v10 n2 jul_dez_1997
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O 1998 by Arquivo Nacional Rua Azeredo Coutinho, 77 CEP 20230-170 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Presidente da R e p b l i c a Fernando Henrique Cardoso
Ministro da J u s t i a J o s Renan Vasconcelos Calheiros
Dlretor-Geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes da Silva
Edi tora
Maria do Carmo T. Rainho
Conse lho Edi tor ia l Ingrid Beck. J o s Ivan Calou Filho, Maria do Carmo T. Rainho, Maria Isabel Falco, Maria Izabel de Oliveira, Nilda Sampaio Barbosa, Slvia Ninita de Moura Estevo , Verone G o n a l v e s Cauville Conse lho Consult ivo Ana Maria Camargo, Angela Maria de Castro Gomes, Boris Kossoy, Cl ia Maria Leite Costa, Elizabeth Carvalho, Francisco Falcon, Francisco Iglesias, Helena Ferrez, Helena Corra Machado, He lo sa Liberalli Belotto, limar Rohloff de Mattos, Jaime Spinelli, Joaquim Marcai Ferreira de Andrade, J o s Carlos Avelar, J o s S e b a s t i o Witter, La de Aquino, Lena Vnia Pinheiro, Margarida de Souza Neves, Maria Inez Turazzi, Marilena Leite Paes, Regina Maria M. P. Wanderley, Solange Zniga
Projeto G r f i c o Andr Villas Boas
E d i t o r a o E l e t r n i c a , Capa e I l u s t r a o Qisele Teixeira de Souza
R e v i s o Alba Gisele Qouget, J o s Cludio da Silveira Mattar, J o s Ivan Calou Filho e Tnia Maria Cuba Bittencourt
Resumos Carlos Peixoto de Castro, Flvia Roncarati Gomes e J o s Cludio da Silveira Mattar ( v e r s o em ing l s ) e Flvia Roncarati Gomes e La Porto de Abreu Novaes ( v e r s o em francs )
R e p r o d u o F o t o g r f i c a Agnaldo Neves Santos, Ccero Bispo, Flavio Ferreira Lopes e Marcello Lago
Secretaria Jeane D'Arc Cordeiro
Acervo: revista do Arquivo nacional. v. 10, n. 2 (jul./dez. 1997). Rio de Janeiro: Arquivo nacional. 1998. v.; 26 cm
Semestral Cada nmero possui um tema distinto ISSn 0102-700-X
1. Imigrao - Brasil - I. Arquivo nacional
CDD 323-1
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Ministrio da Just ia
Arquivo Nacional
ACERVO R E V I S T A D O A R Q U I V O N A C I O N A L
RIO DE JANEIRO, V.10, NMERO 02, JULHO/DEZEMBRO 1997
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S U M R I O
01
A p r e s e n t a o
03 Bastidores U m outro olhar sobre a imigrao no Rio de Janeiro
Len Medeiros de Menezes
17 Camisas-Verdes O integralismo no Sul do Brasil
Carla Brandalise
37
O Universo do Trabalho do Imigrante em Itu - S P ( 1 8 7 6 - 1 9 3 0 )
Maria Antonieta de Toledo Ribeiro Bastos
53
"Proverbial Hospitalidade"? A Revista Jc Imigrao e Colonizao c o discurso oficial sobre o imigrante (1945-
1955)
Elena Pjaro Peres
71 "Inimigos Mascarados com o T t u l o de C i d a d o s " A v ig i lncia c o controle sobre os portugueses no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado
Qladys Sabina Ribeiro
97
I m i g r a o Portuguesa e Movimento O p e r r i o no B r a s i l
Fontes c arquivos de Lisboa
Fernando Teixeira da Silva
109
Portugueses no B r a s i l
Imaginr io social c t t i cas cotidianas (1880-1895)
Maria Manuela R. de Sousa Silva
-
119
A o n a n o s e M a d eirenses no S u l do B r a s i l
Walter F. Piazza
129
A C r i a o do Estranhamento e a C o n s t r u o do E s p a o P b l i c o
Os japoneses no Estado Novo
Adriano Luiz Duarte
147
Li tera tura de I m i g r a o
M e m r i a s dc uma dispora
Maria Luiza Tucci Carneiro
165
I m i g r a o A l e m e C o n s t r u o do Estado N a c i o n a l Brasi le iro
Rio Grande do Sul, sculo
Helga Iracema Landgraf Piccolo
179
Breves R e f l e x e s Sohre o Prohlema da I m i g r a o U r b a n a
O caso dos espanhis no Rio dc Janeiro (1880-1914)
Lcia Maria Paschoal Quimares
199
Mult ipl ic idade t nica no l \ io de Janeiro
U m estudo sobre o 'Saara'
Paula Ribeiro
213
Perfi l Institucional
M e m o r i a l do Imigrante
Marco Antnio Xavier 219 Perfi l Institucional M u seu e A r q u i v o H i s t r i c o M u n i c i p a l de Caxias do S u l Juventino Dal B
223
Fontes para Estudos da E n t r a d a de Estrangeiros e de Imigrantes no B r a s i l
229
Bibliografia
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A P R E S E N T A O
Como afirma Boris Fausto, a imigrao
tardou a constituir um campo especfico
da pesquisa acadmica . Durante muito
tempo podemos dizer, at meados da
dcada de 1960 era objeto apenas de
grandes i n t e r p r e t a e s s o c i o l g i c a s ,
destacando-se as obras de Roger Bastide
e Florestan Fernandes.
A partir dos trabalhos dos brazilianistas
que, ainda segundo Fausto, se relacionam
com o desenvolvimento de estudos sobre
etnias nos Estados Unidos, o tema da
imigrao passa a constituir-se em objeto
de anlise no subordinado.
Dentre os estudos desenvolvidos por
pesquisadores b ras i l e i ros , chama a
a teno o de Jos de Souza Martins que,
a partir da d c a d a de 1970, toma a
i m i g r a o como objeto cent ra l ,
analisando no apenas as re laes de
produo ps-escravistas, como tambm
os o b s t c u l o s e imposs ib i l idades de
ascenso social dos imigrantes pobres.
Atua lmente , a i m i g r a o tema
recorrente nos trabalhos de historiadores,
ant roplogos e socilogos, que ampliam
o espao geogrfico enfocado o qual
centrou-se, por muito tempo, em So
Paulo, Rio de Janeiro e Rio Qrande do Sul
, e incorporam novas abordagens como
as n o e s de etnicidade e pluralismo
cultural.
Tentando contribuir para divulgar o que
vem sendo produzido nas universidades
e centros de pesquisa sobre imigrao,
esse nmero da Acervo traz 13 artigos,
alm de dedicar a seo Perfil Institucional
a entidades que se destacam pela riqueza
de seus acervos como o Memorial do
Imigrante e o Museu e Arquivo Histrico
Municipal de Caxias do Sul. Para finalizar,
apresenta um roteiro dos n c l e o s
documentais custodiados pelo Arquivo
nacional, de interesse para o tema.
Abre esse nmero, o texto da professora
Len Medeiros de Menezes que utiliza os
processos de expulso de imigrantes para
estudar as formas de i m p o s i o da
disciplina no espao urbano do Rio de
Janeiro, durante a Primeira Repblica.
A seguir, Car la Brandal ise ana l i sa a
insero do movimento integralista no Rio
Qrande do Sul na dcada de 1930 e a sua
atuao nas reas ocupadas por colonos
a lemes e italianos.
O artigo da gegrafa Maria Antonieta de
Toledo Ribeiro Bastos traa um perfil dos
trabalhadores imigrantes em Itu, entre
1876 e 1930, em particular os italianos
que dedicaram-se, em grande parte, ao
trabalho agrcola.
Elena P ja ro Peres ana l i sa a
r e g u l a m e n t a o do movimento
-
imigratrio no Brasil, a partir da Revista
de Imigrao e Colonizao que circulou
entre 1940 e 1955 e visava esboar as
caracterst icas do imigrante desejvel. y
Trs ar t igos enfocam os imigrantes
portugueses no Brasil: o de Qladys Sabina
Ribeiro analisa a vigilncia e o controle
que sofreram durante o Primeiro Reinado;
o texto de Fernando Teixeira da Silva
aponta as possibilidades de pesquisa
sobre a relao entre movimento operrio
e i m i g r a o por tuguesa , nas t r s
primeiras d c a d a s do s c u l o XX, em
Santos; e, finalmente, o artigo de Maria
Manuela R. de Sousa e Silva aborda as
t e n s e s existentes na r e l a o entre
brasileiros e portugueses a partir de
enfrentamentos cotidianos ocorridos no
Rio de Janeiro, no final do sculo XIX.
Walter Piazza trabalha a histria da vinda
de imigrantes aor ianos e madeirenses
para o sul do Brasil no sculo XVIII, suas
bases sociais e polticas, e os resultados
desse movimento migratrio.
Os imigrantes japoneses durante o Estado
Movo so o objeto do texto de Adriano Luiz
Duarte. Esses imigrantes, com o fim da
Segunda Guerra, dividiram-se em dois
grupos: aqueles que no acreditavam na
derrota japonesa e os que, conformados
com a situao, desejavam esquec-la .
interessante destacar os dados que o
autor apresenta sobre a Shind-Remmei, o r g a n i z a o que t inha por objetivo
e l iminar f is icamente os chamados
'derrotistas'.
A literatura de imigrao, especialmente
aquela produzida por imigrantes judeus
que se refugiaram do nazismo no Brasil,
nas dcadas de 1930 e 1940, o tema da
professora Maria Luiza Tucci Carneiro que
analisa o contedo dessas obras e o perfil
dos seus autores.
O processo de imigrao alem para o Rio
Qrande do Sul durante o sculo XIX o
tema de tlelga Iracema Landgraf Piccolo,
onde se destaca o pequeno proprietrio
imigrante como fiel da balana, na relao
entre o governo imperial e os grandes
senhores de terra, muitos deles escravistas.
Os espanhis no foram esquecidos pela
Acervo e es to presentes no artigo de
Lcia Maria Paschoal G u i m a r e s que,
tendo como espao o Rio de Janeiro na
virada do sculo XIX, pretende demonstrar
que a emigrao urbana se constituiu num
fator concorrente da m o - d e - o b r a
nacional, especialmente aquela que fora
liberada pela abolio.
Fecha este n m e r o o texto de Paula
Ribei ro que parte dos relatos dos
imigrantes s r ios e libaneses c r i s t os ,
judeus sefaradim e seus descendentes, para traar um perfil desses homens que,
desde fins do sculo XIX, tm-se dedicado
ao comrcio de armarinhos e de gneros
alimentcios.
Maria do Carmo T. Rainho Editora
-
Len Medeiros de Menezes Professora Adjunta
do Departamento de Histria da UERJ. Doutora em Histria Social.
