vauchez,_ andré _- a_ espiritualidade_ na_ idade_ média_ ocidental

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André Vauchez

A espiritualidadena Idade Média ocidental

(séculos VIII a XIII)

Tradução:Lucy Magalhães

Jorge Zahar EditorRio de Janeiro

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Título original:La spiritualité du Mojen. Agi! occidental(V/Ir-xnf siêde)Tradução autorizada da segunda edição francesa(revista e atualizada), publicada em 1994por Éditions du Seuil, na coleção Points / HistoireCopyright © 1994, Éditions du SeuilCopyright © 1995 da edição em língua portuguesa:Jorge Zahar Editor Ltda.rua México 31 sobreloja20031-144 Rio de Janeiro, RJ:"Te!.: (021) 240-0226/ Fax: (021) 262-5123Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação do copyright. (Lei 5.988)Capa: Ana Paula TavaresIlustração da Capa: Anônimo, Séc. XIll

(Paris, Biblioteca Nacional)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V482e.··. .Vauchez, André

A espiritualidade na Idade Média ocidental: (séculos VIII a XIll) /. André Vauchez: tradução Lucy Magalhães. - Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 1995.

204p.

Tradução de: La spiritualité du Moyen Age occidental

Inclui bibliografia

ISBN 85-7110-334-8

1. Vida espiri tual- Cristianismo - Histórias das doutrinas - IdadeMédia, 600-1500. L Título.

95-1723 CDD 248.0902CDU248(091)

Sumário

Introdução 7

I - Gênese da Espiritualidade Medieval(séc. vm - início séc. X) 11

1. Volta ao Antigo Testamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 122. Uma civilização da liturgia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 153. O moralismo carolíngio ,........... 184. Religiosidade popular e espiritualidade cristã ... '. . .. 22

11- A Idade Monástica e Feudal(final séc. X - séc. XI) 31

1. A espiritualidade monástica 35a) Prece e liturgia: o exemplo de Cluny ;.......... 35b) Vida angélica e desprezo pelo mundo 39

2. A influência da espiritualidade monástica. . . . . . . . .. 45a) Vida profana e vida religiosa . . . . . . . . . . . . . . . . .. 46b) O combate espiritual . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 51c) Deus presente na história 55

3. Da Reforma à Cruzada: rumo a umaespiritualidade da ação. . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . .. 57

m - A Religião dos Novos Tempos. .(final séc. XI - séc. XII) . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 65

1. Novas condições davida espiritual . . . . . . . . . . . . . . .. 652. O retorno às fontes: vida apostólica e vida evangélica. 703'.As transformações da vida religiosa 75

a) O eremitismo .'. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 77b) A vida canônica 82c) O novo monaquismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 86

4. Os leigos à procura de uma espiritualidade . . . . . . . .. 90a) Emergência do povo cristão: cruzadas, movimentos

evangélicos, heresias 91b) A serviço dos pobres de Cristo 111

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c) Os leigosna vida religiosa 116

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IV - O Evangelho no Mundo:Cristocentrismo e Busca da Santificação (séc. XIII -início séc. XlV) . _ _ 125

1.Amensagem espiritual das ordens mendicantes. _ 126a) Utopia e espiritualidade franciscanas .. _.. _ 126b) Fé, inteligência e união com Deus: asvias

dominicanas ..... _. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . 1342. O tempo dos leigos _. _. __ __. . . 139

a) Da Cruzada aos combates do século 139b) A religião voluntária: confrades, penitentes e

flagelantes _. . . . . . . . . .. . . . . 142c) Rumo a uma santidade leiga 146

3. O cristianismono feminino 149a) Nas pegadas de MariaMadalena 150b) Experiência espiritual e linguagem do corpo 153c) Tomando a palavra 155

Introdução

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v - o Homem Medieval à Procura de Deus.Formas e conteúdo da experiência religiosa 160

1. Peregrinação, culto das relíquias e milagres 1602.Arte e espiritualidade 1663. Uma conquista: a vida interior 1694. Nas origens da mística.ocidental ; 173

O que é espiritualidade? No limiar desta obra, é preciso definirtão claramente quanto possível uma noção que, segundo asépocas e os autores, assume significados muito diversos. A IdadeMédia não a conheceu e contentou-Se em distinguir entre doctri-na, isto é, a fé sob seu aspecto dogmático e normativo, e disciplina,sua prática, em geral no contexto de uma regTa religiosa. Apalavra spiriiualitas, que se encontra por vezes nos textos filosófi-cos a partir do século :xn, não tem conteúdo especificamentereligioso: designa a qualidade daquilo que é espiritual, ou seja,independente da matéria. Na verdade, a espiritualidade é umconceito moderno, utilizado somente a partir do século XIX. Paraamaioria dos autores, ele exprime a dimensão: religiosa da vidainterior e implica uma ciência dá ascese, que conduz, pela mística;à instauração de relações pessoais com Deus. Quando essa expe-riência, depois de receber uma formulação sistemática, passa deum mestre a seus discípulos, por meio de ensino ou de textossagrados, fala-se de correntes espirituais ou escolas de espirituali-dade. Assim, distinguem-se tradicionalmente as espiritualidadesfranciscana, inaciana ete.

Não devemos nos ater a essa definição, sem muita significa-ção para as épocas anteriores ao século XVI. Caso o fizéssemos,deveríamos limitar nosso estudo a um grupo numericamentemuito restrito, que coincide aproximadamente com a elite dosreligiosos. De fato, foi apenas na paz dos claustros - pelo menos

Conclusão ;. . . . . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . 180

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Bibliografia :................. 187

Índice onomástico e de grupos religiosos 193

Índice de lugares ...............•................. 198

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em alguns deles, pois nem todos foram centros de excelência paraa meditação e o recolhimento - que uma vida espiritual intensapôde surgir, baseada na busca da contemplação e expressando-seem tratados ascéticos ou comentários bíblicos. Masa história daespiritualidade não pode limitar-se a um inventário-e a umaanálise das obras nas quais se fixou a experiência interior dosmonges. Em nossa opinião, ao lado da espiritualidade explícitados clérigos e religiosos, formulada em textos escritos, existeoutra, que deixou poucos vestígiosnos textos, mas cuja realidadeconstatamos atravésde outros meios de expressão: gestos, cantos,representações iconográficas etc. Nessaperspectiva, a espirituali-dade não é mais considerada um sistema que codifica as regrasda vida interior, mas uma relação entre certos aspectos do mis-tério cristão, particularmente Valorizadosem uma época dada, epráticas (ritos, preces, devoções) privilegiadas em comparação aoutras práticas possíveisno interior da vida cristã. Efetivamente,as Sagradas Escrituras veiculam tantos elementos diversos quecada civilizaçãoé levada a fazer escolhas em função de seu nívelde cultura e de suas necessidades específicas. Sem dúvida, essasvariações se situam sempre no âmbito de certos limites impostospelos dados fundamentais da Revelaçãoe pela Tradição, os quaisnão é possível ultrapassar sem risco de cair na heresia. Mas naIdade Média, época em que a coesão dogmárica ainda não seestabelecera em todos os domínios e um fossoprofundo separavaa elite letrada das massas incultas; havia lugar, no próprio seio daortodoxia, para diversasmaneiras de interpretar e vivera mensa- 'gem cristã, isto é, para diferentes espiritualidades. É a história daformação dessas espiritualidades, de sua coexistência às vezesdifícil, de sua sucessão.no~~~mpQ"que desejamos traçar aqui. Anécessicladede urna apT~sentação histórica desses fenômenosreligiosos rios levará fatalmente a enfatizar as mutações. Não sedeve esquecer que o surgimento de uma espiritualidade nova sóraramente acarretará o desaparecimento daquela que prevaleceuanteriormente: o florescímento de Cister não impedirá Cluny decontinuar seu caminho próprio. Apenas o relegará ao segundoplano.

Essa definição da espiritualidade como unidade dinâmicado conteúdo de uma fé e da maneira pela qual esta é vividaporhomens historicamente determinados nos levará a atribuir umagrande importância aos leigos. Não para seguir a moda ou para

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minímizar a priori o papel e a influência dos clérigos. Mas como,até uma época recente, a atenção se concentrou de modo exces-sivamente exclusivo sobre estes últimos, parece-nos de acordocom a eqüidade e com a objetividade histórica ressaltar a origina-lidade da espiritualidade popular. Embora esse conceito não sejadesprovido de ambigüidade e ainda suscite controvérsias entre osespecialistas1, permanece válido em um nívelmuito geral. Defato,constataremos, ao longo desta obra, como fizeram outros his-toriadores com períodos diferentes, que os humildes integraramem sua experiência religiosa, tanto pessoal quanto coletiva, ele-mentos provenientes da religião que lhes fora ensinada e outrosfornecidos pela mentalidade comum do seu ambiente e do seutempo, marcada por representações e crenças estranhas ao cris-tianismo. Aliás, incapazes de ter acesso à abstração, os leigostenderam a transpor para um registro emotivo os mistérios fun-damentais da fé.Deve-se concluir, por isso,que a religião popularé apenas um conjunto incoerente de práticas e devoções?Não; eacreditamos, pelo contrário, que entre os analfabetos, que cons-tituíam a maioria dos fiéis entre os séculos VIII e XIII, algunstiveram uma concepção de Deus e 'mantiveram uma relação como divino que merece bem o nome de espiritualidade. Assim,procuraremos evidenciar o impacto que a mensagem cristã tevesobre as massas, de modo a fazer com que a história da es-piritualidade desça dos cumes onde por tanto tempo reinou.

NOTA

1.Cf. A.Vauch~z, "Uneenquête surIes spirjrualités populaires", Reoue'd'Histoire de la Spiritualiié. 49,1973, pA93-504. Sobre os problemas quese apresentam ao historiador pelo recurso à noção de espiritualidade,para a época medieval, ver La spiritualità medieuale: metodi, bilanci, pios-pettive, org. por C. Leonardi, Spoleto, 1987 (=Studi Medieoali, t. XXVlII,1987).

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em alguns deles, pois nem todos foram centros de excelência paraa meditação e o recolhimento - que uma vida espiritual intensapôde surgir, baseada na busca da contemplação e expressando-seem tratados ascéticos ou comentários bíblicos. Mas a história daespiritualidade não pode limitar-se a um inventário-e a umaanálise das obras nas quais se fixou a experiência interior dosmonges. Em nossa opinião, ao lado da espiritualidade explícitados clérigos e religiosos, formulada em textos escritos, existeoutra, que deixou poucos vestígiosnos textos, mas cuja realidadeconstatamos através de outros meios de expressão: gestos, cantos,representaçôes iconográficas etc. Nessa perspectiva, a espirituali-dade não é mais considerada um sistema que codifica as regrasda vida interior, mas uma relação entre certos aspectos do mis-tério cristão, particularmente Valorizadosem uma época dada, epráticas (ritos, preces, devoçôes) privilegiadas em comparação aoutras práticas possíveisno interior da vida cristã. Efetivamente,as Sagradas Escrituras veiculam tantos elementos diversos quecada civilizaçãoé levada a fazer escolhas em função de seu nívelde cultura e de suas necessidades específicas. Sem dúvida, essasvariações se situam sempre no âmbito de certos limites impostospelos dados fundamentais da Revelação e pela Tradição, os quaisnão é possível ultrapassar sem risco de cair na heresia. Mas naIdade Média, época em que a coesão dogmâtica ainda não seestabelecera em todos os domínios e um fossoprofundo separavaa elite letrada das massasincultas; havia lugar, no próprio seio daortodoxia, para diversasmaneiras de interpretar e viver a mensa- .gem cristã, isto é, para diferentes espiritualidades. É a história daformação dessas espiritualidades, de sua coexistência às vezesdifícil, de suasuce§são.nO.~tômpQ,quedesejamos traçar aqui. Anecessidade de unia apresentação histórica desses fenômenosreligiosos nos levará fatalmente a enfatizar as mutações. Não sedeve esquecer que o surgimento de uma espiritualidade nova sóraramente acarretará o desaparecimento daquela que prevaleceuanteriormente: o florescimento de Cister não impedirá Cluny decontinuar seu caminho próprio. Apenas o relegará ao segundoplano.

Essa definição da espiritualidade como unidade dinâmicado conteúdo de uma fé e da maneira pela qual esta é vivida porhomens historicamente determinados nos levará a atribuir umagrande importância aos leigos. Não para seguir a moda ou para

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miniroizar a priori o papel e a influência dos clérigos. Mas como,até uma época recente, a atenção se concentrou de modo exces-sivamente exclusivo sobre estes últimos, parece-nos de acordocom a eqüidade e com a objetividade histórica ressaltar a origina-lidade da espiritualidade popular. Embora esse conceito não sejadesprovido de ambigüidade e ainda suscite controvérsias entre osespecialistas1, permanece válido em um nívelmuito geral. De fato,constataremos, ao longo desta obra, como fizeram outros his-toriadores com períodos diferentes, que eishumildes integraramem sua experiência religiosa, tanto pessoal quanto coletiva, ele-mentos provenientes da religião que lhes fora ensinada e outrosfornecidos pela mentalidade comum do seu ambiente e do seutempo, marcada por representações e crenças estranhas ao cris-tianismo. Aliás, incapazes de ter acesso à abstração, os leigostenderam a transpor para um registro emotivo os mistérios fun-damentais da fé. Deve-seconcluir, por isso,que a religião popularé apenas um conjunto incoerente de práticas e devoções?Não; eacreditamos, pelo contrário, que entre os analfabetos, que cons-tituíam a maioria dos fiéis entre os séculos VIII e XIII, algunstiveram uma concepção de Deus e 'mantiveram uma relação como divino que merece bem o nome de espiritualidade. Assim,procuraremos evidenciar o impacto que a mensagem cristã tevesobre as massas, de modo a fazer com que a história da es-piritualidade desça dos cumes onde por tanto tempo reinou.

NOTA

1. Cf. A.Vauchez, "Uneenquête sur les splritualités populaires", Reoue'd'Histoire de la Spiritualité, 49, 1973', pA93-504. Sobre os problemas quese apresentam ao historiador pelo recurso à noção de espiritualidade,para a época medieval, ver La spiritualità medieuale: metodi, bilanci, pros-pettive, org. por C. Leonardi, Spoleto, 1987 (=Studi Medieoali, t. XXV1II,1987).

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CAPÍTULO I

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Gênese da Espiritualidade Medieval(séc. VIII - início séc. X)

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Mais ainda do que no campo da história política ou econômica,é muito difícil dizer, no que diz respeito à vida espiritual, quandoacaba a Antiguidade e quando começa a Idade Média. Entretanto,muitos elementos nos levam a pensar que a passagem de um tipode religiosidade para outro foi bastante tardia. De fato, o essencialda herança cultural do cristianismo foi assumido, pelo menos emum primeiro tempo, pelos reinos bárbaros que se edificaramsobre as ruínas do Império Romano, e às vezes até' enriquecidopor eles, como se constata na Espanha visigótica.Por outro lado,o florescimento do monarquismo, quefreqüentemente foi consi-derado como um fenômeno propriamente medieval, se inscreveno prolongamento das correntes ascéticas do século IV,•cujasínteseviv.i.dasão Martinho, na Gália, soube realizar. Não serianormal, aliás, que na história de uma religião, para a qual operíodo das origens constituía a referência obrigatória e a normaideal, a continuidade prevalecesse durante tanto tempo sobre amudança?

Outras razões também nos conduziram a reportar para oinício do século VIII o ponto de partida deste estudo sobre aespiritualidade medieval. Para que se possafalar de vida espiritual,é preciso que haja previamente não apenas uma adesão formal aum corpo de doutrinas, mas também uma impregnação dosindivíduos e das sociedades pelas crenças religiosas que elesprofessam, o que só pode se efetuar com o tempo. Ora, na maior

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12 .4 Espiruualidade na Idade Média Ocidental

parte das áreas rurais do Ocidente, exceto na região mediter-rânea, a conversão das populações à fé cristã só foi concluída porvolta dos anos 700. Ela foi mais tardia ainda em certas regiões daGermânia, onde o paganismo sobreviveu até a época de CarlosMagno. No total, foi apenas no século VIII que o cristianismoacabou se tornando a religião do Ocidente.

O Ocidente conheceu, no séculoVIII,asprimeiras tentativasde construção de uma sociedade cristã. Investidos de um podersobrenatural pela virtude da sagração, os soberanos carolíngiosse consideraram como responsáveis pela salvação do seu povo epretenderam reger a Igreja assim como regiam a sociedade pro-fana. Carlos Magno, que levou esses princípios até as últimasconseqüências, apareceu aos seus contemporâneos como um"novo Constantino", restaurador do Império cristão. Mas ali,como em outros domínios, os artífices do renascimento carolín-gio, ao mesmo tempo que se esforçavampor voltar à tradição, nãopuderam impedir-se de inovar consideravelmente, tão diferentese tornara o mundo no qual eles viviam. Sua ação em vista derestabelecer a religião cristã no seu antigo esplendor fez prevale-cer finalmente uma espiritualidade muito distante dados Padresda Igreja, e cujas características devemos estudar agora.

1. Volta ao Antigo Testamento

A cada etapa da vida da Igreja, os cristãos fizeram escolhas no seioda vasta herança bíblica e marcaram uma predileção especial porepisódios ou figuras que correspondiam melhor que outros àssuas aspirações. A alta Idade Média foi particularmente atraídapelo Antigo Testamentóç'tnàis de acordo com o estadoda.socie-dade e das mentalidades do tempo do que o Novo. Não é poracaso que, em um dos raros mosaicosda época que chegaram aténós - o de Germigny-des-Prés - Deus é representado sob aforma da Arca da Aliança. Em um Ocidente superficialmentecristianizado, que um poder centralizador tentava unificar como apoio do clero, ajerusalém dos reis e dos grandes sacerdotesnão podia deixar de exercer sobre os espíritos um fascínio es-pecial. Assimtambém, a Igreja desse tempo parece preocupada,antes de tudo, com a encarnação e o estabelecimento, procuran-do realizar na terra a Cidade de Deus. Na prÇlcuradesse objetivo,ela teve o apoio do poder leigo: os soberanos deram força de lei

Gênese da Espirituahdade Medieval 13

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aos decretos eclesiásticos que, na época precedente, eram letramorta, por falta de um braço secular que obrigasse a aplicá-I os.Assim,em 755, Pepino retomou em uma Capitular as decisões doConcílio de Ver referentes à obrigação dominical e à abstençãodo trabalho nesse dia.Aconteceu o mesmo com o pagamento dodízimo ao clero, tornado obrigatório pelos carolíngios. A Igreja,em retribuição, orava pelo rei, fornecia-lhe uma parte dos qua-dros da sua administração e contribuía para garantir a lealdadedos seus súditos, sacralizando ojuramento que, a partir de CarlosMagno, se tornou a base das instituições políticas.

Dessa coriformidade da cristandade da alta Idade Médiacom o antigo Israel; muitas vezes os historiadores destacaramapenas os aspectos mais espetaculares: Carlos Magno qualificadode "Davi"ou de "novoJosias", ou ainda a unção conferida pelasmãos dos bispos aos reis do Ocidente - Wamba em Toledo, em672, Pepino em 751,Egfiid na Inglaterra em 787- que fez delesos sucessores de Saul e de Salomão. Mas a influência do AntigoTestamento marcou muito mais profundamente asmentalidadesreligiosas e a vida espiritual.! Foi na época caroIíngia que ocristianismo se tornou uma questão de práticas exteriores edeobediência a preceitos. O Evangelho libertara o homem da escra-vidão da Lei, para retomar os termos de são Paulo. Mas esse idealde liberdade espiritual era inacessívelpara os povosbárbaros, cujainstalação sobre as ruínas do Império Romano constituiu, segun-do a expressão de Focillon, "uma irrupção da pré-história nahistória". No contato com eles, e à medida que penetrava emprofundidade nos campos, afé cristã corria o risco de degradar-seem práticas supersticiosas. Nessa .perspectiva, obrigar os povosbatizados aviverde novo sob a Lei, restabelecendo asobservânciasvétero-testamentárias, pode parecer, paradoxahnente, um pro-gresso espiritual.

Na verdade, o processo fora iniciado dois séculos antes nascristandades célticas, onde a Igreja preconizou uma imitaçãoliteral das instituições e das disposições legais do Antigo Tes-tamento, impondo aos fiéis uma respeitosa submissão ao clero ea este a obediência aos seus superiores hierárquicos. Sob a in-fluência dos monges "scots",muitas práticasjudaizantes se intro-duziram depois no continente, por exemplo a assimilação dodomingo ao Shabat e a obrigação legal do dízimo. O impacto daantiga Lei foi particularmente importante no campo da moral

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14 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

sexual, na qual muitos preceitos do Levítico voltaram a vigorar:impureza da mulher depois do parto, que ficavaexcluída da Igrejaaté a cerimônia da convalescença, abstenção de relaçôes conju-gais durante certos períodos do ano litúrgico, severas penitênciasinfligidas às poluções noturnasetc. A maioria dessas interdiçõese sanções permaneceriam em vigor até o século XIII. Isso mostraaté que ponto elas marcaram a consciência moral dos homens daIdade Média.

Na época carolíngia, a prática religiosa constituiu menos aexpressão de uma adesão interior do que uma obrigação deordem social. Se alguns clérigos, como Alcuíno no momento dacristianização forçada dos saxões, reafirmaram a doutrina tradi-cional da. liberdade do ato de fé, os leigos - e Carlos Magno foio primeiro - não tiveram nenhum escrúpulo em pôr em prática,da maneira mais brutal, a máxima Compelle intrare ("Força-os aentrar [na Igreja]"). Efetivamente, chegar-se-ia à idéia de quetodos os súditos do imperador cristão, com exceção do gruporestrito dosjudeus, deviam adorar o mesmo Deusque ele, pelosimples fato de que estavam sujeitos à sua autoridade. Essa con-cepção administrativa da religião não justificava apenas as con-versões forçadas; ela legitimava o uso do constrangimento físicopelo poder leigo, para reprimir os cismas e as heresias. Na reali-dade, a fé era considerada, antes de tudo, corno um depósito queo soberano tinha o dever de preservar e transmitir em sua inte-rgralidade. Assim, Carlos Magno reuniu e presidiu concílios para .decidir pontos de doutrina como a procissão do Espírito Santo eo culto das imagens, e multiplicou, na Admonitio generalis de 789,prescrições e exortaçõessobre avida religiosa dos clérigos eleigos.

.r: '. Nesse clima espiritual.vem .que.a Jgreja era, assimilada ao"povo de Deus" da Bíblia, a própria concepção do sacerdócio foifortemente influenciada pelo modelo do serviço cultual mosaico,Homem de prece e de sacrifício, mais do que de pregação ou detestemunho, o padre carolíngio estava próximo do levita. Aosolhos dos fiéis,ele aparecia como um especialista do sagrado, quese distinguia deles pelo conhecimento que tinha dos ritos e dasfórmulas eficazes. A própria evolução do sacramento da ordemtraduz bem essa tendência para distinguir os ministros do culto.Outrora conferido por uma simples imposição de mãos, ele foiacompanhado então por uma unção que fazia do padre o ungidodo Senhor, de acordo com o ritual descrito no Livrodos Números

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Gênese da Espiritualidade Medieval 15

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(III, 3). Os carolíngios favoreceram a pr2pensão do clero para i

formar uma casta sacerdotal, separada do resto do povo PõrSUãS //funções e seu status. Instituindo a monarquia episcopal - um->"bispo residente por diocese, um arcebispo metropolitano porprovíncia - ea igreja territorial- isto é, a obrigação para os fiéisde praticar no âmbito de sua paróquia - eles contribuíram paradar a esse corpo uma coesão crescente. Esse clero sedentarizadoe hierarquizado foi, por outro lado, dotado de privilégios jurídi-cos. As próprias igrejas não constituíam espaços sagrados ondeaqueles que se refugiavam gozavam do direito de asilo, reco-nhecido pelas leis civis desde o século VII? Os clérigos que aliserviam tinham, por sua vez, o privilégio do foro, que subtraía assuas pessoas e os. seus bens à jurisdição leiga, e o dízimo queassegurava a sua manutenção e a dos pobres.

2. Urna civilização da liturgia

Compreende-se melhor essa evolução quando sepensa na impor-tância assumida pela função cultual no seio do cristianismo,durante a alta Idade Média. Qualificou-se a época carolíngia de"civilização da liturgia".2 Essa fórmula é exata se entendermoscom isso que a religião se identifica então com o culto prestado aDeus pelos padres, que são os seus ministros. Os fiéis têm aobrigação moral e legal de assistir a ele. O próprio monaquismonão escapa a esse ambiente. Sob a influência de Benoit d'Aniane,a vida litúrgica toma um lugar crescente na vida dos monges, emdetrimento das atividades apostólicas, tão importantes no tempode sãoColomban e sâo-Bonifácio. '.

Mas.deve-seexaminar o que foi o espírito dessa liturgia.Foradós mosteiros, parece que ela deixou de ser a expressão comuni-tária de um povo em oração, para tornar-se, aos olhos dos fiéis,uma coleção de ritos dos quais eles esperavam tirar proveito. Defato, o ritualismo é um dos traços rnarcantes da vida religiosa dessaépoca. O imperador dava o exemplo, insistindo, em diversasCapitulares, no fato de que os padres deviam ter à sua disposiçãotextos litúrgicos corretos e recornendando-lhes vivamente quezelassem pela limpeza dos vasos sagrados: aos seus olhos, o res-peito escrupuloso dos ritos era indispensável para que o cultodivino tivesse todos os seus efeitos salutares, dos quais se benefi-ciavam os indivíduos e a coletividade inteira. Mais uma vez, a

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influência do Antigo Testamento retomava vigorosamente: ossacramentáhos do século VII se enriqueciam com novas cele-brações, inspiradas diretamente no Livro do Êxodo, como as queacompanham a dedicação das igrejas, suntuoso ritual marcado

}'pornumerosas aspersões de água benta e uso de incenso, ou ainda.,~} a sagração real.

II j -' I Na própria missa, a dimensão ecIesial do sacrificio passou~~ . i, ) para o segundo plano. O individualismo, aliás, era um dos com-i '-';;.>r ponentes fundamentais do clima religioso dessa época. Ele se-.~l manifestava nos padres, que começavam a celebrar missas parti-,; ',\! culares, sem assistência, e missas votivas por intenções particu-<, '\ lares. Quanto aos leigos, não tinham mais um papel ativo no culto

, depois que este se tomou apanágio de especialistas. O cantolitúrgico assumiu uma importância crescente nos oficioso Porcausa de sua dificuldade, só podia ser executado por cantoresformados nas escolas catedrais ou nos mosteiros.' A adoção docanto gregoriano - ou romano - sob a influência de CarlosMagno, introduzindo em muitas regiões modos de expressão.estranhos à liturgia local, tornou ainda mais dificil a participaçãodos fiéis no oficio. A evolução posterior do canto religioso devia,aliás,fazer-seno sentido de uma complicação cada vezmaior, como aparecimento da polifonia (inicialmente a duas vozes), no sé-culo X, principalmente nas abadias de &.unt-Galle Saínt-Amand.A disposição interna das igrejas só podia favorecer a passividadedos fiéis: ficavam de pé na nave, separados do santuário pelocancelo, e do altar pelos coros dos clérigos que salmodiavam naschola cantorum. O celebrante lhes voltava as costas e dirigia-se aDeus em nome, deles. A partir do século Vl,II,Q padrevque atéentão oferecia o sacrificio eucarístico.dizendo "qui tibioff~nthocsacrificium laudis", sentiu a necessidade de acrescentar a fórmula"uel pro quibus tibi offerimus". Isso mostra bem o muro que seergueu entre o clero e os fiéis. "Presentes fisicamente a umespetáculo por vezesbrilhante, em geral morno, cujo sentido nãosabem ao certo, sem o hábito de rezar individualmente, quasenunca convidados a orar em comum, os leigos se entediavamdurante a missa, por não participarem dela.t'"

O fato de que o latim permaneceu como língua da liturgiacontribuiu também para tomá-Ia estranha aos fiéis. Pode parecersurpreendente que, mesmo nas regiões em que a quase totalidadeda população só falavaidiomas germânicos, o uso da língua vulgar

Gênese da Espirituaiidade Medieval 17

não tenha conseguido impor-se no culto, como foi o caso, namesma época, nos países eslavoscristianizados por Bizâncio. Mas,sendo a única língua escrita e logo a única utilizável na liturgia, olatim gozava de um prestígio sem rival. Por outro lado, os clérigoscarolíngios ficaram fascinados por Roma e sua cultura, e todos osseus esforços no plano literário tendiam para restaurar a boalatinidade e o uso das formas clássicas.Traduzir a Vulgata parauma língua românica ou germânica teria sido, para eles, umatarefa simultaneamente sacrílega e inútil, pois de qualquer modomuito poucos leigos sabiam ler. O resultado foi que o conhe-cimento da língua cultual tomou-se privilégio exclusivo dos cléri-gos e que a liturgia se transformou em uma nova disciplina doarcano.

Mais grave ainda, e com sérias conseqüências, foi a novaconcepção do Sacrificio, que começou a prevalecer nessa época.Como mostrou J-A Jungmann,4 a missa carolíngia era menosuma ação de graças dos fiéis do que um dom concedido aoshomens por Deus, descendo do céu à terra. O momento dessavinda se situa durante o Cânon, a partir de então recitado em vozbaixa, como que para sublinhar o aspecto misterioso da transfor-mação do pão e do vinho. A evolução dos ritos concorreu, alémdisso, para que se perdesse de vista a relação que existia entre osacramento e a vida cotidiana. A partir do século VIII, não se usamais pão fermentado para a comunhão, mas hóstias brancas eredondas de pão ázimo, enquanto o vinho consagrado só édistribuído aos fiéis em raras ocasiões. Não há mais fração do pãoe as oferendas feitas pela assembléia se reduzem a algumas moe-. das. A comunhão é recebida na boca e não mais nas mãos, pelosfiéis que,dorayante, .seajoelham no banco decomunhão. Essa ,./,.,;'preocupação de eliminar tudo o que pudesse haver de realista e l<~..:de concreto no sacramento do altar foi ainda mais acentuada por L--certos grandes prelados carolíngios. Amalaire, especialmente,autor de um importante tratado litúrgico intitulado De ecclesias-ticis officiis, deu uma interpretação simbólica da missa: as fasessucessivas da cerimônia, os ornamentos do celebrante, os ins-trumentos do culto remetem, segundo ele, a diversos episódiosbíblicos, em virtude de analogias sutis. O conjunto do SantoSacrificio, nessa perspectiva, se torna uma espécie de alegoriacomemorativa da vida de Jesus. Embora as concepções de Ama-laire tenham sido condenadas pelo Sínodo de Quierzy em 838,

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elas acabariam se impondo e prevalecendo durante a maior parteda Idade Média. ~ .....

Durante as cel brações eucarísticas recepção do Corpo deCristo parece ter-si o quente. São Bonifácio, no séculoVIII, a recomendava nas grandes ocasiões, isto é, quando dasprincipais festas do ciclo litúrgico: Natal, Páscoa e Pentecostes.Entretanto, advertia os fiéis contra as comunhões sacrílegas. Esseúltimo conselho foi, provavelmente, mais seguido do que o pri-meiro. Quando Ambroise Autpert enumera os deveres dos leigos,fala do jejum, das mortificações e da esmola, mas não mencionaa comunhão. Mas quando ela ocorre, parece ser a ocasião de umcontato mais mágico do que espiritual com o divino: comungar,para os fiéis, não era, antes de tudo, aderir a essa divindademisteriosa e terrível, em nome da qual os santos operavam gran-des milagres? No século XI, os camponeses ainda se apoderariamde hóstias consagradas, para enterrá-Ias nos campos, a fim degarantir a sua fertilidade. Essaspráticas e outras similares, men-cionadas pelos penitenciais da época, explicam talvez as reticên-cias dos clérigos e o pouco empenho que tinham em fazer comque seus fiéis comungassem.

3. O moralismo carolíngio

Reduzir a um puro ritualismo toda a religiosidade da épocacarolíngia seria compreendê-Ia mal. Essa fé pouco interiorizadaprocurava expressar-se em outros registros, e principalmente,..queria realizar-se nas obras. E. Delaruelle enfatizou o valor posi-

j tivo desse "moralismocarolíngio" que tendia a conscientizar os/ indivíduos sobre as exigências éticas.do cristianismo, reintrodu-! zindo no domínio político asnoções dejustiça e de virtude através

da ideologia imperial." O rei merovíngio era, realmente, umdéspota que recebia o seu poder dosangue. Seu arbítrio só eralimitado pela guerra civil, pelo assassinato e pelo temor supers-ticioso de Deus e seus santos. O soberano carolíngio, em razão dopapel que desempenhava na Igreja e na sociedade, aparecia comoum verdadeiro pastor responsável pelas almas. Essa nova concep-ção da função real era uma conseqüência da sagração. Esta davaao príncipe um prestígio de ordem sobrenatural, mas os bisposque lhe conferiam a unção tinham então poder sobre ele. Arealeza "sagrada" não está muito longe da concepção ministerial

Gênese da Espintualidade Medieval 19

do poder leigo, segundo a qual o soberano tem por missão pôr asestruturas do Estado a serviço da Igreja. Os últimos reis visigodosfizeram essa amarga experiência na Espanha, às vésperas daconquista árabe. O mesmo fenômeno se reproduziu no Impériocarolíngio desde o reino de Luíso Piedoso, que, em Saint-Médardde Soissons, em 833, teve que se submeter à penitência pública,sob pressão dos bispos e dos nobres, por ter faltado aos seusdeveres para com os filhos. De fato, o príncipe era julgado pri-meiramente por sua conduta, que devia constituir um modelopara os súditos. A Igreja podia retirar o apoio que prestava aorei, se concluísse que este se tornara indigno. Quanto mais aautoridade dos soberanos carolíngios se enfraquecia, mais elesse viram chamados aos seus deveres por prelados co~o o arcebis-po de Reims, Hincmar, que se mostrou particularmente exigente.

O que valia para o rei também valia para os príncipes enobres que viviam na corte. Para uso dessa alta aristocracia, osclérigos redigiram, no século IX, os Specula principis (Espelhos dJpríncipe), que dão grande importância às exigências morais; aced-tua-se especialmente o cumprimento do dever de estado: ,6spoderosos são convidados a pôr o seu poder econômico e milit'f aserviço do ideal cristão e a utilizá-Ioem favor da Igreja e dos fraéos.Parece que esses textos tiveram uma certa repercussão, pelomenos no meio ao qual eram destinados, como provam tratadosde vida espiritual e de edificação escritos por alguns aristocratas,como o Manual redigido por volta de 843 por Dhuoda, esposa domarquês Bemard de Septimanie, para o seu filho mais velho. ti Essapiedosa mulher apresenta a vida cristã como uma luta que exigeesforços contínuos. Ao fim de longos e perigosos combates contraos vícios, a alma sobe 0515 degraus da.perfeição e triunfa sobreomal pelapenitência, pela prece e pela 'esmola: Esta 'é, para Ospoderosos, uma obrigação estrita; ela lhesassegura, em contra"partida, o reconhecimento dos pobres, que devem pedir a Deuspor se~s benfeitores.

Tratados desse gênero não podiam, entretanto, aperfeiçoaro nível religioso do conjunto da sociedade. A grande maioria dosleigos não se preocupava com essa literatura, que apenas demar-cava códigos de vida espiritual compostos para clérigos. Foi issoque um dos melhores espíritos da época, o bispoJonas de Orléans,compreendeu. Escreveu uma obra intitulada De in,stitutione laicali,por volta de 830, na qual tentou oferecer aos simples fiéis - e em

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particular aos esposos - um ensino adaptado ao seu estado.Existem nela interessantes desenvolvimentos sobre a santificaçãodo casamento e a moral conjugal, assim como sobre o ministériopastoral próprio aos chefes de família. Mas a originalidade dessetratado reside menos no seu conteúdo do que na sua intenção.Jonas de Orléans procurou lançar as bases de um ordo laicorum,isto é, uma forma de vida cristã, para uso dos fiéis, comparável àque a Igreja e o poder civil desejavam que o clero adotasse. Desdeo fim do século VIII, este era convidado a se transformar em umordo canonicus, segundo a.regra de são Chrodegang (morto em766). Obrigando os clérigos à prática da vida comum, ela impli-cava a assiduidade ao oficio e à continência. Do mesmo modo, oscarolíngios se esforçaram por reformar o monaquismo, impondoa estabilidade aos religiosos e uniformizando as observâncias noseio de um ordo monasticusregido pela regra de são Bento. Aidéiade estender aos leigos o beneficio de um estilo de existênciaregrado, se não regular, era original, mas certamente ousadademais para a época. Se a Igreja conseguiu que o poder proibisseo divórcio e o incesto, fracassou em seus esforços para moralizara vida sexual dos leigos e não pôde pôr fim aos raptos e aoconcubinato. Mas em geral, o moralismo carolíngio teve efeitospositivos no plano espiritual, na medida em que valorizou asexigências éticas da fé cristã e a necessidade de traduzi-Ias emcomportamentos.

A mesma preocupação fundamental inspirou as transfor-mações do sacramento da penitência. A partir do século VII,monges irlandeses e "scots" difundiram no continente o sistemada penitência tarifada, que rompia com a disciplina antiga. Nosprimeiros 'séculos do crisuanlsrno,Qprocesso penitencial era'públicoe comunftário.D penitente devia: se apresentar ao bispo'no início da quaresma, para ser reconcíliadopor ele diante daassembléia eclesial na Quinta-Feira Santa, ao fim de cerimôniassolenes e complexas. Por outro lado, só podendo ter acesso àpenitência uma vez na vida, o pecador permanecia até a morte su-jeito a numerosas interdições, que o excluíam, particularmente,da vida conjugal e social. Na nova disciplina, ao contrário, osacramento era reiterável tantas vezes quantas o fiel julgassenecessário. Bastava-lhe para isso dirigir-se a um simples padre, ouaté mesmo a um leigo em caso de necessidade. O pecado era per-doado depois do cumprimento de penas infligidas pelo confessor

Gênese da Espiritualidade Medieval 21

de acordo com uma tarifa indicada em livros chamados peniten-ciais. Todo o processo era secreto e puramente privado; a Igrejasó intervinha na pessoa do padre. Esses novos usos estavamparticularmen te bem adaptados a espíritos familiarizados há mui-to tempo com a idéia de compensação - o wergeld ou multa decomposição-, cujo montante era fixado por um tribunal, a títulode reparação pelo sangue derramado. A hierarquia eclesiásticatentou opor-se a essa transformação do sacramento e restabelecerem todo o seu rigor as regras antigas; ela só conseguiu, na épocacarolíngia, dissociar o caso dos pecados públicos, para os quais seexigia uma penitência pública, do caso dos pecados secretos, paraos quais se admitia a penitência privada segundo o sistema tarifa-do.?

O sucesso das formas novas se explica facilmente: os fiéis,vivendo mal e orando pouco, eram esmagados por um sentimen-to de culpa do' qual só podiam esperar libertar-se na hora damorte. Assim, acolheram com alegria a possibilidade de obter aabsolvição a cada vez que o desejassem, pela confissão e expiaçãode suas faltas. Entretanto, as penas previstas pelos penitenciaiseram muito pesadas; elas tinham sido fixadas pelos monges célti-cos em função de um povo ainda pagão, ao qual eles sonhavamimpor um ideal ascético. Daí as punições que duravam um núme-ro impressionante de meses - quando não eram anos - de jejume de mortificações diversas. Apesar da depuração que esses textossofreram na época carolíngia, como se vê por exemplo no peni-tencial do bispo de Cambrai, Halitgaire, as penas infligidas conti-nuavam severas, muitas vezes excessivamente severas para um só

. homem. Daí a prática, muito freqüente desde o século VIII, doresgate das penitências canônicas por obras de substinriçâo.jrràisfáceis de executar, e até, no fim do século IX, por multas oudonativos em dinheiro, o que foi admitido pela primeira vez em895, no Sínodo de Tribur. Limitado inicialmente a certos peca-dos, esse uso não tardou a estender-se a todos. Evolução significa-tiva, na medida em que implicava uma pressão constante dosleigos sobre o clero, para obter mais barato a remissão dos seuspecados.

A despeito do caráter muito materialista dessas práticas, anova disciplina penitencial teve como efeito elevar o nível religio-so dos fiéis. Os penitenciais difundiram no Ocidente uma elas-sificação dos pecados que permitiu um refinamento da vida

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moral; ao lado das três faltas irremissíveis que a Igreja primitivaconhecia - idolatria, fornicação e homicídio - figuravam pelaprimeira vez os oito pecados capitais: gula, luxúria, cupidez,cólera, tristeza, acedia (pessimismo, repugnância) ,jactância, orgu-lho. Além disso, constata-se uma concepção muito 'simples dapenitência, querepousava sobre o velho preceito médico: contra-ria contrariis sanantur. Assim, para ser perdoado, o clérigo cúpidodeveria dar esmolas abundantes, o instável deveria impor-se umaexistência sedentária. O primeiro objetivo do sacramento não erarestabelecer um equilíbrio interior comprometido pelo pecado?Desprovidos de ambições espirituais, esses textos veiculam umaconcepção muito prática e concreta das relações do homem comDeus, considerado como garantia da lei moral. A absolvição dopecado dependia dos esforços do homem e do seu zelo emreparar a falta cometida, mas esta era apresentada, antes de tudo,como uma ofensa feita a Deus, cujo perdão estava subordinado aum pedido e a um sentimento de contrição. Assim, por meio dapenitência tarifada, esboçava-se um novo tipo de relações "entreo cristão e um Deus que dispensa as suas graças em troca desacrifícios" (G. Le Bras).B

4. Religiosidade popular e espiritualidade cristã

As transformações da disciplina penitencial expressam, em últimaanálise, a aspiração dos fiéis de encontrarem uma via de acessopara a salvação, apesar da desvantagem que, em relação a isso, oseu .estado c?nstit.,uía.As clivagens .9ue se es~be:.leceram P? seio

.. da Igreja fizeram ido sagrado o apanágío dos clérigos e dosmonges, únicos que tinham a possibilidade de dedicar-se à ora-ção, à recitação de salmos e à leitura das Sagradas Escrituras. Semdúvida, uma elite de leigos letrados, no seio da alta aristocracia,imitava esse estilo de vida religiosa, como mostra a existênciade Libelli precum, libretos de preces para uso dos fiéis estreita-mente inspirados pela prece litúrgica. Mas ;:1$ massas não tinhamacesso a esses textos e se contentavam com algumas práticasreligiosas, no contexto de uma vida que não era .religiosa:abster-se de relações conjugais nos tempos prescritos, jejuar naquaresma, assistir à missa dominical e pagar o dízimo. Percebe-seque o desejo do divino que podia existir neles não ficava satisfeitocom esse programa de perspectivas limitadas. Assim, ficavam

Gênese da Espiritualidade Medieval 23

tentados a procurar em outro lugar uma resposta para suas ex-pectativas.

Deparamos aqui com a questão muito delicada da religiosi-dade popular. Através de testemunhos indiretos, especialmentede condenações formuladas por concílios ou contidas nos peni-tenciais, pressentimos que a vida espiritual das massas transbor-dava dos limites obrigatórios da instituição eclesiástica, e até dodogma cristão. Isso não vaie apenas para regiões recentementearrancadas ao: paganismo, como Saxe, para a qual o lndiculussuperstitionum, redigido pouco depois da conquista da regiãopor Carlos Magno, nos dá uma nomenclatura bastante precisadas crenças locais. Mesmo nas regiões cristianizadas de maislonga data, a religião oficial ainda era apenas, em muitos casos,um verniz que recobria superficialmente elementos heterogê-neos qualificados de "superstições" pelos clérigos. Não que opaganismo antigo ou germânico tivesse sobrevivido como umcorpo de doutrinas coerente; o que aliás ele nunca fora. Mastoda uma rede de instituições e de práticas, das quais algumasdeveriam ser muito antigas, constituíam a trama de uma vidareligiosa que se desenrolava à margem do culto cristão. Não sesabe, por exemplo, quais eram exatamente as atividades das"guildas" ou das "confrarias" leigas, denunciadas pelo arcebis-po Hincmar, de Reims, mas pode-se legitimamente supor quea mútua ajuda não era a sua única função. Compreende-semelhor a importância dada aos astros e a tudo o que podiaacontecer de extraordinário no céu." Como notava ainda, nolimiar do século XI, o bispo Burchard, de Worms, no seupeni tencial intitulado Corrector siue medicus, os fiéis adoravam oselementos, o curso das estrelas e até os eclipses. A lua nova eraum momento crucial, esperado para construir as casas ou paracontrair casamento. Nesse período do mês produziam-se reu-niões noturnas, durante as quais, segundo o prelado, "tentava-se restituir o seu brilho à lua nova, por meio de gritos ou deoutra forma, uivava-se para socorrer os astros ou para pedirajuda".lO Em outro trecho do seu tratado, ele faz ao seu peni-tente a seguinte pergunta: "Fizeste tuas preces em outro lugarque não fosse a igreja, perto de uma fonte ou de pedras, pertode árvores ou na encruzilhada dos caminhos>"!' Outros peni-tenciais sancionam a confiança nosarnuletos e nos sortilégios,a crença nas feiticeiras, nos bruxos e nos maus espíritos.

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Essas descrições, apesar de sua imprecisão, obrigam a in-dagar que idéia tinham de Deus a maioria dos contemporâneosde Carlos Magno ou de Hincmar: talvez ele fosse percebido comouma força misteriosa, que podia se manifestar a qualquer momen-to e em qualquer lugar. Entretanto, pensava-se que esse poderestava particularmente presente nos lugares sagrados e que elenão se exercia de modo cego. Na mentalidade comum, ele seidentificava mais ou menos confusamente com o bem e a justiça,garantindo os juramentos e punindo os perjuros. Em certascircunstâncias, ele não podia deixar de intervir em favor dosinocentes e designar os culpados. Esse é o fundamento religiosodos ordálios, dos quais os principais eram a prova do fogo, a daágua e o duelo judiciário. Este último era o meio de prova comumpara os homens livres. Em 809, Carlos Magno deu valor legal aessas práticas, prescrevendo "que todos tenham confiança nojulgamento de Deus". Certos prelados, especialmente o arcebispode Lyon, Agobard, e até, mais tarde, os papas Nicolau I e EstêvãoV, condenaram inutilmente os ordálios, sublinhando o fato deque osjulgamentos de Deus são insondáveis; eles não foramouvidos e até apareceram novos, de aparência cristã, como a provada hóstia consagrada.

Na verdade -:- e esse é um elemento da mais alta importân-cia para a evolução posterior do cristianismo - a espiritualidadedo clero e a dos fiéis não constituíam nessa época dois mundosisern comunicação. Fora de uma elite muito restrita de bispos e/ abades, que' se esforçavam por permanecer fiéis à tradição patrís-! tica e tentavam em vão opor-se à evolução em curso, os clérigos/ participavam da mesma cultura ou incultura ~ que os leigos,/ e.sofriam, a influência da mentalidade reinante. Assim, viu-se. a

Igreja, durante muito tempo reservada em relação a certas orien-tações da piedade popular, acolher, na época carolíngia, as quelhe pareceram compatíveis com a doutrina cristã. Ela assumiuespecificamente o culto dos mortos, como mostra, no século IX,a instituição: da festa de Todos os Santos, que satisfez uma as-piração essencial da piedade popular, enfatizando a vocação paraa salvação dos fiéis defuntos. Na mesma época, sob a influênciade Alcuíno, o Memento dos Mortos foi introduzido no Cânon damissa.

Encontram-se as mesmas interferências entre a espirituali-dade popular e a dos homens de Igreja no domínio do culto dos

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anjos e dos santos. Diante de um Deus-Juiz, simultaneamentelongínquo e onipresente, os fiéis se sentiam desamparados. Assim,eles tiveram a necessidade de recorrer a intermediários. Essepapel foi representado inicialmente pelos anjos, que ocupavamum lugar importante na vida religiosa da época. Viam-se neles,antes de tudo, seres celestes destinados a tarefas precisas, das quaisa principal era a proteção dos homens. Os arcanjos, únicosindividualizados, eram os gênios tutelares das comunidades hu-manas e dos detentores do poder. Os três mais conhecidos,Miguel, Gabriel e Rafael, eram honrados com um culto especiale podiam ser representados nas igrejas, em virtude de uma deci-são tomada pelo Concílio romano de 745. Os dois primeiros seencontram frequentemente, na iconografia da época carolíngia,associados à figura central do Cristo: Deus está sempre cercado eadorado por um cortejo de seres espirituais. Estes eram, entretan-to, demasiado imateriais para atrair a atenção dos fiéis. Só sãoMiguel, como guardião do paraíso e intercessor pelos homens nomomento do Julgamento Final, gozava de uma real popularidade,atestada pelo grande número de santuários que lhe foram dedi-cados nessa época. Nos séculos IX e X, ele até tomou o lugar deCristo nas igrejas-pórticos, anteriormente reservadas ao culto doSalvador.

Esse é apenas um exemplo da importãncia crescente doculto dos santos na piedade da época. Na verdade, os servidoresde Deus interessavam menos aos leigos pelas suas virtudes, que aliteratura hagiográfica de origem exclusivamente clerical ressalta,do que os seus poderes. Procuravam-se apaixonadamente as suasrelíquias, isto é, partes de seu corpo 'ou até objetos que tiveramcontato com eles durante sua, vida ou depois de sua morte.Tocá-Ias ou simplesmente aproximar-se do túmulo ou do escrínioque as continha era, para os fiéis, uma ocasião privilegiada paraentrar em contato com o outro mundo e principalmente paracaptar; para seu proveito, o dinamismo benéfico que delas ema-nava, para obter a vitória ou a cura. Aliás, os clérigos não eram osúltimos a acorrer a Roma para comprar ou roubar, em grandequantidade, os restos dos mártires, dos quais certas regiões dacristandade estavam infelizmente desprovidas. Tudo isso ocasio-nou abusos graves, que o episcopado carolíngio tentou limitar,lançando as bases de uma disciplina do culto das relíquias. Multi-plicaram-se os traslados solenes dos corpos santos, que se acompa-

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nhavam de cerimônias religiosas. Multidões de leigos compare-ciam, convencidos de que a vibração dos preciosos restos setornava mais eficaz quando eles eram elevados da terra e transfe-ridos em grande pompa de um lugar para outro. Principalmente,a Igreja deu um lugar mais notável ao santoral na liturgia. Foi noI século VIII que se estabeleceu, em são Pedro de Roma, o costume

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' de recitar as litanias dos santos, que Alcuíno introduziu depois noofício monástico. O ciclo das festas se enriqueceu consideravel-

, mente em relação ao dos primeiros séculos. Além das festas daVirgem, começou-se a celebrar por toda a parte os aniversáriosdos apóstolos e dos evangelistas, os Santos Inocentes, são Marti-nho e as festas da dedicação e dos patronos de cada igreja. Emmuitos lugares, celebravam-se também são Miguel, são Lourençoe a Invenção. da Cruz. Esta última devoção era muito cara aosmonges, e Alcuíno, que devotava um culto especial ao instrumen-to da salvação, escreveu um oficio da Santa Cruz.

De modo geral, a Igreja esforçou-se para cristianizar a atmos-fera de sacralidade difusa que cercava os principais atos da vidana religiosidade popular. Assim, apareceram, ao lado da liturgiaeucãrística, todo tipo de paraliturgias, das quais as mais impor-tantes eram as bênçãos e os exordsmos.F As primeiras dirigiam-seaos alimentos e aos instrumentos de trabalho. Pronunciavam-sefórmulas especiais sobre a água, o pão, o vinho, o óleo e os frutos,os barcos, as redes de pesca etc. Outras garantiam proteção contraas calamidades naturais, os animais ferozes, os perigos das viagens.Os círios bentos na festa de são Blaise eram uma garantia contrao trovão e o granizo. Enfim, a doença e sobretudo a loucuraeram combatidas cQm exorcismos.acompanhados de sinais-da-cruz.xíestinadosa expulsar o demônio, autor de-todo mal físicoou moral. Por essa profusão. de ri tos, a,19rejá procurava impre:"gnar de religião a existência cotidiana dos fiéis. Atingiu o seuobjetivo - até demais -, pois estes foram levados a atribuiraos ritos um poder mágico e a dar~lhes tanta importância, oumais, quanto aos sacramentos propriamente ditos.

O risco de desvio não era imaginário, como se viu no casodos ordálios. De origem leiga, isto é, pagã, essas cerimôniasforam cercadas, desde o século IX, de formas litúrgicas. Em geral,eram precedidas de uma missa, depois da qual se benziam. osobjetos que seriam utilizados para ojulgamento de Deus. Fora deRoma, onde não eram prestigiados, os ordálios foram aceitos pelo

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clero. A hagiografia carolíngia dá muita importância à prova dofogo, que permitiu, por exemplo, a santa Ricarda testemunhar asua virgindade. Ainda no começo do século XII, os bispos do norteda França recorriam, para confundir os heréticos, à prova daágua: Os acusados eram jogados em águas profundas e aquelesque fossem arremessados pelas ondas eram designados comoculpados à vingança popular. Ao termo dessa evolução, o profanonão se distinguia mais de um sagrado cuja definição precisa ospróprios clérigos eram incapazes de dar. Entre a unção real e aconsagração do Corpo de Cristo, não havia diferença de natureza:tudo é sacramentum.

Nesse clima de sacralidade indiferenciada, não se podia i

tratar de vida interior, no sentido em que nós a entendemos. Ohomem entrava em relação com o sobrenatural através de fórmu-las e principalmente através de gestos, pelos quais se expressavamos seus estados de alma. Na própria liturgia, multiplicavam-senessa época os sinais rituais. Alguns exteriorizavam simplesmenteo sentido das palavras pronunciadas, como fazia o padre ao baterno peito no momento do Confiteor. Mas outros elementos dessasimbólica gestual mostram uma preocupação de comunicaçãodireta com Deus, como a abertura dos braços durante a leiturado Cânon ou os .muitos sinais-da-cruze beijos no altar queescandem as fases principais da missa. De modo geral, ás formase o significado da ação cultual evoluíam. As representaçõesdramáticas centradas em episódios espetaculares da vida doCristo ocupavam um lugar crescente. Nos ludi ou jogos sacros,compostos pelos monges, cujo melhor exemplo é o famosoQuem.· queritis in ...sepulchro, representavam-se a deposição docorpo,<a ressurreição ea descoberta do túmulo.vazio pelassantas mulheres na manhã de Páscoa. A introdução de seqúên-cias dialogadas e de interrogações alternadas orientava a aten-ção para o relato histórico, apresentado mais sob seu aspectopitoresco do que como uma meditação sobre o mistério pascal.A maneira de celebrar este último evoluiu, aliás, de modosignificativo. As cerimônias que se desenrolavam da Quinta-Fei-ra Santa até a manhã de Páscoa não eram mais centradas nacelebração triunfal da ressurreição do Salvador, mas na suacrucifixão e sepultamento. "Sobrecarregado de especulaçõesconfusas, o símbolo se apaga. Desliza-se para a alegoria e paraa humanização do divino. Do mistério, outrora acolhido pela

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vias secretas da transposição simbólica, passa-se para a repre-sentação histórica e logo paraa teatral" (C. Heitz) .l3

Assim sendo, não é de se estranhar que a época carolíngiaconstitua um episódio inexpressivo na história da literatura es-piritual. A precariedade das condições de vida, a insegurança queaumentou com as invasões do século IX e, enfim, a fragilidade donível cultural bastam para explicar a raridade e, em geral, amediocridade dessa produção. Só o meio monástico forneceualgumas obras consistentes} como os tratados ascéticos de Am-broise Autpert, abade de Saint-Vincent au Volturne (morto em784), l4 ou o Diadema dos monges, composto por Smaragde deSaint-Mihiel por volta de 810. E este último é apenas um florilégiode textos dos Padres da Igreja e de são Gregório Magno. Certa-mente, muitos escritos hagiográficosforam compostos nos sécu-los VIII e IX, mas a concepção de santidade que se manifesta nelesnão era capaz de alimentar e enriquecer a piedade dos fiéis. Asfiguras exaltadas são em geral de monges ou de eremitas, e serecrutam menos freqüentemente do que nos séculos precedentesnas fileiras do clero secular e do episcopado. Além disso, asantidade deles se apresenp. como uma virtude adquirida aomesmo tempo por hereditariedade -a maioria dos santos daépoca carolíngia provinham de famílias aristocráticas - e porpredestinação divina. Habitados permanentemente pela graça,mostram-se como seres de exceção que os fiéis não se cansam deadmirar, mas que não podem imitar. Em suma, são mais meteorosespirituais do que modelos. Não que suas observâncias se dis-tingam por seu caráter excessivo; elas são, pelo contrário, marca-das pelo sentido da medida, eo Diabo ocupa apenas um lugarlimitado nas suas vidas. Más-foram escolhidos por Deus para sersantos, como outros foram predestinados para a danação, e avontade do homem nada pode contra isso. Aliás, é significativoque um dos raros problemas teológicos que tenham suscitadocontrovérsias apaixonadas e prolongadas no século IX tenha sidoo da predestinação, apresentado pelo monge saxâo Gottschalk.Este, endurecendo mais ainda as opiniões de santo Agostinho aesse respeito, afirmava que existia uma predestinação particularde cada homem para a vida e para a morte. Embora condenadocomo herético em 848, foi apoiado por muitos abades e bispos.Somente em 860 um sínodo encontrou, por instigação de Hinc-mar, uma fórmula conciliatória que, sem negar a pré-ciência

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Gênese da Espiruuatidade Medieoal 29

divina, sublinhava a vontade salvffica de Deus e a universalidadeda redenção. Mas a aspereza das discussões que dividiram osclérigos nessa ocasião mostra como era difícil, até mesmo para osmelhores espíritos do tempo, conceber o papel da liberdadehumana e a ação da graça.

