versao final ultima
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Emily Dickinson foi uma poetisa norte-americana nascida em Amherst,
Massachusetts, no ano de 1830. Foi contemporânea do período vitoriano de
forma que a sociedade na qual estava inserida sofreu influência direta do
puritanismo inglês. Em pleno auge do Romantismo, que havia alcançado os
Estados Unidos após seu surgimento na Alemanha, a poesia de Dickinson não se
limitou às características desse período literário, indo além, a ponto de ser
considerada percussora do Modernismo.
O poema que analisaremos a seguir é o de título Não sou Ninguém.
Como método de introdução à análise do poema, será feito uma descrição
das primeiras impressões, obtidas através de leituras superficiais. Da primeira
estrofe abstrai-se que o eu-lírico coloca-se como sendo "Ninguém", o que levanta
a dúvida sobre o que é ser "Alguém”. Nos versos a seguir, ainda na primeira
estrofe, o eu-lírico busca encontrar um correspondente no mundo, outro
"Ninguém" para juntar-se e formar um par. Já na segunda estrofe, o que é trazido
à tona mais facilmente é a complexidade sintática. Os versos parecem pedaços
soltos, mas, ao mesmo tempo, parecem formar um contínuo, embora pareçam
cortados devido aos hífens. É mais difícil obter um significado superficial nessa
estrofe.
Estruturalmente falando, o poema original apresenta duas estrofes de
quatro versos, que oscilam entre tetrâmetro jâmbico e trimetro jâmbico. Na
tradução para o português, Augusto de Campos (CAMPOS, 2008) usou versos
polimétricos - que oscilam entre tetrâmetros, pentassílabos, hexassílabos,
octossílabos e seus respectivos ritmos usuais. Escandindo:
1 Não / sou / Nin / guém! / Quem / é / vo / cê?
2 Nin / guém / – Tam / bém?
3 En / tão / so / mos / um / par?
4 Não / con / te! / Po / dem / es / pa / lhar!
5 Que / tris / te / – ser – / Al / guém?
6 Que / pú / bli / ca – a / Fama –
7 Di / zer / seu / no / me / – co /mo a / Rã –
8 Pa / ra as / pal / mas / da / Lama.
O poema apresenta rimas consoantes (par/espalhar – Fama/Lama) e
toantes (você/Também – Fama/Lama), externas (par/espalhar) e internas
(Ninguém/Também), em um esquema que une interpoladas e emparelhadas
AABBACC. Analisando-as separadamente:
- você/também/Alguém:
*Gramaticalmente pobre, por você e Alguém partilharem a mesma
classe gramatical.
*Fonologicamente pobre entre Alguém e também, pela identidade de
sons.
-par/espalhar:
*Gramaticalmente rica, pois diferem na classe gramatical – par é
substantivo, enquanto espalhar é verbo.
*Fonologicamente pobre pela não identidade dos sons após a
sílaba tônica.
-Fama/Rã/Lama:
*Gramaticalmente pobre, pois todos os vocábulos são substantivos.
*Fonologicamente pobre pela não identidade dos sons após a
sílaba tônica.
Como argumento para explicar a escolha do tradutor por rimas pobres,
pode-se dizer que o seu objetivo foi manter o conteúdo e a semântica do texto
original.
Com o objetivo de prosseguir de forma coesa, a análise do poema foi
dividida em níveis: (i) sonoro-lexical, (ii) sintático e (iii) semântico. Esse viés de
análise revela que os valores de construção se confundem com os de significado.
(i)
No nível sonoro-lexical do poema, depreendeu-se a presença de aliteração
da nasal alveolar [n], que confirma o sentido negativo da Identidade e do “ser
Alguém”. Também se observou a presença de assonância da vogal nasal aberta
[ã], denotando a interjeição “hã?”, e do ditongo [ej], denotando, por sua vez, a
interjeição “hein?”, e, logo, ambas as repetições vocálicas confirmam o caráter de
questionamento, de dúvida, de indagação do eu-lirico.
O vocabulário de Não sou Ninguém é simples e não apresenta problemas,
tanto na versão original quanto na versão em português de Augusto de Campos.
Aliás, Augusto de Campos enfocou, em sua tradução, o léxico e a sonoridade do
poema, além da adaptação à cultura brasileira.
A adaptação cultural é ilustrada pelo primeiro verso,
“I’m Nobody! Who are you?”
“Não sou Ninguém! Quem é você?”