. . B a s t i d o r e s
U m o u t r o o U i a r s o t r e a i m i g r a o n o
R i o cie J a n e i r o
Aps residir 38 anos na cidade do Rio de Janei-ro, Manuel Real, portu-gus , analfabeto, solteiro, padeiro
por profisso, mas sem residncia fixa, foi
expulso do Brasil como mendigo incorri-
gvel, regressando terra natal, com 64
anos, apenas com a roupa do corpo. Mui-
to mais brasileiro que portugus, foi obri-
gado a voltar Europa, de onde sara com
a idade de 26 anos, para enterrar, em
outro solo que no o brasileiro, a faln-
cia de seus sonhos, expectativas e espe-
ranas . 1
Histria de vida como a de Manuel Real
no foi um caso isolado na capital brasi-
leira, ao longo de seu to aclamado pro-
cesso civilizatrio. Alm do discurso so-
bre a defesa da ordem e da segu-
rana nacional, a prtica da expul-
V so representou uma das faces da
excludncia implantada pelo regi-
me republicano: aquela que atingia os es-
trangeiros pobres, transformados em al-
vos das polticas de higiene social en to
desenvolvidas, numa cidade que conhe-
cia um tempo de mudanas visveis no ser,
no fazer, no sentir e no estar. Tempo mar-
cado por luzes e sombras, fugas e bus-
cas, por distanciamentos profundos en-
tre o discurso legal, que contemplava pos-
tulados liberais, e as prticas polticas au-
toritrias do cotidiano, enraizadas numa
mental idade escravis ta e l a t i f u n d i -
r ia .
lio processo de imigrao em massa que
Acervo, Rio de Janeiro , v. 10, n 2, pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 3
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marcou a virada do sculo, a proclama-
o e a consolidao da repblica brasi-
leira corresponderam terceira^ onda dos
movimentos migra tr ios que do Velho
Mundo atingiram a Amrica. Esta onda,
diferente das anteriores, caracterizou-se
pelo xodo em massa das reas agrcolas
da Europa mediterrnea, que ento co-
nhecia a acelerada deses t ru tu rao da
comunidade camponesa tradicional, fia
cidade do Rio de Janeiro, ela represen-
tou o afluxo predominante de indivduos
pobres provenientes dos campos do nor-
te e noroeste de Portugal, com destaque
para o Minho, Douro e Trs-os-Montes, se-
guindo-se as reas rurais da Espanha,
principalmente da Qaliza, e as provncias
mer id iona i s de Cozenza , Sa lerno e
Potenza, na Itlia.
De acordo com os registros existentes, o
imigrante pobre que chegou ao Rio de Ja-
neiro, pobre tendeu a permanecer, afas-
tado, em muito, da representao ideali-
zada de mo-de-obra superior, promoto-
ra do progresso, que compunha os dis-
cursos imigrantistas na poca imperial.
Com pouco conhecimento dos cdigos ur-
banos, precria qualificao profissional
e ausncia de laos familiares na nova ter-
ra, muitos desses estrangeiros compuse-
ram um proletariado miservel, fornecen-
do grandes contingentes ao lumpesinato
existente na cidade.
Sobras do arranjo social2 nos pases de
origem, grande parte deles permaneceu
margem dos benefcios trazidos pelo
progresso, numa cidade que conhecia a
carestia, o dficit habitacional e um mer-
cado de trabalho magmt ico , marcado
pela superexplorao, baixos salrios, lon-
gas jornadas e desemprego recorrente. Essa
conjugao perversa tornou-os objetos pri-
vilegiados da ao disciplinar conduzida
pelas elites; alvos destacados da vigilncia
Manuel Real em 1928. Fotografias Integrantes do seu processo de expulso. Arquivo Nacional.
p g . A, j u l / d e z 1997
-
V o
policial e das leis de expulso.
Como em outras cidades do mundo influ-
enciadas pela Europa, a histria do Rio
de Janeiro, dbut de sicle, foi marcada pela importao de produtos e bens, ho-
mens e mulheres, usos e costumes, faze-
res e lazeres, crimes e contravenes ,
valores e vises de mundo.
Civilizar a cidade, neste contexto de mu-
dana, foi um processo que caminhou em
dois sentidos principais. Em primeiro lu-
gar, no da criao de um espao moder-
no, racional e funcional, em que os ne-
gcios encontraram um lugar especializa-
do e privilegiado para florescer, distanci-
ado dos becos e ruelas tradicionais. Em
segundo lugar, no sentido d
desencadeamento de uma proposta de
a d a p t a o da p o p u l a o urbana aos
cnones de um novo viver, atravs de sua
submisso a um cdigo legal que, con-
traposto ao popular, criminalizou compor-
tamentos tradicionais, atingindo forte-
mente os estrangeiros, num modelo- de
r e p b l i c a que passou a ut i l izar a
alteridade como instrumento de constru-
o artificial da identidade nacional, prin-
cipalmente nos anos que precederam e
se seguiram Primeira Querra Mundial.
Vrias histrias de vida contadas nos pro-
cessos de expulso exemplificam bem as
dificuldades encontradas por centenas de
imigrantes pobres no Rio de Janeiro, ao
tempo da Belle poque, como as que compem os processos de H. Benanan,
A. Cardoso, A. Santos e J . M. Melo:
F rancs de Tnis , H. Benanan ou A.
Benaneti tinha 62 anos quando foi expul-
so em 1929 como vadio. Era solteiro,
analfabeto, carroceiro e havia entrado no
pas em 1922, j com idade avanada.
Segundo o depoimento por ele prestado,
chegara ao Rio de Janeiro vindo de San-
tos, onde um acidente, ocorrido em 1925,
o impossibilitara de continuar trabalhan-
do, razo pela qual, sozinho e sem alter-
nativas de trabalho, lanou-se mendi-
cncia. 3
natural de uma pequena freguesia do dis-
trito de Braga, A. Cardoso tinha 25 anos
quando foi obrigado a voltar para Portu-
gal, 12 anos depois de chegar ao Brasil,
aos 13 anos de idade, junto com os pais.
Recm-chegado, empregou-se em uma
fbrica de louas no bairro de So Crist-
vo, onde trabalhou por algum tempo,
sendo colocado na rua logo depois da fa-
mlia ter retornado a Portugal. S e de-
samparado, viu-se numa "situao finan-
ceira deplorvel", segundo as declaraes
que prestou, no ano de 1922, com 17
anos, preso e processado, acusado de fe-
rir um companheiro em arruaas de rua,
foi recolhido Casa de Deteno. Influ-
enciado pelos nouos amigos que l co-nheceu, no mais procurou emprego ao
deixar a priso, passando a viver exclusi-
vamente do produto dos furtos que prati-
cava. Processado vrias outras vezes, foi
condenado a dois anos em c o l n i a
correcional situada no interior do estado.
Preso novamente, ao passar o conto-do-uigrio em um patrcio, de quem furtou setecentos mil ris em moeda brasileira
e oitocentos escudos portugueses, aca-
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 03-16. jul/dez 1997 - p g . 5
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A C
bou expulso como vadio incorrigvel no
ano de 1930. 4
nascido na aldeia de Travanca, conselho
de Vinhes, na provncia de Trs-os-Mon-
tes, seu conterrneo A. Santos contava 26
anos quando vislumbrou, pela ltima vez,
os contornos majestosos dos morros que
abraam a cidade do Rio de Janeiro. Era
solteiro, alfabetizado, e havia chegado ao
pas com 12 anos. Segundo suas declara-
es , to logo desembarcou na capital
brasileira, foi residir com um tio, com
quem permaneceu por cerca de dois anos.
Em 1917, com 14 anos, s na vida, "deu-
se vadiagem". Preso por ter furtado vinte
mil ris de um alfaiate estabelecido no
centro da cidade e recolhido, pela pol-
cia, a um patronato, ali ficou a t princpi-
os de 1920, sendo desligado aps ter con-
cludo o curso de arado e de agricultura
oferecido pela i n s t i t u i o . Fora do
patronato, empregou-se por cerca de qua-
tro meses. Posto em liberdade, mergulhou
no jogo por "considerar-se fraco para o
trabalho braal" e ter verdadeira fascina-
o pelo jogo, "pelos lucros fceis que
este proporcionava, lucros que lhe per-
mitiam luxos e prazeres" interditados s
classes trabalhadoras, iniciando-se outra
srie de de tenes e uma nova estada na
colnia Dois Rios Em 1926, foi remetido
para Clevelndia, situada em zona de
fronteira. Voltando cidade, e preso no-
vamente, foi Finalmente expulso. Corria o
ano de 1929. 5
Portugus de Figueira, J . M. Melo era sol-
teiro, alfabetizado e padeiro por profis-
so. Foi expulso com a idade de 27 anos,
acusado de ser um dos responsveis pela
onda de exploses ocorrida no ano de
1920. Segundo o depoimento por ele
prestado, to logo chegou ao Brasil em-
pregou-se numa fbrica de tecidos, e,
depois, em padarias, tendo-se filiado
Sociedade dos Padeiros. Acusado de ter
colocado uma bomba numa padaria situ-
ada na rua Voluntr ios da Ptr ia , em
Botafogo, foi preso em maio de 1920,
passando a integrar a lista negra dos agi-
tadores que circulava entre os emprega-
dores, no conseguindo mais nenhum
tipo de emprego. Desesperado com a si-
tuao, "pois no ganhava para comer",
1 no querendo mais "ter fama sem pro-
veito", resolveu vingar-se dos pa t res ,
passando a fabricar bombas e a coloc-
las em lugares considerados estratgicos.
A primeira bomba, fabricada com massa
de vidro, dinamite e pregos, no explo-
diu por defeito de fabricao. Com a se-
gunda, conseguiu seu intento, causando
vrios prejuzos numa padaria do bairro
de Vila Isabel. A terceira, finalmente, de-
positada na residncia do gerente da f-
brica de tecidos Minerva, na Tijuca, va-
leu-lhe a expulso, efetuada no ano de
1920. Megando ser anarquista, J . M. Melo
definiu-se como um sindicalista revolta-
do com as condies de vida dos traba-
lhadores. 6
Parte significativa das sobras de um ar-ranjo social tecido por pactos de elites,
homens como Benanan, Cardoso, Santos
e Melo compunham o grupo dos indese-
jveis, ou seja, dos estrangeiros que, de
p g . e . Ju l /dez 1997
-
R V O
alguma forma, contestavam a ordem
estabelecida. Muma vertente deste pro-
cesso, a da contestao poltica, alinha-
vam-se trabalhadores envolvidos com a
constituio do operariado enquanto clas-
se, com destaque aos anarquistas que, de
posse de um discurso e uma prtica re-
volucionrias, constituram-se em perigo
permanente para o regime.