Por outro lado, a idéia que se tinha em geral de Deus -soberano juiz e potência transcendente - favorecia mais º.J_~IJl9r ,reverente do que as efusões do coração. A própria espera escato-,:'lógica, tão importante no cristianismo dos primeiros séculos,parece perder a sua intensidade na época carolíngia, fora doismeios monásticos. Sem dúvida, os clérigos dos séculos VIII e IXconheciam bem o Apocalipse comentado na Espanha por Beatusde Liebana, na Itália por Ambroise Autpert e no mundo francopor Alcuíno e Walafrid Strabon. Mas é impressionante ver que,entre as questões veiculadas por esse livro profético, a maioria dosautores desse tempo foram, antes de tudo, sensíveis ao tema daJerusalém celeste, considerada como um modelo ideal da Igreja.Longe-de provocar inquietação ou ansiedade, a reflexão sobre ofuturo do mundo reforçou neles a certeza de que existia nahistória, assim como no universo físico, uma ordem fixada pelaProvidência. Nessa perspectiva, a Parusia aparecia menos comoum acontecimento exaltante ou trágico do que a sanção neces-sária do plano de Deus sobre a criação. Essa espiritualidadeanimava a prática dos clérigos, a menos que não fosse o seureflexo. Os melhores deles consagraram todas as suas energias aorestabelecimento de uma observãncia regular e de uma dignacelebração do culto. De modo geral, a Igreja desse tempo parecemenos voltada para o retorno glorioso do Salvador do que preo-cupada em contribuir,. no seu domínio, para a realização dograndeclesígniodos soberanos carolíngios: fazer prevalecer portoda a parte a máxima da ordem.

Entre os séculos VIII e X, uma certa concepção da fé cristã,caracterizada por sua dimensão de mistério e pela espera dosúltimos tempos, acaba de desaparecer. Dá lugar a um conjuntode representações e práticas de inspiração sensivelmente dife-rente. Ver nesse processo, como se fez muitas vezes, apenas umadegradação do espírito religioso é uma atitude com a qual ohistoriador não pode se contentar. Mais do que emitir umjulga-mente de valor, cabe-lhe constatar que do impacto do cristianis-mo sobre espíritos rústicos e concretos nasceu um novo modo de

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1. Y. Congar, "Deux facteurs de sacralisation de Ia vie sociale au Moyen Age(en Occident)", Concilium, 47, 1969, p.53-63.

2. E. Delaruelle, "La Gaule chrétienne à l'époque franque", Reoue d'Histoirede l'Eglise de France, 38, 1952, p.64-72.

3.]. Chélini, "La pratique dominicale dans I'Eglise franque", Reoue d'His-toire de l'Eglise de France, 42, 1956, p. 161-74.

4.]. -A Jungmann, Missarum Sollemnia; Paris, 1964, t. 1,p.106-26.5. E. Delaruelle, 'Jonasd'Orléans et le moralisme carolingien", Bulletin de

Littérature ecclésiastique, 55,1954, p.129-43.6. Dhuoda, Manuel pour mon fils, Paris, ed. P. Riché, B. de Vregille, C.Mondésert, Paris, 1991 ("Sources chrétiennes", 225 00).

7. C. Vogel, Le Pécheur et ta Pénitence au Mayen Age, Paris, 1966, principal-mente p.15-27.

8. G. Le Bras, Les pénitentiels irlandais, in Le Miracle irlandais, Paris, 1956p.172-207.

9. Numerosos testemunhos em P. Riché, La oie quotidienne dans l'Empitecaroligien, Paris, 1973, p.215-226.

10. Textos traduzidos por C. Vogel, op.cit., p.87.11. Ibid., p. 89.12. Cf. A Franz, Die kirchlichen Benediktionen im Miuelalter, 2 vol., 12 1909.13. C. Heitz, Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie à l'époque

carolingienne, Paris, 1963, p.245.14. C. Leonardi, Spiritualità di Ambrogio Autperto, Studi Medieuali, 3ª série,

9,1968, p.I-131. '

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30 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

relação com o divino. A descoberta do Cristo histórico, a valori-zação da vida moral, a importância dada aos ritos e aos gestosconstituem os fundamentos de uma espiritualidade que desabro-charia plenamente nos séculos seguintes.

NOTAS

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CA.PÍTULO II

A Idade Monástica e Feudal(final séc. X - séc. XI)

No plano político, as décadas que cercam o ano mil forammarcadas pela dissolução, mais ou menos rápida segundo asregiões, do sistema político carolíngio e pela emergência dasnovas instituições feudo-vassálicas.Elascorrespondiam aproxima-damente ao que Marc Bloch chamou "a primeira idade feudal".No campo religioso, essa época pode sercãiãcterizada peIa in-fluência crescente exercida pela espiritualidade monástica sobreo conjunto do povo cristão.Asduas ordens de fatos se relacionam.A Igreja dos tempos carolíngios era uma Igreja antes de tudo~r, dirigida pelo soberano e pelos bispos, que tinham auto-ridade sobre os monges no interior de suas dioceses. Depois dasgrandes alterações produzidas no Ocidente entre o fim do séculoIX e meados do século X, a or4.ern-sacéUlotalcaiu em profundadecadência. O processo de secularização,já iniciado no século IX,se acelerou com a ascensão do feudalismo. Os patrimônios ecle-siásticos foram muitas vezes dilapidados pelos prelados corruptosou roubados por leigos invejosos,e o gênero de vida dos cl.üigosse aproximou cada vezmaisdaquele levado pelos 1~~Q§.Oriundosdos meios aristocráticos e conquistando seus cargos através deinfluências antes de tudo políticas e econômicas, a maioria dosbispos viviam como grandes senhores e se comportavam maiscomo potentados do que como homens de Igreja. Ao mesmotempo em que conservavam uma certa dignidade moral- comoaconteceu muitas vezesno Império, no tempo da dinastia otonia-

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na - eles se deixavam dominar pelas tarefas de gestão das suasquestões temporais e pelas reponsabilidades políticas que ossoberanos e os nobres lhes confiavam. O clero rural, constituídoem grande parte por seIVOSlibertos para serem ministros do cultonas igrejas construídas por seus senhores, não brilhava nem peloscostumes nem pela instrução. Muitos padres eram casados ouviviam maritalmente. A maioria deles exercia profissões: noscampos, trabalhavam as terras que formavam a dotação fundiáriada igreja paroquial e viviam misturados aos camponeses. Nascidades, como se viapor exemplo emMilão, em meados do séculoXI, eles se dedicavam a todo tipo de atividades profanas, como otráfico de dinheiro, ojogo, a caça etc. O programa de vida comumimposto ao clero urbano pelos reformadores carolíngios não foicompletamente abandonado, mas em muitos lugares a disciplinacomunitária foi consideravelmente relaxada.

Os mosteiros também foram atingidos por essa evolução.Muitos deles, confiados a abades leigos ou explorados por admi-nistradores sem escrúpulos, não escaparam à decadência. Masfoimaisuma vezomonaquismo que resistiu melhor a essacrise grave,que ameaçava a própria existência da Igreja com o risco dedissolução, simultaneamente pela secularização do clero e peladifusão do sistema da igreja privada. No coração das Dark Ages,abadias como Saint-Gall,o Monte Cassino ou Saint-Riquier conse-guiram manter na medida do possíveluma observância regular euma digna celebração do culto divino. Os monges foram, dequalquer forma, os primeiros a se recuperar: na Borgonha, comCluny fundado em 909, na Lorena onde Gorze (a partir de 933)e Brogne (por volta .de 950) foram centros ativos de .renovaçâojna Inglaterra, enfim, onde os esforços de são Ethelwold resulta- .ramv porvolta de 970, na promulgação da Regulam concordia; aconstituição do monaquismo insular.unificado e reformado. De-pois do ano mil, o movimento se estendeu para a Europa meri-dional: São Vítor de Marselha tomou-se o centro de uma impor-tante federação monástica, que se irradiou até a Itália, enquantoque, sob a influência da abadia de Fruttuaria, perto de Turim, ascorrentes reformadoras penetraram nos países germânicos, atra-vés de são Blaise e de Siegburg. Fato notável, esses movimentosnão procediam de uma vontade do poder central, como aconte-cera nas reformas religiosas da época carolíngia. Avolta ao antigofervor não foi conseqüência de um programa administrativo de

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reorganiz:ação,.mas; a expressão das aspirações profundas dasociedade monástica a uma renovação espiritual.

É significativoqne'r emmuitos casos, essesmosteiros tenhamsido fundados ou reformados por iniciativa de bispos ou denobres leigos. Todos os, cristãos desse tempo estavam efetiva-mente convencidos da eminente dignidade do monaquismo e desua superioridade em relação aos outros estados de vida. Em umaépoca em que construir uma igreja era considerado como o atomais meritório. parecia particularmente indicado instalar nelauma comunidade religiosa cuja precefosse agradável a Deus. Aessas;motivações de ordem espiritual acrescentavam-se outras,ligadas às condições da vida política e social, no Ocidente pós-ca-roling,io.No tempo de Carlos Magno e de seus sucessores imedia-tos. a posse e a fundação dos mosteiros eram um dos atributos dossoberanos .. Nas abadias reais ou imperiais, como Saint-Denis,Farfa ou Ful~rezav.t-Se por eles. Os chefes dos principadosterrítoriaís que se edifiGll'aID,a partir do século X, sobre as ruínasdo. 'Império carolíngio retomaram. para si, com todas as outras,essaprerrogativa real: naNonnandia, ern Flandres e na Catalunhaou no ducado de Bénêeent, agucram-se então imponentes mos-

I teiros, atestando aos olhos de todos o poder d~s_j~~ <!2~._condes desde então autônomos, .'

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. Por ontroIado, a novasociedade que se edificava no âmbitofeudaladotoua ideologia das trêsfunçôes, das quais se encontramas primeiras menções na Idade Média, precisamente no século X.Segundo O' bispo Adalberon, de Laon, que deu, no início doséculo XI. uma formulação particularmente clara dessa visão deCO~lWtO' das relações entre 05 grupos sociais,o povo cristão é unoaos olhos de Deus, em virtude do batismo recebido por todos; masse nos referirmos à organização da cidade terrestre, ele com-preende de fato três "ordens": ~~._(l?5,.I,~~~~j_.?~~~~f~,que combatem; e 05 laboratores; que trabalham. Cada um dessesgrupos cumpre um--;;11inÇiõespeCífíêã,nenhumdeles pode sub-sistir sem os outros. Nessa sociedade solidária, fundada sobre atripartição funcional, o clero ocupava uma posição privilegiada;de fato, ele era nomeado em primeiro lugar, o que era sinal deuma primazia de honra. Mas,na nossa perspectiva, é mais interes-sante observar que essa classificaçãoconsagra a utilidade social daprece, indispensável para assegurar a sobrevivência e a salvaçãodo mundo. Embora as suas primeiras formulações se encontrem

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34 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

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em textos redigidos pelos bispos, o esquema tripartite deviafavorecer principalmente os monges que, aos olhos dos homensdaquele tempo, eram os que rezavam mais e melhor. Na medidaem que constituía como ardo os especialistas da prece, essa taxi-nomia reflete uma das tendências características da mentalidadedo tempo, que consistia em fazer do religioso uma categoria àparte, situada fora da vida profana. Os verdadeiros viri religiosieram os cristãos que viviam fora do mundo e se santificavamdando graças e louvor a Deus. Na época feudal, os principaisnúcleos espirituais do Ocidente foram comunidades de homense mulheres que praticavam juntos o cristianismo em um grau deperfeição inacessívelao comum dos fiéis.Doravante, e até o séculoXIII, todos os movimentos espirituais no seio da Igreja teriamcomo ponto de partida ou de chegada a fundação de ordensreligiosas. ;

O esquema tripartite não valorizava apenas a função deoração; distinguia também, no seio dos leigos, duas .categorias

\ diferentes: os guerreiros e os trabalhadores, ou, para falar em:~'. função das-realidades sociais do tempo, os senhores e os campo-'.\ neses. O fato de que os primeiros fossem nomeados na hierarquia

das funções antes dos segundos não é absolutamente fortuito.Essa classificação confirma que se Ii'a,sociedade cristã da épocafeudal os clérigos vinham antes dos leigos, entre estes últimos ossenhores precediam os seus homens. Precedência que não era demodo algum teórica, pois os poderosos deste mundo gozavam deuma posição privilegiada na Igreja, tanto durante a vida, paraacompanhar a missa, quanto depois da morte, para o seu sepul-tamento. Eo padre não vinha, a cada doming-o, no fim do ofício,'·'~p~es~ntaro,5?mOr~:paI<l:s~r,~~UaCl<>,p~1~.~,er.t~~rdo l~g'ar?~ais

,'o prôftiiídaineniê,:aSatí'rudesrê'ligi6sâS fundamentais foram Il).a'i:-cadas pela influência da classe feudal que, até no domínio es-piritual, impôs os seus modelos ao conjunto da sociedade. Opróprio gesto da prece - asmãos unidas -, que se generalizouentre os séculosX e XII, reproduz o do vassaloque presta homena-gem ao seu senhor. Quanto ao ritual de investidura episcopal ouabacial, este se aproxima a tal ponto do ritual de investidura dofeudo que acabou-se por assimilar a primeira à segunda.

Se a aristocracia leiga se distinguia nitidamente da massa dostrabalhadores, em contrapartida ela ,viveu-em estreita simbiosecom o clero e principalmente com osmonges. Senhores e relígio-

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A Idade Monástica e Feudal 35

sos tinham em comum o fato de que eram os donos do solo e nãotrabalhavam com suas próprias mãos. Por outro lado, a maioriados monges coristas eram oriundos defamílias nobres: em muitosmosteiros, os filhos oferecidos por seus pais - os oblatos - sóeram aceitos se tivessem um dote; além disso, para saber ler emlatim, era preciso ter estudado, o que só era possível naquelaépoca - com ilustres exceções - no ambiente senhorial. Assim,abadias e mosteiros foram refúgios para os filhos e filhas maisnovos das linhagens aristocráticas, que encontraram na institui-ção monástica uma solução para seus problemas de sucessão.Enfim, a Igreja considerava que a nobreza do sangue conferia umprestígio sacro e, criava uma predisposição natural para a santi-dade: "aqueles que são bem-nascidos têm pouca chance de dege-'nerar", escrevia.um cronista monástico do século XI. I Por todosesses sinais, medem-se os laços estreitos que uniam o' meio se-nhorial e o mundo dos claustros. Desse encontro, nasceu uma!espíritualidadesimultaneamente monástica e feudal, que marcoua vida religiosa da sociedade ocidental de maneira exclusiva até ocomeço do século XII, e cujos efeitos se fariam sentir até o fim daIdade Média. ' .

1. A espiritualidade monástica

Nos séculos X e XI, todos os monges do Ocidente seguiam a regrade são Bento, de modo que era possível falar do monaquisrnocomo de uma entidade. Na prática, isso não excluía uma certa iflexibilidade, até mesmo uma relativa diversidade, de uma abadiapara outra, sendo a adaptação da-regra-às condições locais e..àsintenções. dos fundadoresassegur<idápo~tradições que dirigiamconcretamente a existência cotidiana. Masera a regra beneditina,venerada e intocável, que fixavaos grandes princípios e as formasda vida religiosa. Essemonolitismo, imposto pela legislação caro-língia; estava perfeitamente adaptado a uma sociedade aindasimples e estática.

a) Prece e liturgia: o exemplo de Cluny

Afascinação exercida pela vida e pela espiritualidade monásticasé compreensível em uma civilização para a qual o ato religioso

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por excelência era o culto prestado a Deus. Como escreve MarcBloch, "nessa sociedade cristã nenhuma função de interesse Co-letivo parecia mais indispensável do que a dos organismos es-pirituais. Não nos enganemos: enquanto espirituais. O papelcaritativo, cultural, econômico dos grandes capítulos catedraise dos mosteiros pode ter sido considerável. Aosolhos dos contem-porâneos; ele era apenas' acessório't.ê Verdadeira fortaleza daprece, o mosteiro era o lugar por excelência onde Deus eraadorado.

. Nem sempre foi assim, e o próprio são Bento não atribuíraum lugar privilegiado à vida litúrgica. Segundo ele, o monge eraantes de tudo um penitente, entrando na vida religiosa parachorar os seus pecados e colocar-se sob a direção espiritual doabade. Foi na época carolíngia, particularmente com Benoitd'Aniane, que a função de oração se tornou preponderante nomonaquismo. Coube à primeira idade feudal, e em particular aCluny, levar essa tendência até suas conseqüências extremas.Fundado em 910 pelo abade Bernon, com o concurso do duqueGuilherme de Aquitânia, essemosteiro da Borgonha não tardariaa estendera sua influência a boa parte do Ocidente, da Inglaterraà Itália. Ligado diretamente à Igreja romana, constituiu, do fimdo século X ao início do século XII, a congregação religiosa maisimportante da cristandade, e graças a uma série de abades notá-veis, sua repercussão foi considerável em todos os meios dasociedade. Sem dúvida, o monaquismo da época feudal está longede se reduzir a Cluny e outras tradições espirituais continuarambem vivas,especialmente na Alemanha e na Itália. Mas não seriaexagero ver em Cluny a expressão mais autêntica das aspirações. éspiritllais dasociedáde'féüdaL .:' . . .... • H...... .' ....•

_"'Emb~r~'-os Inong~~;d~ Cluny f()ssemhúi~ditinos como osoutros monges da-época, o ritmo ea organizaçâo de sua vidaeram, em grande parte, originais. Assim, enquanto são Bentofixava em 40 o número dos salinos recitados cada dia, no fim doséculo XI, diziam-se 215 em Cluny,A regra previa a leitura de umsaltério por semana. No tempo do abade Odilon, era uma Bíbliainteira que se deveria ler a cada ano. 3 Enfim, as disposições dofundador instituíam um equilíbrio aproximativo entre os diversosaspectos da vida monástica: quatro horas para a leitura dos textossacros e dos autores eclesiásticos (lectio divina), três horas e meia·para a liturgia e seis horas para o trabalho. Nos mosteiros cluni-

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sianos, este era reduzido a algumas atividades simbólicas e muitobreves, sendo o essencial do tempo consagrado à prece litúrgicae à leitura meditada da Escritura.v-i., .:. .;

. Essa preponderância do op'Us' Dei se manifesta principal-mente pelo alongamento do ofício. Longas lições - extraídas detextos da Bíblia e dos Padres - intercalavam-se entre as partescantadas. Por outro lado, se Cluny não inventou os ofícios suple-mentares e não-exigidos pela regra, estes foram generalizados edifundidos nas' casas da sua obediência; versículos e coletas seacrescentaram aos salmos, por exemplo na Trina oratio, recitadaem honra da Trindade. Multiplicaram-se também os sufrágios(uma antífona, um versículo, uma oração), as litanias ete. Aliturgia se enriqueceu enfim com gestos e ações visando acentuaro caráter dramático. Os monges recitavam uma parte dos salmosprostrados no chão e quando se lia o evangelho da Paixão, naSexta-Feira Santa, dois deles tomavam pedaços de tecido deposi-tados no altar e os rasgavam ao se ouvirem as palavras: "Dioiseruntsibi uestimenta sua." O ofício se estendeu também no espaço, e aliturgia se tornou peregrinante:já no século IX, em Saint-Riquier,por ocasião das grandes festas, osmonges iam em cortejo da igrejaabacial para uma outra. Em Cluny, uma procissão solene osconduzia duas vezespor dia da basílicaaté a igreja de Santa Maria,onde se cantavam asVésperas.

Ao lado do ofício, que era salmodiado em coro, a missa tinhagrande importância na vida e na espiritualidade dos monges, EmCluny, havia duas missas conventuais todos os dias; a da manhã,celebrada em Santa Maria, e a missa solene, cantada no altar-rnorda basílica, depois da oração de Sextas;Também ali;amplificaçõeslitúrgicas eram possíveis e freqúentesrcanto do Introitorepetidotrêsvezes, desenvolvimento do KyrfJ, ep'ríhcipalmente acréscimosao Alleluia de uma prosa e de uma seqüência, textos versificadosque explicitavam em termos líricos o sentido do mistério que aliturgia-do dia ressaltava. A isso se somavam as missas próprias,rezadas pelos monges que fossem padres - isto é, a maioria nasgrandes abadias -, para as quais fora preciso multiplicar osaltares, e conseqüentemente as capelas laterais em torno dodeambulatório. Essas cerimônias eram acompanhadas de incen-so e aspersões de água benta. Tudo isso contribuía para criar umambiente sagrado que, pelo fausto das celebrações, deveria per-mitir à alma ter acesso direto ao sobrenatural. Não se negligen-

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ciava a oração individual e os religiosos não eram obrigados aparticipar ao mesmo tempo de todos os ofícios. Mas a precelitúrgica e comunitária continuava sendo o essencial: fileiras demonges se sucediam no coro como batalhões na linha de fogo,procurando oferecer a Deus um louvor ininterrupto -e um sacri-fício que lhe fosse agradável. Só a realização desse grande desígniofornecia uma justificativa para o fardo sempre mais pesado dasobservâncias rituais.

Na espiritualidade monástica da época feudal, a prece litúr-gica não era apenas um ato' de louvor, mas também de intercessãoe pedido. Por volta do ano mil, assistiu-se, por toda a parte, auma multiplicação espetacular das missas votivas, celebradas porintenções particulares. Em Cluny, a: primeira das duas missasconventuais era sempre cantada em memória dos mortos. Noofício de Matinas, quatro salmos eram recitados em intenção dosfamiliares da abadia, outros para o rei etc. Rezava-se principal-mente cada vez mais em favor dos mortos e partes inteiras doofício lhes eram dedicadas. Aliás, foi o abade Odilon que, no fimdo século X, instituiu a festa da comemoração dos fiéis defuntos,ou dia de Finados, a 2 de novembro. Existiam, além disso, cor-rentes de preces entre os mosteiros, que comunicavam seus,obituários, fazendo figurar neles os nomes dos monges que ti-nham morrido nas abadias associadas, para que fossem lembradosem suas orações. Benfeitores leigos, soberanos ou nobres, podiamtambém. ser inscritos. Era uma honra cobiçada e que valia osgrandes sacrifícios materiais realizados para isso, especialmentesob a forma de donativos piedosos. Para realizar essa função deintercessão sobre o mundo, os monges procuravam colaboração ..e apoio: Daí-a importância crescente-do culto.lítúrgico dos santos.E~ Cluny, o santoral gregoriano se enriqueceu com numerososofícios de santos franceses: todos os dias,' recitava-se o oficio detodos os santos e a missa solene era precedida da leitura daslitanias. No dia de sua festa, lia-se integralmente a sua Paixão-se se tratasse de um mártir - ou sua Vida, no caso de umconfessor. O texto, que devia ser lido nessa ocasião - esse é osentido da palavra legenda -, ocupava as oito primeiras liçõesdas Matinas, onde se imploravam muito particularmente os seussufrágios.

Em última análise, o significado dessa liturgia ao mesmotempo solene e exuberante só pode ser compreendido caso se

A Idade Monástica eFeudal 39

considere a prece monástica como uma arma. O monge se serviadela primeiramente contra si mesmo, para combater as tentaçõese sobretudo a acedia, lassidão espiritual que ameaça precipua-mente aqueles que aspiram à perfeição. Seguindo com virilidadeo caminho estreito da observância regular, ele podia entretantoevitar as àrmadilhas do "inimigo antigo", isto é, o Demônio.Restava-lhe então travar o combate cotidiano, que consistia emarrancar, pela prece, o maior número de almas possível à danaçãoe ao fogo eterno. Essa luta incessante contra as forças do malproduzia frutos espirituais variados, dos quais a comunidade cristãse beneficiava em virtude da reversibilidade dos méritos: repousoda alma garantido para os defuntos e especialmente para as almasdo purgatório, paz para os vivos, fecundidade da terra, vitória paraos reis e para os príncipes fundadores. Escolado serviço divino, omosteiro era também o lugar onde se adquiriam, pela prece,graças sobrenaturais que jorravam sobre toda a sociedade.

b) Vida angélica e desprezo pelo mundo

Seria inexato considerar apenas, na espiritualidade monástica dosséculos X e XI, o lugar ocupado pela oração e pela luta contra asforças do mal. Se, para os homens desse tempo, a vida do claustroera superior a tudo o que a terra oferecia de grande e bom, eratambém porque constituía um estado privilegiado, que permitiao retorno da 'criatura para o seu Criador, através de um serviçofiel a Ele prestado. Sem dúvida, essa comunhão com habitantesdo céu só devia se realizar plenamenteno fim dos tempos, masjácomeçava neste mundo. O mongemédievaleraaninÍado,corriómostrou ]; 'Leclercq, pelo desejo de Deuseda 'pátria celeste." Pelaprece litúrgica, de se esforçava porjuntar sua voz aos coros dos anjos;pela prática da ascese e da mortificação, procurava levar uma vidaangelical, long;-cios'prazeres e das tentações deste mundo. Omosteiro, onde se praticava uma observância regular, se tomava umaantecipação do paraíso, um pedaço do céu sobre a terra.

Essa dimensão escatológica do monaquismo permite com-preender o lugar que ocupavam a leitura e a meditação da Bíbliana sua espiritualidade. O Antigo Testamento desempenhava umpapel importante na medida em que se via nele uma prefiguraçãoda última fase da história da salvação, inaugurada pela Encarna-ção: em relação ã Parusia, isto é, à voltagloriosa do Cristo no fim

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dos tempos, o povo de Deus se achava na mesma situação queoutrora Israel diante da vinda do Messias segundo a carne. Nahistória do povojudeu, procuravam-se menos osmodelos morais,como era o caso na época carolíngia, e mais asatitudes espirituaisadequadas ao clima de concentração para os fins últimos, quecaracterizou a vida religiosa dos monges daquele tempo. Paraestes, não se tratava de modo algum de um tema literário, e aprocura de Deus se inscrevia no seu programa cotidiano: a lectiodivina não tinha por fim conduzir o espírito à meditação, parafazê-lo chegar, mesmo aqui na terra, à contemplação do mistériodivino? .

A espera escatológica se traduziu também, para essesmonges, em uma vontade de purificação pessoal e coletiva, quefoi a origem da maioria dos movimentos reformadores da época.Grandes abades, como Guilherme 'de Volpiano ou são PedroDamião, tiveram o desejo ardente de fazer do mundo dos claus-tros uma sociedade perfeita, verdadeira antecipação neste mundodo reino de Deus. Essa tendência semanifestou com uma nitidezparticular em Cluny, no século XI. Sem abuso de linguagem, aespiritualidade clunisiana pode ser qualificada de triunfalista, atal ponto as noções de pecado e resgate lhe eram menos familiaresdo que a contemplação da glória e da majestade divinas. Certa-mente não foi por acaso que são Hugo mandou retirar do cantodo Exultet as palavras: "OJelix culpa! ", exaltação paradoxal da faltade Adão, considerada como ponto de partida da Redenção. Emum clima espiritual mais impregnado pelo mistério da Transfigu-ração do que pelo da Encarnação, e no qual o mosteiro era comoque a antecâmara do céu, o significac\odessere~mosQbrenaturalnão era maiscompreendido, Asconcepções artísticasde Cluny,« demodo geral dos Monges Negros, se devem ao mesmo. estado deespírito:nada era belo ou luxuoso demaispara a casade Deus, ondeo brilho do ouro, a cintilaçãodasluminárias e o perfume do incensoconcorriam para dar aosque nela penetravam um gosto antecipadodos esplendores da corte celeste.

Considerando-se como a vanguarda do povo de Deus jáchegada às portas do Reino, os monges tiveram às vezes umatendência para depreciar os outros estados de vida no seio daIgreja. Persuadidos de que detinham a garantia da salvação,chamavam osmelhores cristãos e principalmente os nobres leigospara que viessem reunir-se a eles na paz do claustro, abraçando a

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vida monástica. No seio das abadias constituiu-se assim uma novaaristocracia espiritual, pouco diferente em seu recrutamentodaquela que, na mesma época, impunha a sua autoridade aoshumildes no seio da sociedade profana

Assim, é possível compreender por que muitos textos es-pirituais m-edievaisapresentam a entrada no claustro como umacontecimento tão importante, se não mais, quanto o batismo. Omosteiro não era ao mesmo tempo o 'memorial da Jerusalémhistórica, até mesmo em certos elementos da sua arquitetura; e aprefiguração daJerusalém celeste? Seus habitantes participavamda dignidade dos filhos de Sion e gozavamdas graças próprias aoslugares santificados pela vida do Senhor. A conversão, que aprofissão religiosa implicava, era sentida como uma superação dacondição terrestre. Fazer-se monge era simultaneamente voltarao estado original de perfeição e antecipar a vida futura; eratambém refutar, o mundo, para edificar o homem novo, chamadoa tomar lugar junto de Deus.

A contrapartida dessa aspiração para as coisas do céu foi atendência, muito marcada na maiorida dos autores espirituais daépoca, de desprezar as coisas da terra. Trabalhos recentes, es-pecialmenteos de R Bultot, enfatizaram com insistência essadepreciação sistemática das realidades temporais e carnais, queia muito mais longe do que uma simples advertência contra osabusos resultantes de um uso imoderado dos bens materiais.Santo Anselmo, Jean de Fécamp, Bernard de Morlaas e muitosoutros pregaram em seus tratados o desprezo pelo mundo(contemptus mundi; e fizeram umjulgamento fundamentalmentepessimista sobre as realidades temporais, as atividades terrestrese o~mor humano, isto é, sobre a Vidaprofana em seu conjunto.Por outro lado, os mesmos autores exaltaram a vida monástica,apresentada como a forma autêntica da experiência cristã e únicavia de salvação. Aos seus olhos, o mundo era cheio de ilusões eocasiões de pecado. Logo, era melhor renunciar às criaturas eviver nesta terra como peregrino e estrangeiro: era pelo exílioque se conquistava o Reino. Os autores espirituais do século XIestavam convencidos de que existia uma incompatibilidadeabsoluta entre a vida religiosa e as preocupações, ocupações ouassuntos do mundo. Só a paz do claustro e a disciplina regulargarantiam o otium, isto é, a tranqüilidade que tornava possível avida interior.

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Essavisão de mundo repousa sobre um teocentrismo abso-luto - já que Deus representa todo o bem, é inútil perseguir asrealidades terrestres, que são frustrantes e apresentam risco depecado: "Sensívelapenas à desproporção entre Deus e o ser finito,a espiritualidade monástica desqualifica este último na'ordern dosvalores, sem indagar-se sobre a sua essência e sua significaçãopróprias" (R. Bultot)," A condenação do "mundo", que constituium dos temas maiores do Evangelho de são João, é interpretadapelos autores monásticos como um julgamento negativo sobre oconjunto da criação. .

Essa desconfiariça, para não dizer mais, diante das reali-dades humanas pode parecer surpreendente a um homem doséculo XX, principalmente se este se referir, a título de compara-ção, a certos decretos fundamentais do concilio Vaticano lI. Opapel do historiador não é opor esses textos aos dos mongesda época feudal, mas procurar compreender e explicar as suascontradições, que não são apenas aparentes. É essencial, nesseaspecto, ter consciência de que os autores espirituais do século XIforam tributários da sua própria leitura da Bíblia. Na Vulgata, asoposições escriturárias eram radicalizadas e empobrecidas por_aduções inadequadas; foi assim que a antítese semítica entre aCarne e o Espírito se reduziu a um antagonismo entre o corpo ea alma, ao passo que ela recobre, na verdade, realidades muitomais complexas. Por outro lado; eles adotaram, muitas vezes semdiscernimento, concepções filosóficasda Antiguidade, veiculadaspela literatura patrística, por exemplo a definição da ascese comouma procura da insensibilidade, mais inspirada pelo estoicismoelo que pelo Evangelho,oua oposição platônica entre a contem-plação e-a-ação, O baixo nível da cultura medieval não 'permitiuque se fizessea escolha correta no seio dessa herança compósita.

Por outro lado, certos conceitos fundamentais da espiritua-lidade monástica não são desprovidos de ambigüidade: a "vidaangelica", tão pregada pelos autores espirituais, era simples as-piração à unidade em Deus, ou também recusa da condição.humana e particularmente da sexualidade? Tomando ao pé daletra diversos trechos de santo Agostinho - um dos autores maislidos do tempo - alguns monges se deixaram levar pelo gnos-ticismo, e até mesmo pelo dualismo, para o qual os inclinava a suaexperiência ascética. Para eles, com efeito, o mundo era apenasuma realidade sem consistência própria, simples reflexo degrada-

A Idade Monástica eFeudal 43

do de um mundo celeste onde se encontrava a sua verdade. Nasua história, dava-se menos importância ao que se construía doque àquilo que o aproximava do seu fim. Campo do transitório edo contingente, o criado não devia suscitar nem apego nemmesmo estima, mas desprezo e fuga. Repudiando o mundo ter-restre, a espiritualidade monástica do século XI de certa formaprojetou o mal para fora do homem, para situá-lo nas coisas/conferindo-lhe assim uma realidade objetiva e premente. Longede anular o inimigo, ela apenas reforçou o seu domínio sobre osespíritos.

Todavia, seria necessário equilibrar o que os julgamentosfeitos sobre o mundo por muitos autores espirituais monásticospodiam ter de absoluto e dedogmático, considerando os motivosque os guiaram. De fato, a condenação irrecorrível das realidadesterrestres se situava, em geral, em Um contexto polêmico. Amaioria dos textos sobre o desprezo pelo mundo foram redigidosno século XI e no começo do século XII, em uma época em quea luta contra a simonia estava em primeiro plano; ora, os valoresprofanos eram tão bem cultivados pelos clérigos simoníacos queera desnecessário lembrar-Ihes a sua importância. Além do mais,no coração do combate travado pelas forças vivasda Igreja par<;l/arrancá-Ia à influência dos imperadores e à "dissoluçãofeudal, afuga do mundo preconizada pelos monges aparece menos comouma evasão para fora da vida social e da ação temporal do queum julgamento de certas estruturas opressoras, que eram obs-táculo ao desenvolvimento religioso e à caridade. Nesse caso, ocontemptus mundi traduz muitas vezes "a recusa de comprometi-mento com uma sociedade política talvez menos cristã do que omais leigo cios nossos estados"." Assim, em um tratado atribuídoa SantoAnselmo, encontra-se uma severa crítica da domesticàção

. dos prelados pelo rei da Inglaterra e da violência incontrolada dasf ordens de cavalaria. Nesse caso preciso, o "desprezo pelo mundo".1 é maisa expressão da recusa de uma sociedade dada do que uma'J depreciação sistemática das realidades profanas.

Por outro lado, convém indagar o que podia representar omundo para o homem da primeira idade feudal, independen-temente de todainfluência ideológica transmitida pela cultura.Para qualquer lado que ele sevoltasse, sóviaao seu redor violênciae injustiça; era-lhe bem dificil perceber valores positivos no seioda sociedade profana: poucos casamentos fundados no amor,

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inexistência de uma cultura leiga digna desse nome, nada deprogresso técnico ou científico. O próprio Estado constituía me-nos a forma política da cidade temporal do que uma ordem sacra,culminando na pessoa do imperador ou do rei, ungido do Senhore seu representante na terra. Assim, a famosa querela das Inves-tiduras, que opôs, no fim do século Xl e no fim do VIl, os papasaos soberanos germânicos, não foi - como se dizmuitas vezes-um conflito entre o poder espiritual e a autoridade leiga, mas umaluta ferrenha entre duas sacralidades rivais. Em um mundo cujaordem. estava fixada pela Providência e a organização política esocial era regida por modelos transcendentes, a própria noção detemporal não tinha sentido. Não se podia acusar os monges deterem sido incapazes de elaborar uma espiritualidade para os. leigos, "quando não existia laicato, por falta de um mundo quepermitisse apreender-lhe a especificidade"."

Enfim, na prática, nem os monges nem mesmo os eremitas .que pareciam, entretanto, ter praticado ao pé da letra o desprezopelo mundo, não eram totalmente estranhos ou hostis às reali-dades humanas. A depreciação incontestável das realidades ter-restres na espiritualidade monástica foi muitas vezes temperadapor um sentido profundo das coisas e dos homens. As abadias daépoca feudal não se isolaram da vida social: nos grandes mosteirosgermânicos e na própria França, nos pequenos priorados, muitosfilhos da aristocracia recebiam uma instrução elementar, sem sertodos necessariamente destinados à carreira eclesiástica. A es-piritualidade clunisiana, por outro lado, não exigia do homem

~ que renunciasse a si mesmo, mas que consagrasse a sua vida ao.~erviço de Deus. Segundo a feliz fórmula de Etienne Gilson,

l í . . '''Clúny nos toma tal como somos>menos corno almas do que.. . . comê homens, e é' com a,ajuda dó nosso corpo .e não contra ele

que Cluny espera nos salvar".8Tomar o homem tal como é, nessaperspectiva, não esperar dele proezas <Íscéticasou mortificaçõesexcessivas, é também pensar que a riqueza, o poder e a beleza,longe de constituir por si mesmos obstáculos ao amor de Deus,podiam concorrer para O louvor da sua glória e para o serviço dasua causa. Assim, uma vez passada uma primeira fase rigorista, aatitude dos clunisianos em face da sociedade do seu tempo foimarcada por uma preocupação de compreensão e de abertura,favorecida aliás pelos laços de parentesco e de solidariedade, quenão tardaram a se estabelecer entre os abades da casa-mãe e os

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grandes deste mundo, cuja ação eles se esforçavam por influen-ciar. Mas a simpatia temperada de indulgência que eles manifes-taram para com os leigos não se limitou às classes dirigentes: oabade' Odilon desempenhou um grande papel na difusão domovimento de paz e não se-poderia esquecer que Abelardo,perseguido por são Bernardo, só encontrou refúgio para morrerem pazjunto a Pedro-o Venerável; a carta que este escreveu aHeloísa para lhe anunciar a morte do esposo é, aliás, uma obra-prima de delicadeza e humanidade.

Esse confronto entre a teoria e a prática dos meios monás-ticos em suas relações com o mundo permitia constatar a com-plexidade do problema. Por um lado, ele demonstra a existênciade uma doutrina espiritual coerente, situando a perfeição cristãem UIIl ideal de recolhimento da vida terrestre e de recusa decertos aspectos da condição humana': vida angélica, paraíso reen-contrado fora doSécuIo, existência puramente contemplativa. Dooutro lado. aparece a preocupação dos monges do século Xl deagir sobre a sociedade que os cercava, levados às vezes até aaceitação irrestrita dos seus valores é das suas estruturas. Naverdade, as duas atitudes não são contraditórias. Para transformaro mundo, em certos momentos pode parecer mais eficaz sair deledo que ficar nele. e por vezes é mais fácil encontrar o homemfugindo da multidão do que misturando-se a ela. Seria por acasoque muitos abades - e particularmente os de Cluny - desempe-nharam o papel de árbitros nos conflitos políticos do tempo, tantono nível local quanto no plano da cristandade? Quanto, aoseremitas que se refugiavam no fundo das florestas para fugir domundo, ninguém ignora mais o lugar que eles ocuparam naabertura e rio estabelecímentode estradas, na' assistência aos'viajantese na evangelização das populações rurais.Avalia-se bementão a dificuldade que existe na apreciação correta de umaespiritualidade que valorizava freqüentemente, nos fatos, reali-dades que ela depreciava no plano dos princípios.

2. A influência da espiritualidade monástica

Feitas todas essas reservas - e elas são importantes - não deixade ser verdade que a ideologia dos monges teve mais influênciasobre a espiritualidade da época feudal do que a sua práxis. Oideal monástico exerceu sobre todos os espíritos do tempo, mes-

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mo sobre osmais rudes, um fascínio incomparável, e alguns temasespirituais caros aos cenobitas foram retomados e amplificados'por outros, clérigos ou leigos, que os levaram até as suas últimasconseqüências.

a) Vida profana e vida religiosa

Nessa época, a idéia de que existe.uma incompatibilidade entrea vida no mundo e o estado religioso começou a se impor aoscristãos do Ocidente. O clero secular foi o primeiro a sofrer arepercussão das doutrinas ascéticas elaboradas nos claustros, quemodificaram a própria concepção do sacerdócio. As reformasmonásticas do século X tinham se.dedicado a restabelecer nasabadias a prática da continência. Asmedidas que foram tornadaspara' isso não eram unicamente inspiradas por motivos discipli-nares. Em Cluny, por exemplo, desde meados, do século X,desenvolveu-se urna espiritualidade eucarística, que atribuía umlugar central à adesão ao Cristo salvador presente no sacramentodo altar.Apenas ao receber o "verdadeiro corpo de Cristo" é quese podia fazer parte do seu corpo místico. Mas, para aproximar-seda eucaristia, e mais ainda para consagrara hóstia, era absoluta-mente necessário ser puro. Assim,Odon de Cluny, em seu grandepoema Occupatio, faz da castidade uma necessidade absoluta paraos monges e afirma uma incompatibilidade entre função sacer-dotal e concubinato.

Na época em que foram expressas, essasopiniões apareciamcomo uma antecipação ousada. Ainda por volta de 1010, o bispoBurchard deWorms, emseu penitencialintitulado Corrector siuernedicús;nãOpreyiâ casügóspàraos .leigo's'que serecusassem a'seguir o ofíciocelebrado por uni cura casado Ou vivendo emconcubinato? Mas, a partir do segundo terço do século XI, as-sinalam-se por toda parte fiéis que colocaram em dúvida a vali-dade dos sacramentos distribuídos por padres incontinentes. EmMilão, por volta de 1050, os patarinos foram mais longe, boicotan-do os ofícioscelebrados pelos clérigos "nicolaítas", e obrigando-osa respeitar a castidade, elemento fundamental, aos seus olhos,do estado sacerdotal. A reforma gregoriana retomou essas con-cepções e fixou, para vários séculos, o novo modelo do padre,fundado sobre um ideal de pureza e de separação. Para GregórioVII, aquele que celebrava o sacrifício da missadevia ser a imagem

A Idade Monástica e Feudal 47

do Cristo e a castidade do filho de Deus postulava a do ministrodo culto. Consagrado ao serviço permanente de louvor oferecidoporJesus ao Pai celeste, o padre terrestre viveriaseparado dos fiéise renunciaria a tudo que pudesse haver de profano na suaexistência. Era-lhe recomendado levar a vida em comum, adapta-da à função de prece que ele ex~~ciapor toda a Igreja e que, aliás,facilitava a observação da continência, Castidade, vida comum eserviço litúrgico eram doravant~ os três aspectos fundamentais do _/estado sacerdotal. //

Muitos padres não esperaram o apelo do papa para modifi-car seu estilo de vida. Desde o segundo terço do século XI, a vidacanônica, isto é, comunitária, foi restaurada ou instaurada emmuitos lugares, particularmente nas regiões meridionais (porexemplo, ernSan Frediano de Lucques, São João- de LatrãoeSaint-Ruf, perto de Avignon). Outros clérigos, chocando-se coma hostilidade deseus confrades, escolheram retirar-se para o

}d~serto. Assim, viam-se ~~oliferar ~or toda a parte no Oci~entediversas formas de erermtismo clencal, ao passo que o conjunto'-.. -i do clero secular sofria a iii11uencIada espiritualidade monástica.

, Foi isso que apontaram certos padres milaneses, adversários daReforma, ao Anônimo dito deYork, quando acusaram o papadode querer impor aos clérigos seculares um estilo de vida e exigên-cias morais que não correspondiam à vocação específica do seuordo. O argumento não deixava de ter valor, mas como aquelesque o. defendiam se apoiavam nos príncipes temporais, foramincluídos no descrédito que atingia então os clérigos "simoníacose nicolaítas". "*-'---~- ..,--A--conseqüência mais grav(:da difusão da espiritualidade

monástica foi, sem dúvid~ algtuIla, .a depreciação profunda eduradoura do estado leigo. Considerado inferior tanto religiosaquanto culturalmente, o laicato se'definiu negativamente por suaexclusão do universo do sagrado e da cultura erudita. Em ummundo em que avida cristã se identificava com avida consagrada,a grande maioria dos batizados se encontrava menos bem situadado que osreligiosos, na perspectiva da salvação.A distinção entremonges, clérigos e leigos certamente não era nova na Igreja.Gregório Magno, inspirando-se em um trecho do profeta Eze-quiel (XIX, 14) dividira os cristãos em três categorias, em função '\das instituições eclesiásticas: conjugati (os esposos), continentes (os '"religiosos), predicatores (os clérigos seculares). Esse esquema foi )

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retomado nos meios monásticos no século X, mas em uma pers-pectiva diferente. Foi assim que, pouco antes do ano mil, o abadeAbbon de Fleury (Saint-Benoit-sur-Loire) escreveu: "Entre oscristãos dos dois sexos, sabemos bem que existem três ordens e,por assim dizer, três graus. O primeiro é o dos leigos, o segundoo dos clérigos e o terceiro, o dos monges. Embora nenhum dostrês seja isento de pecado, o primeiro é bom, o segundo melhor,o terceiro, excelerite.Y Para esse autor e para muitos outros dessaépoca, a classificação dos tipos de cristãos não visa apenas dis-tinguir três modos diferentes de estar na Igreja. Ela constituitambém um esquema hierárquico, fundado na idéia de uma

- remuneração variável segundo os estados de vida. Retomandoas cifras indicadas por Cristo na parábola do semeador (Mat.,XIII, 8), sobre o rendimento da semente, a literatura espiritualdo tempo afirma nitidamente a superioridade da vida monástica(100 para 1) sobre o estado clerical (60 para 1) e leigo (30 para1). Essa escala de valores não é universal e houve durante toda aIdade Média contestações entre os clérigos e osmonges a respeitodo primeiro lugar. Todos concordavam, entretanto, em situar osleigos no grau inferior. A hierarquia dos estados de vida repousa,.! de fato, sobre o postulado de que a Condição carnal é má: quantomais afastado da carne - identificada aqui com a sexualidade-mais perfeito. Nessa perspectiva, ° casamento, mesmo sendoum sacramento, não tem valor positivo; ele é apenas um remédio

\ pa.x: a con~u~iscência _e uma. con~~o à fraqu~ h~ana. JI)

\. Aliás, as propnas relações conjugaJS nao estavam atingidas pelopecado, como afirmara santo Agostinho contra Pelágio?Na pers-pectiva escatológica, que continuava sendo a do monaquismo, acontinênciaeprinc~p~ente a virgindade constituíam os fun-damentos da vida reliig.ciSa~ . -o.

Essavisão pessimista da condição dos leigos e do seu papelna Igreja não se devia a alguns autores isolados ou extremistas.Ela era compartilhada pelos próprios fiéis, que só viam salvaçãoem uma união tão estreita quanto possível com o mundo dosreligiosos. Os cavaleiros ofereciam seus filhos como oblatos nosmosteiros. Aqueles que continuavam no século se associavam àsabadias mais prestigiosas, no seio de sociedades ou confrarias deoração; em contrapartida dos legados piedosos - que revestiamgeralmente a forma de donativos fundiários - obtinham a suainscrição nos livros de registro daqueles por quem os monges

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rezavam diariamente e em seus obituários. Cluny não inventouesse tipo de associações, mas deu-lhes um desenvolvimento consi-derável, principalmente nos meios aristocráticos. Mais ainda,expandiu-se no século XI, entre os fiéis, o costume de solicitar ohábito religioso por ocasião de uma doença grave. O cronistamonásticoOrderic Vital nos dá o belo exemplo de Ansolde deMaule, ex-companheiro de armas de Robert Guiscard. Depois de50 anos de cavalaria, sentindo chegar a morte, dirigiu-se à suamulher nestes termos: "Graciosa irmã e amável esposa Odeline:durante mais de 20 anos, a graça divina nos permitiu viver umcom o outro. Eis que chego ao meu fim. Queira eu ou não, estouindo para a morte. Aceita o meu desejo de fazer-me monge, derenunciar às pomposas vestimentas do século para revestir ohábito negro do santo pai Bento. Minha dama, libera-me, eu tepeço, das minhas obrigações conjugais, para que, livre do fardodas coisas mundanas, eu mereça a honra de receber o hábito e atonsura monástic~." Com o consentimento da esposa, ele pôderealizar o seu desejo e foi imediatamente revestido do hábito.Três dias depois, morreu e "foi enterrado com o Cristo pararessuscitar com ele";'! O fato de morrer com o hábito garantia,efetivamente, uma participação plena e integral nos sufrágios,preces e méritos dos religiosos, com a única condição de renun-ciar ao casamento e despojar-se das "honras" e dos bens. Para uleigo, o caminho da salvação passavapela tríplice recusa do podér,do sexo e do dinheiro, o que é a própria negação do seu estado.Mas o espírito medieval, tendente às oposições contrastadas, sóadmitia a conversão total. Era apenas através de uma renúnciaabsoluta que o cristão podia esperar tornar-se agradável a Deus..... Assim,m~smo,aqueles que, por necessidade,continuavam

. ria vida secularseesforçavam,' se' tivessem alguma preocupaçãocom o além, em imitar às observâncias monásticas. A vida de sãoGéraud d'Aurillac, composta em meados do século X pelo abadeOdon de Cluny, nos fornece o exemplo de um grande senhor,que chegou à perfeição, apesar de viver no mundo. Mas atenção:não se encontra em são Géraud nenhum ideal de santidade leiga.Odon o apresenta sempre como desejando ser monge, e diz queapenas obrigações incontornáveis o impediram de ir para oclaustro; mostra-o praticando a castidade e recusando-se a com-bater com armas, pois a violência é má em sua opinião; quandoseus inimigos o agridem e não é possível recusar o ataque, agita a

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espada e finge lutar, procurando não ferir ninguém. Sua vidareligiosa é ritmada pela altemância das leituras e das orações. SãoCéraud, por maiscavaleiroque seja,vivecomo monge no mundo.l''

Longe de limitar-se às camadas superiores da sociedade, ofascínio exercido pelas tendências ascéticas da espiritualidademonástica se estendeu, no século XI, ao conjunto dos leigos,como se pode constatar na ideologia dos movimentos de paz.Estes não exprimiam apenas uma aspiração ao restabelecimentoda ordem, perturbada pela anarquia feudal. O lugar importanteque os preceitos de abstinência ocupam, ao lado da recusa daviolência, nos documentos provenientes das assembléias que se

Ireuniram entre 990 e 1040,mostra um desejo largamente difun-dido de adotar observâncias tipicamente monásticas. Privar-seemcomunidade pareceu aos homens do ano mil o meio mais segurode desviar a cólera divina e garantir a salvação da coletividade.

A adesão dos leigos às instituições e valores do monaquismonão foi entretanto um simples fenômeno de mimetismo ou deosmose. Ela traduz, antes, o despertar da consciência religiosa emmeios que até então só conheciam um simples conformismo,Movimento misterioso em suas origens, sob a influência dos'monges, mas também de um clero que, no quadro multiplicadoda igreja privada, estava em contato mais estreito com os fiéis,efetuou-se nesses séculos obscuros uma espécie de impregnaçãoespiritual cujas modalidades nos escapam. À atonia do climareligioso dos séculos IX e X sucedeu um período de intensafermentação. Em número crescente, simples fiéis começaram ater acesso a um certo conhecimento, se não da Bíblia, pelo menosdos principais preceitos evangélicos. Alguns deles acentuaramainda mais a tradição monástica e resultaram em muitos casos emum espiritualismo exacerbado.É impressionante constatar-que as 'primeiras heresias que apareceram no Ocidente em tomo do ano

~\ mil ~ as das Virtudes (Champagne), de Arras ou de Monforte'\ \"I(Lombardia) - tinham em comum a recusa do mundo e de sua\ .violência, o desprezo pelo corpo e pela vida sexual, assim como a

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~/ rejeição de estruturas eclesiais e de sacramentos, cuja rnateriali-dade era ofuscante. Certamente, tratava-se de grupos pouco im-portantes, logo reduzidos ao silêncio pela hierarquia eclesiástica.Maseles não expressariam, radicalizando-as, as aspirações religio-sas de muitos homens daquele tempo que, em nome de umliteralismo evangélico rigoroso, tendiam a erigir em normas de

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comportamento para todos os cristãos asexigências mais elevadasda espiritualidade monástica? Sem ir tão longe, os patarinos daLombardia ou seus contemporâneos de Florença, que obrigaramo seu clero a adotar o celibato e a renunciar à simonia, comparti-lhavam esse estado de espírito. Mas, longe de reivindicar para siprópriosuma autonomia espiritual qualquer, eles pediam sim-plesmente aos padres que cumprissem a sua função na Igrejà:oferecer aos fiéis sacramentos válidos e a Deus um sacrifício quelhe fosse agradável.

b) O combate espiritual

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-li Ao apresentar a vida religiosa antes de tudo como um combater: incessante contra o "inimigo antigo", a espiritualidade monástica'1 encontrou grande eco no seio de uma sociedade guerreira, cuja:: ética profana (o que os autores germânicos chamavam Ritterliches~1' Tugendsystem) privilegiava os valores de luta. Certamente, o fato" de considerar a vida:religiosa e moral como um combate entre o

:,..J Bem e o Mal não é uma invenção do século XI. Prudêncio, naépoca patrística, Alcuíno e Smaragde, nos tempos carolíngios,

;:\ tinham dado grande importância em seus respectivos escritos ao;----- tema da ~co-maqUia:-~oube entretanto ~ primeira idade feu--. dal- com~'s esculturas de Moissac e os afrescos de

Tavant - privilegiar esse aspecto e fazer dele o eixo da vidaespiritual de toda uma sociedade.

Os homens dos séculos X e XI, época caracterizada pelainsegurança e pela violência, transpuseram seus hábitos e suas.preocupações de todos os dias para o campo religioso: Segundotrabalhos recentes, fundados sobreumainterpretâção psicanalí-tica, a própria estrutura do oficio monásticórespondia a umdesígnio de luta contra as forças do mal, às quais os mongestentavam arrancar as almas dos fiéis defuntos, através de umaprece constante e intensa. Nessaperspectiva, a liturgia monástica,em seu contexto simultaneamente faustoso e solene, represen-taria a sublimação das pulsões agressivasda aristocracia leiga, quesó renunciava à violência física para lutar no combate religioso. /O miles que entrava no mosteiro abandonava' seu cavalo e sua Iespada, mas era para empunhar armas espirituais infinitamente vmais eficazes do que as do mundo.P /1

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De qualquer forma, é certo que nenhuma época tomou maisa sério do que a Idade Média a máxima evangélica: "O reino dosCéus sofre violência." Toda a espiritualidade da época feudalestava situada sob o signo do esforço doloroso e da luta. Nosmosteiros, cultivava-se a ascese como um instrumento de volta aDeus: o sofrimento voluntário permitia ao homem restaurar já naterra o estado primeiro de inocência, degradado pelo pecado, echegar à liberdade espiritual. Essa convicção universalmente di-fundida levava as almas apaixonadas pela perfeição à procura domartírio que proporcionava, com a certeza da salvação, os méritosnecessários à Igreja e aos fiéis falecidos. Se não havia persegui-dores, infligia-se o martírio a si mesmo. A ascese beneditina, quecontinuava moderada em suas manifestações, comportava doisaspectos fundamentais: a renúncia aos prazeres dos sentidos e aluta contra as tentações. O segundo tendia a tomar uma impor-tância crescente no. século XI, à medida que se desenvolvia acrença na realidade física do Diabo e na sua onipresença. Omonge Raoul Glaber dizia ter visto Satã por várias vezes, sob asaparências, de um animal imundo, e muitas vidas de santos daépoca nos mostram este último agredindo e espancando os as-pirantes à perfeição.

