viagens de guliver

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS As Viagens de Gulliver e a ascensão do romance inglês ROGER MAIOLI DOS SANTOS Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação na área de Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo SÃO PAULO 2006

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UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASAs Viagens de Gullivere a ascenso do romance inglsROGER MAIOLI DOS SANTOSDissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao na rea deEstudos Lingsticos e Literrios em Inglsdo Departamento de Letras Modernasda Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanasda Universidade de So PauloSO PAULO20063UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASROGER MAIOLI DOS SANTOSAs Viagens de Gullivere a ascenso do romanceinglsDissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao na rea deEstudos Lingsticos e Literrios em Inglsdo Departamento de Letras Modernasda Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanasda Universidade de So PauloOrientador: Prof. Dr. Marcos Csar de Paula SoaresSO PAULO2006ivResumoEste um estudo das relaes entre As Viagens de Gulliver e o romance ingls em suafase de formao.Em 1726, quando Gulliver foi originalmente publicado, o romance ingls no era aindaum gnero consolidado, mas os elementos formais que o caracterizariam j circulavam emoutrasformasliterrias.Esseselementosformaiscomoacontemporaneidade,aprobabilidade,anfasenarealidadequotidiana,arejeiodeenredostradicionais,alinguagemreferencialeoindividualismoassociavam-seentoacorrentesliterriasevalores progressistas inaceitveis para Swift.Em As Viagens de Gulliver, Swift se apropriou dessas exatas convenes para atacar pordentrotaiscorrentesetaisvalores.Emoutraspalavras,Gulliverconstituiu(entremuitasoutras coisas) uma pardia intermitente das tendncias formais que com o tempo viriam acaracterizaroromancemoderno.Enoatomesmodeseapropriardasconvenesquecombatia, Swift contribuiu para o estabelecimento de uma via alternativa para autores maistradicionais.Palavras-chave: Swift; Gulliver; literatura inglesa; romance; pardia.vAbstractThis is a study of the relationships between Gullivers Travels and the English novel inits formative stage.WhenGulliverwasoriginallypublishedin1726,theEnglishnovelwasnotyetaconsolidated genre, but the formal elements that would eventually characterise it were alreadycirculatingviaotherliteraryforms.Suchformalelementse.g.contemporaneity,probability, emphasis on daily reality, the rejection of traditional plots, referential languageand individualism were then associated with literary trends and progressive values deemedunacceptable by Swift.In Gullivers Travels, Swift appropriated these very conventions in order to attack fromwithin such trends and values. In other words, Gulliver amounted (among many other things)to anintermittentparodyoftheformaltrendsthatwouldintimecharacterisethemodernEnglish novel. And in the very act of appropriating the conventions he were fighting against,Swift furthered the establishment of an alternative avenue for more traditional writers.Keywords: Swift; Gulliver; English literature; novel; parody.vindiceResumo.................................................................................................................................... iiiAbstract................................................................................................................................... ivSumrio....................................................................................................................................vndice........................................................................................................................................viNotas sobre o texto.................................................................................................................viiiIntroduo...............................................................................................................................1PARTE 1: NORMAS E EXCEES...................................................................................91.1. Sociedade e Neoclassicismo......................................................................................... 101.2. Neoclassicismo e Romance...........................................................................................161.3. Romance e Sociedade................................................................................................... 251.3.1. McKeon.................................................................................................................291.3.2. Hunter....................................................................................................................331.4. Recapitulao................................................................................................................25 PARTE 2: SWIFT E GULLIVER.........................................................................................412.1. As Razes de Gulliver................................................................................................... 422.1.1. Razes Polticas..................................................................................................... 432.1.2. Razes Literrias....................................................................................................492.2. Verdade e Virtude.........................................................................................................572.2.1. Viagens Verdadeiras? ...........................................................................................58vii2.2.2. Viagens Imaginrias..............................................................................................642.2.3. O Viajante Imaginrio...........................................................................................692.2.4. A Alternativa Conservadora..................................................................................76PARTE 3: CONCLUSO......................................................................................................863.1. Concluso...................................................................................................................87Bibliografia..............................................................................................................................97viiiNotas sobre o texto:a)Eviteicitaremoutrosidiomas.Ascitaesserotraduzidaseteroseuoriginalregistrado no rodap.b) Adotei as seguintes abreviaturas para as notas de rodap (ver dados completos naBibliografia):CCJS: The Cambridge Companion to Jonathan Swift, edio de Christopher FoxCCEN:TheCambridgeCompaniontotheEighteenth-CenturyNovel,ediodeJohnRichettiEECE: Eighteenth-Century Critical Essays, edio de Scott ElledgeGGT:The Genres of Gullivers Travels, edio de Frederik N. SmithGT: Gullivers Travels, edio crtica de Albert J. RiveroMMS: TheMemoirsoftheExtraordinaryLife,Works,andDiscoveriesofMartinusScriblerus, edio crtica de Charles Kerby-MillerTCH: Swift:TheCriticalHeritage,coletneadetextosdepocaeditadaporKathleen WilliamsWJS:TheWritingsofJonathanSwift,ediocrticadeRobertA.GreenbergeWilliam Bowman Piper1IntroduoDesde que passei a me ocupar com estudos sobre a origem do romance ingls, tornou-secomumqueaspessoasmeperguntem:eGulliver,comoficanessahistria?Emalgummomento observei que a resposta exigiria todo um volume. Este o volume.Publicadas em 1726, AsViagensdeGulliverj ganharam muitssimas classificaes:romance, stira narrativa, conto picaresco, viagem imaginria, utopia, antiutopia e a listaprossegue1.Aincertezaresultanosomentedafaltadeestabilidadetaxonmicaquecaracterizou a prosa de fico na primeira metade do sculo XVIII, mas tambm da variedadede modelos a que Swift recorreu na composio do livro. Em Gulliverconfluem elementos,por exemplo, de Sir Thomas More, Rabelais, William Dampier e Daniel Defoe escritorescom intenes e mtodos to distintos que dificilmente poderamos abrig-los sob um toldocomum.AreuniodessasfontesfezdeGulliverumlivrodemuitasfaces,desafiandoaclassificao categrica e relegando a obra a um estado de flutuao genrica que perdura athoje. Ao passo que a posterior distino dos gneros concedeu a RobinsonCrusoum lugarassegurado nagnese doromancemoderno,Gulliveraindaerrapelasmargensdahistrialiterria, e to cedo no promete lanar ncora.A promiscuidade genrica de Gulliver tambm a de seu autor. J onathan Swift (1667-1745) no se notabilizou pela prtica de nenhuma forma consagrada. Membro da esfera cultanuma poca em que a tradio neoclssica comeava a dar mostras de esgotamento e as novasopes formais eram pouco convidativas para o escritor de formao, Swift descobriu-se semmodeloscertosaseguir.Seuprimeirobigrafo,ocondedeOrrery,observouqueeleescrevera miscelaneamente, e optara antes por parecer um cometa errante que uma estrelafixa.Houvesseaplicadoasfaculdadesdesuamentenumaobragrandeetil,eeleteria

1 Para uma relao mais completa, ver Frederick N. Smith, Introduction. GGT, P. 20.2decerto brilhado com mais glria2. No bastasse as formas disponveis na poca pareceremdesgastadasouvis,Swift,porsuaconta,parecehaverduvidadocronicamentedavirtudeintrnseca das obras de imaginao. Se chegou a aplicar a srio as faculdades de sua mente,nofoinaliteraturaimaginativa:eleeraacimadetudoumescritorpolticoquepunhaaescrita a servio de uma causa ulterior, e que via pouco valor autnomo nos frutos literriosdessacampanha,aosquaisraramenteapunhaseunome.Sealgumgnerolhepareciasobressair aos demais, era a histria. Ele almejou destacar-se como historiador da Inglaterra eespecialmente do reinado de Ana, mas seus ocasionais esforos historiogrficos no lograramxito.Seusdemaisescritossoamideefemeridadesemquesereconheceavozdohistoriadorecomentaristapoltico.AssimtambmAsViagensdeGulliver:longederevelaremumaeventualcrenanovalorartsticodaprosadefico,elasconstituramaadoodeummodelosocialmentesignificativoquepermitiriaaSwiftdarvazoaseusinteresses centrais nos planos simultneos da forma e do contedo. Com o tempo a motivaopoltica do livro esmaeceria e seria obscurecida pelo mero interesse narrativo, em resultado doqueSwiftentrariaparaahistriadaliteraturainglesacomoumficcionistamalgrlui.Opblico em geral no estranharia ver RobinsonCrusoe AsViagensdeGulliverombreandoemsriesjuvenisecoleesderomancesfamosos.Acrticaespecializada,porm,noperderia de vista a atitude de Swift para com a prosa de fico uma atitude a um s tempode adoo e repdio , nem a complexa relao de As Viagens de Gulliver com o emergenteromance ingls.Oleitor,comboarazo,desejarsaberoquetenhoemmenteaomereferiraoromance. Por motivos que ficaro claros mais adiante, no pretendo adotar uma definiorestritiva do termo, que rotule impecavelmente o universo de obras. Por enquanto apresentouma definio sucinta, que ser complementada na Parte 1 por uma descrio operacional dognero. Tanto a definio como a descrio so de J . Paul Hunter. O romance

2 [Swift has written miscellaniously, and has chosen rather to appear a wandering comet, than a fixed star. Hadheappliedthefacultiesofhismindtoonegreat,andusefulwork,hemusthaveshinedmoregloriously.Remarks on the Life and Writing of Dr. Jonathan Swift, Dean of St. Patricks, Dublin (1752) TCH, P. 116.3umaespciedistinta(eentobastanteinovadora)deprosadeficodenotandoapreocupao com a subjetividade e a conscincia de pessoas comuns, com a linguagem comume com eventos quotidianos e contemporneos que emergiu na Europa em vrios pontos dossculos XVI e XVII e comeou a dominar o mercado popular na Inglaterra no incio do sculoXVIII, pouco antes de Swift escrever As Viagens de Gulliver.3Essa definio, a princpio bastante ampla, tambm suficientemente precisa para daraognerofronteirasmaisoumenosdefinidas.Taisfronteiraspodemparecerarbitrrias,sobretudoparans,leitoresdenossotempoeidioma.Issosedeveaumproblematerminolgicoquesempreseimpeaosqueescrevememportugussobreoromancedelngua inglesa. O tipo de obra narrativa que atualmente chamamos de romance digamos,Mrs. Dalloway ou O Complexo de Portnoy designado em ingls pela palavra novel. Essetermo, entretanto, no tem o sentido amplo de sua contrapartida em portugus. Em seu usosubstantivo,onossoromancepodeseaplicartantoapoemasdocrculoarturiano,aoRoman de la Rose e s longas narrativas hericas de Madelleine de Scudry como a obras deDickens,FlaubertouDostoivski.Apalavranovel,seusadacomrigor,svaleparaosegundo grupo, e exclui de antemo composies em verso e o mundo maravilhoso da lenda.Quando discorremos em portugus ou mesmo em francs ou italiano sobre a ascensoinglesa do romance, roman ou romanzo, precisamos qualificar nossos termos. Podemos faz-lo pelo recursoa um epteto: a verso italiana de TheRiseoftheNovel,porexemplo,seintitula Le Origini del Romanzo Borghese. Eu preferi utilizar pura e simplesmente romance,ressalvando porm que o termo deve ser entendido o tempo todo como uma traduo literal denovel, com as restries de sentido que isso implica: a preocupao com a subjetividade e aconscinciadepessoascomuns,comalinguagemcomumecomeventosquotidianosecontemporneos.