Uma vez que na língua inglesa, se a primeira oração se estruturasse a fim de
afirmar que o eu-lirico NÃO é Ninguém, ter-se-ia “I’m not Anybody!” – que,
contudo, mudaria semanticamente o verso. Assim, Augusto de Campos adapta à
realidade brasileira, povo que, quando quer negar a sua identidade, usa a
expressão “Não sou Ninguém”.
Emily Dickinson usa Capital letters, isto é, letras maiúsculas, em parte dos
vocábulos do poema - como: Ninguém, Alguém, Fama, Lama e Rã -, acredita-se
que essa construção tinha a finalidade de dar ênfase e singularidade às palavras,
bem como de personificá-las. A seguir, analisar-se-á cada uma das realizações
citadas e sua significação:
O uso de letras maiúsculas no início dos pronomes Ninguém e Alguém
denotam que se poderia substituí-los por qualquer nome próprio, pois eles
ocorrem como nomificação do eu-lírico e das possíveis pessoas a quem ele lança
críticas.
A ocorrência da palavra Fama vem carregada de uma metáfora bem
interessante que pode ser interpretada por meio de uma comparação com outros
poemas de Dickinson. Etimologicamente, Fama vem do verbo phánai, que
significa “dizer, espalhar pela palavra”. Fama era também o nome de uma deusa
romana que habitava um palácio de bronze todo cheio de orifícios ao longo de
sua estrutura. Essa artimanha permitia que tudo o que fosse dito no mundo – por
mais baixo que fosse - pudesse ser ouvido pela deusa. Como ela era dotada de
asas, voava pelos quatro cantos do mundo propagando tudo o que tinha ouvido.
Aqui, é possível associar essa definição com outros poemas da autora:
Poema 1763
Fame is a bee. –
It has a song –
It has a sting –
Ah, too, it has a wing –
Fama é uma abelha.
Tem uma música −
Possui um ferrão −
E asas! − como não?
Poema 713
Fame for Myself, to justify,
All other Plaudit be,
Superfluous − an incense
Beyond Necessity −
Fame for Myself to lack − Although
My Name be else Supreme −
This were an Honor honorless −
A futile Diadem –
Fama, para Mim, comprova
Ser todo Aplauso
Em Vão − um incenso
Maior que a Precisão −
Fama, para Mim, inútil −
Embora meu Nome reine −
Uma Honra infame −
Um Diadema fútil −
A abelha tem asas e pode voar (assim como a Deusa Fama). A canção
desse verso pode ser entendida como o lado positivo trazido pela fama a quem
quer que seja reconhecido, já o ferrão faz menção aos podres de quem se faz
conhecido, bem como da fofoca.
Importante ressaltar que embora a palavra Fama (fame) seja muito
recorrente nos poemas de Dickinson, ela não aparece no poema Não sou
Ninguém. Esse fato claramente guiou a tradução de Augusto dos Campos, logo, é
possível depreender que a temática envolvendo crítica à fama transita por vários
poemas da autora.
Lama, por sua vez, pode ser o apelido de alguma pessoa, ou, mais
específico, da sociedade que fica a ouvir o tagarelar dos Alguém’s. O dado mais
rico e revelador do uso da letra maiúscula no poema é a palavra Rã (Frog, no
inglês) – vale ressaltar que o tradutor não traduziu para Sapo para manter uma
harmonia nas rimas – que causará uma ênfase semântica e uma metáfora, que
serão explicadas mais adiante.
Ainda no aspecto sonoro-lexical, pode-se investigar o uso dos verbos. No
poema em questão, há a predominância de verbos de estado (não sou, é, somos,
ser), que sugere pouco dinamismo. Os verbos (não) conte, espalhar e dizer, por
sua vez, demonstram dinamismo e ações de propagação (semanticamente
negativa, no caso). O tempo verbal – presente – aponta proximidade do eu-lírico
com o leitor, e o modo verbal – indicativo – aponta caráter de real. Em relação à
estrutura, ocorrência e significação dos verbos, pode-se dizer que o poema
realiza um ciclo com diferença de velocidade, assim como a argumentação do eu-
lírico e sua tentativa de retardar ou impedir a ação do interlocutor:
Sou somos conte espalhar ser dizer.
[Estático] [Estático] [ação] [ação] [Estático] [ação]
Quanto ao uso dos pronomes na tradução de Augusto de Campos –
Ninguém, quem, você, Alguém, seu -, pode-se dizer que são trabalhados a
denotar impessoalidade e ausência de Dickinson como eu-lírico. Além de que
você e seu confirmam a existência de um diálogo e a presença (concreta ou
abstrata) de um interlocutor.