Mais uma vez, os leigos não quiseram ficar para trás. Muitosdeles, não podendo fazer-se monges em MO de sua origemmodesta, abraçaram a vida eremítica, na qual podiam consagrar-se aum ascetismo desenfreado. Com o ardor que caracteriza osneó~ eles rejeitavam a ~ monástica, que temperava, napratica, o rigor das observâncíâã préSciltãs e se abandonavam aum exagero de mortificações, procurando esgotar seu corpo comjejuns e supliciando-o demil maneiras. Essa severidade excessiva.,para consigomesmo contínuaría serido um traço característicoda espiritualidade popular da Idade Média; dos eremitas doséculo XI aos flagelantes do século XN, e não é por acaso que,entre os santos cistercienses, os que se infligiam as mais rudespenitências foram os conversos - isto é, pessoas de condiçãomodesta -, como Pierre e Nicolas de Villers, Era como se os leigosquisessem compensar a sua incapacidade de ler ou meditar apalavra de Deus por um excesso de violência contra o seu própriocorpo.

Essa tendência à procura das façanhas ascéticas é, comomuitos fenômenos espirituais, profundamente ambígua: nela se

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exprimem ao mesmo tempo uma obsessão angustiada com asalvação e o desejo de imitar até em seus tormentos o Cristosofredor, que era uma das primeiras manifestações do despertarevangélico. Não se pode explicar de outra maneira o sucesso daflagelação voluntária, que se desenvolveu no século XI, nos meioseremíticos italianos, sob a influência, em particular, de são PedroDamião. ~te; um dos instrumentos da Paixão de Cristo, setomou entãõ'l':nneio privilegiado de penitência; garantindo aos jque se flagelavam com ele, em virtude.de um processo de comu- i

taçâo, o resgate dos castigos devidos pelo pecado. Mas os ascetas""selvagens", que se multiplicavam no Ocidente depois do ano mil,davam a impressão de procurar o sofrimento pelo sofrimento: emmuitos eremitérios e reclusões, praticavam-se jejuns extraordiná-rios, usavam-se cilícios de crina diretamente sobre a pele. Algunsapertavam. seus membros com cordas e nós ou círculos de ferro,quando não era com verdadeiros corseletes, como são Domingos,"o Encouraçado", que, em seu retiro de Fonte Avellana, não podiamover-se sem enterrar na pele placas' metálicas guamecidas depregos. Essas são formas extremas; mas que refletem bem certastendências da espiritualidade comum. O ideal.da vida cristã naépoca feudal é um estilo de vida heróica êaràcterizado por umasérie de esforços prodigiosos e uma procura do recorde, como ocavaleiro que devia superar-se incessantemente, executando sem-pre novas proezas. A santidade continuava no campo do extraor-dinário, mas tomava-se acessível à custa de duros esforços. Quemjejuava várias semanas a fio, passava as noites em oração e operavacuras miraculosas via-se rapidamente canonizado pelas multi-dôes, se não pela Igreja.

Masnemtodos.os fiéis apaix'9naaos.péla perfeição ou sim-plesmente desejosos de garantir a sua salvação se faiiam eremitas"ou reclusos. Existia um meio menos penoso de adquirir algummérito aos olhos de Deus: a peregrinação. Desde a alta IdadeMédia, 'os monges irlandeseS"t:fiimtm propagádo, por exemplo, acrença na virtude santificante da peregrinatio religiosa, espécie deexílio voluntário de termo indefinido. O significado da peregri-nação mudou no século XI, quando muitos penitentes esco-lheram como objetivo de sua viagem santuários célebres comoSão Tiago de Compostela ou lugares santos como Roma e princi-

.1' palmente Jerusalém. Em uma época em que as viagens eram1 empreendimentos perigosos, entende-se que esses longos deslo-

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camentos tenham sido considerados pelos fiéis e pelos clérigoscomo um exercício ascético e uma forma de penitência. Tam-bém não se poderia esquecer, entre as práticas meritórias, ojejum, prescrito pela Igreja em certas épocas do ano litúrgicoe certos dias da semana, mas que podia ser praticado maisfrequentemente por devoção; Aesmola, enfim, era o ato religiosopor excelência dos leigos, como diz um dos primeiros textosjurídicos que tentaram definir seu status na Igreja, o Decreto domonge Graciano (por volta de 1140): "É permitido aos leigos teruma esposa, cultivar a terra, julgar e intentar processos, depositarsuasoferendas no altar, pagar o dízimo.Sefizerem isso,poderão sersalvos,com a condição de evitar os vícios,pela prática da beneme-rência."!"

.Como nossa finalidade não é estudar essas práticas de pie-dade por si mesmas, basta-nos aqui observar-lhes o espírito. Adespeito de sua diversidade, elas tendem para o mesmo objetivo:a aquisição de méritos pela privação e pelo sofrimento. O homemmedieval, efetivamente, estava profundamente convencido deque só uma dolorosa expiação podia obter a remissão dos seuspecados. O essencial do esforçoascêtico era dirigido contra acarne e,em particular, contra o corpo; terreno de predileção dasforças do mal. Procurava-se pois humilhã-lo e quebrã-lo com asmortificações. .

Essa espiritualidade, centrada no combate do homemcontra si mesmo, resultava naturalmente. em uma religião dasobras, pois os fiéis só podiam esperar deter a cólera do Deus-JuizIlluItiplicandoas práticas de devoção e de caridade. Quando, emT025,'osherêÚc'()s de .~afrrmaranidi~mtedo bispoocaráter'volúriiário da regénerilção espiritual e puseram em dúvida 6·Vàlot, de certos sacrarnerítos.iapénas deram, umaformulaçâoabruptaao ceticismo em relação à graça, que caracterizava a mentalidadereligiosa do seu tempo. Masseria errôneover nessa atitude apenasa expressão de uma fé materialista e pouco esclarecida. De fato,os homens da época feudal oravam com os meios de que dispu-nham: seus corpos, suas forças e sua coragem. Como observouJ. Toussaert a propósito do fim da Idade Média - mas isso valetambém para os séculos precedentes -, "o esforço físico e con-creto substituía, em uma forma de piedade mais exteriorizada emuito diferente da nossa, o dificil esforço da elevação do espíritopara Deus".15

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Para conhecer a história dos séculos XI e XII, as principais fontesnarrativas de que dispõe o historiador são as crônicas monásticas;seu número. e sua importância provam o interesse pronunciadodos cenobitas pelo desenrolar dos acontecimentos. Mas a abun-dância dessa produção não se explica somente pelo desejo dearrancar o passado do esquecimen to e dele tirar lições. Ela se devetambém à preocupação que os religiosos tiveram de discernircomo a obra da salvação, inaugurada pela Encamação, se inscre-via na trama do tempo. Assim, as crônicas medievais começammuitas vezes por considerações sobre a criação do mundo e porum resumo da História Sagrada, antes de abordar o relato dosfatos, às vezes muito localizados, que constituem, aos nossosolhos, o seu objeto próprio. Para os monges desse tempo, toda ahistória partícula!"se inscrevia na história global do povo de Deus,que estava longe de acabar. O homem espiritual devia perscrutarcom atenção os acontecimentos para ver neles os sinais de umcrescimento da Igreja e da aproximação da Parusia. Ele dariaatenção apenas aos episódios mais significativos,em sua opinião,que não seriam necessariamente aqueles que o historiador dehoje desejaria encontrar.

Em seu nível bem mais terra-a-terra, os leigos não estavammenos atentos aos sinaisdos tempos. Todos estavamintimamentepersuadidos de'que Deus intervinha de modo direto nos destinosindividuais e coletivos. Pensava-se,em particular, que o seu poderse manifestava por prodígios, cuja significação estaria em relaçãocom as ações dos homens e que as guerras e as epidemias eramconseqüênciado pecado, Naverdade, Deuseraa8.$imilado àjustiça imanente: ele.retribuía a cada um segundo ás suas obras'.O cronista clunisiano Raoul Glaber conta como o conde FoulqueNera, que mostrara uma grande crueldade para com seus inimi-gos, quísaliviar a sua consciência mandando construir uma igreja.No dia da dedicação, uma tempestade estourou num céu serenoe a derrubou. Ninguém, nos diz ele, duvidou do significado doacidente.l" Deus não permite que os acontecimentos se desenro-lem contra a sua justiça, mas, antes de castigar os homens, Elelhes dirige advertências através dos elementos (principalmenteos astros) e sobretudo por meio de visõese milagres. Cabe a7adai

um ficar alerta e acolhê-Ias a tempo.

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o Todo-Poderoso não é apenas o guardião da lei moral; Eleé também ojuiz que, no fim dos séculos, fará com que oshumanoscompareçam ao seu tribunal. Essejulgamento, simultaneamenteuniversal e particular, do qual ninguém sabe "nem o dia nem ahora", fascinou os espíritos em certas épocas. Na Idade Média, eprincipalmente durante o século XI,muito se esperou e temeu.A Igreja difundira na consciência coletiva a convicção de que otempo não era simples escoamento, mas que era orientado paraa volta última do Cristo e para o advento daJe!USalém celeste. Olugar que se dava ao Apocalipse nos tratados espirituais monás-ticos, como na arte românica, ilustra bem o sucesso desse tema.Por um desvio natural, a espera dos últimos tempos fez nascertoda uma especulação sobre as circunstâncias que deviam prece-der a sua chegada. Nas vésperas do ano mil, a atenção se fixouprincipalmente no Anticristo, hidra de 100 faces sempre renas-cente, cuja vinda os clérigos acreditavam reconhecer nas vicis-situdes da história: invasões, calamidades diversas, aparecimentode heresias. O monge Adson de Montier-en-Der lhe consagrouuma obra rio fim do século X, e Raoul Glaber o evoca por váriasvezes.É mais dificil imaginarmos a idéia que tinha sobre isso umsimples fiel. De qualquer forma, até o fim da Idade Média, oscristãos do Ocidente consideraram como uma possibilidade mui-to concreta a volta do Anticristo, cujas perseguições deviam pre-ceder-de pouco o julgamento final. Com a notícia de que eleaparecera no Oriente, massasde homens e mulheres se abalaramsem hesitação e partiram paríl iniciar os combates anunciadoresda volta gloriosa do Cristo.

"É um erroacreditar nos terrores do-anomil,masdeve-se'"'_.>' adrni~r queJ>s melhores cris.tã;9~,cl<1sse,te~po;Yivera!JlCoJnuma;:'.' --:';-

ansiedade latente.e.que"meditando o Evangelho, faziam dessa... -inquietação uma virtude.T'" Na verdade, ao longo do século XI,essa ambivalência da espera escatológica aparecia nitidamente:por um lado, ela suscitava reações pessimistas e marcadas pelomedo; por outro, principalmente uma vez chegado o termomilenário, ela levou os fiéis e os clérigos para o caminho dapurificação. O entusiasmo religioso que acompanhou os movi-mentos de paz e garantiu o seu.sucesso, as restituições de dízimose de igrejas feitas pelos senhores, enfim o florescimento de ummonaquismo renovado, não deveriam ser relacionados com esseestado de espírito que, nos documentos do tempo, émarcado pela

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freqüência do preâmbulo Appropinquante fine mundi? Mas o im-pulso provocado pelos temíveis prazos de 1000e 1033 sobreviveuàs circunstâncias que o fizeram nascer. Na segunda metade doséculo XI, a Igreja e a sociedade iriam beneficiar-se, para suatransformação e progresso, de energias liberadas pelo afastamen-to progressivo das perspectivas apocalípticas.

3. Da Reforma à Cruzada: rumo a umaespiritualidade da ação

Entre os clérigos, a espiritualidade escatológica favoreceu as ini-ciativas'missionárias, como as de Bruno de Querfurt ou de santoAdalberto, que empreenderam a conversão dos eslavos,por voltado ano mil, e principalmente os movimentos de reforma. Jásublinhamos o laço estreito que existe entre a espera do adventopróximo do Reino e o desejo de apresentar a Deus uma Igrejasem mácula. No século XI, o ritmo dos empreendimentos refor-madores se acelerou. Na França, Guilherme de Volpíano e Lan-franc, para citar apenas osmais notáveis, fundaram abadias comoLe Bec e Fécamp, cuja influência cultural e espiritual foi conside-rável. Na Itália, procurou-se uma união entre a vida cenobítica eavida eremítica no âmbito da regra beneditina, com são Romual-do (morto em 1027), fundador dos camáldulos, e sãoJoão Gual-berto, de Vallombrosa (morto em 1073). Outros meios eclesiás-ticos foram atingidos por uma renovação do fervor, particular-mente certos bispos e capítulos catedrais da Lotaríngia e do sulda França, que restabeleceram o uso da vida canônica. Todosesses'ésforçÓsresultaram- depois de vicissitudesque nãoé nossopropósito estudar aqui--- na reforma do papado, que .de'Nicolân>' '.II a Gregório VII, se libertou progressivamente da tutelaimperiale tomou a frente da luta pela liberdade da Igreja. O conjuntodesses movimentos, aliás compósitos e diversos, recebeu dos his-toriadores o nome de reforma gregoriana, que restringe o seualcance, reduzindo-o à ação de um único homem. Denominaçãojustificada, entretanto, se se considerar que o monge Hildebran-do, antes mesmo de tornar-se o papa Gregório VII, foi durantemais de 30 anos (1049 -1084) um dos principais animadores epropagadores da reforma. Uma vezelevado à Sede apostólica, elea levou ao paroxismo, não hesitando em conduzir a Igreja à beirado caos, para que a boa causa triunfasse contra os defensores de

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um sistema julgado escandaloso. Da luta contra o tráfico dasdignidades eclesiásticas e o concubinato dos padres, passou-se,com Humbert de Moyenmoutier, ao questionamento da inves-tidura leiga, de onde procediam todos essesabusos. Gregório VIIfoi ainda mais longe, reivindicando para a Igreja a Iibeitas, isto é,ao mesmo tempo a independência em relação ao imperador e odireito exclusivo de julgar a sociedade cristã.

Até uma época recente, não houve muito interesse pelaespiritualidade da reforma, gregoriana, muitas vezes reduzida,pelos historiadores, a um simples movimento de reação contra osabusos do feudalismo em matéria eclesiástica. Entretanto, só sepode compreender o sentido dessa luta, cujo resultado deveria-ser de terminante para a Igreja, situando-a em uma perspectivaescatológica. A violência epistolar de Gregório VII, sua obsti-nação em lutar contrr. os adversários, bispos dissidentes e o impe-rador germânico, não encontram explicação apenas no caráterapaixonado do pontífice. Este tinha a convicção de que a socie-dade do seu tempo constituía um campo fechado, onde os discí-pulos do Cristo tinham que travar um combate decisivo contra asforças do mal, que tendiam a atacar a própria Igreja. Para cumprira missão sobrenatural que lhe fora atribuída pelo seu fundador,esta devia libertar-se do seu domínio, se necessário pela violência.Assim, entre os gregorianos, uma sensívelmudança se operou noplano da escatologia: a espera inquieta da catástrofe última deulugar ao desejo de construir hic et nunc o reino de Deus. Já que ofim dos tempos não parecia iminente, a Igreja não podia maislimitar-se a fazer crescer em cada cristão o homem interior, deixan-do aossoberanos e aospríncipesocuidado de regercomo quisessem

c: a'sociedadedncUIIlbia~eJdotaWu1t~ fazer,comque a realeza doCristo fosse reconhecida por todo o universo.cencamando-se nasestruturas visfveise recorrendo, se fosseo caso,aosmeios do poder.Assim,suavizou-seo caráter escatológicoda Cidade de Deus descritapor santoAgostinho, em beneficio de uma entidade político-religio-sa, que osautores da Idade Média designaram sob o nome de saneiares publica christiana . É o que chamamos-cristgndade>

Avontade de agir diretamente sobre o mundo para torná-lode acordo com a vontade divina já estava presente em certosbispos e abades, no começo do século XI. Quando se encar-regaram da organização dos movimentos de paz, substituindo aautoridade real em decadência, iniciaram um processo que leva-

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ria a Igreja a intervir com freqüência cada vezmaior nos assuntosseculares. Aliás, foi o que percebeu um prelado do império, obispo Gérard de Cambrai, que, em 1033, se opusera com todas asforças à reunião de assembléias de paz na sua diocese. Em suaopinião, cabia ao rei e não à Igreja garantir a ordem pública, e osreligiosos saíam dos seus papéis quando se ocupavam de questõestemporais. Das primeiras ações dos clérigos em favor da paz até adeposição de Henrique IV,há, efetivamente, uma continuidade e oprenúncio do que seria a teocracia medieval, isto é, uma tentativade construir aqui na terra o reino de Deus. Todavia, Gregório VIIfoi mais longe do que os monges mais abertos às solicitações dasociedade do seu tempo. Enquanto Cluny, por exemplo, só viasalvaçãona instituiçãomonástica eprivilegiavaavida contemplativa,o papa reformador lançou a todos os cristãos uni apelo para aação pela reforma da Igreja e da sociedade. Para salvar o mundo,não bastava mais rezar por ele; era preciso tomar-lhe a frente.Dessamutação da espiritualidade,a vida monástica sairia, a longotermo, desvalorizada, enquanto o combate pela fé e o serviço dopróximo se tomariam as tarefas específicas do cristão. Certa-mente não foi por acaso que a ruptura entre Roma e Cons-tantinoplafoi consumada em 1054, no mesmo momento em que,sob a influência do movimento reformador, o papado e a Igrejalatina tomavam caminhos inteiramente novos no campo religioso.

A reforma gregoriana coincidiu aproximadamente com aascensão do feudalismo na maioria dos países do Ocidente.Diante da nova classe senhorial, cuja função e ocupação essencialera a guerra, a Igreja manteve durante algum tempo uma atitudereservada. Ligada,tradicionalmenteaopoder real, no começo ela.viu nos .milites apenas causadoresde.anarquia e perturbação, Noséculo X, por exemplo, os primeiros clunisianos condenaramcom virulência o orgulho da aristocracia leiga e a opressão queela exercia sobre os pobres. Odon de Cluny, por volta de 950,multiplicou as invectivascontra osmaus nobres, que abusavam doseu poder ao invés de usá-lo no serviço do bem comum. Quandoele exalta a figura de são Géraudd'Aurillac, insiste na recusa dederramar sangue, que singularizava esse piedoso leigo no seio doseu ambiente aristocrático. De fato, a Igreja condenava severa-mente a violência e a guerra. O fato de matar um inimigo emcombate, quaisquer que fossem as circunstâncias atenuantes,constituía um pecado que maculava aquele que o executava .

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Desde essa época, entretanto, houve tentativas para cristianizar amilitia através de um processo de sacralização, do qual a liturgiaconservou vestígios.No Pontifical romano-germânico, ritual litúr-gico constituído em Mainz em meados do século X, encontra-seum cerimonial da bênção da espada e da lança, assim como umaoração pelos combatentes. No século XI, apareceu o rito em queeram armados os cavaleiros, cerimônia até então exclusivamenteprofana, mas cujo caráter religioso não deixaria de se afirmar,

, para tornar-se preponderante no século XIII. Essasolicitude nova! para cornos cavaleiros não era desinteressada: a sagração habili-! tava o rei carolíngio a defender a Igreja e fazia disso um dever

!para ele; no novo contexto feudal, essa obrigação passavapara osdonos do solo e para os detentores do poder público, isto é,para

,-OS.Senhores.Fazendo-se armar segundo o cerimoniallitúrgico, ol mdes se comprometia a comportar-se como soldado de Cristo. A

cavalaria tornava-se a forma cristã da condição militar.Certamente isso não implicava, por parte da Igreja, uma

aprovação da violência exercida arbitrariamente pelos senhoresentre si e em relação aos indivíduos sem armas. Nas regiões emque a decomposição do poder político e a fragmentação ter-ritorial estavammais avançadas - isto é, do Poitou ao Languedoce à Borgonha - alguns clérigos até interferiram diretamente paracombater a anarquia. Mas a paz de Deus, que assembléias comoas de Charroux e Narbonne tentaram impor, por volta do anomil, não evitavaas guerras privadas e condenava simplesmente aviolência contra as pessoas desarmadas e os lugares sagrados. Poroutro lado, a Igreja se esforçavapor associar o mais estreitamentepossívelos milites às decisões tomadas, que não podiam tomar-seefetivassem o seu assentimeritoe a.sua colaboração. Assim,a paz,à qual os clérigos quiseram dar um caráter inviolável e sagrado,por meio de juramentos sobre as relíquias, mostrou-se muitasvezes como "a expressão da violência legalizada, já que o seuestabelecimento e a sua defesa cabiam aos únicos que teriamrealmente ó poder de opor-se a ela".18 Apartir de 1020, a promul-gaçãó da trégua de Deus parece marcar uma guinada na atitudeda Igreja diante da guerra. Limitando os combates no tempo, elanão desacreditava o próprio ato guerreiro, apresentado como umpecado, assim como a paixão pelo lucro ou a luxúria? Mas aatitude dos clérigos diante da violência continuou ambígua. Ini-.cialmente, não hesitaram em fazer, eles próprios, uso das armas,

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em certas regiões, para reprimir asviolaçõesdo direito: no Poitou,formaram-se exércitos de paz, chefiados por monges e seus vas-salos; em Bourges, em 1038, o arcebispo organizou uma milícia,que atacou castelos de senhores promotores de desordens. Essastentativas não tiveram futuro, mas comprovam o aparecimentode um novo estado de espírito entre os homens da Igreja, dosquais alguns acabaram considerando que o uso da força erajustificável quando fosse utilizado para fins benéficos para asociedade cristã e sob sua direção. Por outro lado, fixar o númerode dias em que a guerra ficava proibida não era reconhecer queela era lícita, se não legítima, no resto do tempo?

A luta contra o Islã, particularmente na Espanha, iria acele-rar a passagem para uma atitude cada vez mais compreensiva emface do uso de armas. Em uma carta dirigida em 1063ao arcebispode Narbonne, o papa Alexandre II, inspirando-se aliás em textospontificais do século IX, relativos à defesa da Itália contra ossarracenos, afirmou que não era pecado derramar o sangue dosinfiéis. A grande novidade desse documento reside no fato de queo pontífice afirma que participar de uma guerra útil para a Igrejaconstitui uma satisfaçãopenitencial,no mesmo nível que a esmolaou a peregrinação. Os cavaleirosfrancos que Cluny enviavaentão,em grande número, para lutar contra os mouros diante de Tole-do, gozavam pois, em virtude dessa comutação de tipo original,da remissão das penas que lhes tinham sido infligidas por seuspecados. Por outro lado, os papas da época gregoriana interferi-ram por várias vezes em lutas que lhes pareceram importantes,para marcar o interesse que tinham na vitória de um dos camposcombatentes. Essefavorecimento era assinalado pela outorga doVexillum Sancti Petri, emblema que conferia à causa dos leigos queo recebiamum caráter sagrado e às suas guerras a aparência deum combate pela fé. Foi o que ocorreu, por exemplo, em 1066,com Guilherme o Conquistador, encorajado por Alexandre II ainvadir a Inglaterra; alguns anos antes, Erlembaud, chefe dospatarinos de Milão, vira a sua ação violenta contra o clero simo-níaco e seus defensores ratificada do mesmo modo pela Igrejaromana. Iniciativa nitidamente gregoriana, na medida em queimplicava que a tumultuosa vocação leiga para a luta armada deviase manter nos limites de um apoio obediente às decisões dopapado reformador. O próprio Gregório VII pediu socorro paraa sua causa aos reis, e, como estes o traíram, apelou para que

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grandes senhores ou simples fiéis pusessem sua espada a serviçoda Sede apostólica.

Da fusão de todos esseselementos nasceu, no fim do séculoXI, a espiritualidade da Cruzada. Não se deve esquecer que foipor ocasião de uma assembléia de paz, reunida em Clermont em1095, que o papa Urbano li lançou um apelo que provocou apartida para a Terra Santa de inumeráveis fiéis. Para fazer reinarpor toda a parte a paz de Deus e libertar os cristãos do Oriente,oprimidos pelos turcos, era preciso combater com o ferro, Oapelo direto lançado pelo papada aos cavaleiros, sem passar pelossoberanos - pelo menos em um primeiro tempo - suscitou umpoderoso movimento em favor da libertação do túmulo de Cristo.,Ao mesmo tempo, conferiu ao uso das armas, tarefa específica daclasse feudal, o caráter de uma ação religiosa, fazendo dele oinstrumento de uma restauração cristã e da propagação da fé.Com as Cruzadas, a luta contra os infiéis, e mais tarde contra osheréticos e outros inimigos da Igreja, o apelo de Clermont,oferecia-se uma chance à aristocracia para que assegurasse a suasalvação, sem renunciar à sua vocação militar.

Discemir as linhas de força da vida espiritual no Ocidentedurante a primeira idade feudal não é uma tarefa fácil. As si-tuações variavam de um país a outro, quando não era de umaregião para outra, o que toma conjecturaís e provisórias as afir-mações de caráter geral; por outro lado, no mesmo momento emque se acredita apreendê-Ias, as realidades daquele tempo serevelam movediças e cheias de contradições. Algumas consta-tações, entretanto, se impõem à evidência. Primeiramente, foi apreponderância maciça da espiritualidade monástica que, paraalém do mundo dosreligiosos, influenciou profúndamçnteasociedade cristãems~uc()njuntd.Espiritu:ilida&' do "à parte", da .recusa, senão do desprezo domundo.daespera escatológica. Éimpressionante ver que, quando os leigos, por volta do ano mil,começaram a ter acesso a uma vida religiosa mais consciente,procuravam viver à maneira dos monges e nas suas pegadas.Longe de reivindicar uma autonomia qualquer do temporal, elesmanifestaram um desejo de ascetismo e um espiritualismo exa-cerbado, que conduziram os mais exigentes deles ao limiar daheresia. Era como se osfiéis tivessemquerido se apropriar do idealreligioso e das observâncias do monaquismo, para gozar, emcontrapartida, das graças e recompensassprometidas aos que

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renunciaram aos prazeres do mundo. O fascínio exercido por umideal religioso tão exigente sobre os leigos não deixa de surpreen-der, à primeira vista. Mas as oposições categóricas entre Deus eSatã, entre o Bem e o Mal, o espírito e a carne, veiculadas pelaespiritualidade monástica, a importância do combate espiritual ea espera de um mundo melhor, tudo issocorrespondia mui to bemàs aspirações de homens simples e concretos, habituados a umavida rude, para os quais o Evangelho tinha o sabor da novidade.O amálgama que se operou então entre o ideal monástico e aperfeição cristã'marcaria de modo duradouro as representaçõesda santidade na mentalidade comum. Até o século XIII, pelomenos, os fiéis considerariam espontaneamente como um santotodo homem ou toda mulher que renunciasse à vida mundanapara levar uma existência austera e dominar seu corpo pelosofrimento voluntário. .

Os resultados da reforma gregoriana foram contraditórios:dessacralizando 'o poder temporal e exaltando o sacerdócio, elateve como conseqüência aumentar a distância entre os clérigos eos leigos. Separação que se inscreve na organização do espaçointerno das igrejas, onde, no século XII, apareceu o jube, vastabarreira de pedra, ornada de esculturas, que isolava os clérigos,agrupados no coro, dos fiéis reunidos na nave. Os primeiros, comos quais a Igreja tinha cada vez mais tendência a identificar-se,arrogaram-se o monopólio do sagrado, enquanto os segundoseram relegados a atividades profanas. Maso que lhes fazia perdera evolução da eclesiologia, os leigos o encontravam largamenteno plano da espiritualidade. Em um mundo que se tornava ocenário de um confronto decisivoentre as duas Cidades e o lugaronde se edificava 6 reinode Deus, largas p()ssibilidades de açãose ofereciamaos fiéis esobretudo aoscombatentes. A concepçãoda Cruzada como o-pus Dei; conferindo à ação guerreira um papelativo na vida da Igreja, ofereceu à cavalaria um meio de participardiretamente das graças da salvação, sem ter que renunciar ao seuestado' e aos seus valores próprios. Aos nossos olhos de homensdo século XX, massacrar os infiéis ou impor o batismo pela forçaa populações vencidas (o que aliás ocorreu raramente) podeparecer uma curiosa forma de vida cristã. Mas, na perspectiva deuma história da espiritualidade medieval, asCruzadas nos interes-sam menos em seu desenrolar histórico do que como testemunhodo aparecimento de uma nova religiosidade. Por trás da aris-

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1. Annales de QJ1.edlindh,trg, M.G.H.S.S., III, p.54.2. Marc Bloch, La sociêtê fêodale, t.I, 1939, p.139.3. P. Schrnitz, "La liturgie de Cluny", in Spiritualità cluniacense; Todi, 1960,

p.8.3-99.4. Principalmente em seu grande livro, L 'Amour des lettres et le désir de Dieu;

Paris, 1957. .'5. R Bultot, "Spirituels et théologiens devant l'homme etle monde", Reuue

thomiste, 64, 1964, p.546.'6. Cf.J. Batany, "L'Eglise et le mépris du monde", Annales ESC, 20,1965,. p.218-28, e a resposta de R Bultot em Annales ESC, 22, 1967, p.219-28.7. L. :J. Bataillon e J. -P. Jossua, "Le mépris du monde. De l'intérêt d'une

discussion actuelle", Reoue des sciences philosophiques et théologiques, 51,1967, p.23-38.

8. E.Gilson, "Le message de Cluny", in A Cluny, Dijon, 1950, p.30.9. Abbon de F1eury, Apologeticus ad Hugonum et Rodbertum reges Francorum,

PL, 139, 463.10. Ibid.: "No que se refere ao estado conjugal, este só é permitido por

indulgência, para evitar que o homem, na idade em que as tentações devidasà fragilidade da carne são fortes, não caia em.uma situaçâo pior ainda."·

11. Orderic Vital, Hist. eclles., '\T' 20.., .,': " •.... ' .12. Cf. A. Frugoni, "Incontro conCluny'vin Spiritualità cluniacense, Todi,

1960, p.23-9.13. B. H. Rosenwein, "Feudal war and monastic peace: Cluniac liturgy as

ritual aggression", Viator, II, 1971, p.129-57.14. Dêcret; c. 7, XII, q.I, ed. Friedberg, p. 678.15.J.Toussaert, Le sentiment religieux, ia Vie et Ia Pratique religieuse des laics en

Flandre maritime ... aux XIV, J;."Vet début du XW: siêcle, Paris, 1963, p.247.16. Raoul Glaber, Histoires, II, 4, 32-4, citado por P. Rousset, "Raoul Glaber,

interprete de Ia pensée commune au xr siêcle", Reoue d'Histoire de l'Eglisede France, 36, 1950, p.5-24.

17. G. Duby, L'An Mi~ Paris, 1967, p.146.18. R Fossier, "Remarques sur l'étude des 'commotions' sociales aux Ix" et

XUe siêcles, Cahiers de Civilisation médiéuale, 16, 1973, p.45-50.

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64 A Espintualidade na Idade Média Ocidental

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tocracia que, graças a elas, encontrou um modo de inserçãoespecífica na Igreja, perfilava-se a massa dos pobres e dos in-divíduos sem armas. Entre eles, muitos eram aqueles que as-piravam a uma vida religiosa autêntica, e que se recusavam alimitar-se a um papel puramente passivo ou instrumental. Dessatensão entre as solicitações de um evangelismo popular, atiçadopela reforma gregoriana, e a atitude dos clérigos que tendiam afazer do sagrado o seu apanágio, nasceram no século XII proble-mas e movimentos espirituais de um novo tipo.

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CAPÍTULO III

A Religião dos Novos Tempos(final séc. XI - séc. XII)

1. Novas condições da vida espiritual

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Os historiadores da Idade Média concordam hoje em considerarque, na maioria das regiões do Ocidente, o período que se estendedo fim do século XI ao início do século XIII, aproximadamenteentre 1080 e 1220, foi marcado em todos os setores por umespetacular salto à frente. Foi o século do "grande progresso"(G. Duby), caracterizado simultaneamente por uma expansãodemo gráfica sem precedentes e pela difusão de novas técnicasque deram impulso à produção agrícola e artesanal, Em ummundo que continuava sendo essencialmente rural, as cidadesviviam um verdadeiro reuascímento e apareciam novos grupossociais. Entre estes, a burguesia, categoria ainda mal definida noséculo XII, assinalada pelo habitat urbano e pelo exercício deprofissões que implicam a posse de um capital financeiro oucultural; mercadores, armadores, homens da lei, notários etc.Depois de séculos de imobilismo e isolamento, o Ocidente, come-çando pela Itália e pelas regiões entre Seine e f:Scaut, era o cenáriode uma verdadeira "revolução comercial" (R-S. Lopez), que nãodeixa de apresentar alguma analogia com a revolução industrialdo século XIX. De qualquer forma, como esta, ela provocoumutações e rupturas, cujas repercussões não tardaram a se fazersentir no domínio da vida espiritual.

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A nova sociedade que nasceu no século XII se situava noâmbito feudal, e até mesmo países como a Alemanha conhece-ram, naquela época, o processo de dissolução da autoridade, que,nas regiões mais ocidentais, se completara desde o primeiro terçodo século XI. Mas o sistema feudal, fundado na apropriação do 'poder pelos donos do solo, foi obrigado a se adaptar às novascondições da vida econômica. As perspectivas sedutoras que asfrentes pioneiras da colonização ofereciamaos camponeses, acrescente mobilidade da mão-de-obra obrigavam os senhores aconceder a seus prepostos uma liberdade cada vez maior, paranão dizer total. Nas cidades, o arbítrio do regime senhorial eracontestado pelos grupos sociaismaisdinâmicos. Os burgueses, nointerior do movimento comunal, arrancavam pouco a pouco aosdetentores tradicionais da autoridade - condes ou bispos -garantias para o livre exercício de suas atividades e por vezes atéa autonomia urbana.

A conseqüência talvezmais importante de todas essas trans-formações foi o aparecimento de uma mentalidade de lucro. Ocamponês que procurava aumentar a sua produção ou. o seurebanho para ganhar algumas moedas no mercado, o senhor queaumentava a sua lavoura e o número dos seus homens paramelhorar a sua renda, o mercador que viajavapelas vias terrestresou marítimas' com suas trouxas de pano eram todos motivadospelo desejo de ganhar dinheiro, cada vezmais dinheiro. O cleronão escapava a esse movimento e C. Violante mostrou como, naItália, os bispos souberam tirar partido da expansão econômica. 1Por outro lado, o enriquecimento dos monges era um temacorrente na literatura da época. Principais beneficiarias das res-tituiçôes'de dízitn0se,de igrej(lS,efetuadaspelos leigos sob, a, infIuêriCiadâ reforma gregôriàna, a:s grimdes abadias jjveram,em'certos momentos, dificuldades financeiras, devidas à 'má gestãodos seus negócios temporais ou às despesas excessivasem matériade construções; sua prosperidade material não era por isso me-nos evidente aos olhos dos contemporâneos. Em todos os níveisda sociedade e especialmente nas cidades, o dinheiro assumiacada vez mais importância nas relações humanas e na vida coti-diana. Diante .desse mundo novo, a teologia e a espiritualidademonásticas se mostravam rapidamente inadaptadas. Muitos reli-giosos, habituados a um mundo estável e austero, reagiam cominvectivas: o abade Rupert de Deutz, em 1128, apresentava o

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progresso urbano como conseqüência do pecado e via as cidadescomo antros de infames traficantes e desclassificados. Algunsanos antes, um dos seus confrades, Guibert de Nogent, lançouuma condenação sem apelo sobre o movimento comunal, que eleobservara em Laon. Essa atitude de medo e recusa diante dasociedade urbana atenuou-se com o tempo, mas foram neces-sários muitos choques e conflitos para que a espiritualidadetradicional se adaptasse às novas condições da vida social.

A expansão econômica do Ocidente no século XII não teveapenas conseqüências benéficas. Ao mesmo tempo em que elaarrancava a sociedade à estagnação, aumentava a distância queseparava os ricos dos pobres. No próprio seio do campesinato,que formava até então uma massamais ou menos indiferenciada,caracterizada pela precariedade das suas condições de existênciae pela mediocridade do seu nível de vida, apareceram élivagensentre os que dispunham de algum instrumento para o cultivo daterra, os lavradores, e os que tinham apenas os braços, os traba-lhadores braçais. A pobreza, que era considerada antes 'corno umestado de fraqueza - o pobre era o homem indefeso diarÍte dopoderoso -" tomou-se antes de tudo uma situação econômicadeprimida e um sinal de decadência social.Por falta de armas parao cavaleiro, de livrospara o clérigo ou de arado para o camponês,o pobre era aquele que não tinha os meios de ocupar a suaposição.ê Na sociedade rural tradicional, em que todos se conhe-ciam, ele estava seguro de gozar da solidariedade do grupo aoqualpertencia. Quando o uso generalizado do dinheiro afrouxouesseslaços e constituiu-se um meio urbano onde reinava um certoanonimato, ()sindigent~s se tomaraIIl desclassificados,destinados

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Essa sociedade nova foi marcada, enfim, por uma mobili-dade crescente. Senhores que partiam para a Cruzada, campo- ,neses que ganhavam regiões de colonização, clérigos à procurade escolas e mestres, bispos ou abades indo aRoma ou ao concílio,todos os meios pareciam agitados, nessa época, por uma sede demudança e deslocamento. Durante muito tempo limitados -exceto uma elite restrita - ao horizonte de sua aldeia, os habi-tantes do Ocident~ não hesitavam em lançar-se em expedições

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68 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

longínquas e perigosas. O gosto pelas peregrinações, especial-mente pela de São Tiago de Compostela, era apenas uma dasmanifestações dessa febre de viagens, que contrastava com o idealmonástico de estabilidade e acabava por contestá-lo, Nesse climanovo, influências exteriores se exerciam cada vez mais nitida-mente no campo espiritual. As experiências eremíticas que sedesenrolavam no fundo da Calábria eram logo conhecidas até nasregiões setentrionais, como se constata na vida de são Bruno, navirada do século XI. Através dos mercadores italianos em contatocom os países eslavos, e talvez dos cruzados que estiveram noOriente, as correntes religiosas de inspiração dualista penetraramno Ocidente, no segundo terço do século XII. Nos moinhos e nastabernas, nos mercados e nas feiras; trocavam-se informações eidéias. As controvérsias eruditas encontraram rapidamente econas praças públicas: "Discussões sobre a Santíssima Trindade setravam nas encruzilhadas", escrevem ao papa os bispos da provín-cia de Sens em 1140, vendo com inquietação operar-se ajunçãoentre o mundo das escolas eo dos trabalhadores. Apesar dadificuldade das comunicações, . a difusão dos movimentos es-pirituais se efetuava em ritmo sempre mais rápido, tal era areceptividade das massas. Outra evolução afetou o universo men-tal dos homens desse tempo: foi o processo de dessacralização domundo. Iniciado pela reforma gregoriana; ele levou, a longoprazo, à emancipação da sociedade leiga. Ainda se estava longedisso, no século XII, e talvez nunca O domínio da Igreja sobre asociedade foi tão forte quanto nó tempo de Alexandre III e deInocêncio IH. Mas, doravante, começava a fazer-se sentir a in-fluênciadomovimento Slue s .P9~p~rteg.9~ c~~rigos. levava a um.questionamento-dás 'r:el?tç9.~~.'eriÇI:eOJeIIlpp~I .....e. o:espiritu~:Dessaéralizandod'Ímpéri6' ea lnvestidtirá leiga, Gregório VII eYves de Chartres tinham trabalhado, involuntariamerite, para aconstituição de uma sociedade profana autônoma. Pela distinçãoque estabelecia entre sacramento e sacramental (simples ritosacro, instituído pela Igreja, para obter, por sua intervenção,efeitos de ordem espiritual); Yves de Chartres pôs fim, pelo menosno nível conceitual, a uma confusão que durava desde a épocacarolíngia, e contribuiu para tirar o sagrado cristão da esfera damagia.

No plano teológico, o movimento das idéias caminhava nomesmo sentido. Entre 1120 e 1140, os mestres da escola de Char-

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tres refletiram sobre o sentido da criação. Desenvolveram a idéiade que, longe de permanecer na matéria, Deus, depois de tê-Iacriado, retirou-se, deixando ao homem o cuidado de dominar ouniverso. Nessa perspectiva, não era de modo algum uma injúriaà sua majestade procurar conhecer a sua vontade e a ordem queele quis fazer reinar nas coisas. A criação não era mais consideradacomo um magma informe e misterioso, mas, segundo as palavrasfamosas de Bernard de Chartres, como "uma coleção ordenadade criaturas". Longe de ser um simples reflexo degradado dasesferas celestes, o universo tinha uma realidade própria que podiaser objeto de estudos e interpretação. Era o fim do mundoencantado. Sem dúvida, essas concepções continuaram sendo pormuito tempo o apanágio de uma elite culta, e, mesmo entre osclérigos, elas foram violentamente combatidas por aqueles que,como são Bernardo, consideravam como uma profanação e umsinal de presunção a obra dos teólogos que tentavam apreenderos mistérios divinos apenas com os recursos do intelecto. Masquando o IV Concílio de Latrão, em 1215, decidiu que a Igrejanão reconhecia nenhum valor nos ordálios e que os clérigos nãodeviam recorrer a eles, não fez mais do que tirar conclusões deum movimento que, há um século, tendia a estabelecer, segun-do a feliz expressão do Pe. Chenu, "um novo equilíbrio entre anatureza e a graça".3

Além disso, ao menos para uma parte daqueles que viviamali, o mundo deixava de ser o vale de lágrimas de que falavam osautores monásticos. O crescimento econômico, desigual segundoas regiões, mas real, a elevação do nível de vida que se traduzia no

.. seio daaristocracia por uma procura doconfortoedo Iuxo,o··movimento, enfim, que coridti:úà~ipatá alíberdadeos habitantes..das cidades e dos campos, tudoisso concorria para dar àvidahumana e aos bens deste mundo menos precariedade e maissedução. Certamente, o Ocidente do século XII estava ainda bemafastado da abundância, e terríveis crises de fome, como as dosanos 1194-1199, ainda o devastavam periodicamente.Entretanto,o mundo parecia rriais belo, mais atraente e não apenas para ostrovadores. A nobreza, que gozava de lazeres e ainda não s.eempobrecera, podia ter acesso às alegrias do espírito e da cultura;nas cortes feudais do norte da França eram compostas as cançõesde gesta, que exaltavam as façanhas dos guerreiros sobre umfundo de cristianismo heróico. Nas do sul, mais profanas, ocor-

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riam disputas sutis para conquistar os favores das damas. A estra-tégia e a casuística amorosas deram nascimento à poesia cortesã,em que o amor se tornou a matéria por excelência dos diverti-mentos que essa sociedade refinada oferecia a si mesma. Mesmoque não tivesse nada de platônico e não excluísse a posse carnal,o amor cortesão ilustra bem a distância tomada pelo homem emrelação ao desejo. Mas a paixão não é uma simples transposiçãodo amor divino. Como mostrou Denis de Rougemont, ela cons-titui uma realidade fundamentalmente nova, na qual o amorhumano se basta a si mesmo e age segundo a sua lógica própria.No plano espiritual, a ascensão de uma sociedade e de umacultura profanas provocaria uma dupla reação: alguns, julgandoque essas seduções novas tornavam o mundo mais temível, lheopuseram uma recusa total e se retiraram para o deserto. Outros,tomando o partido das mudanças que' se operavam, estimaramque a resistência ao mal não implicava necessariamente a fugapara fora do século.

2. O retorno às fontes: vida apostólica e vida evangélica

A partir de meados do século XI, uma exigência de aprofun-damento surgiu no Ocidente, no domínio religioso. Aliás, issoocorreu mais cedo na Itália, pela proximidade do mundo bizan-tino, de onde se irradiavam estímulos espirituais intensos. A partirdos anos 1080, o movimento se estendeu ao noroeste da Europa,onde produziu os seus mais belos frutos. Esse desejo de viver·melhor afé, que os historiadores êóristatamsemchegar _a expli-cã-Io bem, se qadtItitiprimeiraPIenteporilInay~:m~dedevolt<làs fontes, o que foi urna das tendências marcantes da vida culturaldaqueles tempos. Para os homens do século XII, conscientes deserem os indignos herdeiros de um passado brilhante, o progressose situava na redescoberta de uma tradição que a dureza dostempos fizera perder de vista. Esse fascínio exercido pelas origensé assinalado, no campo da expressão literária, pela preocupaçãode imitar a boa latinidade, a de Cícero. e de Virgílio, preferida àde Macróbio ou de Lactâncio. Em Bolonha, lmerius e os glosa-dores exaltam o direito romano, cujos textos, progressivamentereconstituídos em sua integralidade, eliminam as coleções incom-pletas e as compilações contaminadas pela influência dos direitos

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bárbaros. Em todos os setores da vida intelectual, tradições impu-ras cedem lugar a uma tradição mais autêntica.

A Igreja não ficou alheia a esse movimento de volta às fontes.Efetivamente, para ela também a perfeição se situava no passado,isto é, na época dos apóstolos e dos mártires. Aos olhos de muitosclérigos, à medida que se afastava dessa época abençoada, omundo só podia envelhecer e declinar. Foi mérito dos reforma-dores do século XI acreditar e mostrar pelo exemplo que a Igrejaencontraria uma nova juventude, inspirando-se nesse passadoque, muitas vezes na sua história, representou o papel de um mitodinâmico e estimulante. Gregório VII traduz bem esse novoestado de espírito ao escrever: "O Senhor não disse: meu nomeé costume, mas: .meu nome é Verdade." Daí a sua recusa deconsiderar como válidas práticas que se tinham insinuado du-ran te séculos no mundo dos clérigos, em nome de uma fidelidadeà autêntica Tradição, da qual a Igreja romana era a única garantiae intérprete. Na mesma época, eremitas abandonaram em grandenúmero as comunidades monásticas, para reencontrar o estilo devida praticado outrora pelos Padres do deserto, e, um poucodepois, os cistercienses se separaram de Cluny, em nome de umavolta à regra de são Bento, que fora obscurecida e deformadapelas observâncias consuetudinárias. Em resumo, todas as ex-periências religiosas desse tempo foram marcadas pela vontadede voltar à pureza original do cristianismo. O ideal da Ecclesiaeprimitivae forma se tornou a referência obrigatória da nova es-piritualidade, que, de maneira aparentemente paradoxal, procu-rava, em uma fidelidade intensificada no testemunho dos após-tolos e na mensagem evangélica, a resposta para-os-problemas."levantados por-umasociedade-eai-mutàçâo. .

Concretamente, esse desejo de reatar com a perfeição daIgreja primitiva se expressou no ideal da vita apostolica. A idéia deque a comunidade primitiva de Jerusalém, tal como esta é apre-sentada nos Atos dos Apóstolos," constituía um modelo para aIgreja e de que o seu estilo de vida era o próprio modelo da vidaperfeita encontrou eco em todos os ambientes. Sem dúvida, ointeresse por esses textos não esperou o século XI. Mas os monges,que durante toda a alta Idade Média se apresentaram como osautênticos sucessores e imitadores dos apóstolos, tinham-se apo-derado deles. Não levavam eles vida apostólica, eles que, renun-ciando a seus bens pessoais e à sua vontade própria, viviam em

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72 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental A Religuio dos Novos Tempos 73

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comum para melhor servir ao Senhorr? Na verdade, até meadosdo século XI, ninguém contestou a idéia de que a perfeição cristãse realizava nos claustros. Com a reforma gregoriana, esboçou-seuma reação contra essas concepções. O próprio Gregório VII,quando era apenas o arquidiácono Hildebrando, quis estender obenefício da vida comum, que estava no centro do ideal apos-tólico, ao conjunto do clero. Fracassou nessa tentativa, e o sínodoromano de 1059 se contentou em aconselhar os padres a que"possuíssem em comum tudo o que lhes vinha da Igreja". Nessenível, a vida apostólica aparece como instrumento de uma refor-ma moral e disciplinar dos clérigos. Esforçando-se por fazê-Iosviver em comunidades, o papado procurava principalmente sub-traí-los à autoridade dos senhores leigos, para colocá-Ios sob ocontrole do bispo. Issoainda era demais, e os que se conformaramcom essasprescrições foram minoria. Tomaram o nome de cône-gos regulares, por oposição aos seculares, que, recusando a disci-plina do dormitório e do refeitório comuns, conservavam seusbens pessoais, como lhes permitia a regra de Aix de 816.

A concepção gregoriana da vida apostólica, que a maioriados ministros do culto julgaram excessivamente exigente, pare-ceu ao contrário insuficiente a certos espíritos apaixonados pelaperfeição. Entre os cõnegos regulares e os eremitas, muitos foramos que, não contentes de imitar certas observâncias monásticas,acabaram por afirmar que os clérigos eram os verdadeiros suces-sores dos apóstolos. O monaquismo, efetivamente, eliminandopela clausura o confronto com o mundo, reduzira o apostoladoà santificação pessoal. Ora, uma releitura atenta dos Atos enfati-z(j.vaa importância" do ministério da pregação e do anúncio doEvangelho na vocação dosapóstolos," Em um.rnundo que seprocurava menos' evitar do que conquistar e salvar, a Cura anima-rum, que osmonges geralmente não praticavam, tendeu a tornar-se um dos motivos essenciais da vida apostólica. Seguir o modeloda Igreja primitiva não era pois unicamente viver em comuni-dade, sem propriedade privada, mas também ir até os outroshomens. Essa abertura para o mundo exterior tomou formasmuito diversas segundo os casos, desde o desenvolvimento dahospitalidade e da assistência até o ministério da pregação.

O aprofundamento do ideal religioso deve ser relacionadocom as transformações da piedade. Se se procura definir as"idades do mundo", como faziam os autores medievais, por sua

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característica essencial no plano religioso, pode-se dizer que aépoca que vai do fim do século XI ao início do século XIII foiverdadeiramente a idade do Cristo. Não que a espiritualidade daalta Idade Média e do monaquismo feudal tenha desconhecido apessoa do Salvador: Alcuíno e, mais tarde, os grandes abades deCluny tiveram uma grande veneração pela cruz. Mas, no conjun-to, vê-se,em Cristo, antes do século Xll.principalmente a segundapessoa da Trindade e o Juiz temível que deve voltar no fim dostempos. Aliás, essa é a imagem que nos dão os tímpanos de muitasigrejas românicas. O testemunho da arte, como o da literaturaespiritual, confirma que os espíritos da época eram mais sensíveisà transcendência divina do que à Encarnação, à Transfiguraçãodo que à Paixão.

Desde meados do século XI, um grande teólogo monástico,santo Anselrno, deu início a uma guinada decisiva na evoluçãoreligiosa da IdadeMédia, apresentando, em um dos seus tratados,a questão fundamental: Cur Deus homo? Por que Deus se fezhomem? Respondeu mostrando que e~ absolutamente neces-sário que Deus se encarnasse e participasse da condição humanapara que a humanidade fosse salva. Mesmo que santo Anselmonão tenha sido compreendido durante sua vida, ele apareciacomo o precursor das grandes orientações espirituais do séculoXII, sublinhando o amor infinito do Verbo feito carne e a gran-deza da Virgem Maria. Mas ainda não chegara a hora da devoçãoterna ou patética à humanidade do Cristo, embora se encontremalguns sinais anunciadores, por exemplo no tratado do cister-ciense Aelred de Rievaulx intitulado Quando Jesus tinha doze anos.Efetivamente, 9 Homem-Deus exaltado pela espiritualidade dessetempo (o Cristo dos Evangelhos, A nova consciência da Encar-. nação não se deixa dissociar daê:orüemplação da glória divina.Nem Autun nem Vézelay nos falam do Jesus da história ou dasensibilidade. Como são Bernardo, apresentam-nos o Cristo-Rei,o Deus Salvador, o Amor personificado.

O lugar central ocupado pelo Cristo na piedade dos cristãosdo século XII se traduziu, no nível da espiritualidade, por umavalorização do Novo Testamento. Uma fidelidade mais exigenteà palavra de Deus conduziu então osmelhores espíritos a ultrapas-sar a concepção moral e disciplinar da vida apostólica. Desde ocomeço do século XII, em muitas comunidades fervorosas, eramenos comum a referência ao texto dos Atos dos Apóstolos do

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-74 A Espiritunlidade na Idade Média Ocidental

que aos trechos do Evangelho capazes de fornecer regras de vida,especialmente aqueles que evocam a pobreza de Cristo e dosseus discípulos. Etienne de Muret (morto em 1124), fundador daordem de Grandmont, escreve significativamente: "Aúnica re&rade vida é o Evangelho; é a regra deJesus Cristo, mais perfeita doque a de são Bento." Assimtambém são Norberto, quando crioua ordem de Prémontré como instrução a seus discípulos para"seguirem as Sagradas Escrituras e tomarem o Cristo como guia".Para os adeptos da nova espiritualidade, o amor aDeus se traduziapor uma imitação tão fiel quanto possível da vida do Senhor."Seguir nu o Cristo nu" (nudusnudum Christum sequx)7 e evange-lizar os pobres são as duas solicitações fundamentais dos movi-mentos espirituais do século XII.

A vontade de seguir o modelo do Cristo do Evangelho setraduziu, em primeiro lugar, por exigências maiores no campoda pobreza. A vita apostolica, enfatizando a comunidade dos bens,abolia a distinção entre ricose pobres. Era praticada pelos monges'e cõnegos regulares, que, ao entrar na vidareligiosa, renunciavamà propriedade individual. Mas, nos fatos, essas aspirações comu-nitárias podiam muito bem coexistir coma posse coletiva de bensimportantes, o que era o caso da maior parte das abadias e doscapítulos. Aqueles que queriam seguir o Evangelho ao pé da letratinham que ir mais longe, isto é, viver como "pobres de Cristo",limitando-se ao mínimo indispensável, e às vezes até menos.Etienne de Muret desejava que os grãmontanos tivessempa.;,sesbem' reduzidas, para que fossem obrigados a esmolar, fora dacomunidade, para conseguir uma parte da sua subsistência; Senem todos os adeptos da vita vereapostolica foram tão longe, aausteridade-e apobreza material foram.rentretanto, asmaiores.preocupações dps"grupos que perseguiam esse ideal. .. '. .'

Um exemplo nos mostrará a que atitudes concretas podialevar a nova espiritualidade. Em 1083, seis senhores, que haviamcometido saques e foram convertidos por um monge, se fixaramna solidão de Affiighem, no Brabante, para se dedicarem.juntos,à vida religiosa.f A própria escolha do lugar era significativa:tratava-sede uma zona não-cultivada e desabitada, mas situada nasproximidades da estrada que ia de Bruges para Colônia, itineráriomuito freqüentado pelos peregrinos e mercadores. Essa regiãoera, até então, um refúgio de bandidos; os novos monges ins-tauraram a segurança e garantiram a hospitalidade para os via-

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jantes. A comunidade conseguiu do conde de Louvain o direitode eleger livremente o seu abade e foi isenta, pelo bispo do lugar,de qualquer pagamento. Estabeleceu-se que a décima parte detodas. as rendas seria reservada aos pobres. Por outro lado, osfundadores dedicaram o essencial de seus esforços e de seusrecursos ã construção e à ampliação da hospedaria, que logocontou com duas alas. Para si, os monges edificaram um oratóriomodesto e durante muito tempo se contentaram com um simplesbarracão. A sobrevivência da comunidade era assegurada, emparte, pela exploração das suas terras, mas também pelo trabalhomanual e pelas esmolas dos fiéis. Assim se traduzia, na própriaestrutura das rendas.um espírito de abandono à Providência, queestavamuito na linha do evangelismo dos fundadores. Encontra-se a mesma inspiração na preocupação que tiveram. de evitarqualquer apropriação de bens de outras pessoas, assim como em.sua recusa de, iiitentar ações na justiça contra aqueles que oslesavam e de aceitar certas doações - por exemplo de igrejas ~incompatfveiscóm o seu ideal. O sucesso da nova fundação foirápido: convertidos, tanto clérigos quanto leigos não tardaram aafluir a Affiighem, com famílias inteiras. Depois de algumashesitações. iniciais, cada um acabou encontrando o seu lugar nacomunidade: os monges no coro, os conversos nos campos e asmulheres nos priorados de monjas, que se espalharam nos cam-pos vizinhos. Nesse caso preciso, a experiência se inscreveu emum quadro monástico, o da regra beneditina. Mas também se .poderiam citar muitas outras fundações dessa época, que foramoriginalmente animadas pelo mesmo espírito, resultando emestrutur:asinstitucionais diferentes. Efetivamente, maisdo que umprograma moral ou um estilo'de Vidabem definido, o idealapostólico sê define. como um-estado de espíritoque pode tridu-"zir-sede maneiras muito diversas; .

3. As transfonnações da vida religiosa

Durante a alta Idade Média e a primeira idade feudal, a vidamonástica constituíra a única expressão do ideal de perfeiçãocristã, além de algumas experiências eremíticas isoladas. Essemonolitismo convinha bem a uma sociedade estática, caracteriza-da por um clima de atonia espiritual e cultural. Mas, à medidaque o Ocidente despertava e suas estruturas se tomavam mais

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complexas, as aspirações dos fiéis não encontravam mais satisfa-ção apenas no âmbito do monaquismo tradicional. Ao lado deste,que também sentia a necessidade de reformar-se, nasceram edesenvolveram-se novas formas de vida consagrada, fundadassobre espiritualidades originais. Embora estivessempor definiçãofora do mundo, os próprios religiosos refletiam assim, de certomodo, as tensões e contradições da sociedade que os cercava.

