentes.
Assim, novas alternativas são necessárias para buscar o atendimento desses
anseios.
A justiça restaurativa é uma tentativa de concretização do princípio da
dignidade da pessoa humana, porquanto cria oportunidades e instrumentos para o
livre desenvolvimento da pessoa, evitando-se a estigmatização dos autores de ato
infracional, bem como anseia ressocializá-los, buscando o resgate do próprio
respeito como integrantes de uma comunidade. É este respeito, como valor
essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, que se buscará atingir:
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e de injustiças245.
No mesmo sentido, Moraes diz que:
Considera-se, com efeito, que, se a humanidade das pessoas reside no fato de serem elas racionais, dotadas de livre arbítrio e de capacidade para interagir com os outros e com a natureza – sujeitos, por isso, do discurso e da ação –, será “desumano”, isto é, contrário à dignidade humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto246.
Aliás, é sob essa perspectiva que se perfectibiliza a justiça restaurativa, ou
seja, com a participação da comunidade envolvida com os efeitos danosos daquela
determinada infração. É a comunidade que se reunirá, juntamente com a vítima e o
adolescente, para chegarem ao consenso comum, no qual se visará à reparação do
dano e, principalmente, a sua reintegração na sociedade.
245 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 61. 246 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 117.
108
Nota-se uma integração total da comunidade na resolução do problema,
ocorrido pela lesão de um bem protegido e da lesão da dignidade do autor e da
vítima, bem como daquele meio social. O princípio da dignidade da pessoa está
presente nas relações entre os particulares. Conforme Sarlet:
Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa) do Estado, também a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua natureza igualitária e por exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da pessoa vincula também no âmbito das relações entre os particulares247.
No sentido de que a dignidade da pessoa possui uma dimensão individual e
uma dimensão social, esclarece Steinmetz que
[...] há casos em que a lesão da dignidade de uma ou de mais pessoas se profeta também sobre a dignidade ou sobre o sentimento de dignidade das demais pessoas integrantes da comunidade humana. Nessa perspectiva, a dignidade da pessoa é um “bem individual” e “um bem social” da comunidade, da humanidade. Por isso, a proteção e a promoção desse bem deve ser obrigação de todos e de (no) interesse de todos248.
Os instrumentos da justiça restaurativa, notadamente as técnicas de
consenso que fazem parte deste instituto, poderão evitar a formalização de uma
acusação contra a pessoa, no caso o adolescente infrator. Nesse caso, teríamos
alcançado o objetivo da reparação do evento lesivo sem a necessidade de um
processo, o qual, muitas vezes, deixa marcas de estigmatização irreparáveis. Nesse
sentido, Giacomolli, citando Costa Andrade, sugere que
Sempre que se possa chegar ao término antecipado do processo, com manutenção de seus fins, se estará evitando as conseqüências danosas de sua duração excessiva, que representa uma carga ao acusado, do ponto de vista psíquico, familiar e profissional. A formalização de uma acusação pode
247 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 112. 248 STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Porto Alegre:
Malheiros, 2004, p. 116.
109
desenvolver um processo irreversível de estigmatização, de manipulação, de adulteração da identidade e da imagem do imputado249.
Nesse ponto, destacamos o adolescente, como pessoa em formação,
protegido por legislação própria (Estatuto da Criança e do Adolescente), com
especial ênfase no princípio da proteção integral, que norteia todas as questões
envolvendo os menores de idade.
Na linha de pensamento do Estatuto da Criança e do Adolescente, voltado à
proteção e à integração dos jovens, está a Justiça Restaurativa. Todos os seus
procedimentos objetivam evitar o processo judicial que somente será ativado como
última alternativa. Esta é, portanto, a contribuição da justiça restaurativa para com os
direitos fundamentais da criança e do adolescente, mais especificamente em relação
aos direitos dos adolescentes infratores.
O valor da dignidade humana também foi conferido à criança e ao
adolescente no Título relativo à Ordem Social, artigo 227, caput da CF/88,
assegurando à criança e ao adolescente o direito à dignidade, entre outros.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade e de opressão.
Este é um direito fundamental, embora localizado fora do catálogo dos direitos
fundamentais, em que a criança e o adolescente deixam de ser vistos como meros
objetos de intervenção social e jurídica por parte da família, da sociedade e do
Estado.
249 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 79.
110
O Estado deverá olvidar esforço no cumprimento de sua obrigação
constitucional, seja com a criação de programas, seja com a destinação de
percentual de recursos públicos para garantia destes direitos.
Nesta linha de raciocínio, sustenta-se, com razão, que a concretização do programa normativo do princípio da dignidade da pessoa humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente, contudo, ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica que atenda às exigências do princípio. Em outras palavras – aqui considerando a dignidade como tarefa –, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do dever de respeito e de proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade250.
Nesse contexto, a justiça restaurativa assegura o pleno desenvolvimento da
personalidade de cada indivíduo, garantindo a concretização dos direitos
fundamentais pertinentes e a proteção dos direitos humanos.
Registre-se que o modelo restaurativo não guarda, seguramente, nenhuma antinomia com o sistema de afirmação e de proteção dos direitos humanos. Do contrário, a justiça restaurativa não pode ser concebida de forma dissociada da doutrina de proteção aos direitos humanos, já que ambas buscam, em essência, a tutela do mesmo bem: o respeito à dignidade humana251.
O prolongamento indeterminado de um processo judicial também é motivo
determinante para ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, tanto que a
própria Constituição do Brasil acrescentou, em seu artigo 5º, o inciso LXXVIII: “A
todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Assim, com muito mais razão, a demora de um procedimento judicial,
envolvendo um adolescente, ofenderia a sua dignidade, já que se trata de uma
pessoa em condição peculiar de desenvolvimento.
250 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 112. 251 DE VITTO, Renato Campos. Justiça criminal, justiça restaurativa e direitos humanos. Disponível
em: <www.undp.org/governance/docs/Justice_Pub_Restorative%20Justice.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2007. 11h. p. 47-48.
111
Portanto, a resolução rápida do problema, sem a necessidade de um
processo judicial ou com um processo judicial célere, evitaria a estigmatização do
sujeito, protegendo, assim, a sua própria dignidade. Para tanto, há o instituto da
justiça restaurativa, com os seus instrumentos e princípios, como forma de
concretização deste objetivo.
Ademais, a estigmatização do indivíduo poderá surgir também com a
publicidade do processo, em que diversas pessoas, estranhas ao fato, tomam
conhecimento através da imprensa escrita, falada, mídia em geral e outras diversas
formas existentes de divulgação. Da mesma forma, Giacomolli asseverou que: ‘“Não
obstante, há que se ter em conta que a estigmatização também pode advir da
informação ao público da existência de um processo e da distorção deste no
momento de sua publicidade”252.
A publicidade, traço característico da justiça tradicional retributiva, é
incompatível com a justiça restaurativa. A confidencialidade, dessa forma, é um dos
princípios da justiça restaurativa, conforme analisado no capítulo anterior do
presente trabalho. É o princípio, repita-se, que estabelece que todos os conteúdos
dos contatos estabelecidos entre as partes envolvidas na mediação sejam
confidenciais. Todos os fatos revelados, as afirmações destinadas a solucionar o
conflito e as sugestões ou as propostas, apresentadas pelo mediador ou pelas
partes, não são divulgados. Assim, nesse aspecto, também a justiça restaurativa
desponta como forma de garantir a dignidade dos sujeitos envolvidos, mormente no
que diz respeito à dignidade do sujeito adolescente.
É indiscutível que os efeitos de uma condenação ou até mesmo o fato de ter
sido objeto de um procedimento judicial criminal causarão mais danos a um
adolescente infrator do que para um adulto, contumaz praticante de delitos. Dessa
forma, entendemos que a justiça restaurativa seria mais eficaz no sentido de
garantia de direitos fundamentais para os atos infracionais de menor e médio
potencial ofensivo.
252 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 80.
112
A condenação, ou até mesmo a sujeição a um processo criminal, estigmatiza,
sem dúvida, a pessoa: “Um dos objetivos da adoção dos mecanismos de consenso
é evitar os efeitos danosos de uma condenação, ou seja, o estigma de condenado, o
etiquetamento.”253 Esse “etiquetamento” seria muito mais visível e prejudicial a um
adolescente infrator, já que ainda está em desenvolvimento de sua personalidade.