Ma outra dimenso, a do crime e da con-
traveno, somavam-se vadios, mendigos,
ladres, gatunos, vigaristas, bbados , jo-
gadores e cftens. Com exceo dos lti-
mos, agentes do crime internacional or-
ganizado, os indesejveis , regra geral,
eram indivduos pobres que, perdidos
seus sonhos de uma vida melhor ou de
retorno vitorioso terra natal, voltavam-
se, de vrias formas, contra as condies
de vida que lhes eram oferecidas, afas-
tando-se, com sua atitude de desafio or-
dem, do prottipo de imigrante deseja-
do: paciente, obediente, ordeiro e resignado.
lios delitos que guardavam vnculos mais
estreitos com a pobreza vivida na cidade,
os portugueses destacaram-se do conjun-
to dos indesejveis, reproduzindo as ten-
dncias gerais da imigrao para a cidade.7
Os anarquistas consti turam-se a princi-
pal base da militncia de origem estran-
geira, principalmente no ramo das pada-
rias e da construo civil, em que mais
fortemente enraizou-se o sindicalismo re-
volucionrio. A presena marcante dos
portugueses nos sindicatos, que encami-
nhavam o discurso revolucionrio, distan-
ciou a capital de outras cidades do pas.
onde outros estrangeiros, com destaque
para os italianos e espanhis , colocaram-
se frente do processo de organizao
operria.
Comparadas vrias histrias de vida nar-
radas nos processos de expulso, algu-
mas recorrncias sobressaem significati-
vamente no conjunto, proporcionando um
exerccio prosopogrfico que, a t ravs de
casos exemplares, mergulhados em som-
bras e trevas, permite a reconstruo dos
bastidores da imigrao.
Em primeiro lugar, a pobreza mostrava-
se companheira inseparvel em suas vi-
das. Os processados, geralmente, nada
mais eram que homens pobres que che-
gados ao pas na pobreza mantiveram-
se ao longo da vida, posicionados como
mo-de-obra barata em servios antes
realizados por escravos. Todos haviam
emigrado buscando o paraso do outro
lado do Atlntico. Muito raramente eram
criminosos ou anarquistas radicais. Casos
como o de J . Monteiro, que entrou no Bra-
sil em 1911, fugido de Portugal por seu
ativismo poltico, ou de L. Arena, que no
ato da expulso j registrava pr ises por
furto em Buenos Aires, so absoluta ex-
ceo no conjunto dos indesejveis que
deixaram o registro de sua passagem pela
capital federal."
Quanto procedncia, a maior parte dos
processados havia nascido nos campos
europeus. Mesta perspectiva, os proces-
sos de expulso refletem, com exatido,
as tendncias globais da imigrao para
a cidade, no final do sculo XIX e nas pri-
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16. Ju l /de i 1997 - p g . 7
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meiras dcadas do sculo XX, onde os
portugueses, seguidos por italianos e es-
panhis provenientes das reas rurais,
constituam a maioria dos que se desti-
navam ao Rio de Janeiro. A conjugao
de condicionantes estruturais relativas
posse e div iso da terra com fatores
conjunturais e com o exemplo dado pe-
los 'brasileiros' de torna-viagem, envol-
vidos no manto dos sucessos obtidos no
alm-mar , principalmente em Portugal,
pressionaram ou incentivaram a popula-
o rural a emigrar.
Distribuio dos Estrangeiros por Nacionalidade
Fonte Brasil Ministrio da Agricultura. Indstria e Comero Diretoria Geral de Estatstica Recenseamento de 1920
Com relao idade dos imigrantes, gran-
de parte dos processados havia entrado
no pas durante a adolescncia ou a in-
fncia. Este dado significativo, registrado
no conjunto da documentao, encon-
trado, tambm, nos recenseamentos rea-
lizados entre 1872 e 1920, que registram
um enorme contingente de jovens na fai-
xa dos 12 aos 18 anos no grupo dos es-
trangeiros. Eram os caixeirinhos portu-
gueses ou galegos desta faixa etria que
chegavam ao Brasil, ao chamado de al-
gum parente ou conhecido, ou mesmo
num esprito de total aventura. Sem as
sanes familiares ou qualquer padro
referencial da vida urbana, eles tornaram-
se uma importante d imenso da imigra-
o urbana. Verdadeiros agregados urba-
nos, dormiam e faziam suas refeies nos
locais de trabalho, cumprindo longas e
duras jornadas, que chegavam a se es-
tender por 16 horas no comrcio a vare-
jo. Mo raras vezes, optavam por fugir
devido s duras condies de vida, ou en-
to eram despedidos e, privados de teto
e comida, passavam a vagar pelas ruas,
alternando perodos de recluso em es-
tabelecimentos penais com intervalos de
liberdade, num circuito contnuo de rein-
cidncia.
A grande presena de jovens desocupa-
dos nas ruas, a maioria constituda por
estrangeiros, marcou a histria da Belle
poque carioca. Personagens constantes
nas crnicas sobre a capital, os jovens
abandonados prpria sorte tornaram-se
alvo das preocupaes policiais, devido
facilidade com que tendiam a ingressar
no mundo do crime ou a aquecer os mo-
tins e os quebra-quebras recorrentes. 9
Tomado o universo profissional como ob-
jeto central de anlise, finalmente, mere-
ce destaque a pequena qualificao para
o trabalho registrada nas fontes, ao que
se acrescenta a alta incidncia de analfa-
betos, mais de 20% do to ta l . Este
despreparo para o mercado de trabalho
tinha como conseqncia imediata a ab-
soro dos estrangeiros pobres nas ativi-
dades desvalorizadas, com tendncia
p g . 8 . Ju l /dez 1 997
-
R V O
superexplorao e pouca fixao no em-
prego, em atendimento a demandas cir-
cunstanciais do mercado de trabalho.
bastante f r e q e n t e na d o c u m e n t a o
pesquisada, por exemplo, o registro de pro-
fisses sem quaisquer relaes intrnsecas,
desenvolvidas por um mesmo indivduo ao
longo da vida. J . S. Querra foi jardineiro e
gerente de hotel; 1 0 outros foram sapatei-
ros e pintores, ou condutores de bondes e
trabalhadores em pedreiras, alternando,
freqentemente, empregos ocasionais com
perodos de desemprego.
A pouca ou nenhuma qualificao profissio-
nal de grande parte dos imigrantes encon-
tra-se apontada, t ambm, nos recensea-
mentos realizados no perodo. O de 1906
totaliza 39.707 indivduos sem qualificao,
e o de 1920 aponta a cifra de 13.619 com
profisso mal definida, 10.951 sem profis-
so declarada e 57.030 sem profisso,
to ta l izando 81.600 est rangeiros
desqualificados para as ocupaes urbanas,
o que representa cerca de 35% do univer-
so dos imigrantes residentes na cidade.
O desemprego recorrente e as pss imas
c o n d i e s de trabalho num mercado
magmtico, no qual a oferta suplantava a
demanda, tenderam a aquecer os movi-
mentos contestatrios na cidade e a em-
purrar muitos indivduos para as atividades
ilcitas e a mendicncia.
O comrcio, a construo civil, as docas, as pedreiras e os transportes foram os se-
tores formais do mercado de trabalho que
registraram a maior absoro da mo-de-
obra estrangeira. Justamente nestes espa-
os os salrios eram baixos, os aciden-
tes de trabalho muito comuns e o de-
semprego uma possibilidade sempre
presente, tornando enormes as possi-
bilidades do ingresso do imigrante no
mundo marginal do no-trabalho, como
registra A noite no ano de 1914:
Trata-se de um dos mais s r i o s pro-
blemas do nosso proletariado. Vo de
m a n h cedo aos logradouros pbl i -
cos, correm o Passeio, a praa XV de
liovembro, os diversos cais, o merca-
do velho e novo, a praia de Santa Lu-
zia, e depois dizem que dolorosa im-
p r e s s o trouxeram de l. Ms vimos e
contamos cem o p e r r i o s que dormi-
am ao relento. Conversamos com
muitos deles. Todos contam a mesma
histria: a fbrica, o trabalho, espe-
rana de arranjar s e r v i o para o futu-
ro [...] Mo se trata, [sic] absolutamen-
te, de vagabundos, trata-se [sic] de
o p e r r i o s . "
A descrio da lamentvel s i tuao fei-
ta pelo peridico encontra correspon-
dncia direta em vrias histrias de vida
narradas nos processos analisados,
como no de A. Sarmento, espanhol de
40 anos, residente h 13 anos no pas
no momento de sua expulso, que de-
clarou, em seu depoimento, que fora
sempre um trabalhador, no lhe caben-
do culpa por estar desempregado no
momento de sua pr iso . 1 2
Consideradas as ques tes destacadas,
impe-se como concluso que qualquer
estudo sobre a imigrao estar incom-
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - pag.9
-
pleto se contemplar apenas a histria vis-
ta de cima, ou seja, a histria dos suces-
sos escritos sob as luzes da modernidade.
Alm das vitrias cantadas em prosa e
verso pelos que voltaram ricos terra
natal, ou pelos que fixaram-se na nova
terra como propr ie tr ios , necessr io
que, virado o processo pelo avesso, seja
contemplada uma histria vista de baixo,
capaz de dar visibilidade pobreza dos
bastidores, mergulhados nas sombras do
silncio e do esquecimento.
Muitos foram os condutores de bondes,
padeiros, calceteiros, pedreiros, caixeiros
e trabalhadores afeitos ao trabalho bra-
al que amargaram difceis condies de
existncia, em sua luta permanente con-
tra a carestia, trgica em algumas con-
junturas, morando na periferia pobre ou
dormindo ao relento, quando, desempre-
gados ou sub-empregados, no podiam
arcar com os custos dos aluguis , como
narra com grande sensibilidade o Correio
da Manh:
Grande parte dessa gente, trabalhado-
res e o p e r r i o s , sem casa, sem nenhum
abrigo, sem p o e sem e s p e r a n a s , dor-
me ao relento sob a relva da avenida
do Mangue ou fazendo cama com as er-
vas que crescem livremente nos terre-
nos devolutos, ou pernoita nos portais
das casas desabitadas, se n o se lhes
depara mais confortve l retiro nas ru-
nas de qualquer casa que o fogo ou o
tempo d e s t r u r a m . 1 3
Porm, muitos imigrantes, apesar das
condies adversas, continuaram traba-
lhando duro, tecendo condies de vida
mais amenas para seus descendentes.