Esses diversos movimentos tinham em comum uma exi-gência de autenticidade e personalização da vida religiosa. Práti-cas admitidas por séculos foram rapidamente questionadas, emnome da fidelidade ao Evangelho. No próprio seio do mona-quismo, e mais ainda fora dele, as virtudes do ritualismo foramcontestadas. Nas abadias da primeira idade feudal, a maioria dosmonges eram oblatos, isto é, filhos colocados no mosteiro desdea mais tenra idade por seus pais. A "obra de Deus" (opus Dez) erarealmente considerada como uma atividade que não necessitavade uma vocação específica. Oferecer o filho para fazer dele ummonge não apresentava maisproblemas do que empregá-Io comoescudeiro de um outro senhor, para que aprendesse o oficio dasarmas: não se pede a um trabalhador que ame o seu oficio, masque o faça conscienciosamente. O monge que recitava as suas.preces integral e corretamente cumpria o seu dever, mesmo quenem sempre o fizessecom entusiasmo. Além'disso, o indivíduo sóexistia em função da coletividade, e a oração de cada religioso sótinha valor na medida em que se fundava em um canto litúrgicocomunitário. A rigor, a preocupação com a perfeição exterior ecom o esplendor do culto podia ser um obstáculo ao aprofun-,damento pess<?aL<!a,f§:~iIIl"çl!<:optqt-s~,n<t.rnaioria dos movi-..tl1ep~osq*giosq~q\le ..apareceram-na aurora do século XII, odesejo de quebrara couraça da rotina parapennitir que os. indivíduos se empenhassem, de modo pessoal e livre, no serviçodo Cristo. Nas ordens novas, só os adultos eram admitidos, quersua entrada na vida religiosa fosse conseqüência de uma vocaçãoamadurecida desde a juventude, quer fosse exigida por umaruptura com a vida mundana, isto é, no caso de uma conversão.

Por outro lado, o refinamento do espírito religioso, que nãodeixa de ter relação com os progressos da instrução, tornoumuitos cristãos mais sensíveisàs discordâncias que existiam entreo aspecto visívelda Igreja e o ideal em que ela deveria se inspirar.Essa exigência de conformidade com o modelo evangélico já se

A ReJigiãn dos Nouos Tempos 77

manifestara no século XI no campo moral. Em muitas regiões dacristandade, os fiéis, desejosos de que seus padres levassem umavida casta, os obrigaram! por vezes, a praticar o celibato, o quegarantia, a seu ver, a eficácia do ministério sacramental. Noséculo XII, a crítica se.deslocou dos costumes para a riqueza e opoder do clero. Os espíritos mais exigentes se escandalizavam aover as abadias e os capítulos catedrais instalados na sociedadefeudal e no regime senhorial. De fato, as reformas dos séculos XeXI tinham permitido, em muitos casos,uma reconstituição e atéum aumento dos temporais eclesiásticos;os grandes abades refor-madores foram também, em geral, bons administradores, preo-cupados em sanear e reforçar as bases materiais da vida religiosa,para garantir uma observância regular e dar mais brilho ao cultodivino. O resultado foi que, se os monges continuavam pobresindividualmente, tornavam-se ricos coletivamente: "Fit monachusmiles, sedfit depauperedives", constata, por volta de 1080, um cône-go do oeste da França. a propósito de senhores que tomavam ohábito monástico.? Por outro lado, os religiosos dedicavam umaparte crescente do seu tempo à gestão do seu patrimônio, assimcomo a processos contra herdeiros pouco interessados em execu-tar os testamentos feitos por seus parentes em favor das igrejas.Aprópria dispersão dos bens fundiários legados pelos leigos, cons-tituídos em geral de pequenas parcelas e de dízimos, altares epartes de igrejas, acarretava sérios inconvenientes para os ceno-bitas. Muitos deles eram mandados viver sozinhos ou a dois, emlongínquos priorados, para administrar os trabalhos agrícolas.Daí resultava um afrouxamento sensível nas observâncias e mui-tas vezes uma contaminação dos monges pela sociedade am-..biente. O esplendor da liturgia das grandes abadias, como Cluny

.. ouSaint~Dehis,:nãocompensava essa.secularizáçãode fato do. monaquismo, da:qual o enriquecimentoeraapenas um aspecto..Diante dessa evolução do cenobitismo, muitos cristãos à procurade perfeição espiritual preferiram experimentar novas fórmulasde vida religiosa a alistar-seentre os Monges Negros.

a) O eremitismo

Avida eremítica não é uma invenção do século XII. Desde a altaIdade Média, menciona-se a existência de homens que se retira-ram para o fundo dos bosques para levar uma existência religiosa

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na solidão e no nomadismo. Nos mosteiros beneditinos, o abadepodia autorizar, a titulo excepcional, um monge de qualidadesespirituais comprovadas a deixar a comunidade para passar al-gum tempo no "deserto". No total, esses solitários eram poucos enão parecem ter exercido uma grande influência sobre seuscontemporâneos. A partir do século XI, em contrapartida, e prin-cipalmente no XII, o eremitismo se tornou um fenômeno gene-ralizado, uma alternativa à vida monástica.

Esse impulso do' eremitismo, que começou na Itália emtorno do ano mil, com são Romualdo, fundador dos camáldulos,também provinha de uma volta às fontes. Pelo sul da Itália,chegavam ao Ocidente as influências bizantinas. Ora, no Orientecristão, a tradição dos Padres do deserto - os ascetas solitários daTebaida- continuava Viva.Ela reencontrou todo o seu prestígioe a sua força de atração no Ocidente, em razão das transformaçõeseconômicas e sociais. Os primeiros desenvolvinientos da econo-mia de trocas e do progresso urbano suscitaram uma reação derecusa em certos meios - principalmente na aristocracia e entreos habitantes da cidade - que, por uma reviravolta completà,bem tipica da mentalidade medieval, queimaram o que haviamadorado e passaram da opulência ao extremo despojamento, davida social para o anacoretismo. Como observa L. Genicot, "asvelhas cidades se tornavam, no século XI, suficientemente impor-tantes para desviar de si as almas religiosas; mas ainda não o erampara provocar problemas espirituais tão graves que as melhoresdecidissem consagrar-se ao aposto lado das massas urbanas". 10 Oseremitas se recrutavam também em grande número no seio doclero secular. Este, em muitas regiões, se mostrava refratário a.todarefórma, 6que'le~<?llúnl certo número de seús' mêml>ro~.adeixarem comunídadessacérdotais 0(1 capítulos pouco fervoro,sos, a fim de irem para o campo, e principalmente para a florestae para os cerrados, lugares de eleiçâo.dos solitários. No oeste daFrança, no Limousin e na Lotaríngia, o eremitismo clerical viveu,no começo do século XII, um desenvolvimento espetacular, ilus-trado pelos nomes de Robert d'Arbrissel, de Pierre de Craon e deEtienne d'Obazine, para citar apenas os maiores.

O eremitismo do século XII não é o mesmo das épocasprecedentes. Ele também sofreu a influência do ideal da vidaapostólica e sua espiritualidade leva essa marca. Os eremitasdesse tempo eram, efetivamente, penitentes: suas roupas eram

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sempre rústicas, sua aparência descuidada e até terrível. Procura-vam os lugares mais sinistros, dormiam em grutas, diretamenteno chão, ou construíam cabanas de galhos de árvores. Alimenta-vam-se com alguns legumes e produtos de colheita, nunca co-miam carne nem bebiam vinho. Vivendo sós e sem ajuda deninguém, tinham que redobrar a vigilância diante das tentaçõesdo Demônio. Assim, apesar do ascetismo ao qual se condenavam,os eremitas levavam uma vida ativa, e não puramente contempla-tiva, como os reclusos e reclusas que viviam encerrados em umacela junto a uma igreja ou a um mosteiro. Por necessidade e porvocação, deviam trabalhar com as próprias mãos; enfim, usavambarba e se deslocavam a pé ou montados em asnos, nunca a cavalo.

Se os eremitas fugiram do mundo, nem por isso se tornaramindiferentes aos homens, e a literatura profana ou hagiográficaos mostra distribuindo conselhos e reconforto aos que Vinhamprocurá-los, Sua mobilidade e sua liberdade lhes permitiam exer-cer um apostolado muito variado, indo da assistência aos viajantesà pregação popular, como esses Wanderprediger (pregadores am-bulantes) - Robert d'Arbrissel ou Bernard de Tiron, por exem-plo - que sulcavam o oeste da França no começo do século XII,seguidos por bandos de fiéis entusiasmados .com suas palavras.O próprio Etienne de Muret, o mais estável dos eremitas, nãohesitava em dizer que, se era bom renunciar ao mundo, eramelhor ainda arrancar as almas ao Diabo. Esses solitários nãoestavam pois unicamente preocupados com a salvação das suaspróprias almas. Eles se voltaram para os outros e principalmentepara os mais pobres.

Nas experiências erenúticas da época, a fase individual nãofoi, -.muitai' vezes, de longa dÚràção. O eremita bem-sucedido'atraí;;: nôrmaimente discípúlo~:'~furidá~a:uma comunidadereli-;giosa, reunida em tomo de um lugar de culto. O eremitismo -daquele tempo era mais um estado de espírito do que uma formade vida. Pode-se defini-lo como um cenobitismo em escala res-trita, bastante livre e rural, por oposição ao cenobitismo urbanoe disciplinado das ordens antigas. Podia levar tanto à Cruzada -no caso de Pedro o Eremita - quanto ao exercício da hos-pitalidade ou a fundações monásticas e canônicas de um tiponovo. Por escolha pessoal do fundador ou sob a pressão de umbispo, a regra de são Bento era por vezes escolhida, como emSavigny ou em La Chaise-Dieu, ou então a de santo Agostinho.

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Mas freqüentemente as fundações de origem eremítica adotaramconstituições originais: Robert d'Arbrissel criou um mosteiroduplo, dirigido por uma abadessa, em Fontevrault. Em Camaldolie em Vallombrosa, na Itália, tentou-se combinar as exigências doeremitismo e as do cenobitismo no seio de estabelecimentosque compreendiam simultaneamente um mosteiro, onde osmonges rezavam e trabalhavam em comum, e eremitérios, emque os religiosos viviam na solidão e no ascetismo mais rude,sendo o laço entre os dois a obrigação de fazer as refeições emcomum. Quanto aos grãinontanos, estes se tomaram; de acordocom a orientação de Etienne de Muret, os campeões da pobrezasem comprometimentos, concretizada pelos limites' impostos àpropriedade coletiva. Distinguiram-se também pelo fato de queos conversos - isto é, os leigos - tinham preponderância sobreos monges no goverro da ordem ..

A única fundação eremítica que, sem nunca ter reunidocontingentes importantes, teve um sucesso duradouro e marcouprofundamente a espiritualidade do Ocidente medieval foi aordem dos cartuxos. Esta nasceu no fim do século XI, fundadapor são Bruno, encarregado do ensino da teologia em Reims, quese retirou com alguns companheiros para o vale selvagem daChartreuse, perto de Grenoble. A nova comunidade se caracteri-zou imediatamente por uma vida de penitência muito severa epor uma vontade de ruptura total com o mundo exterior. SãoBruno (morto em 1101) também procurou conciliar as exigên-cias do ideal eremítico com as necessidades do cenobitismo.Deste: ele conservou, além dos votos de castidade e estabilidade,a submissão dos religiosos ao prior e ouso dacorreção fraterna;no capítulo. Mas.osempréstimosao .m()naqpi$rn,Qbeneditino não .constituíam o essencial.' Nós CmtumenedigidosporGuigues oVelho, quinto prior da Grande Cartuxa, e adotados por toda aordem em meados do século XII, a palavra de ordem era a solidão ..Fechado em sua cela, de onde não saía nem para as refeições, oreligioso devia ler, orar e meditar em silêncio, longe de qualqueragitação, para chegar à perfeita humildade e ouvir a voz de Deus.Entretanto, não havia nenhum angelismo nessa espiritualidade:o monge-eremita era responsável pela sua subsistência e traba-lhava com as próprias mãos, em geral copiando textos. Por outrolado, o mundo exterior não ficava ignorado. Os cartuxos davamesmolas, recebiam' hóspedes e rezavam pela humanidade. "O

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nome do Cristo é jesus", escreve Guigues; "logo, se perderes, poralguma razão, a vontade de salvar qualquer um dos homens,estarás te cortando dos membros do Cristo." A influência doeremitismo se traduz pela procura da união com Deus na contem-plação. A liturgia, em contrapartida, ocupava um lugar modestona nova ordem. Os cartuxos só se encontravam para o ofício danoite e em algumas horas do dia. Embora a maioria deles fossepadres, raramente celebravam a missa.

A despeito' de certas aparências que os fazem assemelhar-seaos monges, os cartuxos estavam pois na continuidade direta doeremitismo da época, do qual representavam um dos resultadosmais notáveis. Suaespiritualidade é a expressão de uma novamentalidade mais individualista, orientada para experiências pes-soais mais livres e para a aquisição de uma vida religiosa íntima.Nem todos os eremitas atingiram esses ideais; alguns naufragaramna extravagância, e na loucura, outros chegaram aos limites daheresia, como Engelbald d'Hérival, na Lorena, que, julgando-seindigno dos sacramentos da Igreja, recusou-se a construir umlugar de culto, a celebrar a missa e a comungar. Sem dúvida, umaatitude extrema, mas que se aproximava da reserva manifestadapelos cartuxos diante da liturgia e da repugnância de Robertd'Arbrissel pela construção de igrejas. Por trás dessas manifes-tações um tanto loucas do eremitismo, que escandalizaram o cleroda época, perfila-se uma nova concepção da vida cristã, na qual asalvação não dependia de meditações humanas ou da prática deobservâncias, e cada um podia, no interior de simesmo; encontraro Cristo salvador, no mais íntimo do seu espírito.

Uma das características mais originais do eremitisrno medie-.val reside no fato de que ele transcendia a distinção .existente . _,,;entre os ordines eclesiásticoseer'a praticado tanto 'por leigosquanto por monges ou clérigos. Nesse sentido, pode-se dizer queele constituiu um instrumento de promoção religiosa para muitosfiéis, que se sacrificaram para o seu exercício. O sonho de sãoRomualdo, e depois de são Pedro Damião, no século XI, foratransformar a Igreja em um vasto eremitério, assim como osabades de Cluny, na mesma época, procuravam fazer da cristan-dade uma imensa congregação monástica, que, tal como a arcade Noé, preservaria e conduziria à salvação a elite espiritual dahumanidade. Essas grandes ambições logo se desvaneceram; en-tretanto restou a idéia, largamente difundida, de que o eremita

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Em outros casos, a aspiração à perfeição, longe de conduzir osclérigos para o "deserto", levou-os a adotar uma vida comunitáriaestrita, ligada à prática da pobreza, designada nos textos da épocapelos termos de uita camonica.ou. uitaapostolica; Os padres, efetiva-mente, .nâo .tinham alguma razão.para se considerar çomoinYes-,tidos' de lima missão religiosa específica, eles que, segundo aspalavras de um consuetudinário canônico, "sucediam ao Cristo eaos apóstolos na pregação, no batismo e nos outros sacramentosda Igreja"?12 Urbano II reconheceu isso oficialmente em 1090,afirmando o caráter apostólico do estilo de vida dos cônegos, esituando-os no mesmo plano que os monges. Pela primeira vezdepois de séculos, o sacerdócio podia-ser, novamente, considera-do como um estado de perfeição.

Possibilidade teórica, diga-se imediatamente, pois a maioriados ministros do culto recusavam-se a submeter-se a um ideal tãoexigente. Se as fórmulas de vida comum obtinham um franco

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encarnava a perfeição cristã ainda mais do que o monge, namedida em que recapitulava em si, levando-os ao mais alto grau,os carismas e as virtudes do "homem de Deus". Mas o sucessodesse modelo ilustra principalmente a passagem do objetivo pa-ra o subjetivo, que caracteriza a nova mentalidade religiosa: nes-sa perspectiva, o essencial não era o esplendor da liturgia nemmesmo o fervor da comunidade, que podia dissimular uma certamediocridade no nível das pessoas, mas o perfeito louvor prestadoa Deus pelo indivíduo totalmente separado do mundo e absorvidoem um encontro solitário com o seu Criador. A concepção da vidareligiosa que se afirmava através do eremitismo pode ser qualifi-cada de moderna na medida em que, ignorando a hierarquia dosestados de vida, que situava o leigo no nívelmais baixo da escala,na perspectiva da salvação, enfatizava principalmente a priori-dade da experiência espiritual, em relação a todas as estruturasinstitucionais. Isso não implicava, de modo algum, que o eremitafosse um marginal ou um dissidente. Pelo contrário, na cela, "esse1ugar em que Deus conversa com os,homens", segundo a expres-são de Pedro Damião, cáda cristão que dera esse passo podia serconsiderado como realizando plenamente em si o mistério daIgreja. I I

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sucesso na Itália ena Provença, elas se chocavam, nas regioessetentrionais, com a hostilidade de um clero que continuavamuito apegado às estruturas carolíngias. Estreitamente ligados aomeio senhorial pelo sistema da igreja privada, os cônegos dessasregiões não queriam ouvir falar de uma reforma que os obrigariaa renunciar.às suas prebendas. Assim, no norte da França e nospaíses do Reno, a entrada em cena dos cônegos regulares se fez,antes, através de "conversões" individuais de clérigos, que aban-donaram, por fervor, as instituições tradicionais; muitas vezesfundaram novas' igrejas, tanto ubanas quanto rurais, que vieramjustapor-se 'aos capítulos e às colegiais seculares. Outras comuni-dades adotaram a ,vida canônica depois de uma experiênciaeremítica mais ou menos longa. Foi o caso, por exemplo, deArrouaíse.P na Pícardia, e principalmente de Prémontré, pertode Laon, que foi fundado em 1120 por são Norberto.l" Em certoscasos.énfim, grupos de penitentes (por exemplo em L'Artige, noLimousin) ou de 'hospitaleiros (Roncevaux, o Grande são Bernar-do) adotaram essa forma de vida, que convinha melhor à suaatividade caritativa do que ao estado monástico.

O mundo dos cônegos regulares era pois muito diversifica-do, e as fundações que adotaram a vita canonica apareciam maiscomo ordens religiosas de um tipo novo do gue como ponto de 'chegada de uma reforma geral do clero. E ainda mais difícildefinir a sua espiritualidade,já que se, depois de muita hesitação,todas essas comunidades adotaram no início do século XII a regrade santo Agostinho, elas não lhe deram nem o mesmo conteúdonem o mesmo significado. A maioria dos cônegos regulares, defato, se contentaram em observar a Regula prima, uma carta de.santo Agostinho na q,ual?bispo,de Hippone descrevia aexis-tênciacoridiana da peq~eha S<>IIlUnidade-.sacerdotal, que vivia'reunida em torno dele em.um "mosteiro de clérigos". Os usosqueesse texto recomenda são moderados e valoriza-se a vida emcomum, sem propriedade privada. Aqueles que se ativeram a essaregra constituíram o ardo antiquus, particularmente importantenas regiões mediterrâneas.

Mas muitas fundações novas, muitas vezes de origem ererní-tica, quiseram ir mais longe e se referiram, de preferência, a umtexto intitulado Ordo monasterii ou Regula secunda. Este, atribuídoa santo Agostinho, embora no essencial não fosse de sua autoria,era Uma regra' de vida muito severa, valorizando o ascetismo

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vida claustral e dando o exemplo da pobreza evangélica. Asobservâncias dos cônegos de Arrouaise ou de Prémontré podemparecer muito próximas das dos monges do seu tempo; entretan-to, elas se distinguem por sua finalidade, que é apostólica e nãoescatológica. Assim, o estudo, que ocupa um lugar importante navida canônica, não prepara o religioso apenas para orar bem, masigualmente para pregar bem. Do mesmo modo, não é tanto arecitação das horas, mas a missa conventual, que está no centrode sua vida cotidiana, já que o padre é antes de tudo o homemdo sacrifício.

Por ocasião das polêmicas que os opuseram aos monges aolongo do séculoXll, os cônegos regulares foram levados a assumiras implicações fundamentais do seu estado de vida. Pela primeiravez na história da espiritualidade ocidental, alguns clérigos, rejei-tando a primazia absoluta da vida contemplativa, sublinharam ovalor da ação, que situavam no mesmo nível: "O filho de Deus",escreve o prernontrano Anselmo de Havelberg.l" "exemplo damais alta contemplação, assimcomo da mais perfeita ação ... reúneem sua pessoa única o modelo das duas vidas, contemplativa eativa. Ele se propõe como exemplo a todos os cristãos, e es-pecialmente aos seus Apóstolos ...Assim, devemos pensar que elesorganizaram a sua vida de maneira a contemplar Deus segundoa beatitude dos corações puros, ao mesmo tempo em que cuida-vam do próximo segundo a beatitude dos misericordiosos, e issopela pregação, pela cura dos doentes, pela difusão do Evange-lho." Na verdade, se o ideal sacerdotal da primeira geração -a dos fundadores - estava ainda muito marcado pelo clima dareforma gregoriana, com ênfase na castidade e na.sepáraçâo.do.,mundo, em contrapartida, depois de·,·1l30, apareceram muitascorigregáçôesdé cônegosregulares, como ospremontranos.queinsistiam-na cura animarum, que não se-limitava mais ao serviçolitúrgico das igrejas, mas se estendia ao ministério da caridade eda palavra. Fenômeno principalmente sensível no mundo germâ-nico e no leste da Europa, onde os cônegos regulares,_grandescolonizadores de novas terras, assumiram com zelo as funçõesparoquiais.

Entretanto, a espiritualidade canônica não pôde conservardurante muito tempo a sua especificidade e a sua influência. Na

I medida em que estabelecia um laço estreito entre o ideal sacer-1 dotal e a prática da vida em comum, que era impraticável para

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84 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

(jejuns, silêncio, simplicidade das roupas), assim como o traba-lho manual e a pobreza. Os cônegos que desejavam praticar esseideal de vila vere apostolica formaram o ardo novus que, apesar doseu nome, não era uma nova ordem religiosa, mas uma correnterigorista no seio do mundo dos cônegos regulares. Os que seligaram a ela foram muito numerosos nas regiões situadas entreo Sena e o Reno. A expressão mais perfeita do seu ideal espiritualse encontra na regra do Prémontré, único desses gnIpos que teverepercussão na escala da cristandade.

A despeito das diferenças que separavam seus diversos ra-mos, os cônegos regulares elaboraram uma espiritualidade origi-nal, à qual os cristãos do século XII foram sensíveis: em muitasregiões do Ocidente, os cônegos agostinianos foram, nessa época;'tão numerosos quanto osmonges, se não mais. Os adeptos do ardoantiquus deram o exemplo de uma vida religiosa freqüenternenteintensa, desenrolando-se no inferior de um quadro institucíonalextremamente flexível.A regra de santo Agostinho, efetivamente, .não está na mesma linha da de são Bento, cuja precisão e caráter -imperativo ela não tem, No máximo, ela defme uma forma devida e Um clima espiritual, fazendo-se a adaptação às condiçõeslocais ou às intenções do fundador por meio de constituiçõespróprias a tal casa,ou tal ordem. Por outro lado, os cônegos viviamem estreito contato com o mundo, no seio de pequenas comuni-dades instaladas 'em colegiais rurais ou de tipo militar, as quaisexerciam, além do culto, funções sociais qUeiam da educação dascrianças ao serviço dos doentes. Não foi por acaso que, no séculoXIII, são Domingos inscreveu explicitamente -a sua ordem de"cônegos-pregadores", próximos dos leigos e abertos ~os seusproblew#:-"n-a$ fÓrp:lu{?$_cl~iç~4á.ii:agiç~o~anôI1ita".15. -.__ .- --p~~'sua~~~,~scÔnegos reguÍares elabo~~ril urna espiritua-lidade original fundada na exaltaçâo do sacerdócio. O movimen-to canônico, com efeito, não tinha originariamente como objetivoa monaquização do clero secular, Para seus adeptos, a vida comu-nitária, além das-vantagens morais ou disciplinares que apresen-tava, devia antes de tudo contribuir para a édifícaçâo da Igreja.No seio do. ardo novus prevaleceu certamente uma concepçãorigorosa da ascese, mas que não visavaapenas o aperfeiçoamentoindividual: na medida em que era intermediário obrigatório entreDeus e os homens, o padre, que oferecia o sacrifício do altar pelosfiéis, devia purificar-se, separando-se do mundo pela prática da

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muitos deles, não exercia influência sobre os ministros do culto.As conseqüências desse estado de coisas seriam graves: durantetoda a Idade Média, e até o Concílio de Trento, o simples padrenão teria um modelo espiritual adaptado à sua situação concretae ao seu nível de cultura. É significativo, aliás, que nenhum curade aldeia ou cidade, pertencendo ao clero secular, tenha sidoconsiderado santo pela Igreja antes de sãoYves (morto em 1303).Por outro lado, o estilo de vida dos cônegos regulares tendeurapidamente a aproximar-se .do modelo dos monges. A provadisso é o tratado espiritual intitulado De claustro animae, com-posto por volta de 1160, pelo cônego Hugues de Fouilloy. Encon-tra-se nele uma definição puramente defensiva da vida religiosa- o claustro é apresentado como um campo de trincheiras contraas tentações - qu~ seria mais de se esperar de um autor monás-tico. Da tentativa de fazer com que os clérigos adotassem a vidaapostólica, restaram apenas o celibato eclesiástico- que durantemuito tempo ainda seria mais um ideal do que uma realidade-e ordens religiosas, cujo principal mérito foi ter mostrado que apreocupação material e espiritual com o próximo era uma dimen-são essencial da vida consagrada.

c) O~vo monaquis~

Embora questionado direta ou indiretamente pela maioria dosmovimentos religiosos que acabamos de ev.ocar, o monaquismobeneditino teve o seu maior esplendor entre o fim do século XI

" "e.,as pri~eiras.déé~tias<io){lI..Oco~() da imensa basílicade Cluny ',''I,!~cgãÇ>:f.~~iÇQ~~~4?P9i Ur-9an:ólI~l}llP95.,e o de~,~~ltc-:8~,:"

nôit-sur-Lóire erilll08?Mas essemesmo sucesso suscitou reaçõescríticas nos meios espirituais trabalhados pelo ideal da vida apos-tólica. Além dasua riqueza e da sua contaminação pelos assuntostemporais, eles acusavam os Monges Negros, e principalmenteCluny, de ter perdido de vista o próprio espírito do monaquisinoprimitivo, que não era nem litúrgico nem sacerdotal, mas peni-tericial. Ao contrário de uma opinião largamente difundida, nãohouve crise da instituição monástica no fim do século XI, e nãofoi a decadência de Cluny que provocou o nascimento de Cister.As dificuldades, aliás, só começaram na grande abadia da Borgo-nha corria administração do abade Pons de Melgueil (1109-1122) .Seu sucessor, Pedro o Venerável, soube restabelecer a situação e

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recuperar todo o prestígio. Os cistercienses se separaram de Clunyquando este estava em pleno fervor, não porque o condenassem,mas porque queriam algo diferente. Se houve tensões e rupturasno mundo dos claustros, foi na medida em que uma nova es-piritualidade questionava a que prevalecera até então.

Com .Robert de Molesme, fundador de Cister em 1098,Etienne Harding, seu terceiro abade, e são Bernardo,' que deuum impulso decisivo à nova fundação a partir de 1112, apareceurealmente uma concepção original da vida religiosa, fundada,como todos os movimentos espirituais desse tempo, sobre umavontade de volta às fontes. Cister não pretendia inovar, mas voltarà tradição, isto é, à regra primitiva de são Bento, deformada peloscostumes. Através da regra aplicada em toda a sua pureza, era oCristo que osMonges Brancos tentariam imitar, por meio de umavolta à simplicidade evangélica e pela prática da pobreza. Insistia-se·no despojamento e na austeridade. O cenobita era, antes detudo, um penitente, que se retirara do mundo para chorar os seuspecados. Devia refugiar-se na solidão e no silêncio - como oseremitas - e separar-se totalmente do mundo, ao mesmo tempopor um respeito absoluto da clausura e por exercícios ascéticos.Assim, os cistercienses se instalaram de preferência em "desertos"- vales pantanosos ou clareiras em florestas afastadas dos centrosde povoamento - e recusaram qualquer ministério paroquial.Esse ideal exigente levou os fundadores a estabelecer uma orga-nização econômica original: para não serem obrigados a desloca-mentos prejudiciais ao rigor das observâncias e ao espírito comu-nitário, os próprios Monges Brancos exploravam os campos dequeerar.n proprietãriose ,nãoaceitaY<Ullnen.huma. renda .se-

'> ,.,,;nh9ri~ ou.benefício eç}esiásticQ;,Qupd«edditus lU)1'/. habeomus.ôsz"a Cartada Caridade, textofundamentalque cod~taa experiên- .cia da primeira geração cisterciense. Os campos, que, tanto quan-to possível, formavam um único conjunto e ficavam próximos domosteiro, eram explorados por conversos, irmãos leigos queviviam ao lado dos monges professos. Assim, os últimos nãoficavam desviados da vida em comum, no seio da qual cada umrealizava a sua vocação.

A aspiração à pobreza se traduzia, na prática, por um estilode vida pobre; a roupa adotada era branca, isto é, em tecido delã não tingida, a alimentação simples e frugal: uma única refeiçãopor dia, sem carne nem peixe, mas apenas pão e legumes tempe-

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rados com sal e óleo, sem falar dos freqüentesjejuns. Dormitóriossem conforto, onde os monges dormiam vestidos. Simplicidade enudez eram obrigatórias também nas construções: nada de orna-mentos nem preocupações estéticas. Aos edifícios suntuosos dosMonges Negros opõem-se igrejas sem decoração nem-mobiliáriolitúrgico precioso; não há vitrais coloridos nem órgão. Uma opçãopelo despojamento só deixava subsistir na igreja conventual aimagem do Crucificado. A obrigação do trabalho manual efetivofoi restabelecida pelos estatutos, que eram formais nesse ponto: ."Se os irmãos se encontrarem necessitados, pela necessidade oupela pobreza, de trabalhar eles próprios nas colheitas, não seafligirão. Só serão verdadeiramente monges quando viverem dotrabalho de suas mãos" (cap. XLVIII). Em média, o mongecisterciensetrabalhava nos campos de quatro a seis horas por dia;em compensação, o oficio era abreviado e simplificado: todas aspráticas litúrgicas que não eram mencionadas na regra foramabolidas, exceto a missa cotidiana e o oficio dos mortos. Um novoequilíbrio se estabeleceu assim entre a vida de oração, o trabalhofísico e a leitura meditativa.

Todas essas exigências visavam recuperar não só a letra daregra beneditina, mas também o seu espírito. Os cisterciensesestavam, de fato, persuadidos de que a observação das suas pres-crições fundamentais podia levar, já neste mundo, à perfeição dacaridade. Assim, participavam da nova mentalidade religiosa, queprocurava reduzir a distância entre o ideal e a realidade vivida, esubordinava a validade do testemunho à dignidade do apóstolo.Eles refletiam também o espírito do tempo, acolhendo apenasadultosem seus mosteirose aumentando o.Iugardestinadoãprece .privadana:organl~açao .do dia"Ma,s.a,.originalidade:.da,.;reforma:'cistercienséieSldepitncipalm<:!I'lteno fato de que as.observâncias monásticas tradicionais eram interpretadas em umespírito ascético. A renúncia total ao mundo, o trabalho, o silên-. cio, a obediência ao abade levavam à humildade, que é a tomadade consciência, por parte do homem, da sua própria miséria.A partir daí, o monge se eleva, pelas mortificações, até a con-templação do Amor divino, único que pode preencher essevácuo interior e restaurar no homem a imagem de Deus, defor-mada pelo pecado. Essa ascensão nos graus do amor só se realizagraças a um combate incessante e a uma tensão dolorosa, queprovoca sofrimentos cotidianos. A espiritualidade cisterciense,

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principalmente com Aelred de Rievaulx, insiste muito no valorredentor do sofrimento, que pode conduzir a alma ao céu e lheoferece, neste mundo, a certeza da eleição eterna.

Com Cister, o monaquismo, discutido e contestado, preten-dia continuar a encarnar em toda a sua pureza o ideal da Igrejaprimitiva. Com efeito, a humildade e a penitência, que eram aspalavras de ordem espirituais dos movimentos apostólicos, rein-tegram-se, pelos Monges Brancos, no seio do cenobitismo bene-ditino. Masa convergência entre as aspirações religiosas do tempoe a mensag.em cisterciense seria de curta duração. Se, no tempode são Bernardo, a ordem cisterciense exerceu um fascínio excep-cional sobre os espíritos apaixonados pela perfeição e teve umdesenvolvimento muito rápido, não tardou a perder de vista o seuideal primitivo. O literalismo que os fundadores tinham, preten-dido banir logo reapareceu, enquanto se agravavam os problemaspara os quais não se tinha encontrado solução: como conciliarpobreza individ~al e riqueza coletiva? Como estar presente paraos homens, recusando omundo? Para citar somente um exemplo,em um Ocidente em que os espaços rurais não-cultivados come-çavam a escassear, aconteceu que alguns cistercienses destruíramaldeias e expulsaram camponeses para formar "desertos" emtorno de suas novas fundaçôes.!?

Essa discordância crescente entre o ideal e a realidadeacabou por atingir a imagem da ordem. No fim do século XII, ummonge cisterciense calabrês, Joaquim, fundou Uma congregaçãoreformada, a ordem de F1ore.Esta teve apenas um sucesso limita-do, mas as idéias de Joaquim de F10re exerceriam, nas décadas

. ,....,: ...~.çg}lipte,s!HID:!l. grande influência. Partindo de .-pIPam~çii~ç3,().,.~9pre.o,Ap9<:alipse e sobre omistériocia Trindade; eleapup~iaá .. a 'vinda próxima 'de uma ·era..do .Espírtt6Santoímarcada peloadvento de uma Igreja espiritual, totalmente.conternplatíva epura, que difundiria sobre toda a terra o "Evangelho eterno". Porisso mesmo, esse profeta místico manifestava a sua insatisfaçãodiante de um monaquismo em vias de secularização e orientavaos espíritos mais religiosos para a espera de uma nova era.

De modo geral, a herança espiritual de Cister não é des-provida de ambigüidade. No nível dos seus maiores represen-tantes - são Bernardo, Guillaume de Saint-Thierry, Aelred deRievaulx e tantos outros - a Escola cisterciense abriu, incontes-tavelmente, novas perspectivas, enfatizando os caminhos da união

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com Deus.18 Mas, ao fundar esse desejo sobre uma recusa danatureza humana e ao radicalizar o desprezo do mundo, que, noantigo monaquismo, era temperado pelo sentido do equilíbrio epela indulgência para com as pessoas, Cister se expunha a tornar-se rapidamenteestranho à sociedade que o cercava e sem influên-cia sobre ela. O integrismo em matéria de regra levou, muitasvezes, os seus monges ao rigorismo doutrinal e espiritual. Ainsistência unilateral na ascese e na mortificação contribuiu cer-tamente para criar naqueles que, dentro ou fora da ordem,sofreram a sua influência- essa religião um tanto tensa e sempreinsatisfeita consigo própria, que caracteriza tantos cristãos e atésantos dos séculos XII e XIII.

4. Os leigos à procura de uma espiritualidade

As profundas transformações que se produziram no mundo dosclérigos no fim do século XI e no início do século XII não podiamdeixar os leigos indiferentes, A. reforma gregoriana provocou,efetivamente, uma revolução nas estruturas eclesiásticas e ques-tionouas hierarquias tradicionais. Durante esse período agitado,viram-se monges, como Wederico em F1andres ou Guilherme deHirsau e seus companheiros no sul da Alemanha, deixar seusmosteiros e lançar-se em campanhas de pregação contra o anti-papa Guiberto e seus partidários. Algumas décadas depois, opróprio são Bernardo não hesitaria em sair do claustro para lutarcontra o cisma de Anacleto. Por outro lado, Gregório VII apeloupor várias vezes aos leigos, principalmente aos príncipes e aoscavaleiros; para que 'castigassem os 'prelados -simoníacos :e ospadres-concubinós; ".até,pelaforÇi;<se· for 'necessário" ,19. paUl,grande indignação do' clero; que reprovava esse procedimentoinaudito e acusava o pontífice de subverter a Igreja. Este rejeitouas acusações, sublinhando o fato de que todos os fiéis eramchamados a colaborar com a reforma, se quisessem estar emcomunhão com Roma. Sem dúvida, para ele tratava-se menos defavorecer a promoção do laicato do que exaltar a Sede apostólica,ligando diretamente todos os fiéis à autoridade do sucessor. dePedro. Mas o apelo lançado por Gregório VII, retomado em outroplano por Urbano II em Clermont, em 1095, contribuiu comcerteza para aumentar no seio da Igreja o papel dos fiéis, convi-dados a sair de sua passividade para oferecer a sua participação

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direta na reforma e na cruzada Houvera, na época precedente,movimentos religiosos leigos, como o dos patarinos de Milão e deFlorença, Entretanto, estes ficaram relativamente isolados e fo-ram pouco importantes em relação à cristandade. O fato novoque intervém no fim do-século XI é a entrada em cena das massastrabalhadas pela aspiração à salvação.

a) Emergência elopovo criStão: cruzadas, movimentos evangélicos,heresias

Sob a influência de uma cura animarum aperfeiçoada pela multi-plicação das paróquias rurais e urbanas, e certamente tambémpor contatos mais freqüentes com o mundo dos religiosos no níveldos priorados e das colegiais, a religiosidade dos leigos Se apurouem muitas regiões do Ocidente, durante. o século XI. A difusãodo ideal apostólico pelos cônegos. assim como a influência doseremitas e dos pregadores errantes, que propagavam pelo seucaminho temas evangélicos, contribuíram para fazer nascer nosfiéis o desejo de elevar-se até o nível espiritual dos clérigos econquistar a salvação sem renunciar ao seu estado. É nessa pers-pectiva que se deve situar o sucesso impressionante que teve, emtodas as classes da sociedade, o apelo à cruzada, lançado porUrbano li. Na verdade. pela primeira vez, a Igreja entreabria ascomportas da graça em benefício do conjunto dos fiéis, com aúnica condição de que estes partissem para lutar no Orientecontra os inimigos do Cristo. Certamente, o apelo de Clermontdirigia-se, prioritariamente, aos cavaleiros, aos quais fornecia' ao

' ..' mesmo tempo, como vimos, um objetivo religioso ~ uma-jus-. '.tíficaçãopara o s(!~esta1o devida ..Mas foi a plebe quepa~üprimeiro, e desempenhou 'tiro papel decisivo ao longo das tribu-lações que o exército dos francos teve que enfrentar, entre a suachegada à Ásia Menor e a tomada de Jerusalém em 1099. O fatode que milhares de homens e mulheres se tenham posto emmovimento, aceitando duros sofrimentos por amor a Deus, com-prova uma sensibilização profunda das massas para os grandestemas espirituais do cristianismo.

Os objetivos fixados para os cruzados por Urbano II eram aajuda aos cristãos do Oriente e a libertação do túmulo de Cristo:A recompensa prometida era a indulgência plenária. A cruzada,peregrinação armada, apagava a pena devida pelo pecado, que

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ocupava, nessa época, um lugar tão importante quanto a confissão porta-vozes. Antes da tomada de Jerusalérn, os cronistas nosno processo penitencial, pois considerava-se que a falta só era mostram "a gente miúda das hostes" reconduzindo ao bom cami-totalmente redimida depois de expiada. Essasperspectivas não nho os barões que viam apenas os seus interesses políticos e aseram indiferentes para asmultidões que atenderam ao apelo dos suas ambições. Aosolhos dessespobres, asverdadeiras armas quepregadores populares como Pedro o Eremita, mas certamente dariam a vitória aos cristãos eram a penitência, simbolizada pelanão teriam bastado para suscitar esse grande movimento de cruz que usavam sobre as roupas, osjejuns, as preces e as procis-devoção. Se tantos camponeses sem armas, mulheres, crianças e sões. Exterminando os inimigos de Deus, mas também infligindoclérigos dissidentes partiram para a Terra Santa abandonando a simesmo sofrimentos e mortificações, cada um contribuía comtudo, foi menos para ganhar a indulgência da cruzada do que na sua parte para ;ipressar a libertação do túmulo de Cristo e oesperança de que a libertação do Santo Sepulcro inauguraria uma advento do seu reino. Esseestado de espírito é comparável àquelenova era na história da Igreja e do mundo. Édifícilprecisar a idéia . que, na mesma época, animava os adeptos da vila vere apostolica.que eles tinham concretamente, e as indicações dadas pelos SãoNorberto, fundador de Prérnontré, não declarava: "a pobrezacro?i~tas, todos eles clérigos inclinados a registrar a espera esca- rios faz po~uir 'desde ag~ra o rein~ dos céus"?Refletidos atravéstológica das m~as e:n uma linguagem fortemente marcada por das.~en~Idad~s e dos diversosmeros,for~ .ess:s mesmos temassua cultura bíblica, nao devem, necessariamente, ser tomadas ao espIntuaISque Impregnaram todas as consciencias da época.pé da letra. Os cruzados acreditavam verdadeiramente na vinda Com as cruzadas, revela-sepela primeira vez no Ocidente ai:nin.ente do Anticristo ena necessidade de contrapor-lhe a resis- existência de urna espiritualidade popularçque se mostra irnedia-tencia armada da fé, que tomaria possívela volta final do Cristo? tamente como um conjunto coerente. Entre seus elementosPensavam mesmo que passariam diretamente da jemsalém ter- constitutivos, encontramos em primeiro lugar a devoção ao Cris-restr~ para a jemsalém celeste, do Monte das Oliveiras para o to, que fazia nascer o desejo de libertar a terra onde ele vivera eParaíso? De qualquer modo, não é duvidoso q1,leos elementos vingar a honra de Deus, insultada pelos infiéis. Acrescenta-se apop~l.ar~s da cruzada tenham sido animados por um espírito issouma aspiração à purificação individual e coletiva,que explica,messiaruco e estivessemconvencidos de que o reino prometido simultaneamente, os aspectos penitenciais da cruzada e suaspel~Evangelho aos humildes iria chegar. No fim de sua peregri- dimensões messiânicas;mas a escatologia que animava esse gran-naçao estavaJerusalém, lugar da realizaçãodaspromessas divinas, de movimento era menos voltada para a espera do que para aterra abençoada onde corriam em abundância o leite e o mel. ação. O povo de Deus, e principalmente os seus elementos maisAssim,consideravam normal obter na Terra Santa com a remis- pobres, que eram os mais santos, se via investido de uma missãosão dospecados, uma retribuição por seus:sofrimentos, primícias que tinha um sentido na história da salvação:Cesta Dei per Francos,

.. de suarecompensa no além. não hesita em. escrever Guibert de Nogent Por seu combat.e.. Por outro lado, as massas que' responderam ao apelo elos ~ontraos inimigos da fé, pelori,gordas p:nitê.ncias que ele se

pregadores da cruzada estavam persuadidas de que Deus lhes unpunha, o cruzado ganhava o ceu, por assimdizer, com a forçahavia destinado uma tarefa, a libertação dos lugares santos, e, de dos p~nhos. A ~ça se difundia para além das mediações sacra-maneira mais ampla, a missãode purificar o mundo do mal a fim mentais e a Igreja aparecia como estrutura de enquadramento ed~ prep;u:ar a sua volta gloriosa.Daíosmassacresdejudeus: e, em organização, r.naisdo .~ue dispensadora dos favor.esdivinos.Tem-numero. me~lOr,de sarracenos, que marcaram principalmente as po forte da VIda.espIntual, a. cruzada :~ve um m~enso sucesso,du~ primeiras cruzad~, nas quais a participação popular foi porqu_erespondia.a e:,~~ctatIvados fie~sque .~plrava~ a umamaior, A recusa do batismo,. como a heresia, era considerada salvaçaoque pareCladifícilde obter na VIdacotidiana, O Impulsop~los simples fiéis como um insulto a Deus, capaz de atrair a sua : dos .anos 1096-1099 f~i o primeiro de uma série de grandescolera sobre os homens. Aos seus olhos, o Reino só deveria ser \ movimentos de devoçao, que se sucederam até o fim da Idadeacessívelaospuros e aoshumildes, escolhidospor Deus como seus I Média. Dascruzadas às procissões de flagelantes do século XIV, a

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vida religiosa dos leigos seria marcada pela alternância de surtos Mas nem por isso os motivos religiosos devem ser excluídos:de entusiasmo espiritual, que sacudiam periodicamente a cristan- diante dos comprometimentos mesquinhos nos quais naufraga,dade, e uma prática conformista e rotineira, em geral de nível depois de Pascoa! Il, a causa da reforma, afirma-se um evangelis-medíocre. Privilegiando os grandes momentos de exaltação cole- mo popular, que inspirou muitos movimentos religiosos, tantotiva, corremos o risco de cair numa visão romântica da fé desses ortodoxos quanto heréticos.cristãos. Considerando apenas as práticas e observâncias dos Seu denominador comum era a pobreza voluntária. Essatempos comuns, expomo-nos a ver apenas as suas insuficiências e opção fundamental era a condição necessária de uma fidelidadea desprezar uma de suas dimensões essenciais. ao Cristo, "que não teve onde repousar a cabeça". Mas ela também

Por mais importante que tenha sido o seu lugar na vida assumia umsignllicado exemplar, diante das realidades econômi-religiosa dos homens do século XII, as cruzadas foram, entretan- : cas e sociais da época. Em um mundo em que a expansão dato, acontecimentos excepcionais. Contam-se quatro grandes cru-produção e das trocas acentuava as clivagens no seio da sociedadezadas entre 1096 e 1204, e o próprio entusiasmo que desencadea- rural e fazia aparecer novas formas de miséria, a escolha daram foi proporcional à sua raridade. Por outro lado, muitos fiéis pobreza como condição devida indicava um desejo de aproximar-não podiam, por motivos nem sempre menores, ficar por muito se dos marginalizados do progresso e dos excluídos da sociedade:tempo longe de sua terra, às vezes sem esperança de voltar. Em nômades, prostitutas, leprosos etc. Era um protesto contra o luxomuitos dos que permaneceram ou voltaram, o aprofundamento dos poderosos e principalmente da hierarquia eclesiástica. Foi oda fé se expressou por exigências crescentes em relação ao clero, momento em que a denúncia da corrupção da Cúria Romanaque tomaram muitas vezes a forma de um anticlericalismo viru- começou a tomar-se lugar-comum nos textos religiosos, como selento. Definitivamente, a reforma gregoriana continuara sendo constata no De consideratione de são Bernardo ou nos sermõesassunto de clérigos. Uma vez passada a fase mais dura da crise, os inflamados de Arnaldo de Brescia. Protesto muito compreensívelleigos, cuja ajuda Gregório VII pedira, foram devolvidos aos seus em uma época em que o processo de centralização, em cursosecularia negotia e convidados a voltar à sua situação anterior. desde o fim do século XI, começou a deslocar o quadro episcopal,Forças religiosas ardentes se encontraram subitamente sem em- em beneficio do círculo pontifical. Mas o aspecto institucional doprego. Não se deixaram domesticar facilmente. O próprio sucesso fenômeno não foi, na época, claramente percebido. Entre osda reforma acarretara uma extensão dos temporais eclesiásticos, grandes mestres espirituais, como entre os simples fiéis, prevale-o que reforçou nos fiéis a convicção de que o clero, em tudo isso, cia a idéia de que a Igreja só poderia ser fiel à sua missão voltandovisava apenas as suas vantagens. A partir de então, a crítica dos à pobreza evangélica, cuja prática permitiria não cair na contra-leigos se desviou dos costumes para o dinheiro: no século XII, os dição entre o ideal e a realidade vivida .

...religiosos forammenos acusados por sua falta de castidade ~o que. .. EfetivalPen:te,~ssa.$ aspirações foram rapidamente frustra-por suariqueza.e seu poder. :Sob a influência de pregadores das, pois os tempos ainda não estavam maduros para uma Igrejapopulares como Pedro o Eremita ou Robert d'Arbrissel e seus I servidora e pobre. A reforma gregoriana a enriquecera no planodiscípulos, que difundiram largamerite as palavras de ordem i material e a dotara de uma influência sobre a sociedade queevangélicas, especialmente a mensagem das Bem-Aventuranças, : atingia precisamente, no século XII, um nível nunca igualado.os camponeses e os burgueses do norte da França e do Oeste i Longe de evoluir no sentido desejado pelos movimentos evangé-criticavam seus curas e os Monges Negros: desejava-se um clero licos, ela apenas reforçou o seu aparelho de poder. Por outro lado,pobre e apostólico, isto é,capaz de anunciar a palavra de Deus depois de uma tentativa sem futuro no tempo de Pascoal Il, aaos fiéis; exigia-se dele que o seu estilo de vida e o seu comporta- " renúncia do clero aos seus bens estava, mais do que nunca,mento se harmonizassem com os preceitos evangélicos. Protestos excluída. Vários fatores atuaram nesse sentido, e o principal delesambíguos, ainda mais que, nas cidades os.bispos simoníacos, que I' foi a tendência espontânea dos espíritos do tempo a fazer coinci-os fiéis atacavam, também eram muitas <e,es os seus senhores. 1 dir a p'eeminência em dignidade com o iausto exterior e a

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riqueza. Em uma Igreja em que os clérigos eram os reis, eraconveniente que eles manifestassem, por seu estilo de vida, aeminente dignidade do seu estado. Mesmo entre os partidáriosda reforma, muitos estavam longe de considerar como um mal aposse de bens pelos clérigos. O caso do cônego regular Gerhohde Reichersberg (1093-1169) é típico a esse respeito: espíritoaberto e avançado, hostil àfeudalização do clero, afirmava, entre-tanto, principalmente em seus escritos posteriores a 1130, que aIgreja se enfraqueceria de modo irremediável renunciando àssuas terras e aos seus direitos. De fato, ela não poderia cumprir assuas obrigaçôes de assistência aos pobres e, especialmente, aosreligiosos cujas condições de Vida eram precárias: Assim, ele, desejava apenas que as rendas eclesiásticas fossem mais igual-mente distribuídas e se destinassem prioritariamente aos indi-gentes. Só uma Igreja materialmente próspera poderia desenvol-ver as obras de caridade e garantir aos adeptos da pobrezavoluntária o livre exercício da sua vocação.

. Além disso, por estranha coincidência, aqueles mesmos que,no seio da Igreja, tinham feito profissão de pobreza, logo foramas vítimas -ou os beneficiários, segundo o ponto de vista -daquilo que G. Duby chamou de "paradoxos da economia monás-tica". Os cistercienses, por exemplo, assim como certas con-gregações de cônegos regulares do ardo novus, escolheram, semsaber, um modelo de atividade econômica excessivamente bemadaptado àsnovas condições de produção e trocas. Em uma época'em que os bens fundiários rendiam pouco e a redução dascorvéias obrigava os senhores a recorrerem a mercenários, osempreendimentos agrícolas das novas ordens, que se recusavam'a empregararrendatãrícs'e dispunham; na pessoa.dosconversos, ,de uinamãb-'de:6bra'gratilita', se encontràvarn em uma situaçãoprivilegiada. Além do mais, sua vocação ascética favorecia o des-envolvimento de explorações rurais altamente produtivas, ins-taladas em lugares solitários destinados a um sistema de cultivode tipo silvo-pastoril. Tornando-se grandes produtores de lã ecarne, osMonges Brancos e seus êmulos não hesitaram em trocaro excedente de SL;aprodução por dinheiro e avançaram rapida-mente no caminho da riqueza. "Essaprosperidade não tardou acontrastar, de maneira escandalosa aos olhos do mundo, com aprofunda austeridade da sua vida. Os efeitos econômicos dareforma monástica prepararam a longo termo a condenação do

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monaquismo em suas formas renovadas, assim como em suasformas tradicionais.P''

No mesmo momento em que os bispos e religiosos se deixa-vam apanhar nas armadilhas da expansão, a Igreja multiplicavaas advertências diante das novas formas da atividade econômica,e particularmente do comércio do dinheiro. O impulso .da pro-dução e das trocas estimulava nos leigos, como em muitos clérigos,o desejo do ganho, que podia degenerar em espírito de lucro. Daías condenações repetidas e sempre mais graves de empréstimosa juros. assimilados à usura, e até de operações financeiras proi-bidas pelo Concílio de Tours, que o papa Alexandre III presidiuem 1163. Por outro lado, o Decreto de Graciano, composto porvolta de 1140, e que deveria logo impor-se como código jurídicoda Ign:ja. afirmava que "dificilmente, e em muito poucos casos, omercador pode ser agradável a Deus". Se não é nosso propósi-to estudar a evolução do direito canônico diante das realidadesfinanceiras e econômicas, épreciso sublinhar assuas repercussõesno plano espiritual. Na hierarquia dos vícios, por exemplo, aauaritia; isto é. ao mesmo tempo, a procura ,desenfreada do lucroe a acumulação egoísta. supera às vezes o orgulho (superbia), àmedida. que se escoava o século XlI. Nessa época, como mostrouL K Little, o tema do usurário lançado no inferno com seutesouro nas mãos se toma muito freqüente nas representaçõesiconográficas..21 Ele desempenha o mesmo papel que o cavaleirobelicoso e indisciplinado no século precedente e constitui a novaencarnação das forças do mal, prontas a esmagar os pobres e osfracos. Essaconvicção se exprime também em tratados espirituais,como o De quarta uigilia nodis; do cônego regular Gerhoh de

, Reichersberg, redigido em 1165~Marcando, o começo da terceira .idade do mundo com Gregório VII, ele o situa .sobo signo.'daavareza, que constitui a seus olhos o problema maior do tempo.De fato, afetada pelo enriquecimento e ao mesmo tempo hostilàs novas atividades que faziam da moeda algo mais do que umsimples inst::rumentode medida e de troca, a Igreja do século XIInão chegou a definir uma linha de conduta coerente diante dodinheiro. A vida espiritual dos leigos sofreu as conseqüênciasdisso: escandalizados com a riqueza de certos clérigos e ao mesmotempo paralisados em suas próprias atividades por proibiçõescanônicas e pela reprovação que pesava sobre as formas evoluídasdo comércio, muitos deles tinham a consciência perturbada ou

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até mesmo sofriam a angústia da danação. Esse mal-estar foi.sentido principalmente nas cidades, e de modo especial na Itália,onde o desenvolvimento precoce da economia monetária fezaparecer essas tensões mais cedo do que em outros lugares.

Outra questão provocou dificuldades entre o' clero e osleigos: o acesso à Palavra divina,que os fiéis desejavam cada vezmais conhecer de maneira ativa.Mas sua transmissão continuavasendo monopólio dos clérigos que tinham dela apenas um co-nhecimento insuficiente. Quanto àqueles, pouco numerosos, quetinham passado pelas escolas, consideravam que põr as Escriturasao alcance dos leigos constituía um perigo grave, pois estes, porserem incultos, arriscavam-se a fazer falsas interpretações: "Talcomo a pérola jogada aos porcos", escreve um membro da Cúria,o inglês Walter Map, por volta de 1185, "a Palavra será dada aingênuos, que sabemos incapazes de receber, e mais ainda de daro que receberam? Isso não seria possível, e é preciso evitá-Io."22Reação muito reveladora; muitos clérigos viam na Bíblia mais umtesouro que tinham o dever de guardar e transmitir em sua. integridade do que, uma mensagem a divulgar e a proclamar.Assim, desconfiavam das traduções dos evangelhos em línguavulgar, que apareciam em muitos lugares na segunda metade doséculo XlI. Sem dúvida, a Igreja se preocupava em manter aortodoxia doutrinária, mas o desejo de conservar seu papel deintermediária obrigatória entre Deus eos fiéis também não deveter sido estranho à sua atitude.

Na verdade, desde o fim do século Xl, viram-se eremitas quenem mesmo tinham recebido as ordens menores assumiram o.ministério da Palavra, sem-aautorização do seu bispo. Bemard de"Tiron,'porexemp,lo;que'noo.esteda'Fiança: reunia multidões de·êamponêsesqlie acorriampara ouvir osseussermões, respondeu"a um padre, que lhe contestava o direito de pregar, que este seobtinha pela virtude da mortificação. Resposta significativa, namedida em que implica que a prática de um gênero de vida deacordo com o Evangelho garante a autenticidade da Palavra eautoriza a anunciá-Ia ao povo.·Sem 'dúvida, a maioria dos gran-des pregadores populares do começo do século XlI, de Robertd'Arbrissel a são Norberto, acabaram por receber do papa umalicentia praedicandi que os defendeu de todos os ataques; mas nãoé menos verdade que, aos olhos dos fiéis, era mais a sua santidadepessoal do que a regularidade da sua situação canônica que os

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habilitava a falar-lhes de Deus com autoridade. Assim, muitosleigos reivindicaram o direito de anunciar a Palavra. Foram trata-dos de "pseudoprofetas" pelo clero e pela hierarquia, muitosensíveis aos riscos de heresia. O Decreto de Graciano, em 1140,sancionou essa atitude hostil, prescrevendo que "os leigos napresença dos clérigos não se permitam proporcionar ensino, anão ser a pedido destes".

