vicios privados, catastrofes publicas, a psicologia social de arnaldo jabor- ismail xavier

30
VÍCIOS PRIVADOS, CATÁSTROFES PÚBLICAS A PSICOLOGIA SOCIAL DE ARNALDO JABOR Ismail Xavier RESUMO Este artigo completa a análise do percurso de Arnaldo Jabor, do cinema dos anos 70-80 à crônica dos anos 90. De um lado, aponta no cronista os temas e as visões do cineasta, seu diálogo com Nelson Rodrigues e Glauber Rocha, sua lida com os gêneros dramáticos na busca do tom ajustado ao teor da crise brasileira. De outro, destaca as mudanças de perspectiva no diagnóstico do país sugerido em suas alegorias. Nestas, a psicanálise orienta uma atualização do debate sobre o "caráter nacional", dando feição nova a uma exasperação em face do país que não retira de pauta o apocalipse mesmo quando repõe uma ideologia da modernização como vitória da Razão sobre a barbárie. Palavras-chave: cinema; Arnaldo Jabor: Nelson Rodrigues: Glauber Rocha; alegorias; crônicas. SUMMARY This essay concludes the author's analysis of Arnaldo Jabor's trajectory from film in the 1970s and 80s to the chronicle of the 1990s. On the one hand, the article points out how the film maker's themes and views persist in the chronicles, in his dialogue with Nelson Rodrigues and Glauber Rocha and in his dealing with dramatic genres while attempting to adjust his tone to the content of the Brazilian crisis. On the other, it emphasizes changes in perspective in Jabor's diagnosis of the country, suggested by his allegories. In these, psychoanalysis is used to orient his update of the discussion on "national character", lending a new meaning to exasperation in a country that has failed to remove the Apocalypse from its agenda even when insisting on a modernization ideal represented as the triumph of Reason over savagery. Keywords: film; Arnaldo Jabor; Nelson Rodrigues; Glauber Rocha; allegory; chronicles. Na caracterização do percurso de Arnaldo Jabor-cineasta, meu ponto de partida tem sido sua forma de conduzir uma espécie de anatomia da decadência que toma o espaço da família e da vida conjugai como flancos privilegiados de ataque. Sua ironia ao mundo privado procura a ressonância política e se põe, desde o início, como capítulo de uma psicologia social empenhada em denunciar um certo estilo de dominação enraizado na formação social brasileira. Creio ter esclarecido a forma como o cineasta, com a mediação de Nelson Rodrigues, conduz a reflexão sobre o declínio da figura paterna, a nova geração dos cínicos e a desagregação de relações humanas em que se apoiou sua visão amarga do processo de modernização administrado pelo JULHO DE 1994 67

Upload: joao-cintra

Post on 23-Nov-2015

32 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    A PSICOLOGIA SOCIAL DE ARNALDO JABOR

    Ismail Xavier

    RESUMO Este artigo completa a anlise do percurso de Arnaldo Jabor, do cinema dos anos 70-80 crnica dos anos 90. De um lado, aponta no cronista os temas e as vises do cineasta, seu dilogo com Nelson Rodrigues e Glauber Rocha, sua lida com os gneros dramticos na busca do tom ajustado ao teor da crise brasileira. De outro, destaca as mudanas de perspectiva no diagnstico do pas sugerido em suas alegorias. Nestas, a psicanlise orienta uma atualizao do debate sobre o "carter nacional", dando feio nova a uma exasperao em face do pas que no retira de pauta o apocalipse mesmo quando repe uma ideologia da modernizao como vitria da Razo sobre a barbrie. Palavras-chave: cinema; Arnaldo Jabor: Nelson Rodrigues: Glauber Rocha; alegorias; crnicas.

    SUMMARY This essay concludes the author's analysis of Arnaldo Jabor's trajectory from film in the 1970s and 80s to the chronicle of the 1990s. On the one hand, the article points out how the film maker's themes and views persist in the chronicles, in his dialogue with Nelson Rodrigues and Glauber Rocha and in his dealing with dramatic genres while attempting to adjust his tone to the content of the Brazilian crisis. On the other, it emphasizes changes in perspective in Jabor's diagnosis of the country, suggested by his allegories. In these, psychoanalysis is used to orient his update of the discussion on "national character", lending a new meaning to exasperation in a country that has failed to remove the Apocalypse from its agenda even when insisting on a modernization ideal represented as the triumph of Reason over savagery. Keywords: film; Arnaldo Jabor; Nelson Rodrigues; Glauber Rocha; allegory; chronicles.

    Na caracterizao do percurso de Arnaldo Jabor-cineasta, meu ponto de partida tem sido sua forma de conduzir uma espcie de anatomia da decadncia que toma o espao da famlia e da vida conjugai como flancos privilegiados de ataque. Sua ironia ao mundo privado procura a ressonncia poltica e se pe, desde o incio, como captulo de uma psicologia social empenhada em denunciar um certo estilo de dominao enraizado na formao social brasileira.

    Creio ter esclarecido a forma como o cineasta, com a mediao de Nelson Rodrigues, conduz a reflexo sobre o declnio da figura paterna, a nova gerao dos cnicos e a desagregao de relaes humanas em que se apoiou sua viso amarga do processo de modernizao administrado pelo

    JULHO DE 1994 67

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    regime militar1. A fora de sua encenao fez de Toda nudez e O casamento episdios centrais no "processo da famlia" conduzido por alguns cineastas do Cinema Novo nos anos 70. A tnica da tragicomdia definiu o gnero privilegiado na exposio da crise de uma ordem familiar sujeita ironia porque trao nuclear de uma tradio cultivada desde a colnia e retomada como smbolo de identidade nacional pela ideologia do golpe de 1964.

    Antes de avanar, uma observao: h um contexto maior para a operao de Jabor. A "crise da famlia" e o conflito de geraes foram temas centrais na pauta das cincias humanas em muitos pases, nos anos 60 e 70, dado que as mudanas no estatuto da juventude e os influxos mais gerais do desenvolvimento no ps-guerra geraram experincias de liberao sexual e substituies da autoridade familiar por outras formas de controle institucio-nal, dentro da chamada "dessublimao repressiva" prpria sociedade de consumo. O quadro de questes em torno de tal crise e das novas articulaes da famlia muito mais amplo do que o terreno restrito em que me desloco. Os movimentos de transformao e reposio de estruturas familiares so nuanados, envolvem embaralhamentos e desautorizam "leis gerais", bastando lembrar, como referncia, as crticas pressa de certos diagnsticos de poca feitas por Chistopher Lash2. No se trata, portanto, de trazer o conjunto da questo para a minha anlise mas apenas sublinhar o sentido deste processo pelo qual, no Brasil, no momento em que se adensam os bolses urbanos de uma incipiente sociedade de consumo, as mesmas foras que promovem o avano tcnico-econmico assumem a tarefa contraditria de defesa da tradio familiar como componente dos "valores cristos" mobilizados contra a expanso do comunismo conforme a doutrina de segurana balizada pela Guerra Fria. Ao tornar tal tradio alvo do sarcasmo, os filmes no inauguram o "processo da famlia"; vm lhe dar uma feio particular ajustada ao quadro poltico, expondo o lado cafona e acanhado da empreitada moral do regime, sublinhando as iniquidades recobertas pelo esquema de poder.

    Est presente neste processo a clssica operao de desmascaramento: revelar a distncia entre ideologia e prtica efetiva; a famlia tradicional, o vigor do patriarca e seus valores se evidenciam mais como construo simblica do que realidade. Mas tal operao se acompanha da conscincia, menos bvia, da eficcia do simulacro na gerao de comportamentos polticos e na construo de um princpio de autoridade que, embora tenha bases materiais em outros processos (a formao do capitalismo tcnico-burocrtico nos anos 70), se vale da tradio moralista para ganhar legitimidade. Os cineastas fazem a comdia tomando a ordem familiar brasileira a srio, seja porque sua crise sinaliza adaptaes a uma nova conjuntura mundial cujo desdobramento ainda incerto, seja porque o iderio tradicional tem rendimento poltico para o regime. Procuram explorar o terreno da vida privada pelo que a existe de matricial em face de um comportamento conservador. Vem da a vontade de psicologia, um empenho em entender os substratos de carter inconsciente da ordem social, porque a decepo com a realidade poltica sugere que nem tudo

    (1) Minha anlise de Toda nu-dez ser castigada e O casa-mento foi apresentada no arti-go "Pais humilhados, filhos perversos Jabor filma Nel-son Rodrigues", publicado no n 37 desta revista.

    (2) Ver Refgio num mundo sem corao. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

    68 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    racionalidade e expresso de interesses materiais no comportamento poltico, havendo disposies psicolgicas contraditrias que os cineastas querem entender sabendo-se parte do universo focalizado. H neste movimento uma dose de revanche contra um imaginrio familiar que assumiram como marca por excelncia do pblico comprador de ingressos, espectadores frente a quem proclamaram o seu divrcio numa postura afinada porm algo distinta daquela do teatro de agresso. H uma dimenso da auto-anlise que, presente no encaminhamento do debate sobre a sociedade, foi um gesto decisivo do Cinema Novo, definindo sua fora e seu risco nos anos 70, uma vez que o ajuste de contas com a tradio no se deu sem um certo enredamento nas articulaes simblicas que focalizou, demarcando os limites de sua imagem da modernizao tal como se configurou no Brasil.

    Em seu movimento em direo famlia e ao que chamei de anatomia da decadncia, o Cinema Novo tomou o atalho oferecido pelas referncias literrias num leque bastante diversificado. A matriz pode ser Nelson Rodrigues, como o caso de Jabor, mas pode tambm ser Dalton Trevisan, como em Guerra conjugai de Joaquim Pedro, Lcio Cardoso, como em A casa assassinada de Saraceni, mesmo Graciliano Ramos, como no So Bernardo de Leon Hirszman, ou Oswald de Andrade lido na chave da "adaptao literria", como em Os condenados de Zelito Viana, ou na encampao mais iconoclasta do Cinema Marginal, como em Os monstros do babala de Eliseu Visconti.