Outros buscaram, pela via revolucionria,
alterar de imediato as condies adver-
sas, influenciados pelo iderio anarquis-
\ S. i
0 '
Embarque de emigrantes italianos para o Brasil. Reproduo de A Ilustrao brasileira, 15 de fevereiro de 1910.
p g . 10. Ju l /dez 1997
-
R V O
ta que apontava a revoluo como nica
possibilidade de redeno. A violncia
adotada por muitos expressava, de algu-
ma forma, as frustraes acumuladas ao
longo da vida, e o desejo de alcanar o
paraso na terra, ainda que fosse pela di-
namite.
Os vnculos existentes entre condies de
vida e radical izao ideolgica encon-
tram-se presentes em alguns processos
de expulso, principalmente naqueles mo-
vidos contra os padeiros, sujeitos a lon-
gas jornadas noturnas e a duras condi-
es de trabalho, seguindo-se operrios
no qualificados da construo civil. En-
tre os padeiros, significativa a meno
a uma sociedade secreta de nome
Carbonria Padeiral, que aparece no pro-
cesso contra A. R. Santos, acusado de ser
um dos dinamitadores por ocas io da
onda de exploses em padarias, cujos
panfletos s o de extrema revol ta ,
explicitando muito do vale-tudo desespe-
rado assumido por imigrantes no jogo da
mudana revolucionria. 1*
Considerada a outra vertente da desor-
dem urbana, a das atividades, ilcitas, do
crime e da vadiagem, o comportamento
desviante podia apresentar-se como de-
corrncia de uma primeira priso, por
arruaas de rua, com a conseqente pas-
sagem pela verdadeira 'escola' que se
constitua a Casa de Deteno, quanto por
motivos involuntrios ou circunstanciais
como desemprego, acidentes de trabalho,
doenas , velhice e embriaguez. Muitos fo-
ram os que romperam a fronteira da
marginalidade por motivos alheios a sua
vontade, como R. V. Castro: casado, alfa-
betizado e sem residncia, o por tugus
R. V. Castro tinha 26 anos quando foi pre-
so e expulso. Segundo suas declaraes,
chegara ao Brasil com um tio, aos oito
anos de idade, tendo trabalhado no co-
mrcio at a idade adulta, quando, ento,
desempregado, caiu na marginalidade,
terminando por ser expulso por vadiagem
e furto.1 5
Se em alguns casos a expulso tinha jus-
tificativas, em outros ela definia-se como
um ato extremamente a r b i t r r i o e
inconst i tucional . 1 6 Mo conjunto dos es-
trangeiros que acabaram sendo expulsos,
muitos sofreram perseguio sem trguas
por sua misria ou luta contra as injustas
condies de trabalho e de vida, ou, ain-
da, por enganos ou perseguies circuns-
tanciais, embora estas ltimas represen-
tassem uma afronta violenta aos postula-
dos do direito internacional. Veja-se o
relato de J . Madeira, encaminhado ao
deputado Maurcio de Lacerda que depois
o enviou Mesa da Cmara de Deputados:
Envolvido na onda migratr ia que em
1912 se efetuava de Portugal para o
Brasil, embarquei a 17 de fevereiro des-
se mesmo ano no porto de Lisboa e de-
sembarquei no Rio a 2 de m a r o , inici-
ando uma vida de trabalho e economia
(...). Depois de pouco mais de dois
anos, a crise de trabalho que se deu
nessa cidade e em toda a parte veio
roubar-me as i l u s e s antes sonhadas
(...). Compareci a alguns c o m c i o s p -
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 1 1
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A C
blicos e, no dia 11 de maio, estando
para assistir a um comcio em Vila Isa-
bel, vi prender trs operrios que sou-
be serem os oradores que iam falar
nesse comcio: chegada a hora do in-
cio do mesmo, dispus-me a explicar aos
operrios o motivo por que no se rea-
lizava o comcio (...)
Desta data em diante passei a ser um
dos chamados 'oradores operrios' (...)"
Transformado em "orador improvisado', J .
Madeira tornou-se alvo da vigilncia per-
manente das autoridades policiais, termi-
nando por ser expulso no ano de 1920.
Anarquista "por fora das circunstncias",
se considerarmos verdadeiro o teor de sua
carta, ou anarquista por convico, J .
Madeira, independente de sua opo ideo-
lgica, era um trabalhador humilde dis-
posto a lutar por um lugar ao sol. Muitos
como ele, a partir da suspeio e de uma
primeira priso, no raras vezes aciden-
tal, tornaram-se personagens cativos das
dil igncias policiais, transformados em
anarquistas profissionais por fora do dis-
curso repressivo.
A compreenso ampla do que se configu-
rava como (des)ordem permitiu que, no
mesmo grupo dos indesejveis, ao lado
dos militantes operr ios , fossem englo-
bados c r iminosos comuns e
contraventores variados. Todos eles so-
freram uma represso ininterrupta no pro-
cesso de estabelecimento de disciplina
sobre o mundo do trabalho e as ruas, con-
templados nas leis que regulamentavam
a entrada e a permanncia dos estrangei-
ros em territrio nacional. Estas traziam
enumeradas como motivos explcitos para
a expulso, alm daqueles concernentes
ao que se pudesse constituir em ameaa
para o regime, a condenao por tribu-
nais brasileiros de crimes ou delitos de
natureza comum, como a vagabundagem,
a mendicidade e o lenocnio competen-
temente verificados, sendo relevante res-
saltar o fato do homicdio no se consti-
tuir em motivo de expulso, por ser um
crime de alcance individual que no ame-
aava a ordem urbana. 1 8
Anarquistas, militantes operrios , vadios,
ladres, gatunos, vigaristas, jogadores,
brios, mendigos e cftens eram vistos
pelo discurso oficial, com o respaldo do
discurso cientfico da poca, como hs-
pedes perigosos, vrus contaminados do
tecido social, principais responsveis pela
desordem urbana. Dentre todos, os anar-
quistas mereceram uma a teno especial
por parte das autoridades constitudas de-
vido sua extrema perlculosidade,
advinda do fato de serem definidos como
corruptores de naes inteiras, reprodu-
zindo, no cotidiano da prtica poltica, as
teorizaes feitas por Lombroso acerca do
crime polt ico. 1 9
Considerado o conjunto dos imigrantes
que foram alvo das leis de expulso, al-
guns podiam ser de fato nocivos e peri-
gosos, tomados os valores em processo
de sedimentao como referenciais. Ou-
tros foram objeto dos desmandos produ-
zidos por um regime que priorizava a or-
dem em vez da lei. A maior parte, porm.
p i g . 12. Ju l /dez 1997
-
K V O
era fruto direto das condies adversas
no Rio de Janeiro.
Messe contexto, a expulso definiu-se,
a l m de um processo de s e l e o a
posteriori, como uma estratgia privile-giada de limpeza urbana'. Conjugada
depor t ao , 2 0 ela possibilitou um melhor
controle social, atravs do processo de
eliminao de todo aquele que, conside-
rado sobra do arranjo social, pudesse ser
definido como elemento perigoso or-
dem poltica, social ou moral. O ideal de
c o n s t r u o de uma cidade disciplinar
norteou prticas autoritrias, destinadas
ao esvaziamento poltico da capital, que
atingiram tanto o mundo do trabalho
quanto o do no-trabalho, separados por
fronteiras fluidas e mveis que tendiam a
desaparecer nos momentos de contesta-
o ampla, marcados por quebra-quebras
generalizados, nos quais os excludos
demonstravam toda a sua revolta e des-
contentamento.
O medo de um levante global dos exclu-
dos, ensaiado em 1904 2 1 e alimentado
pelo i d e r i o anarquista , que via no
lumpesinato uma fora revolucionria,
tornou-se um fantasma permanente a
povoar a mente das elites. Esvaziar a ca-
pital, portanto, livrando-a dos 'elementos'
desordeiros, dentre os quais sobressa-
ram-se os estrangeiros, era uma necessi-
dade a um s tempo repressiva e
profiltica, que visava transformar o Rio
de Janeiro no carto de visitas do Brasil.
certo que o Rio de Janeiro sofria a atu-
ao de criminosos internacionais, prin-
cipalmente em relao ao caftismo, que
transformara a cidade em um dos pontos
de chegada das rotas internacionais do
trfico de brancas. 2 2 Tambm era verda-
deira a verso de que as idias revolucio-
nrias que seduziam a classe operria em
formao eram importadas, com destaque
para o c o m u n i s m o - a n r q u i c o de
Kropotkin.
Mo correspondia realidade, entretan-
to, a explicao oficial de que a desordem
reinante no Rio de Janeiro devia-se sim-
ples importao de indivduos viciosos e
anarquistas profissionais; aues de arriba-o chegadas na vasa da imigrao, ver-so que mascarava as contradies inter-
nas existentes que apanhavam os estran-
geiros pobres em suas malhas.
A anl i se dos processos de expu l so ,
excetuados aqueles movidos aos cftens,
no corrobora a consagrada tese da con-
taminao por agentes exgenos. A mai-oria dos cidados processados, principal-
mente os portugueses, tinha uma longa
residncia no pas. Sua opo ideolgica
ou ingresso na marginalidade eram, em
ltima instncia, uma decorrncia das di-
ficuldades e embates travados na prpria
cidade; a expulso, uma interveno ci-rrgica capaz de eliminar parasitas e er-vas daninhas.
Messe contexto de excludncia, o perodo
que vai de 1907 a 1930 marca, no plano
das relaes intersocietais, um captulo
de violncia da nossa histria. Aos ho-
mens que, expulsos, voltavam Europa,
depois de anos vividos no Brasil, restava
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2, pp. 03-16, jul /dez 1997 - p g . 13
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A C
a pobreza, a fadiga e o desalento. Pobre-
za que com eles cruzava, mais uma vez,
o oceano. Fadiga e desalento por muitos
anos de frustraes e derrotas, j que, em
sua grande maioria, os estrangeiros que
retornavam como indesejveis no havi-
am cruzado a estreita entrada da baa da
Guanabara como desordeiros ou crimino-
sos. Mo momento de sua chegada, eram
to somente camponeses pobres que, na
conjuntura de encurtamento das distn-
cias possibilitada pelo avano tcnico,
transformaram os portos num ponto de
passagem no processo de busca de suas
utopias no alm-mar. Dificuldades de v-
rios matizes permitiram sua ro tu lao
como nocivos e/ou perigosos, colocados
barra a fora como indesejveis, mesmo
que a maior parte de suas vidas tivesse
sido passada no Brasil, na maioria dos
casos, haviam cruzado os mares embala-
dos pelo sonho de uma vida melhor, su-
portando, com resignao, as dificulda-
des da travessia ocenica. Muito diferen-
te era a viagem de volta, sem utopias ou
sonhos para o futuro, embarcados para
pa s e s que j no podiam considerar
como ptrias, sem a certeza sequer de
que poderiam desembarcar do outro lado
do Atlntico."
N O T A s 1. Arquivo Nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ7 169.