Os encontros restaurativos, com os seus instrumentos de consensualidade, acaso
exitosos, evitariam futura demanda judicial, impedindo, assim, os efeitos negativos
de estigmatização ou do “etiquetamento”.
Não só a aplicação de uma sanção criminal, com o encarceramento, pagamento de uma multa, prestação de serviços comunitários ou limitação de direitos afetam o condenado. A condenação enseja outras conseqüências que também atingem diretamente a condição de cidadão, estendendo-se para toda a sua família. A pecha de condenado estigmatiza socialmente, prejudica, por mais trivial que seja o fato criminal praticado254.
A infração criminal, logicamente, atinge, em especial, a pessoa da vítima que
sofre diretamente os efeitos danosos do evento criminoso. Não obstante ser atingida
no momento do crime, é também durante o processo, visto que pouco ou nada é
feito para resguardá-la. O processo criminal é desenvolvido com o foco no réu e no
Estado. Aliás, esta é a característica da nossa justiça retributiva, qual seja a relação
entre Estado e réu. A vítima tão-somente prestará o seu depoimento.
A justiça restaurativa, conforme já analisado, dá especial importância ao papel
da vítima. Ela preocupa-se com ela, a fim de que não fique estigmatizada com o
evento lesivo. O foco está no sentido de evitar traumas e demais conseqüências
negativas, oriundas da ocorrência de uma infração criminal.
As vítimas sofrem com as condutas dos delinqüentes, com a omissão do Estado e com a morosidade processual, aumentando o descrédito institucional. Os danos que afetam as vítimas não se restringem ao âmbito físico, mas se estendem à esfera psíquica, social e econômica255.
253 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 81. 254 GIACOMOLLI, op. cit., p. 81-82. 255 Ibidem, p. 84.
113
Nesse aspecto, denota-se, na justiça tradicional, que a vítima pouco ou nada
tem de conhecimento acerca do que está ocorrendo ou do que irá ocorrer naquele
determinado processo. A posição que ela ocupa é de total alienação em relação ao
que se está apurando.
O que se busca nos encontros restaurativos é a participação total da vítima,
seja com o diálogo entabulado com os participantes e o infrator, seja com a própria
sugestão de soluções para resolução do problema. Sendo assim, o ofendido
naturalmente se sentirá prestigiado e, principalmente, mais seguro em virtude de
conhecer exatamente o que será feito para reparação do dano.
É nesse sentido que as práticas consensuais restaurativas irão garantir não
só a dignidade do sujeito infrator, mas também e, sobretudo, a dignidade da vítima.
Giacomolli assinala que:
O ser humano vítima é submetido à degradante via-sacra, comparecendo perante a autoridade policial para registrar a ocorrência e, após, para ser ouvida. Posteriormente, é chamada a depor em audiência criminal, face to face com o autor do fato, sem que obtenha o mínimo de conforto do aparato criminal. Para obter uma reparação dos danos, necessita contratar um profissional e iniciar outro processo, na esfera cível, retomando os depoimentos. Em suma, é desprezada, instrumentalizada, tratada como objeto, sem um mínimo de dignidade, a possibilidade de participar de um processo dialogado, de discutir a indenização na primeira vez que é chamada a juízo, de obter um título executivo (acordo civil) ou a promessa de indenização (suspensão condicional do processo), promove a dignidade do ser humano ou, pelo menos, ameniza o sofrimento256.
Por fim, não se pode atrelar o princípio da dignidade humana tão-somente a
determinadas situações especiais; bem pelo contrário, tal princípio tem por escopo o
regrar a personalidade humana, independente se está disciplinado em regra jurídica
própria.
Mais importante, todavia, parece ser o destaque de que não há, neste caso, um número aprioristicamente determinado de situações jurídicas subjetivas tuteladas, porque o que se visa proteger é o valor da personalidade humana, sem limitações de qualquer gênero, ressalvadas aquelas postas no interesse de outras pessoas, dotadas de igual dignidade. A “elasticidade”
256 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 85-86.
114
torna-se o instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no “livre exercício da vida de relações”257.
É a valorização da pessoa humana, tanto do infrator como da vítima, que se
deseja atingir com a flexibilidade da justiça restaurativa.
3.2 JUSTIÇA RESTAURATIVA E O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL E
COMUNITÁRIA
O princípio da solidariedade social e comunitária é outra referência que a
justiça restaurativa busca concretizar. O princípio da solidariedade está expresso na
Constituição Federal, em seu art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
A expressa referência à solidariedade, feita pelo legislador constituinte, estabelece, em nosso ordenamento, um principio jurídico inovador, a ser levado em conta não só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução de políticas públicas, mas também nos momentos de interpretação e de aplicação do Direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, por todos os membros da sociedade258.
Steinmetz aponta, com muita propriedade, a importância do princípio da
solidariedade:
[...] do ângulo do objeto ou do âmbito de proteção, o princípio refere-se ao bem-estar social das pessoas e dos grupos, ao atendimento das necessidades básicas para uma existência digna [...] do ângulo dos titulares, figuram todas as pessoas titulares de direitos fundamentais sociais, sobretudo as pessoas que se encontram econômica, social e culturalmente em posição ou situação de desvantagem. Do ângulo do destinatário, figura em primeiro e principal plano o Estado. O princípio constitucional da solidariedade exige do Estado: (i)a garantia efetiva dos direitos fundamentais sociais; (ii) a promoção do bem-estar geral das pessoas (e.g., criação de uma rede de proteção social); e (iii) a criação de mecanismos e incentivos de cooperação social e de ajuda mútua entre os
257 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 143.
258 Id. Ibidem, p. 138.
115
particulares, isto é, o fomento da solidariedade nas relações horizontais. Em suma, o princípio da solidariedade exige do Estado ações positivas, normativas e fáticas, em prol do bem-estar geral das pessoas259.
O Estatuto da Criança e do Adolescente tem como escopo uma democracia
beneficiada pela participação da cidadania organizada na formulação das políticas
públicas. O objetivo desta lei é o atendimento da pessoa em desenvolvimento pelos
profissionais da área, em uma relação de interdependência. Podemos afirmar que
há necessidade de efetivação do também chamado Princípio da Participação
Popular na Defesa dos Direitos de Crianças e de Adolescentes:
A noção central nesse princípio é chamar a comunidade organizada a participar da defesa dos direitos de crianças e de adolescentes, para reforçar a proteção integral. Com efeito, seja porque o interesse social na efetivação dos direitos de crianças e de adolescentes é de particular magnitude na Constituição Federal, seja porque a Constituição impôs também à Sociedade e à Família o dever de asseguramento dos direitos fundamentais, a comunidade organizada, ou a sociedade civil para usar outro termo, foi chamada a participar tanto na esfera da tutela jurisdicional desses direitos, como na esfera das políticas públicas necessárias às efetivação deles, participando diretamente da formulação, do controle e da execução das políticas públicas de atenção à infância e à juventude260.
Há necessidade de concretização desse ideal, atendendo-se ao princípio da
solidariedade, com políticas públicas que envolvam também a comunidade, o que
não tem ocorrido. O adolescente, autor de ato infracional, passará pela mesma
carga emotiva de um processo judicial normal, com a participação, na maioria das
vezes, tão-somente do Ministério Público e do Poder Judiciário. Nesse raciocínio,
não se terá atendido um dos objetivos propostos pelo legislador e, principalmente, o
princípio da solidariedade, qual seja, a participação comunitária.
A justiça restaurativa fomenta as relações humanas de cooperação, através
da criação de procedimentos, de reuniões, de conciliação com a participação da
comunidade, através da própria sensação de bem-estar geral com a resolução do
problema. Tal instituto resgata a idéia de uma rede de proteção na área da infância e
259 STEINMETZ, Wilson. A Vinculação dos particulares a direitos fundamentais. Porto Alegre:
Malheiros, 2004, p. 119-120. 260 MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os
direitos humanos. Barueri: Manole, 2003, p. 413.
116
da juventude, mormente nas questões envolvendo atos infracionais. Este tipo de
procedimento busca estimular o espírito comunitário, com a participação atuante dos
membros de um grupo social, buscando melhorar as condições de convívio dentro
da comunidade em que se inserem.