    Na observao do trajeto de Jabor, examinado o dilogo com Nelson Rodrigues, resta analisar como o cineasta prossegue o debate em torno da figura do pai, dentro deste primado de uma psicologia social que busca uma viso totalizante do pas. Na considerao dos desdobramentos e contradi-es desta psicologia, meu percurso desemboca no Jabor-cronista, para ver como a se combinam Nelson Rodrigues, a matriz cinemanovista e as citaes de pensadores da formao nacional, como Gilberto Freyre e Srgio Buarque de Holanda. Tais heranas e incorporaes, num primeiro momen-to, permitem rechear sua idia de Brasil, formando o lastro que destaca a imaginao de Jabor no jornalismo dirio. Mas vm gerar tenses quando o movimento das crnicas o leva ao engajamento direto nas opes que se abrem no Brasil ps-Collor e no processo sucessrio. Emerge a, na crnica, o social-democrata exasperado pela resistncia que uma certa mentalidade-obstculo, em parte a mesma que ele inventariou nos filmes, oferece s ponderaes da Razo, agente nuclear de mudana que sua psicologia tende a ver como irradiao de foco nico.

    a) O processo da famlia

    1967 um momento chave do percurso que me interessa. Ano de Terra em transe, que valer aqui uma observao, e do documentrio A

    JULHO DE 1994 69

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    opinio pblica em que Jabor j apresentava um inventrio de comporta-mentos revelador focalizando grupos familiares em pequenos apartamen-tos, jovens inseridos no circuito do rock e da moda, setores do funcionalismo pblico, gente de televiso e outras peas da chamada "opinio pblica". A invaso dos espaos domsticos, a ateno roda de fofocas cotidianas, as confisses que traduzem aspiraes pessoais mais fundas, gestos menos controlados na mira de uma cmara bisbilhoteira, tudo sinalizava uma vivacidade nas pessoas que, conforme j assinalado mais de uma vez pela crtica, escapava moldura terica da observao. A montagem, por seu lado, ordenava as peas do inventrio, destacando o imaginrio sentimental da cultura industrializada, as supersties e a histeria de encontros religiosos sob o comando de milagreiras, o mundo de Chacrinha e da novela de TV. Tudo estruturado em torno da tese com citao direta de Wright Mills de que prprio s classes mdias o retraimento, o apego autoridade, o af de segurana, a miopia social, o consumo do kitsch. Tal inventrio, ao apresentar a galeria de pequenos homens capturados em redes imaginrias, entrincheirados no mundo domstico, sublinhava a dimenso poltica de tal perfil psicolgico. O filme queria surpreender os conservadores em sua prpria casa para buscar verdades privadas, pesquisar segredos da intimida-de que pudesse relacionar ao comportamento pblico. Vinha para expor o lado mais domstico da marcha em direo ao golpe de Estado que Terra em transe alegorizava, concentrado nas lideranas polticas e no jogo do poder.

    Em sua representao do golpe, o filme de Glauber condensa o processo poltico na ao de um grupo de agentes que personificam, de um lado, uma esquerda atrelada a um esquema populista e, de outro, uma direita oligrquica que conspira e interrompe o processo eleitoral que a ameaa. Num teatro que envolve comcios populistas, a traio da burguesia local s foras populares, movimentos da militncia de esquerda, interven-es do capital multinacional, destaque maior dado ao lder da oligarquia, Porfrio Diaz. ele a figura de referncia no percurso de Paulo Martins, o jovem intelectual que est no centro do relato e estabelece com o lder conservador uma relao trabalhada, ao longo do filme, em termos edipianos (dependncia, rivalidade e libertao). Tal relao d feio particular vitria dos conservadores na cena poltica de Eldorado, pas alegrico onde o golpe de Estado se desenha como reposio da violncia originria que marcou a empresa colonial dos europeus nos trpicos. Vitria do trinmio Tradio-Famlia-Propriedade, o golpe se encarna em Porfrio Diaz que costura a articulao entre as suas bases materiais (apoio do capital internacional e cooptao da burguesia local) e o discurso tradicionalista. Porta-voz da Casa Grande, Diaz monopoliza a iniciativa; o elo decisivo da cadeia conservadora: o interesse material, representado pelo magnata Fuentes, o burgus modernizador que controla as indstrias e as comunica-es, tem papel secundrio. Foco por excelncia do golpe, a tradio patriarcal, mais do que o estamento militar ou os donos do dinheiro, que se pe ento como o fascismo fascinante a oferecer a fisionomia grotesca para

    70 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    o ataque do Cinema Novo. Os jovens cineastas, focalizando o mundo conservador ps-golpe, identificaram a ordem instalada com figuras desta tradio, em geral exemplares menos potentes e mais caricatos a servir de alvo para a stira antiautoritria.

    A opinio pblica, contemporneo de Terra em transe, j focalizava os seguidores da ordem: os fracos, o rebanho identificado s classes mdias, os filhos do medo, como afirmava o poema de Drummond citado no filme. Nos anos 70, as duas adaptaes de Nelson Rodrigues expem mais diretamente a figura do pai humilhao, confirmando a escolha do alvo da crtica em sua relao com a imagem do golpe e com o corpo da tradio sado da alegoria de Glauber. Curiosamente, o prprio Jabor quem sinaliza a passagem do pblico ao privado como desdobramento da discusso poltica do Cinema Novo, permitindo a observao de Herculano, primeiro elo da cadeia Herculano-Sabino-Juarez (o pai de Tudo bem) como anttese de Diaz, a figura cinematogrfica smbolo da tradio vitoriosa em 1964. Uma leitura intertextual de Toda nudez permite assinalar um detalhe, uma nota de rodap, que pontua esta passagem para a anatomia do espao domstico pela qual se explora o lado avesso, menos visvel, de figuras associadas ideologia no poder agora observadas fora do espao poltico-institucional. No um acaso o fato de Jabor abrir o seu filme com o travelling no aterro do Flamengo, focalizando Herculano no volante, com o seu ar cafona, num passeio que refaz o espao e o movimento da parada triunfal de Porfrio Diaz, um forte emblema de Terra em transe.

    No filme de Glauber, a composio da liderana maior dos conserva-dores visa sublinhar um estilo de interveno na esfera pblica, na luta pelo poder. Da vida privada de Diaz, temos os sinais de sua solido a compor a imagem do defensor intransigente da oligarquia. A inspirao religiosa de sua misso poltica ata sua militncia obcecada preservao de purezas ameaadas e exige uma vida em consonncia com o ideal asctico. Missionrio, Diaz a tradio patriarcal representada no momento da demonstrao de fora. Sua retrica do Bem e do Mal atinge o grotesco mas guarda uma eficincia sinistra que inibe qualquer movimento em direo comdia. Herculano a verso prosaica, ajustada ao tom de Toda nudez, dos mesmos valores que Diaz mobiliza, deslocamento que o pe como figura menor que, flagrada nas mazelas cotidianas, permite sabotar as fundaes do projeto de Diaz. Obviamente, a distncia que separa tais figuras de pai em termos de fora e envergadura enorme, mas se coaduna com esta passagem que estou apontando: mudam os termos da representa-o da alegoria nacional solene e dramtica tragicomdia e muda o tratamento da figura submetida crtica. Diaz interessa pela potncia vitoriosa na vida pblica; Herculano, Sabino, como depois Juarez, interes-sam como balizas de uma anatomia da vida privada e de certo estilo de malograr na comdia das transgresses e culpas do Pater Famlias flagrado em sua precariedade. Sabino, em particular, permite que o comentrio envolva todo um estilo nacional de vida poltica: ao contrrio de Herculano e seu mundo fechado, o desenlace da comdia do pai de Glorinha se

    JULHO DE 1994 71

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    apresenta como um delrio messinico vivido no espao pblico e no contato com o "povo".

    Na sequncia bombstica da confisso de Sabino, assumida a dimen-so coletiva do evento, a mise-en-scne de Jabor retoma, com nfase, a tnica das totalizaes do Cinema Novo, antes mesmo de sua anatomia da decadncia chegar a Tudo bem. A moldura geral de O casamento e sua articulao entre drama domstico e experincia social, entre o pblico e o privado, extravasam o texto de Nelson Rodrigues para dar nova dimenso ao calvrio do protagonista. J destaquei as imagens da enchente que emolduram a estria, metfora totalizante do colapso social e aluso ao desastre urbano que guarda relaes com as atividades empresariais de Sabino. H outra moldura, esta dentro do percurso do protagonista, que interessa tambm destacar, contraste entre incio e fim do filme. Do incio, vale lembrar a cena em que Sabino se dirige de manh ao trabalho e, do banco de trs do carro, exige maior pressa do motorista enquanto a multido que cerca o veculo e observa o seu interior permanece como ameaa potencial, cria estranhamentos pelo olhar dirigido cmara. O engarrafa-mento de trnsito, o obstculo, a aflio: nesta situao cotidiana do empresrio, o coletivo se faz presente na figura da multido que significa simplesmente inrcia, resistncia de massa humana progresso do carro, massa de que Sabino est separado e com a qual ele pouco se importa a no ser como estorvo. Enquanto o empresrio vive o dia-a-dia pragmtico da administrao dos negcios, buscando eficincia, sua relao com o outro se d na tnica da dominao, da ausncia de interesse que ultrapasse a funcionalidade dos corpos. No final, se d o contrrio. Ao dar o "salto metafsico", seu delrio tem resposta "popular", instaura uma liderana: ele seguido de uma pequena multido, parece um beato cercado de seus adoradores, entra em comunho com o coletivo. Enfim, tem seu momento de glria populista. Deste modo, na cena de sua priso, so ntidas as ressonncias de um clima delirante, exacerbado, que caracteriza os com-cios de Terra em transe, tratado agora com menos gravidade mas com a mesma ironia. no momento do mergulho no sonho messinico que Sabino consegue, mesmo que sua revelia, atualizar um estilo de conduta enraizado na formao social, vivendo uma experincia de solidariedade e comunho. Ou seja, o seu teatro de salvao o retira da sua pequena esfera para fazer deste encontro uma espcie de reposio, em tom menor, da apoteose barroca da iluso com que Glauber equacionou a vida poltica brasileira. Apoteose seguida aqui das imagens da enchente que, no excludas as aluses bblicas, fecham o discurso com promessas de desabrigo e peste, inserindo o fracasso da figura paterna no quadro geral da "misria brasileira".

