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FRONTEIRAS, VIOLÊNCIA E OTRABALHO DO TEMPO:alguns temas wittgensteinianos*

Veena Das

  RBCS V ol. 14 no 40 junho/ 99

Muitos trabalhos recentes acerca da violênciasugerem que, quando se contempla a violência,atinge-se uma espécie de limite da capacidade derepresentar. Em geral apresentados  sob o signo do“horror”, eles nos fazem pensar como seres huma-

nos podem ter sido capazes de atos tão hediondos,em tão grande escala, como em Ruanda ou na ex-Iugoslávia. A violência da Partição da Índia, em1947, fornece um tropo de horror comparável nahistoriografia da Índia. Parece que entendemos taisatos como chocantes e inimagináveis apenas quan-do temos uma idéia formada acerca de como osujeito humano deva ser construído. Essas descri-ções servem, assim, para reafirmar as fronteirasentre civilizado e selvagem, e também permitemque nossa imagem do sujeito humano permaneça

intacta. Em contraste com essa plenitude de fala,gostaria de apresentar um retrato de pobreza,especialmente de pobreza de palavras, e refletiracerca dessa pobreza como uma virtude. Pode-se

dizer da Antropologia o que Lefebvre (1968) disseda Filosofia: “O papel do pensamento filosófico éeliminar explicações prematuras, posições limita-doras que possam nos impedir de penetrar eapreender o conteúdo formidável de nosso ser.”

Essa imagem da contenção também lembra, paramim, a concepção de Stanley Cavell (1989) daFilosofia, como a que não fala primeiro e cujavirtude reside na capacidade de resposta: incansá-vel, alerta, quando outros já adormeceram.

A imagem do estado de alerta na ocorrênciada violência, da capacidade de resposta onde querque ocorra na teia da vida, nos leva a perguntar seos atos de violência são transparentes. Como sepode expressar a relação entre a possibilidade e aocorrência, e mais ainda, entre o factual e o

eventual, se a violência, quando acontece de mododramático, encerra uma relação com o que estáacontecendo de forma repetida e não-melodramá-tica, como dizê-lo, não numa narrativa única, masna forma de um texto que é constantemente revisa-do, revisto e acrescido de comentários. Pode-se,então, pensar no texto não como algo acabado,mas em processo de produção. Além da imagem dotexto, podemos também falar do envolvimento nodia-a-dia como um envolvimento com a criação de

* Conferência proferida no XXII Encontro Anual daAnpocs, 27-31 de outubro de 1998, Caxambu, MG.

Tradução de Beatriz Perrone-Moisés.

Revisão técnica de Mariza Peirano.

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fronteiras em diversas regiões do self  e da sociabi-lidade. O trabalho do tempo, não sua imagem ourepresentação, é o que me interessa aqui, aodescrever tais processos.

O contexto etnográfico

Quando realizei meu trabalho de campo en-tre famílias urbanas punjabi, das quais algumastinham sido transferidas após a Partição da Índia,todas tinham de lidar com os fatos da Partição deum modo ou de outro. Mas a violência que sofre-ram era calada. Como descrevi em vários traba-lhos anteriores (Das, 1991, 1995 e 1996), os gran-des eventos políticos ecoavam no registro familiar

por meio de um enfrentamento repetido com oque chamei de “conhecimento venenoso”. Eraatravés do ato de testemunhar que esse conheci-mento venenoso era transfigurado no reconheci-mento do ser do outro, constituindo assim umconhecer pelo sofrimento. Já que minha formula-ção deve algo à análise de Martha Nussbaum daética helenista, apresento o raciocínio com suaspalavras:

Existe uma forma de conhecimento que funciona

por meio do sofrimento, porque o sofrimento éo reconhecimento apropriado do modo como a

vida humana, nesses casos, é. [...] perceber um

amor ou uma tragédia pelo intelecto não basta

para ter disso um verdadeiro conhecimento hu-

mano. Agamenon sabe que Ifigênia é sua filha o

tempo todo, se considerarmos que ele possui as

crenças apropriadas, é capaz de responder corre-

tamente a várias perguntas acerca dela etc. Mas

como em suas emoções, em sua imaginação e

em seu comportamento ele não reconhece o

laço, incita-nos a fazer parte do Coro, dizendoque seu estado é menos de conhecimento do

que de ilusão. Ele não sabe realmente que ela é

sua filha. Falta um pedaço de compreensão real.

(Nussbaum, 1986, p. 46)

Contudo, a violência não é atualizada apenasno registro familiar, mas também nos grandeseventos da história política, no caráter carnavalescodas revoltas populares, e na crua brutalidade dos

assassinatos e estupros. Creio que apenas a domes-ticação da violência pode permitir o tipo de apazi-guamento que descrevi anteriormente. Lembro-medo caso de Asha, uma das protagonistas de dois de

meus trabalhos recentes (Das, 1992 e 1995). Tendoenviuvado jovem, no seu caso, o potencial paradesordens do desejo surgiu dentro da família,depois das rupturas brutais da Partição. Envolveu-se em várias traições (inclusive algumas de que elamesma se achava suspeita), quebrando as regrascorrentes da viuvez mas recusando-se a viver emmá-fé, movendo-se através de suas intrincadasrelações com as mulheres de sua rede familiar,quase forçando os outros a reconhecerem a singu-laridade de seu ser. A via de saída do “conhecimen-

to venenoso” não foi uma ascensão para a santida-de ou a renúncia; foi uma queda em direção a umcotidiano diferente. “Todos os dias eu tentava serútil […] Estava dividida entre a lealdade a meumarido morto, sua irmã, que eu amara muito, e osnovos tipos de necessidade que pareciam brotar dapossibilidade de uma nova relação.” Apesar derepudiada tanto por sua família de origem comopor sua família conjugal, por ter quebrado o tabu decasta alta quanto a um segundo casamento, elacontinuou tentando refazer seus laços rompidos.