Toda comunidade envolvida efetuará os esforços para a reparação da
situação causada pelo cometimento do ato infracional. A família da vítima e do
infrator, particulares de uma determinada comunidade, e a própria sociedade
possuem a responsabilidade de promoverem a defesa dos direitos fundamentais. É
a idéia da responsabilidade social, em que o cidadão e as comunidades estão
tomados de poder por meio da participação efetiva e ativa no processo de justiça.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Giacomolli citando o que propõe
García-Pablos de Molina, diz que:
Uma justiça restaurativa, de base comunitária, que intervém no problema criminal de forma construtiva e solidária, para resolvê-lo: sem metas repressivas; não desde o imperium do sistema, mas confiando na capacidade dos implicados naquele para encontrar fórmulas de compromisso, de negociação, de pacto, de conciliação, de pacificação; e na poderosa influência positiva dos grupos e instituições primárias: na educação, na comunicação, na reconstrução dos vínculos informais do indivíduo, como garantia do acatamento sincero das normas comunitárias por este e da prevenção do delito261.
Portanto, os direitos fundamentais, relacionados com a justiça restaurativa,
demonstram vital importância, tanto sob uma perspectiva subjetiva, quanto objetiva,
uma vez que não se direcionam somente sob um enfoque individualista, mas
também sob o ponto de vista da sociedade.
O princípio da solidariedade visa à relação do homem com o seu semelhante,
no sentido de que haja a sua inserção na sociedade. Segundo Moraes,
O princípio da solidariedade é também decorrente do fato social, na medida em que não se pode conceber o homem sozinho. Somente se pode pensar
261 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 98.
117
o indivíduo como inserido na sociedade, isto é, como parte de um tecido social, mais ou menos coeso, em que a interdependência é a regra e, portanto, a abertura em direção ao outro, uma necessidade262.
As práticas restaurativas fomentam as relações humanas, porquanto existem
os encontros restaurativos, nos quais todos irão discutir, trocar idéias, sugerir
alternativas, até o momento de encontrar a solução. Nota-se que não haverá justiça
restaurativa sem que tenhamos um trabalho feito em rede.
O que se deseja é que determinados atos infracionais sejam encarados como
um problema social, em que se buscará a inclusão do adolescente de volta a sua
comunidade, evitando-se, assim, a sua marginalização e exclusão. Esta é a busca
da concretização da solidariedade:
Do ponto de vista jurídico, como mencionado, a solidariedade está contida no princípio geral instituído pela Constituição de 1988 para que, através dele, se alcance o objetivo da “igual dignidade social”. O princípio constitucional da solidariedade identifica-se, desse modo, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados263.
A criação de normas tendentes à concretização do princípio da solidariedade
deveria ser regra em um Estado de Direito. O Estado deveria, através de seus
representantes, fomentar a criação de normas tendentes a efetivar a solidariedade.
É apresentada a justiça restaurativa como uma alternativa de se buscar a efetivação
do princípio da solidariedade em determinados casos. Este é um exemplo de como
pode ser resolvido um problema social pela própria comunidade.
Há um dever, fundamentado também neste princípio, de produção de normas
que resgatem a solidariedade social. Dessa forma, Moraes posiciona-se:
262 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 138.
263 Ibidem, p. 140.
118
Este é o projeto solidarista, inscrito nos princípios constitucionais fundamentais, que começa lentamente a ser realizado, seja por meio de normas que, direta e indiretamente, afrontam tais desigualdades, seja agora, também, através da destinação de recursos especificamente para tal fim. [...] Como se vê, a solidariedade social, na juridicizada sociedade contemporânea, já não pode ser considerada como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas, tendo-se tornado um princípio geral do ordenamento jurídico, dotado de completa força normativa e capaz de tutelar o respeito devido a cada um264.
Conforme já analisado neste trabalho, existem diversas normas que seriam
perfeitamente recepcionadas para aplicação dos princípios restaurativos. Porém,
normas específicas, já existentes em outros países, acerca da justiça restaurativa,
disciplinando programas e definindo os seus critérios, seriam de especial relevância
também em nosso país, até para o incentivo e a definição de suas práticas. Os
programas de justiça restaurativa representam uma forma de democracia
participativa, aplicada ao sistema de justiça.
O modelo apresentado é típico de uma sociedade democrática, em que há a
responsabilidade e o compromisso por toda a sociedade e individualmente de todos
os cidadãos na resolução do problema. Conforme Carvalho, a equipe se desenvolve
em “um ethos centrado na valorização do ser humano, na capacidade de mediação
para a solução de conflitos, na capacidade do ser humano de se responsabilizar por
seus atos, desenvolver-se e emancipar-se plenamente”265.
As soluções de conciliação encontradas, as alternativas e as complementares
ao atual sistema retributivo de justiça, tal como a justiça restaurativa, são formas de
fomentarem a criação de uma justiça informal comunitária e, portanto, de concretizar
o princípio da solidariedade. Dias assinala que
As soluções de conciliação constituem uma das manifestações mais expressivas do movimento de “deslegalização” ou de “informalização” da
264 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 140.
265 CARVALHO, Luiza Maria S dos Santos. Notas sobre a promoção da eqüidade no acesso e intervenção da justiça brasileira. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs.). Justiça restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNDU, 2005, p. 216.
119
justiça e que, um pouco por toda a parte, tem provocado o aparecimento do que se designa por “justiça comunitária” ou “justiça informal266”.
Estas organizações informais, feitas por cidadãos próximos do conflito,
ajudarão os infratores a reconhecer os seus atos, a natureza do conflito, a fazer com
que compreendam a situação vivida pelo outro, no caso a vítima, e a decidir qual a
melhor forma de resolver e de superar a situação apresentada. Nota-se, nesse
contexto, a participação solidária de todos em um objetivo comum. A comunidade
ganha maior coesão, restaurando-se a harmonia entre os indivíduos e o equilíbrio
nas comunidades atingidas. Moraes, com propriedade, ressalta que
Desse modo, não há um número fechado (numerus clausus) de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa, sem limites, salvo aqueles postos no seu interesse e no interesse de outras pessoas humanas. Nenhuma previsão especial pode ser exaustiva, porque deixaria de fora, necessariamente, novas manifestações e exigências da pessoa, que, com o progredir da sociedade, passam a exigir uma consideração positiva. Evidentemente, não se restringe tal concepção ao momento patológico, ao momento da reparação de dano já causado, mas põe-se a serviço da proteção e da promoção humanas em todas as suas relações. Daí sustentar-se que a personalidade humana é valor, um valor unitário e tendencialmente sem limitações. Assim, não se poderá, com efeito, negar tutela a quem requeira garantia sobre um aspecto de sua existência para o qual não haja previsão específica, pois aquele interesse tem relevância ao nível do ordenamento constitucional e, portanto, tutela também em via judicial267.
A solidariedade, a exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana,
busca o desenvolvimento da personalidade do indivíduo. Nesse caso, a justiça
restaurativa, com os seus princípios norteadores, tutela o valor da pessoa,
promovendo o homem em todas as suas relações, independente de sua previsão
legal.
266 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia - O homem delinqüente
e a sociedade criminógena. Coimbra: Editora Coimbra, 1997, p. 425. 267 MORAES, Maria Celina Bodin. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 144.
120
3.3 JUSTIÇA RESTAURATIVA E A SUPERAÇÃO DO TECNICISMO PROCESSUAL
DAS JURISDIÇÕES TRADICIONAIS
Outro ponto a ser tratado neste capítulo é a superação do tecnicismo
processual das jurisdições tradicionais, ou melhor, o direito constitucional à tutela
efetiva.
Vivemos atualmente uma crise de efetividade do direito, seja pela inflação
legislativa, hoje existente, e precariedade das normas do nosso sistema legal, seja
pela falta de estrutura do Poder Judiciário e demais instituições e poderes. Esta
gama de motivos influenciará negativamente na efetividade e na eficácia de muitos
dos nossos direitos fundamentais.
Esta crise de efetividade também se estende para os direitos das crianças e
dos adolescentes, previstos como direitos fundamentais na Constituição Federal,
bem como especificados no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Conforme Marinoni, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva incide
sobre o legislador e o juiz, ou seja, sobre a estruturação legal do processo e a
conformação dessa estrutura pela jurisdição.