    Como j assinalei, o tom da mise-en-scne na tragicomdia de Jabor no permite que se trabalhe o gesto de Sabino como sacrifcio redentor. Observado do exterior por um olhar irnico, no menor seu fracasso apesar da congregao que seu gesto instala. Deste modo, o cotejo entre comeo e fim traz tona este contraste entre a potncia de separao do

    72 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    moderno (Sabino empresrio, cidado produtivo, est s) e a potncia de unio do arcaico (Sabino encontra o seu pblico na confisso). No Brasil, a eficincia econmica isola, oferecendo verso acanhada de um princpio de individuao da modernidade; o delrio religioso, o sair de si, congrega, afirmando a oposio entre esprito de coletividade e mundo prtico. O primeiro se realiza no espao das iluses e excessos, da festa em sentido lato, o segundo desfila como um vale-tudo de explorao e violncia.

    O captulo seguinte da psicologia social de Jabor Tudo bem (1978), onde se reagrupam os temas j presentes nas tragicomdias, trabalhados no mesmo estilo. Temas e estilo agora apoiados num roteiro original mais calibrado para oferecer a representao do pas como um todo. Com a famlia no centro, a articulao entre vcios privados e catstrofes pblicas se faz explcita.

    b) Tudo bem: a matriz colonial do Mesmo

    Neste filme-sntese desguam as diferentes inspiraes. Na comdia conjugai, Juarez e Alzira repem alguns lances do repertrio rodriguiano3. Na alegoria, ntido o dilogo com Glauber e sua postura totalizante: o apartamento da famlia um microcosmo da nao, um teatro de populis-mo, euforia carnavalesca, surto messinico, migraes, violncia, submisso ao estrangeiro4. E novamente Jabor justape o arcaico e o moderno nos termos da Tropiclia: cultura de mercado e folclore rural, ritos indgenas e natureza tropical, televiso e smbolos patriticos definem o mundo kitsch da famlia.

    Presente na abertura e nos crditos, a articulao entre vida domstica e imaginrio nacional permanece ao longo do filme. Juarez, o chefe de famlia aposentado, o ponto central de mediao: traz para o apartamento na Zona Sul do Rio o universo mtico dos elementos formadores da nao de que se v baluarte. Ex-integralista, expe seu iderio em reiteradas conversas imaginrias com trs companheiros do passado: o integralista fantico, cultivador das "emanaes telricas"; o italianado de So Paulo que faz o elogio do progresso e de fbricas de macarro; o poeta parnasiano que adorna as "reunies" do grupo com sua retrica. Juntos, evocam vivncias de juventude, os bons tempos da lida poltica, o ufanismo nacionalista de matizes fascistides. Enfim, tudo o que contrasta com o presente medocre de Juarez. Homem fraco, sem autoridade na vida da famlia e do prdio, ele a direita folclrica vontade no espao da comdia, tal como um fascista de Fellini na cena italiana. Seu percurso ser de crescente amargura, reconhecimento da impotncia sexual, paterna e social, mergulho na apatia que encontra compensao cada vez menor nas fantasias e recordaes.

    Burgus mediano, nem rico nem pobre, ele o "pequeno homem" que encarna o declnio da figura paterna j trabalhado em Toda nudez e O casamento. Est agora mais velho, mais acanhado. O cultivo dos emblemas

    (3) H citaes de Zulmira, a protagonista de A falecida, na figura de Alzira, a me em Tudo bem: h a frustrao, os rompantes de "vou morrer", a obsesso semelhante com a figura da loira. O lance par-dico e Fernanda Montenegro, que fez a Zulmira no filme de Leon Hirzsman, desenha uma Alzira frustrada, mas franca-mente cmica, isenta de culpa, que se vinga na obra (reforma da casa), no na morte. (4). Em verdade, juntamente com A idade da Terra, filme que Glauber deu por termina-do em 1980, Tudo bem fecha um ciclo de alegorias nacio-nais, totalizantes, elaboradas pelos cineastas do Cinema Novo a partir dos anos 60. O palco da encenao de Glau-ber se expande pelo Brasil (Braslia, Salvador, Rio de Ja-neiro), abrangente em seus espaos e figuras; o teatro de Jabor se contrai no apartamen-to de Copacabana. Mas a iden-tidade de questes e a ateno especial ao tema da decadn-cia atestam que, na diferena de estilo e tonalidade, a ironia amarga de Jabor urbana,-ctica tem pontos de en-contro com o profetismo evan-glico de Glauber.

    JULHO DE 1994 73

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    da velha ideologia curupira o identifica como um velho cheio de manias a

    que ningum adere, nem a mulher nem os filhos. Os jovens, novamente, esto associados decadncia, agora expressa em termos radicais. Ao contrrio de Serginho ou Glorinha, os filhos de Juarez so figuras debilides, andinas. Sua distncia em relao ao pai apenas o desinteresse de alienados incapazes de qualquer confronto. Com ar de gerao perdida, so plos da comdia em que o filme se vale da experincia de Regina Cas e Luiz Fernando Guimares trazida do grupo teatral Asdrubal Trouxe o Trombone. Absorvidos em si mesmos, no prestam ateno reforma do apartamento: o filho preocupado com a sua posio na multinacional em que trabalha como Relaes Pblicas; a moa voltada para o consumo, "as compras", o possvel casamento com o americano, sempre sonsa.

    Neste mundo medocre e sem surpresas, o elemento motor Alzira. Fato que reduz o lan da famlia aos termos da dona de casa: empreender construir a boa aparncia, encenar um "tudo bem" cosmtico associado a um anseio de agradar a visita (o estrangeiro rico). Dado o eclipse do marido, Alzira ocupa os vazios, mostra energia, at mesmo quando se queixa da abstinncia sexual, do trabalho na casa. incansvel em seu exibicionismo coquete que inclui a encenao sensual do affair do marido com "a loira", adultrio imaginrio que ela prpria inventa. Este teatro domstico se arrasta at o momento em que Juarez simula, no telefone, o fim do suposto caso. Pode ento o casal "reconciliado" se engajar na reforma do apartamento: vida nova. Alzira celebra a vitria aps "26 anos de luta". Vitria isolada pois, de comeo a fim, seu convite ao sexo no tem resultado, nem mesmo quando ela pede a Aparecida, a domstica nordestina, que benza o apartamento, em especial a cama do casal. Soberana, de qualquer modo, na conduo da famlia, sua tnica a relao populista com as empregadas (a carioca esperta e a nordestina ingnua) e com os pedreiros. autoritria, eficiente nos negcios, mas atua sempre como me compreensiva, sabore-ando seu papel em longos discursos que elogiam o estilo de vida dos miserveis, exaltando a bondade do povo, a poesia que h na pobreza.

    A tenso relevante em Tudo bem no se d no eixo das geraes ou mesmo no das rusgas entre marido e mulher. Desloca-se, portanto, em relao a Toda nudez e O casamento. A questo aqui a conteno dos "excessos populares". A reforma gera a gradual invaso do espao familiar pelas figuras do trabalho, as classes subalternas. Sua funo preparar o cenrio para a festa final em homenagem ao americano, ocasio em que a famlia, cumprindo seu ritual de classe, vai apagar os sinais de tal presena de povo e trabalho. No processo, desenha-se o tradicional imbricamento de intimidades entre patres e empregados, tudo dentro da economia informal, dos salrios precrios compensados por cortesias que fazem o orgulho da famlia como gente "legal". Os arremedos de conflito servem para identificar tipos cmicos estveis que, na sucesso de situaes absurdas, trazem o seu pequeno mundo para dentro do apartamento, de modo a compor o painel social desejado, includas as narraes da misria na fala dos pedreiros que enchem os "bons ouvidos" de Alzira. Todos se do ares de dizer tudo, em

    74 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    famlia. Alm do show da dona da casa, h a falao de um pedreiro desabusado em torno de fatos escabrosos ocorridos na regio onde mora, com um toque rodriguiano do "grotesco popular". E h a estria da famlia "sem teto" do imigrante que conta a vida do pai candango de Braslia, mostra fotos, compe um clima tipo "o sonho acabou" que define a analogia entre a microempreitada do apartamento e a construo da capital do pas. A cidade-monumento nacional, como esta pequena reforma do apartamento, preparao para receber influxos, atestar a modernizao. Esforo de transformao da fachada, mantidas as estruturas, que envolve o exerccio renovado do principio de excluso: solicitar o plo popular como executor da obra para, em seguida, expuls-lo ou confin-lo para que seus sinais no manchem o espao. O ocultamente exige ares democrticos mas a poltica de controles diplomticos nem sempre funciona. Principalmente quando o transbordamento, como o de Aparecida, envolve um surto de misticismo e histeria que se propaga numa desmedida inaceitvel.

    A tenso, de incio cmica, entre as demarcaes da ordem e os excessos populares muda de tom no desastre final, que ser preciso ocultar. O primeiro lance coletivo o do carnaval comandado pela empregada mais esperta, quando a animao se expande e transforma o apartamento numa passarela de escola de samba, para desespero de Juarez. O embalo s se dilui (em realidade, o lugar da catarse se transfere) quando todos se unem para estancar um forte jato de gua que sai de um cano estourado do banheiro. Mais adiante, a vez de Aparecida se transformar em estopim. Criado um clima propcio pela evoluo das peripcias, ela entra em crise, gritando no quarto fechado; quando abrem a porta, ela sai de olhos esbugalhados, com duas chagas nas palmas das mos. Atravessa o aparta-mento, vaga pelas ruas, em transe, e acaba dando origem a uma grande romaria que transforma seu quarto em santurio. Uma multido entra em cena e se acotovela nos corredores do prdio, aparecem vendedores ambulantes e Juarez tem de lutar muito para entrar em casa. Na exaspera-o, toma coragem e expulsa todo mundo, repondo a ordem. Estes dois episdios carnaval e surto messinico marcam a presena de duas formas tradicionais do "excesso popular" que ameaam o mundo da religio disciplinada e do trabalho, o mundo do "somos cristos" de Juarez. Mais para o final, uma terceira forma de tal excesso se manifesta para criar o pesadelo maior, pr em risco a festa. No ltimo dia, um conflito entre dois pedreiros em torno de uma banana roubada gera o crime: h um cadver no meio da sala que, em poucas horas, ser ocupada pelos convidados. Criada a aflio, Jabor aproveita o crescendo do drama e lana mo do detalhe de montagem para intensificar o efeito: est l o cadver estendido no cho e j se antecipa o som da orquestra de Ray Conniff; o corte seco introduz o passeio de cmara que mergulha na festa. Tudo parece normal mas sabemos o motivo das posies estranhas de Alzira e dos filhos ao pisar em pontos especiais no cobertos pelo tapete. Na rea de servio, Aparecida vela o cadver do pedreiro. A justaposio sala de visitas/quarto de empregada chega a seu ponto emblemtico e se mantm at que a ateno se volte para

    JULHO DE 1994 75

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    o americano. Este fala da Global Village, da comunicao via satlite e

    domina a platia de brasileiros apatetados que o segue a cantarolar Around the world como exaltao da tcnica e da modernidade. Para fechar o discurso, irrompe a imagem area da Foz do Iguau, e a cachoeira oferece os termos da catarse: exuberante, porm em queda livre, descendente como em O casamento5.