(ii)
A sintaxe do poema Não sou Ninguém é simples e não apresenta
problemas. Apresenta períodos curtos e ricos na pontuação. O poema possui
construções ambíguas porque as frases assertivas têm sentido de interrogação, e
vice-versa. Pode-se exemplificar essa característica com o primeiro verso – “Não
sou Ninguém!” –, em que o eu-lírico afirma algo como que em dúvida de sua
identidade; e o terceiro verso – “Então somos um par?”, em que o eu-lírico
pergunta ao interlocutor se eles compartilham a identidade de ser Ninguém, e tal
pergunta se configura como uma indagação retórica.
A análise do uso da pontuação é muito importante para ver como o eu-lírico
se porta frente ao fluxo dos seus pensamentos. A pontuação, em sintonia com os
verbos, trabalha com a velocidade do poema e das divagações do eu-lírico.
O ponto de exclamação, presente em quatro do oito versos, denota, na
análise apresentada, a divagação e o caráter duvidoso do eu-lírico em relação à
sua identidade. Enquanto isso, o ponto de interrogação, presente em três versos,
revela duas hipóteses sobre o poema: o eu-lírico realiza um diálogo com o leitor
sobre a identidade de ambos; ou o eu-lírico conversa consigo mesmo sobre sua
própria e individual existência.
Contudo, a pontuação mais impactante para a análise do poema é o
travessão. O travessão, na poesia de Emily Dickinson, denota ênfase e foco nas
palavras separadas, além de adicionar uma espécie de aposto. É possível realizar
um jogo com o poema e lê-lo de duas formar:
1 – Ignorando as estruturas dentro dos travessões, têm-se uma
interpretação falha do poema.
“Que triste – xxx – Alguém!
Que pública – x xxxx –
Dizer seu nome – xxxx x xx –
Para as palmas da Lama!”
2 – Ignorando as estruturas fora dos travessões, têm-se a interpretação e a
confirmação da metáfora (que será analisada mais detalhadamente no nível
semântico) em que o poema circula.
“ – a Fama –
– como a Rã –
– Dizer seu nome –
Para as palmas da Lama!”
A construção sintática que liga um verso ao seguinte para completar o seu
sentido, conhecida como enjambement, é usada nos três últimos versos:
“Que pública – a Fama - / dizer seu nome – como a Rã - / para as palmas da
Lama!”.
Pode-se dizer que essa construção causa progressão do pensamento. A
cada novo verso há uma nova ideia, que, como o fluxo de consciência, estão
ligadas à mesma ideia, mas que são lançadas em momentos distintos (embora
separados no espaço curto de tempo que possibilita a formação de um novo
pensamento).
(iii)
Por último, analisou-se o nível mais significativo – o semântico –, que,
aliás, está presente em todos os níveis do poema. O poema é rico em ironias
(assim como boa parte da obra de Dickinson). Emily Dickinson usou a figura de
similaridade conhecida como comparação para unir a Fama (a identidade de ser
Alguém) com a Rã (Frog/Sapo), dado que, inclusive é um exemplo do uso da
ironia por relacionar o humano ao anfíbio que habita as lamas e, assim, levá-lo à
sua condição animalesca.
Além disso, Dickinson usa a figura de contiguidade, conhecida como
sinédoque, relacionando a parte pelo todo: nome (one’s name) no lugar da
história e biografia da pessoa. Como mais uma figura semântica e resultado da
combinação das anteriores, há um trabalho nas palavras que confirma a
metalinguagem da identidade.
Durante todo o poema, Dickinson trabalha com a ideia de ambigüidade, o
primeiro verso ao ser interpretado de maneira ambígua, permite a existência de
duas interpretações, complementares, do poema. O trecho em questão é a
primeira frase do primeiro verso da primeira estrofe, no original “I’m Nobody!”, na
tradução de Jorge de Sena “Sou Ninguém!” e na tradução de Augusto de Campos
“Não sou Ninguém!”, essa última que embasou a análise do poema feita nesse
trabalho e que abre caminho para a interpretação dupla.
Partindo de uma interpretação superficial e cotidiana, da frase “Não sou
Ninguém!” obtém-se o sentido de que o eu-lírico, literalmente “é ninguém” ou “não
é alguém”. Mas atentando-se a dupla negação “não” e “Ninguém” que vira uma
afirmação e assim, há uma segunda interpretação.