Se os leigos, em geral, sentiam dificuldades em encontraruma espiritualidade adaptada ao seu estado, a questão se revestiade uma acuidade particular para as mulheres, que se chocavam .com obstáculos suplementares. A literatura. espiritual; como ateologia, era obra de clérigos, que tudo, em sua formação, levavaà misoginia. Sob a influência de são]erônimo e de uma tradição.patrística hostil à mulher, esta era, antes de tudo, apresentadacomo a filha de Eva, raiz de todos os males e principal agente dopecado. Só se tornava digna de interesse e de estima, aos olhosdos autores eclesiásticos, quando tinha qualidades viris. Daí oselogios que faziam a rainhas ou a imperatrizes que souberam fazeresquecer, pela firmeza de sua conduta, a fraqueza própria do seusexo. Existiam, certamente, formas de vida religiosa para uso dasmulheres: ao lado de algumas reclusas, encerradas em suas celas,muitas monjas levavam uma existência comunitária e piedosa,'regida pela regra de são Bento. Mas a entrada nos mosteiros era,na maioria dos casos, subordinada ao pagamento de um dote, oque instituía efetivamente um numerus dausus. Por outro lado, seasvirgens consagradas e asviúvasgozavam de certa consideração,não acontecia °mesmo com as esposas..Asque pertenciam à altaaristocracia ainda podiam ter um Se~o.papel .navida religiosa doseu-tempo; favorecendo a Igreja e .multíplícandoas fundaçôesmonástii::a:s.Masesse 'privilégio era reservado -a um pequenonúmero de grandes damas. Em geral, as mulheres casadas nãotinham perspectivas religiosas, e o casamento aparecia antescomo uma desvantagem no plano da salvação. Na opinião dosclérigos, na realidade, a vida sexual era.umaconseqüência dopecado, e as relações conjugais, toleráveis simplesmente para finsde reprodução, sempre constituíam uma falta, pêlo menos venial,na medida em que.fossem acompanhadas de prazer: Para não serfonte de pecado, o ato carnal só devia ser cumprido a contragosto,e. são Pedro Damião dá uma ilustração impressionante desseestado de espírito geralmente difundido quando propõe aos

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leigos o exemplo do elefante que, "levado ao ato de propagação,.desvia a cabeça, mostrando assimque age obrigado pela natureza,contra a sua vontade, e que tem vergonha e nojo do que faz."23Assim, os esposos devem comungar raramente e, de qualquerforma, abster-se de todas as relações carnais antes da recepção dosacramento. Sequisessem verdadeiramente obter a salvação, de-veriam viver na continência: "A castidade que se observa depoisque os filhos chegam é uma grande coisa", escreve um hagiógrafoflamengo por volta de 1130. Melhor ainda era separar-se, paraentrar, cada um para o seu lado, em um mosteiro. Prática fre-qüente nessa época em que muitas mulheres eram obrigadas afazer-se religiosas contra a sua vontade, para permitir aos maridossatisfazer assuas aspirações à perfeição. Em wncontexto um tantoespecial, é verdade, foi o caso de Heloísa, que se tornou abadessado Paráclito, depois da entrada de Abelardo na vida monástica, eque dirigia a este, do fundo do seu convento, cartas ardentes depaixão.

O clima geral do mal-estar que reinava entre os leigos explicao sucesso encontrado pelos movimentos evangélicos. No fim doséculo XI e no começo do século XII, estes ainda estavam muitomarcados pelas palavras de ordem da reforma gregoriana. Seusiniciadores foram geralmente clérigos como Robert d'Arbrissel,Vital de Savignyou o monge Henri de Lausanne, que atraíam asmultidões com sua ascendência pessoal e com o conteúdo de suapregação. Apresentavam o Evangelho como a única regra de vidapara os cristãos e insistiam no fato de que o clero deveria ser oprimeiro a obedecê-Ia. Do rigorismo moral, passou-se, em muitoscasos, para a.negação dosar~inesl::c~e.~!ásti~()stradicionais: diante....das exigênci~~evan.gél~cas,.todosos .ba~~<i()snão estavam em pé.de igualdade? Os leigos que aderiam a esses movimentos nãoaceitavam mais serem excluídos da vocação para a santidade pelofato de que viviamno mundo. Recusando-se a ser simples objetosdo ministério pastoral dos clérigos; procuravam levar tambémuma vida religiosa e aspiravam a uma fé que realizasse, no planoda ação, a !p.ensagem de Cristo. Entre estes.. contam-se muitasmulheres. Os clérigos que nos falam delas as apresentam em geralcomo pessoas exaltadas, enlouquecidas por seu corpo e de cos-tumes perdidos. A realidade era menos· simples: basta ver oentusiasmo que suscitaram eremitas como Etienne d'Obazine oupregadores como Tanchelm ou são Norberto, tanto entre as

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prostitutas quanto entre as grandes damas da aristocracia, que osacompanharam ao "deserto", para grande escândalo dos bem-'pensantes. De toda essa efervescência, apenas subsistiram algunsmosteiros duplos, na ordem fundada na Inglaterra em 1131 porsão Gilberto de Sempringham e na que Robert d'Arbrissel es-tabeleceu em Fontevrault, submetendo as duas comunidades -a dos homens e a das mulheres - à autoridade de uma abadessa,que devia ser uma viúvae não uma virgem.Masa ordem fontevris-ta não tardou a evoluir no mesmo sentido que os mosteirosfemininos tradicionais e algumas décadas depois da sua fundaçãosó podiam ingressar nela os membros da alta nobreza. No séculoXlI, ainda não existiam ordens religiosas femininas e os conventosde mulheres estavam em estado de sujeição jurídica e espiritualem relação às ordens masculinas, de que dependiam. Constataçãointeressante, na medida em que ilustra a dificuldade das mulheresem realizar o seu destino espiritual independentemente das pe-gadas do homem.

Durante o século XII, os movimentos evangélicos foramcada vez mais longe e logo entraram em conflito aberto com aIgreja. Com Arnaldo de Brescia, que obteve grande sucesso po-pular em Roma, condenando a riqueza dos padres e o luxo daCúria, o tema da pobreza passou para o primeiro plano. Para ele,como o clero se tornou indigno ao recusar-se a renunciar aos seusbens, era preciso opor-se à hierarquia e considerar todos osbatizados como iguais. Só a fidelidade concreta ao Evangelhohabilitava ao exercício da autoridade na Igreja. Do descréditolançado sobre os padres e pastores, passou-sefacilmente para umacrítica dos sacramentos, exigindo-se asua simplificação. Para osadeptos de Henride Lausanne como-para osarnaldistas ou"Pobres da Lombardia", o sacerdócio universal dos fiéis tomavasupérflua a ordenação e a confissão mútua das faltas substituía apenitência. Da polêmica anticlerical ao questionamento da Igre-ja, os adeptos da vida evangélica chegavam ao limiar da heresia.

Desde o século XI, como assinalamos, apareceram no Oci-dente núcleos de heresia. Poucos e rapidamente cercados, tive-ram entretanto uma extensão considerável. No século XII, ofenômeno se tornou numericamente muito mais importante, aponto de ameaçar a influência da Igreja em certas regiões. Nossopropósito aqui não é fazer a história dessas correntes religiosas,nem mesmo evidenciar as razões de seu sucesso, e particular-

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mente os motivos espirituais que conduziram tantos leigos aaderir a elas.

Esses movimentos não são sempre fáceis de apreender.Efetivamente, só os conhecemos através do que nos dizem os seusadversários, e às vezes é difícil ter uma idéia precisa do conteúdode suas crenças. Entretanto, os ecos recolhidos em diversos lu-gares - de Soissons a Colônia e de Toulouse a Milão - permitemdistinguir dois filôesespirituais nas heresias do século XII:24uminsiste principalmente na necessidade de coincidência entre apalavra evangélica e a ação que tenta realizá-Ia neste mundo. Seusadeptos se propõem a lutar contra a decadência da Igreja, cons-tituindo, à margem desta, grupos de cristãos fervorosos. Suarecusa das estruturas existentes não questionava os fundamentosdogmáticos do cristianismo, a não ser sobre pontos muito es-pecíficos. Essa era a tendência que prevalecia na maioria dosmovimentos populares da primeira metade do século, e, maistarde, entre os valdenses, ou Pobres de Lyon, grupo de leigosque foram condenados em 1184 por. pregar sem autorizaçãodo bispo. Em sua opinião, a prática da vida apostólica e princi-palmente da pobreza bastava para conferir o direito de anun-ciar o Evangelho. Tratava-se pois, pelo menos no início, de umconflito de ordem mais disciplinar do que doutrinária, e, aliás,umcerto número de valdenses iria reintegrar a Igreja católica noCOmeçodo século XII.

A segunda corrente, que se consolidou progressivamentedepois de 1140, certamente sob a influência de aportes orientais(bogomilos da Bósnia e da Bulgária, principalmente), se dis-tingue da primeira por seu caráter nitidamente dualista. Seus

. adversários qualificaram esses heréticos de' maniqueístasr nós osconhecemos sob o 'nome de cátaros. Eles professavam que arenovação necessária do cristianismo devia ser acompanhada porum questionamento de todo o corpo, de doutrinas ensinadas pelaIgreja. Para eles, esta dissimulara, em seu benefício, a verdaderevolucionária escondida no Novo Testamento, que é a oposiçãoe a luta permanente entre Deus e Satã, o Bem e o Mal. O princípiodo Bem é o motor do mundo do Espírito, o princípio do Mal, filhorebelde ou anjo decaído, o criador-do-mundo material e da carne.Nessa perspectiva, as almas humanas são fragmentos de espíritosmergulhados na matéria, da qual elas devem extrair-se a qualquerpreço. Nesse esforço, são ajudadas pelo exemplo de Cristo - o

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maior dos anjos ou o melhor dos humanos -, que Deus tomoucomo filho adotivo. Ele veio a este mundo, mas sua carne comosua Paixão foram apenas aparências. SeJesus resgatou o homem,não foi por seu sofrimento, mas pelo seu ensino. O Antigo Tes-tamento, obra das potências do Mal, não tem valor; só o Evange-lho é divino. Não se trata aqui de explicar o dogma cátaro emtodas as suas sutilezas e variações, do dualismo moderado aodualismo absoluto, nem de interrogar-nos sobre o sentido profun-do da sua cosmogonia. Mas resta explicar o fascínio exercido poressas crenças sobre muitos homens e mulheres, especialmente nosul da França e na Itália, entre meados dos séculos XII e XIII. Asimplicidade aparente dessa doutrina e a sobriedade da sua litur-gia atuaram em seu favor. Mais importante parece ter sido adistinção entre os Perfeitos, obrigados a um ascetismo rigoroso,e os simples crentes, que gozavam, na prática, de uma grandeliberdade de costumes e podiam dedicar-se a qualquer atividade,com a condiçãode receber antes de sua morte o consolamentum,imposição das mãos, que os arrancava ao mundo material e osfazia nascer para a vida do espírito. Muitas mulheres também sesentiram atraídas por essa heresia, pela possibilidade que encon-travam de serem tratadas como iguais aos homens. ExistiramPerfeitas em grande número, e algumas viveram até em espéciesde conventos, como o de Prouille, no Languedoc.

Para além daquilo que as opõe, a corrente evangélica e acorrente dualista têm em comum a recusa de uma salvação quedependeria da mediação da Igreja visível e do sacerdócio ins-titucional. Mais profundamente, elas professam o mesmo es-piritualismo exacerbado, que leva tanto à recusa do dizimo quan-to ànegaçãode certos sacramentos. É bastante perturbador, paraum espírito moderno, ver o evangelismo chegar a uma atitudepessimista diante da vida sob todas as suas formas, e especial-mente diante da procriação. Paradoxalmente, o ódio pela Igrejavisível.e a vontade de se desvincular da ordem estabelecida con-duziram a uma recusa do mundo e da carne, mais acentuada doque nunca o fora no seio do monaquismo. Mas talvez a chave dasedução exercida pelas heresias, e em particular pelo catarismo,se encontre na evolução espiritual que analisamos anteriormente.Em uma época em que a Igreja, pelo menos no nível do seu clero,escolhera claramente agir sobre o mundo e colocá-lo sob suatutela, para torná-Ia de acordo com o plano de Deus, muitos fiéis

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quiseram protestar contra essa evolução, afirmando sua fideli-dade a um paleocristianismo, baseado na simplicidade evangélica'e na recusa do mundo. Se admitirmos essa hipótese, o catarismoconstituiria então a última forma da espiritualidade monástica,vulgarizada e deformada pelos fiéis,em uma época em que muitosclérigos se afastavam dela, e em que a Igreja se adaptava bemdemais a uma conjuntura política e cultural que operava a seufavor. Longe de constituir a religião dos tempos novos, comoqueriam alguns, o catarismo seria antes a expressão de uma recusade evoluir. Negando a realidade da natureza humana do Cristo ea Paixão - para eles simples aparências - os cátaros esvaziavamefetivamente a Encarnação. Adespeito de seu proclamado apegopelo Novo Testamento, eles se situavam na contramão do movi-mento que, desde o século XI, levavaos cristãos a vivero Evange-lho no tempo e no seio do mundo. A verdadeira resposta docristianismo ao desafio das heresias dualistas não foi a Inquisiçâo,mas a elaboração de uma espiritualidade que, sem subestimar osefeitos corruptores do pecado, afirmou a bondade e a beleza dacriação e sublinhou o laço necessário entre o sofrimento e aRedenção.

Esseresultado não foi atingido em um só dia, pois os clérigosmedievais tiverammuita dificuldade, nessa questão, em se separardas idéias recebidas. Sob a dupla influência da tradição monásticae da filosofia antiga, eles sustentaram por muito tempo a afirma-ção da superioridade da contemplação sobre a ação e da vidaconsagrada em relação à vidano século. No século XII, a evoluçãoda sociedade e das mentalidades começou a tornar caducas essasoposiçôes radicais.Muitosfiéis<lSpiravamaviy~rsua vocação cristã .

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Um dos principais problemas que se apresentaram aos ho-mens dessa época foi o do trabalho. No clima de esforços laborio-sos - da lavoura ao florescimento do artesanato - que caracte-riza a sociedade ocidental nessa época, este adquiriu uma impor-tância considerável. Instrumento de valorização, ele também era,e cada vezmais, fonte de lucro. A Igreja hesitava entre uma visão

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pessimista que se apoiava sobre os textos do livro do Gênesis, emque o trabalho é apresentado como a conseqüência direta dopecado, e uma concepção mais positiva, fundada sobre certostrechos de são Paulo25 e sobre os Padres gregos, especialmentesãojoão Crisóstomo.

Durante a alta Idade Média, a primeira dessas duas con-cepções tinha prevalecido, de modo geral, e o trabalho manualera considerado como uma penitência. A regra de SãoBento lhereserva um lugar bastante amplo: na medida em que exige umesforço penoso, ele constitui para o monge um meio privilegiadode expiação ou de mortificação. A espiritualidade monástica viaprincipalmente na atividade laboriosa um remédio para a ociosi-dade, uma das mas perigosas armadilhas do Maligno para aquelesque aspiravam à perfeição. "Fazum trabalho, a fim de que ,oDiabosempre te encontre ocupado, recomendava são ]erônimo aomonge Rusticus,pois não convémque o espírito seperca em mauspensamentos." Concepção antes negativa do trabalho, que foireforçada na época feudal. Na sociedade aristocrática, efetiva-mente, a atividade manual era considerada como uma ocupaçãoadequada apenas para os servos,e o velho ideal romano do otiumrum dignitate; embora em um contexto social bem diferente,continuava a exercer uma profunda fascinação sobre as elites,como mostra o florescimento da vida da corte no século XII. EmCluny, por volta de 1100, os monges quase não trabalhavam maiscom as próprias mãos, senão para ocupar-se com tarefas deespecialistas, como a cópia e a iluminura de manuscritos.' Asuperioridade sempre reafirmada da vida conternplativasobre avida.ativa .atépermitía a Pedra o .Venerável afirmar qlle, ao. substituir o. trabalho -manuàl P()rQutras.'~prigaçoe~:\çQ,n~nl,la.~."fiel ao, espíTitod~regrà-bei-teditina:'bsm()virhe~'Übs'rerigi()sos 'fundados no ideal da vida apostólica nãomarcam, nesse aspecto,nenhuma mudança notável.Osclérigosque praticavam apobrezavoluntária consideravam que não tinham que trabalhar para vivere que deviam consagrar-se inteiramente às suas tarefas pastorais.Alguns deles até recorreram à mendicância, na qual viam aomesmo tempo um modo de retribuição para o apóstolo e umexemplo de humildade para os fiéis. "Para comer, fazem pre-gações", escrevia sobre os eremitas e outros Wanderprediger umpadre daquele tempo, que não gostava deles e se escandalizavacom essa concorrência desleal.

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Enfim, a Igreja não via com bons olhos desenvolvercm-se. profissões consideradas como ilícitas ou perigosas (comerciantes,cambistas etc.) e as associações de trabalhadores - os primeiros"ofícios" - que. se constituíam então, baseadas na especializaçãoprofissional e fora das hierarquias sociais reconhecidas, Nesseclima de suspeita, os trabalhadores das cidades, à procura de umreconhecimento de' seu lugar na sociedade, mas também dedignidade espiritual, se chocavam com resistências que só lenta-mente cederiam. .

Mas, com o tempo, às transformações sociais e a renovaçãoda teologia, que retomou contato com suas fontes gregas, fizeramevoluir o estado de espírito dos clérigos. A ideologia das trêsfunções - padres, guerreiros e trabalhadores - determinandopara cada ordo um iugar na sociedade cristã, desempenhou umpapel positivo nesse ponto. Já mostramos acima como a aris-tocracia leiga, através' do ideal cavaleiresco e da guerra santa,encontrara a possibilidade de ganhar a salvação praticando o seudever de estado. Os trabalhadores tiveram mais dificuldade ernfazer com que os clérigos admitissem o valor religioso de suasatividades. Porém, isso foi conseguido ate certo ponto, por meioda sua função social-Honorius Augustodunensís, autor sem ori-ginalidade mas cujo testemunho é precioso' porque reflete aopinião comum, escreve' sobre os camponeses: "Muitos delesserão, salvos. porque vivem simplesmente e alimentam, com Seusuor, o povo de Deus -,~'Durante o século XII, o esquema: socioló-gico da sociedade .tripartite se impôs a toda a cristandade e fezpassar para o segundo plano as distinções canônicas e as hierar-"quias. espirituais.jmplicadas pelarepartição.dos .batízadcsem,.'.,!D0riges;.•dérigo.s,~ Iejgos";·EJe ptóprioevoltlillpalf!·f0rIllas',rn.<9S,>-,··.·êomplex<Ls; â Iri~9'ida'qu-êa:Sestitltl.iriis.~t6nômiêas e sociais sé'. diversificavam. Assim, a lista dos "estados do' mundo" não paravade alongar-se; enquanto a participação no bem comum forneciauma justificativa suficiente para as múltiplas formas da atividadehumana. Essa mudança de perspectiva acabou por questionar asconcepções tradicionais sobre os graus de perfeição. Em meadosdo século XII, Anselmo de Havelberg sublinhava que o gênero devida escolhido - no mundo ou fora dele - tinha menos impor-tância do que a maneira pela qual cada um se comportava em seuestado, pois Deus não faz acepçâo de pessoa. Mas pôr em planode igualdade simples fiéis e clérigos ainda não era reconhecer a

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existência de uma espiritualidade própria à sua condição. Ora, adificuldade era realmente essa.

O exemplo do trabalho é muito significativo nesse aspecto.Na verdade, ele foi revalorizado-pelo novo monaquismo, es-pecialmente pelos cistercienses. "Surge.de otio adúiborem",26 escre-via são Berriardo a um monge c1unisiano, que ele desejava atrairpara Clairvaux. A questão estava no centro da polêmica entreMonges Negros e Brancos, os-últimos afirmando que não haveriaverdadeira vida. monástica se os monges não se ocupassem comtrabalhos manuais efetivos e úteis. Por outro lado, a instituiçãodos conversas, a despeito de suas ambigüidades, implicava umanova atitude diante da atividade laboriosa, concebida como ummeio possível de santificação.Enfim,já assinalamos a importânciado debate teórico que opôs os cônegos regulares aos monges, arespeito das relações entre vida ativa e vida contémplativa: se oCristo elogiou Maria, escreveu nessa ocasião Anselmo de Havel-berg, foi porprira: caridade, para.evitar que Marta -'que nofundo tinha razão - não se sentisse excessivamente triunfante.Aliás, segundo ele; não se deveria imitar 'nem Marta nem Maria,mas o próprio Cristo, que foi antes de tudo um ativo, já que oessencial da sua vida foi consagrado ao ensino e à pregação. Masessa valorização do trabalho no mundo dos religiosos não apre-sentava uma resposta satisfatória aos problemas dos leigos, Mesmoentre os cistercienses, otrabalhos dos monges continuavasendo,antes de tudo, uma atividade penitencial, e, em certa medida,simbólica. Estava longe de bastar para a manutenção da comuni-dade, garantida em sua maior parte pelos conversos. Para os-;simplesfiéis, obrigados a prover a~própI'Ías necessidades, a ques- .....·"r.á6 ·~fJot:mWavª~mJ<::IWQs d;ger:~qt~~::Tràtàva~edçfazeI'reco;,·>: .•",.,nhécer à ai'gnidadeespirittlal;d<ltrábalhoeo 'seuvalor positivo,':':;;.como meio de salvação."Como mostrou' lLe Goff, foi nessesentido que se exerceu "a pressão das novas categorias profis-sionais ..:..-mercadores, artesâos, trabalhadores, preocupados emencontrar no plano religioso a justificação de sua atividade, desua vocação ... não apesar de suas profissões, mas por causa de-las".27 .

Essa aspiração difusa foi sentida mais vivamente nas cidades,onde o desenvolvimento do artesanato e do comércio criara ummeio leigo dinâmico e combativo. Não será surpreendente cons-. tatar que foi nas grandes cidades mercantis da Itália que nasceram

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em primeiro lugar formas de vida religiosa de um tipo novo,adaptadas às preocupações espirituais dos leigos. O caso maisinteressante é o dos Humilhados, originariamente um grupo deartesãos que levavam em comum uma vida de trabalho e oração,que apareceu em Milão por volta de 1175 e se difundiu em todaa Lombardia. Esses leigos piedosos eram trabalhadores que, conti-nuando a exercer uma atividade profissional ~ em geral eramtecelões - e a viver em família em suas casas, levavam umaexistência austera e abstinham-se de blasfemar e intentar proces-sos. Excomungados em 1184 por pregar em público sem autori-zação, foram reintegrados à Igreja em 1199, por Inocêncio m,que os dividiu em três ordens: as duas primeiras eram de autênti-cos religiosos submetidos a uma regra, a terceira uma espécie deordem terceira avant ta lettre. Seus membros viviam no mundosegundo um propositum, isto é, um conjunto de status que defi-niam a sua forma de vida. Além dessas distinções canônicas, o queunia os diferentes grupos de Humilhados e constituía a suaoriginalidade era a importância que tinha na sua existência coti-diana a prática de um ofício, q1,ledevia permitir-Ihes satisfazer assuas necessidadese.praticar a caridade para com o próximo. Se,posteriormente, eles acabaram se enriquecendo e perdendo devista o seu ideal primitivo, os Humilhados não deixam de ser oprimeiro agrupamento leigo a ter associado a uma vida de oraçãointensa um trabalho concebido como um autêntico meio deexistência. Encontram-se tendências análogas nas comunidadesde beguinas, que começaram a se multiplicar no Brabante e emFlandres, no fim' do século XII. A Igreja deu uma espécie deconsagração oficial a. ess<jS. aspix:açÕç~,Sap.,oJ:l~zaJ:lci.!-?~IJ? ~ 1~9,uIll.mercador de'teci~o~,sãp'Bomel;)Qil çleC;J:'em()'n<i,<iuçêrtti<:pre::' presentante do p6pÕlodasc;bniunáiit:Ji~úks.',:·· ',.' . . '" ' ",

Uma evolução comparável se fez sentir quanto ao casamen-to. Durante séculos, o estado conjugal foi julgado incompatívelcom a vida religiosa. Mais uma vez, pouco a pouco, operou-se umquestionamento das concepções tradicionais. Honorius Augus-todunensis, cuja importância já ressaltamos, como eco fiel daspreocupações do seu tempo, designa sob o nome de boni conjugatios esposos que levam uma vida santa no casamento. Fato aindamais significativo, o papa Alexandre III reconheceu pela primeiravez, em 1175, que se podia considerar como simples conselhos enão como preceitos os antigos cânones relativos à continência dos

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fiéis casados nos dias de jqum.. Foi mais longe ainda, em uma buladirigída ao mestre da milícia de São Tiago, associação de cavalei-ros e clérigos que se instituíra na Espanha para defender oscristãos contra os mouros. Como a maioria dos leigos que faziamparte dela eram casados, havia dúvidas sobre o seu status canôní-co. O pontífice pôs fim às controvérsias a esse respeito, afirmandoque o estado de perfeição não estava ligado à virgindade. Casadosou não, os cavaleiros de são Tiago podiam,. legitimamente, serconsiderados como religiosos. na medida em que tivessem pro-nunciado votos de obediência, e em que se expusessem aosperigos do combate em espírito de sacrificio.2S A importânciadessa decisão é coosíderâeel; deslocando o centro de gravidadeda vida religiosa do celibato para a obediência e a penitência, elaafastava o principal obstáculo que impedia os fiéis casados deterem acesso a da Assim.apareceram durante as décadas se-guintes muitos giupos de homens e mulheres, que levavam emcomum uma existência piedosa.. Os Humilhados da Lombar-dia, OS penitentes rurais que apareciam no norte da Itália porvolta de 1180, as beguinas e os beguinos dos Países Baixosdefendiam a igualdade dos sexos na Igreja e reivindicavam odireito de levar uma vida cristã autêntica no próprio seio dafamília. O ideal de fuga do mundo se interiorizou: deixou deser uma recusa da matéria e da carne para tomar-Se uma lutacontra o pecado sob todas as suas formas, na qual nenhumacategoria de cristãos estava desqualificada por causa do seuestado de vida.

De modo geral, o laicato não se definia mais apenas como,o q)~jun~o dos fiéis desprovidos dos poderes de ordem e de .. ,. " ,jurisdiçâo, mas como urn elemem» operante<!o,d1narr$IDo, iri-",.'.' " . ',>"-

temo da Igreja. "Essa nova atitUde dos leigos' provocôu vários::· ..•conflitos entre estese a hierarquia, especialmente a propósito doanúncio do Evangelho. O exercício do ministério da Palavra semmandato episcopal era considerado pelo clero como uma usur-pação sacrílega. Ela não bastara para condenar Valdês e, pos-teriormente, os Pobres de Lyon e da Lombardia? Mais uma vez,a pressão da elite religiosa dos fiéis acabou por obter, no limiardo século XIII, o reconhecimento de novos direitos. InocêncioIll, de certo modo, desmontou uma situação explosiva, distin-guindo dois tipos de textos nas Escrituras: de um lado, os aperta,isto é, os episódios narrativos e as moralidadesque abundam nos

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relatos bíblicos e são facilmente acessíveis a todos; de outro lado,os profunda ou exposições dogmáticas, que só os clérigos podiamcompreender, em razão de sua complexidade (por exemplo amaior parte do Evangelho de são João e o Apocalipse). A essesdois níveis da Revelação correspondiam duas formas 'de tomadade palavra bem distintas: a exortação moral e penitencial e apregação propriamente dita, que explicitava os mistérios da fé.Espontaneamente, alguns leigos se lançaram no primeiro cami-nho: os valdenses; os Humilhadoe.P.e logo os Penitentes de Assis,em tomo de são Francisco, chamavam os fiéis para a conversãoe a prece, em um estilo incisivo e concreto, aparentado ao que es-tava em uso nas assembléias citadinas. Não temiam atacar aquelesque eram um obstáculo para a Igreja, por seu comportamento:usurários, clérigos indignos, bispos mais preocupados em garantira vitória de seus partidos do que em fazer reinar a paz etc. Essapossibilidade de anunciar o essencial da mensagem cristã e zelarpara que ela se atualizasse na vida política e social foi umaconquista importante dos movimentos evangélicos. Caberia àsordens mendicantes, no século XIn, assumir todas as conseqüên-cias dessas posições e restabelecer a ligação entre a admoestaçãomoral e o discurso teológico.

No fim do século XII, os principais obstáculos à realizaçãode uma vocação cristã no mundo tinham sido ou estavam sendosuperados. Daí decorreria que os dados específicos do estadoleigo - particularmente o trabalho e a vida conjugal- tivessemse tomado valores positivos, através dos quais os fiéis pudessemchegar à perfeição? A resposta para essa pergunta não é unívoca,pois nem-toda ambigüidade tinha desaparecido na atitude daIgreja'çli<lnteclas.r;ealidacl~stelJ"e.stres;·gc<lS0 de, são.Homebon.,exémplarnesse .aspecto, merece ser estudado de pertovCerta- .mente, foi muito importante que o papa tivesse canonizado ummercador; enquanto toda a tradição espiritual e canônica dosséculos precedentes estava marcada, no mínimo, por uma grandedesconfiança em relação a essa profissão. Mas a leitura da bula decanonização nos mostra que Homebon foi considerado santoprincipalmente por ter renunciado ao-exercício de um comércioremunerador e distribuído seus bens aos pobres, ao mesmotempo em que resistia firmemente aos heréticos em sua cidadenatal. Era como se ele se tivesse santificado não no exercício desua atividade profissional, mas apesar dela, ou pelo menos depois

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de tê-Ia abandonado. E quando, no século XIII, o clero e o povode algumas cidades lombardas "canonizariam" espontaneamenteautênticos "santos do trabalho", sua iniciativa não receberia ne-nhuma aprovação de Roma. Poder-se-ia dizer o mesmo a respeitoda vida conjugal, que, ainda menos que o trabalho, pareceu capazde oferecer=aos cristãos desse tempo grandes perspectivas es-pirituais. Se q,ot1veentão santos casados e pais de família, sua vidafamiliar não influiu muito no renome que tiveram. Os' seuscontemporâneos não poderiam ser acusados de insensíveis a esseaspecto das ,coisas, já que não se conhecia a espiritualidade docasamento antes de são Francisco de Sales, e a teologia do traba-lho é uma invenção do século XX.

b) A serviço dos pobres de Cristo

Para a maioria do~ leigos, a via de acesso para a santidade não foipois nem o trabalho nem a vida familiar, mas' o exercício dacaridade, que revestiu, no século XII, formas e significado novos.Sem dúvida, a esmola sempre ocupou um lugar importante navida cristã, e os clérigos carolíngios já insistiam muito nesse ponto,nas exortações que faziam aos leigos. Mas a partir do momentoem que se afirmou a renovação econômica do Ocidente, assistiu-se a uma verdadeira revolução da caridade e ao aparecimento deuma autêntica espiritualidade da benemerência. Esta se fundavana devoção ao Cristo, e particularmente na sua humanidade. Erapor amor Aquele "que não teve onde descansar a cabeça" que sesocorriam os miseráveis, qualificados desde então de pauperesChristi, enquanto. esse, termo designava, antes, os religiosos, no·séçt.Uoprçc~d~n~~:E~apreciileçã9pística pel;õtpobrc;za é urn fato ..'novo ria história da espiritualidadé ocidental. Até o século XII,efetivamente, a indigência tinha sido considerada como um cas-tigo e não como um sinal de eleição. Havia uma tendência a vernela o preço do pecado, e, no plano social, um problema tãoinevitável quanto a doença, para a qual não existia remédio. Ariqueza, pelo contrário, passava por ser um sinal do favor divino.Ela possibilitava a aquisição de méritos, através de doaçôes aigrejas e distribuição de esmolas aos indigentes. Longe de ser umamaldição, ela constituía uma via de acesso para a santidade, se sesoubesse fazer bom uso dela, sob forma de generosidade. Esta eraum dos valores fundamentais da ética cavaleiresca. Para os es-

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píritos mais exigentes, oferecia-se a possibilidade de renunciar àsua fortuna. Masquem pode renunciar, senão aquele que possui?Os pobres, por sua vez, deviam orar por seus benfeitores, cujasalmas escapavam assim, com mais certeza, às penas do inferno oudo purgatório.

Sob a influência do ideal da vida apostólica, e posterior-mente, dos movimentos evangélicos, operou-se uma inversão, no- século XlI. Os religiosos, como vimos, se defrontaram com oproblema da riqueza e com aqueles que a existência de umnúmero crescente de pobres' causava. O mundo dos leigos nãoescapou a essa interpelação. Sensibilizados por pregadores quelhes falavam da pobreza de Cristo, muitos deles se tomaram maisatentos à penúria dos miseráveis e às faltas contra a caridade. Daíresultou uma extraordinária floração de fundações hospitaleirase caritativas em todo J Ocidente. Algumas deram origem a verda-deiras congregações religiosas como os antonitas, ou hospitalei-ros de santo Antônio, associação fundada em 1095 no Dauphinépor um fidalgo e seu filho, em ação de graças pela cura deste,atingido pela peste. Emjerusalêm, porvolta de 1120, apareceramos hospitaleiros de são Lãzaro, que cuidavam dos leprosos; porvolta de 1180. em Montpellier, os hospitaleiros do Espírito Santo(ou irmãos da Colomba), que criaram hospitais em numerosascidades do Ocidente. Outras confrarias leigas. como os irmãospontífices, se estabeleceram ao longo das estradas de peregrina-ção, para a construção e manutenção das pontes, assim como parao alojamento dos viajantes: Enfim, os Trinitários, instituídos porsão João de Matha em 1198, procuravam libertar os prisioneiros.~resgatar os e~ra~<?,sqis~os,.!l~"Pap;çs, IIlllÇulma.n0~'Mas~aolad? cl~0~ge~. r~ligi~Jj.opíyelAapist3:Udade;hóuVe<íuari~.fúndaç'ÕêSisoladas':"":SâIl~asas,hospitaiS· ou simplêsrefúgios ..:..-destinadas a socorrer os,doentes, Os peregrinos e osviajantes? Em regiões como a Lombardia e o Anjou, onde umestudo quantitativo do século xn foi tentado, os resultados sãoimpressionantes e constata-se que todas as classes da sociedadeabastada - senhores, leigos e eclesiásticos, burgueses, comuni-dades paroquiais e confrarias - se empenharam ativamente nasobras de misericórdia.

Os gestos de caridade não se tomavam apenas mais fre-qüentes. Também eram realizados com um espírito diferente. Aesmola acabara por se tomar um ato ritual. Asgrandes abadias ali-

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mentavam periodicamente multidões de indigentes que afluíamem certas datas: festas dos santos padroeiros, solenidades do ciclolitúrgico , falecimento de um monge da comunidade. Nessasocasiões, procedia-se a distribuições de víverese dinheiro. Por suavez, os grandes leigos - reis, duques ou condes - mantinhampermanentemente um certo número de pobres oficiais - geral-mente 12 - que os seguiam em seus deslocamentos. Essesdeten-tores de prebendas, beneficiários dos favores do príncipe, tinhamuma função essericialmente simbólica: permitir a este cumprir assuas obrigações para com os fracos e os oprimidos. Na prática,formavam uma parede entre o seu benfeitor, com o qual só secomunicavam através do capelão, e o mundo da indigência.Durante o século XlI, simultaneamente sob a influência dastransformações sociais, que aumentavam o número de pobres, edo ideal evangélico, essa concepção ritualista da caridade foisubstituída por uma vontade de lutar eficazmente contra amisériae principalrriente de entrar em contatodireto com os pobres. Aprópria noção de próximo evoluía: os que deviam ser socorridosnão eram apenas as viúvas e os órfãos, mas também as vítimas dainjustiça e todos aqueles que viviam à margem da sociedadeabastada: doentes, leprosos, prostitutas, nômades de todo tipo etc.A verdadeira caridade consistia em detectar a miséria e aliviá-Iaatravés de uma organização tão eficaz quanto permitiam as con-dições da época.ê" Assim, quando em 1143 uma grave crise defome se abateu sobre a Champagne, o conde Thibaut, amigo doscistercienses e discípulo de são Bernardo, não se contentou emabrir largamente os seus celeiros aos deserdados e sacrificar umvaso de ouro; que-mandou quebrar e vender em sinal de penitên-ciavPediusambém-que -Ihe indicassem os pobres ,.que-jaziam, ;abandonados nas praças públicas e enviou religiosos para percor-rerem os povoados, em busca de doentes e leprosos. Todos essescomportamentos tinham origem em um sentimento de com-paixão para com as diversas formas de sofrimento, e deixaramvestígios até nas cruzadas do fim do século XII. Depois do dis-tanciamento das perspectivas escatológicas e messiânicas, quemarcaram as primeiras expedições, a caridade fraterna se tornouo principal motivo da partida para a Terra Santa. Ia-se à cruzada,antes de tudo, para libertar os cativos, defender os peregrinos esalvar os cristãos do Oriente do massacre. O aumento do sentidode solidariedade em relação aos irmãos infelizes suscitava em

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muitos fiéis o desejo de proporcionar uma assistência financeiraa alguns, militar a outros.

Sob o efeito dessas preocupações altruísticas, o espírito debenemerência se transformou. O jejum, que há muito era prati-cado com espírito penitencial, ficou mais estreitamente ligado àcaridade. Apartir do século XII, redescobriu-se que o alimento eos bens de que os fiéis se privavam só eram agradáveis a Deus'se fossem doados a outros. A idéia de esmola, principalmente,evoluiu: clérigos cada vezmais numerosos, inclusive oscanonistas,a apresentaram, em seus textos e sermões, mais como um deverde justiça do que como um ato meritório ou um gesto de purifi-cação. Obrigação estrita para o rico, a esmola era um direito parao pobre, que podia exigir o que lhe era devido, e até roubar emcaso de necessidade e recusa. São Bernardo diz rispidamente aosprelados do seu tempo, fazendo-se porta-voz dos indigentes: "É anossa vida que forma o vossosupérfluo. Tudo o que se acrescentaàsvossasvaidades é um roubo feito àsnossas necessidades." Assim,o cristianismo medieval reatava com a tradição patrística, e prin-cipalmente com sãoJoão Crisóstomo, para quem tudo o que osricos tinham em excesso pertencia aos pobres. Por outro lado,acabou-se por considerar que os gestos exteriores da caridadedeviam se acompanhar de uma dedicação pessoal. Raul o Ar-dente, no fim do século XII, sublinha o fato de que o doador devepôr algo de si mesmo no dom que faz; sem isso a sua ação seriadesprovida de valor. Assim,propõe a fórmula da elemosyna negotia-tis, ou esmola com compromisso, que consiste, por exemplo, emtirar o pobre da miséria dando-lhe um emprego, ao invés de se:t::·ortterlt:at·ê!rrfdàr4heúina:mbeda.·"'A:,f6rite desse refinamento da······târidadés~énc6rlWna:çpriví'cçã6;de:·queos.pobres, ..réplicas ..do, •.Cristo-sofredor, compartilham comestevem certa medida-a suafunção salvadora. Muitos textos do' fim do século XII falam de"nossos senhores os pobres" ou os apresentam como os "vigáriosdo Cristo". Para muitos leigos, incapazes de chegar à meditaçãodos mistérios divinos e afastados da comunhão por medo dosacrilégio, uma prática renovada da benemerência proporciona-va a ocasião de encontrar Deus presente nos outros e especial-mente nos mais deserdados.

Nessa época, os pobres não eram tanto os que não tinhamdinheiro, mas os que eram desprovidos de proteção e aban-donados a si mesmos. Foi isso que compreenderam alguns ho-

mens, que, sem ter sido canonizados pela Igreja, gozaram emseu tempo de uma reputação de santidade, como Raymond Gay-rard (morto em 1118), um leigo piedoso, convertido por Robertd'Arbrissel, que construiu duas pontes para os viajantes e umhospital para os pobres em Toulouse, antes de acabar seus diascomo cõnego em Saint-Semin. Também foi um pregador muito'popular, "obediente aos reitores das igrejas, ardoroso em con-quistar almas para Deus, virulento adversário dos heréticos",segundo o biógrafo que escreveu sua Vida no século XIII.31Assimtambém,em Plaisance, rica cidade da planície do' PÓ, um ex-sa-pateiro, Raymond dito "Palmerio" (porque fora à Terra Santa emperegrinação), tentou remediar os efeitos perversos da urbaniza-çãoacelerada do norte da Itália, ocupando-se das crianças aban-. danadas e das prostitutas, que procurou reintegrar na sociedade,e tomando a defesa dos indigentes contra uma justiça dominadapelos interesses dos poderosos. Com essa finalidade, não hesitouem organizar uma manifestação de pobres e mendigos, quepercorreram as ruas da cidade gritando: "Socorrei-nos, socorrei-nos, cristãos duros e cruéis, porque morremos de fome enquantoestais na abundâncíal'Y Depois de sua morte, ocorrida em 1200,a comuna de Plaisance assumiu assuas fundações caritativas, quemais tarde foram reunidas no seio do "hospital Saint-Raymond".

O serviço dos doentes e dos excluídos da expansão econô-mica constitui pols o denominador comum dessas iniciativasindividuais, que tiveram muitas vezes prolongamentos institucio-nais. Mas, para esses leigos empenhados na benemerência, nãobastava doar. Sentiam-se também chamados a fazer com que ajustiça.'prevaleçesse.nas.relações sociais eapromover.a.paz.entre '.'

. os,p<lI'tidqs.e.as;dq~clesi~ntão':e~~o:p..tlitQP<:r:manente..Assim,de.;.;,RaymondtPalmeriofa são Homebon(morto em 11'97) e.a Facio(morto em 1272~; ambos cidadãos abastados de Cremona, ossantos do "Popolo" Iombardo se opuseram àsviolências de que ospobres' eram' vítimas, enquanto os ricos viam nisso apenas umaocasião de distinguir-se ou chegar ao poder.

'Ü ponto extremo desse engajamento ·no serviço dos deser-dados foi certamente atingido nos leprosários, que se multiplica-ram em toda a cristandade, a partir das últimas décadas do séculoXII. Elesconstituíam comunidades religiosas,que compreendiamao mesmo tempo os doentes, os conversos e conversas leigos, quese consagravam ao seu serviço e alguns clérigos -- muitas vezes

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cônegos regulares - que serviam a igreja ou a capela do es-tabelecimento. Convém sublinhar a originalidade desses agrupa-mentos, que reuniam em pé de igualdade e sob a direção de umreitor que muitas vezes era um leigo - pelo menos na Itália-homens e mulheres que tinham abandonado a sua existênciaanterior para viverem juntos, alguns coagidos e forçados sob oefeito da doença e do processo de exclusão que ela acarretava ipsofacto, outros para tratar dos primeiros. Todos estavam "mortospara o mundo", e foi por isso que a Igreja não hesitou emconceder o status de estabelecimento religioso a essas maladreries'como eram chamadas na França. Embora a coexistência dessasdiversas categorias nem sempre fosse fácil, deve-se ressaltar que aatividade desenvolvida por muitos leigos dos dois sexos, que seengajavam voluntariamente nessa forma devida comunitáriaexigente, para atender às necessidades Aos leprosos e suavizar osseus sofrimentos; foi para' eles a ocasião de uma experiênciaespiritual autêntica e exigente. No seu Testamento, Francisco de'Assis evoca a suajuventude,nos primeiros tempos de sua conver-são, c:: o choque que sentiu: "Quando eu ainda estava no pecado,a visão dos leprosos me era insuportável; mas o próprio Senhorme .conduziu até eles e eu os tratei com todo o meu COTação."33Sem retirar o caráter comovente desse gesto iridividual, convém,para dar-lhe todo o seu significado, situar o "beijo ao leproso" nalinhagem do movimento caritativo do século XII, de que eleéonstitui, de certa forma, arealização.

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apostolica, a exemplo dos monges e dos cônegos. Segundo ocronista Bemold de Constance, "assistiu-se então a um floresci-mento da vida em comum em muitos lugares do reino germânico,não só entre os clérigos e os monges, mas também entre os leigos,que ofereceram, por devoção, as suas pessoas e os seus bens, paraparticipar dessa vida comum. Em seu aspecto exterior, os últimosnão se assemelhavam nem aos clérigos nem aos monges, e entre-tanto eles não lhes eram, de modo algum, inferiores no plano dosméritos".34 Famílias e aldeias inteiras vieram instalar-se à sombrados mosteiros, especialmente em Hirsau, uma abadia beneditinada FIorestaNegra, que defendia a causa da reforma em todo o sulda Alemanha. Nesses movimentos, a distinção entre os estados devida (monges, clérigos, leigos) não ficava abolida, mas passavapara o segundo plano, sendo o essencial a vida comunitária aserviço do Cristo.

Pela primeira vez, leigos reivindicavam a possibilidade de teracesso à vida apostólica, permanecendo em seu estado. Entreeles, havia celibatários e pessoas casadas. Todos se santificavamabandonando aos-clérigos aquilo que possuíam, a exemplo dosprimeiros cristãos, que vinham depositar seus bens aos pés dosApóstolos. Ficavam fora das abadias, mas estavam estreitamenteassociados aos religiosos no plano da vida litúrgica. Em' Hirsau,eram chamados fratres exteriores. Quando um deles morria, dis-tribuía-se comida aos pobres durante 10 dias, como por ocasiãoda morte de um monge.

Essa vida quase monástica sem profissão religiosa tinhaligação com o uso da deditio, que levava certos indivíduos, porpiedade ou por necessidade, a doarem sua pessoa e suas terras em

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abadia ou dacolegial.iouainda cêrecensuales. Esse estilo devidapode ser comparado também com as confrarias, que associavamleigos .generosos aos monges clunisianos, que os mencionavamem suas orações. A novidade do movimento de "conversão" queacabamos de descrever se situa em seu caráter coletivo - não setrata mais de indivíduos, mas de linhagens inteiras- e principal-mente na associação, em pé de igualdade, de leigos, que ofere-ciam seu trabalho, e monges, que oravam pelo conjunto dacomunidade. Seria possível comparar esse movimento com mui-tas fundações religiosas do início do século XII, nas quais coexis-

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A maioria dessas experiências se. inspiraram em ideais for- .mulados no meio clerical. Assim, na Alemanha, nos últimos anosdo. século XI, certos camponeses se dedicaram à prática da vita

*Palaorá formada a partir de "malade" (doente) etladre", de "Lazarus", nome dopobre coberto defendas, da parôbola de são Lucas. (N.T.) i

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tiam clérigos e leigos. Foi o caso, particularmente, da ordem deGrandmont, em que os irmãos leigos eram mais numerosos doque os clérigos e exerciam sobre estes uma preponderância defato, ou ainda em L'Artige e em Obazine, no Limousin, onde,pelo menos ria origem, padres e leigos levavam em comum umavida semi-eremítica. . .

Entretanto, trata-se de movimentos de Vanguarda, cujo im-pacto não se deve exagerar. A vontade de apropriar-se das rique-zas espirituais domonaquismo constitui uma das aspirações fun-damentais dos fiéis no século XII. Mas a coexistência de leigos eclérigos no seio de uma mesma comunidade religiosa era umparadoxo institiIcional.que não podia sobreviver sob a formaradical que tomara em Hirsau ou em Grandmont. Ao fim de um·certo tempo, a maioria desses agrupamentosfoí.obrígada a adotar _a regra de são Bento ou a de santo Agostinho. Os leigos tinhamseu lugar neles, mas de certo modo se tornaram religiosos desegunda classe: os converses. Estes se encontravam ria Itália desdeo século XI, em Vallombrosa e Cama1doli. Multiplicaram-se em·todo o Ocidente durante o século XII, e todas as novas ordens _cartuxos, cistercienses, premontranos - os tinham em suas filei-.rasoAlguns viram nesse fenômeno o resultado de uma lentaascensão para a vida.religiosa da elite da familia monástica. Issoparece pouco provável, pois eles apareceram, não nos mosteiros·de tipo tradicional, que tinham muitos servidores, mas nos novos,que tinham poucos. Na verdade, o monaquismo reformado, namedida emque se queria totalmente fechado para o mundo, nãopodia dispensar auxiliares que garantissem a sobrevivência eco-nômica da comunidade: A existência de conversos, ou irmãos .

····,.~;~:tii~~U~ê-o~ri:~:tf;~··t:~=~~~~~é::~~~.··,·.obrigações específicas dô seuestado. Por 'Suavez; muitos leigos,. principalmente no campo, aspiravam a beneficiar-se da proteçãotemporal e espiritual de uma comunidade religiosa. Por causa desua falta de cultura, não podiam se teimar monges coristas. Assim,eram conversos, palavra que tomou, porvolta dos anos 112(};1130,um sentido institucional preciso e designava religiosos encar-regados dos trabalhos' rurais. Viviam no interior dos mosteiros,mas tinham dormitórios e refeitórios separados. Não desempe-.nhavam nenhum papel nos ofícios litúrgicos, que só seguiam nodomingo e nos dias de festa, e eram simplesmente obrigados a

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A Religião dos Nouos Tempos 119

recitar alguns padres-nossos. Era pelo trabalho que eles colabora-vam ativamente para a vida da comunidade e para a sua própriasantificação.

A espiritualidade dos conversos era ambígua e sobre elafizeram-se julgamentos contraditórios. Recrutados principal-mente entre os camponeses iletrados, foram muitas vezes consi-derados como inferiores pelos monges coristas, que tinham sobre.eles a dupla vantagem de serem clérigos e contemplativos. Assim,os irmãos leigos tiveram problemas, que, em certos casos, chega-ram até a revolta violenta, com seus companheiros de existência.No interior da iristituição monástica, encontravam-se assim - oque não é surpreendente - as clivagens sócio-culturais quedividiam a sociedade profana. Mas em geral, e a despeito de suasimperfeições, a instituição dos conversos permitiu a muitos leigoster acesso a uma forma de vida religiosa original, fundada sobrea vida comunitária e o trabalho. Alguns deles se tornaram santos,como o bem-aventurado Simão, guardião do celeiro de Coulmis,nas terras da abadia cisterciense de Aulne, no Hainaut, que foifavorecido com graças excepcionais e possuía, particularmente,o dom de ler nos corações. Sua reputação foi tal que o papaInocêncio III mandou chamá-Io para o IVConcílio de Latrão, em1215, para ouvir os seus conselhos .

Outra fórmula de vida religiosa se oferecia ainda aos leigos,e principalmente aos que eram originários da àristocracia: asordens militares, que apareceram em ligação com as cruzadas. Em1118, alguns cavaleiros que se encontravam na Terra Santa seassociaram para escoltar e proteger os peregrinos. Conhecidosprimeiramente sob o nome de "Pobres cavaleiros do Cristo",constituíamuma espécie de ordem terceira, ligada aos cônegosdo Santo Sepulcro. Alguns anosdepois,<oshospitaleiros.de~sãoJoão de ]erusa1ém, que desde meados do século XI cuidavam dosdoentes e acolhiam os miseráveis, se especializaram nas tarefasmilitares. Em ambos os casos, tratava-se, na origem, de agxupa-mentós de leigos piedosos, que comutavam o voto temporário dacruzada em um engajamento perpétuo ao serviço da Igreja. Masnão tardaram a sofrer a influência do monaquismo e a se trans-formar em ordens religiosas, Os primeiros, que tomaram o nomede templários, adotaram, em 1128, a conselho de são Bemardo,uma regra redigida a partir do modelo da de são Bento. Em 1130,o ilustre abade de Clairvaux fez o elogio desses monges-cavaleiros

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em um importante tratado intitulado significativamente De laudenovae militiae, 35 nele se define, em termos vibrantes, um idealespiritual fundado na prática da vida em comum, na obediênciae no desprezo pelo mundo.

Todos os grupos e ordens religiosos que acabamos de citartêm em comum o fato de procurar fazer a síntese entre certosaspectos específicos do estado leigo (trabalho, guerra, caridade)e ideais que eram até então vividos unicamente nos claustros,como a vida em comum, a obediência e o ascetismo. Mas o pesodas tradições e a rigidez das regras canônicas fizeram com que,em geral, o caráter leigo dessas fundações se apagasse rapida-mente, enquanto se acentuava o seu aspecto monástico. Por isso,a maioria dos fiéis que aspiravam à perfeição não seguiram essecaminho, mas a via, mais acessível,da espiritualidade penitencial.Não se trata de uma novidade absoluta. Desde a Antiguidade,existiam na Igreja penitentes homens e mulheres, isto é, leigosque levavam, em suas próprias casas, uma existência austera edevota, depois de receber o sacramento da penitência, que du-rante muito tempo não foi reiterável. Na Idade Média, particular-mente a partir do fim do século XII, uma mudança importanteocorreu: o estado penitencial se tomou um gênero de vidareligiosa livremente escolhido por aqueles que aspiravam à per-feição, sem poder ou querer sair do mundo. Na encruzilhada doascetismo, que exercia um grande fascínio sobre os fiéis, e do idealapostólico, este associava o espírito de pobreza e de caridade àprocura do sofrimento físico, Aqueles que o assumiam desejavamreproduzir em sua existência cotidiana o mistério do Cristo, aomesmo tempo vítima e salvador, humilhado e triunfante. Não háRessurreição sem Paixão. Profundamente convencidos da. ver-dade dessa.afirmação, os penitentes veluntâriosse. mortificavampara, de certa forma, obrigar o poder de Deus a.se manifestarneles.

Esse novo estilo de vida cristã obteve um grande sucesso,principalmente junto às mulheres, das quais muitas não podiam,por motivos de ordem econômica e. social, ser admitidas nosmosteiros. Desde as últimas décadas do século XII, nas regiõescorrespondentes à atual Bélgica, constituíram-se assim agrupa-mentos de mulheres chamadas beguinas, que viviamem comuni-dade sob a direção de uma delas, sem pronunciar votos religiosospropriamente ditos e associando o trabalho manual e a assistência

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aos doentes a uma intensa vida de oração. Nesses grupos pietistas,que tinham seu equivalente masculino com os beguinos, e queiriam se multiplicar em boa parte da cristandade, no século XIII,a meditação sobre os sofrimentos do Cristo resultava em uma vidapenitente e em uma aspiração ao despojamento totaL Um padrede Liêge, Lambert "liBeges" (morto em 1177), que participou daorigem do movimento, descreve assima sua espiritualidade: "Elesouviam com a maior avidez a palavra de Deus e a colocavam emprática, participando com compaixão da imolação do corpo e dosangue de Nosso Senhor. Parecia-lhes então que o Deus douniverso sofria de novo a sua dolorosa Paixão, como testemu-nhavam os seus muitos gemidos,as suas efusões de amor e dedevoçãc.P" Os santos não tardaram a figurar em suas fileiras:Juette d'Huy abandonou seus bens em 1180, com a idade de23 anos, para devotar todo o resto da vida a tratar dos leprosos.Marie d'Oignies; bem conhecida graças ao seu biógrafo, o cardealJacques de Vit:rY;resumiu em sua pessoa todas as riquezas es-pirituais da corrente beguinal: nascida em Nivelles, em 1178,casada aos 14 anos, retirou-se com o marido para um pequenoleprosário, onde serviu aos doentes durante 15 anos, depois deabandonar todos os seus bens. Em 1207, estabeleceu-se comobeguina reclusa no priorado de Oignies-sur-Sambre, onde expres-sou o seu amor à pobreza, indo mendigar de porta em porta, parapoder assim "seguir nua o Cristo nu". Viver a vida dos miseráveise mendigar o pão era aos seus olhos, assim como a comunhãosacramental, um meio de reencontrar o Cristo e unir-se a ele,seguindo o seu exemplo. Com ela, a ação caritativa encontrava oseu prolongamento natural na mística mais autêntica.

No limiar dó século XIII, a 'emancipação 'espiritual dosleigos, que seoperou airavés.doestado penítencial, era-fatoconsumado, Apesar das reticências e às vezes da oposição demuitos clérigos, multiplicaram-se por volta de 1200 os grupos delaici religiosi e de mulieres religiosae, que se esforçavam por viver nomundo' a sua vocação cristã. Os próprios canonistas acabariamreconhecendo a evolução, como mostra a definição da palavra"religioso", dada, em 1253, por um dos mais ilustres deles, Henride Suse, cardeal de Ostia: "No sentido amplo, chamam-se religio-sos aqueles que vivem santa e religiosamente em suas casas, nãoporque se submetam a uma regra precisa, mas em razão de suavida mais dura e mais simples do que a dos outros leigos, que vivem

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-122 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

de modo puramente mundano.t"? Não haveria palavras maisadequadas para dizer que a vida religiosa não é um estado, masum estilo de existência.