    Neste final, a montagem sela o tema do transbordamento, uma constante de Jabor ao longo dos filmes e tambm das crnicas recentes: o fluxo das guas a figurar o colapso, do sujeito (retorno do reprimido) e da ordem social. Por outro lado, o sangue sob o tapete e o cadver na rea de servio sinalizam o recalque da violncia na construo do cenrio da festa, refirmando o princpio de excluso como dado central da modernizao conservadora.

    Ao trazer todo o pas para dentro do mundo domstico, Tudo bem evidencia, na sua estrutura, o influxo de uma tradio ensastica da sociologia brasileira, apresentando uma verso nova da clssica dicotomia feita de Casa Grande e Senzala, Sobrados e Mocambos. Introduz um novo par, Sala de Visitas e Quarto de Empregada, que atualiza e assume a pertinncia de uma sntese do social a partir do ncleo familiar. Ao faz-lo, no se ilude com verses idlicas da convivncia entre as classes trazidas por esta matriz, sendo irnico com as operaes de ocultamento a implicadas. Alm disto, seu sarcasmo dirigido ao ufanismo forma matriz do "tudo bem" e da catilinria do "bero esplndido" desautoriza a viso paternal, o olhar da Casa Grande ou da Sala de Visitas, com sua idealizao-anulao do povo exaltado como parte da natureza a domesticar. No entanto, o desfile das indisciplinas crenas, carnaval, cordel, beatismo retm um resduo folclorizante. O filme se diverte com as aflies dos donos da casa mas a comdia se apia demais no esteretipo, acentuando o grotesco, a histeria e a violncia como trao geral: mancha encoberta dos donos da casa mas, acima de tudo, marca desinibida dos empregados. Ou seja, o excesso popular est l para dizer a verdade do todo. E a nfase recai no que, nesta esfera, confirmao da "misria brasileira", da ausncia de sujeitos histricos fortes e ausncia de articulao do social com o poltico, dado criador dessa falta de sada que se figura no fluxo das guas de conotaes apocalpticas.

    Se, nos anos 70, a sociedade brasileira era obviamente mais complexa, se a prpria configurao deste mundo acanhado define uma Casa Grande j sem colunas mestras, por que insistir na matriz colonial, na famlia como ncleo da reflexo sobre o pas? Nesta escolha, Jabor condensa a resposta do Cinema Novo ao regime militar: faz questo de negar a modernizao como fora produtora de uma nova sociabilidade, nova qualidade de vida, efetiva formao de classes sociais. A questo marcar o lado conservador do modelo brasileiro, assumir a modernizao como mudana de pele, casca que encobre a repetio de formas arcaicas de dominao e convivn-cia de classes, reposio de uma subservincia a poderes externos sob a aparncia do Brasil Grande. Nesta perspectiva, adotar a matriz da sociedade

    (5) A queda d'gua, aqui, alm de ponto final que evoca a metfora totalizante da enchen-te em O casamento, ironiza tambm o ufanismo do incio do sculo que sobrevive no apenas em Juarez: no por acaso, no meio do filme, ele assiste ao programa de Amaral Neto na TV, srie ufanista de-dicada natureza brasileira o documentrio sobre a poro-roca embalado pela voz exal-tada do reprter.

    76 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    patriarcal compor um diagnstico que aponta, no presente, o que a a repete como farsa, o que a declnio efetivo da ordem familiar sob a capa de uma atualizao cosmtica. Neste sentido, de toda a armao do regime burocrtico-autoritrio e seu projeto de modernizao, ataca-se o flanco da direita folclrica, a que acredita na permanncia dos valores tradicionais e pensa o regime como sua garantia. Ou seja, o plo Tradio-Famlia-Propriedade que se representa em Tudo bem por esse nacionalismo caricatural sem potncia efetiva (a ordem econmica segue outros cami-nhos) mas ainda moeda corrente no plano ideolgico6.

    Iniciado em torno de 1970 ou seja, perodo da censura, do moralismo, do auge da represso o "processo da famlia" de Jabor foi encontrando diferentes verses em que o espao domstico figurou rela-es de poder e marcou a discusso das razes da apatia poltica. Esta foi assumida como trao nacional insistente, inclusive na conjuntura especfica de Tudo bem, que de gestao da Anistia e do fim do AI-5. Este filme observa o Brasil pelo lado das permanncias de prazo largo, das experin-cias populares de transgresso espasmdica da ordem, comportamento marcado por respostas pontuais que estariam ligadas a insuficincia de articulao, pela base, que marcou o processo de abertura e mais tarde resultou no que Fernando Henrique Cardoso chamou de "democracia conservadora"7. Esto obviamente ausentes os setores mais organizados da sociedade, como era comum acontecer no Cinema Novo desde os anos 60. Este, mesmo quando foi mais inclusivo em sua alegoria, como em Terra em transe, insistiu no peso poltico de uma tradio histrica formadora da mentalidade-obstculo, esta que denota atraso, tende ao delrio, incons-cincia poltica, no-solidariedade dos de baixo e soluo vinda de cima (em Tudo bem, tpica nos pedreiros uma postura de desunio, inveja, conflitos internos).

    Assumido o peso da tradio patriarcal, voltada para as relaes informais de mando e para a privatizao do espao pblico, a compreen-so da inconsistncia poltica, da alienao, se apia numa forte presena da psicanlise, evidente desde Toda nudez e O casamento. A alegoria totali-zante de Tudo bem vem ajustar tal presena anatomia do estilo de sociabilidade encravado na tradio colonial. Esta a sntese que resulta da opo do cinema pelo ajuste de contas com a famlia como forma de chegar poltica. Resultam expostas as feridas de um Brasil com vontade de ser moderno, porm mergulhado na reposio do Mesmo em sua forma caricata e, por isto mesmo, desenhado de forma agressiva nos termos da ordem familiar em decomposio. A rigor, sabe-se que tomar o plo arcaico de relaes pelo todo uma deformao s possvel a partir da expulso de camadas fundamentais do Brasil moderno includas as classes formadas pelo avano da indstria e dos servios. Est claro que a alegoria no d conta do pas vigente naquele momento. Chama, porm, a ateno para aspectos de uma antropologia brasileira que, muitas vezes desdenhados pela militncia dos partidos esquerda, so fundamentais na discusso poltica. Ou seja, temos a aquele esforo em captar peculiaridades da vida

    (6) interessante lembrar que, tal como mostrou o trabalho de Srgio Botelho do Amaral, "Guerra conjugai uma ba-talha de Joaquim Pedro de Andrade" (Universidade Fede-ral Fluminense, 1990, o filme de Joaquim, realizado em 1974, tem tambm a TFP como alvo de referncia em muitos de seus lances.

    (7) Ver A construo da demo-cracia estudos sobre polti-ca. So Paulo: Editora Sicilia-no, 1993, particularmente os artigos "A fronda conservado-ra o Brasil depois de Geisel" e "Os anos Figueiredo".

    JULHO DE 1994 77

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    social que o Cinema Novo reiterou em sua observao do pas, sempre mais sensvel aos resduos de mentalidade arcaica, sociabilidade patriarcal, jogos clientelistas, populismo. Se esta uma representao deformada em seu privilgio a um dos plos, gera, no entanto, uma matriz para pensar o Brasil capaz de reconhecer os efeitos polticos da convivncia de temporalidades, dessa heterogeneidade social onde se acotovelam e se acomodam tradio e modernidade. No limite, esta matriz tem oferecido, desde os anos 60, determinadas imagens da vida poltica que o episdio Collor recolocou em pauta como verso apotetica da convivncia de arcaico e moderno, do universo da mdia e do "em famlia".

    O delrio Diaz do final de Terra em transe retorna no discurso de posse do presidente eleito em 89, bem como os dados do carisma, do messianismo poltico, da massa apatetada, agora embalada por uma manipulao mais sofisticada em sua tecnologia. O desfile grotesco da elite do poder que se delineava no circo populista do grande comcio do filme de Glauber retorna nas festas de largo abenoadas por ACM e nas sesses do Congresso, especialmente em passagens da votao do impeachment de Collor tornada espetculo de TV: "pelos meus filhos", "pela minha famlia", "pelo meu chefe Maluf", "por Santa...". O Jabor cronista, j no anos 90, no perdeu a chance de extrair o melhor rendimento desta convergncia.

    c) A psicanlise do atraso

    Quando Jabor assumiu a crnica de jornal, j em plena desiluso da Nova Repblica, o desfile de corrupo e crime organizado, as chacinas, a longevidade da crise econmica e o sentimento de questes insolveis na vida brasileira alimentavam, com nova fora, a idia da iniquidade como marca nacional. O teor rotineiro da barbrie desafiava, como hoje desafia, a retrica j dramatizante do noticirio e da programao da mdia. Mesmo os redutos mais tradicionais de fantasia e otimismo da TV se deixavam ensombrecer cata de uma soluo de compromisso entre o desejo, o devaneio e os dados contundentes do dia-a-dia. A novela em horrio nobre fazia seus ensaios na direo de uma noo mais adulta de "realismo", seguindo mais de perto a obsesso de Hollywood com o triunfo da esperteza e da violncia no mundo contemporneo. Abria-se o vdeo para uma considerao "mais a srio" da corroso dos valores, embora prevale-cesse a explorao dos momentos sensacionais em que violncia, contra-veno e jogos de poder se traduziam em dramas pessoais, fofocas de famlia, choros, confisses, arroubos sentimentais, crises de dio.