2. Este conceito era utilizado pelos chefes de polcia, na poca estudada, para caracterizar os que se posicionavam margem da sociedade organizada, cujos limites colocavam-se na fron-
p g . 14, Ju l /dez 1997
-
R V O
teira entre o trabalho e o no- traba lho . Meste mesmo aspecto, caracter s t ica a p r e o c u p a o constante das elites po l t i cas e de parte significativa da elite intelectual em apartar os anar-quistas, qualificados como agitadores profissionais infiltrados no conjunto da classe trabalha-dora.
3. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 156.
4. Idem. Pacotilha IJJ 7 132.
5. Idem. Pacotilha IJJ 7 136.
6. Idem. Pacotilha IJJ 7 163.
7. Esta quant i f i cao e s t baseada em s e l e o feita na d o c u m e n t a o que c o m p e o m d u l o 101 do Arquivo nacional relativa a estrangeiros processados e residentes na capital, que totaliza 531 ind iv duos . Esta amostra foi a base principal de tese de doutoramento defendida na USP acerca dos i n d e s e j v e i s , d i s tr ibudos em vadios, mendigos, vigaristas, l a d r e s e gatunos, por n s englobados na categoria freqentadores assduos dos crceres (248), c f t e n s (194) e anar-quistas e/ou comunistas (79), demonstrando que a e x p u l s o na capital brasileira posicionou-se como instrumento global de limpeza social e n o simplesmente como pol t ica direcionada para a p e r s e g u i o p o l t i c o - i d e o l g i c a como tradicionalmente se supunha, neste conjunto, os portugueses representam 45,9% do primeiro grupo; 11,3% do segundo e 59% do terceiro. Ver Len Medeiros de Menezes, Indesejveis desclassificados da modernidade: protesto, crime e e x p u l s o na capital federal (1890-1930), Rio de Janeiro, ESDUERJ, 1997.
8. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 163.
9. Lima Barreto, Recordaes do escrivo /saias Caminha. S o Paulo, Brasiliense, 1976, p. 166.
10. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ7163.
11. A noite, 2 de maio de 1914.
12. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 129.
13. Correio da Manh. 18 de fevereiro de 1917.
14. Cf. Arquivo nacional. SPJ. Mdulo 101, pacotilha IJJ 7 168.
15. Idem. Pacotilha IJJ 7 151.
16. A C o n s t i t u i o Federal, em seu artigo 72, garantia igualdade de direitos a nacionais e estran-geiros residentes.
17. Brasil, Anais da Cmara dos Deputados de 1920, s e s s o de 12 de agosto. Rio de Janeiro, Imprensa nacional, 1921, p. 504.
18. Decreto n 1.641, de 7 de janeiro de 1907. Brasil. C o l e o das Leis da Repbl ica , Rio de Janei-ro, Imprensa nacional, 1908.
19. Sobre o tema, ver Cesare Lombroso e R. Laschi. Crime politique et les revoluttons. Paris, Librairie Flix Alcan, 1892.
20. Havia uma d i f erenc iao entre e x p u l s o e d e p o r t a o . A primeira atingia os estrangeiros; a segunda, os nacionais enviados para c o l n i a s penais situadas em zonas de fronteira. Ambas conjugaram-se, p o r m , como e s t r a t g i a s c irrgicas complementares no processo de limpeza urbana que acompanhou as reformas urbanas a partir da virada republicana e, mais especifi-camente, depois da a d m i n i s t r a o de Pereira Passos (1902-1906).
21. A refernc ia a revolta popular contra o decreto de v a c i n a o obr igatr ia ocorrida naquele ano. Sobre o tema, ver, entre outras obras, nicolau Sevcenko, A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes, S o Paulo, Brasiliense, 1984. [Tudo Histria, 89].
22. Sobre o trfico de brancas no Rio de Janeiro, ver Len M. de Menezes, Os estrangeiros e o comrcio do prazer nas ruas do Rio. Rio de Janeiro, Arquivo nacional, 1992, P r m i o Arquivo nacional de Pesquisa, 2.
23. Com r e l a o aos relatos acerca de todo o processual da e x p u l s o , ver Everardo Dias, "Mem-rias de um exilado". E p i s d i o s da d e p o r t a o de Everardo Dias contados por ele mesmo Voz do Povo, 20-24 de fevereiro de 1920.
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 03-16, Jul/dez 1997 - p g . 1 5
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Carla Brandalise Professora do Departamento de Histria
da Universidade Federal do Rio Qrande do Sul.
Camisas~\er
-
A C E
sociais mdios partilhavam um sentimen-
to de frustrao poltica ensejada ora pela
percepo da marginalizao poltico-par-
tidria, ora pela viso do fracasso e de-
cadncia dos partidos oligrquicos. Em
termos discursivos, a AIB pretendia orga-
nizar-se no estado como uma alternativa
poltico-ideolgica ao tentar objetar as
formas partidrias vigentes em favor de
um modo de part icipao radicalmente
novo. A a tuao dos indivduos no seria
mais mediada por polticos profissionais
e influncias oligrquicas. Pelo contrrio,
iria constituir-se atravs do compromis-
so e dedicao total ao movimento, por-
que a p r t i c a po l t i c a t r ad ic iona l
obstaculizava a expresso do verdadeiro
interesse do povo, e o voto ocasional e
secreto impl icava no reduzido
envolvimento com o destino da nao.
A partir de Porto Alegre, a AIB expande-
se pelo interior do estado. Porm, o mo-
vimento assume um carter estacionrio,
salvo nas zonas de imigrao italiana e
a l e m . A i n s e r o do movimento
integralista no Rio Qrande do Sul, com
grande ace i t ao em algumas r ea s e
quase nenhuma em outras, encontra suas
origens no processo interno de formao
sociopolt ico. A ocupao territorial do
estado fez surgir dois tipos bsicos de
sociedade, os quais, por muito tempo,
conviveram lado a lado sem maiores
interaes econmicas e culturais. 2
A primeira formao social desenvolveu-
se na regio Sul, na denominada 'zona da
Campanha', sendo condicionada em seus
primrdios pelos litgios fronteirios en-
tre Espanha e Portugal. Tais lutas cons-
tantes geraram uma soc iedade
militarizada e autocrt ica, medida pela
hierarquia da fora. Ao mesmo tempo, foi
possvel a esta populao aproveitar eco-
nomicamente o gado se lvagem que
disseminara-se em larga escala na rea.
Desta c o m b i n a o caracterizou-se na
Campanha a figura do 'militar-estanciei-
ro', que dominava as at ividades eco-
n m i c a s g a c h a s sob o r eg ime da
grande propriedade.
A segunda formao social, de origem mais tardia, estabe-.leceu-se sem a aprovao dos estancieiros locais e por del iberao do
centro do pas. A partir do incio do scu-
lo XIX, foram introduzidos no estado os
imigrantes a lemes e italianos. Eles cons-
tituram uma sociedade baseada nas pe-
quenas e mdias propriedades, na pro-
duo agropastoril diversificada e no tra-
balho famil iar . A c o l o n i z a o t a l o -
germnica expandiu-se nas serras do Su-
deste e na Depresso Central. Entre as
duas formaes sociais houve, desde o
incio, um certo antagonismo. Os estan-
cieiros no apenas constrangiam a fixa-
o dos colonos europeus em terras im-
prprias prtica da pecuria extensiva,
como tambm procuravam desacelerar ou
mesmo impedir o movimento migratrio.
Os imigrantes, por sua vez, manifestavam
uma tendncia ao isolamento, circuns-
crio a sua prpria cultura, preservando
os valores da ptria de origem.
p g . 1 8. Ju l /dez 1 997
-
A C
mobilizao constante, sua retrica anti-
ol igrquica e condena t r i a do sistema
partidrio republicano, encontra nesses
indivduos campo frtil a sua expanso.
Apesar das condies socioeconmicas
favorveis, o interesse pela AIB nas zo-
nas coloniais no pode ser explicado sem
a varivel tnico-cultural, sob o risco de
descaracterizar a complexidade do pro-
blema. Se o contexto conjuntural da re-
gio propiciou certos requisitos bsicos
ao fomento do integralismo, a ques to
tnica sobredeterminou a sua aceitao.
Tal especificidade deve ser analisada a
partir da mo uao que levou estes se-
tores intermedirios a aderir AIB.
Quanto aos simpatizantes de origem ita-
liana e a l em , o movimento no lhes
atraa enquanto uma forma de resistn-
cia integrao em sua nova ptria. Pelo
contrrio, o integralismo aparecia como
a forma mais vivel de se tornarem 'bra-
sileiros de fato' atravs da participao na
vida poltica do pas. A ques to por eles
reconhecida de que a AIB apresentava
semelhanas visveis com os movimentos
fascistas da 'ptr ia-me ' reforava sobre-
maneira o interesse por esta fora polti-
ca que se introduzia no estado. Ma sua
concepo, as realizaes tidas como be-
nficas do fascismo italiano e do nazismo
alemo, amplamente divulgadas por pe-
ridicos especializados, evidenciavam a
viabilidade da construo de uma nova or-
dem mundial. O integralismo deveria con-
cretizar no pas esta ordem, no atravs
da reproduo pura e simples dos princ-
E
pios europeus ou por meio do domnio
direto da Alemanha ou Itlia sobre o Bra-
sil , mas pela valorizao au tnoma das
potencialidades e caracters t icas nacio-
nais. Os integralistas de descendncia ale-
m ou italiana admiravam os movimen-
tos considerados como correlatos em
seus pases de origem, porm a nao
brasileira deveria engendrar a sua 'rege-
nerao ' e ' t ransformao' de modo in-
dependente, com a exaltao das tradi-
es e costumes do pas. Mo havia, as-
sim, a princpio, contradio entre o dis-
curso nacionalista da AIB e a descendn-
cia tnica desses adeptos. Messe sentido,
as lideranas do integralismo no Rio Qran-
de do Sul prezavam de forma pblica e
aberta os movimentos europeus, contra-
riando a cpula nacional que procurava
geralmente n o incorrer numa asso-
c i ao direta.