[...] assim, obriga o legislador a instituir procedimentos e técnicas processuais capazes de permitir a realização das tutelas prometidas pelo direito material e, inclusive, pelos direitos fundamentais materiais, mas que não foram alcançadas à distância da jurisdição268.
A justiça restaurativa, no anseio de buscar a efetividade dos direitos
fundamentais ligados à criança e aos adolescentes, pode ser considerada uma
alternativa para a concretização de uma tutela efetiva. O rigor processual e o
formalismo jurídico concedem lugar ao diálogo e à mediação, conduzidos por
especialistas de diferentes áreas, sem necessidade de formação em Direito,
268 MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 113.
121
reduzindo, assim, o volume de processos para julgamento pelos juízes e tribunais,
facilitando o acesso do sujeito à informação e à própria justiça.
Outro modo importante pelo qual a micro-justiça na forma de programas de justiça restaurativa confere poder aos cidadãos e às comunidades marginalizados está nos recursos de informações empregados para se fazer justiça. O conhecimento, produzido no sistema de justiça tradicional por investigações policiais, operadores legais e elites judiciárias, resulta de procedimentos que se baseiam em critérios de seleção e normas definidas de cima para baixo, e assim sem qualquer conexão real com as necessidades das pessoas. Por outro lado, os modelos de micro-justiça se baseiam em informações adquiridas principalmente de baixo para cima pelo conhecimento da comunidade e a sabedoria local. Quando as demandas judiciais são administradas por mecanismos alternativos legais, não são os advogados e os juízes, mas, sim, os cidadãos que enfrentam os conflitos diariamente e estão mais próximos a sua realidade que definem que conhecimento é pertinente para resolução do conflito269.
O sistema judiciário atual faz com que haja o afastamento das classes menos
privilegiadas, uma vez que pouco ou nada participam de suas decisões e práticas.
Em países como o Brasil, com níveis altos de desigualdade sócio-econômicas, o
acesso à justiça tende a ser menos universal e é influenciado pelo estado sócio-
econômico. Slakmon propõe que
O benefício mais óbvio e imediato da micro-justiça para o sistema de justiça formal é seu efeito aliviador. Ao redirecionar a administração de certas demandas da justiça para o nível local, libera o sistema de judiciário das grandes filas de casos por julgar, o que permite que o sistema de justiça formal opere mais eficazmente. Quando os projetos de micro-justiça estão ligados a agências estatais, como é o caso do programa de justiça restaurativa no Brasil, a micro-justiça também pode trabalhar para melhorar a imagem do sistema de justiça formal em longo prazo. O apoio estatal às iniciativas de micro-justiça podem ajudar a construir a confiança nas instituições legais, que é muito fraca no Brasil270.
O aumento do acesso à justiça por qualquer grupo da população, a
descentralização dos serviços judiciais, o controle externo, a promoção de outras
269 SLAKMON, Catherine; PHILIP Oxhorn. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democratica – A
construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs.). Justiça restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNDU, 2005, p. 204.
270 Ibidem p. 200.
122
formas de justiça para além da justiça retributiva271 e a agilidade na resolução de
processos judiciais são questões que dizem respeito a toda a sociedade e indicam a
necessidade de busca de novos paradigmas e padrões de desempenho da justiça
no Brasil como parte integrante do fortalecimento da democracia no País e na
construção de um modelo de desenvolvimento sustentável.
A promoção de mudanças no sistema judicial é um processo complexo.
Assim, a justiça restaurativa, devidamente amparada no Estado de Direito, poderá
garantir a legitimidade e a sustentabilidade de alguma dessas mudanças. A
construção de novos direitos e a implementação de melhorias que visem a beneficiar
os grupos mais vulneráveis fazem com que haja a execução de muitos dos direitos
fundamentais tendentes a democratizar a justiça no nosso país: “o movimento de
acesso à Justiça trata então de analisar e procurar os caminhos para superar as
dificuldades ou os obstáculos que fazem inacessíveis para tanta gente as liberdades
civis e políticas”272.
O acesso à justiça é fundamental para concretização do direito fundamental a
uma tutela efetiva, e a justiça restaurativa é uma forma alternativa para tanto. Caso
contrário, teremos o risco da camada da população menos favorecida não confiar
mais nas instituições e passar a resolver os seus próprios conflitos, gerando
injustiças. Há uma participação mais efetiva no processo de justiça restaurativa,
diferentemente da justiça tradicional. De acordo com Slakmon,
271 São os sistemas que alguns autores denominam de micro-justiça. Micro-justiça “significa a
administração da justiça fora de instituições legais tradicionais: os agentes de justiça alternativa não são os representantes formais da autoridade do Estado, e eles não agem por canais judiciários convencionais. Eles podem (e devem), contudo, estar ligado a instituições estatais, no mínimo por credenciais, como no caso de facilitadores de justiça restaurativa no Brasil que estão ligados formalmente ao sistema de justiça formal, mas não são representantes formais da autoridade estatal. [...] Os programas restaurativos são práticas de micro-justiça que complementam o sistema de justiça formal e são implementados freqüentemente por órgãos estatais. Estas práticas são manifestações concretas de justiça alternativa legal (...) mas são legitimados por uma forma de consenso da sociedade. 271 (SLAKMON, Catherine; PHILIP Oxhorn. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democratica – A construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs.). Justiça restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNDU, 2005, p. 198-199).
272 CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução dos conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça. Tradutor: José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo, v. 74, n. 19, p. 83, 1994.
123
A falta de acesso ao sistema de justiça formal causa injustiças reais e percebidas que fomentam a falta de confiança nas instituições e incentivam a tendência em direção aos meios alternativos de obter justiça. Se não existem mecanismos claramente identificados para tratar de demandas de justiça, os indivíduos tenderão a usar os meios alternativos mais acessíveis. Para os seguimentos menos afortunados de sociedade, isto significa freqüentemente a retribuição direta por cidadãos privados ou grupos de cidadãos que agem como agentes de justiça por canais informais, ou apoio popular para tais iniciativas273.
Quando falamos em grupos vulneráveis, incluímos também as pessoas em
situação de desenvolvimento: crianças e adolescentes.
E se assim se dá em relação aos direitos fundamentais de todas as pessoas humanas, o ponto ganha especial relevância no tocante aos direitos fundamentais de crianças e de adolescentes: o desenvolvimento integral da personalidade deles exige que a tutela a seus direitos fundamentais tenha efetividade no momento temporal em que os bens-direitos especiais lhes são imprescindíveis; não anos depois, quando eles já se tornaram adultos menos completos e dignos do que poderiam ter sido se não tivesse se verificado a lesão274.
No caso dos adolescentes, autores de ato infracionais, objeto principal de
nosso estudo, existe a preocupação do Estado em dar uma resposta ágil e eficaz
para a comunidade e para o próprio adolescente, a fim de que possa haver o
imediato restabelecimento da normalidade. Nessa seara, teríamos a aplicação dos
“remédios” existentes na legislação, ou seja, as medidas sócio-educativas, previstas
no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ocorre que, na maioria das vezes, em face da problemática já referida do
nosso sistema atual, inflacionado de justiça, mesmo os procedimentos envolvendo
adolescentes infratores perpetuam-se nas prateleiras já abalroadas de processos
existentes nos fóruns de todo o país.
273 SLAKMON, Catherine; PHILIP Oxhorn. Micro-justiça, desigualdade e cidadania democratica – A
construção da sociedade civil através da justiça restaurativa no Brasil. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes (Orgs.). Justiça restaurativa: coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento-PNDU, 2005, p. 202.
274 MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri: Manole, 2003, p. 403-404.
124
Em que pese o Estatuto da Criança e do Adolescente determinar prazos,
muitas vezes exíguos, para o processamento do ato infracional, torna-se inviável
respeitá-los, por mais dedicação que os profissionais da área tenham.
O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 introduziu, no direito brasileiro,
avanços importantíssimos em favor da infância e da adolescência:
[...] é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade e de opressão.