Como notei noutro trabalho:

Uma vez reconhecido o seu ser sexual, nos

modos novos como passaram a vê-la seus afins

masculinos, ela teve de fazer uma escolha. Ou

assumia uma relação clandestina e se envolvia na

“má-fé” na qual Bourdieu situa a base da política

familiar, ou aceitava o opróbio público e até

colocava em risco a honra da família, por uma

nova definição de si mesma que prometia uma

certa integridade, embora inviabilizasse os proje-

tos de vida que tinha formulado anteriormentepara si mesma. No processo dessa decisão, o self 

pode ter-se fragmentado radicalmente e se torna-

do fugitivo, mas creio que o que descrevi é uma

espécie de operação complexa que se torna

evidente, não necessariamente no momento da

violência, mas nos anos de trabalho paciente ao

longo dos quais Asha e a irmã de seu primeiro

marido reataram os laços rompidos. (Das, 1995,

p. 177)

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FRONTEIRAS, VIOLÊNCIA E O TRABALHO DO TEMPO 33

Nas famílias punjabi, histórias de discórdia etraição, bem como narrativas de violência entreparentes, têm de ser cuidadosamente manejadaspor ocasião de casamentos, funerais e reuniões

familiares — mas o silêncio envolve a violênciafeita contra e pelas pessoas no contexto da Parti-ção. Não que as pessoas se recusem a contar,quando perguntadas, mas nenhum dos aspectos da performance ou esforços pelo controle da história,que caracterizam a narração de histórias na vidacotidiana, está presente. Ao contrário, os relatos deviolência da Partição são como slides congelados.Nas conversas diárias da geração que deixou Laho-re, referências aos  puris (pão frito) e lassi (bebidade iogurte) de lá, aos bordados  zari, à suavidade e

ao frescor dos vegetais, às contribuições do LahoreGovernment College à vida intelectual, às comprasno Bazar Anar Kali costumavam ser feitas constan-temente. Mas nenhuma referência espontânea àsatrocidades praticadas, testemunhadas ou sofridas.Qual seria a relação entre o elaborado controle eencenação de narrativas que envolvem violência,traição e desconfiança no interior da rede doparentesco e a pesada cortina de silêncio indicandouma presença oculta?

Limiares precários

Escrevendo acerca de violência e narrativano Líbano, Michael Gilsenan (1996, p. 64) afirmaque “a retórica de que a vida era feita de encena-ção calculada, elaboração estética da forma, artifí-cio e mentiras descaradas, por detrás das quais épreciso buscar os verdadeiros interesses e objeti-vos dos outros, era comum a todos. Nesse senti-do, a violência que não era coerção física, mas deum tipo mais difuso e parte integrante dos relatos

de relações humanas, era comum a todos.” Ummodo semelhante de definir as relações humanasimpregna os relatos de masculinidade nas narrati-vas de brigas entre os Jat Sikhs que meu colegaR.S. Bajwa e eu descrevemos (Das e Bajwa,1993). As famílias hindus do Punjabi que estudeiconsideravam os Jat Sikhs como simplesmente“esquentados”. Suas próprias noções de masculi-nidade consistiam no manejo prudente das ocasi-ões públicas, mediante um comportamento conti-

do. Contudo, a idéia de que a vida era umaencenação calculada, e de que a honra (izzat )tinha de ser preservada, por meio de um especialcuidado com narrativas acerca da própria família

em locais públicos, era, de fato, parte da retóricada vida. “  Duniya k i kayegi?” — o que dirão osoutros? —, “logan di z aban k is ne pak adi hai?” —quem está na língua do povo? —, “apni izzat 

apni hath hondi hai” — a honra de cada um estáem suas próprias mãos —, todas essas exortaçõesque temperam as conversas cotidianas se referemnão apenas a um comportamento culturalmenteapropriado, mas também ao controle sobre a pró-pria narrativa. Contudo, é tal a incerteza das rela-ções no seio das famílias e no interior de grupos

de parentesco que parece  sólido,  quando visto defora, que sempre existe um equilíbrio precário emtorno de questões de honra e vergonha.

Em 1974, assisti a um grande casamentonuma dessas famílias. O pai do noivo tinha-serecuperado do brutal golpe econômico que sofreraem Lahore, e estabelecera um próspero negócioem Delhi. Todos os casamentos são uma ocasião degrande tensão para a família da noiva, que temeproblemas imprevistos. A família do noivo pode,por exemplo, aparecer repentinamente com a exi-

gência de um dote mais alto, ou uma morte súbitapode provocar o adiamento, quem sabe o cancela-mento, do matrimônio; centenas de outros obstácu-los (badhas) que ninguém poderia ter imaginadopodem surgir. Nesse caso, a tensão entre os paren-tes próximos da noiva e do noivo estava num nívelrealmente alto, embora ocultada dos convidados.Quero contar a história dessa tensão, movendo-mepara frente e para trás.

A mãe do noivo (Manjit é o nome que lhe deiem textos anteriores) tinha sido raptada durante a

Partição e posteriormente resgatada pelo exércitoindiano. Seus pais morreram durante os tumultos.*

Ela veio viver com o irmão de sua mãe (mama)que, temendo não ser capaz de assumir todas as

* Nota da revisão — Veena Das aborda o drama do raptode mulheres, por hindus e muçulmanos, na época daPartição da Índia em seu livro Critical events. A n

  A nthropological perspective on contemporary India,Delhi, Oxford University Press, 1995.

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novas responsabilidades que haviam caído sobreseus ombros, logo arranjou um casamento paraManjit, com um homem muito mais velho, comquem ele tinha um parentesco distante. Tais arran-

  jos eram tolerados após a Partição, tanto em funçãoda ruína econômica (uma guirlanda de flores é tudoo que a moça levava ao se casar) como devido àpercepção de um infortúnio compartilhado, o nãoter sido capaz de proteger a honra das jovens.Descrevi noutro trabalho os vários tipos de estraté-gia utilizados pelas famílias para enfrentar essainfelicidade coletiva (Das, 1976). Manjit não foirepudiada por sua família, mas sua história tampou-co era conhecida por muitos. A comunidade ofere-cia seu silêncio como proteção.

