viagem divina - suica

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30 diVino sabores diVino sabores 31 por Carlos Marcondes Viagem DiVina Delícias entro de um trem que liga dois terminais no aeroporto de Zurique, os pas- sageiros escutam, surpresos, um estranho e longo mugido e de repente surge a imagem de uma simpática vaca leiteira projetada no túnel. Todos sorriem com a criativa maneira dos suíços de dar as boas-vindas. Começa ali a experiência em um país que esconde um mundo de detalhes, pronto para surpreender constantemente o turista, seja pela exuberante natureza, seja pela imensa diversidade cultural e gastronômica. O viajante vive um curioso paradoxo: não saber por onde começar, em um país tão pequeno, mas repleto de opções! São pelo menos três fortes influências em apenas 41 mil km 2 : a alemã, a francesa e a italiana. Difícil encontrar algum jovem que não fale fluentemente pelo menos quatro idio- mas. Talvez seja um dos melhores exemplos de que globalização, charme e tradição podem andar muito bem juntos. Mas como escolher é preciso, a diVino Sabores iniciou sua empreitada par- tindo da estação de trem de Zurique rumo a Brig, sudoeste do país, na região alpina conhecida como Goms, no Cantão de Valais, um dos 26 Estados su- íços. Foram exatas duas horas e 31 minutos de viagem, uma primeira prova real da lendária pontualidade suíça, passando por cenários encantadores entre lagos, montanhas geladas e pequenas vilas no caminho. Nosso destino eram duas microvilas vizinhas a Brig: Blitzingen, com 79 habitantes, e Niederwald, com 50 moradores – ambas mantêm um dia- leto alemão típico desse canto dos Alpes, localizado a 1.300 metros de altitude. Turistas se encantam ao caminhar entre as pequenas ruas de Niederwald, uma das mais bem preservadas comunidades de casas de Vila de Zermatt, em Matter Valley: estação de esqui com muito charme suíças QUEIJO, VINHO, CHOCOLATE. OS ENCANTOS GOURMET DA SUÍçA SãO SÍMBOLOS DE UMA VIDA DESENHADA PARA SER DESFRUTADA. D FOTOS: CARLOS MARCONDES E DIVULGAçãO

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Reportagem especial, suiça

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30 diVino sabores diVino sabores 31

por Carlos MarcondesViagem DiVina

Delícias

entro de um trem que liga dois terminais no aeroporto de Zurique, os pas-sageiros escutam, surpresos, um estranho e longo mugido e de repente surge a imagem de uma simpática vaca leiteira projetada no túnel. Todos sorriem com a criativa maneira dos suíços de dar as boas-vindas. Começa ali a experiência em um país que esconde um mundo de detalhes, pronto para surpreender constantemente o turista, seja pela exuberante natureza, seja pela imensa diversidade cultural e gastronômica. O viajante vive um curioso paradoxo: não saber por onde começar, em um país tão pequeno, mas repleto de opções! São pelo menos três fortes influências em apenas 41 mil km2: a alemã, a francesa e a italiana. Difícil encontrar algum jovem que não fale fluentemente pelo menos quatro idio-mas. Talvez seja um dos melhores exemplos de que globalização, charme e tradição podem andar muito bem juntos. Mas como escolher é preciso, a diVino Sabores iniciou sua empreitada par-tindo da estação de trem de Zurique rumo a Brig, sudoeste do país, na região alpina conhecida como Goms, no Cantão de Valais, um dos 26 Estados su-íços. Foram exatas duas horas e 31 minutos de viagem, uma primeira prova real da lendária pontualidade suíça, passando por cenários encantadores entre lagos, montanhas geladas e pequenas vilas no caminho. Nosso destino eram duas microvilas vizinhas a Brig: Blitzingen, com 79 habitantes, e Niederwald, com 50 moradores – ambas mantêm um dia-leto alemão típico desse canto dos Alpes, localizado a 1.300 metros de altitude. Turistas se encantam ao caminhar entre as pequenas ruas de Niederwald, uma das mais bem preservadas comunidades de casas de

Vila de Zermatt, em Matter Valley: estação de esqui com muito charme

suíçasqueijo, Vinho, chocolate. os encantos gourmet da suÍça são sÍmbolos de uma Vida desenhada para ser desfrutada.