    No teatro da mdia, ganhou impulso a busca da personagem interes-sante e houve at uma certa experimentao como no caso da famlia Collor quanto ao gnero dramtico adequado para qualificar a experin-cia social. A ansiedade em ver tal experincia ganhar sentido, e a recusa em procur-lo em nexos causais de teor mais estrutural, dirigiu a conversa para

    78 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    os dados personalizados do processo, incluindo uma dose diria de pitoresco: os dramas do ministro que se expe quando "flagrado" sem saber pelas cmaras, os depoimentos patticos das vtimas de violncia ou desastre, as caretas dos ncoras da TV e seu "servio personalizado" da informao. A tnica nacional de reiterado malogro fez moeda corrente a idia do "trgico". Frmula automtica, esta perdeu sua fora como dotao de sentido, tornando-se idia tosca de fatalidade associada ao recalque do discurso sobre interesses concretos.

    De modo geral, o uso de noes correlatas a gneros dramticos, privilegiando a gravidade e se afastando da blague, atualizou um protocolo de reaes j batido no Brasil mas que ganhou interesse em funo da escalada de ficcionalizao da notcia. A narrativa dramtica tornou-se um sucesso, no apenas enquanto exacerbao do mecanismo da fofoca, j tradicional, mas enquanto elaborao de um discurso no qual o clculo dos efeitos e do gnero adequado situao hiperconsciente. Uma galeria de escroques garante matria farta para os exerccios de psicologia social, e a teatralizao do cotidiano se canaliza, afora as vtimas, para o anti-heri como figura tipo, no sendo rara a sugesto de que ele "nos" define. Neste movimento, volta cena o carter brasileiro, com uma fora que a idia do nacional perdeu em suas outras dimenses. E retorna sem a dominante de humor que a caracterizou no passado: Macunama sai de pauta pois o senso comum perdeu a pacincia em face da malandragem, fazendo da tica o tema central do discurso poltico.

    Dentro desta atmosfera, a crnica de Jabor ganhou destaque pela fora de sua construo de personagens inspirada nos episdios da vida social, transferncia para o jornal da experincia do cineasta. Desde as suas adaptaes de Nelson Rodrigues, a questo de Jabor foi esta: a de acertar o tom, engendrar o ponto de vista capaz de qualificar, adequadamente, a desmedida das personagens, ajust-los a um debate em torno da dimenso nacional de suas mazelas e de seu estilo. Na ausncia do cinema que traria o desdobramento desta lida com os gneros, a inquietao quanto s formas do drama desaguou no jornalismo. Atento agenda nacional, o cronista procurou inscrever o cotidiano e a poltica em formas dramticas produtoras de uma viso original. Isto, em parte, o fez retomar a chave da tragicomdia presente nos filmes. No limite, porm, em consonncia com a tnica do tempo, se esboou um tom de tragdia mais para valer onde Jabor procurou recuperar a densidade do termo.

    No seu teatro, o cronista ora construiu "interioridades", inventou perspectivas (privadas, secretas) que tornassem interessantes as persona-gens pblicas em debate (os irmos Collor, PC Farias); ora comps o seu prprio drama ao narrar incurses reais ou imaginrias pelos focos de pobreza, pelos espaos do poder ou pelos labirintos dos economistas. Diante dos despossudos, tematizou a interrogao, o problema de encon-trar as palavras, as encenaes que pudessem qualificar a desgraa sem o clich ou a obscenidade, enfrentando a opacidade da experincia e a dificuldade do enfoque. Diante dos ricos e de boa parte dos polticos, as

    JULHO DE 1994 79

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    excurses imaginrias pintaram o quadro com desenvoltura pois ele j estava vontade na exposio desta comdia. Reencontrou a as "relquias do Brasil" que emperram a modernizao visita ao Congresso Nacional ou frequentou festas de sociedade que ironizou em textos nos quais a estrutura do comcio de Terra em transe inspirou o desfile de tipos nacionais, sobreviventes e emergentes, observados como encarnao dessa mescla de cinismo e convico exaltada que tem reposto a iniquidade. Excurses ao passado marcaram o quanto ontem e hoje o olhar encontra o mesmo pas: estilo personalista de relaes e de poder, gosto pelas solues messinicas, escrachos populistas, autoritarismo das elites.

    Se o Brasil se repete, resta ao cronista retomar a tnica dos filmes, enumerar os novos palhaos da "loucura brasileira" ou voltar ao destaque dos arcasmos provincianos alheios cidadania moderna, traos que insistem na Nova Repblica vide a eleio de Jnio Quadros em 1985, a estratgia populista de Collor em 89, os dramas de famlia na crise do governo, a confuso entre pblico e privado atualizada nos episdios de 1992. Resta enfim sublinhar a persistncia da mentalidade-obstculo, o peso da tradio e do estilo de sociabilidade j encenados em Tudo bem.

    H algo mais, no entanto. A lida com figuras singulares do poder acaba gerando uma nova resoluo imaginria essa que esboa o trgico onde a dico apocalptica do cronista, to frequente no comentrio sobre a experincia social, vai alm da encenao da catstrofe e anuncia uma sada: a radicalizao da iniquidade ora em pauta esgota velhos rituais e acaba por encontrar sua dimenso edificante. Na construo da privacidade imaginria das figuras do poder, continua funcionando a pedra de toque do delrio, da postura messinica, mas a megalomania de um Collor ou de um PC Farias, por ser radical, parecem fazer de sua delinquncia algo mais expressivo. E o cronista encena hipteses de um comportamento futuro sado de motivaes secretas, mais fundas, pelo qual as personagens alcanam uma grandeza estranha a seu modelo. O destino imaginrio de autodestruio os transfigura em heris que, consequentes, se mostrariam arquitetos geniais de sua biografia como obra de arte. Sua lio de lucidez, no Mal, teria efeito catrtico, qualificador da sociedade, retrato de famlia "liberador".

    Collor era ainda presidente quando a crnica encenou sua futura queda como renncia herica, recusa nobre e sacrificial do perdo aps ter ele vencido a batalha do impeachment. Jabor trouxe para a cena alguns toques da rendio final, solitria, do Sabino algemado, havendo at a citao das palavras finais de O casamento, romance. Mas com uma diferena: a potncia da personagem lhe d agora direito ao monlogo em que expe seu ponto de vista, forma indireta de o cronista avanar suas prprias hipteses e, sem perder o efeito irnico, reconhecer certa verdade quando o presidente-personagem celebra em xtase a ressonncia histrica do seu percurso e sua capacidade de unio nacional. Mais de uma vez a desmedida do presidente assumida como efetivo fator de progresso, experincia abismal em que o tirano-mrtir deseja e precipita Sua prpria

    80 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    queda, eleva a sociedade a outro patamar de autoconhecimento e se transforma em sua prpria esttua exposta visitao pblica. Igualmente, PC Farias se transfigura em gngster com noes de dignidade. S, contra todos, leva at o fim sua resoluo de iluminar, esclarecer, revelar o pas; resiste at a morte priso, ciente de sua posio de vanguarda como heri trgico, cientista poltico e antroplogo ("escrevo com meu corpo", "tornei obsoleta a anlise poltica das esquerdas").

    Tais noes da delinquncia como obra de arte e do fracasso final como desejo de ser punido, auto-imolao exibicionista de um "suicida didtico", definem a vida poltica como tragdia do carter, consumao de um destino, experincia limite que franqueia o acesso verdade. O esquema mtico e delineia uma tragdia a que o cronista, apesar da ironia, mais de uma vez deu crdito em seus exerccios de psicologia social. Atravs da fala da personagem, pde assumir a dico apocalptica do visionrio e, nos comentrios, foi compondo o feixe de determinaes psicolgicas, trazendo cena o inconsciente, as pulses. A sucesso dos textos sedimenta a idia de que a matria de que feito o desejo do presidente tem substrato coletivo, caldo engrossado pelos sculos, foco obscuro dessa mentalida-de-obstculo que a crise inusitada vem agora esta seria sua virtude trazer tona. Dado crucial, os protagonistas da crise superam os tons medianos do parasita de rotina e assumem a corrupo radical, condio do esquema trgico de elevao a novo patamar.

    Ciente de que no cabe apresentar tais simulaes de destino em encenaes solenes, a marca do texto a agilidade, o tom ligeiro em que o cronista se permite, ludicamente, tocar nas feridas mais srias e ensaiar diagnsticos, buscar a postura adequada para que o texto oferecido leitura cotidiana esteja altura do Brasil contemporneo como experincia-limite. A prpria quantidade de referncias de Samuel Beckett e Camus a Shakespeare, de Glauber e Nelson Rodrigues a Oswald de Andrade e as repetidas citaes que telegrafam mltiplos sentidos assinalam o lado consciente da armao intelectual que no reivindica rigor mas exibe vocabulrio. De qualquer forma, este tom de exerccio de estilo no impede que, nos textos indignados sobre violncia e represso, a ironia ceda lugar eloquncia do tribuno, ora dirigida contra o terrorismo de Estado (Carandiru), ora contra o extermnio organizado (Candelria). Aqui, Jabor se dispe a assumir, para valer, a idia de "culpa universal" que ironizou l atrs em Sabino, confisso melodramtica a que sempre aderiram seus leitores busca de expiao. A contundncia dos fatos parece exigir a diatribe moral, e a dimenso do "crime contra a humanidade" chama a uma responsabilidade que, dada a sua generalidade, pode ser assumida em abstrato.

    Nos dois casos, h a mesma insistncia na chave trgica, nas desgraas inelutveis em que os escroques do poder "nos" espelham e os assassinos recebem delegao coletiva. So "nossa verdade" de nao que o cronista toma, arcaicamente, como organismo sem fraturas, comunidade. A partilha desigual do poder e da riqueza, os conflitos de valores e a luta ideolgica,

    JULHO DE 1994 81

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    embora reconhecidos aqui e ali, no parecem capazes de apontar a lgica das aes e os interesses por detrs dos massacres ou da delinquncia poltica. Dada a sua envergadura, a desmedida sugere algo mais, um fator oculto altura deste ultrapassamento de limites que no parece se apegar a nenhuma fora social identificvel no jogo de poder. O tom trgico exige a configurao de destinos e, na considerao do fator oculto, toda nfase recai sobre "nossa" identidade como aquele algo alm que explica: existe um substrato nacional mais fundo, vocao para a desmedida (o ponto fraco do carter que aciona as tragdias). Pas do equvoco, o Brasil seria o lugar geogrfico de "encontros marcados" onde vale a fora dos atavismos, das vinganas adiadas, da "tradio secular de loucuras", de um imenso e indefinido rol de pulses inconscientes (e nacionais) que estariam por trs dessa transformao da experincia-limite em prato cotidiano.