Contudo, após o casamento, ela enfrentoudificuldade após dificuldade. Seu marido se con-sumia de suspeitas de que Manjit tivesse sidoviolentada, de que ele tivesse sido usado, casan-do-se com uma moça desonrada, que talvez elativesse tido um amante muçulmano. Nada dissoera verbalizado, exceto em “indiretas” (taunts),1

quando estava bêbado, ou durante discussõesentre Manjit e a mãe de seu marido. Chupchap

sundi gayi, sahendi gayi — literalmente, “eu iaouvindo em silêncio, ia agüentando” —, é como

Manjit descrevia sua posição, alongando a primei-ra palavra, o que dava ao passado um sentido decontínuo trabalho de escuta.

Eu costurei a língua, não protestava nem mesmo

quando eles diziam coisas boas-más (bura bhala

k ya)2 sobre meus pais e meu mama (irmão da

mãe). Mas uma coisa é certa, ele nunca levantou

as mãos para mim. Minha saas (mãe do marido)

disse que eu era descabidamente orgulhosa; o que

há para se orgulhar na vida de uma mulher, ela

dizia; a mulher come os restos do marido.3 “Manji,asi tan roti k hande haan”. Mãe, mas comemos

pão, eu disse. Ela ficou tão brava que não falou

comigo durante dois dias.

Esse breve interlúdio mostra a grande batalhaem torno das palavras que ocorre no interior dasfamílias, todos os dias. Usando o plural “nós”,Manjit conseguira sugerir a diferença entre o tipode comunidade de mulheres ao qual pertencia,

mulheres que comiam pão, e o tipo de mulher queera a mãe de seu marido, que afirmava que asmulheres comiam restos. A imagem cultural dasubordinação feminina é aqui infletida segundo

vários eixos. Não se trata de os desprovidos depoder possuírem roteiros ocultos, como sugereScott (1990), mas do perigo, para a autoridade dospoderosos, da humilhação de não saber comocontrolar as palavras.

A raiva contra Manjit foi de algum modocanalizada para seu primeiro filho, que o marido ea sogra consideravam parecido demais com a mãe;o segundo filho sofria de síndrome de Down. Osmodos diferentes como ela expressava seu amorpelos dois filhos não podem ser descritos aqui.

Basta dizer que o segundo filho nunca sofreunenhuma agressão por parte do pai, apenas indife-rença. O marido dirigia sua raiva contra o filho maisvelho, de todos os modos possíveis. “Tudo era umadificuldade”, disse Manjit. Se ele se sentava paraestudar, o pai o mandava fazer outra coisa. Quandoprecisava de dinheiro para comprar livros, Manjittinha de roubar do marido para isso. De qualquermodo, graças à determinação do rapaz e ao apoiode sua mãe, ele conseguiu concluir o curso supe-rior. Nesse momento, o pai quis que ele viesse

trabalhar em seu negócio, “sentar na loja”. O rapazsimplesmente recusou. Ele nunca enfrentou o paiabertamente, mas disse à mãe que preferia mendi-gar nas ruas e passar fome a ficar na loja do pai.

Como o filho tinha adquirido a reputação deboa pessoa, e o negócio da família ia de vento empopa, começaram a chover ofertas de casamento. Opai queria que o rapaz se casasse com uma moça deuma casa rica. Ele queria uma kunba (famíliaextensa ou grupo de afins) cujos homens fossemcomo ele, que bebessem, jogassem, freqüentassem

mulheres. O rapaz, por sua vez, havia dito clara-mente que sua única condição para o casamento eraque a moça tivesse estudo. O impasse permaneceusem solução por algum tempo, até que foramprocurados por um coronel aposentado cuja filhatinha concluído o curso superior. Era uma família dotipo que agradava ao filho de Manjit, mas tinhammuito pouco dinheiro para oferecer como dote. Nopapel de intermediário, o filho do irmão da mãe deManjit marcou um encontro entre os pais da moça,

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Manjit e seu mama (tio materno). “Nós não escon-demos deles a verdadeira situação, o modo como ochefe da família estava se comportando”, Manjit mecontou, “mas o pai da moça disse — é o filho que

nos interessa (sanu tan ji munde nal matlab hai)”.Mas como obter o consentimento do pai do rapaz?

Depois de muitos debates, o assunto foi toca-do pelo mama de Manjit, na presença de algunsparentes mais velhos do pai recalcitrante. Convida-ram-me a participar, como uma “estranha” de bomsenso. “Afinal, não podemos recusar todas as ofer-tas. As pessoas vão começar a pensar que há algoerrado na família”, era o refrão da discussão. Omarido de Manjit estava sentado numa cadeira, numcanto. Manjit estava sentada no chão, com a cabeça

coberta, sem levantar o olhar para quem quer quefosse. O marido parecia amarrado. Todos espera-vam que ele fosse se enfurecer e gritar. Mas eleapenas concordou balançando a cabeça, com um arsoturno, e disse “  jo twadimarzi”, “como queiram”.

“Você não tem de fazer nada, vamos cuidar de

todos os preparativos”, declarou o mama de

Manjit.

“Sim, como queiram.”

“Mas  ele tem de dar sua palavra de que vai

comparecer à cerimônia como pai do noivo, quenão vai nos envergonhar”, exigiu Manjit, suspei-

tando da capitulação sem nenhuma resistência

por parte do marido.

Os preparativos começaram. Então, a duassemanas do evento, o marido de Manjit negouveementemente que tivesse consentido. “Foi sóteatro”, disse. Aí Manjit e o filho perderam apaciência e declararam que o casamento acontece-ria de qualquer maneira. Se ele, como pai, se

recusasse a comparecer, eles não o envergonhari-am fazendo um grande casamento, mas iriam a umGurdwara (templo Sikh) ou a um sacerdote AryaSamaj e combinariam uma cerimônia religiosa sim-ples. Quando o marido viu quão decididos esta-vam, cedeu mais uma vez. Mas, dessa vez, oconsentimento soturno deu lugar a um inexplicávelentusiasmo. O casamento seria o mais grandioso detodo o grupo de parentes. O dinheiro corria comoágua, todos diziam. Manjit diz que seu coração

tremia. “O que isso tudo queria dizer?” Ela temiauma nova catástrofe a qualquer momento. Mas ocasamento foi realizado em paz.