Pela primeira interpretação, as perguntas dos versos seguintes “Quem é
você? Ninguém também?”(1) e “Então somos um par?”(2) são dotadas de
“sentido afirmativo” ou seja, elas têm resposta afirmativa por elas mesmas sem
que alguém as responda, devida a conclusão de que o eu-lírico e a pessoa a
quem ele se dirige formam um par. No segunda estrofe que há uma crítica a
fama, tal crítica é feita do lado anônimo da história, de quem não sabe
exatamente como é ser “Alguém”.
Já pela segunda interpretação, a pergunta (1) será respondida como “não”
e a pergunta (2) com “sim”, novamente devido a conclusão que o eu-lírico e a
pessoa a quem ele se dirige formam um par, mesmo agora sendo dois
“Alguém’s”. Agora na segunda estrofe, a crítica feita a fama é feita de alguém que
está dentro e vivencia aquilo, além da crítica há também um lamento.
Essas interpretações são complementares porque na primeira há a visão
de alguém anônimo da sociedade e na segunda alguém ‘famoso’ e ambas as
visões resultam na mesma crítica.
Para corroborar a interpretação de que o poema “Não sou Ninguém”
trabalha com a ideia de identidade, pode-se fazer intertextualidade com três obras
da literatura universal: Odisseia, de Homero; O príncipe Sapo, dos irmãos Grimm;
e Sapos, de Manuel Bandeira.
Primeiramente, a relação entre o poema e a Odisseia pode ser observada
no Canto IX, Versos 364 a 366:
“ ‘Ó Ciclope, perguntastes como é o meu nome famoso. Vou dizer-te,
e tu dá-me o presente de hospitalidade que prometeste.
Ninguém é como me chamo. Ninguém chamam-me
a minha mãe, o meu pai, e todos os meus companheiros.’ ”
E os versos 503 a 505:
“ ‘Ó Ciclope, se algum homem mortal te perguntar
quem foi que vergonhosamente te cegou o olho,
diz que foi Ulisses, saqueador de cidades,
filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio.’ ”
Em que, frente ao ciclope Polifemo, que pergunte o seu nome, sua
identidade, Odisseu afirma não ser Ninguém. Contudo, após o cegar e se livrar da
ilha do ciclope, Odisseu grita em alto e bom som seu nome, para que a criatura de
um olho saiba quem foi o humano que o venceu em astúcia. O desejo de
reconhecimento de sua identidade por parte de Odisseu é consequência da
cultura da vergonha presente na obra de Homero e reflexão do mundo grego, em
que VOCÊ É o que os OUTROS FALAM de você, sendo, logo, fundamental o
conhecimento de seu nome. Contudo, a presente analise se encarrega de um
poema escrito em plena Era Vitoriana. Embora Emily não tenha vivido no país em
questão, a Nova Inglaterra era totalmente influenciada pelo puritanismo inglês. A
sociedade era extremamente patriarcal e calvinista, sobretudo a família de Emily.
É importante ressaltarmos que não estamos colocando a poetisa como eu-lírico
do poema, mas sim associando as idéias contidas no poema com o contexto
histórico no qual foi escrito.
A partir do verso “I’m Nobody”, devemos nos perguntar: O que era “ser
alguém” na Nova Inglaterra do século XIX? A princípio teríamos duas alternativas
possíveis. A primeira seria em relação ao que era ser do sexo feminino dentro
daquele contexto histórico. É certo que mulheres eram consideradas verdadeiros
“ninguém’s” e ficavam em segundo plano, enquanto os homens é que se
sobressaiam - inclusive na poesia. Como meio de fundamentar essa ideia, tem-se
a seguinte citação de um dos tradutores da obra da poetisa para a língua
portuguesa:
“[...] Este é o poema-símbolo da autonegação, do anseio de uma “identidade negativa”,
do desejo de apagamento do próprio ser, da anonimização do ser-mulher (...). Ser
Ninguém seria o preço a pagar por alguém que se dispôs a trocar a fama pela
imortalidade” (p. 71). José de Lira.
Contudo, dentro da perspectiva da analise formal, o poema não apresenta
nenhuma indicação de eu-lírico feminino – o que exclui a primeira alternativa. A
segunda alternativa é que ser alguém na sociedade depende do que os outros
(Lama) pensam de você, ou seja, resquícios da cultura da vergonha na cultura da
culpa contemporânea a Dickinson, em se tratando de fama, assunto que é
abordado no poema. E por isso a importância “de dizer seu nome” e de ser
“Ninguém” ou “Alguém”.