Nota-se que, em um dos termos do conceito, há a determinação do legislador
de que deverá haver absoluta prioridade no que envolve crianças e adolescentes, a
fim de assegurar, o quanto antes, os seus direitos. Tal princípio é justamente por
estarmos tratando de uma pessoa em desenvolvimento com amplas possibilidades
de recuperação.
Dessa forma, posicionou-se Saraiva:
Na justiça da infância e da juventude, o tempo, a resposta rápida às necessidades sócio-educativas, se constitui em fato fundamentalmente associado às possibilidades de recuperação de um adolescente em conflito com a lei. [...] A Convenção das Nações Unidas já afirma a necessidade da urgência em sede de justiça de Infância e Juventude, em particular na questão infracional, partindo do pressuposto que o processo educativo do jovem supõe presteza e imediatidade.275
Nesse caso, a justiça restaurativa estaria de acordo com tal determinação
legal, no momento em que adota, como sendo um de seus princípios, a celeridade
de seus instrumentos, ao contrário da morosidade dos ritos postos à disposição da
justiça estatal retributiva. Em consonância também está com a Emenda
Constitucional 45, que introduziu o já referido inciso LXXVIII, do art. 5º da nossa
275 SARAIVA, João Batista Costa. Direito penal juvenil: adolescente e ato infracional: garantias
processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 87.
125
Constituição Federal, o qual determina que o processo deva ter uma duração
razoável, assegurando todos os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação.
As partes envolvidas na mediação é que irão adaptar o tempo necessário,
conforme a gravidade do delito e a sua repercussão na comunidade, para chegarem
ao consenso, com grande vantagem em relação aos instrumentos formais do atual
modelo de justiça. Marinoni salienta:
É claro que, quando o direito processual é reduzido a uma esfera exclusivamente técnica, e assim é desligado da sua relação com a vida social, o tempo acaba não tendo importância. Acontece que não há como deixar de questionar a real capacidade de o processo atender às necessidades dos jurisdicionados e, para tanto, além de problemas como o do custo, importa o significado que o tempo aí assume em especial como o tempo repercute sobre a efetiva proteção do direito material [...] A morosidade da justiça prejudica a efetividade dos direitos fundamentais. E exatamente por isso não é raro que aqueles que o agridem, ou não têm interesse na sua realização, utilizem-se de manobras processuais para tentar alargar o tempo de demora do processo, ou mesmo sirvam-se da sua demora natural para evitar as conquistas sociais276.
Em consonância com celeridade de seus atos, teremos, inegavelmente, a
economia de custos, pelo simples motivo de não precisar acionar todo o aparato
oficial para solução do litígio.
Aliás, o autor também aponta o custo do processo como um dos problemas
encontrados para o acesso à justiça:
É evidente que o custo do processo constitui um grave empecilho para boa parte da população brasileira, pois todos conhecem as dificuldades financeiras que a assolam. Na verdade, as custas processuais, as despesas para a contratação de advogados e as para produção de provas dificilmente poderão ser retiradas das disponibilidades orçamentárias das partes, e assim, terão de obrigá-las a economias sacrificantes277.
276 MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 188. 277 Ibidem, p. 185.
126
Nos encontros restaurativos, a mediação é feita pelos particulares, e o Estado
poderá intervir somente quando não resolvido o problema ou também para incentivar
a execução de seus programas. O Estado, seja como incentivador, seja como órgão
que irá participar da homologação dos acordos restaurativos, terá a garantia de que
prestou uma tutela jurisdicional efetiva. Ainda Marinoni assevera que
Na verdade, a afirmação de que há acúmulo de serviço, ou de que a estrutura da administração da justiça não viabiliza a adequada prestação da tutela jurisdicional, constituem autênticas confissões de violação ao direito fundamental à duração razoável do processo. O acúmulo de serviço, assim como a falta de pessoal e instrumentos concretos, pode desculpar o juiz e eventualmente o próprio Judiciário, mas nunca eximir o Estado do dever de prestar a tutela jurisdicional de forma tempestiva278.
Não se deseja aqui abstrair do Estado o dever de prestar a tutela jurisdicional
por existir o acúmulo de serviços e, consequentemente, a ineficácia de uma tutela
verdadeiramente efetiva. O que se deseja é encontrar e viabilizar formas alternativas
ou complementos de lidar com a prestação jurisdicional, como refere Cintra:
Abram-se os olhos agora, todavia, para todas essas modalidades de soluções não-jurisdicionais dos conflitos tratados como meios alternativos de pacificação social. Vai ganhando corpo a consciência de que, se o que importa é pacificar, torna-se irrelevante que a pacificação venha por obra do Estado ou por outros meios, desde que eficiente. Por outro lado, cresce também a percepção de que o Estado tem falhado muito na sua missão pacificadora, que ele tenta realizar mediante o exercício da jurisdição e através das formas do processo civil, penal ou trabalhista279.
A formalidade do processo não se olvidará à garantia de que as partes
possam ter um processo imparcial, contraditório e com as demais garantias
constitucionais asseguradas para legalidade do processo. No entanto, o tempo é
inimigo da função do processo de pacificação entre os seus litigantes: “Pois tudo
toma tempo, e o tempo é inimigo da efetividade da função pacificadora. A
permanência de situações indefinidas constitui como, já foi dito, fato de angústia e
278 MARINONI, Luiz Guilherme. Estudos de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 223. 279 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GINOVER, ADA Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32.
127
infelicidade pessoal”280. A demora no julgamento de um processo causa o
enfraquecimento do próprio sistema de justiça.
Assim, a demora e o próprio custo, como óbices à efetividade da prestação
jurisdicional, faz com que o legislador tente encontrar outras formas de lidar com a
justiça.
Essas e outras dificuldades têm conduzido os processualistas modernos a excogitar novos meios para a solução de conflitos. Tratam-se dos meios alternativos de que se cuida no presente item, representados particularmente pela conciliação e pelo arbitramento. A primeira característica dessas vertentes alternativas é a ruptura com o formalismo processual. A desformalização é uma tendência, quando se trata de dar pronta solução aos litígios constituindo fato de celeridade. Depois, dada a preocupação social de levar a justiça a todos também, a gratuidade constitui característica marcante dessa tendência. Os meios informais gratuitos (ou pelo menos mais baratos) são obviamente mais acessíveis a todos e mais céleres, cumprindo melhor a função pacificadora281.
Da mesma forma, ponderou Bordallo:
O primeiro ponto a ser enfrentado será a democratização do poder Judiciário, com sua preparação para melhor atender as novas demandas que surgem, estando seus membros mais aptos a proferirem decisões que trazem, em si, uma forte carga política. Faz-se necessário, também, uma maior simplificação dos procedimentos, com uma maior informalidade dos ritos, no exemplo da Lei dos Juizados Especiais. Necessário, também, uma implementação dos substitutivos da jurisdição-conciliação, arbitragem, mediação – a fim de que os conflitos sejam solucionados de uma forma mais breve, fazendo com que as pessoas envolvidas nos litígios tenham uma melhor satisfação. No que concerne a esta terceira onda, o caminho está apenas começando a ser trilhado282.
No Brasil, a Lei dos Juizados Cíveis e Criminais (Lei 9.099, de 26 de
setembro de 1995) busca atender a maior efetividade nas pacificações, com os seus
instrumentos de conciliação. Da mesma forma, a mediação ocorre através de um
terceiro particular. Segundo Cintra,
280 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GINOVER, ADA Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32. 281 Ibidem, p. 32-33. 282 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Os princípios constitucionais do processo. In: MACIEL, Kátia
Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 544.
128
A mediação assemelha-se à conciliação: os interessados utilizam a intermediação de um terceiro, particular, para chegarem à pacificação de seu conflito. Distingue-se dela somente porque a conciliação busca, sobretudo, o acordo entre as partes, enquanto a mediação objetiva trabalhar o conflito, surgindo o acordo como mera conseqüência. Trata-se mais de uma diferença de método, mas o resultado acaba sendo o mesmo283.
A justiça restaurativa utiliza técnicas de mediação para solucionar os seus
conflitos, envolvendo adolescentes infratores, o que poderia acarretar resultados
mais efetivos de pacificação social. O terceiro particular seria um membro da própria
comunidade ou um profissional da área, jurídica ou não, resolvendo e criando
alternativas para uma resposta mais ágil e eficaz para o Estado.