Um mês depois da cerimônia de casamento,

os problemas começaram. Sardar Ji,4 o marido deManjit, insistia que a noiva fosse mandada embora.Não concordei com o casamento, dizia, aquilo foipuro teatro. Todos os que tinham participado danegociação do acordo foram convocados, inclusiveeu. Ele estava inflexível. Mas Manjit também. Anoiva era filha de alguém, irmã de alguém, ele nãopodia simplesmente pisar na honra deles assim.Diriam que a noiva  tinha sido mandada para casaporque não tinha bom caráter. Quem sabe? Inimi-gos poderiam dizer que o rapaz era impotente,

incapaz de consumar o casamento. Sardar Ji tinhapensado nas conseqüências? Ele simplesmente riu.Tinha feito uma encenação, era teatro, não tinhampercebido? O que mais podia significar trazer anoiva para casa não num carro decorado mas num palaki (palanquim), sobre os ombros de quatrok ahars (um grupo de casta com a função ritual decarregar o palanquim que leva a noiva nos ombros,costume raramente observado em contextos urba-nos hoje em dia). Algum casamento é assim atual-mente? Não, era uma cena montada por ele, literal-

mente tirada de um filme hindi, mas o filme tinhaacabado, e a atriz tinha de voltar para casa.

Manjit se recusou a mandar a moça para acasa dos pais. Aí começou a batalha cotidiana paraproteger a noiva da ira do pai de seu marido. Ele seembebedava, chamava-a ao seu quarto e a surrava.Algumas vezes os vizinhos a tinham visto saircorrendo de casa, num estado deplorável. Começa-vam a correr boatos de que ele a desejava. Certavez, estava na casa deles e vi o que estava aconte-cendo. Ameaçei chamar a polícia, e ele me amea-

çou de volta. Manjit implorou por paz. A moçasimplesmente se recusou a falar.

Às vezes um vizinho gentil convidava a jovema entrar, quando era óbvio que ela estava parada,na rua, esperando que os abusos da bebedeiraparassem. Nessas ocasiões, uma farsa elaborada emrelação ao que se ouvia e não se ouvia era encena-da, enquanto o vizinho oferecia chá, a jovemeducadamente declinava, conversas continuavamsem interrupções, tudo para encobrir os evidentes

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e pesados insultos que continuavam jorrando paraque todos ouvissem. Finalmente, com o consenti-mento e o apoio de Manjit, contrariando todas asnormas culturais da família conjunta, o filho e sua

mulher se instalaram numa casa própria.Durante cinco anos, Manjit ficou separada do

filho, da nora e dos dois netos. Encontravam-se emsegredo. Quando o marido de Manjit ficou sabendodesses encontros começou a insultar Manjit, e àsvezes até lhe dava um tapa, coisa que nunca tinhafeito antes. Manjit era como pedra. Nenhuma rea-ção transparecia. Ela não o insultava, nem à suafamília. “Eu não podia suportar que ele levantassea mão para a filha de outra pessoa, mas quanto amim, tinha me acostumado a agüentar. Fazia meu

 puja e  path regularmente, servia-o tanto quantopodia, mas nunca iria sentar com ele e conversar.”

Não entrarei em todos os detalhes ulterioresda história. Com o tempo, o filho de Manjit ficoumais influente, conforme prosperava seu próprionegócio. Seu pai foi ficando cada vez mais fraco.Muita bebida, alimentação desregrada e “algo queparecia roê-lo por dentro”, como disse um de meusinformantes, predispuseram-no a várias doençascrônicas. Suas forças acabavam. Depois de seisanos, o filho de Manjit retornou à casa da família

com sua mulher e filhos, e as rédeas da casa foramclaramente transferidas para suas mãos. Naquelaaltura, o pai tinha perdido a visão, seus rinsfalhavam e ele estava preso ao leito.

Não se pode dizer que nenhuma vingançatenha sido aplicada ao pai. Cuidavam de seuconforto, mas ninguém na casa falava com ele, anão ser o estritamente necessário. Manjit encontrougrande alegria nos netos. Pensando em sua vida,ela não acha que tenha de que se queixar. Conti-nuei a visitá-la ao longo dos anos. “Você sabe de

tudo”, ela dizia. “Foi um tempo ruim, mas passou,com a graça de Deus. Nunca tive de suportarqualquer desonra por parte de meu filho ou de suaesposa.”

Um esquete ou fragmento

A paciência de Manjit para encobrir o tem-po, de modo a selecionar determinados momen-tos, quando podia impor sua visão da verdade de

sua família, aproxima  sua atitude daquela de umcaçador à espreita, mais do que de uma rebelde.Suas conversas sempre eram temperadas comafirmações acerca do tempo. V akat    di  mar   hai,

vak at   ne  bade  sitam  dhaye, vak at   k adna  si, ouseja, “é assim que o tempo ataca”, “o tempodespejou muitas crueldades”, “era preciso fazer otempo passar” — a visão do tempo, em todasessas frases, era a de um carrasco cruel. Comomulher, ela tinha o dever de mostrar paciência(sabar ). Alguém poderia imaginá-la passiva, sim-plesmente esperando que as coisas mudassem.Contudo, percebo uma luta imensa para escaparda posição narrativa que lhe é atribuída por ato-res mais poderosos — seu marido e sua sogra. Já

seu marido, apesar de agressivo e violento, pare-ce não ter conseguido ser realmente o “autor” desua história. É essa a leitura que se tem da situa-ção, quando se assume o ponto de vista dosvários atores dentro da rede de parentesco. Anarrativa, contudo, não é algo que se revele nummovimento linear e preciso. É, antes, um textorabiscado, reescrito diversas vezes. Além disso, seno momento da pesquisa ocorreu uma superposi-ção das vozes narrativas de Manjit, de seu filho eda esposa deste, não se pode ter certeza de que a

violência cometida contra a jovem noiva perma-neceria calada. A vida punjabi estava cheia deincidentes nos quais o poder de narrativas quehaviam permanecido inertes nos tempos dos paisadquiria vida e iniciava  um novo ciclo de injúrias,violência, vingança, no tempo dos filhos.