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madeira típicas da Suíça, algumas delas construídas sobre pilares de pedras para evitar a entrada da friagem causada pela grande quantidade de neve. Mas o principal atrativo do local é que Niederwald é a terra natal de Caesar Ritz, fundador da suntuosa rede de hotéis Ritz-Carlton, e que, em parceria com o grande chef francês Auguste Escoffier, revolucionou o conceito de receber e ser-vir bem, oferecendo luxo e alta gastronomia aos seus hóspe-des. Ritz passou a infância e a adolescência na pequena vila até se mudar, aos 17 anos, para Paris, onde começaria sua carreira empreendedora no mundo da hotelaria. O melhor local para conferir a gastronomia típica da região de Goms é o restaurante do Hotel Tenne, na vila de Glu-ringen, ao lado de Blitzingen. A cozinha do aconchegante hotel, todo revestido de madeira, é comandada pelo craque Kilian Michlig, atual capitão do time Nacional da Culiná-ria Suíça que representa a cultura gastronômica do país em

competições e apresentações internacionais. “Buscamos valorizar os produtos locais, como o queijo e os peixes de nossos lagos, que retratam bem a identidade das mesas de Goms”, comenta Michlig. O time suíço é considerado um dos melhores da Europa. Quase ao lado do restaurante, encontra-se o laticínio Biocheese Goms, onde são produzidos os famosos Valais Raclette Cheese AOC orgânicos. Funciona como uma produtora de queijos de vários pequenos fazendeiros, que enviam cerca de 1 milhão de litros de leite fresco por ano para produzir dez diferentes tipos de queijo e 100 mil quilos anuais da iguaria. O chef Gerhard Zurcher, que gerencia a fábrica, explica que o segredo do queijo suíço está na qualidade do leite. “Nossas vacas são tratadas com carinho e de forma natural, pastam mesmo no inverno e nunca são forçadas a produzir quantidades exorbitantes. Com ótima matéria-prima, con-seguimos obter resultados excepcionais”, conta o especia-lista, sempre rodeado por seu filho de apenas cinco anos de idade, que todos os dias acompanha o pai no trabalho e diz adorar a fabricação de raclette. Outra raridade que vem da região de Goms é o açafrão suí-ço, que, de tão caro e especial, ganhou até uma certificação de origem (AOC). Como são necessárias 120 mil flores para obter um quilo da especiaria, um grama do produto chega a custar 15 dólares. Outras regiões tentaram desenvolver essa cultura e chegar a tão alta qualidade, mas nenhuma consegue oferecer um ar seco e árido como o do distrito de Mund, no Cantão de Valais, ideal para o cultivo do açafrão.

Paraíso de invernoDifícil descrever a sensação de estar nos Alpes suíços. Tem-se a impressão de que, se a natureza fez a parte dela com per-feição, o homem soube enfeitá-la à altura, com um toque bem delicado. Esse é um sentimento comum a quem chega à pequena Fiesch e tem o privilégio de observar toda a cadeia de montanhas que forma o paredão que cerca a cidade. De lá, pega-se um teleférico rumo a 3.000 metros de altitude na base do Eggishorn, considerado o coração do Aletsch Glacier, o mais longo glacial dos Alpes, com 23 km de extensão. Em Eggishorn, há um simpático bar, onde é possível pe-dir algo para beber enquanto se aprecia a vista de toda a cadeia de montanhas, incluindo o famoso Matterhorn – inspiração para o formato do chocolate Toblerone –, o imponente Jungfrau, de 4.150 m de altura, e até mesmo

Viagem DiVina

Cães da raça são-bernando acompanham os passeios pelos vinhedos

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a emblemática “raclette”, um dos mais tradi-cionais pratos da região. Esse sonho enogas-tronômico acontece no Château de Villa, um simpático complexo que reúne vinho e boa co-mida e onde se aprende, por exemplo, que ao contrário do que muitos pensam no Brasil, não se deve comer a sequência de “raclette” quen-te com batatas assadas, harmonizadas por um tinto delicado, e sim, ao estilo suíço, com um branco seco como o Gewürztraminer.