3 [The novel] is a distinctive (andthenquiteinnovative)kindofprosefictionfeaturingaconcernwithsubjectivity and the consciousness of ordinary people, ordinary language, and everyday contemporary events that emerged in Europe at various points in the sixteenth and seventeenth centuries and that began to dominatethe popular market in England in the early eighteenth century, shortly before Swift wrote Gulliver's Travels. J .Paul Hunter, Gullivers Travels and the later writings. In: CCJS, p. 238, n. 18.4AespecificidadedotermonaInglaterraumresultadodosesforoscrticosquesefizeram desde o final do sculo XVII para diferenciar a novelde um outro gnero bastanteamploque,paraonossoinfortnio,osingleseschamamderomance.Apalavradesignasobretudo o que conhecemos como o romance herico ou idealista da Frana, com seu recursoao maravilhoso, seu decoro corteso e seus heris nobres, em ntido contraste com a realidademais prosaica da novel. Tambm designa a atitude anti-realista que voltaria a ter vigncia como movimento gtico e o Romantismo. J se v que problemas isso cria para o tradutor: textoscomo o prefcio de Nathaniel Hawthorne em A CasadasSeteTorres, no qual o autor fazdistines entre novele romance, chegam ao portugus empregando os cognatos novela eromance. A leitura fica mais fluente, mas o sentido padece. Um estudo crtico no podecorreresserisco.Comojreduziaabrangnciadoportugusromanceparacriarumequivalenteinstrumentaldenovel,adotareicomotraduodoinglsromanceaexpressoestria romanesca ou a forma reduzida romanesco, seguindo nisso o exemplo de SandraVasconcelos4.NaprimeirametadedosculoXVIIIadistinoentreromanceeestriaromanescaainda no se assentara, e as expresses eram usadas sem nenhum critrio consensual, sendoporvezesintercambiveis.Pior:aelasvinhamsomar-semuitasoutrasdesignaes,comohistria, memria e epopia. Esses termos eram alis preferveis: na virada do sculoXVII para o XVIII o termo romance (novel) estava por demais associado ao escndalo deautorasmalvistascomoAphraBehneMaryDelariviereManleyparaqueescritoresdeambiooadotassem.Nops-escritoaClarissa,Richardsontratoudedesenganarosquevissememseulivroummeroromanceouestriaromanesca5.Fielding,porseuturno,conclamouparasiocampodopicocmicoemprosaedahistria(...),diferentedoenxamedetolosromancesemonstruosasestriasromanescas6.Entreosromancistascannicosanterioresa1770,somenteSmollettadmitiuemalgummomentoescreverromances, na dedicatria de The Adventures of Ferdinand Count Fathom (1753). E todavia omesmoSmollettconsideravaTheAdventuresofRoderickRandom(1748)umaestria

4 Sandra Guardini Vasconcelos, Dez lies sobre o romance ingls do sculo XVIII, p. 35.5 () a mere novel or romance. Clarissa, p. 1498.6 Cf. prefcio a J oseph Andrews e Tom J ones, IX, I (Swarm of foolish Novels, and monstrous Romances ).5romanesca, apesar de a estrutura dos dois livros ser muito similar.Essa confuso terminolgica no era apenas m vontade: antes de a noo do romancecoalescernasegundametadedosculoXVIII,osromancistasinglesesnoseviamnecessariamente numa empreitada comum. [L]onge de estarem prontos a aceitar as variadasobras como romances, eles no parecem ter chegado nem mesmo ao consenso de que obrascomo RobinsonCruso,Pamela,JosephAndrews,Clarissa,TomJones,PeregrinePickleeTristramShandyeram todas da mesma espcie7. Em outras palavras, o romance ingls nonasceudeumprojetoformalelaboradoemcomunhoporumconjuntodeautoresdevanguarda. A teorizao neste caso, como em muitos outros, foi posterior prtica: o conceitodo gnero s se estabilizou aps um elevado grau de experimentao por parte de autores queseguiamportrilhasparalelasmasdistintas.Nossosesforosporconferirmaiornitidezsfronteiras genricas esbarram no fato de que livros muito diferentes seconsagraramcomoromancesnumapocaemqueostermosvinhamseassentandomasogneroerarelativamente amorfo. A menos que estejamos dispostos a rejeitar uma parte dessas obras digamos,TomJonesouTristramShandy,asdefiniesquepropusermosprecisamsersuficientementeflexveisparaacomodartodaagamadeexperimentaoqueprecedeuaestabilizao terminolgica. Eis por que evitei adotar uma definio restritiva de romance:nenhum modelo rgido de formulao posterior poder dar conta da instabilidade e da fluidezgenrica ento prevalecentes.Uma conseqncia dessa abordagem mais malevel origem do romance que teremosde renunciar idia de obra fundadora. Tal idia, especialmente grata ao jornalismo cultural, dequalquermodopoucocriteriosa.Aeleiodeumprimeiroromancecostumaserinfluenciada por preferncias pessoais ou nacionais, e decidida graas a definies genricaselaboradascomofitodeexcluirpredecessores.Issoocorreporqueclassificaocomoromanceapega-seusualmenteumjuzodevalor:numapocaqueprefereainovaoaotradicionalismo,seroprimeiroromancesignificasobressairnagrandecorrenteliterriaeprenunciar o futuro. Mais que isso: o julgamento da primazia feito quase sempre com base

7 [F]arfrombeingreadytoacceptthevariousworksasnovels,theydonotappeartohavearrivedataconsensusthatworkssuchasRobinsonCrusoe,Pamela,JosephAndrews,Clarissa,TomJones,PeregrinePickle and Tristram Shandy were even all of the same species. Geoffrey Day, From Fiction to the Novel, p. 7. 6no cnone, como se o primeiro fosse necessariamente o famoso. Os candidatos a romancefundadorinclueminvariavelmenteobrascannicas:Satyricon,OAsnodeOuro,Filocolo,Pantagruel, A Celestina, Lazarillo de Tormes, Dom Quixote, A Princesa de Clves, RobinsonCruso, Pamela, Joseph Andrews. Temos a uma confuso entre precedncia e preeminncia,e ela prejudicial ao estudo srio de origens. O cnone um instrumento til na medida emque permite ao crtico manusear um corpus universal vasto demais para ser abarcado em suainteireza.EmMimesis,porexemplo,ErichAuerbachoptouconscientementeportrabalharcom autores cannicos (salvo algumas excees), em razo do imenso intervalo histrico quelhecoubeporobjeto.Mimesis,emsuabuscapelaunificaodaquotidianidadecomaseriedadetrgica8,constituiantesumexamedecasosdispersosdoqueumahistriadorealismo europeu9, j que Auerbach deixa de lado no somente autores de menor vulto (comoRobert Challe e George Lillo), mas tambm figuras importantes como Samuel Richardson,tratando sumariamente de outros como Caldern e Lope10. Essa opo, vlida para a propostade Mimesis, menos justificvel num estudo de origens. Nesse caso devemos ter em menteque o cnone representa um recorte seleto de um universo muito mais amplo, e que nesseprocesso de reduo ele agiganta a singularidade das obras, conferindo uma nitidez enganosas fronteiras formais da histria e favorecendo o estabelecimento da precedncia em tal ouqualgnero.evidentequeselimitarmosnossoexameaShakespeare,Donne,MiltoneDefoe, este ltimo ser o fundador do romance. A certeza desaparece quando trazemos mesaa grande e multifria produo que acompanhou Robinson Cruso e que partilhou em muitosmomentos de suas caractersticas formais, por vezes antecipando-as. A eleio segura de umprimeiro romance, portanto, s pode ocorrer com a simplificao do processo histrico. Osdois crticos com quem minha presente dvida maior J . Paul Hunter e Michael McKeon, em que pesem suas divergncias, coincidem na proposta de expandir o leque de estudo econsiderar obras no cannicas e at mesmo extraliterrias, no esforo por resgatar a realcomplexidade da gnese do romance.Comosev,nossoterritriobravio.Elenopossuifronteirasmarcadasnem

8 Erich Auerbach, Mimesis, p. 246.9 Idem, p. 493.10 Ibidem, p. 296.7compartimentos estanques. Ao longo das pginas seguintes,oinciodosculoXVIIIservisto como um momento literrio prolfico e genericamente instvel, em que as narrativas emprosa podem participar simultaneamente de muitos gneros do romance, do romanesco, dautopia,dasbiografiascriminais,dasalegoriasreligiosas,daviagemimaginriasemsedeixarem reduzir a nenhum deles; e no haver um teste de DNA que lhes determine a purezade sangue, nem identifique o primeiro romance genuno. O risco de que esse ofuscamento dasfronteiras ponha em dvida o processo mesmo de ascenso de um novo gnero ilusrio. Naspalavras de Hunter:[O] moderno romance ingls, como o conhecemos, ganha existncia em algum momento noincio do sculo XVIII, e eu afirmaria que a quantidade explosiva de fico narrativa na poca,juntamente com mudanas distintas e definveis na natureza da narrativa extensa, significam quepodemos especificar a emergncia de um gnero mesmo que no a possamos fixar numa tardequalquer de sexta-feira.11Aps essas consideraes preliminares, o leitor j ter previsto que meu objetivo aquinoserrestituirAsViagensdeGulliveraoseiodoromance,problemaquesepoderiaresolvercomumadefiniodognerodesenvolvidaespecificamenteparaessefim.Issoequivaleria, no entanto, a mudar o idioma da discusso crtica e impossibilit-la na prtica.Meu interesse est antes em estudar as relaes entre AsViagensdeGullivere esse gnerocujoscontornosaindaeramincertosmascujastendnciasparticularesjserevelavam.Oestudo se dividir em duas partes, com uma concluso ao final. A Parte 1, que tratar muitopouco de Swift em si, procurar retratar a posio do romance no incio do sculo XVIII,comoumgnerosemregraesemprestgionumapocadenormasneoclssicaseprepondernciadeescritorespertencentesouvinculadosaristocracia.AParte2inserir

11 [T]he modern English novel as we know it comes to exist sometime around the beginning of the eighteenthcentury, and I would argue that the exploding amount of narrative fiction then, together with distinctive anddefinable changes in the nature of extended narrative, mean that we can specify the emergence of a genre even ifwe cannot pin it down to a particular Friday afternoon. J . Paul Hunter, GulliversTravelsand the Novel, p.70.8Swift no contexto descrito na Parte 1, estabelecendo relaes entre As Viagens de Gulliver e oromanceemformao;entreSwifteosnovosromancistas;eentreaesferaconservadoradaquele e a esfera progressista a que estes freqentemente pertenciam.Se Swift percebia os rumos que a prosa de fico vinha tomando, de que maneira suasinclinaesseespelhamemsuanicaincursoprolongadaporesseterreno?Emoutraspalavras, e Gulliver, como ficanessa histria? Veremos como esse livro reflete e incorporaproblemas mais gerais da histria literria e social de seu tempo, ilustrando toda uma atitudede classe e de poca com relao a um notrio arrivista.9PARTE 1Normas e excees101.1. Sociedade e neoclassicismoA estria romanesca cujo espao o romance viria pouco a pouco a ocupar no era senoum nicho menor da literatura aristocrtica. O momento que testemunhou a publicao de AsViagens de Gulliver pertencia no Era do Romance, nem Era do Romanesco, e sim aoque desde h muito se convencionou chamar de Era Augustana um perodo histrico ecultural que se espelhava na pujana do Imprio Romano na poca de Augusto e no prestgiodeluminaresdasletrascomoVirglio,HorcioeCcero;umafaseemqueapolticaealiteraturaeramregradasporprincpiosdeordemmaiorumaaristocraciailustradanoprimeiro caso e normas neoclssicas no segundo. Essa, ao menos, a definio estereotpica;no lhe faltam problemas, como veremos em seguida.O perodo que a expresso Era Augustana designa a primeira incerteza. O clssicoestudo de Arthur Humphreys traz uma delimitao no subttulo: TheAugustanWorldLifeandLettersinEighteenth-CenturyEngland.HumphreysseconcentranosculoXVIIImaisexatamenteatseusmeadosedeixadeladoointervaloentre1660e1702(respectivamente a Restaurao e a ascenso da rainha Ana). Scott Elledge, em sua antologiade ensaios crticos da poca, cita a que lhe parece a meno mais antiga da expresso numtexto de Leonard Welsted datado de 1720: vejo elevar-se uma nova Era Augustana12. A. C.Ward buscar uma fonte posterior, mas com uma conseqncia interessante: a seu ver a idiade augustanismo tem origem numa passagem da biografia de Dryden escrita por J ohnson:O que se disse de Roma, adornada por Augusto, pode aplicar-se mediante uma fcil metforapoesiainglesaembelezadaporDryden:lateritiaminvenit,marmoreamrelinquit,eleaencontrou tijolos e a deixou mrmore13. Isso faria recuar a Era Augustana ao sculo XVII, demodo a englobar a obra de Dryden e de outros autores que instauraram a correo poticaaps a exuberncia desregrada dos poetas metafsicos. E, de fato, encontramos uma passagem