Acredito, contudo, que o que descrevi nocaso de Manjit é um retrato de uma cultura e umaforma de vida, criada nos conflitos de gerações e desexos. Fica evidente a existência de formas narrati-vas, simbólicas e sociais, nas quais se tece essa

violência difusa. No processo de sua articulação, àsvezes de sua prática, a violência parece definir oscontornos dentro dos quais ocorre a experiência deuma forma de vida enquanto forma de vida huma-na. “É possível manter-se firme quando o chefe dacasa se recusa a ocupar o lugar de chefe da famíliaque está negociando um casamento?” “Deve-setolerar em silêncio que uma moça de outra família,casada com um dos nossos, seja surrada?” “Devodeixar meu filho partir, em vez de manter a forma

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de família extensa que está desmoronando?” Nocaso de Manjit, cada uma dessas questões foitrabalhada no bojo de um enfrentamento com aviolência. Há outros lares nos quais a experiência

da violência nesse tipo de limite não toma a formade violência física, mas de violações de outrostipos. O que é significante é que são parte da falaatravés da qual, mesmo diante da violação, pede-seo reconhecimento da própria cultura e, ao mesmotempo, reconhece-se essa cultura. Essa experiênciacom o fazer-se de uma cultura é bastante diferentedo outro tipo de violência, da qual Manjit foi vítima,mas acerca da qual nunca pôde falar. Passarei agorapara essa pesada cortina de silêncio.

Silêncio nos limites da fala

A violência que descrevi aqui constitui umpadrão recorrente, com variações diversas, no inte-rior das famílias e grupos de parentesco punjabi. Ointerior das famílias não é, aqui, aquilo que écompletamente ocultado, mas aquilo que se mostraou é mostrado, nas técnicas performativas que osatores empregam para tornar o conflito e a violên-cia presentes nas ocasiões públicas. A habilidadede “falar a violência” encontra-se nos recessos

dessa cultura de encenar e de contar histórias, nointerior dos domínios da família e do parentesco. Otempo não é algo meramente representado, masum agente que “trabalha” nas relações, permitindoque sejam reinterpretadas, reescritas, modificadas,no embate entre vários autores pela autoria dashistórias nas quais coletividades são criadas ourecriadas. Dentro desse contexto, a violência daPartição é envolvida na experimentação com diver-sas vozes e modalidades nas quais se desenvolvemnarrativas familiares.

Comparemos esse fato com o caráter de slidescongelados das narrativas, ou melhor, das “não-narrativas” da violência da própria Partição. Aprópria Manjit, quando concordou em falar comigoacerca dos acontecimentos da Partição, resolveuescrever um documento de uma página, repleto demetáforas sangrentas, como “rios de sangue corren-do”, ou “mortalhas brancas cobrindo a paisagematé onde a vista alcançava” (ver Das, 1991). Demodo geral, as histórias dos acontecimentos da

Partição referiam-se a alguns casos famosos, comoo de uma aldeia cujos homens mataram todas asmulheres quando suspeitaram da iminência de umataque por um bando de muçulmanos, ou de uma

aldeia em cujo poço já não havia espaço para maiscorpos depois de as moças terem-se jogado nele.Tais histórias inseriam os acontecimentos numanarrativa heróica, na qual mulheres comuns secomportavam como as famosas figuras mitológicasdo Padmavati ou do Krishnadevi, pois tinhampreferido a morte à desonra. Essas histórias enqua-dram a violência de modo a torná-la assimilável àexperimentação da cultura com os limites da expe-riência humana. Mesmo diante da morte horrenda,os homens sabem como se comportar de acordo

com as normas da masculinidade; as mulheressabem o que é preciso fazer para preservar a honrade seus homens.

Um passo além desses limites está nas histó-rias da Partição cuja autoria desaparece. Escutei,por exemplo, a história de uma mulher que foraestuprada por um grupo de homens aparentadosde um biradari. Abandonada nua e desmaiada nopátio interno, recuperou os sentidos graças aosesforços das mulheres do mesmo biradari, queinsistiam para que se lavasse e se vestisse. Ela não

quis se levantar, rolava pelo chão e dizia que queriamorrer ali mesmo, naquela soleira (dalhiz), esfo-meada e nua.

Havia também a estranha história de mulhe-res muçulmanas em Delhi, que foram raptadas emarcharam nuas até o rio, com o acompanhamentode uma banda, como numa procissão de casamen-to, e obrigadas a lavar-se no Yamuna em meio acantos sânscritos para purificá-las, para que pudes-sem ser “re-convertidas” ao hinduísmo. Todas essashistórias eram enquadradas pela voz coletiva anô-

nima  “dizia-se então” ou “escutavam-se estranhashistórias”. Ninguém jamais assumia a autoria dessashistórias.

Embora a própria Manjit nunca tenha faladocomigo ou, até onde se sabe, com ninguém acercado que aconteceu com ela no intervalo entre seurapto e seu resgate pelo exército, tenho a impres-são de que as histórias de ampla circulação acercadas brutalidades feitas às mulheres durante a Parti-ção criaram uma espécie de campo de força dentro

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do qual sua narrativa posterior se desenrolava.Consideremos, por exemplo, a raiva de seu maridoao pensar que pudesse ter sido vítima de umaarmadilha, por ser um parente pobre e um homem

muito mais velho, casando-se com uma moçadesonrada. Havia o sentimento da própria Manjit,de que ela não podia falar. E ainda as declaraçõesdisfarçadas da mãe de seu marido, de que asmulheres comiam os restos dos homens. Tudo issoindicava que a família era mantida no campo deforça da história maior de rapto e estupro. Noentanto, toda a emoção ligada àquele acontecimen-to primeiro era desviada para outras histórias queeram “dizíveis” dentro do universo de parentescodas famílias punjabi.