Portanto, Dickinson vivia na sociedade ocidental da cultura da culpa do
século XIX, e este poema mostra-se contemporâneo, revelando então que não só
os gregos foram a base de toda a cultura ocidental, mas que seus valores ainda
estão – embora ocultamente – presentes na sociedade.
Mais um fato que une as duas obras é o caráter cíclico de ambas. O poema
é cíclico pelo trato dos verbos e pelo enjambement, enquanto que a Odisseia
apresenta a trajetória de Odisseu, que realiza um círculo pelo mundo fantástico
antes de retornar à Ítaca.
Outra metáfora muito rica encontrada no texto é a incutida no termo Sapo.
Existem três interpretações possíveis que se relacionam umas com as outras,
todas girando em torno da questão de existência e da identidade do indivíduo. A
primeira delas parte de uma analogia com a metamorfose do girino da biologia.
Os sapos, da família dos anfíbios, formam o primeiro grupo de vertebrados que
ocupou o ambiente terrestre. Um fato pertinente a analise é a reprodução dos
sapos e das rãs através da eliminação de ovos na água, que, após o
desenvolvimento, formam o girino. Após algum tempo, o girino sofre
metamorfoses, dando origem ao anfíbio adulto – sendo então uma “maturação”. A
transformação que os sapos e rãs sofrem ao longo da vida seria uma alusão à
mudança da identidade humana. A outra é uma intertextualidade com o conto O
Príncipe Sapo, dos Irmãos Grimm.
Nele temos a figura de um sapo que tenta comunicar-se com uma princesa
com o intuito de ter sua identidade revelada:
“Era uma vez uma bondosa princesa muito bonita, de cabelos longos e louros que
vivia num reino muito distante. Um dia, sem querer, a princesa deixou cair uma bola
dentro de um lago. Pensando que a bola estivesse perdida, começou a chorar.
- Princesa, não chore. Vou devolver a bola para você. - disse um sapo.
- Pode fazer isso? – perguntou a princesa.
- Claro, mas só farei em troca de um beijo.
A princesa concordou. Então, o sapo apanhou a bola, levou-a até os pés
da princesa e ficou esperando o beijo. Mas, a princesa pegou a bola e correu para o
castelo. O sapo gritou:
- Princesa, deve cumprir sua palavra!
O sapo passou a perseguir a princesa em todo lugar. Quando ia comer, lá
estava o sapo pedindo sua comida.
O rei, vendo sua filha emagrecer, ordenou que pegassem o sapo e
levassem de volta ao lago.
Antes que o pegassem, o sapo disse ao rei:
- Ó, rei, só estou cobrando uma promessa.
- Do que está falando, sapo? - disse o rei, bravo.
- A princesa prometeu dar-me um beijo depois que eu recuperasse uma
bola perdida no lago.
O rei, então, mandou chamar a filha. O rei falou à filha que uma promessa real
deveria ser cumprida.
Arrependida, a princesa começou a chorar e disse que ia cumprir a palavra
dada ao sapo. A princesa fechou os olhos e deu um beijo no sapo, que logo pulou ao
chão. Diante dos olhos de todos, o sapo se transformou em um belo rapaz com roupa de
príncipe. Ele contou que uma bruxa o havia transformado em sapo e somente um beijo
de uma donzela acabaria com o feitiço. Assim, ele se apaixonou pela princesa e a pediu
em casamento. A princesa aceitou. Fizeram uma grande festa de casamento que durou
uma semana inteira. A princesa e o príncipe juntaram os dois reinos e foram felizes para
sempre.”
(GRIMM, Irmãos. O Príncipe Sapo. Disponível em:
http://www.abcdobebe.com/contos-infantis/a-princesa-e-o-sapo-2.html)
Em ambas as hipóteses, podemos depreender também que uma
característica morfológica dos anfíbios é a língua longa e aderente –
relacionando-se à fofoca e esforço árduo de chamar a atenção das pessoas para
sua existência. Além disso, pode-se relacionar o “coaxar” dos sapos – que nada
mais é que uma forma de os machos atraírem as fêmeas na época da
reprodução, visando o acasalamento – com a “lábia” do Príncipe Sapo, que tenta
persuadir a princesa, e com o ciclo das fofocas e dos boatos, lançados com o
objetivo de engrandecer fatos e pessoas.