12 I see arise a new Augustan Age. Welsted, An Epistle to the Duke of Chandos. In ECCE, p. 548, n. 1.13 WhatwassaidofRome,adornedbuAugustus,maybeappliedbyanwasymetaphortoEnglishpoetryembellished by Dryden, lateritiam invenit, marmoream relinquit, he found it brick, and he left it marble. Life ofDryden. V. A. C. Ward, Illustrated History of English Literature, v. II, p. 77.11anterior de Welsted num texto de 1690 escrito por Francis Atterbury, bispo de Rochester:[Waller] ocupa sem dvida o primeiro lugar na lista de refinadores e, at onde sei, tambm oltimo; pois pergunto-me se no reinado de Carlos II o ingls no atingiu sua plena perfeio eno teve sua Era Augustana, como a teve o latim14. A delimitao da Era Augustana assimvariante:elaorasituadanoperodo1660-1700,oranoperodo1700-1740.Resolverainconsistnciacabenaturalmenteaespecialistasnarea.Eu,porprudnciaetambmporque pretendo tratar do credo neoclssico que regrou grande parte da produo augustana, optei por trabalhar com os extremos 1660-174015.A Era Augustana, comecei dizendo, representa no somente um perodo cultural, mastambm uma fase da histria poltica e social da Inglaterra. A estratificao entre aristocratas,capitalistas e pobres parecia corresponder a uma tripartio romana similar, e a grandeza danova Inglaterra queria refletir a de Roma. Mas a justia do paralelo foi desde cedo posta emdvida. Voltaire lhe aplicaria sua usual verve: H um senado em Londres cujos membros soempartesuspeitosemboraseguramenteporenganodevenderocasionalmentesuasvozes, como se fazia em Roma; eis a toda a semelhana16. A coincidncia de estratos sociaisera ademais irrelevante, sendo caracterstica detodasassociedadesmaisavanadasondeainda no teve incio o processo de igualizao17. Ainda mais problemtica a suposta visode Augusto como ideal de governante e patrono das letras. Howard D. Weinbrot coligiu todoum volume de evidncias de que os augustanos viam em Augusto um tirano da pior espcie:covarde, traioeiro, opressivo e depravado, responsvel por solapar o equilbrio constitucionalda repblica. O mito de um Augusto sbio e virtuoso mito que tinha suas altas e baixasconforme oscilava o prestgio do rei seria uma fico invocada por poetas com finalidadesretricas ou em busca de patronato rgio. Para Weinbrot, o rtulo augustano (que deveriaalis ser descartado) enganoso at mesmo no campo da literatura. A reputao dos luminares

14 [Waller] undoubtedly stands first in the List of Refiners, and for ought I know, last too; for I question whetherinCharlestheSecondsReign,Englishdidnotcometoitsfullperfection;andwhetherithasnothaditsAugustanAge, as well as the Latin. Francis Atterbury, Preface to The Second Part of Wallers Poems. InDavid Womersley (ed.), Augustan Critical Writing, p. 121.15 Sigo o exemplo de Bonamy Dobre. English Literature in the Early Eighteenth Century, p. 17.16 Il y a un snat Londres dont quelques membres sont souponns, quoique tort sans doute, de vendre leursvoix dans loccasion, comme on faisait Rome; voil toute la ressemblance. Voltaire, LettresPhilosophiques,VIII, p. 63.17 Hauser, Histria Social da Arte e da Literatura, p. 536.12clssicos, sobretudoVirglio,sofreuemrazodoselogiosquehaviamfeitoaAugusto.AEneida foi vista por muitos como um poema poltico que preconizava a monarquia. Horciosofreu crticas similares, e Ccero foi tido como um cego que no percebera nutrir seu futuroexecutor18.Portudoisso,cumpreusarcomcertareservaonomeEraAugustana;eleconveniente, mas no preciso. E contudo, apesar das imperfeies, ele muito revelador sedele depreendermos uma relao estreita entre literatura e alta sociedade.Raramente na histria da literatura inglesa a corte exerceu tamanha influncia sobre osautorescomonapocadeCarlosII.Ointeressesincerodomonarcapeloassunto(especialmentepelodrama)incentivouodesenvolvimentodecrculosletradosnoseiodaaristocracia, e notvel o nmero de nobres ento capacitados a escrever com distino eelegnciacomooduquedeBuckinghameocondedeRoscommon.Comocasionaisexcees (como Bunyan e Milton), os grandes autores da Restaurao foram membros da altasociedade ou integrantes da classe mdia cuja educao refinada lhes permitiu o acesso scamadas superiores19. O circuito fechado da produo e consumo da literatura palaciana foimuito propcio para o desenvolvimento do etos refinado que notabilizou a poca. Por um lado,ospatronospermitiamaosautoresdedicar-secriaopoticasemsepreocuparcomquestes mundanas como a vendagem; por outro, os autores estavam em contato direto comum pblico composto por connoisseurs cujas expectativas conheciam e cujas crticas ouviamem primeira mo. Essa reciprocidade tinha como resultado uma censura informal, que excluado escopo da literatura tudo o que fosse ofensivo s altas camadas sobretudo as camadasbaixas. A vida quotidiana (esse reduto de artesos, vielas urbanas, rixas de famlia, ambiesburguesas e aromas indceis) s poderia figurar na literatura como objeto de ridculo, nomerecendotratamentosriodeautoresquetinhamnapolidezumadesuasmximas.Ilustrao literal disso a passagem de AbsalomandAchitophel em que Dryden se recusa anomear os rebeldes rasteiros: Tampouco a turba abjeta ter aqui lugar / A quem reis noderam ttulos, e nem Deus graa20. A Restaurao, vista como um retorno ordem polticadepoisdosanosatrozesdeGuerraCivileCommonwealth,seriaassociadatambm

18 Weinbrot, Augustus Caesar in Augustan England, p. 50, 126 e 12.19 Ver J ames Sutherland, English Literature of the Late Seventeenth Century, pp. 25-31.20 Nor shall the rascal rabble here have place, / Whom kings no title gave, and God no grace. Dryden, Absalomand Achitophel, 579-580. In Hammond (ed.), Restoration Literature: An Anthology, p. 55.13reordenaoliterria.Dryden,paraquemumadascausasdaimpolidezelisabetanaforajustamenteadistnciaentreescritoresenobres,referiu-seaoselisabetanoscomoaraagiganteanterioraodilvio21expressoquesugeregrandezamastambmgrosseria.Recorde-sequeosdramaturgoselisabetanosescreviamtantoparaafinaflorcomoparaagente de poucas letras que ia buscar algum regalo nos teatros, e tinham de servir a ambas. Osaugustanos s serviriam primeira. Preservar a grandeza mas refinar o tom foi seu projetomaior. E seu manual de etiqueta foi o neoclassicismo.A corte que se formou em torno de Carlos II aps a Restaurao inclua muitos inglesesque se haviam instalado na Frana durante os anos da Guerra Civil e se imbudo da cultura edosvaloresfranceses;tambmincluafrancesespertencentesaosquitodarainha-meHenriquetaMaria.Opensamentocrticofrancs,entonumafasedeintensaatividade,trasladou-secomelesparaaInglaterraeaganhoucorrncia.Aliteraturanacionalseriamedida de acordo com princpios que ferventaram na Frana entre 1630 e 1660 e ganharamsistematizaoduranteoreinadodeLusXIV.Essesprincpios,quesmuitomaistardeseriamchamadosdeneoclssicos,teriamvastainfluncianossculosXVIIeXVIIIeserviriam por muito tempocomopedradetoquedaboapoesia.DuranteoRenascimento,intrpretesitalianosefrancesesdapoticaclssicasehaviamincumbidodepreencheraslacunas dos textos antigos (sobretudo o de Aristteles) e formular regras abrangentes para acomposio e o julgamento da poesia. A Frana do sculo XVII sistematizou essas regras etornou-se o centro difusor do pensamento neoclssico. O princpio supremo desse pensamentoera a funo moralizante da poesia, que se sobrepunha a seu valor como objeto de deleite; emtermos modernos, a funo didtica das obras era mais importante que sua funo esttica.Outros princpios gerais eram a linguagem clara, o contedo decoroso, a verossimilhana dafbula, a unidade de concepo e a consistncia na caracterizao dos personagens. Para tudoissoaimitaodosantigosoudanaturezaeraessencial.Atragdiaclssica,conforme descrita por Aristteles e Horcio e normatizada pela crtica renascentista, seria o

21 () the giant Race before the Flood. To my dear friend Mr. Congreve, on his comedy called The DoubleDealer (1694). Ver tambm o tratamento dado a Shakespeare e J onson em OfDramatickPoesie:AnEssay(1668).14grande modelo a ser seguido nos misteres da caracterizao22 e da unidade23, com o resultadode que todo detalhe secundrio seria visto como excrescncia. O importante, segundo essesistema, era tratar de verdades universais, e no de particularidades geogrficas ou histricas.Shaftesbury observaria: O mero retratista, com efeito, tem pouco em comum com o poeta;antes,comoomerohistoriador,elecopiaoquevetraaminuciosamentetodafeioemarca abstrusa; no assim com homens de inveno eengenho24. Depois dessas regrasgerais, a doutrina neoclssica apresentava outras, mais especficas, que regravam os diversostipospoticos,especialmenteacomdia,atragdiaeaepopia.Aviolnciaexplcitadatragdia elisabetana, por exemplo, seria banida para os bastidores, e toda ao extravagantedeveriasernarradaemvezdeencenada25.Descontadasocasionaisdivergncias,taleraaessncia do pensamento neoclssico que os ingleses receberam da Frana26.Grande parte dos princpios neoclssicos parecia aos augustanos saudvel e conformeao bom senso. De fato, aps sua sistematizao no ltimo quartel do sculo, o neoclassicismose tornou o credo ortodoxo. Mas a intransigncia das regras menores (e especialmente dasunidades de ao, tempo e lugar) era vista como um obstculo inventividade. Essa objeoj vinha sendo feita na prpria Frana por autores comoLa Bruyre, Saint-vremond e oCorneille da fase final, de modo que o neoclassicismo que desembarcou na Inglaterra foi logoacompanhado de sua crtica. O crescente interesse por Longino, cujo tratado DoSublimesedifundiu na traduo de Boileau, favoreceu uma atitude mais liberal no julgamento potico.[D]evemos preferir uma grandeza com alguns defeitos, ou uma mediocridade correta,emtudo s e impecvel? Os ingleses, que tinham sempre presente a obra de Shakespeare comoprova de que era possvel ser grande sem ser exato, se dispuseram tolerncia. [A] preciso