    De crnica a crnica, a psicanlise do atraso avana em sua generali-dade e elimina, por assim dizer, seus toques de salvao. As figuras do inconsciente nacional se adensam e o Mesmo adquire corpo, manifesta-se como entidade. Ele no apenas a imobilidade do pas que permite, atualizando a matriz de Tudo bem, reduzir os industriais aos termos da Casa Grande e os lderes sindicais do ABC aos termos da Senzala. Nem apenas as formas da "loucura nacional", onde os presidentes "no saem, eles tm alta". Nem as visveis encarnaes do arcasmo, a vocao para o fracasso onde a hiperinflao um destino que se mescla de interesse alucinado (os especuladores) e de mentalidade messinica (pensa-se a hper como o desastre mas tambm como a salvao a mentalidade do pas a deseja). O Mesmo o princpio de eterno retorno matriz (fala-se de histria fixa), "pasta essencial de que tudo feito", "inrcia primeva" que se manifesta na burrice, na vista curta, na feiura, no lado ruim de todos os que assumiram o poder; princpio do "erro permanente" que assola o pas. Da sua condio de corpo originrio em indefinida expanso, figura que responde ao organicismo exigido pela idia da tragdia nacional mas, ao mesmo tempo, massa grotesca que dissolve os tons elevados: o Mesmo a bolha emprestada de Hollywood, massa gelatinosa que conversa com Collor no palcio, lugar onde sempre esteve como um fantasma a fazer da histria um romance gtico escrito por presidentes voluntariosos s voltas com foras ocultas.

    Determinao maior do processo, o Mesmo vale por um postulado de identidade que no carece de especificao; uma onipresente zona escura, inacessvel seno pela alegoria. Desgastadas as totalidades recobertas por noes como "esprito", "carter nacional", Jabor encontra o vocabulrio da psicanlise. O uso de expresses como o Id nacional sinaliza a preferncia, como tambm o teor uterino do Mesmo, princpio regressivo que assimila a si e dissolve o novo. O ponto decisivo, no entanto, no est a. Est na lgica de todo o esquema que assimila a ordem histrica ao universo do desejo e da ordem sexual. Sujeitos descentrados se movem s cegas iludidos em suas intenes, impulsionados por determinaes opacas, originrias, que os condenam repetio. O trgico aqui a batalha de Ssifo contra a

    82 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    astcia da inrcia primeva nacional: "toda tentativa de me destruir me coloca de novo no poder". O Mesmo, como dado matricial (o desejo nacional de fracasso), deixa de ser um contedo. uma forma que se repe nos variados contedos que diferentes pocas atualizam. Da porque se minimiza, ao longo das crnicas, a idia de um valor arcaico como a famlia patriarcal, por exemplo a impedir que o novo se instale. Como frmula astuciosa, o Mesmo dissolve a oposio tradicional/moderno (dois contedos manifes-tos) e se define como um sistema do equvoco. Ativa no passado, ativa ao longo da histria, tal forma se faz tambm presente nessa mentalidade autodepreciativa do Brasil pas invivel, ineficiente, que predomina com toda fora a partir dos anos 80, a dcada perdida. O Mesmo est na verso ps-milagre do sentimento de inferioridade e culpa que desgua na vitria de Collor, salto para o equvoco neoliberal que substitui a pasmaceira da Nova Repblica de Sarney. O Mesmo est no Congresso, no Brasil contemporneo onde os arcasmos, os "sentimentos profundos que esto a h sculos", vm encontrar a cumplicidade da constelao dita ps-moderna.

    A matriz arcaica sublinhada desde Tudo bem vem agora se articular a um dado da contemporaneidade na configurao do Mesmo. O pas vive novas dimenses mas estas se cristalizam na razo cnica que o retrato dos jovens j anunciava nos filmes dos anos 70. O Brasil de Collor, este mesmo saturado de discusses em torno do ps-moderno, permite uma nova aproximao que se faz a partir da crise do sujeito, do fim das esperanas, do senso da impotncia na sociedade do espetculo, da saturao de imagens que tudo expem, incluindo o velho teatro dos conservadores. Se o brasileiro, como de resto o mundo, desaprendeu as iluses revolucion-rias, o perodo Collor pe em crise as convices democrticas, a ingnua f nas virtudes subversivas da abolio da censura. Do equvoco do pas das torturas e da represso encoberta, saltamos para o equvoco do pas intoxicado de escndalos, afogado na srie de CPIs, na reiterao cotidiana da indigncia poltica. A imaginao do cronista aproxima a exposio excessiva aos podres da sociedade saturao do voyeur superexposto pornografia. E a lgica adotada ordem social/ordem sexual leva ao mesmo diagnstico: se a intoxicao pelas imagens do sexo explcito e a banalizao da nudez geram a falta de apetite sexual, a pornografia poltica gera a apatia social. Restaria um cidado assolado pela inrcia, pulso de morte, metamorfose contempornea do Mesmo.

    Os dados da tecnologia atual se inserem no processo mas no mudam sua lgica nem a vocao nacional: a modernizao, tal como se d, acelera a emergncia de novas matrias aptas a atualizar o desejo do fracasso, determinao maior do impasse atual que impulsiona os iludidos pela high tech, os surfistas na crista da onda, os intelectuais-disneylndia. Neste ponto, o cronista, ciente da sua insero no teatro que descreve, olha-se no espelho e desconfia de sua prpria dmarche onde o zelo pela verdade tambm prazer do voyeur. Observa que o jornalista implacvel e critica o pas inteiro, mas "a partir de uma vaga pasta de moralismo e dio, uma gelia de

    JULHO DE 1994 83

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    indignao com oportunismo". Lana sobre si o risco de ser engolido pela mesma engrenagem do erro permanente agora revestida de ps-modernis-mo, risco de contaminar-se pelo desejo do fracasso, esta relao ambgua com o mundo em que o sujeito, sem iluses de autonomia, se v perdido e assume o "desejo insano do caos". Aqui, o cronista dos anos 90 se v s voltas, em verdade, com a mesma vertigem de interrogaes que assola as personagens do cineasta dos anos 80, seja o Paulo de Eu te amo (1981), seja o jovem casal de Eu sei que vou te amar (1986), filmes em que Jabor encenou, pela primeira vez, o drama que atormenta os cristos-novos da sociedade permissiva. Enfim, comeou l, na cena entre quatro paredes, o laboratrio em que sua imaginao trabalha os Narcisos da era vdeo, expondo o outro lado do impasse nacional8. Resta ver como, encenado na vida privada, portanto em seu terreno por excelncia, o "desejo do fracasso" revela sua origem nos longas-metragens, antes que as crnicas o projetem para a ordem social.

    Observo agora a psicanlise do atraso em sua matriz contempornea; momento em que o cinema de Jabor faz a passagem das questes da famlia patriarcal (matriz colonial, fator endgeno da mesmice) s questes da neurose moderna (fator exgeno).

    (8) Aqui, Jabor se aproxima da formulao de Joaquim Pedro em Macunama (1969). A so-ciedade de consumo vem cons-tituir o vale-tudo e aquela de-manda de infantilizao e he-donismo a que se ajusta muito bem a "nossa" matriz arcaica, ou o "carter nacional" en-tendido nos termos da malan-dragem.

    d) A matriz contempornea do Mesmo

    Em seus filmes dos anos 80, Jabor deu andamento ao teatro das crises conjugais e da desordem amorosa iniciado nas adaptaes de Nelson Rodrigues. Alterou, no entanto, os seus termos. A cada filme, os protagonis-tas mudam de gerao. O purgatrio domstico no mais se define como oposio entre desejo e norma tradicional; o mundo dos pais e o debate da famlia saem do centro do drama e o labirinto da nova subjetividade vem definir o espao dos desencontros. O que as personagens mais jovens ganham em fluncia perdem em direo, afogadas num jogo de esconde-esconde, sucesso interminvel de pequenos teatrinhos embalados pelo amor-prprio, feridas abertas, impulsos de vingana, disputas de poder, evocaes de um passado mais pleno de que tm medo. Confusos, proclamam aquele anseio melodramtico de tudo dizer e expressar mas palavra e gesto h muito abandonaram o terreno da transparncia. Resta a vivncia de conflitos insolveis.

    Eu te amo (1981) e Eu sei que vou te amar (1986) marcam a passagem da ironia endereada decadncia da famlia tnica at Tudo bem para a encenao de uma crise de identidade e de sentimentos que se assume como "doena da modernidade", esta doena catalisada pelo esvaziamento da ordem patriarcal de onde emergem as figuras libertas e ansiosas que Christopher Lash, entre outros, teorizou. No cinema de Jabor, tais figuras entram em cena para atualizar em nova chave o drama de apartamento Zona Sul: so agora as ovelhas desgarradas da crise brasileira.

    84 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    Em Eu te amo, explcita a correlao entre a desordem amorosa de Paulo, o empresrio falido, marido abandonado, e a conscincia nacional do "fim do milagre". A sequncia inicial do filme, em seu esquema escatolgico, antecipa as imagens do cronista: o locutor do telejornal anuncia a descoberta de uma grande massa informe, malcheirosa, debaixo da mesa da Presidncia do Congresso, a "grande cagada nacional". Em seguida, o protagonista fala ao telefone de sua falncia como cliente da corrupo oficial, maldiz o castelo de cartas do milagre de Delfim e se diz em busca de palpabilidade, af de concreto: "o Brasil no existe, somos medocres, covardes". Est a refeito o roteiro de auto-agresso das figuras culpadas de Nelson Rodrigues. Mas Paulo vai alm: assiste, no vdeo, cena da separao. E ouve novamente sua ex-mulher brandir a verdade maior: o seu desejo do fracasso, levado morbidez. Esta a moldura de um percurso em que seguimos seu namoro com Maria (ou Mnica), feito de pequenas encenaes para criar imagem, ele e ela vivendo duplos de si mesmos, reiterando a mentira embalada pelo medo da entrega. Como se envolver, se no h garantias, se tudo efmero?