Ademais, não se poderia dizer que estariam sendo violados direitos e
garantias constitucionais, assegurados a todos aqueles que cometem algum tipo de
infração penal, tal como a garantia do contraditório, da ampla defesa, de ser julgado
por um juiz imparcial, dentre outros. Prova disto é que a Constituição Brasileira de
1988 contemplou a transação penal em matéria penal, podendo o autor do fato
submeter-se, voluntariamente, à pena não privativa da liberdade, antes mesmo da
instauração do processo, por proposta do Ministério Público.
É um novo modelo de justiça consensual criminal para determinados crimes
considerados de menor potencial ofensivo, assim como seria a justiça restaurativa,
para determinados atos infracionais.
Enfim, para o direito a uma tutela verdadeira, teríamos que ter amplo acesso
à justiça, justiça nas decisões e que estas fossem de fato efetivas.
Não vem ao caso, nem é nosso propósito, proceder a um levantamento dos possíveis instrumentos de técnica processual que poderiam contribuir para a formação de um Poder Judiciário condizente com as atuais circunstâncias históricas, mas, para que essas coisas aconteçam, há uma exigência que se impõe, se quisermos conferir ao Poder Judiciário a missão que lhe cabe como fiador de um regime democrático que, ao contrário de nossa democracia representativa, realmente distribua poder: será a severa redução dos recursos, com o conseqüente abrandamento do sentido burocrático da administração da justiça, restituindo à jurisdição de primeiro
283 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, ADA Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel.
Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.
129
grau legitimidade política que lhe dê condições de exercer as elevadas atribuições que a ordem jurídica lhe confere. É claro que isto pressupõe, dentre outras muitas condições, que comecemos a praticar um autentico regime federativo. A busca de descentralização administrativa, de modo a fortalecer a vida política das comunidades locais, tem sido uma sugestão dos juristas e dos filósofos que têm tratado destas questões284.
Procuraremos demonstrar, no tópico seguinte, que as medidas sócio-
educativas, na forma em que estão sendo aplicadas, não estão sendo efetivas,
mormente no que diz respeito a própria reincidência.
3.4 JUSTIÇA RESTAURATIVA E O EFEITO COLATERAL POSITIVO: MENOR
REINCIDÊNCIA
O efeito colateral positivo da menor reincidência é também o que se pretende
com novas formas de justiça. Na realidade, não se trata de uma nova modalidade de
aplicação de justiça com vistas à redução da reincidência, mas, sim, uma
possibilidade de redução de instauração de processos judiciais com novas práticas
procedimentais.
Reincidência é a situação de quem pratica um fato criminoso após ter sido
condenado por crime anterior em sentença transitada em julgado. Se a sentença
transita em julgado após a prática do crime, não é preciso falar em reincidência. É
uma agravante genérica de caráter subjetivo ou pessoal. A exacerbação da pena
justifica-se para aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir, demonstrando
que a sanção anteriormente imposta foi insuficiente.
A reincidência é típica do nosso atual sistema distributivo de justiça. Elevados
índices de reincidência são notados, tanto no criminoso adulto como no adolescente
autor de ato infracional. Ela é característica do sistema punitivo de justiça.
284 BAPTISTA DA SILVA, Ovidio. Processo e Ideologia – O paradigma racionalista. Rio de Janeiro:
Forense, 2004, p. 319-320.
130
De uma forma geral, falamos em reincidência também para os adolescentes
infratores, embora não seja, em tese, esta a expressão mais correta, porquanto
cumprem medida sócio-educativa e não pena. Como estamos tratando de ato
infracional praticado por adolescente, não se pretende analisar a sua eficácia sob o
enfoque estrito da reincidência prevista no art. 69 do Código Penal, a qual é
verificada quando o agente comete novo crime depois de transitar em julgado a
sentença que o tenha condenado por crime anterior. Aqui, será analisado se, após
aplicada a medida sócio-educativa, o adolescente voltou a praticar ato infracional, ou
seja, se houve a reiteração do cometimento do ato infracional285.
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleça diversas medidas
sócio-educativas, e assim as denomina, na realidade, estamos tratando também de
alternativas punitivas, inclusive com medidas de privação de liberdade, tal como é a
internação do adolescente em atos infracionais mais graves286.
A reincidência do adolescente varia conforme a existência ou não de
condenação criminal, isto é, a reincidência é maior com adolescentes condenados e
menor, quando os adolescentes não forem condenados. Ocorre que tão-somente
programas de descriminalização e de despenalização penal não resolvem o
problema da reincidência e da criminalidade juvenil. No nosso entender, a
socialização do adolescente e a sua inclusão na comunidade é que poderão
acarretar efeitos positivos em relação a sua reincidência no ato infracional.
As práticas restaurativas, espalhadas em todo o mundo, mostram que os
índices de reincidência são menores do que aqueles referentes ao atual modelo
formal de justiça retributivo. Como exemplo, podemos citar a Austrália, onde uma
avaliação escrupulosa, realizada em 1997, mostrou que, em comparação com o
285 “De outro lado, reiteração é expressão muito vaga, como bem demonstra a polêmica doutrinária e
jurisprudencial sobre se ela significa ou não reincidência, na conceituação do Código Penal, que é precisa em relação à exigência de condenação definitiva anterior ao cometimento do novo fato”. (MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri: Manole, 2003, p. 357).
286 As medidas-sócio educativas decorrem da prática, pelo adolescente, de um ato infracional. Ato infracional é a conduta descrita na lei penal como crime ou contravenção penal, conforme o art. 103 do ECA. As medidas-sócio educativas serão aplicadas sempre que verificada a prática de ato infracional, consoante o art. 112, caput, do mesmo dispositivo legal.
131
procedimento legal convencional, a justiça restaurativa apresentou ampla vantagem,
Conforme Neto,
Em 1997, na Austrália, uma avaliação escrupulosa mostrou, em comparação com o procedimento legal convencional, nítida vantagem, virtualmente duas vezes mais resultados positivos no que diz respeito a prevenir a reincidência, maior grau de satisfação das vítimas (que, em 82% dos casos receberam desculpas ou restituição material, comparado com apenas 9% nos tribunais), melhor percepção de justiça nos métodos empregados e nos resultados obtidos, bem como em termos de custos. O impacto gerou interesse generalizado e hoje projetos similares estão sendo desenvolvidos pelas polícias do Canadá e da Inglaterra287.
A participação do próprio causador do dano no acordo restaurativo faz com
que haja maior conscientização sobre os seus atos. A aplicação da justiça deve ser
encarada como a capacidade de responsabilizar o adolescente por seus próprios
atos, através de suas próprias atitudes: ele mesmo conduzindo o seu processo
restaurador.
A principal aspiração desse procedimento é a redução das taxas de
reincidência entre os principiantes na seara criminosa juvenil. O fato de o
adolescente ter aceitado a proposta e participado dos encontros restaurativos já é
um bom indicador de que ele irá assumir os seus atos e as suas responsabilidades,
evitando-se, assim, a reiteração de novo ato infracional.
No entanto, ocorre que a justiça restaurativa está presente no contexto
brasileiro de forma ainda embrionária, o que nos impede de realizar uma
comparação estatística exata a respeito da reincidência.
Poderíamos também afirmar e entender que no sistema restaurativo não se
deve falar em reincidência, já que o enfoque não é punitivo e, sim, educador. A
execução de medidas restaurativas rompe com a lógica da punição, visto que a
reabilitação e a reparação surgem em seu lugar. Este é o objetivo a ser alcançado: a
substituição da idéia do castigo pela responsabilidade consciente. É necessária uma
287 SCURO NETO, Pedro. Modelo de justiça para o século XXI. Disponível em:
<http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/PEDRO+SCURO+JUSTI%C7A+XXI.PDF>. Acesso em: 07 mar. 2008. 11h.