Riviera do chocolate ao leiteUma hora de trem partindo de Sierre e chega-se à região do lago Lemán, também conhecido como lago de Genebra, um dos atrativos natu-rais da famosa Riviera Suíça. Seria necessária uma matéria à parte para falar dos encantos das cidades que beiram o magnífico lago, como Lausanne, a capital olímpica, que abriga o Mu-

seu da Olimpíada, e Montreux, famosa por seus festivais musicais e pela profusão de atra-tivos culturais que oferece ao turista. Ao lado dessas maravilhas, existe ainda um pequeno paraíso, berço do chocolate ao leite e do chocolate branco, chamado Vevey. A pacata cidade de pouco mais de 15 mil habitantes é também o quartel principal da gigante Nestlé. Há algumas quadras do imenso complexo da empresa, encontra-se uma pequena mas bada-lada confeitaria: a de Monsier Poyet, um dos mais criativos chocolatiers do mundo. Poyet ficou famoso por inspirar-se em grandes personalidades mundiais para criar novas de-lícias. Entre elas o dalai lama, João Calvino, o rei da Tailândia e Charles Chaplin, que pas-sou os últimos 25 anos de vida em Vevey. Famoso também por escolher a dedo o cacau que importa de diversos países – e justificar

a distante Mont Blanc. A região é tombada pela Unesco como patrimônio natural da humanidade. Com um pouco de sorte, o turista que visitar os Alpes po-derá acompanhar uma apresentação de alguns dos 150 tocadores do tradicional “alphorn”, sempre presentes no Cantão de Valais. Trata-se da chamada trompa alpina – longos chifres de madeira que eram usados no país desde o século 6 como comunicação entre os fazendeiros para organizar rebanhos e que também se tornaram um instru-mento musical típico dos Alpes.

Terroir suíço É também no Cantão de Valais, no distrito de Sion, que está uma das mais importantes produções de vinhos do país. Cer-ca de 10% dos 120 milhões de litros produzidos por lá são ela-borados em Valais, que conta com a bênção das águas do rio Rhône, ícone na vizinha França. A produção suíça é incipien-te se considerado o alto consumo de 280 milhões de litros/ano (cerca de 40 litros por pessoa), o que demonstra claramente as razões que fazem da Suíça um grande importador (o 10º do mundo) e um exportador que envia apenas 4% do que faz. A Provins Valais é uma cooperativa de mais de 80 anos, que exporta ao Brasil alguns belos exemplares com uvas autócto-nes como os varietais com as brancas Petite Arvine e Heida,

A produção de vinho da Suíça é pequena se comparada ao consumo: cerca de 40 litros por pessoa por ano.