22 Quando se experimenta assunto nunca tentado em cena, quando se ousa criar personagem nova, conserve-seela at o fim tal como surgiu de comeo, fiel a si mesma. Horcio, op. cit., p. 59. (As citaes da potica antigaprovm do volume APoticaClssica, em que Roberto de Oliveira Brando reuniu os textos de Aristteles,Horcio e Longino.)23 Em suma, o que quer que se faa seja, pelo menos, simples, uno. Horcio, Arte Potica, p. 55. Ver tambmAristteles, Potica, VIII, p. 28.24 The mere face painter, indeed, has little in common with the poet but, like the mere historian, copies what hesees and minutely traces every feature and odd mark. It is otherwise with the men of invention and design.Shaftesbury, Sensus Communis, in CharacteristicsofMen,Manners,Opinions,Times(1711). In ECCE, p.174.25 Horcio, op. cit., p. 60.26 Atkins, English Literary Criticism: 17th and 18th Centuries, pp. 11-12.15em tudo acarreta o risco da mediania, e nos grandes gnios, assim como na excessiva riqueza,alguma coisa se h de negligenciar.27 Essa idia seria ecoada em muitos ensaios de autoresda poca. Por isso necessrio que evitemos a associao no qualificada entre augustanos eneoclassicismo. Mesmo na rara fase em que o nimo naturalmente indmito dos ingleses sedeixouatrairpeloclssico,nenhumdosautoresmaisinfluentesacolheuadoutrinasemrestries.Butler,Dryden,Addison,Pope,J ohnsontodososgrandesnomesdeixarampronunciamentos contra a servil obedincia s regras. O autor que mais se destacoucomodefensor da ortodoxia neoclssica, Thomas Rymer, acabou estigmatizado como exemplo domau crtico, sobretudo em razo de seus ataques a Shakespeare. No perodo que mais nosinteressa (o primeiro tero do sculo XVIII), o que havia era uma aceitao superficial dadoutrinadeBoileau,RapineLeBossu,compoucointeressenasregrasmaisestritas.Mantinham-seosprincpiosgerais(comoopropsitomoraldapoesiaeaimitaodosantigosesuasformas)masojulgamentodeacordocomregrasvinhadandolugaraojulgamentodeacordocomogosto.Emmeioacontracorrentesconflitantesjhaviaumdespertar para a necessidade de algo mais que regras, a constatao de que o apelo poticono se dirigia somente ao intelecto, mas tambm s emoes; e mtodos de apreciao, emoposioamtodosdecomposio,tornaram-seentoaconsideraoprincipal.28J existiam, portanto, em forma embrionria as tendncias estticas que em meados do sculorenovariam o interesse no medievalismo e em outras avenidas artsticas e seriam responsveispor rejeitar at mesmo a face menos restritiva do credo neoclssico. Um exemplo germinal asrie de ensaios sobre os prazeres da imaginao publicados no Spectatorpor Addison autor que, com seu propsito de tirar a filosofia das universidades e lev-la para os cafs,podeservistocomoumaponteentreoaltomundoaugustanoeumoutromundomenospolido e mais prosaico, a cuja expresso literria dedico o prximo captulo29.

27 Longino, DoSublime,XXXIII, 1-2. Esse tratado, composto na primeira metade do sculo I, na verdade deautoria incerta. Ele foi uma rplica a um tratado de Ceclio de Calacte em que este exaltava o valor da correo eda pureza gramatical (o chamado aticismo). , portanto, um manifesto nato contra a intransigncia das normas.28 Amid conflicting cross-currents there was already an awakening to the need for something more than rules, arealization that the poetic appeal was not to the intellect alone, but to the emotions as well; and methods ofappreciation, as distinct from methods of composition, became now the main consideration. Atkins, op.cit.,185.29 Para os ensaios On the pleasures of the imagination, ver os nmeros 411 a 421 do Spectator. A proposta depopularizao do conhecimento feita no Spectator N 10.161.2. Neoclassicismo e romanceSirFopling: (...) Tenho intrigas para contar-te, maisagradveis do que jamais leste num romance.Harriet:Escreve-as,meusenhor,eaprazansmulheres; nossa lngua carece de tais estorietas.SirFopling:Escrever,madame,umapartemecnica do esprito; um cavalheiro jamais deve iralm de uma cano ou um bilhete.30Sir George Etherege, The Man of Mode, IV, iConceitos abrangentes como Era Augustana ou neoclassicismo so decerto teis, masnodevemosperderdevistasuaslimitaes.Nocaptuloanteriorprocureidiscuti-lasbrevemente e evitar a adoo estereotpica dosconceitos, sem entretanto prem dvida ofundodeverdadequeelescontm.Norestantedotextousareiotermoaugustanoparadesignar escritores cultos que pertenciam aos crculos da elite e seguiam uma verso diludado neoclassicismo. Por isso mesmo no o aplicarei a autores excludos como J ohn Duntonou mesmo Daniel Defoe31.NoinciodosculoXVIIInotamosduasmudanasimportantescomrelaoaoaugustanismodaRestaurao:aprogressivaremoodosnobresdoroldeautoreseadecadncia do patronato, sobretudoaps 1714. Com o crescimentodomercadolivreiro,aprtica profissional da literatura vai se assemelhando a um ofcio como qualquer outro, sendoaviltanteparaonobre.Maisadianteissoseriafatalparaoscrculospalacianos,masemprincpios do sculo a literatura continuava dominada por escritores cultos ligados s altasesferas, e esses escritores se empenhavam em defender a hierarquia dos gneros neoclssicos.

30 Sir Fopling: I have intrigues to tell thee more pleasant than ever thou readst in a novel.//Harriet: Writeem,sir, and oblige us women; our language wants such little stories.//Sir Fopling: Writing, madam, s a mechanicpart of wit; a gentleman should never go beyond a song or a billet. In Lawrence (ed.), Restoration Plays, p. 171.17Atragdia,acomdiaeaodesoasformasprivilegiadas,eaelasvmsomar-seoutrasigualmente exigentes em bagagem clssica como o poema heri-cmico e a imitao (areescrituradepoemasantigoscomambientaomoderna,comoasimitaesdeHorciofeitas por Pope ou as de J uvenal feitas por J ohnson). hora ento de nos perguntarmos: se os augustanos dominaram de tal forma a cenaliterria dapoca,como se explica que to poucos deles sejam lidos com freqncia pelopblico atual? A resposta tem menos a ver com questes elusivas de mrito artstico do quecom os imprevisveis rumos da histria da literatura. O prestgio que o romance granjeou apartir do sculo XIX converteu a prosa de fico na forma literria por excelncia, e naturalque os leitores de nosso tempo procurem nos sculos passados aquilo que mais se assemelhes preferncias modernas. Um autor como Voltaire mais lido por seus contos filosficos doque por sua obra potica e histrica, a que ele atribua muito mais valor. Os ttulos dos sculosXVII e XVIII que costumam figurar hoje em dia em colees populares so, quase que semexcees, narrativas ficcionais em prosa: OProgressodoPeregrino, RobinsonCruso, AsViagensdeGulliver, TomJones,AHistriadeRasselas,OVigriodeWakefielde outros eoutros. Nos crculos augustanos, porm, prevalecia a poesia, esteio do neoclassicismo. Antesde 1740, era muito raro que autores de formao clssica praticassem a prosa de fico; e se ofizessem, faziam-no em escritos de mo sinistra.Uma das razes para a falta de prestgio dessa forma era a inexistncia de um textoautorizador proveniente da Antigidade. Mesmo na Grcia antiga a prosa de fico foi umgnero tardio, e no recebeu a mesma ateno crtica que a pica, o drama e a poesia lrica. APoticadeAristteles,cujanfaseemcaractersticasformaisapunhanumaposiominoritria em meio crticaantiga,foitidanoobstantecomoaautoridadesupremanoRenascimento, e seu silncio sobreaprosadeficotevegrandesconseqncias32.Comovimos, os crticos italianos que acolheram o texto e preencheram-lhe as lacunas converteramas descries de Aristteles em prescries a serem observadas para a prtica da real poesia,que foi compartimentada em gneros com sano aristotlica. Quando um gnero no tinha

31 comum, contudo, encontrar Defoe listado entre os augustanos. Minha opo de estreitar aaplicaodotermo (feita tambm por J . Paul Hunter e outros) destina-se somente a dar maior clareza ao argumento.32 Daniel J avitch, The Assimilation of Aristotles Poeticsin sixteenth-century Italy. In Glyn P. Norton (ed.).The Renaissance, pp. 53-65.18essa sano nas fontes originais a exemplo da comdia, cuja descrio mais extensa porAristteles possivelmente se perdeu , autores como Robortello, Castelvetro ou Giraldi adeduziam da Potica,aduzindo regras para a composio do gnero. (Desse debate quesurgiram as trs unidades da dramaturgia, cuja origem moderna era desconhecida por muitosaugustanos.)Adeduoderegras,noentanto,setornavamaisdifcilnocasodegnerosdesconhecidosnaAntigidade,comooromanzoesobretudoanovella.Oromanzoeraaprincpio uma forma escrita em verso, e as discusses a seu respeito tinham como vrtice oOrlando Furioso de Ariosto. O mundo herico do Orlando acabaria transplantado para obrascompostas em prosa, e o enfoque cavalheiresco seria sucedido posteriormente pelo pastoral epelohistrico.Abuscadeaceitaoparaessetipodeficoresultouemtentativasdepreservar seu estatuto de poesia. O argumento era o de que um poema podia perfeitamente serescrito em prosa idia sustentada por autores da expressividade de Tasso (Discorsidelpoema eroico) e reformulada posteriormente por Fielding no prefcio de Joseph Andrews. Aconsagrao dos romances bizantinos, e sobretudo da Etipicade Heliodoro, como grandespoemasemprosadaAntigidadeproporcionousnarrativasromanescasumagenealogiarespeitvel e uma fase de aceitao crtica, e no foi por acaso que Cervantes viu nos Trabajosde Persiles y Sigismunda seu texto imortalizador. Na Frana (trajeto lgico da crtica italianarumoInglaterra),aspretensesdoromanposiodeepopiaemprosaerambemconhecidas, e foram sustentadas num tratado seminal: a Lettre-trait sur lorigine des romans(1670), do bispo Pierre-Daniel Huet. Huet afirmava que o roman, como uma espcie de pico,devia observar as regras intrnsecas do gnero; ele conseguiu reconciliar a estrutura episdicadoromancomorequisitoneoclssicodeunidade,esuaidealizaocomorequisitodeverossimilhana. Seu tratado, que foi logo traduzido para o ingls33, contribuiu para justificaro prestgio que a estria romanesca desfrutava no sculo XVII como a variedade de prosa deficomaisaceitanosmeiosaristocrticos34.MasacomposiodogneroromanesconaInglaterrafoiescassa:onicoexemplodeconsiderveldestaque(seexcetuarmosoprecedente de Sir Philip Sidney) foi a Parthenissade RogerBoyle(1651-1656/1669). Emgeral o interesse dos leitores por esse tipo de fico era satisfeito por tradues de autores