O conjunto desses fatores revela-se nos
depoimentos prestados pelos adeptos do
integralismo. Para o caso da zona a lem'
so representativas as reflexes do chefe
municipal da AIB da cidade de Qramado,
Alcides Arendt, para quem:
O integralismo teve r e c e p o fcil na
zona de c o l o n i z a o a l e m porque a
Alemanha naquela p o c a tinha o nazis-
mo. Durante o integralismo eu via com
simpatia o Hitler em muitas coisas, n o
que q u e r a m o s imitar, o nosso movi-
mento surgiu como um movimento in-
d g e n a , o objetivo de Pl n io Salgado
nunca foi imitar. A luta do integralismo
era de formar, educar a juventude. O
p g . 20 . Ju l /dez 1 997
-
V o
Hitler fez coisas boas, levantou a Ale-
manha organizando o trabalho.*
Oprojeto, de acordo com Arendt, era introduzir os pontos altos do nazismo, como o corporativismo, a valorizao da autori-
dade e do trabalho, o combate ao libera-
lismo e ao comunismo, sem a interfern-
cia da Alemanha. Outros militantes cre-
ditavam confiabilidade AIB pela identi-
ficao direta que faziam entre o movi-
mento e o nazismo, reconhecendo a au-
tonomia do integralismo. Este o caso
do professor Maximiliano Hahan, da cida-
de de Canela, que revela:
... falando a verdade, eu entrei na AIB
por causa do nazismo. O integralismo
era da mesma ordem, a disciplina, as
mi l c ias , o corporativismo. E Hitler sal-
vou a Alemanha do caos. Hitler era ver-
dadeiramente um grande homem, mas
eu preferia o Plnio. O Hitler era muito
violento. As id ia s do Plnio eram mui-
to superiores ao nazismo. O
integralismo queria justamente o patri-
otismo. 5
Ao mesmo tempo, o visvel crescimento
da AIB nas reas coloniais chama a aten-
o das autoridades pblicas que logo
desencadeiam uma onda de represso ao
movimento. Flores da Cunha, e n t o
interventor do estado e lder do partido
governista, o Partido Republicano Liberal
(PRL), n o pretendia renunciar ao
enquadramento e ao rgido controle das
suas bases eleitorais nesta zona, cada vez
mais indispensveis na disputa poltica
intra-oligrquica. Um dos momentos cul-
minantes da prtica coercitiva ocorreu em
fevereiro de 1935 por ocasio de um gran-
de encontro estadual de integralistas na
cidade de So Sebastio do Cai, regio
de imigrao alem. Durante uma passe-
ata, que contou com mais de trezentas
pessoas, houve um tumulto, com troca de
tiros entre a polcia e os militantes. O sal-
do foi a morte de dois policiais e de um
ativista. O prefeito do Cai, Morais Forte
(PRL), denunciou os integralistas por tu-
multuar a cidade e provocar o incidente,
pois teriam comparecido ao desfile forte-
mente armados. Argumentava tratar-se de
agitadores dirigidos por elementos es-
trangeiros, representando uma ameaa na
medida em que atacavam o governo, o
Exrcito e as instituies republicanas, rio
seu relato a Flores da Cunha, o prefeito
revela que prendera mais de cinqenta
pessoas, porque "... a concentrao aqui
realizada tinha por fim menosprezar as
autoridades locais devido a uma repres-
so feita no interior do municpio num
ncleo integralista que estava atentando
contra a ordem". 6 O chefe municipal da
AIB, o mdico Metzler, confirma em parte
o objetivo da passeata. Ha sua verso,
pretendia-se prestar solidariedade pac-
fica aos integralistas da vila de liova
Petrpolis, pois estes teriam sofrido vio-
lncia injustificada por parte das autori-
dades:
Devido ao incremento tomado pelas
nossas i d i a s , o prefeito do m u n i c p i o
c o m e o u a perseguir todos os
integralistas de Mova Petrpol is . Em vis-
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36. jul /dez 1997 - p g . 2 1
-
ta disso, a chefia provincial resolveu
fazer um grande desfile no Cai para dar
uma demonstrao de apoio moral aos
perseguidos.7
Apesar dos esforos do chefe nacional,
Plnio Salgado, para que fosse mantida no
Rio Qrande do Sul a liberdade de expres-
so, o interventor Flores da Cunha decla-
ra ser a AIB perniciosa segurana inter-
na do estado. Probe, desta maneira, o uso
da camisa-verde' (smbolo do movimen-
to), as passeatas, os comcios e as mani-
festaes em lugares pblicos. Pela reso-
luo, as reunies ficavam limitadas s
sedes integralistas. Isto restringia a pro-
paganda da AIB, que utilizava teatros e
cinemas para congregar o maior nmero
de pessoas. Sem a evoluo das milcias
organizadas, com seus tambores e hinos,
tirava-se do integralismo o apelo visual,
to importante na divulgao da doutrina.
lia perspectiva da acirrada compet io
pelo espao poltico na zona colonial que
se estabeleceu entre a AIB e o PRL, o caso
de Nova Petrpolis revela-se interessan-
te. O subdistrito da cidade do Cai, uma
pequena comunidade de imigrao ale-
m voltada basicamente para a produo
rural, apresentava um elevado ndice de
adeso ao integralismo. Dados oficiais do
movimento contabilizavam 320 inscritos
no subncleo local, resultado este obtido
pelos esforos do professor Straatman,
que propagava o integralismo enquanto
ensinava p o r t u g u s aos agricultores.
Como elemento a incentivar o interesse
pelo novo partido, estava o fato de os co-
lonos visualizarem a possibilidade de
romper com a exigncia das autoridades
estaduais quanto ao voto compulsrio no
partido situacionista, no caso, o PRL. Em
poca de eleio garantia-se o voto do pe-
Plnlo Salgado |centro| e Integralistas. Petrpolis (RJ), maro de 1935. Correio da M a n h , Arquivo Nac iona l .
p g . 22 . Ju l /dez 1997
-
V o
queno agricultor com prticas compensa-
trias ou repressivas. Aps a votao, era
oferecido o 'churrasco eleitoral', como des-
creve Felipe Stahl, "quando a gente chega-
va ao local de votao, recebia-se as cha-
pas... Elas j estavam prontas. Havia fis-
cais mas tudo j estava combinado. A gen-
te votava e da podia comer o churrasco".8
Caso fosse descoberta uma ao contrria,
as autoridades policiais no tardavam a
desencadear a represso, como atesta o
depoimento de Irmgard Schuch:
A urna ficava num canto fechado com um
pano, a pessoa ia l (...) em cima do s-
to fizeram um furo e o cara deitado ali
com o olho no furo, ele olhava que chapa
o cara botava no envelope, se botava a
chapa certa, ele saa, se o cara botava a
chapa errada, deixava cair um pouco de
farinha no chapu ou na camisa, e a
quando o cara chegava na rua e tinha fa-
rinha de trigo, ele entrava no lao.'
Tal estado de coisas, vigente na Repblica
Velha, permaneceu como regra na dcada
de 1930. Com a chegada da AIB, ensaiou-
se uma resistncia, onde as 'chapas pron-
tas' eram discretamente trocadas pela cha-
pa dos in tegral is tas . A e x i s t n c i a do
integralismo, no entanto, estava longe de
ser um consenso entre esta mesma popu-
lao seja pelo assim considerado carter
de fana t i smo, seja pe la a s s o c i a o
com o movimento nazista. Straatman
era acusado de o rgan iza r a m i l c i a
integralista nos moldes da fora de cho-
que do nazismo a l e m o e de cultuar a
imagem de Hitler. E, ainda, de acordo
com relato de Elisabeth K. Evers:
Quando algum no queria mais
acompanhar, sua ficha e sua camisa-
verde eram queimadas sob maldio.
Os que saam eram evitados pelos
outros. Os integralistas no pagavam
imposto algum, nem contribuio
para comunidade, nem taxas escola-
res. Mas festas mais simples ou nos
cultos dominicais apareciam os cha-
mados camisas-verdes, fechados, em
uniformes, eles marchavam para den-
tro e ficavam l (...) notava-se clara-
mente como o partido aumentava em
nmero aqui em nosso municpio e
estavam conscientes de sua fora.1 0
Para efeito de comparao, observa-se
que este quadro conjuntural se manifes-
ta em outra importante zona de imigra-
o alem, no estado de Santa Catarina.
Em relatrios enviados a Roma, 1 1 o en-
t o embaixador i ta l iano no Bras i l ,
Roberto Cantalupo, descreve o "parti-
cular desenvolvimento" do integralismo
naquele estado, onde nas eleies de
1935 o movimento teria vencido em oito
municpios sobre 11, contando em suas
fileiras com maioria absoluta de descen-
dentes de a lemes . Segundo Cantalupo,
vrios eram os fatores que explicavam
esta rpida expanso, entre eles o de-
sejo desses militantes em implantar um
sistema social baseado na ordem, justi-
a e honestidade; o medo do comunis-
mo que poderia fazer sua violenta
irrupo no pas e a questo racial, onde
"no seria uma questo de raa, mas an-
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 2 3
-
A , C E
tes uma questo de mentalidade com uma
natural simpatia pelos regimes fascista e
nacional-socialista". Segundo sua anli-
se, os integrantes da AIB poderiam sem-
pre contar com o clero "que faz constan-
te e metdica obra de propaganda em
favor do integralismo, protegendo os va-
lores da religio". For todas essas razes,
a ses so catarinense da AIB representa-
ria "uma reserva moral" na influncia dos
outros estados.
A nfase tnica e a identificao com o
nazi-fascismo dada pelo embaixador con-
firma-se no depoimento dos militantes de
Santa Catarina. Segundo o secretrio de
imprensa da AIB, Enrico Muller:
Havia em Blumenau certa t e n d n c i a de
aceitar o integralismo pela semelhan-
a com o nazismo. Quando um c i d a d o
descende de uma outra raa , de um
outro pais, ele, se uma pessoa de
acordo, de exata c o n s c i n c i a , tem sim-
patia (...) a maioria tinha simpatia pela
Alemanha, pelo Hitler, era natural."
Todavia, t ambm para Muller, a AIB era
um movimento singular e au tnomo j
que a doutrina integralista seria "... pu-
ramente brasileira, com origens na nos-
sa histria, adaptada ao povo brasileiro,
lio era um movimento estrangeiro, ns
pregvamos justamente a integrao, en-
s invamos aos operr ios e aos colonos o
hino nacional". As mesmas concepes
aparecem no depoimento de Jos Ferreira
da Silva, en to secretrio de Educao e
Cultura da AIB em Blumenau:
O clima aqui era de simpatia com os
movimentos europeus. lio p r i n c p i o
parecia uma s a l v a o . Hitler tinha pres-
t g io no mundo inteiro, n s aqui s e n t -
amos esta inf lunc ia . A c h v a m o s que
um regime que era bom para um p a s
que j contava com mil anos de exis-
t n c i a , t a m b m seria bom aqui. Mas
n o se pode falar em simbiose entre
integralismo e nazismo. Havia certas
afinidades. 1 3
C omo c a r a c t e r s t i c a s comuns Ferreira da Silva aponta a ten-d n c i a an t i - semi ta , o corporativismo, a representao classista,
a estrutura organizativa, o antiliberalismo,
a indumentria, a estrutura paramilitar e,
principalmente, afirma que "o nazismo e
o integralismo eram espiritualistas".