Tentei conceber a violência que ocorre natessitura da vida tal como vivida no universo doparentesco como tendo um sentido de pretéritocomposto, continuamente recomposto, ao passoque a violência súbita e traumática que faz parte daexperiência da Partição parece ter sido congelada.O tempo não pode realizar seu trabalho de escrita,reescrita e revisão no caso do segundo tipo deviolência. Tentarei agora relacionar essa diferençaao registro duplo no qual se pode entender a idéiade “forma de vida” nas  Investigações   filosóficas de

Wittgenstein.A idéia de forma de vida costuma ser em-

pregada para enfatizar ou amenizar a naturezasocial da linguagem e da conduta humana. Po-rém, como sugere Stanley Cavell (1989), se Wit-tgenstein pretendesse apenas desmontar a idéiade indivíduos isolados em seu uso da linguagem,o conceito não teria muito a oferecer. Cavell afir-ma que, quando Wittgenstein fala de seres huma-nos que concordam quanto à linguagem queusam, esse acordo não deve ser entendido como

uma concordância de opiniões, nem mesmocomo um acordo contratual, como na noção deidéias e crenças compartilhadas. Há, antes, doismodos possíveis de ler a noção de acordo — oprimeiro é o acordo nas formas que a vida podeassumir e o segundo é a idéia daquilo que distin-gue a própria vida como humana.

Quanto às formas que a vida pode assumir,há numerosos exemplos nas  Investigações deque, dentro da noção do humano, pode muito

bem haver disputas entre as gerações, e de que acultura é herdada por meios dessas disputas. As-sim, há aquilo que Cavell chama de diferençashorizontais nas formas que a vida humana assu-

me; diferenças, por exemplo, nas instituições docasamento ou da propriedade. O acordo quanto aformas de vida nesse sentido é o que constituidiferentes formas; não é a concordância quantoao que constitui a vida em si. Cavell indica essetipo de distinção chamando a atenção para adiferença de sentido entre termos tão próximosquanto tomar posse e coroação, ou comer, ciscare devorar.

A idéia de formas de vida pode ser lida de umsegundo modo, agora enfatizando o termo vida. Isso

se liga especialmente à idéia de que as forçasespecíficas do corpo humano, bem como os senti-dos e a voz humanas, não são fixados de antemão.Assim, testar os limites do humano requer o desen-volvimento de critérios aplicáveis à própria condi-ção de ser humano. O critério de dor, por exemplo,não se aplica ao reino inorgânico nem a máquinas.Do mesmo modo, segundo Wittgenstein, podemosdizer que um animal expressa medo ou alegria, masserá que podemos dizer que expressa esperança?Assim como a diferença entre tomar posse e coroa-

ção expressava a idéia de diferenças horizontais, oudiferenças na forma, para Cavell, as expressõeslingüísticas comer, ciscar e devorar, por exemplo,expressam diferenças verticais, diferenças na vida,entre um ser humano, uma ave, ou um animal.

É nessa noção de forma de vida, ou seja, nosentido vertical de testar os critérios daquilo que éhumano, que, a meu ver, está envolvida a com-preensão da relação de Manjit com o caráter não-narrativo de sua experiência de rapto e estupro.Homens batem nas suas mulheres, cometem

agressões sexuais, humilham-nas nas suas própri-as criações de masculinidade — mas tal agressãoainda é “dizível” na vida  punjabi, por meio devários tipos de gestos e através do contar históri-as.5 Compare-se esse tipo de coisa à violênciafantástica com que mulheres foram despidas eforçadas a marchar pelas ruas, ou à idéia deescrever slogans políticos nos órgãos genitais dasmulheres. Essa produção de corpos por meio deuma violência que visivelmente rasgava o próprio

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tecido da vida era tal que reivindicações da cultu-ra através da disputa tornaram-se impossíveis. Sepalavras são pronunciadas, são como sombrasdeslocadas de palavras cotidianas. Mas será que é

possível, em relação a tamanha mutilação, dizeroz di izzat lut gayi, sua honra foi roubada, comose diz do estupro, no singular? Ou aurat tan roz

varti jandi hai, mulheres são usadas/ trocadas/ consumidas todos os dias? Tais palavras foramrealmente pronunciadas, e registradas por outrospesquisadores, mas era como se o contato comelas e, portanto, com a própria vida tivesse sidoqueimado ou embotado. O caráter hiperbólico danarrativa de Manjit sobre a Partição lembra osentido wittgensteiniano da conjunção entre o hi-

perbólico e o sem razão.Sugiro, assim, que aquilo que constitui o

não-narrativo dessa violência é o que é indizívelnas formas da vida cotidiana. Sugiro, ainda, que éporque o alcance e a escala do humano que étestado, definido e estendido nas disputas ineren-tes à vida cotidiana que ela passa, da violênciainimaginável da Partição, para formas de vida quenão são vistas como pertencentes à própria vida.Ou seja, essas experiências da violência levantamcertas dúvidas quanto à própria vida, e não ape-

nas quanto às formas que ela pode assumir. Foium homem ou uma máquina que enterrou umafaca nos órgãos genitais de uma mulher depois deestuprá-la? Eram homens ou animais que saíammatando e colecionando pênis castrados comosinais de suas proezas? Existe uma profunda ener-gia moral na recusa de representar algumas viola-ções do corpo humano, pois tais violências sãovistas como sendo “contra a natureza”, definindoos limites da própria vida. O alcance e escalaprecisos da forma de vida humana não são co-

nhecidos de antemão, do mesmo modo que oalcance preciso de uma palavra não é conhecidode antemão. Mas a intuição de que determinadasviolações não podem ser verbalizadas na vidacotidiana está no reconhecimento de que não sepode trabalhá-las no âmbito do cotidiano queima-do e embotado.

Teria eu chegado perigosamente perto deafirmar que a dor é intrinsecamente incomunicá-vel, ou que há uma natureza humana dada que

traça limites nos modos de ser humano? O encon-tro com a dor não é algo que se possa enfrentarfriamente. Como afirmei noutro trabalho, negar aafirmação de alguém de que sente dor não é um

fracasso intelectual, é um fracasso espiritual —nosso futuro está em jogo (Das, 1996). As viola-ções do corpo que não podem ser ditas, porquepertencem ao mundo das coisas, ou das feras, oudas máquinas, contrastam com as violações quepodem ser inscritas na vida cotidiana, quando sepode permitir que o tempo realize seu trabalhode reinscrição, reescritura ou revisão das memóri-as da violência.