33 A Treatise of Romance and Their Originals (1672).34 Cf. Lionel Stevenson, The English Novel. A Panorama, captulo II.19francesescomoMlle.deScudryeLaCalprende35.Depoisde1670mesmoaproduofrancesadefinhou,eentreosaugustanosaformanoparecetersidopraticada.Eu,pelomenos, no sei de nenhum caso.Menos afortunado que o destino do romanzofoi o da novella italiana. Embora elogioss virtudes poticas da prosa de Boccaccio no fossem incomuns, a aproximao dessa formacomosgnerosconsagradosmostrou-semaisproblemtica.Otratamentocrticomaisorganizado que a novella teve no Cinquecento, embora a julgasse em moldes aristotlicos, noprocuroureabilit-lacomoformaartstica36.Porretrataraexperinciadiriadepessoascomuns em tons de ridculo, a novella no poderia recorrer linguagem elevada da tragdiaou da epopia, o que dificultava sua classificao como poesia. Na Frana seiscentista a prosade fico que retratava o quotidiano careceria igualmente de apreo crtico, no merecendogrande ateno dos autores que reformularam o projeto literrio de seu pas, como Du BellayeRonsard37.Nosculoseguinteelaganhariafinalmenteaatenodoscrticos,masotratamento dado a gneros como o roman comique e a nouvelle (mais fincados na realidade doque as estrias romanescas) no procurava reconcili-los com a potica clssica: eles eramvistoscomoformasarrivistas,estranhasprovnciadoneoclassicismo.Essaatitudesetransplantou para a Inglaterra seiscentista, onde o debate sobre a prosa de fico, carente deteorizao nativa, era ainda dominado pelo pensamento francs.Ora, na Frana a desavena entre os crculos letrados e a prosa de fico ia alm da faltade precedentes antigos. Entravam em jogo questes de moralidade e verossimilhana. Durantealgum tempo a estria romanesca conseguiu atender a esses requisitos neoclssicos com seuretratoidealizadodeepisdioshistricosefigurasreais,comoCiro,oGrande38.Seus

35 Cf. Zuber e Cunin, LeClassicisme, p. 151; Salzman, Theories of prose fiction in England: 1558-1700, InGlyn P. Norton (ed.). TheRenaissance,pp. 301-302; e Sutherland, EnglishLiteratureoftheLateSeventeenthCentury, pp. 202-3.36 Trata-se das Lezionesoprailcomporredellenovelle(1574), de Francesco Bonciani , texto que at o sculoXVIII s foi lido em forma manuscrita por crculos restritos. Glyn P. Norton e Marga Cottino-J ones, TheoriesofprosefictionandpoeticsinItaly:novellaandromanzo(1525-1596).InGlynP.Norton(ed.).TheRenaissance, pp. 322-335.37GlynP.Norton,Theoriesofprosefictioninsixteenth-centuryFrance.InGlynP.Norton(ed.).TheRenaissance, pp. 305-313.38G.J .Mallinson,Seventeenth-centurytheoriesofthenovelinFrance.InGlynP.Norton(ed.).TheRenaissance, pp. 315-6.20defensores invocavam a distino entre vrai(verdadeiro) e rel(real): o verdadeiro (dondeverossmil) se baseava numa recriao moralmente correta da histria, ao passo que o realdeixavadeladoacensuraprviaeapresentavaomundoemformabruta,sendointrinsecamente imoral39. O roman, com seus heris e heronas modelares (porm histricos),conseguiaseraumstempoverossmileedificante.Masessasoluonoperdurou.Oartificialismo do mundo romanesco constitua um obstculo para a validade das lies morais:como esperar que um bon vivant se emendasse com exemplos to afastados da vida comum?Asadaseriaretificaroverdadeirosemincorrernaindecnciadoreal.Insinua-seaquiodilema caracterstico da prosa de fico francesa dessa poca: os autores oscilavam entre umidealismo tido por mentiroso e um realismo tido por imoral40.Uma soluo para o dilema foi oferecida pelo romancomique, forma que almejava osmesmosfinsmoraisqueograndromansemomitirarealidadequotidiana.ORomanBourgeois(1666),deFuretire,serbourgeoisaumstempoporevitaraficoaristocrticaeprnaribaltaomundoprosaicodaburguesia.Cumpreparaissoqueanatureza das histrias e os caracteres das pessoas se apliquem de tal modo a nossos costumesque creiamos reconhecer neles a gente que vemos todos os dias.41 Pintura da realidade? Sim,mas com uma demo de escrnio. A esse respeito, Ronald Paulson observou:O escritor do perodo que desejasse expressar a experincia comum da vida quotidiana, comooposta ao alto mundo aristocrtico do romanesco ou ao mundo religioso do combate espiritual,tinha de recorrer, como modelos, comdia ou stira. Ele no encontraria tal tipo de relato nosgneros trgico, pico ou romanesco, em que isso romperia as regras do decoro, bem como aspremissas do gnero; desde que Aristteles fez a distino de que a comdia lidava com umaimitao do homem como inferior ao que , e a tragdia do homem como superior ao que ,

39 English Showalter, Prose fiction: France. In Nisbet e Rawson (ed.). The Eighteenth Century, p. 219.40 Pomeau e Ehrard, De Fnelon Voltaire, p. 176. O principal estudo a esse respeito o de Georges May, LeDilemme du roman au XVIIIe sicle, ao qual infelizmente ainda no tive acesso.41 Il faut pour cela que la nature des histoires et les caractres des personnes soient tellement appliqus nosmoeurs, que nous croyons y reconnatre les gens que nous voyons tous les jours. Furetire, Avertissement deLe Roman Bourgeois, p. 24.21poucos tentaram viol-la. O real era o baixo e o baixo era o cmico.42O retrato da vida quotidiana, visto como frvolo ou imoral, era justificado pelo argumentotpicodoscomedigrafos:aexibiodevciosnoseriadegradante,desdequefeitacomfinalidades reformadoras. Os personagens desse tipo de narrativa cujo pilar a HistoireComique de Francion (1623), de Sorel costumavam caracterizar-se por um hbito aviltanteque caberia stira condenar. O enfoque era portanto oposto ao do roman, cujos protagonistaseram espelhos de virtude. No Roman Comique (1651) de Scarron vemos a confluncia dessesdoismundos:ospersonagensdeperfilromanesco,comoMademoiselledeLtoileeLeDestin, so retratados com simpatia pelo narrador, ao passo que figuras mais realistas, comoRagotin e La Rancune, so flagelados a cada pgina. Esse um bom mtodo para recomendara virtude e destratar o vcio, mas ele impunha duras limitaes ao realismo, sobretudo emmatria de caracterizao. Isso fica bastante visvel num romance como LeDiableBoiteux(1707), de Le Sage, em que o diabo manco Asmodeu levanta os telhados de Madri para queDomCleofaspossatestemunharasintrigasdomsticasdeseuscompatriotas.Essavisoinstantnea dos madrilenses um quadro dos costumes do sculo43 dificulta em muitoo desenvolvimento psicolgico. Os personagens tornam-se necessariamente unidimensionais.Nos termos de Paulson, so personagens legalistas (definindo-se por uma dada ao), comoopostos aos personagens orgnicos do romance (que se desenvolvem no tempo e recebemum tratamento mais emptico)44. O que o romancomiquefazia, na prtica, era submeter arealidade a um outro tipo de filtro, novo mas igualmente limitador.natentativadeevitartantooidealismodograndromancomoorealismoinsatisfatrio do roman comique que uma outra forma surge em meados do sculo: a nouvelle.

42 The writer of the period who wished to express the ordinary experience of day-to-day life, as opposed to thehigh aristocratic world of romance or the religious world of spiritual combat, had to go for his models to comedyor satire. He could not find such an account in the tragic, epic, or romantic genres, where it would have brokentherulesofdecorumaswellastheassumptionsofthegenre;onceAristotlehadmadethedistinctionthatcomedy dealt with an imitation of man as less than he is and tragedy with man as more than he is, few attemptedto violate it. The real was the low and the low was the comic. Paulson, Satireandthenovelineighteenth-century England, p. 14.43 Le Sage, LeDiableBoiteux, p. 272. O livro uma adaptao de ElDiabloCojuelo, de Velez de Guevara(1641).44 Paulson, op. cit., p. 3.22Em suas Nouvelles franoises (1656), Segrais professar a inteno de expor as imagens dascoisas como ordinariamente as vemos ocorrer45. A obra-prima do gnero APrincesadeClves(1678), de Madame de Lafayette , apesar do ambiente palaciano, se destacar pelaverossimilhana e pela complexidade psicolgica, distando em muito do universo exaltado doroman. O problema que, com a tentativa da nouvelle de emular mais fielmente a histria, acensura romanesca sai de cena e materiais vistos anteriormente como perniciosos voltam aoescopo dos escritores. Mesmo a relativamente correta Princesa de Clves se tornou objeto deacalorada discusso crtica, prenunciando a grande polmica moralista da dcada de 1730.TodosostrsgnerosacimaganharamcirculaonaInglaterraemtraduesouimitaes, promovendo entre os ingleses o mesmo debate que j fremia na Frana. Os pecadosda inverossimilhana ou da imoralidade seriam apontados com igual afinco e iguais furores. Ograndroman, como vimos,perdeu o apreo dos autores pouco depois da Restaurao, masmanteve-se caro aos leitores, que com o tempo seriam censurados em razo de seu gosto pelomaravilhoso. O roman comique no exerceria grande influncia na Inglaterra at que autoressofisticados como Fielding e Smollett aproveitassem sua mistura entre stira e realismo. Essaforma, que com sua tica intelectualista eramais condizente com as inclinaes augustanas,pecava porm por sua estrutura episdica, ofensiva ao requisito neoclssico de unidade46. Anouvelle, com seu realismo sem decoro, seria a mais ofensiva das formas: muito imitada naInglaterra em fins do sculo XVII, ela seria alvo da maioria das acusaes de imoralidade, jqueseustemasusuaiseramintrigasdeamoregalanteria,dificilmentejustificadaspelasbreves sabatinas morais ao final. Caracteristicamente, uma figura comum na literatura inglesadosculoXVIIIseriaajovemdesencaminhadaporessetipodeleitura47.Ademais,aassociao da prosa de fico com o escndalo, a calnia, a corrupo, a alienao ou a merairrelevnciassereforavacomacorrnciadegneroscomoashistriassecretas,asmemrias, as falsas cartas de amor, as biografias de criminosos e os relatos de viagens a terrasfantsticas. Uma prtica comum a vrias dessas formas era a pretenso absoluta veracidade,

45 donner les images des choses comme dordinaire nous les voyons arriver. Citado por English Showalter, op.cit., p. 210.46 Segundo Aristteles: Das fbulas e aes simples, as episdicas so as mais fracas, Potica, IX, p. 29.47AlgunsexemplossoManley,TheNewAtalantis,I,p.83;Smollett,RoderickRandom,XXII,p.119;Mackenzie, The Man of Feeling, XXVIII, p. 42; e Sheridan, The Rivals, I, ii.23ofensiva separao aristotlica entre histria e poesia. (Sobre isso terei mais a dizer na ParteII.) E havia um ltimo problema, que no se configurara de todo nos trs gneros franceses: amistura de estilos. Horcio condenara expressamente o tratamento srio de temas baixos48, eera isso o que vinha caracterizando boa parte da prosa de fico na virada do sculo XVII.Some-se esse ltimo pecado aos anteriores, e a concluso ser esta: num ambiente em que aboa literatura era julgada (ainda que liberalmente) segundo critrios neoclssicos, a prosa defico s poderia ser uma forma marginal, desdenhada por literatos ciosos de sua reputao.O ltimo problema que mencionei (a mistura de estilos) merece uma considerao final. interessante notar que o poema heri-cmico forma de MacFlecknoe e The Rape of theLock, obras centrais da poesia augustana cometia igualmente esse pecado. Haveria algoque tornasse a violao especialmente perniciosa no caso da prosa de fico realista? Semdvida. Como j vimos, at essa poca era incomum que as classes inferiores figurassem naliteratura sem um vis depreciativo. Algumasexcees inglesaseramas obras de ThomasDeloney, que procuravam exaltar os artesos e cujo principal personagem, cujas terras soseusteares49,desdenhaumttulodefidalguiaquelheofereceHenriqueVIII;eTheShoemakersHoliday(1599),deThomasDekker,comdiacujoprotagonista,filhodeumsapateiro, trazia como divisa No sou nenhum prncipe, mas nasci principescamente50. Emambos os casos est implcito um conceito de respeitabilidade independente do sangue ou dostatus nobilirquico. Isso tambm transparece em tragdias domsticas elisabetanas como AWoman Killed with Kindness (1603), de Thomas Heywood, e a annima Arden of Faversham(1587-92), que se encerra com uma justificao de sua crueza: Porquanto a simples verdade assaz graciosa / E dispensa outros toques de lustrosa matria51. O que vemos neste caso ovnculo entre a vidadiriaeaseriedadetrgica(oassuntodeAuerbach)eaequiparao