Deixando Santa Catarina e dirigindo o
foco de anlise para as zonas de coloni-
zao italiana do Rio Qrande do Sul,
possvel, mais uma vez, constatar uma co-
incidncia de valores quanto s motiva-
es de adeso AIB. Em relao ao ca-
rter de participao poltica alternativa
oferecido pelo integralismo, um artigo do
militante Lus Compagnoni, publicado em
fevereiro de 1935 no jornal do movimen-
to, O Bandeirante, em Caxias do Sul, re-
vela o desagrado com a onipotncia dos
partidos tradicionais. Estes s se interes-
sariam em quantificar votos em pocas
eleitorais, menosprezando os problemas
da comunidade aps a vitria nas urnas.
A AIB, inversamente, permitiria a repre-
sentao direta das demandas locais. Isto
porque a organizao interna e os assun-
p g . 2 4 . Ju l /dez 1997
-
V o
tos prioritrios para o movimento depen-
deriam, antes, do consenso e da partici-
pao de todos os seus membros e no
apenas de alguns poucos l de r e s . O
integralismo, por fim, representaria a
t ranscendncia da simples politicagem
regional:
n s representamos muito mais que a
i m p l a n t a o de um regime pol t ico . Um
camisa-verde que passa uma consci-
n c i a reta e pura que serve de conde-
n a o imoralidade, c o r r u p o . O
povo v em n s o restabelecimento do
equi l br io e da harmonia na vida mo-
ral, e c o n m i c a e cultural. O povo sabe
que n o estamos neste movimento para
obter vantagem material (...) no atual
regime n i n g u m deposita conf iana _e
dos homens que dele fazem parte pou-
cos se salvam. a n s , exclusivamente
a n s , que cabe a tarefa de expurgar,
de varrer, de demolir, de construir, de
aprovar e de desaprovar."
Da mesma forma, a aproximao entre
integralismo e fascismo justifica-se pelas
conquistas j empreendidas pelos movi-
mentos europeus. Segundo o depoimen-
to de um ativo militante local, Oswaldino
rtico:
O integralismo parecido com o fas-
cismo. Aqui todo mundo achava, as idi-
as, o uniforme, a o r g a n i z a o do movi-
mento. Mussolini fez muita coisa pela
Itlia, tornou o pa s moderno, tirou da
misr ia o povo italiano, antes eles ti-
nham que sair do pa s , ir embora; de-
pois tinha trabalho e riqueza para to-
dos. O integralismo poderia ter feito o
mesmo pelo Brasil, tirar o povo da mi-
sr ia , dar trabalho para todo mundo,
naquela p o c a o fascismo e o nazismo
estavam em grande xito no mundo, por
isso n o havia argumento contra n s .
nossos a d v e r s r i o s eram obrigados a
ver isto. 1 5
O processo de organizao oficial da Ao
Integralista na rea de imigrao italiana
efetuou-se a partir da principal cidade da
regio Caxias do Sul, propagando-se
rapidamente pela zona rural. Essa rea
concentrou o maior nmero de adeptos
no estado e foi a base do movimento po-
ltico de oposio por excelncia devido,
entre outras coisas, ausncia de outro
partido oposicionis ta com represen-
tat ividade. A grande e x p a n s o do
integralismo entre os pequenos produto-
res rurais dependeu no somente de uma
atitude centrpeta maior em relao cul-
tura originria italiana, mas tambm da
influncia decisiva do clero catlico, em
part icular da C o n g r e g a o dos
Capuchinhos.
O assentamento dos colonos italianos no
Sul do p a s , in ic iado em 1875 e
direcionado encosta superior do nordes-
te, rea de difcil acesso e coberta de in-
tensa vegetao, bem como o descaso das
autoridades governamentais concorreram
para confinar os imigrantes a um quase
total isolamento, condio esta reforada
pela heterogeneidade do grupo. Vindos de
diferentes regies da Itlia, com costu-
mes e dialetos prprios, os colonos nem
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2. pp. 17-36, Jul/dez 1997 - p g . 2 5
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A C E
mesmo associavam-se entre si com faci-
lidade. Assim, foi a religio comum, o
catolicismo, que acabou desempenhando
o elo preponderante na interao socio-
cultural. Tal papel, obviamente, conferiu
Igreja um poder ainda maior de persu-
aso sobre seus fiis. O desenvolvimento
da regio colonial, com a abertura de es-
tradas e o crescimento da indstria e do
comrcio, fez com que esta influncia di-
minusse consideravelmente o fluxo de
novos contatos culturais nos centros ur-
banos, lia rea rural, no entanto, a insti-
tuio mantm a sua importncia origi-
nria, sendo os freis capuchinhos os mais
atuantes. Alm de manter ncleos de ins-
t ruo religiosa, voltados basicamente
para os filhos dos pequenos agricultores,
a Ordem possua um destacado rgo de
imprensa, o per idico Stafetta
Riograndense, publicado em italiano. O
j o r n a l , segundo depoimento de frei
Alberto,
(...) era oporta-voz da c o l n i a . O
jornal va-
m c i o .
e n t r e
lia mais do que um co-
liavia naquela p o c a
15 mil a 20 mil assi-
naturas, mas o n -
mero de
leitores era muito maior. Os que sabi-
am ler, liam para os que n o sabiam
ou contavam as n o t c i a s . O jornal era
distr ibudo a t por o c a s i o da missa do-
minical, era levado a t a igreja. 1 8
Influenciados pela adeso manifesta do
clero da Itlia ao regime de Mussolini, os
capuchinhos no s acolheram este sis-
tema poltico, como associaram-no ao
integralismo, o qual representava, para os
freis da Ordem, o fascismo brasileiro. A
AIB pretenderia defender os mesmos prin-
cpios, ou seja, lutar pela grandeza da
ptria e da famlia, e estruturar-se de
acordo com as leis de Deus. Em janeiro
de 1934, o Stafetta apresenta o novo mo-
vimento:
A Ao Integralista Brasileira tem suas
primeiras m a n i f e s t a e s no estado,
com a r e a l i z a o de um primeiro en-
contro em Porto Alegre (...) o
integralismo fascismo, mas um fas-
cismo com carter nacional. O progra-
ma do partido n o apenas d um lugar
de honra re l ig io , mas nela que se
inspira. 1 7
Pelo testemunho de Carlos Fabris, pode-
se observar que os pequenos produtores
rurais endossaram.
-jil-jil
Porto Alegre em agosto de 1935. Correio da M a n h a , Arquivo Nacional .
p g . 2 6 . Ju l /dez 1997
-
R V
Eu era fascista (...) andava de camisa
preta, pregava no meu povoado em
C o n c e i o . Mas, e n t o veio o
integralismo e n s p e n s v a m o s que era
a mesma coisa e fomos para o
integralismo, nosso, brasileiro e n t o ,
com o Plnio Salgado. 1 8
Ou ainda, a associao entre os dois mo-
vimentos evidenciada no relato de frei
Veronese:
A AIB foi muito aceita na zona italiana,
com facilidade o colono recebeu o
integralismo, pois havia o exemplo do
fascismo italiano. Mussolini, enquanto
n o desbordou de seu sentido, tinha
belas i d i a s , fez muito pela Itlia, de-
senvolveu a agricultura, o trigo. Depois
desbordou... Havia muita simpatia por
Mussolini na zona italiana. 1 9
O apoio dado ao integralismo pela Ordem
dos Capuchinhos e, de resto, por mem-
bros de todo o clero brasileiro deveu-se
no s simpatia com o fascismo italia-
no, mas tambm a uma convergncia de
idias. A anlise da realidade brasileira e
das possveis so lues aos problemas
nacionais eram semelhantes. Da mesma
forma que a AIB, a Igreja catlica consi-
derava serem responsveis pela situao
crtica do pas o enfraquecimento do prin-
cpio de autoridade, a carncia de leis
constitucionais, a fraqueza da hierarquia
e da ordem e a infiltrao comunista. So-
bretudo esse ltimo fator, o suposto pe-
rigo iminente do comunismo, alterava a
classe sacerdotal. Medidas urgentes de-
veriam ser tomadas para evitar a propa-
gao daquela ideologia. Ma viso da Igre-
ja , o comunismo avanava sem t rguas e
para destru-lo no bastava reprimir as
suas manifestaes. Era preciso eliminar
quaquer foco que pudesse favorec-lo,
como a injustia social e econmica. As
disposies gerais do integralismo eram
apontadas como a grande esperana de
transformao nacional. Tratava-se de um
movimento que obedeceria o ideal da ver-
dade, da liberdade, da disciplina e do
nacionalismo. Num mundo subordinado
aos problemas de ordem material, onde
as correntes polticas agiam luz de pro-
blemas imediatistas e os princpios mo-
rais eram relegados a segundo plano, os
postulados cristos integralistas poderi-
am reconduzir a humanidade a seus al-
tos destinos, afastando-a, portanto, do
atesmo comunista. Combater as maze-
las sociais, nessa perspectiva, significava
tambm incentivar a populao a exercer
seu poder de voto:
O lugar dos c a t l i c o s e de todos os bra-
sileiros que ainda amam a integridade
da ptria na batalha das urnas em
defesa da nossa t rad io . . . A re l i g io
n o impede nem i m p e a a d e s o dos
c a t l i c o s ao integralismo (...) mas pode
ser de grande alcance ao futuro do Bra-
sil que ingressem no movimento os
c a t l i c o s leigos que tenham v o c a o
p o l t i c a . 2 0
Aos que acusassem os rel igiosos de
extrapolar suas funes ao imiscuir-se em
atividades polticas, os freis capuchinhos
alegavam que o estgio a que chegara o
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10. n 2, pp. 17-36, jul /dez 1997 - p g . 2 7
-
A C E
fascismo italiano fora alcanado principal-
mente com a ajuda do clero. Este traba-
lhara junto ao povo, incentivando-o a
melhorar seu sistema de cultura, instru-
indo-o e dando o exemplo direto. O go-
verno nacional deveria, portanto, seguir
o exemplo e aproveitar a vlida coopera-
o dos padres. Por fim, o integralismo
encampava uma defesa cara Igreja ca-
tlica, a defesa do sistema corporativo, o
qual era considerado o modo ideal de
organizao poltica. As corporaes es-
tabeleceriam a paz e a just ia, diminuin-
do os conflitos entre patres e emprega-
dos; objetivando a composio orgnica
da sociedade, eliminariam as lutas de
classe. Frente a tal comunho de interes-
ses, a AIB aparecia como uma alternativa
vivel na resoluo dos impasses nacio-
nais, como demonstra o depoimento de
frei Alberto:
Quando surgiu o integralismo houve
grande receptividade... no clero secu-
lar a maior ia era s i m p t i c a ao
integralismo, devido ao lema 'Deus,
Ptria e Faml ia' . Atravs do Stafetta
e n d o s s v a m o s com grande e s p e r a n a
as i d i a s do integralismo, pois acredi-
t v a m o s que seriam capazes de endi-
reitar o Brasil, e n t o em crise. Isto n o
era s exprimido em palavras, havia
t a m b m um certo ar de ufanismo. Ha-
via a c o n v i c o , aqui no Rio Grande do
Sul, de que o integralismo iria triunfar.21
lieste quadro favorvel, os 'camisas-ver-
des' da cidade empenhavam-se em refor-
a r a propaganda j feita pelos
p g . 28 . Ju l /dez 1997
capuchinhos na zona rural. Quando os
integralistas da sede chegavam para alar-
dear a nova causa, encontravam invaria-
velmente grupos de pessoas predispos-
tas converso imediata. Tratava-se, en-
to, de oficializar o trabalho de divulga-
o feito pelo clero. Referindo-se a essa
fase, o integralista cidadino Oswaldino
rtico comenta:
Ns p a s s v a m o s os domingos envolvi-
dos com isto. a m o s todos depois da
missa falar e distribuir folhetos. De ix-
vamos l i d e r a n a s locais encarregadas
de organizar o movimento. a m o s em
dois ou trs c a m i n h e s cheios de 'ca-
misas-verdes'. Era um movimento ca-
t l ico e aqui r a m o s todos c a t l i c o s . A
Igreja nos recebia muito bem, r a m o s
um b a t a l h o de frente da Igreja. As idi-
as nos empolgavam, a linguagem era
diferente, falava-se em modernidade,
civismo... Em Garibaldi, o movimento
n o estava organizado , eu e o
Compagnoni fomos l fazer propagan-
da, depois da missa d i s t r i b u m o s folhe-
tos. Mas j estavam todos esperando
por n s , pelo movimento. 2 2
A relao estabelecida entre o fascismo
italiano e o 'fascismo nacional' ajudou o
integralismo na canalizao das hostilida-
des latentes destes colonos a muitas d -
cadas de descaso das autoridades muni-
cipais e estaduais. A AIB aparecia como o
movimento poltico que lhes proporcio-
naria melhores c o n d i e s de v ida ,
ensejando, para tanto, a participao nas
atividades partidrias da regio. Os colo-
-
V o
nos acreditavam ter encontrado na AIB
uma forma de manifestao de seus di-
reitos frente aos partidos tradicionais.