Como o intuito de fundamentar essa intertextualidade com o conto A
Princesa e o Sapo, relacionamos Não Sou Ninguém com o poema Os Sapos, de
Manuel Bandeira, que foi um dos tradutores e entusiastas das obras de Emily
Dickinson no Brasil. Segundo Luís André Nepomuceno¹ (em Revista Cerrados:
Quando a palavra é incomunicável: a poesia de Emily Dickinson, 2011, p. 22) o
poema “Os Sapos” foi inspirado no de Dickinson e escrito para ser usado como
crítica ao Parnasianismo durante a Segunda Semana de Arte Moderna. Ora, o
lema dessa corrente literária resumia-se em “Arte pela Arte”, no qual o conteúdo
era deixado de lado em prol de uma forma rica e bem trabalhada. Depreendemos
que, da mesma forma que as pessoas sentem a necessidade de aparecer e atrair
fama a qualquer custo, a poesia parnasiana seria uma personificação da futilidade
e reconhecimento sem merecimento.
A seguir temos o poema de Manuel Bandeira (BANDEIRA, Manuel.
Melhores Poemas de Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2003) junto de uma
ligeira interpretação relacionada ao poema de Emily Dickinson:
Os Sapos (Manuel Bandeira)
Enfunando os papos,
Saem da penumbra, (do anonimato)
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra. (parte boa da fama)
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!". (as
línguas compridas – fofoca)
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo (poesia
considerada pobre)
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
(Ela não seguia os padrões métricos da
época, reduziu a forma de maneira
genial e bela)
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
(Possivelmente Manuel Bandeira
também viu a lenda do sapo-príncipe.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas, (fofoca)
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
(reclusão, sem reconhecimento,
misantropo)
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Outro ponto muito interessante na obra de Dickinson é que devido ao seu
conhecimento e domínio invejável do léxico da língua Inglesa, as palavras do
texto não devem ser de forma alguma interpretadas literalmente. Dado a tamanha
complexidade dos significados possivelmente atribuídos às palavras, alguns
estudiosos criaram um dicionário denominado “The New Dickinson Lexicon”, onde
é possível procurar a definição de termos baseados nos dicionários que Emily
possuía em sua biblioteca, como o Noah Webster's American Dictionary of the
English Language.
Sua poesia não seguia a gramática padrão da época, além de possuir uma
pontuação muito peculiar, o que fez com que seus versos fossem muito alterados
e, diga-se de passagem, “corrigidos” antes de serem publicadas. A intensa troca
de cartas com pessoas do meio literário a fez observar que uma condição para ter
seus poemas publicados seria abdicar do seu estilo próprio para agradar aos
editores, fato que a fez optar pelo anonimato.
“Publication – is the Auction Of the Mind of Man –”
[A publicação – é o Leilão da Mente do Homem –] (Poema 788).
Algumas definições Segundo o léxico da poetisa:
Advertise: turn attention to another. Search; probe; inquire of (indagar, investigar) ;
give notice to; announce a search into; place an announcement in.
Banish: Reject; exile; condemn. Separate; isolate; drive away. (Não conte! Eles
podem nos rejeitar, condenar!).
Public: Open; noticeable; conspicuous; unconcealed; indiscreet; bold; pretentious.
ostentatious; audaciously visible to all; blatantly manifest to the general population.
Nobody: a commoner; no one important; an unknown person; an ordinary person;
not anyone famous.
Portanto, a hipótese inicial - de que o poema trabalha com a ideia de
Identidade - é confirmada pela análise estrutural, seja ela no nível lexical, sonoro,
sintático ou semântico. A intertextualidade com o classico, Odisseia e com poema
Os Sapos, de Bandeira e, ainda a contextualização histórica reforçam a
confirmação dessa hipótese.
REFERÊNCIAS
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MA: The Belknap Press; London: Harvard University Press, 1960.
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SEWALL, Richard B. The Life of Emily Dickinson. 1998.
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NEPOMUCENO, L. André. Quando a palavra é incomunicável: a poesia de Emily
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LOPES, Sônia. Bio: Volume Único. São Paulo: Saraiva, 2008.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 2006.
CAMPOS, Augusto de. Emily Dickinson – Não sou Ninguém. São Paulo:
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The Letters of Emily Dickinson, ed. Thomas H. Johnson and Theodora Ward
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