132
base consensual, ao invés de coercitiva. Nesse sentido, não falaríamos em
reincidência, pois não se trata disto. Porém, se analisado pelo ângulo do
cometimento de atos infracionais de forma reiterada pelo adolescente, é muito
provável que os números fossem menores no momento em que todos se
envolvessem com as conseqüências e a reparação. De acordo com Morris,
Poderíamos razoavelmente argumentar, por um lado, que o objetivo da justiça restaurativa não seria a redução da reincidência, mas, sim, a responsabilização efetiva dos infratores e a reparação, por parte deles, das vítimas. Por outro lado, também é razoável argumentar que, se um determinado processo utiliza os mecanismos restaurativos e alcança seus objetivos, então é possível esperar uma redução da reincidência. Dessa forma, se o infrator aceita a responsabilidade por seu crime, sente-se envolvido na decisão de como lidar com ela, sente-se tratado com justiça e respeito, desculpa-se e faz reparações à vítima no contexto de um programa que visa a tratar as causas subjacentes a seu crime, então nós podemos, no mínimo, prever que ele estará menos inclinado a reincidir no futuro288.
A participação do adolescente infrator, por meio da palavra, do diálogo,
acerca das medidas que serão realizadas para reparação do dano, faz com que ele
encare com mais seriedade e se conscientize a respeito da sua conduta e também
das conseqüências provocadas pelo seu ato. O envolvimento no processo decisório
e a concordância com o resultado obtido podem ser fundamentais para efeitos de
diminuição da reincidência.
Na realidade, o sistema punitivo criminal dos adultos e as medidas sócio-
educativas, estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, são
praticamente da mesma natureza de uma justiça retributiva. A pena para o crime e
as medidas para o ato infracional são estabelecidas sem a participação do autor e
tampouco da vítima. Estes apenas responderão a perguntas, porém sem a
possibilidade de dialogar a respeito do fato que estão envolvidos. Assim, ambas têm
natureza penal e o mesmo proceder.
288 MORRIS, Allison. Criticando os críticos – uma breve resposta aos críticos da justiça restaurativa.
In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 450.
133
No momento em que o adolescente apenas cumpre o tempo determinado por
uma medida sócio-educativa, ele pode estar passando por um tempo penoso, muitas
vezes de perda de liberdade, porém sem a garantia de despertar a sua
responsabilização. A medida geralmente é imposta, tenha ele assumido ou não a
sua culpa.
Quando passarmos a utilizar a abordagem da justiça restaurativa, com as
suas ferramentas, estaremos permitindo que o jovem vivencie a responsabilização, a
participação e o empoderamento, a inclusão comunitária e o respeito mútuo. São
princípios que podem possibilitar mudanças nas relações interpessoais e
consequentemente refletir na repetição dos atos infracionais que, no sistema
punitivo, é chamado de reincidência.
Atualmente, é necessário que se encontre, com urgência, uma possibilidade
de redução das taxas de práticas e de reincidências em delitos e atos infracionais.
Esta pressupõe a inclusão de novas práticas procedimentais na estrutura
jurisdicional, no sentido de dar maior sociabilidade entre os cidadãos.
Outro aspecto positivo é o de que o retorno ao convívio comunitário se dá de
maneira mais inclusiva e comprometida, pois o adolescente já assumiu seus atos,
ofereceu uma reparação através do acordo, deixando a hora do retorno à vida social
mais segura e menos rotuladora. Isto significa o empoderamento, por parte dos
indivíduos, de sua capacidade de assumirem responsabilidades sobre seus atos e
fazerem as suas escolhas.
O processo de escuta e de compreensão entre adolescente, vítima, família e
comunidade é reintegrador, pois são demonstrados a todos os participantes não só
os danos, mas também os afetos, os apoios, os compromissos e as satisfações de
terem vivido aquele momento tão intenso e doloroso, mas vital para suas
conscientizações. Como ferramenta para a execução da proposta pedagógica, é
uma nova abordagem mais profunda que tem como pressuposto o querer (adesão),
um compromisso, o que nos faz pensar no efeito colateral positivo da reincidência. É
134
um instrumento valioso na proteção integral do adolescente, pretendendo evitar os
danos de um procedimento judicial, bem como o estigma da sentença.
Apoiando, experimentando e desenvolvendo projetos novos e modernos de
justiça, estaremos contribuindo muito pela efetivação dos nossos direitos
fundamentais. É nesse sentido que a justiça restaurativa será tratada, ou seja, como
uma nova forma de contribuir para remodelação da justiça, que se faz urgente e
necessária. É a mudança de um paradigma, uma vez que conta com o aumento de
profissionais das mais diversas áreas engajados na busca do consenso.
O problema da reincidência no atual processo judicial está muito marcado
pelo fato de que somente é considerada a pena ou, para os adolescentes, as
medidas sócio-educativas. Não se mostra, com tais punições, ao infrator as
conseqüências de seus atos e o mal causado as vítimas. É um sentimento de
alienação do jovem em relação à sociedade, fazendo com que o próprio infrator
sinta-se vítima. É o efeito da punição imposta ao contrário de uma decisão
negociada pelo consenso. Enfatiza Giacomolli que,
A aplicação de uma medida criminal negociada ou aceita pelo autor do fato, é mais eficaz que a imposta pela força hierarquizada, fria e silenciosa de uma condenação. O autor, quando tem a possibilidade de discutir dialeticamente a sanção criminal ou outra medida a ela equiparável, se sente responsável pelo cumprimento, o que fará com mais segurança [...] Ademais, como regra, o crime de menor potencial ofensivo, aliado aos requisitos de admissibilidade do consenso ou dos juízos regrados de um certo poder de disposição, informa a ocasionalidade e o difícil retorno à criminalidade. Essas soluções, advindas de um poder de disposição, propiciam a readaptação da pessoa que não é propriamente um delinqüente, e trabalha na prevenção dos fatos criminais, pois há uma participação na solução do processo penal289.
Os programas de justiça restaurativa tornam-se uma alternativa para redução
da reincidência para população jovem, podendo acarretar resultados positivos na
vida dos adolescentes, submetidos aos seus princípios e as suas experiências, bem
como para a sociedade.
289 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 96.
135
Os princípios restaurativos, quando aplicados ainda quando o problema
infracional não se tornou insustentável, tendem à redução das taxas de reincidência,
pois gera o consenso e a tomada de consciência por parte de seus atores. Porém, é
necessário afirmar que é preciso mais tempo para avaliar as práticas restaurativas e
medir os seus efeitos.
CONCLUSÃO
No decorrer deste estudo, procuramos traçar um caminho teórico necessário
para mostrar o surgimento e a importância de novos direitos, com ênfase no novo
paradigma da justiça restaurativa. O objetivo foi provocar uma reflexão acerca de
como devemos enfrentar a solução dos conflitos, mormente no que diz respeito aos
jovens autores de ato infracionais.
No primeiro capítulo, apresentamos o surgimento dos chamados novos
direitos, enfatizando a crise do sistema contemporâneo de justiça. No segundo,
abordamos a justiça restaurativa como um novo paradigma a complementar a justiça
tradicional retributiva e como uma nova forma de tratar o crime e a delinqüência
juvenil.
O contexto atual demonstra uma justiça centrada no poder Estatal e, na sua
exclusividade punitiva, pouco se enfatiza o pensamento da vítima, do próprio infrator
e também de sua comunidade.
A justiça restaurativa é apresentada não como uma solução única, mas como
uma alternativa e um complemento à atual forma de jurisdição. É uma reunião em
que se dará ênfase ao diálogo entre todos os envolvidos da situação lesiva, tais
como a vítima, o infrator e a comunidade, a ser mediado por um terceiro interessado,
todos engajados na resolução do problema.
A crescente criminalidade, bem como a sua própria banalização frente à
população, faz com que pensemos em novas formas de lidar com o direito. Isto gera
um clima de insegurança que é característica dos novos tempos, face aos altos
índices de violência. A resposta, tão-somente monolítica do Estado para a
criminalidade, não está sendo eficaz. Outras propostas tornam-se necessárias na
atual fase do nosso sistema de justiça e diante da complexidade do fenômeno da
criminalidade.
137
A crise do sistema atual de justiça também é motivo para nossa preocupação.
O distanciamento das esferas de decisões das instituições formais do Estado,
somado à formalidade excessiva e à letargia de seus procedimentos, fazem com
que não haja interesse e, principalmente, acesso para certas camadas
desprivilegiadas da população que tem pouca informação a respeito do sistema
judiciário.
A crise do direito é mais acentuada no momento em que vários dos direitos
fundamentais, hoje reconhecidos pela nossa Constituição, não são efetivados pelos
cidadãos. Assim, foram trazidos alguns dos direitos e princípios constitucionais em
que a justiça restaurativa poderia contribuir para esta efetivação.