À custa de conflitos e condenações, que às vezes os con-duziram à beira da heresia, os movimentos 'religiosos popularesdo século XII conseguiram que a Igreja admitisse os principaiselementos de uma espiritualidade que, por ter sido mais vividaque formulada, não deixava de ter uma importância considerávelna história do cristianismo medieval. Os historiadores tiveramtendência a negligenciá-Ia, porque ela permanecia implícita. En-tretanto, sem essenovo clima, não se explicariam nem o conteúdonem o sucesso da mensagem franciscana. Uma das grandes liçõesque se pode tirar das experiências vividaspelos leigos no séculoXII é a possibilidade de viver o Evangelho no meio dos homens,recusando, ao mesmo tempo, o "mundo".38Ora, esse foi o obje-tivo fixado para a frarernidade dos Penitentes de Assispelo filhodo mercador Bemadone. Não é diminuir a sua originalidadesublinhar que ele foi tributário das correntes espirituais queagitaram acristandade algumas décadas antes. Alguns contempo-râneos não se enganaram, ao vernos IrmãosMenoresos suces-sores dos valdenses e nos Pregadores os dos cônegos regulares.

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NOTAS

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1. C. Violante, "I vescovi dell'Italia centro-settentrionale e 10 sviluppodell'econornia monetária", in Studi sulla cristianità medioeoale; Milão,1972, p.325-47. .

2. M. Mollat, "Le problêrne de Ia pauvreté au xrr siêcle", in Vaudoislanguedociens etpauurescathalioues, "Cahiers de Fanjeaux", n2 2, Toulouse,1967;p.2~7.- .: ,,-

3. M. -D. Chenu, "Moines, deres et laícs au carrefour de Ia vieévangélique(XIIe siêcle)", Reoue d'Histoire ecclésiastique, 49, 1954, p.59-89.

4. Atos, Il, 42-47: "Todos aqueles que criam viviam juntos e tinham tudoem comum" e IV, 32-35: "A multidão dos fiéis tinha um só coração eumasó alma; ninguém chamava seu ao que tinha, mas tudo estava em comumentre eles."

5. M. -H. Vicaire, L'Imitation des apôtres: moines, chanoines et mendumts (N-XIll"sücle), Paris, 1963, p.90.

6. "Com muito vigor, os apóstolos davam testemunho da Ressurreição doSenhor" (Atos, IV, 33).

7. Como demonstrou R Grégoire, "L'adage ascétique Nudus nudum Chris-tum sequi; in Studi Storici in onore di O. Bertolini; Pisa, 1972, t. I, p.395-409,

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A F-eligiM dos Nouos Tempos 123

essa expressão é tradicional e remonta a são Jerônimo, mas é no séculoXII que ela aparece freqüentemente nos textos, para assinalar o desejode viver em total pobreza.

8.Ch. Dereine, "La spiritualité 'apostolique' des premiers fondateursd'Afflighern" (1085-11 00), Reoue d'Histoire ecclêsiastique;54,1959, p.41-65.

9. "O cavaleiro se faz monge, mas de pobre torna-se rico." Texto citado porJ. Leclercq, "La crise du monachisme aux XIe et Xll" siêcles", in Auxsources de la spiritualité occidentale; Paris, 1964, p.179.

10. L. Genicot, "L'érérnitisrne du XIe siêcle dans son contexte économiqueet social", in L 'eremiiismo in Occidente nei secoli XI e XII, Milão, 1965, p.69.

11. Pedro Darniâo, op.l1, Dominus vobiscum, PL. 145, 23M>.12. Coutumier de l'ordre de Saint-Ruf, Ed. A Carrier de Belleuse, Sherbrooke,

1950, p.97.13. L. Milis, L'Ordre des dumoiiies riguliers d~1Touaise, Bruges, 1969, p.653.14. Ver, sobre esse problema, a preciosa reflexão de J.Becquet, "Chanoines

réguliers et érémitisme clérical", Reoue d'Histoire ~ Spiritualité, 48, 1972,p.361-70. .

15. M. -H. Vicaire, op. cit.; p. 80.16. Anselmo de Havelberg, P. L., t. 188, c.1131-1132, trad. por F. Petit, La

Réfarme despritrBs au Moyen A~. Pauoreü et tne commune, Paris, 1968, p.91.17. Como mostrou R A Donkin, "The Cistercian Order and the Settlement .

ofNorthem England", GtcgraphicReWw,.59, 1969, p. 403-16.18. Cf. infra, p.183:4. .19. Carta a Rodolfo de Suábia, 11 de janeiro de 1075, Gregorii VII registrum,

Ed.E. Caspar, 1920, p.104.20. G. Duby, "Le monachisme et I'économie rurale", in Hommes et structures

du Moyen Age, Paris, 1973, p.392.21. L. K Little, "Pride Coes before Avarice: Social Change and the Vices in

Latin Christendom, The American Historical Review, 76, 1971, p.16-49.22. WalterMap, Denugiscurialium,d.l, c. 31, trad. por R. Foreville,in Latran

1,u; tu«Latron N, Paris, 1965, p.207.23. Ep., I, 15, citado por R Bultot in Ilaici nella "Societas chsistiana" dei secoli

XI e XIl, Milão, 1968, p.391.•.24. Como mostrou R. Manselli em uma obra fundamen tal, L 'Eresia del mate,

Nápoles,1963, p.I1S-49. ...25. O texto maisimportante.ia esse respeito, é 2 'Tessalonicenses, Il, 10: "Se

alguém não quiser trabalhar, que também não coma."·26. "Levanta-te e passa do repouso para o trabalho."27.J. Le Goff, "Métier et profession d'aprês les manuels de confesseurs au

Moyen Age", in Beitrãgezum' BerufsbeurusstseindesMittelalterlichen Menschen,Berlim, 1964, p.53, retomado em id., Pour un autre MoyenAge, Paris,.1977, p.162-80.

28. Cf. E.G.Blanco, TheRuleoftheSpanishMilitary OrderofStJames, 117Q;.1493,Leiden, 1971, p.171.

29. Ver o testemunho do cardealJacques de Vitry (1165-1240): "Os Humi-lhados, que abandonaram tudo pelo Cristo, se reúnem em diversos.lugares, vivendo do. trabalho de suas mãos, pregando freqüentemente apalavra de Deus e escutando-a de bom grado. Sua fé é tão profunda

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124 A Espiritualidcde na Idade Alédía Ocidental

quanto sólida e sua ação é eficaz" (jacques de Vitry, Lettres, ed. R. B. C.Huyghens, p.72).

30. Sobre todos esses novos aspectos da caridade, tanto teóricos quantopráticos no século XlI, ver a importante seleta publicada sob a direçãode M. Mollat, Etudes sur l'histoire de Iapauvreté au Moyen Age, Paris, 1974,p.855. Encontram-se ali os resultados de uma vasta pesquisa coletiva naescala do Ocidente.

31. Texto citado por E. Delaruelle, "L'idéal de pauvreté à Toulouse au Xll"siêcle, in Vaudois languedociens etpauores catholiques, Toulouse, 1967, p.74("Cahiers de Fanjeaux", 2).

32. Vida de são Raymond Palmerio, in AA.SS. Iulii, VI, 645-57.33. São Francisco de Assis, Testament, 1-2, ed. e trad. por T. Desbonnets e D.

Vorreux, Saint François d~sise. Documents, Paris, 1968, p.104.34. Bernold de Constance, Chrtmicon, P. L, 148, c.1402-1403.35. Elegia da noua cavalaria.36. Texto citado por A. Mens, L'Ombrie italienne etl'Ombrie brabançonne,

Etudes franciscaines, 17 (Suplemento), 1968, p. 18.37. Henri de Suse (Hostiensis). Summa aurea, lib. Ill, Veneza, 1570, p.193.38. Essa palavra deve ser entendida aqui no sentido de criação viciada pelo

pecado.

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CAPÍTULO rv

.0 Evangelho no MundoCristocentrismo e Busca da Santificação

(séc. XIII - início séc. XIV)

Sem dúvida menos original do que o século XII, o século XIII,entretanto, aprofundou e levou até as últimas conseqüênciascertas intuições fundamentais que surgiram na época da granderenovação eremítica e monástica dos anos 1080-1130. Assimocor-reu com o evangelismo, muitas vezes apresentado como o traçodominante, no plano espiritual, do' século das ordens mendi-cantes e de são Luís. Desde as primeiras décadas do século XII,santo Etienne de Muret (morto em 1124), fundador da ordem deGrandmont, não dissera e escrevera aos seus companheiros que"não há.outra regra senão o Evangelho do Cristo", precisando atéque este era o único caminho pelo qual um cristão podia conquis-tar o reino dos.Céus!?Masseria preciso esperp.rsão.Ftanciscode;~s~s'( fil.9rto er:ri~;2~6),qpas~ ..Mw~é<:Plocl~pei~l,paI4 qué; a ..validade; dessa afirmação fosse plen.amenteadmiticÍi na Igreja,.'eque se tomasse consciência de todas as suas implicações. Há umadupla razão para esse atraso: de um lado, a idéia, fortementeenraizada nos espíritos, de que a perfeição espiritual só podia seratingida ou mesmo simplesmente procurada no abrigo do claus-tro e fora do mundo; do outro, o fato de que o Evangelho tendiaa tomar-se, durante a segunda metade do século XII, uma armacontra a Igreja nas mãos dos movimentos contestatários e heréti-cos, que a acusavam de trair ou dissimular o conteúdo autênticodas Sagradas Escrituras.ê Em sua oposição cada vez mais clara àinstituição eclesiástica, os vaedenses e outras correntes evangéli-

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A Espiritualidade na Idade Média Ocidental126

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cas procuraram libertara Palavra de Deus da mediação do clero,traduzindo-a em língua vulgar e pondo-a, assim, à disposição dossimples fiéis;os cátaros, por suavez,aspiravam auma religião purae desinteressada, que não tivessenecessidade de hierarquia nemde dogmas mas que daria ao homem, graças ao consolamentum,conferido pelos Perfeitos, o meio de libertar a parte espiritual queestava nele do domínio do mal, assimilado ao corpo e à matéria,e chegar à pátria celeste, depois do exílio neste mundo. Haviagrandeza nesse espiritualismo integral, e ele exerceu um fascínioreal sobre muitos espíritos, em ambientes muito diversos. Mas, emuma época em que a expansão econômica, o crescimento demo-gráfico e a elevação do nível de vida das populações eram evi-dentes, a insistência dos cátaros no caráter, irremediavelmenteviciado da criação contrariava uma sociedade que, em todos ossetores, começava a acreditar no progresso. A referência exclusivaao Novo Testamento e a aspiração a uma religião puramenteinterior, características da maioria dos movimentos religiososcontestatários ou dissidentes do fim do século XII e do século XIII,podiam, até certo ponto, legitimar umaascese pessoal rigorosaou a recusa de instituições eclesiãstícas que se tomaram opres-soras. Elas não justificavam, sob pena de renegar-se a si mesmas,uma condenação inapelável da vida carnal e de' todas as formasde encamação do sagrado, nem a recusa de reconhecer umsignificado para a história humana. Mas, no começo do século'I" XIII, restava encontrar a fórmula que permitisse a cada cristão

:l viver de acordo com o Evangelho, no seio da Igreja e no coração11 do mundo. Foi esse o papel histórico dos fundadores das ordensi I"." -Ó. " ,", IIlendicantes, são FraIlcisco cieAssise são Dotningos, assim comot:' te",' 2'~:" ':'~~:~i~<sAY:~§;~~pigtlt~~,~,),~,W;Jín~~Q's::,:~Ia,~,()~Fe<#fun~ress3:.; fV',;<';,\ ':,' 'l'ô.rtriUla'ernt6dôsás níVeísdasociedadej especiahnenténosmeios,.:' '",:;'.',,'" urbanos. '

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1. A mensagem espiritual das ordens mendicantes

)a) Utopia e espintualidade franciscanas ~'

) Francisco (1182-1226), filho de um mercador de Assis,se conver-teu, na idade adulta, nos primeiros anos do século XIII e tomou-se, depois de alguma hesitação, um adepto da pobreza do Cristo.

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O Evangelho no Mundo 127

Seus contemporâneos, fascinados por sua personalidade e por suapregação itinerante, não tardaram a ver nele um arauto doEvangelho e logo um santo.

Ele teve, efetivamente, o imenso mérito de operar em suapessoa a síntese entre as aspirações, às vezes contraditórias, dosmovimentos religiosos que tinham marcado as gerações prece-dentes, e a mais autêntica tradição cristã. Para ele, uma profundadevoção ao Cristo, venerado em sua humilhação e, especial-mente, pelos sofrimentos que padecera na ClUZ, era acompa-nhada de um sentido àgudo da onipotência e da transcendênciadivinas; do mesmo modo, o seu desejo de viver na pobreza maistotal e na humildade não excluía uma fidelidade sem falhas àIgreja, enquanto o olhar fundamentalmente benevolente que eledirigia para o homem e o universo o tomava insensível. às ten-tações do dualismo. Poucos homens de Deus associaram, comoele, em um grau excepcional, o objetivo apostólico e a experiênciaascética, o evangelismo integral e o espírito de obediência. E se,em certos aspectos, a sua mensagem se situa no prolongamentodos movimentos religiosos do século XII, não se poderia esquecerque sua vida foi'um desses acontecimentos que, sem ser inexpli-cáveis, revolucionam entretanto o curso da história.

Do ponto de vista institucional, a originalidade fundamentaldos Irmãos Menores - nome que tomou, em 1209, a fraternidadefundada por Francisco e seus primeiros companheiros, depois doseu reconhecimento pelo papa Inocêncio Ill - reside em suavontade de levar uma vida pobre e errante, a exemplo do Cristoe dos apóstolos, que se traduziu por uma recusa de possuir bens,não sé)individualmente -:-"0 quejá erao caso dos.monges.e--mas!:3.mb~m~nl.cbmum:()ptáIldopelacoJldiçãode"mi7),ores'~.(p'eque--"nos,humildes) -querse'dê aessa palavra umconteúdo purà-"mente moral quer se atribua a ela uma conotação social' (eladesignava então, ,nas comunas italianas, as categorias inferioresda população, excluídas do poder) - Francisco rompia, discretamas profundamente, o laço estreito que existia então entre oestado religioso e a condição senhorial. Os monges do seu tempo,mesmo aqueles que, como os cistercienses, se mostravam preocu-pados em fugir do mundo, eram grandes proprietários de terrase os mosteiros constituíam verdadeiras senhorias coletivas, quegeriam, defendiam e procuravam aumentar um patrimônio mui-tas vezes considerável, ao mesmo tempo em que exploravam

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128 A Espiritualidade na Idade Média OcidentalI[)!JEcaragwUw no Mundo 129

homens. No espírito dos leigos e principalmente dos camponeses,eles pertenciam ao mundo aristocrático, embora se encontrassementre eles indivíduos de grande santidade, que praticavam apobreza em espírito. Ao contrário, a vida dos Irmãos Menores, talcomo Francisco e seus companheiros a descreveram no textonormativo de 1221, impropriamente designado sob o nome de"Primeira Regra" (I Reg.) , se caracteriza pela recusa de toda formade apropriação, já que esta implicava, a seu ver, uma recusa decompartilhar e expunha. o homem à tentação da avareza e daviolência. O Pobre de Assis execrava particularmente o dinheiro,no qual via a raiz das discórdias e do ódio. Além disso, os IrmãosMenores queriam situar-se em pé de igualdade com os maisdeserdados, à imagem do Cristo "que não tinha onde repousar acabeça" (Mt. 8, 20). Assim, eles não deviam reter nem reservasnem provisões, subtraindo-se tanto quanto possível ao mundo dacompra e da venda. Para obter o indispensável à vida, confiavamna Providência e trabalhavam com as próprias mãos. O recurso àmendicância só era considerado, nas origens da ordem, como umcomplemento. ' '

Igualmente revolucionária para a época era a concepção deuma ordem na qual os clérigos e leigos estivessem reunidos empé de igualdade. Francisco, que não tivera uma formação clericale só recebeu o diaconato por instância do papa, queria dar a todosos membros de sua fratemidade os mesmos direitos e os mesmosdeveres, pois, em sua opinião, o essencial era uma prática comume sem concessões da pobreza evangélica. A única diferença queele admitia entre os dois tipos de irmãos era que os clérigos liam

"~llcantaVô.ÍJ.l9 .9fíci()efB1;itilll, enquarttoos leigos secontentavam, eill'resitár'\:{):>ateré,â'Ave Mân(l. Mas o sucesso damertsagem'':trariclscana j~'llto aos clérigos e aos estudantes não tardou alevantar problemas novos. São Francisco não era um inimigo dacultura, mas era muito sensível aos riscos que esta comportava: nasociedade da época, o saber conferia necessariamente uma supecrioridade, e conseqüentemente um certo poder e, às vezes, ariqueza. Os irmãos que estudavam corriam o risco de afastar-sedo ideal primitivo, seja acumulando de modo egoísta conheci-mentos capazes de isolá-los dos iletrados, seja por causa de suademanda de livros, que custavam muito caro. É talvez nessaperspectiva que se deva ler o bilhete dirigido pelo Pobre de Assisa santo Antônio de Pádua, um dos primeiros intelectuais a entrar

liJla «l'I!dem: "Ag,rarlat-me que ensines aos irmãos a santa teologia,C!D;1IDl a condição d~ que aqudes que se dediquem a esse estudonão) apaguem em siio:espirino de santa; oração e de devoção, como,~- di d 11........-:r ~~estiam, cac 'O na "~5"~

Francisco desejasa, pc!l':l" ([)Utt(» lado, que as relações no seioda 5IIEiIi fraternidade f(]65l:2D fundadas: sobre uma obedi ência livre-JJi.r,etllteconsentidaesublre3lafc:içiomútua. A rápida expansão doshmâ«ls Menores e sua ~o- em ordem religiosa o obri-gar.mm rog.o a IDstit1lliruma ~uia. Assim, estava previsto naRegr.l (U Reg;.). que foi finalmente aprovada pelo papado em1223. que a ordem seria dirigich pm um Ministro geral, aspnwincias por miDisIros e 05 c:utm:nics por simples "guardiães".A escolha de uma ~ enfãfuanclo a noção de serviço(~signific:asrnidol:. em brim). o papel essencial atribuídopelo fundador ao capítulo ga3l anual" no qual se encontravamtodos 05 innãos., e sua pn:oc:upaÇio de fazer com que todas asfunções hierirqriicas fussem de1.ivas e provisórias mostram a'YOIllade do Po~ de cxiar uma comUDidade religiosa de umtipo novo. repousandonãosolxe~~cais de autoridade,mas sobre a dmsão das meras e sobre a correção fraterna. Emuma carta a um ministro que se queixam da má vontade e damediocridade dos innãoS que o cercavam. o fundador dos Me-nores escreveu estas frases smpreendentes: "Ainda que eles teespanque~ deves considerar tndo isso como mna graça ... Ama-ose não queiras que eles sejam. melhores cristãos ... e faz com quenão haja no mundo nenhum irmão que tenha pecado tantoquanto poderia, e que. depois de olhar-te nos olhos, nunca se vásem .a ~ misericórdia, se de, te pediu misericórdia.,"4,

Do mesmo modo, em- suasrelaçães com as instituiçõeseclesiásticas e com a sociedade civil, Francisco pediu a~eusiriri:ã6sque adotassem uma atitude de submissão deferente e, poucoantes de sua morte, exortou-os, em seu Testamento, a não solicitarprivilégios ao papado, ainda que fosse para proteger-se contra oclero, secular ou regular, que no início se mostrou muitas vezeshostil aos recém-chegados. De fato, o Pobre de Assis concebera,desde a origem, um projeto de evangelização na escala do univer-so, fundado sobre uma pregação itinerante, que não seria emba-raçado por estruturas imperativas. Assim, pode-se encontrar umeco do seu ideal em um trecho de um tratado franciscano,composto por volta de 1240, sob uma forma alegórica, o Sacrum

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commercium: quando a Senhora Pobreza pede aos irmãos que lhemostrem o seu claustro, eles a conduzem a uma colina, mostram-lhe o panorama esplêndido que se estende até o infinito e lhedizem: "Senhora, eiso nosso claustro"," significando, com isso,atéque ponto, apesar de certas aparências, o seu ideal e o seu gênerode vida diferiam dos adotados pelos outros religiosos, em particu-lar os monges.

Confrontado com esse revivalevangélico que Francisco pro-punha a todos os seus ouvintes, quaisquer que fossem sua con-dição e seu estado, o historiador fica tentado a falar de uma utopiafranciscana, no sentido em que se fala dos socialismos utópicosdo século XIX. Essa fórmula não é absurda, se se entende comisso não a expressão de um idealismo quimérico, mas uma con-cepção original e coerente da vida, certamente muito dificil depôr em prática, por ser tão exigente e, em certos aspectos, tãoavançada para o seu tempo, mas que devia exercer durantedécadas e até séculos um fascínioprofundo sobre muitos espíritos.De acordo com a sua visão evangélica do reino dos Céus, quecomeça a ser construído neste mundo a partir de uma sementemodesta, o Pobre de Assis procurou criar, com os Irmãos Me-nores, as "Pobres Damas" de santa Clara - que mais tardeseriam chamadas clarissas- e os penitentes leigos que seguiram.o seu apelo à conversão, um modelo religioso alternativo, com afinalidade de revelar aos homens e até à Igreja - mas sem dar-lheslições nem agredi-los - o que poderia ser um mundo livre dopoder do dinheiro e da violência, porque plenamente consagra-do à adoração de Deus e ao serviço dos pobres.

Além da seduçãoexercida durante a vida por sua pessoa,. 'c umá das prip.cipaisrãzõ~s do svcessoitnediàtô. que a mensagemde são Francisco tevena Itália reside na sua relação muito originá]'com a cultura do tempo. A cristandade ocidental, desde o séculoXII, estava preocupada com o desafiolançado pela cultura profa-na - a dos romances de cavalaria, mas também a cultura folcló-rica dos camponeses e a dos citadinos, maisjurídica - à culturaeclesiástica, cujo veículo era o latim. O Pobre de Assisaceitou essedesafio, propondo aos seus ouvintes uma mensagem acessível atodos e enobrecendo a língua vulgar por um uso religioso. Naverdade, por sua formação, ele não era um clérigo e os poucosrudimentos de latim que ele aprendera lendo o saltério na escolada catedral de são Rufino apenas o habilitaram a manter um livro

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de contas. Os divertimentos aos quais se dedicou durante aadolescência, com ajuventude dourada de Assis,o marcaram bemmais. De qualquer forma, conservou um estilo cortês, que iriaacompanhá-lo durante toda avida, o amor pela poesia e um certoconhecimento do francês, que era então a língua por excelênciada canção. Assim, quando deixou o "século", Francisco estavamais próximo do mundo dos cavaleirosda Távola Redonda e dostrovadores do que dos juristas de Bolonha ou da escolásticaparisiense. Entre os seus primeiros discípulos, alguns Se recruta-ram, aliás, entre os saltimbancos que frequentavam as cortesaristocráticas, como o irmão Pacífico, "príncipe dos poetas" daMarche de Ancona e "mestre-de-canto nobre e cortês'l.? Quandoele próprio e seus primeiros irmãos começaram a anunciar oEvangelho nas cidades e nas aldeias, logo se evidenciou que sua"pregação" não tinha muita coisa a ver com o gênero de eloqüên-cia sagrada em voga entre os clérigos eruditos. Aquele que falavamelhor apresentava em algumas palavras claras e evocadoras oconteúdo da mensagem: apelo à conversão e à paz, perdão ealegria, fraternidade entre todos os homens em nome do SenhorJesus. Depois disso, todos começavam a cantar os louvores deDeus, deixando que Francisco concluísse: "Somosossaltimbancosde Deus, e a verdadeira recompensa que desejamos é ver quelevais uma vida verdadeiramente penitente."? O Pobre de Assisatravessavaassimo fossoque separava a cultura profana da culturaeclesiástica. Ele próprio falava, evidentemente, a língua do povo,mas o conhecimento aprofundado que adquiriu da Bíblia depoisde sua conversão permitiu-lhe recorrer, no caso dos textos escri-.tos,ao latim que ele usavacomo uma língua viva,mesmo cometen-do alguns barbarismos. Com isso, el(!suavizoua rigiqez çl(ilfnguasacra, fazendo dela um instrumento de comunicação. Mas, poroutro lado, enriqueceu a língua vulgar, empregando-a em umcampo que até então lhe era mais ou menos estranho: o daexpressão do sentimento religioso. O Cântico das criaturas (ou doirmão SoC), composto diretamente por ele e redigido em italiano,constitui, nesse aspecto, uma importante novidade.f Através des-se texto admirável, Francisco resgata o elemento oral e popularda cultura leiga e faz dele um instrumento de louvor ao Criador,assim como o latim litúrgico, considerado até então como únicoveículo possível da prece. Assimse realizou, sob sua influência ea dos seus irmãos, uma osmose fecunda entre acultura profana

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e a cultura religiosa. Doravante a devoção do povo italiano, e deoutros depois dele, poderia expressar-se na linguagem da expe-riência cotidiana, com suas alegrias e tristezas. Continuada pelasconfrarias de "Laudesi" - autores e cantores de "laudes" emhonra de Deus e dos santos -, pelos flagelantes e ,por outrosagrupamentos que associavam a prece, o canto e a expressãoteatral, a ação realizada nesse nível, por são Francisco, resultaria,a partir de meados do século XIII, em uma síntese do sentimentoreligioso e da emoção lírica ou patética, que perdurou, às vezesaté os nossos dias, nos países mediterrâneos. Esse foi o impactoda linguagem franciscana, humilde e direta, que reconciliou umpovo com a sua religião, através da palavra e do canto.

Hoje, parece-nos evidente que o significado profundo damensagem de Francisco de Assisescapou, em grande parte, aosseus contemporâneos e até a muitos dos seus filhos espirituais,que fizeram dele, depois de sua morte, uma figura autoritária euma referência abstrata- Edificando, para abrigar os seus despo-jos, uma gigantesca e suntuosa basílica em Assis,que depois foidecorada pelos melhores pintores do tempo, um dos seus princi-pais sucessores à frente da ordem dos Irmãos Menores, o irmãoElias, cometeu uma verdadeira traição ao ideal de pobreza queguiara aquele que Eliaspretendia homenagear. Damesma forma,o zelo que utilizou para atrair a atenção do papado e dos fiéisparao fenômeno dos estigmas - vestígiosde uma identificação físicade são Francisco com o Cristo crucificado, que teriam aparecidono seu corpo por ocasião de uma visão ocorrida em 1224 nasolidão de LaVerna, perto de Arezzo- assimcomo a interpreta-"ção:IIlÍsticae, eS<;atqlpgiçaq',le,s_ã,,9J~q;lVÇn.tu~,seu suç~S1lqrà,-frente.da'ordem de 1257a 1274,cleudesSe'ferlômenq sobrenatu-~ 'd'emoIlsu.;,m'u~~\'~n;de d~~pr~~J~tai,o Pobre de' Assiscomo um "segundo Cristo" (alter Chri$tus),cuja santidade e con-formidade com o seu divino mestre eram comprovadas por essaschagas de origem divina. É difícil, senão impossível, saber o querealmente ocorreu quando da estigmatização. Os relatos - con-fusos e contraditórios - das raras testemunhas e dos mais antigostextos hagiográficos, e também a iconografia primitiva da cena,ressaltam principalmente a sua dimensão teofânica, a saber oaparecimento a Francisco de um serafim portador de uma reve-lação impressionante, centrada na infinita grandeza de Deus-Trindade, no seu próprio destino espiritual e no da sua ordem.

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De qualquer forma, todas essas leituras a posteriori do aconteci-mento de LaVerna, que visavamprincipalmente conferir à ordemfranciscana uma legitimidade sobrenatural em uma época emque seu papel no seio da Igreja era objeto de vivaspolêmicas, logofizeram com que se perdesse de vista a existência concreta doPobre de Assise o significado profundo do seu testemunho. Atémesmo a minoria que, no seio da ordem, continuou ligada à sualembrança e ao seu exemplo - os que foram chamados "Es-pirituais" - acabou por traí-Iono começo do século XN, fazendoda pobreza um absoluto e até, como fizeram alguns que foramcondenados sob o nome de Fraticelli, o fundamento de umaeclesiologia anti-hierárquica.

Quaisquer que tenham sido as interpretações redutoras ouas deformações de que foi objeto, a mensagem franciscana con-servou sua influência durante o século XIII. Realmente, mesmobanalizada ou traída, ela conservou bastante influência, marcan-do, de modo duradouro, a espiritualidade dos últimos séculos daIdade Média, no sentido de um cristocentrismo radical, manifes-tado principalmente por uma devoção à Paixão redentora doCristo, contemplado e venerado em sua humanidade sofredora.O próprio Francisco compôs um Oficio da Paixão e sua filha,espiritual, santa Clara deAssis(morta em 1253),gostavade recitaruma prece às cinco chagas do Senhor. Assim,compreende-se queo bispo Jacques de Vitry, que encontrou o Pobre de Assise seuscompanheiros em Perugia, em 1216, e depois na Terra Santa, ostenha chamado de "verdadeiros pobres do Crucificado'"? O lugarcentral ocupado pela devoção ao Cristona cruz na espiritualidade-franciscana não deve, entretanto, ser considerado como a expres-.:sãodeum enternecirrientoernotivo, mas como um/rnei?Ílrivile-·"'giad() para a alma.ia fim de ter acessó.iatravésdá contemplaçãoda humanidade sofredora do Salvador, à contemplação da suadivindade. São Boaventura (morto em 1274) retomou e desen-volveu e-ssestemas, em um registro mais teológico, enfatizando opapel mediador do Cristo em toda a vida do corpo místico esublinhando que a contemplação da Cruz constitui um caminhoprivilegiado para a santidade. Daí o lugar que ocupa em sua obrao tema da Arvore da Vida (Lignum vitae) , assimilada à Cruz,antítese daquela que, no meio do paraíso, produziu o frutoproibido que estava na origem do pecado, segundo o relato doGênesis. Essa imagem, que posteriormente teve um sucesso con-

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siderável na iconografia franciscana, também iria inspirar umgrande tratado espiritual do início do século XIV, o Arbor vitaecrucifixae Jesu, do irmão menor "espiritual" Ubertino de Casale(morto por volta de 1330), assim como as meditações da místicaAngela de Foligno (morta em 1308) e certos poemas inflamadosdo franciscano Jacopone da Todi (morto em 1306) que, entreduas invectivas contra o papa Bonifácio VIII e a corrupção dosclérigos de todos os tempos, cantava em italiano a Paixão do Cristoe as dores de sua mãe (Stabat mater) com uma ternura comovente.

Desde o século XIII, 'a espiritualidade franciscana marcouprofundamente a piedade popular nos países mediterrâneos e,mais tardiamente, no conjunto da cristandade ocidental: a repre-sentação "em mímica" da Natividade por são Francisco em Grec-cio, no Natal de 1223, estimulou a devoção ao Menino Jesus,manifestada pela representação cenográfica do presépi<,?e portoda uma iconografia centrada na sagrada Infância. E nessemesmo clima que se deve situar o contínuo progresso da devoçãomariana, particularmente forte já no século XII, entre os eis-tercienses, mas muito difundida entre os leigos pelas ordensmendicantes, especialmente pelos franciscanos e pelos carmeli-tas, que propagaram com sucesso a crença na Imaculada Concei-ção da Virgem, e insistiam, em seus sermões e seus livros, naeficácia quase ilimitada da intercessão da Rainha do céu junto aoseu divino Filho, em favor dos pecadores, vivosou mortos.

b) Fé, inteligência e união com Deus: as vias dominicanas

A segunda 9niémrne;IJ.cl!Fan,te, f'dos lnn~()s Pregadóres, foi.fundagáp<,>rs,ãô.Dprnirigós(mortOemJ2'4l),'urjlcôiJ.egô'tegttlarcastelhano que, depois de tomar consciência dadifusâo dasheresias e principalmente do catarismo no Languedoc, duranteosprimeiros aIlOS do século XIII, decidiu consagrar-se totalmentea uma atividade apostólica nessa região. Instalada em Toulousepelo bispo Foulqueem 1215, sua pequena comunidade de pre-gadores evangélicos logo foi reconhecida e aprovada pelo papa-do, mas teve que se dispersar em 1217·:]218, diante da ascensãoda violência no sul da França. Domingos teve então a idéia de, mandar os irmãos que o cercavam às cidades universitárias deParis e Bolonha, onde recrutaram muitas pessoas. Por ocasião damorte do seu fundador, em 1221, a ordem dos Pregadores estava

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em pleno desenvolvimento e seu sucesso foi incontestável até ofim do século XIII. Nessa época, quase todas as cidades impor-tantes da cristandade latina tinham um convento de dominica-nos, ou até de dominicanas, e estes também desempenharam umpapel importante nas missões do Oriente.

A ordem dos Irmãos Pregadores é muito mais clássica emseu princípio que a dos Irmãos Menores, pois era constituídaessencialmente de clérigos, assistidos, nas tarefas materiais, porirmãos leigos, e vivendo em comunidade segundo a regra de santoAgostinho, a exemplo dos cônegos regulares. Entretanto, suasorientações fundamentais, definidas nas Constituições dominica-nas de 1220, repousavam sobre um certo número de intuições,graças àsquais aordem se conectava diretamente com a sociedadeda época, ao mesmo tempo que tinha uma existência .infinita-mente menos agitada do que a da família franciscana. Como oPobre de Assis,são Domingos compreendera o papel fundamen-tal da palavra na transmissão e na educação da fé cristã. Maso fatode que os Pregadores eram em sua grande maioria padres permi-tiu-lhes ir aléin de uma pregação puramente penitencial e abor-dar as questões doutrinais mais complexas. Longe de olhar comdesconfiança a cultura livresca, são Domingos e seus sucessoresprocuraram apoiar-se nela para tomar mais eficaz o seu minis-tério. O objetivo que eles visavamera ao mesmo tempo simples egrandioso: "Falar com Deus e de Deus." Para isso, não hesitaramem dar prioridade ao trabalho intelectual sobre avida conventuale a liturgia. Essa aposta na cultura erudita daria bons resultados:em um mundo em que o saber teórico e prático começava a terum papel importante e onde as universidades logo iriam cons- .-tltuir-um-rerceiro-poder ao lado.do-Sacerdôeioedo. Irnpêrio.. ,;havialugar para uma ordem de "doutores"; cujà função principalseria "transmitir aos outros as coisascontempladas".

Mas são Domingos freqüentara suficientemente os valden-ses e os cátaros para saber que a ciência dos pregadores nãobastava para conquistar a adesão dos seus ouvintes. Ele próprio,aliás, parece ter sido mais um homem de oração do que decultura, mesmo que, aos seus olhos, esses dois aspectos da vidado espírito fossem indissociáveis. Convencido de que a mensa-gem cristã só seria crível se fosse apresentada na humildade e napobreza, quis que os Pregadores fossem uma ordem desprovidade possessões fundiárias e de rendas fixas. Mas se são Domingos

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não era menos apegado à pobreza do que são Francisco, atribuíaa ela um lugar diferente. Para de. ela constituía antes de tudouma arma con tra a heresia e uma condição, necessária mas nãosuficiente, para que o testemunho dos pregadores católicosfosse recebido e compreendido pelas massas. Assim, os Prega-dores se mostraram. mais flexíveis do que os Menores nessesetor, aceitando sem escrúpulos de consciência possuir as igre-jas que lhes eram dadas, assim como os terrenos nos quais elaseram construídas, e privilegiando a mendicância sob todas as suasformas para satisfazer as Suas necessidades, sendo a sua úriicaprioridade o ministério das almas. exercido através de uma pre-gação de tipo apostólico.

Efetivamente, os dominicanos foram. antes de tudo, grandespregadores e sua influência nesse campo foi realmente notável.Mas eles também foram, no melhor sentido da palavra, vulgariza-dores que tentaram sensibilizar os clérigos seculares e os leigos,numerosos no seio da aristocracia, que se puseram. sob a suadireção espiritual, para as implicações morais da fé. Nessa pers-pectiva, o dominicano francês Guillaume Peyrault (morto em1271) , redigiu em 1236 uma Suma dos vícios e das virtudes, que teriauma larga difusão e muitas traduções em língua vulgar até o fimda Idade Média, enquanto Vincent de Beauvais (morto em 1264),amigo de são Luís, compunha, por volta de 1250, um tratadosobre a educação dos jovens nobres (De eruditume filimum nobi-lium) e Laurent d'Orléans, confessor do seu filho Filipe Ill, afamosa Suma o rei (1279), cujo sucesso foi imenso e foi muito alémdo ambiente da corte capeciana. Os Irmãos Pregadores tambémtiveram .um papel importante.nadireção de rnu,lheres le~g<!Squ~,.

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'ém Flànrlrt:'s'é'nó VaIe' dO·:Reri.6;·como móstra";i Vida·da·Beata,'· ",.Marguerite d' Ypres (morta em 1237), escrita pelo hagiógrafodominicano Thomas de Cantimpré, que contribuiu com seusescritos para divulgar os estados místicos a que chegaram diversasmulieres religiosae dos Países Baixos. Nas regiões situadas entre aChampagne e o Brabante, desenvolvera-se, desde o começo doséculo XIII, uma devoção particular à eucaristia, consideradacomo o sacramento da Paixão de Cristo, instrumento de salvaçãoda humanidade. Depois das visões recebidas por uma reclusa dosarredores de Liêge.julienne de Mont-Cornillon (morta em 1258),a solenidade do Corpus Domini foi instituída na diocese. O papa

Urbano IV. originário de Troyes, estendeu a toda a cristandade,em 1264, a celebração de Corpus Omsti; cujo oficio teria sidocomposto por são Tomás de Aquino a partir de textos litúrgicosanteriores. O uso da procissão solene do Santíssimo Sacramentosó se difundiu durante o século XIV, quando a obrigatoriedadedesta foi lembrada pelo papa Clemente V em 1314.

Como ninguém ignora, a figura mais marcante da ordemdominicana no plano intelectnalfoi são Tomás de Aquino (mortoem 1274), que ensinou teologia nas universidades de Paris eNápoles e escreveu, entre outras obras, a Suma teológica, obra-pri-ma da escolãstica do século XIll, que exerceu uma influênciaprofunda até nossos-dias. À primeira. vista, esse trabalho de elabo-ração doutrinária, fundado na procura de uma conciliação entrea teologia cristã e a filosofia aristotélica, pode parecer estranho àsquestões que nos interessam aqui. Porém, é possível discernir, noconjunto de sua- obra, uma atitude espiritual coerente, e, emmuitos aspectos,'inovadora. São Tomás enfatiza a autonomiaintrínseca do temporal: o homem e a criação procedem certa-mente .de Deus e nada existiria sem ele ou fora dele. Mas o Criadorretirou-se da sua criatura, que é bela e boa, à imagem do próprioDeus, e deixou-lhe o campo livre, respeitando sua independên-cia e sua natureza própria. Daí a importância que o, "Doutorcomum" - título que se daria a são Tomás a partir do século XIV- atribui à lei natural, princípio de todas as virtudes humanas.Ao contrário dos adeptos do "desprezo pelo mundo", ele afirmaque "a graça não substitui a natureza, mas a eleva e lhe tornapossível obter os seus melhores frutos em sua ordem própria,. produzindo em si mesma os seus próprios frutos, inatingíveis sem·:,..~l~'~:)~):$$fP.1t\\'iº~,:l.pre5~~~:s~~aiaris,<:.4?:;':lli~!Jd?";9~:~n~dida'. em que .este. é marcadopelo pecado/Jfl,a:s:por apçgoa Dçús,'ríãopor' desprezo das realidades terrestres, que seriam fundamental-mente más. Deus não é o concorrente do homem. Ao contrário,quanto maior é o homem, Deus também o é. Assim, a humildade,virtude que procede da consciência da pequenez do homem,deve, para ele, caminhar ao lado da magnanimidade, que é aconsciência da sua grandeza.

Essa visão fundamentalmente positiva do homem e da natu-reza só podia favorecer o nascimento de uma espiritualidade daação temporal. Se as inclinações naturais (procura do bem dasociedade, desejo de fundar uma família e criar filhos etc.) valiam

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a pena de ser perseguidas por si mesmas, a tarefa de humanizaçãoda terra que Deus confiou ao homem desde a origem se impõe atodos como um objetivo primordial. Mas o cristão não poderialimitar-se às ações que visam ordenar do melhor modo a vidahumana; ele deve tender para uma perfeição superior - a saber,a vida segundo o Evangelho. Pois o homem só se encontraverdadeiramente encontrando Deus e agindo sob a moção doEspírito Santo, esclarecendo uma consciência livre e responsável.Pode-se pois dizer, com razão, que são Tomás de Aquino "conciliaa secularidade do mundo e a radicalidade do Evarigelho, escapan-do assim a essa tendência contra a natureza, que nega o mundoe seus valores, sem faltar com isso às exigências supremas eindeclináveis da-ordem sobrenatural". 11

Mas a contribuição mais considerável da influência domini-cana para a espiritualidade ocidental reside certamente no mis-ticismo renano, que procede não de são Tomás de Aquino,mas do seu mestre Alberto Magno, e que encontrou sua melhorexpressão, no início do século XIV, na obra de Mestre Eckhart(cerca de 1260-1328). Este é, efetivamente, a figura mais repre-sentativa de toda uma corrente de pensamento e de experiência,que se desenvolveu entre 1270 e 1330, na provínciadominicanade Teutônia (aproximadamente o atual valedo Reno e as regiõesadjacentes), com teólogos como Thieny de Freiberg ou Nicolaude Estrasburgo e também em conventos de dominicanas, comoos de Unterlinden, em Colmar, e de Tôss, ou ainda entre certasbeguinas de Colônia ou Estrasburgo. Nesse ambiente, operou-seo encontro entre a mística da Essência, inspirada pelo neoplato-

.nismo. de Proclo ,eprincipalmente do.pseudo-Dionísio o Areopa-gi1:fl,.que,visava iIlclillar.:asinteligências\· hierárquicas-para-esseperfeito conhecimento de Deus, expresso pela metáfora dastrevas e pela mística nupcial, que, <0/'partir de são Bernardo,identificava a procura e o encontro 'da alma humana e do seuDeus com a relação amorosa, culminando no êxtase, como odescreve o Cântico dos cânticos. Espirituais porque teólogos, MestreEckhart e seus discípulos se esforçaram em superar a oposiçãoentre os autores de inspiração agostiniana, que afirmavam que aprocura da união com Deus só podia chegar ao seu objetivoapoiando-se na potência afetiva da alma ("Onde fracassa o inte-lecto, vence o amor", segundo uma fórmula de são Bernardo,retomada por são Boaventura), e a dos partidários de um processo

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cognitivo puramente intelectual. Apresentando como postuladoa identidade do ser e de Deus, a mística renana procurou teracesso não a uma simples união da alma e do seu Criador, masàquilo que Mestre Eckhart chama unição, isto é, um conhecimen-to segundo o Uno, anterior à distinção das duas potências da alma'(intelecto e afetividade I vontade) mas também à das três pessoasda Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), que pertencem àmanifestação de Deus e refluem na Deidade. Assim,a iluminaçãoda inteligência ea experiência do amor, longe de opor-se, permi-tem a voltado homem para o seu estado original, nesse Deus queé ao mesmo tempo o seu princípio e o seu fim.

2. O tempo dos leigos

a) Da cruzada aos combates do século

Até as últimas décadas do século XII, os leigos que aspiravam alevar uma vida religiosa mais intensa não consideravam outrapossibilidade senão entrar, na idade adulta, em um mosteiro ouassociar-se, de algum modo, a uma comunidade religiosa, a fimde poder gozar das riquezas espirituais e dos méritos acumuladosno abrigo do claustro pelos servidores de Deus. As modalidadesdessa associação, que visava também fornecer "sufrágios" - istoé, a intercessão eficaz de muitas preces - aos defuntos, eramextremamente variáveis: os leigos que permaneciam no mundose contentavam, na maioria das vezes, em concluir com umaabadia ou uma colegial Um pacto dejraternitas, qUe;!,mediante um.donatívo; lhes permitia serem inscritos no necrológioda·comuni- ..··< +.'dade; mas, por vezes, casais ou grupos familiares inteiros secolocavam voluntariamente como "dados" sob a tutela de umestabelecimento monástico ou canônico, mas conservando, du-rante a-vida, o usufruto de seus bens, que, depois da sua morte,iam para os religiosos. Alguns fiéis, enfim, colocavam sua força detrabalho à disposição de uma abadia como irmãos conversos, istoé, trabalhadores manuais integrados até certo ponto na vida dacomunidade, tendo um dormitório e um refeitório comuns eobrigações litúrgicas reduzidas. Assim,no começo do século XIII,um piedoso cavaleiro da corte de Filipe Augusto,]ean de Mont-mirail (morto em 1217), pediu, com a idade de 40 anos, para ser

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admitido entre os cistercienses de Longpont como converso, oque foi considerado como sinal de grande humildade, pois osconversos se recrutavam nas camadas mais modestas do campesi-nato. Entretanto, seu caso não é isolado, pois, pouco depois, osenhor Gobert d'Aspremont (morto em 1263), tendo participadoda cruzada contra os albigenses em 1226, integrou-se aos servi-dores domésticos da abadia cisterciense de Villers, no Brabante,onde adquiriu uma reputação de santidade.

Um dos fenômenos mais originais do século XII, do pontode vista da espiritualidade dos leigos, é o fato de que muitos delesprocuraram ter acesso a uma certa perfeição cristã, indepen-dentemente de toda relação institucional com o monaquismo.Essefenômeno atingiu, em primeiro lugar, a aristocracia cavaleí-resca que, desde os anos 1120-1130, vira abrir-se para si, com oapelo de são Bernardo, uma via de santificação no interior dasordens militares: templários, hospitaleiros, logo seguidos pelosTeufônicos e osPorta-Espadas nos países germânicos, assimcomopor numerosas ordens do mesmo tipo, que se desenvolveram naPenínsula Ibérica, no âmbito da Reconquista. Mastratava-seaindade monges-soldados, consagrados na maioria dos casos ao celiba-to, e sua forma de vida não podia convir a todo tipo de pessoas.Depois de 1200, numerosos cavaleirosassumiram a cruz, em umaperspectiva mais religiosa do que política ou econômica. Foi ocaso, por exemplo, de soberanos casados, como Luísde Turíngia,esposo de santa Isabel da Hungria, que morreu em Brindisi, em1229, quando ia embarcar com Frederico II para a Terra Santa,ou ainda do rei de França Luís IX, que partiu por duas vezesparaas cruzadas (l248 e 1,270)~onde perdeu a vida. Atualmente háuma', ceeta-tendêaciaraver ...nessas expedíçôes-mílitares -apenasformas de-guerra santa.tcomparáveis ao jiluufislâmico~Essa di-mensão é inegável, mas não se deve esq~ecer que existiu na IdadeMédia uma verdadeira espiritualidade da cruzada. Ir para ascruzadas não era apenas um simples gesto ritual. Isso implicava,para aqueles que tinham feito esse voto, e para suas esposas, aadoção, às vezes por vários anos, de um estilo de vida ascético epiedoso que, antes de conduzir eventualmente ao combate peloslugares santos, se traduzia por exigências crescentes no domíniomoral e religioso. Bastará, para ilustrar essaafirmação, considerarnessa perspectiva o comportamento privado e público de são Luís,depois da derrota de Mansura e da sua volta à França, marcado

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por um rigor moral e pela preocupação de incluir as exigênciasda Lei divina, como ele as concebia" na legislação do reino.

Depois da morte tcigica de são Luis diante de Túnis e daperda definitiva da Terra Santa em 1291, o papado e certossoberanos continuariam até o fim da Idade Média a arquitetarprojetos de -cruzada. Mas o entusiasmo desaparecera e muitopoucos foram os que tomaram. efetivamente o IUIDO do Oriente.Em contrapartida, no mesmo momento em que os cavaleirosabandonavam os caminhos da Terra Santa" o tema-da cruzadaencontrou um eco inesperado e tardio nas classespopulares, emparticular no meio rural. como ll105f.Ia o aparecimento. por duasvezes. em 1250 e 1320. de bandos de pastores de ovelbas.joeense camponeses que pen:oneram a França, protestando contra ainatividade do clero e convidando Os leigos' a seguirem-nos atéJerosalém.. Ofracasso desses lIlOVimentose aviolência anticlericaIque os acompanhou acabaram por desacreditar essas formas de"peregrinação pânica" - paxa retomar a expressão de Alphoo.seDupront - em relação à qual a Ign:ja tinha a maior desconfian-ÇL 12Mas O seu ressurgimento periódico comprova o fascínio quea perspectiva do combate por Deus continuava a exercer sobre osespíritos. Outro exemplo, em um meio social completamentediferente, é o elogio feito porJoinville do "homem honesto", quetraduz assuas convições cristãs em comportamentos morais, e nãohesita em pôr a sua espada a serviço da fé, que ele opõe ao"beguino", paralisado na sua devoção e inclinado a dar umaimportância excessivaà sua experiência religiosa, a ponto de atétornar-se suspeito de hipocrisia. Entretanto, é significativo que,

~ , __~fI?,cerws t~~.tos.çOlllPostospara usodosleigos, () terna damilitiaClAristi.tenha sido.transposto paraJJ..lllregistro. espiritual, Assim,quando,' no fim do séculoXIII,- o-franciscano doLanguedocPierre deJean Olieu (ou OUvi)redigiu para os beguinos da regiãode Narbonne - leigos dos meios burgueses, apaixonados pelaperfeição evangélica- um tratado espiritual em língua ocitana,intitulado Lo cavalier armat; dedicou-se a uma minuciosa descriçãodas armas e dos combates do cavaleiro. Mas essas imagens mili-tares eram para ele apenas um meio expressivo de explicar aosseus leitores as virtudes e as qualidades religiosas que era precisoadquirir a qualquer preço, para se tornarem dignos do Cristo:essevaloroso combatente que prepara cuidadosamente as suas armasterá que enfrentar somente as tentações e provaçôes que o

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142 liEspintualidade na Idade Média Ocidental

Anticristo lhe infligirá, com a aproximação, julgada iminentepelo autor, da grave crise escatológica durante a qual se defron-tarão os adeptos da "Igreja carnal" e os de uma "Igreja espiri-tual".13

b) A religião voluntária: confrades, penitentes ejlagelantes

Mas o aspecto indubitavelmente mais inovador, através do qualse expressou a aspiração dos leigos a uma vida religiosa mais ativae mais autônoma, foi o desenvolvimento das confrarias. Seguindoo modelo das confrarias sacerdotais, então no apogeu, e dasguildas de mercadores e artesâos, muitos leigos de meio modesto,tanto na cidade quanto no campo, se agruparam a partir de umabase territorial (a aldeia, o bairro, a paróquia) ousócio-profis-sional (a profissão), a fim de praticar a ajuda mútua e encarregar-se dos funerais de seus membros defuntos. Ao contrário do queaconteceria depois de 1348, não foi a prece pelos mortos queconstituiu o objetivo principal da confraria no século XIII, mas aprocura da paz na fraternidade, como prova o fato de que muitosdesses agrupamentos, principalmente nas regiões do sudeste daFrança atual e na Itália; se colocaram então sob a proteção doEspírito Santo, e que muitos deles, no norte-da França, tomaramo nome de "Caridade". Essadenominação remetia menos às suaspráticas caritativas de uso externo (distribuição de alimento oude esmola aos pobres por ocasião da festa do santo padroeiro) doque ao amor mútuo que devia reinar entre os seus membros, emvirtude do compromisso assumido por estes quando de sua admis-..são. Aliás, na I~à, o§éstafutos:das-c()q.ftarias~queerarn lid~sn(lS,."'" ..reuniões;dtâvam' militas yezes'ver~íóilos5ia liturgia da' Qüinta .•'" ,. Feira Santa: "Ubi cantas et amor, DeUs ibi est. Congregavirnos in unÍtm ..amor Christi', 14assim como o trecho d.•l carta de sãoJoão: "Se nãoamas teu irmão, que tu vês, como podes amar a Deus, que nãovês?" (I.Jo 4, 11): A refeição, ou banquete coletivo, que tinha umlugar importante nas atividades da confraria, era considerada,nessa perspectiva, como uma manifestação de bom convívio,visando desarmar os conflitos ou tensões internos, e criar, nemque fosse apenas por um instante, um clima de concórdia e denão-violência, constituindo ao mesmo tempo o sinal e o fun-damento da dimensão religiosa do grupo. De uma região paraoutra, as modalidades de constituição e os objetivos dessas as-

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sociações, em que homens e mulheres e até clérigos e leigos seencontravam em pé de igualdade, variaram sensivelmente: certasconfrarias permaneciam ligadas a mosteiros ou a conventos queas admitiam em sua "sociedade"; outras, mais autônomas, sórecorriam a padres ou a religiosos para celebrar missas ou parauma pregação excepcional. Mas todas tinham em comum aautogestão e a livre eleição de seus dirigentes.

Nesse quadro geral, devemos ressaltar as confrarias de peni-tentes, que apareceram espontaneamente no início do séculoXIII na Itália, e se multiplicaram' depois sob a influência dasordens mendicantes. Efetivamente, trata-se de grupos de leigos,cujas exigências no plano espiritual eram muito mais elevadas doque nas confrarias evocadas anteriormente. Seu estatuto, oupropositum, cujo texto mais antigo remonta a 1221, não era umaregra, mas um programa de vida, que os confrades se comprome-tiam a seguir tão exatamente quanto possível. Como não se tratavade votos propriamente ditos, as faltas dos confrades não eramconsideradas pecados mortais, mas como faltas veniais, que de-viam expiar através das penitências apropriadas. Geralmente, asconfrarias de penitentes reuniam leigos de ambos os sexos, casa-dos ou não, exercendo ou não uma atividade profissional, quedesejavam "fazer penitência" continuando no mundo e hon-rando as obrigações do seu estado. Não usavam hábito, mas suaroupa devia ser de tecido comum e sem cor, o suficiente paradistingui-Ios dos outros leigos, e observavam jejuns mais longos emais freqüentes do que estes. Eram obrigados a ler todos os diasas sete horas canônicas, mas aqueles que não soubessem latimpodiam substituí-Ias pela recitaçãodeum certo númerode Pater .

";,Npster,~veMarifL,Çreáo e cio ~ah:IioMiser~e..Deviam confessar-seecomungar pelo menos três vezes por ano. Tomando o Evangelholiteralmente, os Penitentes italianos recusavam-se a usar armas einvocar inutilmente o nome de Deus em juramentos solenes, oque não. tardou a indispô-los com as autoridades comunais. Osbispos e o papado os tomaram sob sua proteção e, na maioria dascidades, chegou-se a uma conciliação em meados do século XIII:os penitentes, assimilados a religiosos, foram isentos do serviçomilitar, mas as cidades Ihes confiaram tarefas variadas, indo dadistribuição de subsídios caritativos aos conventos, aos pobres eaos prisioneiros, até a gestão da tesouraria municipal e ao cum-primento de missões diplomáticas para a paz, qtle constituíam

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144 A:Espiritualidadena Idade Média Otti'knta5

uma espécie de "serviço civil" avant [a let'l1Te_As mulheres er.!IID

admitidas: nessas confrarias, com a autorização do- cônjuge paIaas casadas. Os esposos podiam continuar 3.viver o seu casamento,mas deviam abster-se de relações sexuais na véspera de certasfestas. e durante certos tempos litúrgícos, o que explica o nomede "continentes", que se dava às vezes aos penitent.es:.. Suas reu-niões eram em geral mensais; realizavam-se em uma igreja ouoratórío, onde um padre ou um religiv50 vinha Ihes falar dascoisas de DeU$. Até os anos 1280, os Penitentc:s italianos" dosquais os begu:inos eram às:equivalentes no Languedoc e na Cata-

_ lunha,. permaneceram amplamente autônomos em relaÇio aoclero e eram n:gidos por seus prôpríos minis.tros,; leigos quedegiam livremente e aos quais 05 membros da c:onfiaria pIOlJIe-riam obediência Mas,.depois dessadata, o papado. paracontroJarmelhor esses ID.<Jrim(ntos., 05 situou sohajurisdição das ordensmendicantes, Em 1286. o Mestre geial d05 dominic3nos. Munode Zamora, criou a ordem terceira dominicana,. e. em 1289. opapa Nicolau IV instituiu a ordem terceira. franciscana pela bulaSupra montem. que ligava. àonlem d05 Irmãos Menóres. no planoinstitncional, os penitentes que viviam em suas próprias casas.Essas medidas autoritárias suscitaram. entre estes. protestos. ediversas cisões. que se prolongaram até os anos 1325-1330. No fimdo século XN. o movimento penitencial acabou por sair dessalonga crise. toas reunia apenas mulheres celibatárias ou viúvasque, se quisessem viver em comunidade, deviam aceitar a discipli-na do claustro. Na prática. esses conventos da ordem terceiraregular diferiam pouco dos mosteiros clássicos,

Desde o século Xlfl, aespiritualidadepenitencial, longe. de. expiessát-se-ape"nasatravéS de·orga$lçõesestru~, .ins- . _; .c,c<

píriira explosões de fervor excepcionais, que os cronistas italianosda época designaram com o nome de "devoções". A mais célebrefoi a dos flagelantes, que partiu de Perugia em 1260 e atingiudepois todo o centro e o norte da Itália. A prática coletiva daflagelação por leigos é mencionada nesse ano, pela primeira vez:um penitente de Perugia, Rainier Fasani, que afirmava ter rece-bido da Virgem Maria uma carta exortando-o a flagelar-sepubli-camente, tomou a frente de uma procissão expiatória de um tipodesconhecido até então, que percorreu as ruas da cidade. Osparticipantes se chicoteavam na altura do ombro direito e nascostas, até a efusão de sangue, suplicando a Deus que afastasse de

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sua cidade a"grande atribulação" que ameaçava abater-se, segun-do eles, sobre os seus habitantes. A flagelação não era desco-nhecida na Itália, mas até então era uma prática penitencialprivada - os monges mais zelosos se fustigavam às vezes em suascelas - ou litúrgica: ela era infligida aos grandes pecadores quepedissem e obtivessem a reconciliação com a Igreja, ao fim deuma penitência pública. A novidade introduzida pelosflagelantesde 1260 residia no fato de que, a partir de então, ela era praticadaem recinto aberto, à vista de todos, pelos fiéis que o desejassem.