48 A um tema cmico repugna ser desenvolvido em versos trgicos. Arte Potica, p. 57.49 () whose lands are his looms. JackofNewbury, 2. In Paul Salzman (ed.), AnAnthologyofElizabethanProse Fiction, p. 339.50 Prince am I none, yet am I princely born. TheShoemakersHoliday, III, iv. In Dunn (ed.), EightFamousElizabethan Plays, p. 94. A pea de Dekker foi baseada em The Gentle Craft, de Deloney. Simon Eyre fora umnegociante de tecidos que se elegera prefeito de Londres em 1419 (ou 1446).51 For simple truth is gracious enough, / And needs no other points of glozing stuff. ArdenofFaversham,Eplogo, p. 103.24implcita dos problemas do sangue plebeu aos do sangue azul. A mistura de estilos, como jpodemosnotarnessesexemplosremotos,noeraumsimplesdilemaesttico.Quandoenvolvesse a elevao do homem comum a objeto de tratamento srio, ela era socialmenteperniciosa. E se tornaria mais freqente com o passar do tempo. Seu pice seria a Clarissa(1747-8) de Richardson, mas a tendncia j se fazia visvel em textos como The History of theNun (1689), de Aphra Behn, e a coletnea Delightful Novels Exemplified in Eight Choice andElegantHistories(1686). No primeiro tero do sculo XVIII ela teria em Daniel Defoe umdestacadocultor,emcujasobrasomarinheiro,osoldadoraso,aladraeomercadorassumiriam o centro do palco, com dignidade no inferiordeumduqueoumarqus.Oprximocaptulotratarmaisextensamentedasimplicaessocioeconmicasdonovognero, tomando como ponto de partida a distino entre romance e romanesco.251.3. Romance e sociedadeUm dos poucos augustanos a deixar atrs de si um espcime bem acabado de prosa deficofoiodramaturgoWilliamCongreve,queantesdeenveredarpeloteatrocompsIncognita; Or,LoveandDutyReconciled;ANovel, publicando-a sob pseudnimo em 1692.Semelhante em muitos sentidos a uma comdia da Restaurao em forma narrativa, a obra mais conhecida hoje por seu Prefcio ao leitor,em que Congreve esboaumadistinoprecoce entre novel e romance. Sua idia de novel ainda influenciada pela nouvelle francesa,mas os termos do prefcio so sugestivos:Estriasromanescas[romances]consistemgeralmentenosamoresconstantesecoragensinvencveis de heris, heronas, reis e rainhas, mortais de primeira grandeza e assim por diante.Nelasalinguagemexaltada,incidentesmilagrososefeitosimpossveisdeslumbramesurpreendemoleitoremirrefletidodeleite(...)Romances[novels]sodenaturezamaisfamiliar;aproximam-semaisdens,representandointrigasnaprtica.Deleitam-noscomincidentes e eventos singulares, mas no a ponto de serem totalmente incomuns ou inauditos eventosdetalnaturezaque,pornodistaremdocrvel,tornamoprazerigualmentemaisprximo.52Essa tentativa de definio dos termos, que no sanar a ambigidade persistente no sculoXVIII, prefigura pronunciamentos futuros como o de Horace Walpole53 e especialmente o deClara Reeve, em The Progress of Romance (1785):

52 Romances are generally composed of the constant loves and invincible courages of heroes, heroines, kingsandqueens,mortalsofthefirstrank,andsoforth;whereloftylanguage,miraculouscontingenciesandimpossible performances elevate and surprise the reader into a giddy delight (...) Novels are of a more familiarnature; come near us, and represent to us intrigues in practice; delight us with accidents and odd events, but notsuch as are wholly unusual or unprecedented such which, not being so distant from our belief, bring also thepleasure nearer us. Incognita,Preface to the reader. In Salzman (ed.), AnAnthology ofSeventeenth-CenturyFiction, p. 474.53 Cf. o prefcio segunda edio de The Castle of Otranto (1764).26Oromanceumretratodavidarealeseusmodos,edostemposemqueeleescrito.Oromanesco, em linguagem altiva e elevada, descreve o que nunca ocorreu nem provavelmenteocorrer. O romance faz um relato familiar daquelas coisas que transcorrem todos os dias diantede nossos olhos, que podem ocorrer a nosso amigo ou a ns mesmos; e sua perfeio est emrepresentarcadacenademodotosimplesenatural,efazercomqueelaspareamtoprovveis, que nos deixemos persuadir (ao menos enquanto lemos) de que tudo real, a pontode sermos afetados pelas alegrias ou angstias das pessoas na estria, qual fossem as nossasprprias.54Aprticadedefiniroromanceporoposioaoromanescotornoumaisvisvelatransio que vinha sofrendo a prosa de fico inglesa nos tempos de Congreve. Para issocontribuiuaestabilizaotaxonmicaemfinsdosculoXVIII,facilitadapelaarteassumidamente romanesca dos escritores gticos. Na Frana, por exemplo, o termo roman,aps um perodo de rejeio55, voltaria a vigorar com um sentido absolutamente diverso doseiscentista, e como resultado a mudana genrica seria menos visvel, embora igualmentereal. Em TheProgressofRomancea distino entre os gneros j exposta com suficientenitidez,eafrmuladeClaraReevesetornariacannica,ressurgindoemversesmaisrecentes.LennardDavis,porexemplo,enumeranovediferenasfundamentaisentreromanesco e romance, como as de ambientao antiga ou recente, tratamento idealizado ourealista e profisso de fico ou veracidade. Especialmente interessante a quarta distino deDavis: O romanesco retrata a vida da aristocracia e destina-se a um leitor de alta classe; oromancetendeasermaisclassemdiaemescopoevolta-seaumpblicomenos

54 The Novel is a picture of real life and manners, and of the times in which it is written. The Romance in loftyandelevatedlanguage,describeswhatneverhappenednorislikelytohappen.TheNovelgivesafamiliarrelation of such things, as pass every day before our eyes, such as may happen to our friend, or to ourselves; andthe perfection of it, is to represent every scene, in so easy and natural a manner, and to make them appear soprobable, as to deceive us into a persuasion (at least while we are reading) that all is real, until we are affected bythe joys or distresses, of the persons in the story, as if they were our own. Citado por Paulson, op. cit., p. 12.55 De 900 narrativas em prosa publicadas na Frana entre 1700 e 1750, somente cerca de meia dzia assumiram aclassificao como roman. Pomeau e Ehrard, op. cit., p. 176.27aristocrtico56.AidiaaparecemaisamplamenteemArnoldKettle,queclassificaoromanesco (excluda sua variedade em verso) comoa literatura no realista e aristocrtica do feudalismo. Ela era no realista no sentido de que seupropsito subjacente no era ajudar as pessoas a lidar de maneira positiva com o ofcio de viver,e sim transport-las a um mundo diferente, idealizado,melhorque o delas. Era aristocrticaporque as atitudes que expressava e recomendava eram precisamente as atitudes que a classegovernantedesejavaincentivar(muitasvezesinconscientemente,semdvida)paraquesuaposio privilegiada pudesse ser perpetuada.57J o romance, para Kettle, o gnero em que a burguesia replica ao universo romanesco daaristocracia:Para o burgus, como vimos, a sociedade feudal no era satisfatria, mas frustrante. E ele nosentia impulsos de defender essa sociedade, e tampouco simpatia por uma literatura destinada arecomendar seus valores e ocultar suas limitaes. Pelo contrrio, suas necessidades e instintosoexortavamaexporesolaparasnormaseconvenesfeudais.Diversamentedaclassegovernante feudal, ele no se sentia imediatamente ameaado por revelaes da verdade sobre omundo, e por isso no tinha medo do realismo.58

56 O estudo de Davis procura a origem do romance no discurso a que ele chamou news/novel ou narrativa emprosa impressa (p. 44) , cujo desmembramento faz surgir de um lado a histria e o jornalismo, e de outro oromance. A tese de considervel interesse, mas parece-me demasiado restritiva. Eis o original: The romancedepicts the life of the aristocracy and it designed for an upper-class reader; the novel tends to be more middleclass in scope and is geared to a slightly less aristocratic readership. Davis, Factual Fictions: The Origins of theEnglish Novel, p. 40.57 Romance was the non-realistic, aristocratic literature of feudalism. It was non-realistic in the sense that itsunderlying purpose was not to help people cope in a positive way with the business of living but to transportthem to a world different, idealized, nicer than their own. It was aristocratic because the attitudes it expressedandrecommendedwerepreciselytheattitudestherulingclasswished(nodoubtusuallyunconsciously)toencourage in order that their privileged position might be perpetuated. Kettle, AnIntroductiontotheEnglishNovel, V. 1, p. 31.58 To the bourgeois man, as we have seen, feudal society was not satisfying but frustrating. And he felt noimpulse to defend that society and no sympathy with a literature designed to recommend its values and concealits limitations. On the contrary his every need and instinct urged him to expose and undermine feudal standardsand sanctities. Unlike the feudal ruling class he did not feel himself immediately threatened by revelations of thetruth about the world and so he was not afraid of realism. Kettle, op. cit., p. 38.28Aos dois modelos de prosa de fico, portanto, correspondem dois universos distintosde produo e consumo da literatura. A oposio usual entre romanesco e romance (haja ounodescendnciadiretaentreambos)trazemseubojoaoposioentreduasrealidadessociais distintas, de modo que a transio dos gneros literrios vincula-se necessariamente atransformaessocioeconmicas.essaapremissabsicadojclssicoAAscensodoRomance, de Ian Watt, publicado originalmente em 1957. O propsito de Watt foi diferenciaro romance das formas anteriores de fico em prosa como o romanesco e a picaresca eapresentar as razes para que tais diferenas se produzissem na Inglaterra do sculo XVIII. Oque distinguiria a obra de autores como Defoe e Richardson eraa premissa, ou conveno bsica, de que o romance constitui um relato completo e autntico daexperincia humana e, portanto, tem a obrigao de fornecer ao leitor detalhes da histria comoa individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das pocas e locais de suas aes detalhes que so apresentados atravs de um emprego da linguagem muito mais referencial doque comum em outras formas literrias.59A expresso narrativa dessa premissa o realismo formal, caracterizado pela rejeio dosenredostradicionais,pelaapresentaodepessoasecircunstnciasespecficas,pelaindividualizao dos personagens, por maior preciso no tratamento de tempo e espao, e pelalinguagemreferencial.Cadaumadessascaractersticasformaisvinculava-seatendnciasfilosficas e processos sociais concomitantes. Entre as primeiras, Watt enfatiza sobretudo asinvestigaes de Locke sobre o conhecimento humano, que despertaram grande ateno paraproblemas ligados ao individualismo. Entre as ltimas, ele destaca o aumento da alfabetizaoeaconseqenteconsolidaodeumnovopblicoleitor;aprogressivaimportnciadecapitalistas e comerciantes; e a secularizao da sociedade.60 O resultado um elo simbiticoentre a ascenso do romance e a mentalidade de classe mdia, entre forma literria e processosocial.Ainflunciadessatese deugrandealentoaosestudoshistoricistasdagnesedo