    Medo semelhante assombra a moa de Eu sei que vou te amar. No outro o sentido de sua fala posta em destaque no prlogo que antecipa a questo em pauta durante toda a conversa com o ex-marido.

    De um filme a outro temos duas verses do mesmo paradigma. Dois encontros semelhantes, no ponto de partida, na gangorra de afetos e agresses, na forma do desenlace. Homem e mulher se encontram num espao confinado, lugar de uma terapia a dois, na aparncia alheia a um quadro social que, em verdade, sempre reposto, pelas evocaes da conversa, pela composio do ambiente cuja colagem de arcaico e moderno alegoriza a interminvel transio brasileira.

    Em Eu sei que vou te amar, o nexo entre o Brasil e a crise das personagens sugerido mais de leve, sem a moldura escatolgica de Eu te amo, to explicitadora. O anteparo de ironia se adensa, e o que se diz sobre o pas, o povo, o mundo no parece matria a se levar a srio, pois afirmaria relaes de sentido estveis que o filme, de fato, no se permite. Ao longo do percurso, os tons da mise-en-scne e a perspectiva do teatro conjugai se alteram na mesma proporo da instabilidade radical das personagens. O encontro combinado aps meses de separao atesta mtua carncia mas tambm um anseio de fazer valer pontos de vista, transferir culpas. No debate, ningum cede para valer e o jogo de provocaes se prolonga indefinidamente. A par da anatomia da crise, inventrio das ofensas, a evocao dos "bons tempos" contraditria. O casal faz um ritual de identidade que, embora massageie os egos, reafirma o lado carcerrio da relao plena: o amor uma doena, uma gosma; une mas de natureza antidemocrtica. Entre autonomia e entrega sem limites, o movimento circular, h sadas pela tangente. Nas cegueiras estratgicas, infantis, reconhece-se a mesma constante: a atrao pelo fracasso, o medo da unio, o estratagema que condena os apaixonados ao dilaceramento.

    Dado explcito nas figuras de Paulo e Maria de Eu te amo, tal estratagema a linha de resistncia que pontua o drama do casal de Eu

    JULHO DE 1994 85

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    sei que vou te amar. A tnica de novo a falao desenfreada, as longas confisses que evoluem na direo reveladora do Duplo, esta figura que cristaliza o "o caminho do Mal" na vida dos protagonistas. Tal caminho tem sua verso feminina a moa aqui, tanto quanto Maria de Eu te amo, assumindo o paradigma da prostituta; e sua verso masculina o marido aqui, tanto quanto Paulo em Eu te amo, assumindo a relao com o travesti9.

    O duplo, este Outro que fantasia ou prtica clandestina, antes se apresentava como uma funo: era estvel seu papel de sustentao da norma antiga, do casamento tradicional. No esvaziamento da norma, ele se prope como dado inelutvel da identidade sexual, condio de dilacera-mento interno na liberdade aparente. Vivncia de uma opacidade radical, a crise de identidade direciona a viagem para o terreno da tagarelice, esta ansiedade de narrao de si mesmo e recuperao do poder pela palavra que d o tom nos dois filmes.

    Movimento correlato, Eu te amo inaugura a composio de uma nova visualidade no percurso do Cinema Novo, exerccio de um olhar voltado para um mundo que se dobra sobre si mesmo. No cenrio fechado e narcsico em seus espelhamentos, a ostentao de tecnologias da imagem, efeitos de luz e texturas sempre remete a outras imagens. a reposio ad nauseum de figuras da seduo que se sobrepem ao fluxo de palavras para compor o teatro de extroverso das personagens, miragem do "eu profun-do". Visualidade, portanto, distante daquela indagao aberta, que incorpo-ra o acidente e a surpresa, tpica fenomenologia dos cinemas-novos dos anos 60/70, empenhados numa pedagogia da percepo, no movimento que procura "surpreender o mundo em ato", como se dizia. Saturada de um inventrio cuja potncia se afigurou, com a modernizao, de efeitos ilusrios, a busca do valor-documento na imagem se desloca para o reconhecimento da imagem-mercadoria, para o domnio tcnico de um aparato que se assume como pea de um mundo de artifcios, teatro irremedivel. Resta, portanto, o mergulho no jogo de luz e sombra valorizador do lado fetiche de corpos e objetos, pelo qual o cineasta S.e dispe a enfrentar, na franja arriscada da incorporao, o regime da visualidade por ora vitorioso: o do discurso publicitrio.

    Nesta tnica, os dois filmes dos anos 80 j sinalizam algo que vai retornar com fora nas crnicas: o medo do olhar ingnuo, o af de encenao da inteligncia (j levado ao paroxismo em Eu sei que vou te amar). Este movimento alimenta o culto do paradoxo, dos jogos de duplo sentido, desse visvel que efeito de superfcie, plasticidade. A afirmao direta e o sentimento claro, a viso natural das coisas, se pem como iluses perdidas. E o movimento autocentrado das personagens cria o descompasso que persiste nas reviravoltas bem calculadas, e s se resolve quando, inevitvel um desenlace, a comdia imprime um tom pardico, de artifcio deliberado, ao encontro final mais chapado em Eu te amo, mais elaborado em Eu sei que vou te amar: Nos dois filmes, o final feliz implica um salto para outro espao, a cena ao ar livre substituindo o espao

    (9) Para a noo do travesti como o que "viaja na identida-de", ver a crnica de Jabor "O travesti no quer ser mulher", no livro Os canibais esto na sala de jantar (So Paulo: Sici-liano, 1993).

    86 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    confinado, promessa de abertura que se revela figura de linguagem, citao de final feliz que verso encabulada de um romantismo de fundo que se toma por ingnuo, utopia a que cineasta e personagens no fundo se vem ainda apegados no por acaso o amor uma gosma mas procuram desaprender. Do amor, fala-se da sua permanncia, mas na tnica de uma instabilidade irremedivel neste mundo de mercadorias em que a crise do sujeito e o ar saturado de imagens e modelos embaralham os papis, potencializam o lado trgico do desejo.

    Instala-se no percurso de Jabor a dramatizao das duplicidades, digamos imperativas, este "quem sou eu?" irresolvel que j se colocava obsessivamente o Jorginho, personagem da mdia em O bandido da luz vermelha (Sganzerla, 1968); interrogao que, tambm l, comprometia, no paralelismo entre personagens e contexto social, o conjunto da nao. Samos do processo da famlia e mergulhamos nesse processo que combi-na sufoco afetivo e fluncia sexual na grande cidade, exasperao do "esprito de performance". Nesta tnica, as personagens de Jabor se permitem os encantos de quem tem cacife para o consumo em nveis internacionais, figuras modernas no cenrio e na roupa, envoltas num design de revista e enredadas na literatice. De Tudo bem a Eu sei que vou te amar, a lapidar sucesso das geraes encarnada nos protagonistas faz desaparecer aquele olhar exterior que emoldurava a crise dos pais e observava o seu melodrama. O conflito agora envolve questes mais afetas ao plo moderno do pas, tem mais a ver com cineasta e especta-dores, gerando um espao de identificao no mais to ameno quanto aquele em que o ponto comum era o riso dirigido s figuras cafonas e arcaicas. Mais jovens, os protagonistas, embora mantenham aquela com-pulso a confessar, o fazer mea culpa j observado nos pais em declnio, se pem mais vontade na auto-ironia. Conseguem uma vivncia, diga-mos mais carnavalesca, de suas angstias, assumindo as oscilaes de humor, os fracassos, no tom mais filosfico do clown. No seu teatro, ainda h lugar para a histeria, mas esta vivida em melhor estilo, mais elegante no domnio dos conceitos capazes de falar o impasse, menos convicto no entanto em sua possibilidade de superar o clich. Desde cedo, estas novas personagens respiraram a psicanlise, e a cincia j deslocou a religio como baliza da vida moral. O desconforto, que inclui nos jovens do ltimo filme a nostalgia das interdies do pai, ganha outras formas de expresso. Liga-se agora constelao contempornea que, a par do que se possa afirmar como diagnstico da vida social, traz um saber atual sobre sujeitos e afetos que Jabor no demora em incorporar na composio das cenas da vida privada. Estas, enquanto exerccio dramtico, preparam a sua prpria expanso, concretizada no momento em que o jornalista focaliza as cenas da vida pblica, o teatro poltico. O gosto pela psicanlise extrapola a validade dos paradigmas para outros terrenos, e o que se dramatizou, em primeiro lugar, como paradigma da vida amorosa o desejo do fracasso erigido em trao nacional e, mais do que isto, em fora estruturante, modeladora da experincia em escala histrica.

    JULHO DE 1994 87

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    Na alegoria do Mesmo, este substrato subterrneo de unidade nacional no requer o sentimento de comunidade, em outros momentos exigido pelas simulaes de tragdia do cronista que, de resto, se frustraram. Aqui, o dado visvel do contemporneo a atomizao, o senso de isolamento, a ruptura de um pacto suposto com a comunidade. No drama de Paulo e Maria ou no do jovem casal, o povo o outro distante onde est a vida concreta, a dor palpvel, o problema relevante; mas esta esfera no faz seno servir de contraponto ilustrativo aos impasses discutidos pelo amantes entre quatro paredes. No pouco que se fala deste outro, clara a sua distncia em face de um ideal de sujeito histrico presente no incio dos anos 60 e j questionado desde Terra em transe.

    ntido, neste particular, o movimento gradual de desqualificao. Se nas alegorias de Glauber a distncia ao ideal no impede que o povo permanea sempre como fora a convocar, dado de projeo futura, em Jabor o desencanto com o oprimido irremedivel, reforando uma viso Nelson Rodrigues, a nfase na experincia bruta, nas desgraas indivi-duais em srie. A presena do povo em Eu te amo se d nessa franja da ao passional e do crime inslito, fait divers, drama de sangue em que o marido corta a cabea da mulher e sai com ela na mo pela rua desespe-rado, em franco contraste com a civilidade anmica do Paulo abandonado e humilhado.