Fora da vida cotidiana, a violência dos tumul-tos gera muita fala. Beth Roy (1994) considera que

essa fala articula os roteiros ocultos de uma socie-dade, e, de fato, aqueles que foram influenciadospelas notáveis descrições de E.P. Thompson dostumultos de famintos na Europa tendem a ver asmassas com melhores olhos. Afirmo que não podehaver teoria geral do comportamento de massa.Dependendo de se as massas experimentam aviolência nas fronteiras horizontais ou verticais dasformas de vida, produz-se uma modalidade dife-rente, através da qual a violação pode ser vista. Citoum exemplo de experiência nas fronteiras verticais,

a partir de uma etnografia recente, absolutamentebrilhante, dos tumultos comunais.

Um tema recorrente dos tumultos hindu-muçulmanos, articulado ao auge da violência, é oda castração masculina. A redefinição dos corposmasculinos gira em torno da questão da circunci-são. Num relato notável da circulação da faladiscursiva acerca do tema da circuncisão numacomunidade de tecelões muçulmanos e seus vizi-nhos hindus, Deepak Mehta (1997) mostra osdeslocamentos nos significados dos termos. Dentro

da comunidade muçulmana, o termo para a circun-cisão, khatna, refere-se tanto ao ferimento como àfeitura da masculinidade, através do termo evocati-vo humdami, “desabrochar conjunto” do masculi-no e do feminino. Em conversas fora do contextoritual, khatna passa a ser musalmani, “fazer ummuçulmano”, que pode ter dois significados opos-tos. Para um homem muçulmano, musalmani é oque o distingue do hindu, pois o membro masculi-no circuncidado incorpora, para ele, a dor essencial

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do se fazer um muçulmano; até os prazeres dasexualidade lembram-no de suas obrigações paracom Deus enquanto muçulmano. Para o homemhindu, musalmani é apenas um marcador diacríti-

co do homem muçulmano, pelo menos na vidacotidiana.

Durante os tumultos, os termos se deslocam,e os circuncidados passam a ser chamados dek atuas, os castrados. O ferimento que, na vidacotidiana, codifica a idéia da masculinidade noscorpos masculinos torna-se então signo, para ohindu, da bestialidade dos corpos muçulmanos.Como animais selvagens, os katuas, segundo avisão hindu, não têm limites; podem, portanto,ser mortos sem restrições. Do ponto de vista mu-

çulmano, o homem hindu é representado comosem espiritualidade, já que seu membro masculi-no nunca foi submetido à manipulação ritual; suasexualidade é, portanto, animal, como a do mu-çulmano para o hindu. Formas especificamentehumanas de sexualidade são praticadas, desseponto de vista, unicamente por muçulmanos. Ne-nhuma dessas articulações que circulam livremen-te durante os tumultos é recuperável no contextoda vida cotidiana.

No caso de Manjit, pode-se dizer que sua

capacidade de se envolver na vida cotidiana estavadiretamente ligada ao fato de que, no tocante aosacontecimentos da Partição, a linguagem simples-mente faltava. A falta de sociabilidade dos textosque ela pode ter proferido ou escutado nos limitesverticais, quando a própria vida estava sendo rede-finida, seu silêncio, também constitui sua censura.Creio ser este caráter de censura o que está imersonas narrativas de Manjit em relação à outra violên-cia, dizível, em sua vida.

Se a fala proferida durante os tumultos co-

munais não pode ser socializada ou domesticadanas narrativas da vida cotidiana, isso não significaque não possa ser narrada de modo algum. Noregistro do imaginário social, parece que a violên-cia pode ser corporificada em histórias ou ima-gens, contanto que se confundam as própriasfronteiras da vida e da não-vida. Intizar Hussaindescreveu isso em sua história “Cidade do sofri-mento”,  na qual três homens não identificadosestão conversando.

A história começa com o primeiro homemdizendo: “Não tenho nada a dizer. Estou morto.”Então prossegue, em forma de diálogo, acerca domodo como morreu. Um de seus companheiros

pergunta como ele realmente morreu. Morreuquando forçou um homem, na ponta de sua espa-da, a tirar a roupa da própria irmã? Não, conti-nuou vivo. Então foi quando viu o mesmo ho-mem forçando um homem mais velho a tirar aroupa da própria esposa? Não, continuou vivo.Então, foi quando ele mesmo foi forçado a tirar aroupa de sua irmã? Tampouco, ele continuavavivo. Foi somente quando seu pai fitou seu rostoe morreu que ele ouviu a voz de sua mulherperguntando: “Você não sabe que é você que está

morto?” e percebeu que tinha morrido. Mas eleestava condenado a carregar o próprio cadáverconsigo para onde quer que fosse.

De Initzar Hussain volto à minha preocupa-ção com o cotidiano, onde é realizado o esforçode delimitar entidades “que têm o modo de ser deuma coisa” e entidades “que têm o modo de serde um trabalho”, na expressão de Heidegger. Aoscilação entre a violência extraordinária e a vio-lência cotidiana não é, evidentemente, como a dotic-tac de um relógio. O contraste entre o modo

das coisas e o modo do trabalho aponta para asdiferenças que venho procurando articular. Navida de mulheres como Manjit, é o modo dotrabalho que define a relação com a violência davida cotidiana. O rapto e possível estupro quesofreu não são passíveis de trabalho dentro doscontornos nos quais sua vida foi vivida. Mas pre-cisamos recordar que, embora as narrativas crista-lizadas da Partição celebrem apenas a vida dasmulheres que se ofereceram em sacrifício herói-co, inúmeros homens e mulheres levaram adiante

o trabalho da vida cotidiana, em meio aos tumul-tos e depois deles. Mulheres que fizeram as pazescom seus raptores, que resistiram ao “resgate” eàs vezes lamentavam a perda de humanidade porparte de seus raptores junto com eles, e nãocontra eles, não estão inscritas nas histórias desacrifício heróico. Uma delas é a história de duasmulheres muçulmanas, raptadas e engravidadaspor um homem sikh. Elas tinham sido resgatadaspelas autoridades militares e foram colocadas

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num campo enquanto esperavam para serem de-volvidas aos parentes no Paquistão. Certa noite,desapareceram. Quando retornaram, no dia se-guinte, foram interrogadas pelas autoridades e

confessaram que tinham sentido vontade de ver opai dos filhos que esperavam uma última vez. Aansiedade que domina a literatura e o cinemarelativos à Partição, quanto a saber se alguém éhumano, é superada, ainda que só por um instan-te, pela inserção na vida cotidiana e pela própriafalta de palavras, que constitui sua resposta àviolência.