59 Watt, A Ascenso do Romance, p. 31.60 Idem, captulos 2 e 3.29romance, e desde ento tornou-se difcil escrever sobre o assunto sem mencionar o precedentede Watt. O conceito de realismo formal seria objeto de crticas e reformulaes por parte detericosposteriores,masarelaoentreliteraturaesociedademanteve-seumapremissacomum desse campo. Isso se evidencia em dois estudos recentes de grande flego, que partemdeWattmasreformulamseuargumento:TheOriginsoftheEnglishNovel1660-1740(1988), de Michael McKeon, e BeforeNovels:TheCulturalContextsofEighteenth-CenturyFiction(1990),deJ .PaulHunter.SodoisestudosfundamentaisparameuexamedeGulliver, e merecem sees parte.1.3.1. McKeonMcKeon critica em Watt a diferenciao categrica entre romanesco e romance, j queoromancedosculoXVIIIpreservavaelementosromanescosetraosdaideologiaaristocrtica.Ele tambm aponta a falta de evidncias de que o esprito de classe mdia e oindividualismo moderno surgiram na poca em que, segundo Watt, o romance ascendeu. OobjetivodeMcKeonjustificaracomplexidadedogneroemsuafasedeformaoereformular o vnculo entre a ascenso do romance e a da classe mdia. O ponto de partida aidiadequeoromance,comognero,constituiumaabstraosimples,umacategoriaenganosamente monoltica que encerra um complexo processo histrico61 categoria ques pode ser formulada depois de uma longa preexistncia. essa preexistncia que interessa aMcKeon. Ele retrocede da rivalidade crucial entre Richardson e Fielding (momento em que oromance atinge sua identidade cannica) e se concentra no perodo entre 1600 e 1740.Essa uma poca marcada pela instabilidade em categorias genricas e sociais pelaincerteza sobre como dizer a verdade nas narrativas e estimar a virtude dos indivduos. At ofimdosculoXVI,verdadeevirtudeeramdeterminadasunivocamentepelaidiadelinhagem, que pressupunha a veracidade dos textos por sua filiao tradio e a virtude dosindivduos por sua ancestralidade genealgica. No sculo XVII, o prestgio da linhagem foiabaladonosdoiscampos.Anovafilosofiahaviadesacreditadoasantigasautoridades,demodo que invoc-las no era visto como garantia de verdade. E com a dissoluo do conceitode honra e a concesso abusiva de ttulos nobilirquicos sob os Stuarts, o status no era visto

61 McKeon, The Origins of the English Novel, p. 20.30comogarantiadevirtude.Deixouporconseguintedehaverumprincpioqueatendessesimultaneamenteaproblemasepistemolgicosesociais,eelesacabaramsecindindoemcampos distintos, qual fossem questes sem relao mtua.Ainstabilidadedascategoriasgenricasregistraumacriseepistemolgica,umaacentuadatransioculturalnasatitudessobrecomodizeraverdadenanarrativa.Porconvenincia,chamareiaoconjuntodeproblemasassociadoscomessacriseepistemolgicaquestesdeverdade. A instabilidade das categorias sociais registra uma crise cultural nas atitudes sobrecomoaordemsocialexternaserelacionaaoestadomoralinternodeseusmembros.Porconvenincia,chamareiaoconjuntodeproblemasassociadoscomestacrisesocialeticaquestes de virtude.62Asorigensdoromance,paraMcKeon,consistemnoestabelecimentodeumaformasuficiente para a investigao simultnea de problemas epistemolgicos e sociais anlogos63.Em outras palavras, o romance vem resgatar o vnculo entre questes de verdade e questesde virtude, o qual se desfizera com a obsolescncia da idia de linhagem. No perodo 1600-1740essesdoisconjuntosdequestesforamtratadosaprincpiocomopertencentesauniversos estanques; com o tempo e com muita experimentao os escritores finalmente sederam conta da analogia existente entre os dois universos.Inicialmente, os conflitos paralelos decorrentes da crise epistemolgica e da crise socialgeramsoluesautnomasparaasquestesdeverdadeedevirtude.Noprimeirocaso,surgem novos modos de dizer a verdade na narrativa; no segundo, novos critrios para avaliara virtude ntima dos indivduos. Tanto em um como em outro caso, a soluo proposta no nica. O que ocorre uma dupla negao: a postura original A negada por uma postura B, eesta, por sua vez, negada por uma postura C, que retoma ligeiramente os valores de A64.

62 The instability of generic categories registers an epistemological crisis, a major cultural transition in attitudestoward how to tell the truth in narrative. For convenience, I will call the set of problems associated with thisepistemologicalcrisisquestionsoftruth.Theinstabilityofsocialcategoriesregistersaculturalcrisisinattitudestowardhowtheexternalsocialorderisrelatedtotheinternal,moralstateofitsmembers.Forconvenience, I will call the set of problems associated with this social and ethical crisis questions of virtue.Idem, p. 20.63 Ibidem, p. 410.64 O esquema ABC no est em McKeon. Emprego-o para facilitar a explicao.31Emquestesdeverdade,aposturaAoqueMcKeonchamadeidealismoromanesco,queafirmaaveracidadedostextospelorecursotradioesantigasautoridades.AposturaB,denominadaempirismosimplrio,refutaosprincpiosdoidealismo romanesco, denunciando as invenes da tradio e preferindo emular a histria.Surgem da as afirmaes de que narrativas ficcionais so a exposio de fatos absolutamentereais um meio de convencer os leitores de que a obra diz a verdade. A postura C, chamadade ceticismo extremo, ataca a falsa historicidade dos empiristas e defende a busca no desimulacros histricos, e sim da verossimilhana. As narrativas podem assumir-se ficcionais econtinuar dizendo a verdade, desde que tratem de questes ligadas realidade. Ao adotar umacrtica menos entusistica, o ceticismo extremo fatalmente retoma algumas das caractersticasdo idealismo romanesco, sem deixar contudo de refut-lo. Isso o situa a meio caminho entreas duas outras posturas.Emquestesdevirtude,aposturaAoqueMcKeonchamadeideologiaaristocrtica,quedefendeavirtudedenascenaearespeitabilidadecomoacessriodostatus. A postura B, denominada ideologia progressista, refuta a ideologia aristocrtica emprol da meritocracia, sustentando que a virtude no apangio do bero e deve ser medida deacordo com o sucesso pessoal do indivduo. Ocorre aqui o avano da classe (respeitabilidadesocioeconmica) sobre o terreno do status (respeitabilidade de nascimento, ou honorfica). AposturaC,chamadadeideologiaconservadora,acusaaideologiaprogressistadesimplesmente substituir o nascimento pelo dinheiro, a medida mais comum do sucesso eporconseguintedomritoindividual.Paraosconservadores,ostatuscostuma,sim,proporcionarvirtude,nopeloberonobre,esimpelaeducaoesmeradaqueeleproporciona a seus membros educao de que os novos-ricos careciam. Ao adotar umacrticamenosentusistica,aideologiaconservadorafatalmenteretomaalgumasdascaractersticas da ideologia aristocrtica, sem deixar contudo de refut-la. Isso a situa a meiocaminho entre as duas outras posturas.Essa breve exposio basta para sugerir a simetria existente entre questes de verdade equestes de virtude. Um diagrama pode deix-la mais clara.32Questes de Verdade Questes de VirtudeA Idealismo romanesco Ideologia aristocrticaB Empirismo simplrio Ideologia progressistaC Ceticismo extremo Ideologia conservadoraAsduascolunasseespelham:afiliaoaoempirismosimplriotendeaacompanharafiliao ideologia progressista, e o mesmo vale para as outras posturas. No contexto daprimitiva narrativa moderna, escolhas epistemolgicas tm relevncia ideolgica, e uma dadaexplicaodosignificadodamobilidadesocialprovavelmenteimplicarumcertoprocedimento e compromisso epistemolgico.65 Com o tempo, os escritores se deram contadisso e perceberam que dificuldades relativas a questes de verdade podiam ser iluminadaspor reflexes sobre questes de virtude. A investigao simultnea desses dois campos passouaserempreendidatantopelaposturaBcomopelaposturaC.Oromanceassumesuaidentidadequandoaconflunciapassaaserfeitacomtalmestriaqueoconflitoentreempirismo simplrio e ceticismo extremo, entreasideologiasprogressistaeconservadora,podeserincorporadonumacontrovrsiapblicaentreescritoresqueempregamconsabidamente mtodos antitticos para escrever o que se reconheceainda assim como amesma espcie de narrativa66. A ciso entre verdade e virtude volta a se fechar, e o romance seu elemento mediador.assimqueMcKeonprocuraresolverosproblemasqueapontaraemWatt.Apermanncia de elementos romanescos no sculo XVIII deve-se ao fato de que o ceticismoextremoretomacertascaractersticasdoidealismoromanesco,comoaaceitaodaficcionalidade. E a analogia entre problemas epistemolgicos e socioticos resgata e sofisticaarelaoentreaascensodoromanceeadaclassemdia,poisestaigualmenteumaabstrao simples cujas origens modernas mascaram uma considervel preexistncia67. Oesprito de classe mdia est por trs da crtica tradio empreendida pela postura B, mas

65 Ibidem, p. 266.66 ()when the conflation comes to be made with such mastery that the conflitct between naive empiricism andextreme skepticism, between progressive and conservative ideologies, can be embodied in a public controversybetween writers who are understood to employ antithetical methods of writing what is nonetheless recognized asthe same species of narrative. Ibidem, p. 266.67 Ibidem, p. 22.33comoadventodaposturaCaascensodoromancepassaaincluirtambmautoresconservadores vinculados aristocracia e amide avessos a esse esprito.1.3.2. HunterAodescartarorealismoformalesugerircomodenominadorcomumdoromanceaanalogia entre problemas epistemolgicos e socioticos, McKeon estabelece a continuidadeentre romanesco e romance e alarga o leque de obras que participaram das origens do gnero.J . Paul Hunter ser ainda mais ecltico na variedade de obras estudadas, mas divergir deMcKeon quanto genealogia comum de romance e romanesco. Se o romance precisa serdiferenciadodoromanesco,esesurgiuparaproporcionar,naprtica,umaalternativaaoromanesco, no se segue necessariamente que ele descendeu do romanesco.68 Os propsitosde Hunter, expostos extensamente na pgina xix de seu livro, incluem oferecer uma descriooperacional do romance; reafirmar sua condio de gnero novo; incluir em seu processo deformao autores no cannicos e at mesmo obras no ficcionais; evitar a idia de romancefundador69;emostrarcomoosleitoresconquistamopoderdecriartextoscomunicando,emboranonecessariamentedemodoconscienteoudireto,suasnecessidadesedesejosquelesemcondiesdeproduzirlivros70.Comtudoissoelepretendesituaroromanceemergentenocontextomaisamplodahistriacultural,avaliandoainfluncia,emsuaformao, de jornais, guias de conduta, materiais didticos, elementos da cultura oral e outrasfontes.Para definir aquilo cujas origens est buscando, Hunter elabora uma ampla descrio doromance,retomandoelementosdorealismoformaldeWattmascomplementando-oscomuma srie de outras caractersticas. Estas se dividem em dois grupos: as comumente aceitaspela crtica e as mais polmicas ou menos comentadas. As primeiras so: contemporaneidade;credibilidadeeprobabilidade;familiaridade(existnciaquotidianaepersonagenscomuns);rejeiodeenredostradicionais;linguagemlibertadatradio;individualismoe