Com dificuldades nas tcnicas de plantio,
problemas de escoamento da produo
conjugados com os baixos preos dos pro-
dutos agrcolas, os pequenos agriculto-
res desconfiavam da assim denominada
'poltica dos brasileiros' que pouco con-
tribua para a soluo de seus problemas.
A desa teno e a represso por parte das
autoridades governamentais diminura o
interesse poltico dos colonos. Sem fide-
lidades partidrias enraizadas e mesmo
avessos aos partidos regionais, constitu-
am-se num pblico em disponibilidade
poltica, lias palavras de frei Dionsio
Veronese:
lio interior, na zona rural, n o havia
partido. O colono n o se ligava a ne-
nhum partido. Mo tinha interesse na
pol t ica do p a s . Sua vida era cuidar da
faml ia, do trabalho. Para eles a polt i -
ca era c o n f u s o , n o queriam se meter
em c o n f u s o . O pouco contato que ti-
nham com a pol t ica nacional s decep-
cionava os colonos. O fato era que o
colono sentia-se muito prejudicado pela
falta de c o n d i e s , de transportes, de
conhecimentos. As melhorias n o che-
gavam na c o l n i a . A polt ica partidria
em nada adiantava para o colono, fo-
ram muito mal tratados. Se tinham que
votar, votavam e pronto. Havia muita
r e p r e s s o , perseguiam e matavam."
Por sua vez, entre o pequeno grupo urba-
no responsvel pela organizao local da
AIB, a doutrina e o sentido poltico do
novo movimento eram objeto de anima-
do debate. Tais lderes, em geral empre-
gados especializados do comrcio e da in-
dstria, acreditavam que o integralismo
prosseguia os ideais da Revoluo de
1930, dando ao episdio o seu verdadei-
ro significado. Decepcionados com os ru-
mos da poltica nacional na conjuntura do
ps-1930, classificavam uma outra revo-
luo, a Constitucionalista de 1932, como
o momento revelador da ca rnc ia de
substrato ideolgico das elites dirigentes
do pas. Essas visualizariam na prtica
partidria apenas a obteno de vanta-
gens e proveitos pessoais. Em meio a
busca de alguma manifestao poltica
que lhes atrasse, haviam, inclusive, fler-
tado com o comunismo, julgado pelo gru-
po, em ltima anlise, como por demais
violento e materialista. J as concepes
e os partidos liberais apareciam como 'an-
tigos', 'ultrapassados', desti tudos de va-
lor com seus 'polticos profissionais'. Sen-
do esses ltimos responsveis por todas
as mazelas e entraves nacionais, no
mereceriam confiana. Ao invs disso, o
integralismo, conhecido atravs dos jor-
nais, expressaria uma 'mudana de men-
talidade', um 'partido dotado de unidade
de idias' e, acima de tudo, o primeiro
partido que surgia no mundo fundamen-
tado numa 'filosofia espiritualista'. Em
contraposio ao agnosticismo comunis-
ta, defendia a crena em Deus. Da mes-
ma forma, o grupo era receptivo quanto
identificao entre a AIB e os movimen-
tos europeus.
Acervo, Rio de Janeiro, v. 10, n 2. pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 2 9
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A C E
Para Arthur Rech, militante do grupo, as
ligaes entre o integralismo e o fascis-
mo eram evidentes e positivas, pois mos-
travam a universalidade de uma idia, de
uma doutrina que deveria vingar no mundo:
Mesmo sendo os movimentos da mes-
ma ordem, n o q u e r a m o s uma identi-
f icao direta, nossa m i s s o era com o
Brasil. O verde simbolizava a terra bra-
s i le ira . Q u e r a m o s ser pessoas
marcadas na sociedade pelo exemplo:
virtude, religiosidade, disciplina, amor
pelo trabalho, isto o integralismo pre-
gava. Q u e r a m o s tudo nativo, r a m o s
brasileiros e n o italianos. Os imigran-
tes passaram a aderir camisa-verde,
deixaram de usar a camisa-parda. O
nosso movimento era melhor, era mais
d e m o c r t i c o . "
O ponto focai de interesse do grupo re-
pousava antes no que era percebido como
um apurado sentido nacionalista da AIB,
preocupada com assuntos de toda a na-
o e concebendo a idia de partido na-
cional ' , longe, portanto, das ambies
restritivas e dos imediatismos dos parti-
dos regionais. O comunismo, mais uma
vez, ia de encontro a esses princpios,
mostrando-se 'internacionalista'. Assim,
dentro do quadro poltico da poca, a AIB
teria se mostrado ao grupo como a op-
o mais promissora.
entusiasmados com a numerosa adeso
ao movimento na zona rural, com o apoio
de uma parcela do clero e com a sempre
crescente insero na prpria zona urba-
na, os integralistas articulam-se para as
eleies municipais de 1935. Como ban-
deira eleitoral, a moralidade e o controle
dos gastos pblicos: combatiam o aumen-
to de impostos, a criao de novas tribu-
taes e a proliferao de funcionrios;
defendiam a no sobrecarga de impostos
aos colonos agricultores e a poltica do
equilbrio oramentrio, com a compres-
so de todos os gastos. Para um partido
que havia se organizado em apenas um
ano na regio, os resultados do pleito
eleitoral foram extremamentes favorveis,
sendo os melhores que o partido obteve
no estado. A AIB elegeu em Caxias do Sul
trs vereadores, Arthur Rech (represen-
tante comercial), Humberto Bassanesi
(empregado do comrcio) e Emlio Pezzi
(comerciante), contra quatro vereadores
do partido situacionista, o PRL, equipa-
rando praticamente o pblico de eleito-
res. Ha votao geral, os vereadores do
PRL receberam 1.470 votos enquanto os
vereadores da AIB obtiveram 1.218. 2 5
A partir desse resultado e da atuao sem-
pre contrastante dos vereadores
integralistas na cmara municipal, a hos-
tilidade do partido governista, a t en to
relativamente contida em funo da pre-
sena do clero nas fileiras da AIB, tornou-
se ostensiva. As rivalidades latentes tor-
naram-se e x p l c i t a s e o movimento
integralista passou a ser alvo de ataques
constantes que visavam desacredi t- lo ,
pondo em dvida suas atitudes e seu ca-
rter. O PRL procurava identificar a AIB
ao comunismo, explicando que, em am-
bos os movimentos, o governo deixava de
ser uma expresso da vontade da maio-
p g . 3 0 . j u l / d e z 1997
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R V O
ria. Passava, antes, a representar apenas
os interesses de uma oligarquia, que im-
punha o seu poder atravs da violncia e
da fora. Da mesma forma, a AIB acu-
sada de servir aos propsitos do fascis-
mo italiano, preparando as condies
i n f i l t r a o es t rangeira no p a s . Os
integralistas seriam apenas verses mal
acabadas dos fascistas europeus, condu-
zidos por um mitomanaco disfarado de
salvador: Plnio Salgado, lia verdade, de-
nunciavam, a AIB teria se afirmado com-
batendo os operrios, os negros, os ju -
deus, a democracia, a liberdade e a inte-
ligncia. Era, portanto, um movimento
perigoso, destitudo de respeitabilidade e
motivado por intenes escusas. Parecia,
assim, incompreensvel o apoio que a
Igreja oferecia AIB. O jornal oficial do
PRL colocava nesses termos a considera-
da ingenuidade do clero:
A Igreja aconselha a i m p l a n t a o do
integralismo no Brasil. Que s igni f icar
a palavra Deus na p r t i c a do
integralismo o dia em que ele estiver
no poder? Por ventura, Mussolini j n o
a m e a o u a Igreja? Os regimes
m i n o r i t r i o s jamais p o d e r o tolerar
uma Igreja prestigiosa e popular, lia de-
mocracia nada tem a Igreja a temer. A
legenda integralista 'Deus, Ptria e Fa-
mlia' mais um engodo. 2 8
Em editorial, O Momento aponta quais ser iam as r a z e s de a d e s o ao
integralismo. De acordo com sua viso,
muitas pessoas eram atradas ingenua-
mente em funo da novidade poltica, da
oportunidade de aparecer, da falcia dos
postulados morais. Porm, as l ideranas
Exposio anti-Integralista no Teatro Municipal . Rio de Janeiro, outubro de 1957. Correio da M a n h , Arquivo Nacional .
Acervo. Rio de Janeiro, v. 10. n 2, pp. 17-36. Jul/dez 1997 - p g . 3 1
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A C E
que difundiram o movimento na regio
seriam indivduos condenados ao ostra-
cismo por evidente falta d