Fronteiras: dizer e mostrar

Retorno mais uma vez à questão das frontei-ras. Edwards (1982) indica a relevância das frontei-ras nos últimos escritos de Wittgenstein para afir-mar que critérios de sentido que dão à linguagemuma existência delimitada são constituídos pelaatividade humana, e não dados de uma vez portodas. Assim, para ele as fronteiras parecem excluira combinação de palavras que não fazem sentidono interior de uma forma de vida — que são, assim,retiradas da circulação humana.

Dizer “essa combinação de palavras não faz

sentido” a exclui da esfera da linguagem humana e,conseqüentemente, limita o âmbito da linguagem.Mas se alguém traça uma fronteira, pode ser porvárias razões. Se eu cercar uma área com uma cercaou uma linha, por exemplo, pode ser com oobjetivo de evitar que alguém entre ou saia; maspode também fazer parte de um jogo, e os partici-pantes podem, digamos, ter de pular a cerca; oupode mostrar onde acaba a propriedade de um ecomeça a de outro, e assim por diante. De modoque dizer que eu traço uma fronteira não é dizer

por que razão eu a traço (Wittgenstein, 1953, PI, #499).

Como se deve interpretar a primeira pessoanessa exposição do ato de traçar fronteiras comdiferentes objetivos? Shields (1993) critica Edwardspor não distinguir adequadamente fronteiras daprática coletiva e fronteiras que são traçadas porum capricho individual. Para ele, “a verdadeirafronteira, a fronteira do sentido nas  Investigações, éo nexo da atividade humana, o costume ou ‘forma

de vida’ na qual a ‘fronteira’ se mantém firme comosigno” (Shields, 1993, p. 28). Em termos da distin-ção dizer/ mostrar de Wittgenstein, Shields propõe,então, que essa propriedade de manter-se firme é o

que não pode ser dito mas pode ser mostrado porvárias atividades, incluindo a das frases ditas quesão apropriadas à situação. As observações deWittgenstein em  Da  certeza (1969) apontam para oabsurdo de supor que me seja necessário saber quealgo é uma cadeira, ou que sou uma mulher, ou quealguém deitado numa cama de hospital é umpaciente, para realizar os atos de pegar uma cadeirano canto, ou usar a terminação feminina num verbo(se eu estiver falando hindi), ou perguntar como vaiem voz baixa. Entre as observações consideradas

por Shields estão as seguintes:

Eu sei que um homem doente está deitado ali?

Não faz sentido! Estou sentado junto ao leito, olho

atentamente para o rosto dele. Então não sei que

há um homem doente deitado ali? Nem a pergunta

nem a afirmativa fazem sentido. (  Da Certeza, # 10)

Minha vida mostra que eu sei ou tenhocerteza de que há uma cadeira ali, ou uma porta,e assim por diante — digo a um amigo, por

exemplo, “pegue uma cadeira ali”, “feche a porta”etc. etc. (idem, # 7). Na minha opinião, a interpre-tação de Shields pressupõe uma distinção umtanto radical entre as fronteiras da prática coletivae do capricho individual. De fato, um dos aspec-tos da vida cotidiana é que ela está embasadanuma linguagem corrente a cujo contexto se temacesso, de modo que “não faz sentido” falar emter o conhecimento de que alguém é homem oumulher. Mas existe um outro sentido da vidacotidiana em Wittgenstein, no qual ela tem de ser

re-habitada, em que o sentido de ser “humano” étestado quando a linguagem corrente falha ousimplesmente não existe. As observações de Wit-tgenstein acerca da dor são os melhores exemplosque conheço em que a vida cotidiana tem de serassegurada na ausência dessa linguagem corrente(ver Das, 1996). A distinção entre as fronteirashorizontais e verticais das formas de vida, talcomo formulada por Cavell (1989), apreende es-ses aspectos da vida cotidiana — assim, o contras-

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te não se situa entre práticas coletivas e caprichosindividuais, mas entre estar na linguagem corren-te, na qual a certeza é pressuposta, ou na ausên-cia de linguagens como a da dor ou da paixão

para expressar (que é diferente de representar) arelação com o mundo. Em ambos os casos oindivíduo se apropria da linguagem, mas no pri-meiro caso a estabilidade do mundo é pressupos-ta, ao passo que no segundo o sentido do contex-to nunca é totalmente garantido. Manjit me ajudoua vislumbrar a complexa relação entre dizer emostrar, e as diferentes imagens de conhecimentopor meio das quais é mantida a relação entre avida cotidiana e o ceticismo, enquanto o tempo échamado a trabalhar a violência.

NOTAS

1 “Taunt   k arde  si”, ele dava “indiretas”, é uma expressãocomum. A expressão equivalente punjabi, tane  dena,bolyian  sunana, é comum na retórica cotidiana da faladas mulheres.

2 A conjunção bom-mau é um eufemismo utilizado quan-do se quer responsabilizar os próprios parentes pelautilização de expressões insultantes ou indelicadas em

relação ao sujeito. Diferenças horizontais sutis marcamoutras expressões, como gali (abuso) ou bak -bak  (in-sensatez); suas implicações na verbalização das estraté-gias de honra-vergonha são bastante diferentes. “Dife-renças horizontais” se refere, aqui, ao tipo de diferençaencontrada em pares tais como coroação/ posse, pro-missor/ intencional etc., conforme o emprego da expres-são por Cavell (1994).

3 Literalmente:  A urat   da  k i  hai — aurat   te  admi  da  gun

k handi  hai.

4 Expliquei em trabalhos anteriores que alguns casamen-tos entre hindus e sikhs ocorriam dentro dessa rede deparentesco (ver Das 1977 e 1992).

5 Não quero dizer que seja, por isso, aceita de formapassiva. Aliás, toda a história de Manjit mostra umprofundo ressentimento. Tampouco afirmo que taisformas de violência sejam sempre narráveis em todas associedades humanas.

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