Viagem DiVinaA Confeitaria Poyet,

escondida ao lado da imensa Nestlé, é

um pequeno paraíso de chocolate

ambas da linha Maître de Chais. Nos tintos locais, vale des-tacar o rótulo Cornalin du Valais 2005, da uva Cornalin, que apresenta aroma de compota de frutas vermelhas e excelen-te corpo. No Cantão são plantadas cerca de 45 variedades, sendo 12 exclusivas da Suíça. “O microclima de Sion conta com muito sol e ventos quentes, o que contribui para formar vinhos bastante alcoólicos”, explica Madame Bitz, diretora de comunicação da cooperativa. Em 30 minutos de carro chega-se à ensolarada Salgesch, pequena vila onde se encontra o interessante Museu do Vinho de Valais e o curioso Hotel Arkanum, restaurado há dez anos com o tema de uma vinícola antiga. Há diversos quartos temáticos – alguns deles contam até mesmo com uma cama fechada no formato de uma barrica de vinho. A visita ao museu e uma noite nessa curiosa cama são obriga-tórias para os enófilos mais entusiasmados. A região é realmente encantadora. Imperdível também é o Caminho dos Vinhedos, um passeio de 6 km que liga Sal-gesch à cidade de Sierre, e passa por pequenas proprieda-des – um caminho sempre ladeado por videiras e com uma vista incrivel. É possível fazer o trecho caminhando ou de bicicleta, ou ainda de um jeito único, concebido apenas na Suíça: passear aos pés de autóctones como a Petite Arvine, com os majestosos cães da raça são-bernardo, tra-

dicionais companheiros suíços. Usados anteriormente como guias da neve e especialistas em localizar pes-soas enterradas por avalanches, os são-bernardos acabam de completar 125 anos de reconhecimento oficial como raça de cães genuinamente suíça. Ao todo, há no país cerca de 700 animais, todos com pedigree. Mas o mais famoso são-bernardo que passou por Valais é o célebre Barry, que, segundo contam, foi criado pelos monges entre 1800 e 1812 e se tornou um herói ao resgatar 40 pes-soas perdidas na neve e no gelo. Após a caminhada entre vinhedos, tudo que se quer é encontrar um local onde seja possível degustar rótulos de produção local – melhor ainda se as opções forem mais de 600 rótulos, de 114 produtores de Valais – e ainda poder experimentar

Centro velho de Lausanne, à margem do lago Léman

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essa seleção como o segredo de seu sucesso –, Poyet afir-ma que o cacau do Brasil não é mais o que costumava ser antes das brigas de fazendeiros na Bahia. “Infelizmente a qualidade do fruto caiu muito. Da América do Sul, prefiro comprar cacau de pequenas propriedades na Venezuela e algumas variedades premium na Bolívia”, diz.

Escarpas brilhantes Em oito pontuais minutos, vai-se de trem de Vevey a Chex-bres, parte de mais um patrimônio natural da humanidade chancelado pela Unesco: os vinhedos de Lavaux. Mesmo os mais experientes enófilos ficam impressionados com a bele-za do lugar, salvo em 2007 pelo título da Unesco, que serviu para preservar as iluminadas escarpas de vinhas à beira do lago de possíveis especulações imobiliárias.Para conhecer os vinhedos de Lavaux e as oito diferentes regiões com denominações de origem, há diferentes op-ções: desde uma caminhada ou corrida entre as vinhas,

até um passeio em um confortável trem turístico que cor-ta lentamente a montanha, com uma vista inesquecível. Nas pequenas vielas que escondem rústicas tavernas per-cebe-se uma mescla interessante de um certo charme tipi-camente suíço, com toques franceses. Afinal, a França fica logo ali, do outro lado do lago. A rotina de quem vive ao redor do lago Léman, seja em Lausanne, Montreaux, ou nos distri-tos de Lavaux, é pacata, alegre e segura. Os encantos gour-met são apenas mais um colorido de uma vida que parece ter sido desenhada para ser desfrutada, onde os problemas não ofuscam os prazeres. Apesar da cultura heterogênea de um micropaís, o alto pa-drão não se altera de região para região, todos vivem em boas condições. A Suíça é um país que blindou sua economia, evoluiu socialmente e ambientalmente e hoje proporciona uma qualidade de vida invejável aos seus 7.4 milhões de ha-bitantes. Visitá-la é mais que um prazer enogastronômico, esportivo ou de luxo, é uma verdadeira lição de civilidade.

Viagem DiVina

Do confortável trem turístico tem-se uma vista inesquecível dos vinhedos da região de Lavaux