68 If the novel needs to be distinguished from romance, and if the novel came to provide, in effect, an alternativetoromance,itdoesnotnecessarilyfollowthatthenoveldescendedfromromance.J .PaulHunter,BeforeNovels: The Cultural Contexts of Eighteenth-Century Fiction, p. 28.69 Nisso ele coincide com McKeon. Ver The Origins of the English Novel, p. 267.70 show how readers gain the power to create texts by communicating, though not necessarily consciously ordirectly, their needs and desires to those in a position to make books. Hunter, op. cit., p. xix.34subjetividade;empatiaevicariedade;coernciaeunidadedeconcepo;inclusividade,digressividadeefragmentao;eautoconscinciaquantoinovaoenovidade.Ascaractersticas do ltimo grupo, que a crtica costuma evitar por serem comprometedoras paraa viso estvel do gnero, mas que aparecem nele com freqncia, so o maravilhoso; o tabu;a vida privada; o teor individualista; a mediao com o pblico; a epistemologia; as estriasinternas;asinterpolaesdiscursivas;eotomdidtico71.ParaHunter,essadescriooperacional, que no procura ser uma definio essencialista do gnero, deve ser levada emconta em qualquer teoria de origens que pretenda fazer jus complexidade do romance emseusprimrdios.Oproblemaqueseimpe,ento,oseguinte:dequemaneiraessascaractersticasganharamformaeconvergiramnumnovogneroliterriosignificativoeduradouro? Hunter procura retratar esse processo recriando a conscincia cultural dos leitoresdapocaeexplorandooutrasespciesdeescritosemquetaiscaractersticasvinhamseformando gradualmente, em resposta aos interesses e desejos do novo pblico escritos queconstituem fontes negligenciadas da origem do romance.NalinhadeIanWatt,Hunterreapresentacomcifrasatualizadasofenmenodocrescimento do pblico leitor nos sculos XVII e XVIII. Segundo estimativas recentes, 25%dos homens adultos na Inglaterra sabiam ler em 1600; e entre 70% e 80% em 1800. Em 1675entre dois teros e trs quartos da evoluo j haviam ocorrido. Uma vez que as altas camadasj eram alfabetizadas, esses novos leitores encontravam-se em maioria na classe mdia72, evinhamproporcionarumaaudinciaparaformasliterriascompoucapenetraonoscorredores da elite. Os diferentes desejos desse pblico e por desejo Hunter entende umfenmeno cultural e comunal, e no apenas um aspecto da psicologia individual73 norteiamosrumosdaescrita.Autorescominclinaesinovadorasseempenharamemsondarasexpectativas dos leitores e deixaram que elas influssem em sua produo literria. Boa partedos novos leitores, por exemplo, eram jovens provindos do campo para mudar de vida apsgeraes de existncia rural, ou filhos alfabetizados de pais analfabetos. Entre os fatores quedeterminavamseusdesejosestavamaperdadoselosafetivosdavidadocampo,o

71 Muitas dessas caractersticas pediriam elucidaes inevitavelmente longas. Sugiro ao leitor interessado que asconsulte na fonte; ver p. 30 e seguintes.72 Idem, p. 66.73 Idem, p. xix.35desaparecimento dos contos de fadas e o rompimento com o passado tradicional74. Em suabusca por desvendar o mundo das pessoas adultas e saber como agir frente s expectativassociais, eles recorriam a uma variedade de formas literrias de contedo orientador guiasde conduta, retricas didticas, livros de providncia e finalmente romances75. Em outra parte,Hunter observa:Muitos leitores de romanceseramdecerto jovens; amaioriadosromances erasobrejovensprestesatomardecisesimportantesnavidasobreacarreira,oamorouambos,epareciavoltadaaleitoresemsituaessimilares.(...)[O]sromancessetornaram,paradezenasdemilhares de rapazes e moas na Inglaterra setecentista, guias para muitas decises prticas navida, equivalentes das estrias familiares e da tradio oral em geraes anteriores, e de filmes elivros de auto-ajuda em geraes posteriores.76Comoresultadodasnovastendncias,Hunteridentificaduasondasdeinovaoliterria, em 1690 e em 1740. O movimento da virada do sculo no legou muito coisa demrito duradouro, embora a maioria das obras literrias celebradas do incio do sculo XVIIItenha sido escrita em reao a ele.77 O contra-ataque augustano e a falta de concepo, porparte dos inovadores, de como devia ser uma nova literatura, minimizaram os efeitos dessaonda. A segunda onda, maisdecisiva,aqueincluiFieldingeRichardson.Entreambas,surgiram quatro tipos de textos em que as caractersticas do romance se fermentariam: textosjornalsticos, com sua preocupao com eventos correntes; textos didticos, com sua nfasenoaconselhamento;escritosprivadosepessoais,emqueosautoresseempenhavamemestabelecer a integridade das vidas individuais; e narrativas em perspectiva destinadas a tornar

74 Ibidem, p. 161.75 Ibidem, p. 92.76 Certainly many readers of novels were young; most novels were about young people on the verge of makingimportant life decisions about love or career or both, and most seem aimed at readers in similar situations (...)[N]ovels became, for tens of thousands of young men and woman in eighteenth-century England, guides to manypractical decisions about life, the equivalent of family stories and oral tradition in earlier generations and os self-help books and films in later ones. J . Paul Hunter, The Novel and Social/Cultural History. In CCEN, p. 20.77 Not much of enduring merit came from the turn-of-the-century claim, although most of the celebrated literaryworks of the early eighteenth century were written in reaction to it. Hunter, Before Novels, p. 11.36coerentes eventos ou fatos aparentemente sem sentido78. Os quatro tipos se manifestavam naforma de tratados religiosos, poemas, peas, panfletos, narrativas curtas e longas, antologias,coletneas e peridicos. Os romancistas, embora no tenham desenvolvido sua arte pela merareunio das caractersticas dessas formas, escreviam para um pblico que havia encontradonelas seu primeiro material de leitura79. Eles respondiam, portanto, a um contexto culturaldeterminadopormudanassocioeconmicasedominadoportextosnonecessariamenteliterrios. Hunter dedica um espao considervel a explorar a relevncia de algumas dessasformas os dirios pessoais, as autobiografias, a histria, a biografia e os relatos de viagens para a consolidao das caractersticas enumeradas em sua descrio operacional.O contexto cultural inclua decerto a literatura polida, a que muitos dos novos escritorestentavam se alar. Mas os augustanos se opuseram s expectativas do grande pblico, vendonelas,comjustia,umaameaaaosvalorestradicionaisemtermosliterriosesociais.Rejeitando a oportunidade que o novo mercado apresentava, autores como Dryden e Popeatacaram com virulncia os escritores do submundo que, para Hunter, representavam ofuturo literrio.entreessesexcludosqueumanovaconcepo,conducenteanovasformas,podesedesenvolver. Nem sempre fcil defender as realizaes de gente como Flecknoe, Wotton ouTheobald(emboraumaamostrabastanteboadainovaomodernapossaserreunidaemShadwell, Dunton, Defoe, Haywood e Cibber), mas eles estavam ajudando a definir direesquerepresentariamumanovasensibilidadeparaanovaera,equesignificariamemltimainstncia um espao para os romances.80_____

78 Idem, p. 86.79 Ibidem, p. 217.80 It is among these outcasts that a new outlook, conducive to new forms, can develop. It is not always easy todefend the accomplishment of the likes of Flecknoe, Wotton, or Theobald (although a pretty good representationof modern novelty might he assembled from Shadwell, Dunton, Defoe, Haywood, and Cibber), but they werehelping to define directions that meant a new sensibility for the new age and that ultimately meant a place fornovels. Idem, p. 163.37McKeon via na prosa de fico anti-realista uma das faces da explorao simultnea deproblemas epistemolgicos e sociais que caracterizou, em seu entender, a gnese do romance.Hunter reduz consideravelmente o papel dessa forma no processo de constituio do gnero,mas enfatiza igualmente seu carter reacionrio diante da literatura progressista. Pertenam ounogenealogiadoromance,obrascomoAHistriadeJohnBullsoumarplicaatendncias populares que no apenas ameaavam uma tradio literria j frgil, mas punhamem risco valores aristocrticos que vinham sendo abalados pelo fortalecimento de uma novaclasse de capitalistas e homens de negcios. Nas palavras de J ohn Richetti:Muitosromancesnoapenasrepresentamindivduosdasclassesoufileirasmdiasdasociedade;elesretratam,namaioriadoscasos,tentativasdealcanarstatus(ouriquezaoupoder) por intermdio da virtude e da ao isoladas e individuais, como opostas herana ou aoenvolvimento coletivo. (...) Nesse mundo, o investidor e empreendedor ousado e verstil umgrande heri, (...) e alguns se converteram, por meio do trabalho duro, da sorte ou amide dosubornoedacorrupo,emgrandeslordesearistocratas.Nessaemergenteordemsocioeconmica, o status est venda (...).81Em muitos casos o heri dos romances passar bem ainda que sem ttulos nobilirquicos. Naspginas iniciais de Robinson Cruso encontramos uma ilustrao explcita dessa revalorizaosocial, quando o pai do narrador lhe dizque a minha era a condio mdia, ou o que se pode chamar de estrato superior da vida baixa que, como ele constatara em sua longa experincia, era a melhor condio do mundo, a maisadequada felicidade humana, no estando exposta s misrias, agruras, labores e sofrimentosda parte mecnica da humanidade, nem comprometida pelo orgulho, luxria, ambio e inveja

81 Many novels not only represent individuals from the middling ranks or classes of society; they depict moreoften than not attempts to acquire status (or wealth and power) through isolated and individual virtue and actionratherthanbyinheritanceorthroughcorporateinvolvement.(...)Inthisworld,thedaringandresourcefulinvestor and entrepreneur is a great hero, (...) and some men transformed themselves by hard work, luck, or oftenenough by bribery and corruption into great lords and aristocrats. In this emerging socioeconomic order, in factbut also in imagination, status if for sale (...). J ohn Richetti, Introduction, in TheCambridgeCompaniontothe Eighteenth-Century Novel, p. 7.38da parte superior da humanidade.82

82 () that mine was the middle state, or what might be called the upper station of low life, which he had found,by long experience, was the best state in the world, the most suited to human happiness, not exposed to themiseries and hardships, the labour and sufferings of the mechanic part of mankind, and not embarrassed with thepride, luxury, ambition, and envy of the upper part of mankind. Defoe, Robinson Crusoe, p. 6.391.4. RecapitulaoAps essas consideraes preliminares, que no pretenderam ser breves nem simples, interessante fazermos um balano de nossa posio.Oromanceforma-sepaulatinamentenumapocaemquearespeitabilidadeliterriadepende de vnculos com a aristocracia e da aceitao de princpios neoclssicos mais gerais.A elite literria da Era Augustana constitua um crculo fechado que dificultava o acesso deescritores sem formao clssica ou com propsitos inovadores. Com o tempo, o aumento donmerodeleitoresnascamadasmdiaeinferiorgerouummercadoparatextosmenosinteressadosnatradioenasformasneoclssicasemaisvoltadosaquestesdeindividualismo e vida quotidiana. Como mostra Hunter, as caractersticas que definiriam oromanceemsuaformaconsumadahaviamresultadodointercmbioentreosdesejosconscientesouinconscientesdopblicoeaexperimentaodeautoresmarginaisemoutraspalavras,deumcontextoculturalmotivadoportransformaeshistricas.Taiscaractersticas se revelaram em formas anteriores de grande apelo popular, e foram notadaspelos crculos cultos. A prosa de fico que ento se desenvolvia (e que foi designada nessafase pelos mais variados nomes) foi condenada por sua incompatibilidade com os princpiosneoclssicoseporsuastendnciassocialmentesubversivas,vinculadacomoestavamentalidade de classe mdia.A atitude dos augustanos foi de rejeio, mas eles descobririam nis