Há várias maneiras-de interpretar esse curioso fenômeno.Pode-se ver nele a: expressão do desejo dos leigos mais devotos dese apropriarem de uma prática ascética que era, até então, apa-nãgio dos monges, e principalmente das vantagens espirituais queela conferia. Isso é plausível, pois os fiéis do século XIII, .rnesmoquando criticavam os padres e religiosos, parecem ter tido dificul-dade de concebero seu destino espiritual sem referir-se a ummodelo monástico ou clerical. Mas outra interpretação, que nãoexclui a precedente, também é possível.F1agelar-se não era ummodo de viver a situação concreta do Cristo ferido por seuscarrascos, derramando o seu suor de sangue em abundância?Dizia-se que Jesus carregara a sua cruz sobre o ombro direito, eos cruzados mandavam costurar em suas roupas, nesse lugar, umainsígnia que a representava. Mas não era melhor, para estar certode escapar à cólera de Deus e ressuscitar no último dia, inscreveresse sofrimento na própria carne? A imitação mais concreta deCristo, através da autopunição e da humilhação voluntária, cul-minava em um processo de identificação com a vítima sangrentado Calvário.

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1260, que sacudiu aItálià como umaõrtdadechóqúe, provocoua fusão de dois ritos até então bem distintos: a prática da flagelaçãoe as procissões penitenciais, ou litanias, que há muito eramorganizadas pelo clero em abril-maio, para afastar as geadas eintempéries que ameaçavam as colheitas, ou quando as circuns-tâncias exigiam, e se tomava indispensável chamar a atenção e apiedade de Deus para a infelicidade dos homens, através de umacerimônia pública. Fazer penitência e orar juntos sempre foiconsiderado pelos cristãos, como na tradição judaica do VelhoTestamento, como o último recurso na atribulação. As procissõesde flagelantes constituíam um rito excepcional, sem dúvida, mas

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que se renovou periodicamente (1260,1300, 1334, 1348etc.) , porcausa de alguns grandes abalos coletivos,e a cada vez,propiciaramuma renovação religiosa, ligada a uma tentativa de catarse social.Efetivamente, através dessa conduta penitencial, expressava-setambém uma aspiração à concórdia. Desde 1260, os .flagelantespercorriam as cidades do centro da Itália gritando "paz e miseri-córdia!" e exigindo das autoridades medidas que pacificassemuma sociedade comunal dilacerada por muitos antagonismos:perdão mútuo das ofensas entre os partidos inimigos, cujas lutassem fim envenenavam o clima das cidades, restituição da usura,libertação dos prisioneiros por dívidase reintegração dos banidos,isto é, dos adversários políticos do partido no poder. No entusias-mo das manifestações de massa, certas decisões desse tipo foramtomadas pelos poderes públicos, sensíveisà pressâo das ruas. Maslogo que o fervor diminuía, os maus hábitos reapareciam e tudovoltava a ser como antes. Entretanto, seria errôneo enfatizar essefracasso, pois, no plano privado, a influência dos flagelantes, quefavorecia a reconciliação dos inimigos e a restituição dos bens maladquiridos, foi em geral benéfica. A Igreja tomou consciênciadisso e autorizou, nos países mediterrâneos, a constituição deconfrarias de "Battuti" ou de "Disciplinati",como eram chamadosna Itália, que se dedicaram a uma prática ritualizada daflagelação,no âmbito dos seus oratórios e dasprocissões da Sexta-FeiraSanta.

c) Rumo a uma santidade leiga

Até o século XII, era praticamente impossível para um leigo.,chegaràshonrasda santidade reconhecida e do culto Iítúrgico;

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, ou sãntb Olavo,' naNoruega," que haviam introduzido 'os seus -países na cristandade latina, impondo o batismo aos seus súditos,ou de rainhas e princesas, que tivessem favorecido com suagenerosidade a fundação de mosteiros e igrejas. A reforma gre-goriana, insistindo na superioridade dos clérigos sobre os leigosno seio da Igreja, e o sucesso que teve, no século XII, a es-piritualidade do "desprezo pelo mundo" nos meios monásticosconui huíram para acentuar a depreciação do estado leigo. Pode-se dizer o mesmo sobre o renascimento da cultura erudita, fun-dada no conhecimento do latim, língua que poucos leigos com-preendiam, que lançou um descrédito suplementar sobre o seu

['1O Evangelho no Mundo 147

estado, facilmente assimilado à ignorância, mãe da tolice e doerro. Uma etimologia fantasista, mas reveladora do pensamentodos clérigos, afirmava que laicus era derivado da palavra latinalapis (pedra) "porque o leigo é duro e estranho à ciência dasletras".15Um último obstáculo que se opunha a que simples fiéisfossem reconhecidos e venerados como santos era constituídopelo laço muito estreito que existia, no nível dos modelos hagio-gráficos, entre nobreza e santidade. Certamente, nem todos osriobres - longe disso - eram considerados como santos e osclérigos da época não hesitaram em usar de todo tipo de armas,temporais e espirituais, contra os poderosos que os prejudicavamou se comportavam de maneira excessivamente escandalosa. Ape-sardisso, era muito difícil para um não-nobre fazer-se monge oumonja (assim, santa Hildegarda de Bingen, morta em 1179, sóadmitia em seu mosteiro virgens originárias de família nobre) e,ainda mais, chegar a uma reputação de santidade, tão enraizadanos espíritos estava a convicção de que a perfeição moral eespiritual só podia desabrochar em uma alma bem-nascida e noseio de uma linhagem ilustre.

Esseprivilégio tradicionalmente reconhecido à nobreza de-via se manter no norte dos Alpes, onde, ainda no século XIII, amaioria dos novos santos - em geral bispos e monges .,.- perten-cia a famílias aristocráticas, ou até a dinastias reinantes. Enquantonas cidades do norte e do centro da Itália multiplicavam-se, desdea segunda metade do século XII, os santos locais vindos do"Popolo", isto é,das classesmédias empenhadas nas novas formasde atividade econômica, na França foi apenas com Marie d'Oi-gnies .(llJ.0rtaem 121S.),.<:ujaVida,foi(!scritapor]acqU(!$.qe.Vitry

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mulieres sanctae, geralmente beguinas, foram' objeto de interes-santes biografias durante as décadas seguintes, mas é forçosoreconhecer que, com a exceção do primeiro, essestextos tiverampouca difusão e o culto a essas santas teve um sucesso muitorestrito. De modo geral, as grandes figuras da santidade além dospaíses mediterrâneos foram princesas como santa Isabel da Hun-gria (morta em 1231) ou santa Edwiges (morta em 1243), duque-sa da Silésia, ambas canonizadas pouco depois de sua morte, oureis como Eric Plovpenning (morto em 1250), na Dinamarca, ousão Luís, morto em 1270.

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148 A Espiritualidade na Idade Média Ocidental

Mas, por trás dessa continuidade tão marcada no plano da.origem social, o próprio conteúdo da perfeição que se reco-nheceu então nesses personagens evoluiu consideravelmente.Uma comparação entre duas figuras de santas medievais, uma doséculo XI,Margarida da Escócia (morta em 1093), outra do séculoXII, Isabel da Hungria (morta em 1231), nos fará apreender aprofundidade da mudança que se operou na concepção da san-tidade leiga entre essasduas épocas. Na Vida de santa Margarida,composta por volta de 1105, seu biógrafo Turgot de Durhammostrou que a rainha da Escócia mereceu ser venerada por seucomportamento exemplar como esposa, mãe e soberana. Assim,foi louvada pelos bons conselhos que dava ao marido, pela exce-lerite educação que dera aos seus filhos,.e pelo apoio que deu àIgreja para completar a cristianização db,país, particularmentemandando construir a abadia de Dunferrnline. Sua biografiaconstitui pois uma apologia' da ação cristã dos detentores dopoder. Não houve nada disso, um século e meio depois, na vidade santa Isabel, que não fundou igrejas nem abadias, mas umhospital em Marburg,na Turíngia, onde ela tratava pessoal-mente dos pobres e dos doentes. Mesmo antes de sua viuvez, elavivera apenas aparentemente a existência de uma soberana. Semdúvida, ela participava dos banquetes da corte, mas comia omenos possívele retirava discretamente os restos da mesa, para ir,em pessoa, distribuí-Iosaos mendigos. Para grande escândalo dosseus próximos, recusava-sea tocar nos alimentos provenientes decertas terras do seu marido, onde o poder senhorial se exercia demodo injusto. Enfim, depois da morte deste, abandonou o castelo;.familiar e até os seus.própriosfilhos Pa.ia:. compartilhar acondiçâo .'dos pobreaTería ro,.~~cligadpS,eo seu cQrifess<?r,.{)~errív~;Çolilll4..dé Marburg,' não a' proibisse firmemente. ESgotada'preniatÜra':':mente pelas fadigas e pelas privações, morreu com a idade de24 anos e logo se tomou célebre e venerada em toda a cristandadepor sua caridade efetiva para com' os deserdados e o seu amor àpobreza.

Através-do seu exemplo, ou daquele, mais tardio, de sãoLuís, aparece bem a nova concepção de santidade; não bastavamais, a partir de então, cumprir plenamente as exigências do seuestado e dar o exemplo das mais altas virtudes morais, mas aindaera necessário imitar o Cristo' em sua humilhação e em seussofrimentos, não hesitando em cumprir atos insensatos aos olhos

OEvangelho no Mundo 149

da sociedade, mesmo de uma sociedade que se dizia cristã, comoa da Idade Média.

3. O cristianismo no feminino

Um dos aspectos mais originais da espiritualidade ocidental noséculo XIII é, com certeza, o lugar ocupado pelas mulheres, o queconstitui uma novidade. Desde o século XII, precursores comoRobert d'Arbrissel ou santa Hildegarda de Bingen se esforçarampor livrar a mulher de todas as suspeitas que faziam pesar sobreela o papel essencial desempenhado por Eva na falta original e afraqueza intelectual e moral que lhes atribuía toda uma tradiçãoliterária de origem antiga, na qual os autores medievais insistiram.A partir dos anos 1200, esse discurso misógino, sem desaparecer,não foi mais o único a se fazer ouvir, e assistiu-seao surgimentode uma espiritualidade feminina, que não era uma simples cópiada dos homens. Essa evolução se operou inicialmente de mododiscreto, e sem que fosse abertamente questionado o duplopostulado, que caracterizava o status da mulher na Igreja medie-val:igualdade dos dois sexos no plano da Redenção, subordinaçãoao homem no campo social e religioso. Mas,já em meados doséculo XIII, tornou-se evidente para os clérigos que um certonúmero de mulheres, empenhadas em experiências de vida es-piritual intensa, adquiriram nesse domínio uma ampla autono-mia, e até uma certa superioridade em relação aos homens, comocomprovam estes versos do franciscano alemão Lamprecht deRatisbonne:

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Êisq~-emnosJos âúi.s'" .No Brabante e na BavieraA arte nasceu entre as mulheres.Senhor Deus, o que é essa arteGraças à qual uma velha mulherCompreende melhor do que um homem de esPírito?[...] em seu desejo, ela compreende melhorA sabedoria que vem do céuDo que um homem duroQue é inábil para isSO.16

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a) Nas pegadas de Maria Madalena

Nesse processo de emancipação religiosa, a difusão da espiritua-lidade penitencial atuou em favor das mulheres, na medida emque ligava a salvação ao amor e à contrição, mais do que a umestado de vida dado. Através de figuras de mulheres "arrepen-didas" de origem oriental, como as santas Pelágia, Taís ou MariaEgipcíaca, cujas vidas foram então traduzidas em latim e depoisem língua vulgar, o Ocidente se familiarizou com uma novaconcepção de santidade que, longe de identificar-se com umaperfeição inata ou herdada, constituía o ponto de chegada deuma procura de Deus, inaugurada por uma conversão. Esta eraaberta e acessível a todos aqueles que, deixando-se tocar porumverdadeiro arrependimento, chegavam ao perdão divino e.aumavida renovada por uma "revolução" completa da sua existência.Nessa perspectiva, a figura mais atraente nessa época, comomostram a literatura e a iconografia religiosas, foi a de MariaMadalena: essa pecadora pública não fora distinguida pelo Cristopor sua capacidade de amar, que lhe valera ser a primeira testemu-nha da sua Ressurreição? E não se dizia, em sua legenda, que,como os Apóstolos, ela tinha anunciado a fé cristã aos habitantesde Marselha, antes de terminar seus dias como eremita na grutade Sainte-Baume? Através dessa figura transgressora em tantosaspectos, ficava derrotado o tema, tradicional na espiritualidademonástica, da assimilação entre virgindade e perfeição: Madalenanão mostrava, com seu exemplo, que a integridade física tinhamenos importância, na perspectiva da santificação, do que a vir-gindade espiritual reconquistada pela prática dapenitência?. ' -t .nesse,cq1)textQ' espiritu:~:lq~~-se<leve·é::9II1preenderumdos féfiôIllenosniai~ímpbrtariteS elo século xm. a: entrada maciçadas mulheres na vida religiosa, no âmbito de fórmulas muitodiversas no plano institucional. Assim, muitos mosteiros foramcriados então, por iniciativa de famílias aristocráticas ou princi-pescas, ligados a ordens existentes, como os premontranos eprincipalmente os cistercienses. Mas o fluxo das fundações femi-ninas aumentou em tal ritmo que estes, não querendo deixar-sedominar pela cura monialium (isto é, a responsabilidade materiale espiritual pelas monjas), não tardaram a proibir, a partir dosanos 1230, toda nova associação de um mosteiro de freiras à suaordem. Isso não impediu o movimento de prolongar-se, princi-

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palmente na França e nos; F'aÉI:S; Rmto~ até os anos 1260, e asncvas comunidades se contentavam em adotar a regra e os cos-tumes de Cister, sem se ligar à oJrdemni por um laço jurídico.Paralelamente, pelomenosemmnprimeÍroInomento, as ordensmendicantes absorveram Iíambém tJ:l!lIIa pm1!e das vocações femi-ninas. A ordem das "Pobres: Damas'" «cbrissas:}. fundada e dirigidaaté sua morte (1253) pcx- s;m.~ CTalra de &sis, filha espiritual desão Francisco, apresentou ali uma particularidade única no seutempo: a de não estar~ àautorid:ade do ramo masculino domovimento franciscano, a ordem. dvs hmãoi Menores; difundiu-se mpidamente até. a Boêmia" gr.tÇI6i à prinasa Agnes de Praga(mortaeml282),quemanteolecoma:fi:mdador.lumacorrespon-ciência em que se expressou oscu aJIIiOI"comum pela pobreza. Asdomínícanas, por sua ve:z" 1ivaam um stabllS mais clássico, masexpamldiTam-se muito dqJressa na Itália e no mundo· ge'rmânico,especialmente nô vale do Ralo. onde vários de seus.conventos setomaram núcleos devida cspüitual ink:ma..

Mas em geral. apesar da criação de um númeTo.·importantede mosteiros de tipo tIadirional ou nOro. muiw mulheres, prin-cipalmente no meio m:bano e burguês" não encontraram lugarnesses estabelecimentos" que: exigiam da postulante um dote quesó as famílias abasiadas podiam pagar,; outras" que teriam 'podidoter acesso ao claustro. não se sentiam atraídas pela vida monásticae continuavam ligadas a uma cena liberdade de movimento.Assim. foi nesse meio. que se d.esemoheram formas de vidaoriginal. ditas "semi-religiosas", na medida em que as mulheresque ingressavam nelas aspiIavam ase consagrar a Deus, sem poris,sore~--se do fiund()_Diarl,te dos p~blCIDas Ievantados por

.~in:upçjo ~~uIh~nâvida~o..a.que(lS histonadores'alemãesch3n:iaID "Frauenrrage"'. ~ViasforâIDentãoéxpfó- -radas, com diferentes resultados..

A Igreja e a sociedade se opunham a que as mulheres sededicassem à vida eremítica.julgada excessivamente dura e peri-gosa para elas. Algumas contornaram essa proibição, seja vivendocomo reclusas em suas próprias casas, seja encerrando-se em celasconstruídas perto de igrejas ou das muralhas de uma cidade. Essaforma de vida teve, no século XllI, um grande sucesso, especial-mente na Inglaterra, onde o cisterciense Aelred de Rievaulx(morto em 1166) redigira para a sua irmã, que se fizera "ancho-ress" (palavra inglesa que. através do latim, é derivada do vocábulo

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152 A Espirüualidode na Idade Média Ocidental

grego "anacoreta", religioso solitário), uma regra especial. Masfoi na Itália que o movimento das "cellane" ou "incarcerate" tevea maior difusão. Podemos ter uma idéia bastante precisa da suaexistência lendo a Vida da bem-aventurada Verdiana (morta em1241), reclusa na pequena cidade toscana de Castelfiorentino.Nascida de pais pobres, ela começou pastoreando rebanhos,depois tomou-se doméstica na casa de um parente rico, antes departir em peregrinação para São Tiago de Compostela e paraRoma, com um grupo de mulheres. Quando voltou, mandouconstruir uma cela perto de uma igreja que acabava de serconstruída na periferia da pequena cidade, em uma zona panta-nosa. Depois de encerrar-se ali, não tardou a adquirir uma certacelebridade no piano local, em razão de suas façanhas ascéticas eda luta que travou contra as serpentes queinvadiam o seu retiro.Ficou lá durante 34 anos, e,.logo depois de·morta, foi veneradacomo santa. Seu corpo foi. transferido para uma igreja vizinha emilagres ocorreram sobre o seu túmulo, 'que logo se tornou - eainda o é hoje -um lugar de peregrinação freqüente. Obseive-seque esse caso não tem nada de excepcional e que" se.nem todasadquiriram uma reputação de santidade, não havia menos de 35reclusas, apenas na cidade de Perugía, por volta de 1300.

No norte da Europa, o clero se mostrou mais reservado doque nos paísesmediterrâneos, diante dessas experiências de vidasolitária, e em geral diante das mulieres religiosae 17 - esses seres"nem cá nem lá", seguindoa feliz expressão deJacques Le Goff-que não eram nem monjas nem simples leigas, mas procuravamcriar um caminho intermediário entre esscrsdois estados. Algunspreladosesclarecides que, as protegiam, <:;<;>Ill() o bispo, depois ..cardeal, jacquea.de, Vitry,-seu ,def~IlS()r;;.s<?~;()-pontíficado deGregório IX; exaltaram a profundidade de sua vida espiritual esua perfeita submissão à Igreja; outros religiosos, que escreverama vida das mais santas, tentaram mostrar que suas práticas religio-sas, centradas na penitência, na assistência aos despossuídos e narecepção freqüente da eucaristia, eram plenamente ortodoxas.Entre as mulheres empenhadas na vida "serni-religiosa",as maisnumerosas foram asFilhas de Deus e principalmente as beguinas.Estas eram celibatárias ou viúvasque assumiam, na idade adulta,uma forma de vida religiosa individual ou comunitária, associ-ando a prece, a prática da caridade e o trabalho manual. Paramelhor controlar esse movimento, que tomou uma grande am-

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plitude de Flandres até a Renânia, passando por Artois, Brabantee a diocese de Liêge, os bispos favoreceram a constituição degrandes conventos de beguinas, cercados de muros, em cujointerior cada uma tinha a sua pequena casa,onde levavauma vidalaboriosa e devota, participando de alguns oficios comuns eouvindo freqüentes pregações. Muitasdelaspreferiram, entretan-to, continuar a viver sozinhas em suas casas ou em pequenascomunidades informais. Mas, qualquer que tenha sido o seu gê-nero de vida, as beguinas não pronunciavam votos,deslocavam-selivremente e. podiam voltar ao mundo a qualquer momento,quando quisessem. Nisso, há uma diferença capital em relaçãoaos Penitentes, e mais tarde, aos terceiros das ordens mendi-cantes, que, uma vez admitidos em uma Fraternidade, não po-.diam sair, exceto para' entrar no convento ou nornosteiro, amenos que fossem expulsos por má conduta. Aosolhos de muitosclérigos, o estadode beguino, fundado sobre um compromissotemporário e revogãvel, não constituía uma verdadeira forma devida religiosa, apesar dos laços estreitos que uniam as beguinasaos seus confessores-ou diretores espirituais' cistercienses, domi-nicanos ou francíscanos. Assim,seu status canônico e a autentici-dade de seu engajamento permaneceram duvidosos ao longo detodo o século XIII. .

b) Experiência espiritual e linguagem do corpo

Acima da diversidade dos quadrosinstitucionais nos quais elas seinscreveram, essas experiências têm em comum o fato de terem.permitido a afirmação de umaespiritualidade feminina originalç

. .<, ": qtú~'se'êxpressouátravésdalingu~gem do corpo.' Ao contrário .....,dos homens, as mulheres daquele tempo não controlavam nemo poder nem a riqueza. Renunciar a estes não tinha pois sentidopara elas, ao passo que era nesse ponto que residia o essencial daconduta religiosa para os homens. Quanto àsrelações sexuais,elasas toleravam mais do que as suscitavam,já que o casamento ou ocelibato, para elas, representavam menos as conseqüências deuma escolha pessoal do que uma decisão tomada por seus pais oupor sua linhagem, em função de interesses patrimoniais. Comomostrou C. Bynum, o único setor que as mulheres controlavamplenamente era o da alimentação. Assim,a partir dessa época, osjejuns penitenciais voluntários, a distribuição de alimento aos

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pobres e uma devoção acentuada ao corpo e ao sangue do Cristose tomaram os traços dominantes da religiosidade feminina.Algumas até mesmo se contentavam com a eucaristia como únicoalimento, a fim de receber Deus em um corpo despojado pela"santa anorexia" das suas particularidades sexuais.l'' A relaçãodessas mulheres com Deus é apresentada por seus biógrafos -ou por simesmas nos raros casos em que seus escritos autobiográ-ficos chegaram até nós - como um corpo a corpo tensionadopara a procura da união mística e daquilo que os textos da épocachamam de "consolações espirituais". Mas antes e a fim de chegara isso, elas se dedicavam a práticas ascéticas e a mortificaçõesêxtremas, indo às vezes até a mutilação voluntária, de modo aassociar o seu corpo exaurido e às vezes martirizado ao do Cristosofredor. Atinge-se então mna forma paroxística da imita tio Christi;na qual se tenderia averuma procura mórbida da autodestruição,mas que pode ser compreendida quando situada nas estruturassociais da época. Para uma mulher do século XIll, entrar na vida:religiosa,sob qualquer forma, era muitas vezes o único meio deconservar o domínio do seu corpo e afirmar a sua Iíberdade emrelação ao grupo familiar, Assim. a jovem princesa Margarida daHungria (morta em 1270) ameaçava os pais de cortar o nariz. paratornar-se repugnante. a cada vez que queriam fazê-Ia sair doconvento das dominicanas de Buda, onde ela crescera e era feliz.para que contraísse um casamento ditado pelos interesses políti-cos da dinastia arpadiana, Seu caso não tinha nada de excepcionale se encontra sob outras formas, em níveis mais modestos dasociedade. Aos esposos terrestres que lhes teriam sido impostos eque apenas gozariam de seus corpos,·muitasDlUlheresdaqueletempo preferiram oEsposocelesterao qual elas podiam unir-se.pelá.práticáda comunhão freqüente-então desaconselhada aosleigos pelos clérigos - e pelo sofrimento compartilhado. Paraelas, Deus não era apenas um mistério que se perscruta e secontempla. Ele se tornava uma pessoa amada, com a qual cadacristão podia se identificar "compadecendo-se" - no sentidoforte do termo -_·da sua Paixão redentora. O Cristo teria decla-rado à mística Lutgarde de Tongres, ou de Aywiêres (morta em1246), durante uma visão: "Contempla e compreende que mi-nhas chagas gritam por ti, temendo que minha morte tenha sidoem vão."19Ela respondeu a esse apelo, como faria, algumasdécadas depois, Angela de Foligno (morta em 1309), pousando

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os lábios sobre a chaga do seu lado e bebendo em grandes goleso sangue do divino Salvador.

Graças ao desenvolvimento dessamística feminina, centradana devoção à humanidade de Cristo, uma nova dicotomía seinstalou no domínio da vida religiosa: para o homem, asatividadesdo espírito; o discurso teológico e a pregação, que visavam trans-mitir o conhecimento das verdades necessárias à salvação sob aforma de proposições racionais e inteligentes; para a mulher, queos clérigos situavam ao lado da matéria e da sensação, a visão esua difusão através de um imaginário espiritual, que fazia do seucorpo um verdadeiro ícone e uma "mídia", no sentido forte dessetermo atual. Reconhecia-se a sua capacidade de ver e de "repre-sentar» os diferentes aspectos do mistério da Redenção. Ao fimde um processo de identificação física com a vítima do Çalvário,que culminava às vezes na estigmatização - como foi o caso deE1isabeth de Spaalbeck (morta em 1316). segundo o seu biógrafo.o abade cisterci'(:nse Filipe de C1airvaux- a própria mística setomava o Cristo sofredor. humilhado. escarnecido. Ela apertavaa cruz em seus braços. fazia-seatar a uma coluna, às sextas-feiras.para ser flagelada e renovava assim, em lágrimas e gemidos, odrama da Paixão. Assim elaborou-se, no segredo das reclusões edos conventos. uma nova linguagem religiosa, que seria a dacristandade ocidental durante os séculos seguintes, através daqual expressou-se uma experiência religiosa de uma intensidadeinédita.

f) Tomando qpalfIDTa ...

As mulheres empenhadas nesse tipo de experiências espirituaiscertamente não teriam deixado uma grande lembrança se elas astivessem guardado para si ou se elas se tivessem contentado emexortar-se mutuamente. Felizmente, houve então um certo nú-mero de clérigos - confessores ou diretores espirituais - queficaram tão impressionados quedecidiram escrever e divulgar oque viram e ouviram. Assim, concluiu-se, em torno da místicafeminina, uma "santa aliança" "durante muito tempo impregnadade desconfiança mas destinada a uma excepcional posteridade: adopadre e da mulher, comungando em uma religião da Mãe edo Filho".20

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Certas mulheres foram ainda mais longe, tomando a palavrapessoalmente: "Elas lêem e pregam do alto do púlpito",escrevia,por volta de 1320, a propósito das beguinas, o religioso agos-tiniano Alvaro Pelayo, que não gosta.vadelas.ê!A acusação pareceexcessiva, mas não há dúvida de que, já há várias décadas, as"santas mulheres" dos Países Baixos, da Provença e da Itáliaescreviam ou ditavam cartas e pequenos tratados recheados deconselhos e exortações, dirigidos a círculos espirituais de "Amigosde Deus", em que mulheres! homens e clérigos se encontravamem pé de igualdade. Assim, o Cristo declarara à terceira francis-cana Angela de Foligno, durante uma visão: "Terás filhos!" Defato, alguns anos depois, o Irmão Menor Amaud começou aregistrar por escrito as conversações de Angela com Deus, em umtexto intitulado OLivro ou Memoriai (1291-1295), para uso do seucírculo de admiradores e de discípulos, enquanto outros religio-sos, como Ubertino de Casale,vinham pedir-lhe conselhos, o quelhe valeu ser chamada "mestra dos teólogos". Em certos casos, atése pode falar de um verdadeiro magistério espiritual: santa Clarade Montefalco (morta em 1308), na Úmbria, superiora de umapequena comunidade de reclusas, recebeu por várias vezes avisita de prelados que vinham cansultá-Iaa propósito de seusproblemas pessoais pu dos da Igreja, enquanto o rei de FrançaFilipe IIIenviavamensageiros a Elisabeth de Spaalbeck, em 1276-1277, por ocasião de uma intriga de corte na qual sua esposa foicomprometida. Mas outras, como santa. Margarida de Cortona(morta em 1297) ou Clara de Rimini (morta por volta de 1326),chamavam a atenção de modo menos discreto, percorrendo asI:"tfas,camumacorda no. pescoço, proclamando ()sseus pecados;'ea'sha:~indignidade;;~J{P91id,0-'S'~intei9txi~11~e1. para grande. escân-dclo désêüS coíicídadã'bs';'tbmO'tlmaprégaça:ô penitencial viva.

Mais grave ainda era o uso que algumas dessas mulheresfizeram da língua vulgar, única que elas conheciam e na qual suasexperiências religiosaspodiam seexpressar. Com elas,o flamengo(que se chamava na França thiois), assim como as línguas germâ-nicas, ociranas e italianas, irrompeu no campo fechado da litera-tura espiritual, onde o latim reinara até então sem rival.Ao longodo século XIII, multiplicaram-se em certas regiões da cristandade(especialmente nos Países Baixos e no mundo gerrriânico), en-dereçadas às beguinas e ao público feminino dos conventos,traduções ou adaptações da Sagrada Escritura, assim como de

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diversos textos litúrgicose hagiográficos. Alguns clérigos, comoos que pregavam para as beguínas de Paris em 1272-1273, ouMestre Eckhart em Colõnia, nos anos 1310, compuseramsermôesem língua vulgar, versando algumas vezes sobre assuntos com-plexos e delicados, que aquelas que sabiam ler e escrever copia-vampara méditá-los depois. Enfim,váriasmulheres não hesitaramem elaborar textos espirituais em médio-neerlandês ou em ale-mão, como a monja cisterciense Beatriz de Nazaré (morta em1268), autora das Sete maneiras de amor, assim como as beguinasHadewijch d'Anvers, que nos deixou admiráveis V2SÕes(por voltade 1240), e Mechtilde de Magdebourg (morta em 1282/1294),autora da Luz transbordante da Deidade. Mas a novidade não resi-dia apenas na escolha da língua vernacular: estranhas ao mundodas escolas e menos impregnadas de cultura bíblica do que osmonges, essas mulheres falaram de Deus por referência ao mo-delo literário profano do amor cortês.P Além disso, enquanto osleigos, em geral, não liam as Escrituras e só tinham acesso a elasatravés da liturgia e da pregação, algumas não pretendiam teruma compreensão mais sutilou mais profunda do que os clérigos?Isso foi demais, e uma viva reação se desenvolveu contra elas naIgreja, a partir das últimas décadas do século XIII. A primeira asofrer as conseqüências foi a beguina de Valenciennes, Margue-rite Porête, que redigira, por volta de 1300, uma obra espiritualem francês, o Espelho das almas simples e aniquiladas. Nesse tratado,a Senhora Amor, suserana daAlma Nobre, responde às perguntasda Razão e à instrui, através de uma alegoria mística, que sedesenvolve ao longo dos 139 capítulos, sobre o caminho queconduz essa alma à.uniã? perfeita c()mo~ell criador e Senhor.P

......_At:tlsaçl<t<i~p:êre~iaps:lo.kisp()~eQu11,br<U,essa.."beguinaclê~ga")" como 'a denomina um cronista. cêneemporârreó.=fõi julgada ê

queimada em Paris, a lºdejunhb de 1310, naPlace de Greve,menos por causa dos "erros" cometidos no seu livro - que foraanteriormente aprovado por três clérigos, entre os quais ummestre de teologia parisiense - do que em razão da ameaça desubversão que representava um discurso sobre Deus, feito comautoridade por uma mulher leiga, expressando-se na língua dopovo. Dois anos depois, um certo número de bispos alemães,entre os quais o de Colônia, muito hostis às ordens mendicantese aos leigos que gravitavam em tomo delas, conseguiram que oConcílio de Viena condenasse, pelo decreto Cum de quibusdam

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mulieribus, "certas mulheres geralmente chamadas beguinas, que(000]' como que levadas por um desvio do espírito, disputam edissertam sobre a Santa Trindade e a essência divina [000] ecometem, sob um véu de santidade, muitas outras coisas quepõem as almas em perigo".

Assim,a Igreja, no início do século XIV, impôs uma paradaao desenvolvimento das formas de vida "semi-religiosa", que ti-nham proliferado a partir de 1200, assim como à espiritualidadeque se desenvolvera espontaneamente entre os beguinos, namedida em que esta podia questionar o papel mediador dosclérigos entre o humano e o divino. Insistindo em afirmar que aausência de cultura erudita, de riqueza e de poder predispunhaas mulheres a acolher Deus em um coração "desembaraçado" e"aniquilado", para retomar as palavras de Marguerite Pore te, nãose corria o risco, ao conferir ao misticismo visionário um statuseminente na Igreja, de abalar a autoridade da hierarquia e fazerda mulher a figura hipostática do divino? O vigor das conde-nações que se sucederam entre 1312 e 1327 basta para ilustrar agravidade da questão o Amaioria das beguinas baixou a cabeça ese submeteu. Aqueles que - beguinas e beguinos - se recusaramforam perseguidos ao longo de todo o século XIV,sob o nome deIrmãos e Irmãs do Livre Espírito, seita que nunca existiu, a nãoser na imaginação dos inquisidores, etiqueta cômoda que permi-tia eliminar os que se opusessem a esseprocesso de normalização.

80 Cantique defiire Solei1,in François d'AssÍSi!oEaus, edo citada, p0342-3090Jacques de Vitry, Histeria Orientalis, § 32, in Saint François d'Assiseo Doeu-

ments, ed. citada, pol.446o100].- Pi'Tcrrell, artigo "Thornas d'Aquin (saint)", in Dictionnaire de Spiruua-

lilé.,to 15, Paris, 1991, c. 764-73011. Paulo VI, Lettre pour le VIr centenasre de ia mort de saint Thomas d'Aquin

(1974), citada por]. -P.Torrell, art.citado supra, c, 7680120A.Dupront, nu Sacré. Croisadeset peIerinagesoImages et langages, Paris, 1987,

especialmente pA19 a 4660130 1.0 caoalier arm.ai.,ed. e trad. por R Manselli e Mo-HoVicaire, in La Religion

popuIaire en Languedoc du XIIl' à ia moitié du XIV' siêcle, Toulouse, 1976,p0203-16 ("Cahiers,de Fanjeaux", 11)0

140"Onde reinam a caridade e o amor, ali se encontra Deus, O amor doCristo nos reuniu na unidade" (hino litúrgico do oficio do Lava-pés, naQuinta-Feira Santa) o

ISoA comparação dó leigo com uma pedra, em razão da sua dureza, seencontra ainda no Catholicon deJoáo de Gênova, por volta de 12850 CfY, Congar, "Clercs et laícs du point de vue de Ia culture", in Mélanges C.Balic, Roma, 1971~p0309-220 ,

160Lamprecht von Regensburg, Toduer von Syon (Filha de Sion), Paderbron,1880, v020838 e seguintes, citados e traduzidos por C. Epiney-Burgard eE, Zum Brunn, Femmes troubadours deDieu; Turnhout, 1988, p.õ-ô.

170"Mulheres religiosas" oMas a expressão latina se refere principalmenteàs mulheres piedosas leigas, e especialmente às beguinas místicas. Cf. B.Bolton, "Mulieres sanctaê', in Studies in ChurchHistory, 10, Oxford, 1977,p077-970

180Cf C, Bynum, [eiines et festins sacrês. La femme et la nourriture dons laspiritualité médiéuale; Paris, 1994, e R Bell, Holy Anore.xia, Chicago, 19850

190 Vita Lv.tgardis, in Acta SanctorumIulii, IV, 1970200]. Dalarun, "Hors des sentiers battus, Saintes femmes d'Italie aux XUIe

et:xIV" siêcles" in Femmes, mariages, lignagesoMélanges offerts à GeorgesDulry,Bruxelas, 1993, po1020 .

21. Alvaro Pelayo, DeplanctuEcclesiae, ed, de Lyon, 1517, § 570220Como mostrou Mo Lauwers, "Paroles de femmes,sainteté férninine..;' L'Eglisedu xme siêcle face auxbéguines", in Liber discipulorum Jacques. Paquét, Bruxelas, 1989,p099-1150 '

230O texto está acessível em uma adaptação em francês moderno: Le Miroirdes âmes simples et anéanties, introd., trad..e notas de Mo Huot de Long-champ, Paris, 19840 Sobre o alcance espiritual desse texto, ver MoBertho,Le Miroir des ãmes simples et anéanties de Marguerite Porête. Une vie blesséed'amour, Paris, 19930

NOTAS

1:Liber de d,oCtTÍ'naooob~atr~iriStepJi~n~ in Scjmptores ardinis Qr:qndimontenses,,.edoJo Becquet, Turnhout,1968, 'p.õ ("C~ christianorum, Contimúitib

medieualis', VIII) o

20Cf. supra, po108030 Lettre à saintAntoine, in François d/lssise, Ecrits, ed. To Desbonnets eJ. -F,Godet, Paris, 1981, po 268-69 ("Sources chrétiennes", 285)0

40 Lettre à un ministre, in François d/lssise, Ecrits, edo citada, p0262- 630SoSacrum commercium beati Francisci cum domina Paupertate, § 63, in SaintFrcnçois d'Assise. Documents, ed. e trad. por ToDesbonnets e D.vorreux,Paris, 1968, po 1.4270

60 Légende de Pérouse; § 23, in Saint François d'Assise. Documents, ed. citada,p08960

70 Légende de Pérouse, § 43, in Saint François d/lssiseo Documents, ed. citada,p09180

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CAPÍTULO V

Assim, o seu imenso apetite pelo Divino procurava satisfazer-seem manifestações com forte carga emocional, cujo. conteúdoteológico permanecia, em geral, bastante fraco. A que ocupava oprimeiro lugar na piedade dos fiéis era sem dúvida a peregrina-ção. Tomar o bastão do peregrino, era chegar a um espaçosagrado, onde o poder divino escolhera manifestar-se através demilagres. Esses lugares privilegiados eram numerosos e se multi-plicaram no Ocidente, no século XII. Ao lado dos santuáriosregionais, como Rocamadour ou Sainte-Foy de Conques, os fiéisfreqüentavam cada vez mais as peregrinações longínquas, comoas de São Tiago de Compostela, de São Miguel do Gargano ou deSão Nicolau de Bari. Roma também se tomou um destino fre-qüente, sem falar de Jerusalém, pois nem as cruzadas nem atomada da cidade pelos turcos em 1187 impediam asviagens paraa Terra Santa. Além desse último caso, os lugares de peregrinação.eram os que conservavam relíquias' preciosas. Estas eram objetode uma intensa veneração por parte do clero e dos fiéis, comomostra o esplendor dos relicários em que estavam encerradas.Sinais vivos e palpáveis da presença de Deus, elas tinham comofunção principal fazer milagres.

Os milagres desempenharam um grande papel na vidaespiritual desse tempo, e não apenas para os leigos. Com as visões,eles constituíam um dos meios de comunicação mais importantesentre este mundo e o além. A idéia de que Deus continuava a serevelar aos homens por meio de prodígios estava presente emtodos os espíritos. Assim, os cristãos da Idade Média estavamperpetuamente à procura de milagres e dispostos a vê-los emqualquer fenômeno extraordinário. Aqueles que os faziam eramconsiderados como santos. A Igreja se alegrava em contar umgrande número deles em suas fileiras: em uma época em que asheresias abalavam assuas estruturas, osmilagres não eram a provatangível de que o espírito de Deus estava sempre com ela? Quantoaos simples fiéis, os milagres que eles esperavam dos servidores deDeus eram principalmente curas: devolver a paz de espírito aospossuídos pelo demônio, fazer os coxos andarem e os cegos veremeram então os principais critérios da santidade. Até o estabeleci-mento de um processo regular de canonização, no fim do séculoXII, o poder taumatúrgico era praticamente a única condiçãoexigida para que um defundo pudesse ter as honras do culto. Asantidade se verificava por sua eficiência. Já que o mal físico, assim

o Homem Medievalà Procura de Deus

formas e conteúdo da experiência religiosa

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~:.Peregrinação, culto das relíquias e milagres

Na Idade Média, ainda mais do que em outros períodos, o desejode levar uma vida espiritual intensa era indissociável da adoçãode uma forma de vida religiosa, geralmente definida por umaregra que tinha um valorsantificante por simesma. Issonão excluia procura de um contato mais imediato e mais íntimo com Deus.Seria necessário falarmos aqui da oração. Digamos claramenteque, sem falar da prece litúrgica dos monges, a oração é malconheci~~. As canções de.gesta conservaramalguns belos textosde orações, mas trata-se de elaborações literáfias oudaexpressãousual de uma piedade pessoal? Sem dúvÍda,todossabiaIllo Patere a primeira parte da Ave Maria. Os salmos parecem ter sidopreferidos pelos clérigos e pelos leigos cultos que, muito cedo, ostraduziram em língua vulgar. Entretanto, não sabemos com quefrequência e em que espírito eram recitados.

Já que não podemos apreender na prece a relação dohomem com Deus, devemos tentar fazê-lo através de outras for-mas de piedade e de devoção. Incapaz de pensar o abstrato e,muitas vezes, de concebê-lo, o cristão do século XII vivia a suaexperiência religiosa principalmente no nível dos gestos e dosritos, que o colocavam em contato com o mundo sobrenatural.

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162 A Espiritualidode na Idade Média Ocidental

como o pecado, eram obra do Diabo, a cura miraculosa só podiavir de Deus, e bastava para demonstrar que aquele por cujaintercessão ela fora obtida pertencia à 'corte celeste.

O desejo de um contato direto com o divino se expressavaigualmente na devoção eucarística. Amissa era, com a.penitência,o único sacramento que teve importância na época medieval. Masassistia-sea ela menos para receber o corpo do Cristo do que paravê-lo. Contra as heresias espiritualistas, principalmente o cataris-mo, a Igreja insistiu, no século XII, na presença real de Deus naeucaristia, "verdadeiro corpo e verdadeiro sangue do Cristo". Essainsistência no aspecto concreto do sacramento encontrou um ecoprofundo na religiosidade das massas, que assistiam à missa comoa um espetáculo, à espera da descida de Deus sobre o altar. Assim,os fiéis, desejosos de contemplar o que estavaoculto no sacramen-to, pressionavam os clérigos para que lhes mostrassem a hóstia nomomento exato em que se cumpria o mistério divino. Essa é aorigem do rito da elevação, que foi regulamentado no início doséculo XIII, em razão dos abusos freqüentes: em certos luga-res, obrigavam-se os padres a mostrar três v<7zesa hóstia du-rante a missa; em outros, prolongava-se excessivamente o n::to-mento da consagração. Acreditava-se, habitualmente, que olhara:hóstia consagrada produzia efeitos salutares. Para a maioria, issosubstituía a comunhão sacramental, pois esta era raramente pos-sível, por causa da própria veneração de que as.santas espécieseram cercadas. Tudo isso denota unia concepção do sagrado quese encontra em muitas religiões: Deus, nesse nível, aparece comouma entidade exterior ao homem. É o absolutamente Outro,poder misterioso e anônimo, que tem pouca relação' com o Deusd~Bíblia ..Até osritos' especificamente cü~tãos~como a consagra-

..'.çãódil hóstia; sôfniiiJ.á 'iOOuênciadessa 'religiOSIdadefortementeimpregnada de magia.

Seria lógico concluir desse exame das devoções popularesque estamos em plena superstição e que as práticas que acabamosde relatar não têm nada a ver com a história da espiritualidade.Entretanto, um certo número de sinais revelam ao observadoratento uma evolução da piedade que se dirigia no sentido, se nãode uma espiritualização, pelo menos no sentido de uma acentua-ção do seu caráter cristão. Sem dúvida, quando partiam em'peregrinação, os fiéis do século XII, como os da época carolíngia,atingiam um lugar onde Deus agia através de relíquias e sempre

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tentavam aproximar-se dos reli~ários dos santos para obter a curadesejada. Mas o sentido' da peregrinação evoluiu. No século XII,ia-se, de preferência, aos santuários dos Apóstolos e.aos lugaresonde se veneravam relíquias de Maria ou de Cristo, ou objetosque entraram em contato com eles. É fácil ironizar os incríveistroféus que.os cruzados trouxeram do Oriente, como os inúmerosdentes de são João Batista ou os cabelos de Cristo, queas igrejasdo Ocidente obtiveram, comprados muitas vezes por preço alto,de hábeis impostores. A Incrívelingenuidade dos fiéis e a cegueirainteressada dos clérigos não nos devem fazer esquecer que osucesso dessas devoções constitui, de certa forma, um detalhe semimportância no evangelismo. No nível das massas, este se traduziapor "uma vontade evidentemente Inábil e imaginosa, de encon-trar Q Cristo em sua vida mortal" e por "um esforço para reatarcom o concreto das condições de existênciadaSagrada Família",'A evolução' da peregrinação de Rocamadour é muito instrutivanesse aspecto, No início do século XII, Rocamadour ainda era umsantuário local entre outros, ond~ os peregrinos da região deTulle se atavam com correntes que ,depois de ter estado emconcito com as relíquias de santo.Amadour (Amator) , operavam,ao que se dizia, curas miraculosas. Na segunda metade do século,apareceu umalenda, relatada pelo cronista Robert de Thorigny,segundo a qual esse Amadour teria sido um servidor de Maria,que a teria ajudado a criar o MéninoJesus. A história, evidente-mente, é pura invenção. Mas,é significativo que os clérigos deRocamadour: tenham convidado os fiéis a tomar como modeloalguém que vivera com o Cristo e sua mãe na maior familiaridade,e que tivera a vocação de devotar-se aoseu serviço.Amesma lendasublinha, aliás, que Amadour era e,.obree louva a sua humildade,o que se harmoniza com aespiritualidade da época. Esse exemplonão. é isolado. Como regra geral, parece que no século XII aatenção dos fiéis se dirigiu para os grandes nomes dos primeirosséculos da Igreja, enquanto, durante a alta Idade Média, semultiplicaram os santos sem referência séria, aosquais se pediasimplesmente a cura, sem pensar em seguir o seu modelo e nemmesmo em comover-se com sua vida.

Por outro lado, a espiritualidade penitencial começou, nessaépoca, a enriquecer alguns ritos que se ligavam mais ao paganis-mo do que à fé cristã. Difundiu-se a convicção de que o esforçofeito pelo homem por Deus ou por seus santos obrigava, de certo

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2..Arte e espiritualidade

A Igreja tentava elevar um povo ainda rude e mal instruídoalém dos requisitos puramente materiais, fazendo-o pressentir aexistência de uma realidade superior. Para isso, não hesitou emutilizar os recursos da arte, ao mesmo tempo expressão de umavida espiritual intensa - a dos clérigos - e meio para os leigosvislumbrar a grandeza e a infinita riqueza do mistério divino. Nãoestudaremos aqui o difícil problema da formação, ou melhor, daimpregnação religiosa, que os fiéis podiam receber por meio dasséries de afrescos, do canto litúrgico ou da estatuária, que semultiplicaram, a partir do fim do século Xl, nos pórticos dasabadias e das catedrais.. Muito se falou da "Bíblia de pedra", que essas obras ofere-

ciam ao olhar dos humildes. Não é incontestável que a intençãopedagógica tenhasido primordial para aqueles que mandaramexecutá-Ias, e seu objetivo parece ter sido, antes, provocar umchoque emotivo, càpaz de se prolongar em intuição espiritual.Em uma religião em que o culto era o ato essencial, a principalfunção da casa de Deus era oferecer aos mistérios divinos umcenário digno da sua grandeza: Mas a beleza das formas não selimitava a ser adequada ao caráter sagrado do ofício litúrgico. Aigreja de pedra, símbolo da grande Igreja, povo dos redimidos,devia proporcionar aos fiéis um prenúncio da beleza do céu.Suger, o grande abade de Saint-Denis (1081-1151), foi um dosraros clérigos desse tempo a definir com precisão a perspectivareligiosa q~e inspirava a construção ~ a decoração dos lugares doculto. Em sua autobiografia, ele desenvolve uma simbólica da luz,-muito rnárcada p~Ia-teologiarnística dé;pséudo-Dionísio o Areo-pagita. Segundo essa doutrina, cada criatura recebe e transmiteuma iluminação divina segundo as suas capacidades, e os seres,assimcomo as coisas, são ordenados em uma hierarquia, segundooseu grau de participação na essência divina. A alma humana,envolvida na opacidade da matéria, aspira a voltar a Deus. Ela sópode conseguir isso através das coisas visíveis, que, nos nfveissucessivosda hierarquia, refletem cada vezmelhor a sua luz. Pelocriado, o espírito pode assim remontar até o incriado. Aplicadaao campo da arte, essa concepção das relações entre o homem eo divino levou a multiplicar nas igrejas objetos como pedraspreciosas ou obras de ourivesaria sacra, que, por sua irradiação,

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podiam ser consideradas como símbolos das virtudes e ajudar ohomem a elevar-se até o esplendor do Criador. Do mesmo modo,a luz, filtrando-se através dos vitrais, estimulava a meditação econduzia o espírito para Deus, de quem ela era o reflexo. Comodiz a inscrição que Suger mandou gravar na porta de bronze deSaint-Denis: "Pela beleza sensível, a alma adormecida se eleva atéa verdadeira Beleza e, do lugar onde jazia, ela ressuscita para océu, ao ver a luz destes esplendores." .

A essa estética, que também era a de Cluny, o monaquismorenovado se opôs, em nome de uma espiritualidade rigorista. Sesão Bernardo admitia que as igrejas destinadas aos fiéis fossemricamente decoradas, opunha-se a que ocorresse o mesmo nas .abaciais, e de modo geral, nos templos dos religiosos. Assim, osestatutos de Cister, como os dos cartuxos, proibiam, nas igrejasconventuais, crucifixos de ouro ou panejamentos de seda, escul-turas e vitrais. "Deixemos as imagens pintadas para as pessoassimples", escreve o cônego regular Hugues de Fouilloy. Para sãoBernardo, todo esse luxo era não só inútil, mas também perigoso.A preocupação com a riqueza da decoração impedia os clérigosde dar esmolas aos pobres. Mas, principalmente, cultivando asartes de forma desregrada, o homem arriscava-sea amar o prazerpor si mesmo e a multiplicar as excitações supérfluas, tendo emvista o puro gozo. A riqueza e a profusão de ornamentos nãolevavam, em última análise, à procura da volúpia, e o espírito nãose dispersava nas sensações externas, deixando-se distrair porimpressões sedutoras? Aos olhos do abade de Clairvaux, tudo issoestava em contradição com as exigências da vida espiritual. Aalma, efetivamente, precisa de concentração interior-para poderconhecer-se e unificar-se na humildade; à introspecção se opõe àcuriosidade vã, que põe em perigo o espírito religioso. Mas queninguém se engane! São Bernardo e os adeptos do rigorismoascético não foram inimigos da arte, e em uma nave cisterciense,a pureza das linhas e a simplicidade das formas preenchemamplamente a ausência de ornamentação. Mas,ao irracionalismoe à opulência exuberante da arte românica opõe-se uma estéticada pobreza, que deseja limitar-se ao necessário e conservar apenasformas funcionais simples. A arte cisterciense é austera, discipli-nada e fundada na procura da pureza. Não é menos impregnadade espiritualidade do que a de Cluny. Mas, ao passo que, neste, aprofusão jubilosa e a riqueza das formas pretendiam maravilhar

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pais edifícios religiosos dessa época, o corte transversal da navepode ser percebido na fachada. No interior, os construtores decatedrais puseram em prática o mesmo princípio de organizaçãosegundo um sistema de partes homogêneas, ligadas entre si porrelações análogas, como os elementos de uma quaestio ou de umsermão universitário. Entretanto, cada um desses edifícios conser-va a sua originalidade, pois, embora tenda a uma certa uniformi-dade, a arte gótica não é a expressão de um racionalismo funcio-nalista; o fim primordial dos elementos arquiteturais é certa-mente garantir a estabilidade dos edifícios, mas estes visam es-pecialmente manifestar pela evidência de uma lógica visual aunicidade do princípio que preside a procura da verdade e dobelo.

o espmto e anunciar-lhe a festa eterna, a nova arte via nessasrealidades materiais um obstáculo à contemplação. Para os parti-dários do ascetismo e da pobreza voluntária, era apenas pelocaminho do despojarnento que o homem podia chegar até oamor espiritual, que transformava as necessidades vitais em tram-polim para Deus.

Não existe pois uma única, mas duas espiritualidades da artena época medieval: uma aceita e até procura a mediação dosensível; a outra recusa a analogia entre a beleza do mundo e oesplendor do além. Para osadeptos da segunda, a ascensão paraDeus passa pela humildade e pela renúncia ao uso carnal dossentidos. A função da arte se limita então a favorecer o reco-lhimento do homem em si mesmo, que o faz nascer para a vidainterior.

No século XIII, foi um caminho intermediário entre essasduas concepções antagonísticas que acabou por triunfar nasgrandes catedrais góticas do noroeste da Europa. De Chartres aSalisbury e a Estrasburgo, toda uma série de grandes edifíciossacros foram então construídos ou reconstruídos no coração dascidades episcopais, com o objetivo de manifestar a realeza doCristo, à qual a sua mãe era muitas vezes associada, como indicaa presença, cada vez mais freqüente à medida que se avança notempo, do tema da coroação da Virgem no tímpano do portalprincipal. Esculturas, vitrais coloridos, mosaicos de pavimentocontribuíam para fazer dessas vastas casas de Deus edifícios lumi-nosos e cintilantes, na linha daquilo que Suger fizera em Saint-Denis. Mas, ao mesmo tempo, o impulso e a verticalidade dospilares, aS0.briedade dos .capiréis iornados com uma simplesdeçoraçâo floral ou geométrica, a sucessão perfeitamente regulardas ogivas, tudo isso visava proporcionar a quem entrasse umsentimento de unidade e de despojamento. E. Panofsky mostroucomo os princípios de esclarecimento; e de reductio ad unum, queestão na base das sumas teológicas do século XIII, presidiramtambém à concepção e à construção das igrejas góticas contem-porâneas, especialmente as catedrais. Em ambos os casos, trata-sede um poderoso esforço para tomar sensível a ordem que reinano pensamento e no universo. Sua expressão mais visível, nocampo da arquitetura, reside nas noções de transparência e deinteligibilidade: assim, as divisões internas do santuário são clara-mente discerníveis do exterior e não é por acaso que, nos princi-

À medida que a piedade se individualizava e que a religião se faziamais pessoal, a vida do espírito deixava de ser o privilégio dosmonges. Em uma sociedade que começava a se liberar das coaçõesexteriores e a pôr um freio na violência cega, um número cres-cente de clérigos e de leigos adquiriram esse mínimo de tempo ede distanciamento em relação ao instinto, que torna possível orecolhimento e a reflexão: "No interior do homem ocidentalabre-se uma outra linha de frente pioneira, a consciência.?? Comcerteza, não foi por acaso que essa tomada de consciência - emtodo o sentido do termo - coincide com um certo arrefecimentodas perspectivas escatológicas. Enquanto as massas perseveravam

. incansavelmente na expectativa do milênio e transferiam suasesperanças.frustradas pelo resultado medíocre das cruzadas, parasucessivos messias, os melhores espíritos redescobriam a verdadeda máxima evangélica: "O reino de Deus está dentro de vós." Umamudança se operou no nível das mentalidades religiosas: o Julga-mento Final figurava sempre entre as preocupações essenciais dosfiéis, mas perdeu o seu caráter de angustiante iminência. Logo,ele seria considerado apenas como "a sanção longínqua do julga-mento da consciência no diálogo interior com o Cristo".5

Essa evolução aumentou ainda mais a importância do sacra-mento da penitência na vida cristã e modificou as suas formas. Noprocesso penitencial, o momento essencial se desloca da expiaçãopara a confissão. Até o século XI, considerava-se que a pena devida

3. Uma conquista: a vida interior-,..

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pelo pecado devia ser integralmente cumprida para que este fosseredimido. A partir do século XII, admite-se, em geral, que aconfissão constitui o gesto essencial e que a absolviçâoestá garan-tida desde a confissão. A Igreja reconhece, efetivam~nte, que éum ato tão humilhante e penoso que possui, por si mesmo, umvalor expiatório. Assim, não é surpreendente que o sacramentoda penitência tenha sido designado, a partir de então, sob o nomede confissão. A volta do espírito para si mesmo, a consciência queele toma do seu erro e da ofensa feita a Deus têm mais importânciado que as obras - cada/vez mais leves - que os penitentescontinuariam a cumprir! a título de satisfação. De modo maisgeral, o século XII foi marcado, no plano espiritual, por umaatitude que foi designada sob o nome de "socratismo cristão".Temperamentos tão diferentes quanto Abelardo, são Bemardo eHugues de Saint-Victor compartilharam a convicção de que, paraconhecer o céu e a terra, é preciso primeiro conhecer a si mesmo.Com mais razão ainda, a alma só chegará a Deus ao fim de umlongo caminho através dos meandros da psicologia humana e dos.graus do intelecto: "Como queres contemplar-me na minha cla-ridade, tu que não conheces nem a ti mesmo?", diz Deus à almaem um texto bemardino. Longe de constituir um desvio, a intros-pecção aparece como uma necessidade para quem quer queaspire a elevar-se acima da vida instintiva.