Tratamos do princípio da dignidade da pessoa humana e a sua relação com
as práticas restaurativas, bem como do princípio da solidariedade que é incentivado
pelas formas comunitárias de resolução dos litígios, tais como se mostram os
métodos e os programas restaurativos.
O direito a uma tutela efetiva em contraposição ao tecnicismo processual
também poderia ser de grande contribuição para as bases restaurativas, assim
como para a própria diminuição da reincidência que, embora não sendo o principal
objetivo, é uma inegável conseqüência pela participação ativa do infrator nas
decisões tomadas.
A ênfase, neste trabalho, foi para aplicação da justiça restaurativa aos
adolescentes, autores de ato infracionais, tendo em vista a sua peculiar situação de
pessoa em desenvolvimento, procurando-se dar eficácia à doutrina da proteção
integral, prevista tanto na Constituição Federal de 1988, como também no Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Ademais, cumpre afirmar que esta é a nossa posição pessoal: a de que as
idéias e os princípios da justiça restaurativa seriam, de fato, mais efetivos no trato
das questões envolvendo infratores adolescentes.
138
É necessário frisar que a introdução de uma nova forma de pensar a justiça
deve ser acompanhada de muitos debates, de avaliação permanente dos programas
realizados e, principalmente, de fiscalização por parte do Estado, para que não se
torne uma forma paliativa de tratar os graves problemas da nossa criminalidade.
Agora, a justiça restaurativa, com as suas formas e os seus princípios bem
executados, poderá se transformar em uma nova forma de fomentar a participação
comunitária e, principalmente, em uma alternativa e um complemento para
efetivação dos direitos e dos princípios constitucionais.
É um sistema flexível, ao contrário do sistema rígido e formal do atual sistema
de justiça, que aproximará o judiciário de sua comunidade. Esse sistema variável e
adaptável, no nosso entendimento, seria adequado a uma população com culturas
tão diversificadas como ocorre em nosso país.
Assim, como já apresentado no transcorrer deste trabalho, a nossa legislação
permite esse tipo de sistema de mediação. Para tanto, foi indicada a Lei dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas Criminais, as normas do Estatuto da
Criança e do Adolescente e, fundamentalmente, as normas e os princípios da nossa
Constituição Federal.
Em que pese estas previsões legais para receptividade das práticas
restaurativas, adotamos, também, como posição pessoal, que seria mais
interessante uma legislação específica a respeito, adequando e uniformizando a sua
utilização, a fim de se evitarem eventuais excessos e diferenças de tratamento, bem
como a copia ingênua de modelos diversos de outros países com tradições diversas.
Enfatizamos a utilização da justiça restaurativa tão-somente em determinadas
infrações, podendo a sua aplicação se dar inicialmente naquelas de pequeno e de
médio potencial ofensivo, o que já representaria a maioria dos atos infracionais
ocorridos em nossa população.
139
A questão que deverá ser sempre ressaltada é que não se trata de uma
justiça substitutiva à justiça tradicional retributiva, mas, sim, um complemento em
que se promoverá a democracia participativa na área da justiça criminal, visando ao
envolvimento das pessoas interessadas e à inclusão do infrator em sua comunidade.
No caso de fracassar a tentativa, teremos novamente a opção pela justiça estatal
retributiva. Logo, é uma alternativa que irá somar-se ao nosso atual sistema de
justiça.
Em que pese ser um paradigma novo, já existe um grande consenso
internacional a respeito de sua utilização, inclusive oficial, da ONU e da União
Européia, validando os seus princípios.
Há quem diga que isso seria retroagir no tempo, um retrocesso histórico, tal
como a vingança privada, tendo em vista que nos desviaríamos do devido processo
legal e das garantias constitucionais. É certo que muitos obstáculos a Justiça
restaurativa ainda terá que enfrentar: de ordem econômica, social, cultural e jurídica,
por tratar-se de algo ainda emergente. Porém, não se pode olvidar que, respeitados
os posicionamentos contrários, a justiça restaurativa, caso utilizada com respeito aos
seus princípios, seria um avanço com resgate de valores culturais perdidos pela
nossa civilização.
Ademais, tratada como um complemento à justiça comum tradicional, não se
estaria desviando do devido processo legal e ofendendo direitos fundamentais. Bem
pelo contrário, ela poderia ser uma forma de efetivar certos direitos e princípios,
estabelecidos na nossa constituição, com grande incentivo a uma justiça comunitária
e relacional.
A dignidade recuperada do infrator e da vítima, pela sua inclusão na
comunidade e participação ativa na resolução do problema; o estímulo à
solidariedade com os trabalhos de rede, com a participação de profissionais de
outras áreas não jurídicas; o direito fundamental de acesso à justiça, que se
concretizaria com a diminuição do tecnicismo processual; a aproximação dos
140
cidadãos e a diminuição dos índices de reincidência seriam benefícios inegáveis de
suas práticas, se respeitados todos os seus princípios.
Os programas restaurativos, conforme defendido neste trabalho, embora
sejam práticas comunitárias e multidisciplinares, estariam diretamente atrelados ao
poder estatal, com o parecer do Ministério Público e a homologação do Judiciário
dos acordos realizados, não havendo impedimento de que as partes fossem
acompanhadas por advogados, apesar de a participação ser pessoal e,
principalmente, voluntária. A própria execução dos acordos restaurativos, em nosso
pensar, deve ser monitorada pelo Estado, por intermédio do poder judiciário.
A justiça deve sempre pautar-se por um processo de dinamismo, de reforma
permanente, sob pena de estar na contramão dos avanços das outras ciências e do
próprio direito, sendo que, no sistema do ordenamento jurídico penal, não é
diferente. Para tanto, faz-se necessário abrir os seus canais de comunicação, de
diálogo e de escuta para com a sociedade.
As práticas restaurativas visam justamente à participação cidadã nos
problemas sociais, à ressocialização do infrator e à redução dos efeitos da
vitimização. A educação e o empoderamento do infrator, bem como a prevenção,
são conseqüências de sua utilização.
Acreditamos que a probabilidade de reiteração da prática infracional de um
adolescente que aceitou a responsabilidade por seu ato e tenha participado e se
envolvido na decisão do processo das medidas de reparação à vítima é menor do
que no sistema de justiça convencional, porquanto aumentou significativamente a
sua percepção de justiça e o seu comprometimento humano.
Os sistemas de micro-justiça também poderão se tornar favoráveis no
momento em que o sistema jurídico formal vier a falhar. Nesse caso, evitar-se-iam
que outros sistemas, só que ilegais, sejam utilizados por sociedades marginalizadas,
como no caso da retribuição direta por vingança privada. É outro aspecto a ser
considerado para favorecer a adoção pela nossa legislação de práticas
141
restaurativas, uma vez que são sistemas de micro-justiças legais, com
procedimentos mais informais, típicos de uma sociedade pluralista.
Os programas de justiça restaurativa, se bem organizados e monitorados pelo
Estado, tornam-se uma boa alternativa dentro dos limites legais, legitimados por
formas de consenso da sociedade. O consenso, quando possível, sempre foi e
sempre será melhor do que a coerção.
Em última análise, a justiça restaurativa jamais será solução de todos os
problemas. Não se trata de uma panacéia, porém um potencial e uma nova forma de
fortalecer os direitos da democracia e da cidadania. É a busca da conciliação entre o
saber científico e o senso comum.
Bons programas que objetivem amenizar os problemas subjacentes dos
crimes e que concedam efetivo suporte às vítimas devem sempre ser incentivados
pelo Estado.
Apoiando, experimentando e desenvolvendo projetos novos de justiça,
estaremos dando o primeiro passo para uma transformação epistemológica, de
modo a atender aos valores de efetividade dos direitos fundamentais e de
democracia. Um proceder diferenciado e uma nova lógica processual, em que se
valoriza a inclusão e a relação, podem se tornar um incremento aos tradicionais
dogmas das fórmulas rígidas do modelo de justiça vigente. Porém, somente o tempo
será testemunho para sua efetiva avaliação.
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CDD 342.1157
Ficha elaborada pela bibliotecária Cíntia Borges Greff CRB 10/1437