Segundo a tradição monástica, o lugar privilegiado do en-contro da consciência individual com Deus era a Sagrada Escritu-ra. Na Idade Média, a Bíblia não era um livro como os outros, maso livro por excelência, onde se encontrava a chave de todos osmistérios. Nela, aprendia-se alei" e procurava-se descobrir nela as-leis que regem a vida do homem e do universo. Deus é apresen-tado com uma realidade quase física: era sobre a Bíblia que seprestavam os juramentos solenes, e era ela que se abria ao acasopara ler o destino ou saber qual seria a sua vocação. Assim fez sãoFrancisco, no momento de sua conversão. Esse livro não era feitopara ser lido. Aliás, poucas pessoas, mesmo entre os monges,tinham o texto integral e o seu conteúdo estava longe de serinvariável. De um exemplar para outro, existiam diferenças im-portantes, e a noção de escrituras canônicas não tinha sentido emuma época em que se incorporavam facilmente à Bíblia textosapócrifos como o evangelho de são Pedro e tratados apocalípticos.O conhecimento que os clérigos e os fiéis tinham da Bíblia era

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quase sempre indireto. Os textos mais freqüentemente citadoseram os que figuravam na liturgia: salmos, evangelhos sinóticos,epístolas de são Paulo e Apocalipse. Por isso, certos livros erambem conhecidos, outros quase ignorados: No seio dessa vastaherança, cada um adotava o que melhor convinha às suas capaci-dades e às suas necessidades. A literatura referente às cruzadas dáum lugar importante ao Velho Testamento, onde se encontra orelato das guerras do povo de Deus e a descrição da Terra Pro-metida, assim como ao Apocalipse, que alimenta as esperançasescatológicas das massas. A maioria dos fiéis, em tempos normais,se interessava mais pelo saltério e pelo Livro de Jó, que contêmnumerosos preceitos morais e máximas concretas. Os clérigos dasescolas urbanas gostavam de especular sobre o Gênesis, que en-focava a ação do Deus criador, e os contemplativos, a partir de sãoBemardo e de Guillaume de Saint-Thierry; se dedicaram a co-mentar o Cântico dos cânticos, interpretado como uma crônicados esponsais tumultuosos entre Deus e a alma humana.

A Bíblia era pois para o homem medieval uma realidade viva,da qual ele estava mais ou menos profundamente impregnado,mas que, em todos os casos, alimentava à sua vida espiritual,fomecendo-Ihe simultaneamente matéria para reflexão e indi-cações para a ação. Reminiscências e citações se acumulavam emtão grande número nos textos dos clérigos que muitas vezes édifícil distinguir o que provém do seu espírito e o que pertenceao texto sagrado. Este era ao mesmo tempo interiorizado eatualizado, a ponto de integrar-se na experiência pessoal. AsEscrituras não eram consideradas como um simples relato dahistória da salvação. Além do sentido histórico evidente,úmaexegese sutil, que por vezes tem tendência a deslizar para oalegorismo, descobre em cada episódio, se não em cada palavra,um significado moral e espiritual apropriado. Essa maneira deabordar os textos bíblicos acarretava o risco de dissolver os fatosem um' simbolismo muito rico, mas nem sempre coerente. Emumlivro cujo autor era o próprio Deus, não era tentador procurarrespostas para todas as perguntas?

Durante as primeiras décadas do século XII, elaborou-se, nasescolasurbanas, um método que permitia chegar à compreensãodo mistério divino, evitando o que os comentários bíblicos tinhamde vago e de subjetivo. Com Abe1ardo, a teologia -já que é delaque se trata - se constituiu como disciplina autônoma, que

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recorre ao raciocínio lógico e à dialética. O objeto do conheci-mento continua sendo Deus, mas procura-se atingi-Io por razõesnaturais, não pela efusão do coração. A Sagrada Escritura não éexcluída do campo da reflexão: ela é situada, entretanto, nomesmo plano que os autores pagãos, em particular Platão eAristóteles, que começavam a ser redescobertos. De fato, emcertos meios intelectuais, principalmente parisienses, prevaleciaa idéia de que se podia explicar as principais verdades do cris-tianismo, inclusive o mistério da Trindade, utilizando os conceitose os métodos da filosofia pagã, São Bernardo acusou Abelardo eseus discípulos de rebajxár as verdades reveladas ao nível dasverdades humanas. Não é nosso propósito relatar a longa e penosacontrovérsia entre o abade de Clairvaux e o "cavaleiro da dialéti-ca'', excessivamente confiante nas capacidades da razão, segundoo primeiro. O fato importante para nós é que, com Abelardo, ateologia se destaca da sacra pagina, isto é, do comentário espiritualda palavra de Deus. A partir de então, haveria, de um lado, umateologia escolástica, especulação racional sobre o dado revelado,do outro lado, uma teologia mística, que permanecia centrada nameditação das Escrituras e recusava-se a privilegiar a reflexãointelectual como meio de acesso ao conhecimento de Deus.

No século XIII, a teologia parecia prevalecer sobre a es-piritualidade e relegá-Ia ao segundo plano. Mas não nos esqueça-mos de que, para são Tomás de Aquino, ela não era uma simplesciência, mas o saber supremo e a forma superior da sabedoria.Mas, ao passo que para santo Agostinho e seus continuadoresmedievais, a revelação divina desvalorizara as ciências humanas,que só tinham utilidade no domínio temporal, o teólogo dornini-cano.reconhecia a sua densidade própria ea sua eminente digni-dade. A teologia, aos seus olhos, não ficava diminuída com isso,pois "o verdadeiro não pode contradizer o verdadeiro", e princi-palmente ela tem como objeto o próprio Deus, com o qualnenhuma outra realidade pode se comparar. Mas a grande figurado "Doutor comum" c a preponderância do tomismo no planodoutrinal, a partir do início do século XIV, não devem dissimulara importante persistência da corren te agostiniana no próprio seioda teologia. Continuador e herdeiro dos grandes vitorinos doséculo XII, o franciscano são Boaventura manifestou uma grandedesconfiança em relação às capacidades da inteligência, e em seusescritos enfatizou, antes, a primazia do amor. Para ele, o pensa-

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mente científico não tinha nada de definitivo e o conhecimentopela razão não podia, por si só, explicar Deus e o mundo. Assim,preconizou um procedimento especulativo impregnado de pie-dade e misticismo, culminando em um êxtase da inteligência e davontade, cujas etapa') ele descreveu no seu Itinerarium mentis adDeus ("Itinerário do espírito para Deus"). Nele, descreve a ascen-são da criatura até Deus, que revelou o seu mistério em JesusCristo. O "Doutor seráfico", como ele foi chamado, insistiu naidentidade da imagem (o homem) e do exemplar (o Cristo). Deuse o homem são feitos um para o outro, e ordenados um para ooutro. Assim, toda criatura é "capaz de Deus", isto é, animada porum impulso fundamental para o exemplar, do qual ela recebe oseu ser-imagem. Pela meditação dos sofrimentos e da vida doCristo, essa orientação dinâmica da alma para Deus se desenvol-verá em uma recriação do homem, que poderá, ela própria,resultar já aqui na terra, em uma participação vivida na naturezadivina, no "rapto" místico. A questão que se situa no coração dateologia de são Boaventura é a da divinização do homem. A esserespeito, longe de ser arcaica, ela se harmoniza com a aspiração,então presente em muitos clérigos e leigos, a uma experiênciadireta e transformadora do divino.

4. Nas origens da mística ocidental

Entre a via teológica e a via mística, existe uma outra divergênciaprofunda: o objeto da segunda não é arrancar os segredos deDeus, mas permitir à alma experimentar a sua presença e unir-sea Ele. O texto bíblico, que continua a ser, para os espirituais, areferência obrigatória de toda experiência religiosa, fornece umponto de partida para uma meditação que, por etapas, conduz àcontemplação. Muitos autores do século XII, de Aelred de Rie-vaulx a santa Hildegarda, descreveram essa passagem da reflexãopara a iluminação, segundo a sua experiência pessoal. A Palavradivina, segundo eles, age primeiramente no espírito como umachama, cortando os laços que o unem à carne e ao pecado. Umavez purificada a memória, a alma pode apoiar-se nas palavras enas imagens do texto para tentar elevar-se até o seu criador. Aofim de uma série de etapas ascensionais, como que por umaescada, ela vence a distância infinita que a separa de Deus. Asconfissões de indignidade dão lugar progressivamente às manifes-

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tações de ternura. Enfim, no silêncio, a Palavra toma posse daalma e se faz carne: o homem dá nascimento a Deus. Como dizsão Bernardo: "Locutio Verbi, infusio doni" É o mesmo Verbo quefala aos homens e se dá a cada um deles. Desses instantes deelevação, o espírito sai exaltado e maravilhado. Graças p. SagradaEscritura, o homem pode libertar-se dos seus próprios limites,pois nele o visível e o invisível se unem.

Com são Bernardo e Guillaume de Saint-Thierry - amboscistercienses - essas experiências místicas difusas no seio domonaquismo foram levadas até as últimas conseqüências e apre-sentadas pela primeira yez de modo sistemático. O ponto departida dos dois monges foi o Cântico dos cânticos, livro particular-mente lírico do Velho Testamento, que foi interpretado como umdiálogo entre Deus, identificado com o amante, e a alma, apre-sentada como a amada do Todo-Poderoso. A partir daí, sãoBemardo desenvolve, em uma visão grandiosa, toda uma dialé-tica das relações entre o Criador e suas criaturas. O homem,segundo ele, é a imagem do mundo por seu corpo, e é a imagemde Deus por sua alma. Por causa do pecado original, o elementodivino no homem foi oculto pelo mal. Mas Deus restaurou essasemelhança pela Encamação: Maria, nova Eva, é não só o ins-trumento da nova criação, mas também um modelo para oscristãos de todos os tempos. A alma-esposa à procura de Deusdeve tentar assemelhar-se à Virgem e, como ela, tomar-se mãe,para dar nascimento ao espírito divino. Assim sendo, o homemse eleva acima da sua condição carnal e pecadora, para reencon-trar a pátria celeste, à qual ele aspira do fundo do coração. Oabade de Clairvaux distingue quatro graus nessa ascensão: o amor.carnal, que consiste em-amar a si mesmo, o amor ao próximo e àhumanidade do Cristo, que jáé superior; embora ainda de nívelmedíocre. Se o cristão perseverar, chegará a amar a Deus em suadoçura e a obter consolações espirituais. Mas Deus só descerásobre a alma quando esta for totalmente despojada do seu invó-lucro carnal. Chegando a essa etapa, a alma-esposa, como a Igreja,da qual ela é a imagem, vive segundo o amor. Nela se atualizam,de modo sobrenatural, todas as virtualidades constitutivas danatureza humana. Longe de ser um fenômeno aberrante, oêxtase místico constitui a sua realização perfeita, na medida emque permite conhecer a Deus no mais profundo do mistériotrinitário. São Bernardo é excessivamente realista para ignorar o

que tais estados podem ter de excepcional, e ele próprio sublinhanitidamente que a experiência mística é inferior ao que será avisão face a face de Deus, na beatitude celeste. Mas, à imagem daTransfiguração, em que os Apóstolos participaram da irradiação

. do Cristo, o êxtase proporcionado à alma pelo beijo do Esposo aidentifica, em certa medida, com o objeto amado, ao qual ela estáunida espiritualmente. Pela união mística, o homem não se tornaDeus, mas eleva-se acima de si mesmo e restaura em si a imagemdivina.

Para Guillaume de Saint-Thierry (morto em 1148), autordo Speculum fidei e principalmente do De contemplando Deo, ostemas espirituais são mais ou menos os mesmos qtle para o seuamigo são Bemardo, mas a ênfase está mais sobre o mistériotrinitário. A alma humana, aos seus olhos, é a imagem criada daTrindade criadora. Imagem sem dúvida inferior e degradada, masmodelada sobre ela. Com efeito, segundo ele, a queda originalnão destruiu essa semelhança fundamental, apenas a perturbou.Apoiando-se na graça e no esforço pessoal, o homem ávido deperfeição poderá restabelecer essa similitude entregando a sua .alma ao ritmo da Trindade. Para isso, deverá elevar-se do estadoanimal ao estado racional, e deste ao estado espiritual, que o fazparticipar, já aqui na terra, da glória da Ressurreição. Para aque-les que se estabelecem nesse nível, as três faculdades da alma seencontram na sua verdadeira função - a memória leva ao Pai, arazão conduz ao Cristo, a vontade ao Espírito Santo - e resultamem um conhecimento íntimo de Deus-Trindade.

A mística que nasce no Ocidente no século XlI não sereduzapenas à corrente cisterciense, por mais importante que esta seja .Outras vias também foram experimentadas na procura da uniãocom Deus. Alguns autores se esforçarampor associar a reflexãointelectual à procura amorosa da presença divina. Foi o caso, emparticular, da Escola de São Vítor, casa de cônegos regulares,fundadaem Paris em 1113 por Guillaume de Champeaux, e quefoi ilustrada por uma série de grandes teólogos e espirituais, comoHugo (morto em 1141) e Ricardo (morto em 1173) de são Vítor.Este último é o mais interessante para o nosso propósito, poisdesenvolveu uma doutrina, que foi qualificada de "misticismoespeculativo". Para Ricardo, autor de um tratado, De Trinitate, aSanta Trindade é o objeto supremo da contemplação. Para teracesso ao conhecimento desse mistério, a especulação, isto é, a

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investigação racional, é a primeira etapa. É preciso descobrir asrazões necessárias que permitem à inteligência apreender osfundamentos da vida trinitária. Mas só a contemplação fundadanas Sagradas Escrituras e alimentada pelo amor permite, segundoele, ter acesso à vida íntima das pessoas divinas. Deus faz nascerna alma humana um desejo lancinante e insaciável, que leva acriatura a fundir-se nele em um excessus mentis, que, para Ricardo,é uma iluminação mais do que um êxtase propriamente dito. Seo objetivo perseguido é, como para são Bemardo, a união íntimacom Deus, esta aparece àntes de tudo, para os vitorinos, comouma visão do sentido profundo das coisas e dos seres. Seu proce-dimento abole, ou antes ignora, as barreiras que a espiritualidadeposterior estabeleceu entre vida ascética, vida intelectual e vidamística. Para eles, a ascensão para Deus passa pela análise dasrealidades psicológicas, pela exploração das faculdades da alma epelos graus da contemplação. Essa concepção, simultaneamente.sintética e dinâmica da vida espiritual, não deveria ter influênciano seu tempo. Mas ela abriu o caminho no qual iria se aventurarsão Boaventura, no século XIII.

Outras experiências místicas, particularmente nos meiosfemininos, tiveram como ponto de partida a devoção à humani-dade do Cristo e uma vontade de participação ativa na Paixão doSalvador. Essa corrente tem relação com a Escola cisterciense esão Bernardo, como Guillaume de Saint-Thierry, deram um lugarimportante ao mistério do Homem-Deus na sua experiência e nassuas obras. Ambos sublinharam que a devoção à humanidade doCristo era apenas um dos primeiros graus do amor. Para eles, sóse podia passar da sombra para a luz, da terra para o céu,contemplando Deus em sua divindade, e a alma à procura deperfeição devia "elevar-se da meditação do Cristo segundo a carnepara a contemplação do Cristo segundo o espírito. No movimentoreligioso que se desenvolveu na diocese de Liêge e no Brabantea partir do fim do século XII, esses aspectos desempenharam umpapel essencial e a adoração do Cristo sofredor estava no centroda mística que desabrochou então nos claustros e nos conventosde beguinos. Marie d'Oignies (morta em 1213) e Lutgarde de-Tongres (morta em 1246) procuraram unir-se ao Filho de Deusem sua pobreza e sua Paixão. A partir de então, e pelo menosdurante um século, o elemento afetivo se tornou preponderantena mística ocidental. O sentimento patético do drama da Reden-

ção, a meditação sobre o sacrifício sangrento do Cristo, o dom daslágrimas que purificam o olhar interior e expressam a compunçãodo coração constituem os seus elementos fundamentais, Deve-sever nessa mística feminina apenas um reflexo vulgarizado dasconcepções de são Bernardo sobre as relações da alma com o seuCriador? Isso 'seria minimizar a originalidade da espiritualidadedos Países Baixos e esquecer que um meio-século rico em mu-tações separa o abade de Clairvaux da beguina reclusa de Oignies.Para o primeiro, a carne era apenas uma sombra e um obstáculoque devia ser superado, para chegar ao Verbo eterno; para asegunda, o corpo do Cristo, instrumento de salvação e penhor deeternidade no seu prolongamento eucarístico, estava no centrodo mistério cristão.

Durante a segunda metade do século XIII e no início doséculo XIV, a própria concepção de vida mística sofreu umaprofunda modificação, principalmente marcada -nos conventosde dominicanos e dominicanas dos países germânicos. e entrecertas beguinas da Renânia e dos' Países Baixos. De fato, naperspectiva que prevalecera até então na maioria dos autoresespirituais, a progressão da alma para Deus era assiniilada a umaascensão por etapas, que através da ascese, da meditação e daunião, permitia chegar, em certas circunstãncias excepcionais, àcontemplação. Na corrente mística dos dominicanos e dos begui-nos, o procedimento seguido é inverso: não se trata mais de subiraté Deus, mas de abandonar-se nele. A criatura que aspira a seunir ao seu Criador só chegará a isso por um esforço da vontadeou por uma prática intensa das virtudes, mas despojando o seuser próprio, criado, separado, para recobrar o seu ser verdadei-ro, incriado, não separado, em Deus; Se a criatura compreendeuisso, ela pode, segundo uma fórmula de Marguerite Porête -quefoi vivamente reprovada pelos teólogos parisienses, "despedir-sedas virtudes", o que não significa de modo nenhum abandonar-seao anorn,~mo ou à libertinagem, mas perder-se para melhorencontrar-se e "tomar-se pela graça o que Deus é por natureza",segundo a fórmula de Guillaume de Saint-Thierry, Nessa pers-pectiva, o objetivo último é menos a união com Deus, no que essaexpressão pode sugerir de excepcional e de temporário, do quea procura da deificação por assimilação ao próprio ser de Deus.

Esse procedimento, apesar das críticas que foram feitas aosque o preconizavam por seus de tratores (por exemplo quando

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178 A. Espiriiualidade na Idade Média Ocidental o Homem Medieval à Procura de Deus 179

do processo de Mestre Eckhart, que se realizou em Avignon em1327), não exclui nem uma progressão nem mesmo um métodopara chegar ao que Hadewijch d'Anvers chamara "arte do justoamor", mas ela se recusa a balizá-la antecipadamente: "Vai, masaceita não tomar um caminho", diz um texto místico alemão doinício do século XIV. Avida espiritual não é uma aquisição, masuma demolição. Ela consiste em deixar-se cair como uma pedrano próprio ser de Deus. Eckhart precisa que, para ser capaz de"tocar ou apreender Deus" pelo conhecimento natural, a almadeve previamente chegarã "nobreza". Esta constitui o ponto dechegada deum processo de despojamento e de "abandono", queconsiste em uma desapropriação de si, indo até a renúncia àvontade de obter a salvação" É apenas por esse preço que ohomem poderá chegar à beatitude, que. consiste, em últimaanálise, em descer até esse "Fundo" da alma ("Grund "), onde seencontra a fonte da qual o Filho recebeu o seu ser e onde Deusgera sem cessar o seu filho adotivo, o "homem nobre", isto é o serhumano divinizado. Nesse nfvel, as duas correntes maiores damística ocidental, a mística nupcial e a mística da Essência, sefundam em um único amor, que permite ao homem ser Deus emDeus. Ninguém descreveu melhor essaexperiência unitiva do queMarguerite Porête, quando exclama: "Se eu digo: 'eu te amo' , eume distingo de Ti; não digas: 'eu te amo', pois issojá é distinguire logo separa o que está unido." Alguns anos depois, MestreEckhart desenvolveria, em uma linguagem mais conceitual, umaidéia exatamente semelhante: "Deus deve absolutamente tornar-se eu e eu absolutamente tornar-me Deus", que lhe valeria ser.acusado, injustamente, de panteísta.

Todas as religiões conheceram e conhecem graus de parti-cipação diversos nos mistérios que elas ensinam. O cristianismomedieval não é uma exceção à regra: do culto das relíquias àmística nupcial, abre-se um amplo leque de vias de acesso aodivino. Pode parecer estranho compaxo.rformas tão distantes daexperiência religiosa. Mas a ênfase posta pelos teólogos no papeldo Verbo encarnado na Redenção e o desenvolvimento dasdevoções populares à pessoa do Cristo e de sua mãe traduzem,em níveis certamente diferentes, a mesma intuição. Não estádemonstrado, de forma alguma, que as orientações da piedadesejam sempre dependentes da orientação da alta espiritualidadevivida nos claustros. No século XII, ambas evoluíram aparente-

mente de modo concomitante, e mesmo, por certos traços, areligião das massas esteve talvez à frente da religião das elites: adevoção à Santa Lança, miraculosamente descoberta diante deAntioquia pelos cruzados, precede de várias décadas a veneraçãomanifestada pelas místicas do Brabante pela chaga do lado deCristo. Além desses problemas de influências, sempre delicados edificeis de resolver, o historiador constata que no século XIII duascertezas fundamentais impregnam a consciência religiosa noOcidente: só se chega a Deus por seu Filho crucificado, e, paraconquistar a salvação, é preciso assemelhar-se ao Cristo. Mas hávárias maneiras de identificar-se com um ser amado: pode-seprocurar as suas pegadas e cultivar a sua lembrança, imitar o seuexemplo ou procurar ser apenas um com ele. Por mais diferentesque possam parecer essas atitudes, é, entretanto, o mesmo senti-mento que as inspira.

NOTAS

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Conclusão 181

Conclusão

fenômeno geral em todo o Ocidente, o clima de atonia quereinava até então deu lugar a uma efervescência espiritual, cujamanifestação mais visívelfoi a multiplicação das formas de vidareligiosa. O renascimento intelectual foi acompanhado por umarenovação do interesse pela interioridade. Ou antes - pois essassão distinções excessivamente modernas -, quando se alargou aestreita faixa daqueles que, na sociedade ocidental, tinham acessoà vida do. espírito, houve progresso no plano cultural, e umaelevação do nível das aspirações religiosas.

Pode-se seguir minuciosamente essa evolução, consideran-do a atitude das ordens religiosas diante da propriedade. Osreformadores monásticos dos séculos XI e XII aceitaram e atéprocuraram doações fundiárias, que lhes permitissem aumentaro temporal das abadias. Mais tarde, os adeptos da vida apostólica- especialmente os cistercienses e os cônegos regulares do ardonouus - quiseram possuir terras simplesmente para satisfazer assuas necessidades e recusaram-se a gozar de rendas fundiárias, pa-ra não ficarem presos na armadilha do regime senhorial. Etiennede Muret aconselhou os grãmontanos a que tivessem tão'poucasterras que fossem obrigados a mendigar. Enfim, sãoFrancisco, noséculo XIII, proibiu a seus irmãos que possuíssem o que q~er quefosse, nem particularmente nem em comum, e exortou-os aprocurar meios de subsistência no trabalho, ou, na falta deste, namendicância. Esse desligamento progressivo de todas as formasde propriedade e de poder se tornou possível pelas transfor-mações profundas que a sociedade ocidental sofreu entre osséculos X e XIII. Para que uma coletividade religiosa pudesselivrar-se do regime senhorial e abster-se de guardar qualquerreserva, em natureza ou em dinheiro, era preciso que houvesse,em número suficiente, cidades, possibilidades de trabalho e bur-gueses caridosos. O fracasso de certas experiências prematuras dedesapropriação é significativo,.a esse respeito. Assim, Odon deTournai, que, no fim do século XI, desejou que uma comunidadede cônegos regulares vivessedo trabalho manual, foi obrigado,por causa de uma peste, a renunciar ao seu projeto e a adotar omodo de vida dos clunisianos. .

O exemplo que acabamos de estudar não é inteiramenteconclusivo, na medida em que o regime econômico das ordensreligiosas é apenas uma conseqüência, afinal secundária, de suasopções espirituais. Não se pode dizer o mesmo 'da pobreza que

Ao fim deste estudo, em que tentamos inserir as correntes es-pirituais no movimento da história, uma questão não deixa de seapresentar: a natureza do laço que existe entre a evolução da es-piritualidade e as transformações da sociedade medieval. Queren-do a qualquer preço estabelecer uma correpondência entre essasduas ordens de fatos,não nos arriscaríamosa subestimar o papel dasgrandes figuras - como são Pedro Damião .ou são Bemardo, por'exemplo - e a ignorar o caráter intemporal da sua mensagem?Afinal, há, ainda hoje, muitos homens e mulheres que encontram.uma respostapara suasexpectativasnasregrasmonásticas, enquantoo mundo atual é bem diferente daquele no 'qual foi vividaa expe-riência religiosaque deu origem a essasregras.

Não se pode contestar o papel pessoal de um certo númerode grandes santos na história da espiritualidade, mas é evidenteque sua mensagem não teria encontrado ,eco emuma sociedadeque não estivessepronta para recebê-Ia. E interessante observar,como fez L. Genicot, que "as exigências espirituais aumentam àmedida que se afrouxam as coerções econômicas".' Seria poracaso que a época carolíngia, caracterizada pela baixa produçãoagrícola e pela atividade comercial medíocre, foi também a épocado conformismo religioso, e que os melhores espíritos dessetempo consideraram a vida espiritual apenas sob o âmgulo domoralismo? Apartir do século XI, e principalmente no século XII,quando o desenvolvimento econômico e urbano se tornou um

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ocupa um lugar central em muitos movimentos religiosos naépoca medieval. Ora, a exaltação da pobreza na espiritualidadeocidental coincide de maneira impressionante com a elevaçãogeral do nível de vida. Na época carolíngia, a pobreza não gozavade nenhum preconceito favorável: dificilmente, a miséria podepassar por valor numa sociedade de penúria. A partir do séculoXII, em contrapartida, existia um número suficiente de ricos paraque ela pudesse ser proposta como um ideal. No século XIII, nomundo urbano e mercantil da Itália central, ela era vista como avirtude evangélica por excelência, e são Francisco, aos olhos dequem o mal se identificava cOma falsa segurança e com o poderde opressão proporcionados pelo dinheiro, atribuiu uma impor-tância fundamental à "Santa Pobreza", que "confunde toda cupi-dez e avareza e as preocupações materiais deste século". 2

Tributária dos sistemas econômicos nos quais elase inscreve,a vida espiritual também o é das relações socíais." O papel doabade e a concepção da obediência não são absolutamente osmesmos na regra beneditina e nas ordens mendicantes. Maisprofundamente ainda, as representações de Deus foram influen-ciadas pelas estruturas da sociedade feudal. O homem medievalconcebia as suas relações com o seu Criador a partir do modelodas que existiam entre um rei e seusvassalos. Estes estavam ligadosao primeiro de modo pessoal e indissolúvel pelos laços da home-nagem. Do mesmo modo, o cristão não podia, sem felonia,renegar o seu Deus, já que, pelo batismo, renunciara a Satanáspara segui-lo, Assim, ele devia restabelecê-lo em seus direitos,quando estes eram lesados pelos heréticos ou pelos infiéis. Umbom vassalo pode assistir sem reagir à deposição do seu senhor?Sem dúvida alguma, este é Um dos.motoresdoespírito de cruza-da, pelo menos no nível da aristocracia militar.

Isso significa que as inflexões da espiritualidade que cons-tatamos entre os séculos VIII e XIV foram simples adaptações àstransformações da sociedade ocidental? Mas, na realidade, issonão é tão simples. Primeiramente, o sucesso de uma nova formade vida religiosa adaptada às mudanças que se produziram nomundo profano raramente fizeram periclitar as que já existiamantes. O desenvolvimento dos cônegos regulares no século XII

. não abalou a instituição monástica, assim como o sucesso dosmovimentos religiosos populares também não esgotou o recruta-mento dos conversos. Por outro lado, mesmo quando mudanças

profundas se operavam no campo espiritual, estas apenasacompanhavam ou seguiam a evolução geral, mas forneceram,por vezes, soluções para os problemas que se apresentavam àsociedade e à Igreja. Na maioria dos casos, a resposta não eraóbvia. Assim, quanto à pobreza: mesmo que o crescimento dosrecursos tivesse feito com que ela se mostrasse, progressivamen te,como um estilo de vida possível, restava operar uma inversão dosvalores para fazer dela um ideal espiritual positivo. Reconhecer ovalor do despojamento, desejado ou não, isto é, de um estadopenoso e socialmente humilhante, adotá-Io e propô-lo como umavia de salvação e de ascensão para Deus, como fizeram os movi-mentos evangélicos do século XII, t: principalmente são Francis-co, era encontrar uma resposta para o problema do mal, que oscátaros erigiam em rival de Deus, e ao mesmo tempo permitir aum mundo em que as distâncias e as tensões sociais se acentuavamsair das suas próprias contradições.

Ao lado dessas variações do ideal religioso, que se poderia,a exemplo dos historiadores da economia; qualificar de conjun-turais, encontram-sena história da espiritualidade medieval mo-vimentos de longa duração, cuja existência se evidencia, logo quese toma um pouco de distanciamento em relação aos fatos e àsdoutrinas ..A mais importante dessas tendências gerais é aquelaque conduz à personalização crescente da vida religiosa. Durantea alta Idade Média e ainda na época feudal, os fiéis só considera-vam a possibilidade de entrar em relação com o sobrenaturalatravés de gestos que lhes davam, de certa forma, domínio sobreele. Foi a época em que a liturgia desempenhou um papelfundamental, tanto para osmonges quanto para os leigos, mesmoque os últimos não compreendessem o seu sentido.· O essencial,a seus olhos, estava no respeito escrupuloso dos ritos, que tinhampor si sós uma misteriosa eficácia. Assim, as canções de gesta nosmostram freqüentemente cavaleiros que se dão mutuamente acomunhão, à guisa de viático, simbolizada por uma flor, um ramode ervas ou um pouco de terra, quando não há padre paradistribuir os sacramentos." É como se a recepção do corpo doSenhor tivessemenos importância do que o rito da manducação.Nesse universo religioso, a liberdade humana tem apenas umpapel limitado. Não depende do homem ser salvo ou condenado;o mal pode abater-se sobre ele repentinamente e fazer dele a suapresa, sem que a sua responsabilidade esteja diretamente impli-

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-184 iÍ. Espiritualidade na Idade Média Ocidental

cada. A presença do Demônio nele se manifestará por vícios, dosquais ele será menos o responsável do que a vítima. A alma,prêmio de um combate que a supera, é um campo de batalhamais do que uma força atuante.

A partir do século XII, a atitude do homem ocidental diantedo seu destino espiritual começou ase modificar. Não se resignan-do mais a ser ojoguete de forças obscuras, ele decidiu agir contraelas. Para alguns, tanto clérigosquanto leigos,essavontade de lutatomou a forma de um espiritualismo radical: para vencer o mal,eles procuraram a pureza e a salvação na negação da carne e damatéria. Entre estes, muitos também questionaram a Igreja emseus aspectos visíveis (hierarquia, sacramentos, dízimos etc.), es-perando o perdão apenas da intercessão de homens que realizas-sem em sua vida a perfeição evangélica. Outras correntes, quecontinuaram no seio da ortodoxia, tentaram dar um sentido aoesforço e ao sofrimento humanos, tomando como referência asdores e tormentos do Cristo. Produziram simultaneamente a '

. espiritualidade penitencial e a "religião das obras", que encontra-ram muito sucesso no mundo dos leigos e estiveram na origemdas cruzadas, dos movimentos ascéticos e da "revolução da cari-dade", que estudamos anteriormente. Nesse novo clima espiri-tual, a liberdade e principalmente a responsabilidade pessoal docristão são muito maiores. Ele pode participar ativamente da suaprópria salvaçãoe ganhar o céu, de certa forma, com a força dospunhos. Particularmente, o sacramento da penitência e o encon-tro do Cristo nos pobres lhe permitem preparar-se para o Julga-mento Final. Enfim, em uma elite restrita, a personalização davida espiritual desabrochou em uma ciência da união com Deusfundada sobre a experiência mística, cujo ponto de partida setorna a devoção à humanidade do Cristo.A alma, comovida pelaconsideração do amor de Deus por suas criaturas, chega então acontemplar, nem que seja apenas por um instante, a intimidadedo seu mistério, para beneficiar-se, em retribuição, com numero-sas consolações.

O refinamento e a interíorização do sentido espiritual cami-nham juntos na época medieval, como se pode constatar nasformas da conversão. Na primeira idade feudal, um cristão que seconvertia devia afastar-se do mundo, seja encerrando-se em umclaustro seja partindo para o deserto. A ruptura com a existênciapecadora se manifesta, com efeito, pela recusa da sociedade

Cmulusão 185

temporal e da vida profana. No século XII, essasformas exterioresda conversão subsistiram e se tornaram até lugares-comuns daliteratura hagiográfica: não se imagina um santo que não tenhaseguido esse itinerário espiritual. Masa palavra conuersus toma umsentido novo: ora designa leigos que se colocaram sob a proteçãodos religiosos e lhes ofereceram-o seu trabalho, ora homens emulheres que, em número crescente, se puseram a serviço dospobres nos hospitais e leprosários. Logo a conversão se reduziria,com os Penitentes, à prática de uma regra, que implicavaa recusados aspectos puramente mundanos da existência profana, masvividano meio dos homens, sem mudança de estado. Aofim des-se processo, a fuga do mundo ficavatotalmente interiorizada,

Não poderíamos terminar este livro sem dizer ao leitor quea síntese que acaba de lhe ser apresentada é muito provisória eincompleta, As necessidades da exposição do assunto nos leva-ram a insistir sobre os elementos conhecidos e os resultadosadquiridos. Por uma questão de justiça, deveríamos tambémressaltar as lacunas importantes que persistem em nosso co-nhecimento da espiritualidade medieval e os problemas queficam sem solução, na maioria das vezes por não terem sidoapresentados da maneira correta. Daremos apenas um exemplo:o da espiritualidade popular. Segundo os raros testemunhos deque dispomos, parece que ela constitui uma realidade profundae coerente que, de tempos em tempos, aflora à superfície dahistória, e cujos principais componentes são a exaltação doshumildes, o espírito penitencial e a vontade de se apropriar dasriquezas espirituaisdo monaquismo. Esseconjunto de crenças e deaspirações irrompe em explosõescoletivasde fervor que, das trans-.lações de relíquias às cruzadas, sacode a atonia comum da vidareligiosadas massas.Restaexplicar como se formou essaespirituali-dade e que relações ela manteve com a dos clérigos.fNão lamenta-remos acabar este trabalho com uma confissãode ignorância, se estapuder estimular a pesquisa em um campo onde ela ainda se faz tãonecessária.

NOTAS

1. L. Genicot, "L'érérnitisme dans son contexte économique et social", inL'eremitismo in Occidente nei secoli XI e XII, Milão, 1965, p.45-69.

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2. Salutation eles uertus, in Saint François dJl.ssise, Documents, ed. e trad. porT. Desbonnets e D. Vorreux, Paris, 1968, p.l68.

3. Como demonstraram B. H. Rosenwein e L.K. Little em seu artigo:"Social meaning in the monastic and mendicant spiritualities", in Pastand Present; 63, 1974, pA-32. ,

4. Assim,em Raoul de Cambrai, ed. Le Glay,p.95,Raoul distribui a eucaristiaaos seus companheiros sob forma de ervas.

5. Encontram-se elementos interessantes a esse respeito nos volumesLesReligions populaires, ed. B. Lacroix e P. Boglioni, Quebec, .1972,p.50-74,e La Religion populaire (Paris, 17-19octobre 1>977),Paris, 1979 ("Colloquesinternationaux du CNRS";n\!'576).

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'"

Indice Onomásticoe de Grupos Religiosos

Abelardo, 45,100,170-173Abbon de Fleury (abade), 48Adalbéron (bispo de Laon) , 33Adalberto, santo, '57Adão,40Adson de Montier-en-Der

(monge),56Aelred de Rievaulx, 73, 89,151,

173Agnes de Praga (princesa), 151Agobardo (arcebispo e Lyon) , 24Agostinho, santo, 28, 42, 48, 58,

79,84,118,135,172A1berto Magno, 138albigenses (05),140A1cuíno, 14,24,29,51,73Alexandre II (papa), 61Alexandre III (papa), 68,97,

108-109A1exis, santo, 165Alvaro Pelayo, 156Amadour (Amator), santo, 163Amalaire, 17Ambróise Autpert, 18, 29Anacleto (an tipapa), 90Angela de Foligno, 134, 154-155Anônimo de York, 47Anselmo, santo, 41, 43, 73Anselmo de Havelberg, 85,107Ansolde de Maule, 49Anticristo, 56, 92, 141-142Antônio de Pádua, santo, 112,

1~8-19.9

antonitas (os), 112Aristóteles, 172arnaldistas (os), 101, 109Arnaldo (irmão menor), 156Arnaldo de Brescia, 95,101

Bartolorneu de Trento, 165Bataillon, Lj., 64nBatany,j.,64n"battuti" (confraria dos), 146Beatriz de Nazaré, 157Beatus de Liebana, 29Becquet.]., 123n, 158nbeghards (os) ver beguinosbeguinas (as), 109,153, 157, 177beguinos (os), 109, 144, 158Bell, R, 159nBenoit d'Ariane, 15,36Bento, são, 20, 35-36, 71, 73,79,

84,87,99,105,118-19Bernardo, são, 45,69, 73, 87,

89-90,95, 113, 114, 119, 140,167, 170-72, 174, 180

Bernard de Chartres, 69Bernard de Morlaas, 41Bernard de Septimanie, 19Bernard de Tiron, 79, 98Bernold de Constance, 117Bernon (abade), 36Bertho, M., 159nBlaise, são, 26Blanco, E.C., 123nBloch, Marc, 31, 36

193

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-194 A Espirituolidade na Idade Média Ocidental Índice Onomástico e de Grupos Religiosos 195

Boaventura, são, 132, 138,172-173, 176

Bolton, B., 159nBonifácio, são, 15,Bonifácio VilI (papa), 134Bruno, são, 68, 80-Bruno de Querfurt, 57Bultot, R, 41, 64n,123nBurchard (bispo de Worms) , 23,

46 'Bynum, C., 153-54

c~dulos (os),57, 78Carlos Magno, 12-14, 16,23,33carmelitas (os), 134câtaros (os), 10.2, 10.3-4, 126, 162,

183cartuxos (os), 80., 167Cecília, santa, 165Chélini,].,3o.nChenu, M.-D., 122n, 179nChrodegang,santo, 20.Cícero, 70.cisteraensês (os), 52, 71, 10.7, 113,

140,151,'153,155Clara de Assis, santa, 130.,133,151Clara de Montefalco, santa, 156Clara de Rimini, 156clarissas (as), 130., 151Clemente V (papa), 137Colomban, são, 15'Congar, Y, 3Gn, 159nConrad de Marburg, 148Constantino, 12Cristo;18,25,27, 30., 39, 4647,

49,53,56,58,60,62,73-74,76,80-82,87; 91-93, 95, 10.0.,10.2-3,107,111-12,114,117,119,120-21, 125, 12&.27, 132-34,136,141',145,148,150.,154-56,162-63, 165; 168, 169, 173-77,179,184

Dalarun.j., 159nDavi,13Delaruelle, E., 18, 30n, 124n, 159nDelphine de Puimichel, 165Demônio (0),39,79,184Dereine, Ch., 123n '

Dhuoda,19"disciplines;" (confraria dos), 146dominicanos (os) ver irmãos

pregadores (ordem dos)Domingos, são, 53,84,'126,

134-36,164Donkin, RA., 89Duby, G., 56, 65, 96, 159nDupront, A, 159n

Eckhart (mestre), 138-39, 157, 178Edwiges, santa, 147Egfrid,13Elias (irmão), 132EIisabeth de Spaalbeck, 155Elzéar de Sabran, 165Engelbaldd'Hérival,81 ' .Epíney-Burgard, G., 159nEric PlovperiníngIrei), 147Erlembaud, 61esfrirUuais (os), 133Estêvão V (papa),24Estêvão da Hungria, santo, 146Ethelwold, santo, 32Etiennede Muret, santo, 74, 79,

125,181Etienne d'Obazine, 78Etienne Harding, 87Eva, 99, 149, 174Ezequiel (profeta), 47

Facio,115Fasani, Rainier, 144filhas de Deus (as), 152Filipem, 136, 156Filipe Augusto, 139Filipe de Clairvaux, 155flagelantes (os), 52,144-46Focillon, 13Foreville, R, 123n ,Fossier, R, 64nFoulque (bispo), 134Foulque Nera, 55francíscanos (os) ve r irmãos menores

(ordem dos)Francisco de Assis, são, 110., 116,

125-34,136,151,164,170,181-83

Francisco de Sales, são, 111

Franz, A, 3o.nfraticelli (os), 133Frederico Il (imperador), 140Frugoni, A, 64n

Gabriel (arcanjo), 25Gayrard, Raymond, 115Genicot, L., 78,180Gênova,João de, 159nGérard (bispo de Cambrai) , 59Géraud d'Auríllac.são, 49-50., 59Gerhoh de Reíchersberg, 96, 97Gilbertde Sernpringham, são, 101Gilson, Etienne, 44Gobert d'Aspremont, 140Gottschalk (monge), 28grãmontanos (os), 74,80., 181Graciano (monge); 54, 97, 99Crêgoíre, R, 122nGregório Vil (papa), 46, 57-59,

91,68,71,90,94,97Gregório ]X (papa), 152Gregório Magno, são, 28, 47Guibert de Nogent (abade), 67Guiberto (antipapa), 90.Guigues o Velho, 80-81Cuilherme de Aquitânia, 36Guilherme de Hirsau, 90., 93Cuilherme de Volpiano (abade),

40,57Cuilherme o Conquistador, 61Guillaume de Champeaux, 175Guillaume de Saint-Thierry, 89,

171,174Guillaume Peyrault, 136

Hadewijch d'Anvers (beguina),157,178

Halitgaíre (bispo de Cambrai), 21Heitz, C., 300Heloísa, 45, 100.Henri de Lausanne (monge), 100.,

124nHenri de Suse, 121Henrique IV (imperador), 59"Hildebrando, ver GregórioVIIHildegarda de Bingen, santa, 147,

149,173

Hincmar (arcebispo de Reims),19,23,28-29

Homebon de Crérnone, santo,108, 110, 115

Honorius Augustodunensis, 106,108,164

hospitaleiros de santo Antonio (os) verontonitas

Jwspitaleiros de são João deJerusalém(ordem militar), 119, 140

hospitaleiros de são Lâzaro (os), 112hospitaleiros do Espirito Santo (os j,

112Hugo, são, 40Hugues de Fouilloy, 86Hugues de Saint-Victor, 170.Humbert de Moyemoutier, 58Huotde Longchainp, M.;1590humilhados (os), 10.8, 123n

Inocêncio III (papa), 68,108,109;,119,127,164

irmãos da Colomba (os) verhospitaleiros do Espirito Santo

irmãos e irmãs do livre espirito (os),158

irmãos menores (ordem dos), 127-29,132,134-36,144,151,153

irmãos Pontífices (os), 112irmãos pregadores (ordem dos),

134-36,144,153,177Irnerius, 70Isabel da Hungria, santa, 140.,

147,164-65

jacopone, da Todi, 134Jacques de Vitry (bispo), 121,

1230, 133, 147, 152Jean de Fécamp, 41Jean de Mailly, 165Jean de Matha, são, 112Jean de Montrnirail, 139-40Jerônimo, são, 122nJesus, 17, 47, 73-74, 80-81,131,

134,145,163,177;vertambémCristo

Já,171João Batista, são, 163João, são, 42, 110

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196 A.Espiritualidade na Idade Média Ocidental indice Onomástico e de Grupos Religiosos 197

João Crisóstomo, são, 105, 114João Gualberto, são, 57Joaquim de Flore, 89Joinville, 141Jonas de Orléans, 30nJosias,13Jossua,].P.,64nJuette d'Huy, 121Julienne de Mont-Comillon, 136Jungmann,JA.,30n

Lactâncio, 70Lambert "li Beges" (padre), 121Lamprechet de Ratisbonne, 149Lanfranc,57"laudesi" (confraria MS), 132Laurent e Orléans, 136Le Bras, G., 22, 30nLedercq,j., 39,77, 123nLefêvre, Y., 179nLe Goff,]., 107, 152, 179nLeonardi, C:, 9, 30nLitde, LK., 97,\186Lopez, RS., 65Lourenço, são, 26Luís IX, dito São Luís, 125, 136,

140,147Luís de Turíngia, 140Luís o Piedoso, 19Lutgarde de Tongres, 154

Macróbio, 70Manselli, R., 159nMap, Walter, 98Margarida da Escócia, santa, 148Margarida da Hungria (princesa),

154Margarida de Cortona, santa, 156Marguerite d'Ypres, 136Marguerite Porête, 157, 177, 178Maria, ver Virgem (a)Maria (irmã de Marta), 107Maria Egipcíaca, santa, 150Maria Madalena, santa, 150Marie d'Oignies, 121, 147, 176Marta, 107Martinho, são, 11, 26Mechtilde de Magdeburg, 157Mens, A., 124n

Miguel (arcanjo), 25Miguel, são, 26milícia de são Tiago, 109Mollat, M., 122nMondésert, C., 30nMuno de Zamora, 144

porta-espadas (os), 140premontranos (os), 85, 150Prodo,138Prudêncio, 51Pseudo-Dionísio o Areopagita,

138, 166 .

Raul de Carnbrai, 186nRaul Glaber (monge), 52, 55-56Raul o Ardente, 114Rafael (arcanjo), 25Raimundo (dito "Palmério"), 115FUcarda, santa, 27Ricardo de Saint-Victor, 175FUché, P., 30nRobert d'Arbrissel, 79, 94, 98,

100-1,115,149Robert de Molesme, 87Robert de Thorigny, 163Robert Guiscard, 49Rodolfo de Suábia, 123nRomualdo, são, 57, 78, 81Rosenwein, B.H., 64n, 186nRougemont, Denis de, 70Rousset, P., 64nRupen de Deutz (abade), 66-67Rusticus (monge), 105

Salomão, 13Sa~,52,63, 102, 182Saul,13Simão, são, 119Smaragde de Saint-Mihiel, 28, 51Strabon, Walafrid, 29Suger (abade), 166, 168

Taís, santa, 150Tanchelm, 100templários (05),119-20,140terceiros (os), 153

Nicolau I (papa), 24Nicolau IV (papa), 144Nicolau de Estrasburgo, 138Nicolau de Villers, 52Norberto, são, 74, 83, 93,98, 100-1

Odeline,49Odilon (abade), 36,45Odon de Cluny, 46, 49, 59Odon de Tournai, 181Olavo, são, 146Ordens mendicantes (as), 143-44,.·159n

Orderic Vital, 49

Pacífico (irmão), 131padres do deserto (os), 71, 78padres gregos (os), 105Panofsky, E., 168Pascoal II (papa), 95pastores (os), 141patarinos (os), 46, 51, 62, 91Paulo,são, 13, 105, 171Pedro,são,90, 170Pedro Damião, são, 40, 53, 81, 99,

180Pedro o Eremita, 79, 92, 94Pedro °Venerável (abade), 45,

86, 105Pelágio (monge), 48Pelágia, santa, 150penitentes (confrarias MS), 14344,

153, 155Pepino,13Pierre de Craon, 78Pierre deJean Olieu, 141Pierre de Villers, 52Platão,172pobres damas (as) ver clarissaspobres de Lomhardia (os), ver

arnaldistaspobres de Lyon (os), ver ualdensesPons de Melgueíl, 86

teutônicos (os), 140Thibaut (conde). 113Thicrry de Freiberg, 138Thomas Becket, são (arcebispo de

Canterbury), 164Thomas de Cantimpré, 136Tiago, dito de Voragine, 165Tomás de Aquino, são, 137-38, 172Torrell,].P., 159ntrinitârios (os), 112Turgot de Durham, 148

Ubertino de Casale, 134, 156Urbano II (papa), 62, 82, 86, 90-91Urbano IV (papa), 136-37

ualdenses (os), 102, no, 126Valdes,109Valeriano, são, 165Vauchez, A., 179nVerdiana, 152Vicaire, M.H., 122n, 159nVincent de Beauvais, 136.Violante, C., 66, 122nVirgem (a), 26, 73,134, 144, 163,

168,174VirgI1io,70Vital de Savigny, 100tntorinos (os), 172, 176Vogel, C., 30nVregille, B. de, 30n

Wamba,13Wederico (monge), 90

Yves, são, 86Yves de Chartres, 68

Zum Brunn, E., 159n

Page 100: VAUCHEZ,_ André _- A_ Espiritualidade_ na_ Idade_ Média_ Ocidental

~lndice de Lugares

Affiighem, 74-75Aix-Ia-Chapelle, 72Alemanha, 36, 66, 116; sul da, 90,

117Alpes, 147Ancona (Marche d'), 131Anjou,112Antioquia, 179Areuo, 132Arras, 50, 54Arrouaise,83,85Artois,153Ásia Menor, 91~is, 110, 126-33, 135Aulne,119Autun, 73Avignon,47Aywêres, 154

Baviera, 150Bélgica, 120Bénévent (ducado de), 33Bizâncio, 17Boêmia, 151Bolonha, 70,131,134Borgonha, 32, 60Bósnia, 102Bourges,61Brabante, 74,108,136,140,149,

153,176Brindisi,140Brogne (abadia de), 32Bruges,74Buda, 154Bulgária, 102

Calábria, 68Calvário, 145, 155Camaldoli, 80Cambrai, 21, 59, 157Canterbi,uy, 164Castelfiorentino, 152 .Catalunha, 33,144Champagne, 50, 113, 136Charroux, 60Chartres, 68-69, 168Cister (abadia de), 8, 86-90, 151,

167Clairvaux (abadia de), 107, 119,

167,172,174,177Clermont, 62, 91Cluny (abadia de), 8, 32, 35-41,

44-46,49,59,61,71,73,77,81,86,105,167

Colmar, 138Colônia, 74, 102, 138, 157Constantinopla, 59Coúlmis, 119Cremona, 115

Dinamarca, 147Dunferrnline (abadia de), 148

Escaut,65Espanha, 11, 19, 109, 140Estrasburgo, 138, 168Europa, 70,85,168

Farfa (abadia de), 33Fécamp (abadia de), 57Flandres, 33, 90, 108, 136, 153Florença, 51,91

198

Índice de Lugares 199

Floresta Negra, 117Fonte Avellana (abadia de), 53Fontevrault (abadia de), 80França,27,44,57,69,79,83,94,

98, 103, 116, 134, 140, 142,147,150-51,156

Fruttuaria (abadia de), 32Fulda (abadia de), 33

Gália, 11, 15Gênova, 165Germânia,12Germigny-<ies-Prés (igreja de), 12Cone (abadia de), 32Grande Cartuxa (abadia da), 80Grandmont, 74, 118, 125Greccio,134Grenoble, 80

Hainaut, 119Hippone, 83Hirsau, 117-19Hungria, 146

Inglaterra, 13, 32, 36, 43,61,101,151

Itália, 29,32, 36, 57, 65, 70, 80, 83,98,103,107,115,143,146,156,182; norte da, 116; sul da,78

Jerusalém, 12,29,41,53,56,71,91-93, 112, 141, 161

Li Chaise-Dieu, 79LlnguedoC'60' 103, 134, 141,144Laon, 67, 83L'Artige, 83, 118Latrão (concilio de), 69,.119Li Verna, 133Le Bec (abadia de), 57liêge, 136, 153, 176Limousin, 79, 83, 118Lornbardia, 5.0-51,108,109,112Longpont (abadia de), 140Lorena, 32, 81Lotaríngia, 57, 79Louvain,75Lyon, 102, 109

Mainz.60

Mansura, 140Marburg, 148, 165Marselha, 32, 150Milão, 32, 46, 61, 91, 102, 108Moissac (abadia de), 51Monforte, 50Monte Cassino (abadia de), 32Monte das Oliveiras, 92Montpellier, 112

Nápoles, 137Narbonne, 60Nivelles, 121Normandia, 33Noruega, 146

Obazine (abadia de), 118Ocidente, 11-12, 21, 34, 35, 46,

47,50-51,53,62,65,67-68,69,75,78,84,89,91,93,101,112,150,163-64,179,181

Oignies-sur-Sambre, 121, 177Oriente, 56, 62, 68, 78, 91, 113, ,

135, 141, 163Ostia,121

Países Baixos, 109, 136, 151,156,177

Paráclito (abadia do), 100Paris,134,137,157,175Perugia, 133, 144, 152Picardia, 83 ' .Plaisance, 115PÓ,115Poitou,60Prémontré (abadia de), 73, 83-84,

85,93Prouil1e (convento de), 103Provença,83

Quierzy,17

Reims, 19, 23, 29, 80Renânia, 153, 177Reno, 136, 138, 151Rocarnadour.TôêRoncevaux (igreja de), 83Roma, 17,25-26,53,59, 67, 91,

101,111,151,161

Saint-Arnand (abadia de), 16

Page 101: VAUCHEZ,_ André _- A_ Espiritualidade_ na_ Idade_ Média_ Ocidental

-..)

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I200 .AEsPiritualidade na Idade Média Ocidental

Saint-Benoit-sur-Loire (abadia Sens,68de),48,86 Siegburg, 32

Saint-Denis (abadia de), 33, 77, Silésia, 147166, 168 Soissons, 102Saínt-Call (abadia de), 16,32

) • Saint-Médard de Soissons (abadia Tavant,51de), 19 Tebaida,78

Saint-Riquier (abadia de), 32, 37 Terra Santa, 92,113,119,133,Saint-Ruf (igreja de), 47, 123n 140, 161J

I I Saint-Sernin (igreja de), 115 Teutônia, 138Saint-Vincent au Volturne (abadia Toledo, 13, 61

de), 28 Tõss (convento de), 138) • Sainte-Baume, 150 Toulouse, 102, 115, 134

ISainte-Fov de Conques (abadia Tours, 97

/

) de),161Turíngia, 148, 165

) Salisbury, 168Trento,86San Frediano de Lucques (igreja), Triburv-âl

) 47Troyes,·137Santo Sepulcro, 92, 119Tulle,1,63

: .; São Bernardo (convento doTúnis,141Grande),83Turim, 32São Blaise, 32

São João de Latrão, 47 Úmbria,156São Miguel do Gargano, 161Unterlinden (convento de), 138) I, São Nicolau de Bari (basílica de),

161 Valencíennes, 157São Pedro (igreja), 26 Vallombrosa(abadia de), 57, 8O,São Rufino (catedral), 130 118São Tiago de Compostela, 53, 68, Varazze ,·165

I 152, 161 Ver, 13)São Vítor (escola de), 175 Vézelay; 73

) São Vítor de Marselha (abadia Viena, !57de),32Villers (abadia de), 140i I Savigny,79Virtudes, 51. Saxe, 23

..~) J Seine,65 Worms, 23, 46.\

)

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