    Neste afastamento gradativo, Glauber define o espao da nostalgia de Jabor, emblema das utopias "desaprendidas", dos sonhos de unio entre intelectual e povo, das esperanas e projetos que o Brasil abortou. O autor de Beijo no asfalto define o espao de um reconhecimento: o da conjuntura presente como confirmao do olhar do moralista que nivela humanidade e vcio, do descrdito radical no coletivo de quem observou o "pequeno homem" de outro ngulo, no vendo nele o sujeito histrico suposto pelas esquerdas mas as contradies de carter, a pletora de experincias malogradas. A alegoria do Mesmo o Id nacional, o desejo de fracasso uma totalizao que muito deve a este pessimismo sistemtico, viso grotesca do popular. Viso que, em Jabor, dilacerada, pois o cineasta sofre de uma compensao iluminista e sabe o quanto, em funo da sua miopia poltica, Nelson Rodrigues viu grandeza onde menos devia: no cultivo conservador da tradio nacional, nas figuras e valores mais notrios do autoritarismo do "homem cordial" (no sentido de Srgio Buarque) e, em especial, no chefe do terrorismo de Estado de 1970. Ou seja, naquilo que Jabor observa, em suas crnicas, como a arquifigura do Mesmo, personagem e regime de lugar garantido na galeria do erro permanente, raiz maior da crise atual (afinal, no foram os "idiotas" de 68 que criaram a dvida externa, o modelo de concentrao de renda, a deteriorao da vida social e poltica).

    Entre os ideais das passeatas de 60 e Nelson Rodrigues, o cineasta-cronista procura conduzir a autocrtica referida aos dogmatismos da juven-tude sem compromet-la com a viso conservadora da queda das utopias como um bem absoluto. Isto, no Brasil de Collor e Itamar, significa recusar

    88 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    o Mesmo em sua ltima verso: o conluio de oligarquia e voga neoliberal que ganhou plena expresso na razo cnica e nas jovens ambies de 1990. No entanto, como faz-lo se o Mesmo parece fora motriz inelutvel, presente no arcaico e no ultramoderno? como faz-lo na ausncia de um "sujeito histrico transformador", nesta constelao anti-humanista de crise dos paradigmas? uma vez postulado um princpio de regresso que se pe acima das classes e das determinaes sociais, posta a armadilha entre a insistncia dos arcasmos e uma precoce "doena da modernidade", como sair do crculo, completar a terapia?

    No circo das atraes nacionais, o cronista vislumbra no alto a figura da salvao: entra em cena o equilibrista.

    e) De como atrelar o Mesmo Razo (ou o contrrio?)

    A noo de Id nacional se explicita no ttulo da crnica "Monstros do 'ID' nacional amam o caos" (Folha de S. Paulo, 15.6.93), cujo cenrio o Congresso, assumido como grande circo onde, solitrio, o ministro da Fazenda tenta se equilibrar na corda bamba enquanto todos os porta-vozes do Mesmo o elenco enorme e admirvel torcem pela sua queda. A condio deste artista solitrio no a do isolamento gerado pela delinqun-cia radical (Collor): contra tudo e contra todos, contra o ethos nacional, ele encarna a Razo. No vcuo da crise, surge a perspectiva da cura, a chance oferecida pela histria de superar as mars impulsivas, o domnio do Id, a barbrie. A queda de Collor e a priso de PC Farias, por si ss, no assumiram a dimenso catrtica desejada. Pelo menos, no so visveis seus efeitos teraputicos mais fundos. Novas polaridades, processos decisrios como eleies, algo que mobilize a nao ser a pedra de toque capaz de atestar ou no o novo patamar civilizatrio. Antes mesmo de consultas populares, a polmica em torno do ministro Fernando Henrique traz o clima para o teste. E a presena do equilibrista permite cunhar a nova oposio para caracterizar a crise: estamos ou no preparados para sair da "inrcia primeva" em direo ao reino da Razo?

    At aqui, o strip-tease moral dos donos do poder, espelho da nao, era o ponto de decolagem da terapia. Supostos parteiros da superao do Mesmo, tais figuras exigiam um olhar clnico que os tornasse personagens interessantes, tarefa exercida pela psicanlise do atraso que exagerou em meras caras de pau os traos de uma tragdia iluminadora. O desdobramen-to efetivo da crise reafirmou a continuidade dos percursos medianos, dos acertos de cpula, das renncias oportunistas, da morosidade dos inquri-tos. A idia totalizante de um organismo nacional em crise, premissa da psicanlise proposta, requeria um mecanismo endgeno de superao do Mesmo, esprito de comunidade e um heri disposto ao sacrifcio, mas a hiptese trgica projetou grandeza e a psicologia viu loucura onde s havia mesquinhez e clculo (este, Jabor viu muito bem no empresrio Pedro

    JULHO DE 1994 89

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    Collor no momento das denncias). Valeu de novo o princpio de coerncia da tragicomdia, das personagens grotescas, tal como nos filmes, pequenas demais para sustentar dialticas transformadoras. Era preciso criar um novo cenrio para a hiptese mtica deste momento especial de ruptura e o empenho de Jabor na defesa de Fernando Henrique vem oferec-lo. Sua coluna define uma perspectiva de interveno mais ntida e, por isto mesmo, mais vulnervel. Afinal, ao contrrio da condio indefinida das figuras populares da salvao no alegorismo que Glauber sustentou at A idade da Terra, o de Jabor tem de se ajustar a uma conjuntura poltica especfica, defesa de um candidato Presidncia. Nesta tarefa, o cronista assume com mais frequncia o tom argumentativo do comentarista poltico, buscando menos as encenaes de grande efeito que marcaram o seu sucesso no perodo Collor. Mas a postura de ficcionista persiste e, com ela, o gosto pela alegoria de fundo pedaggico. O que repe, em outra chave, a busca pela tonalidade certa de representao do teatro poltico, o que ser feito sem o abandono da matriz psicolgica. Se a tradio de onde vieram Collor e PC Farias confirmou sua distncia em face da hiptese do sacrifcio herico, era recomendvel a mudana de gnero: Jabor pe em cena o suspense, com possvel final feliz, na alegoria do circo. Faz da Razo a nova personagem, e ressalta sua proeza onde ela no era esperada.

    O Mesmo, enquanto disposio inconsciente ao fracasso, era um princpio explicativo, mecanismo totalizante que no oferecia sada, dado que exige a passagem para outro princpio abstrato a Razo universal para conceber novo dinamismo no interior da psicologia. Enquanto oposi-o ao Mesmo, a Razo, ao contrrio do carter endgeno do "princpio do erro permanente", afirma sua alteridade como fator exgeno que os novos tempos vm impor. Exige o abandono da idia organicista do nacional como ncleo irredutvel infenso temporalidade. Requer nova articulao entre interno e externo, apta a descartar a idia, presente em Tudo bem e outros filmes do Cinema Novo, de que a modernizao reflexa mera mudana de fachada, reforma cosmtica que refaz a crosta de um Id imutvel. Para acolher a hiptese da Razo salvadora, preciso observar que a moderni-zao, embora contraditria, envolve uma produo consequente de foras novas na sociedade. Admitir que, em contraposio ao desejo do fracasso e s manobras do Mesmo, mudanas estruturais vo se processando no pas por fora dos influxos externos. Significa, indo alm, montar a dialtica da "invaso que vira inveno", tornando sem efeito a idia de histria fixa, abrindo espao para uma nova personagem, ou um novo princpio regulador, fora do domnio da "inrcia primeva" ou da hegemonia da razo cnica que proclama o fim da histria. O que antes s se notava como episdios da reposio do Mesmo passa, a partir da nova premissa, a se articular com o elogio ao avano econmico expresso na formao da nova classe operria do ABC, com o elogio a lances da criao artstica (caso do Tropicalismo). Evoca-se a metfora digestiva da antropofagia oswaldiana, com uma diferena notvel: no se trata mais de falar da contribuio milionria de todos os erros, das vantagens estratgicas do atraso, ironias da

    90 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    malandragem que deslocam porm preservam o primado do nacional. Na frmula de Jabor, trata-se, ao contrrio, de superar tal primado para ter a chance de um primeiro acerto.

    Colocando os avanos em termos das sobras positivas do processo comandado de fora, no desejado "o que fizemos com o que fizeram conosco" , o cronista retoma, no mesmo movimento, o tema da desmon-tagem das iluses histricas: entre elas, o mito de uma peculiar Revoluo brasileira, o mito da contracultura dos 70, talvez o mito de um socialismo inventado no Brasil. A desmontagem sugere a faxina terica geradora de novas disponibilidades, condio para a modernizao consequente, do-mesticao do Id nacional. Saem de pauta a questo colonial e seus avatares modernos, ponto de articulao dos diferentes nacionalismos; o que implica descartar a dimenso predatria e toda a violncia imperial contida na polaridade civilizao/barbrie. O dilema contemporneo se faria, sim, da reedio de tal polaridade, reedio em que a lucidez mandaria saltar para o lado oposto ao da tradio que liga Oswald de Andrade, Glauber Rocha e outros que observaram as abstraes do iluminismo como ideologia racionalizadora da dominao. Pondo de lado o compromisso desta polari-dade com os processos que esto na raiz do que ele chama de inrcia primeva, Jabor canaliza a abordagem da formao colonial brasileira para a questo do "iberismo", esta forma do Mesmo que Srgio Buarque equacio-nou e que a cincia social atrelou a um estilo populista de liderana, a todas as formas de clientelismo que ora apupam o equilibrista. O que no impede, no entanto, que tais formas sejam convocadas para a aliana pela Razo, certa de seu poder condutor, num processo que reitera o mesmo princpio de soluo pelo alto bem enraizado na tradio poltica brasileira. Seria a vez, na atualizao do princpio, das operaes do intelectual em oposio via carismtica mais afeta ao Id nacional. Minimizados os outros fatores da vida social e do jogo do poder, a oposio entre figuras referidas s esferas da psique marca o eixo de ruptura entre passado e futuro, definindo o drama nacional como combate exclusivo entre teimosia e inteligncia. No creio ser descabido tomar tais termos do drama como sinal de reconhecimento de que as esferas em conflito navegam na mesma faixa de interesse, com a diferena de que a Razo, ao contrrio da oligarquia, seria a nica fora transparente a si mesma, capaz de nomear a meta e, com a ajuda de todos, persegui-la.

    A psicologia social de Jabor se reorganiza, resolvendo o impasse trazido pelo conluio entre os arcasmos e a "doena da modernidade", de que Collor foi a expresso maior. A oligarquia neoliberal, ou seja, a fora que melhor representa tal conluio peculiar dever ser alada ao espao da Razo, numa aliana "pedaggica" igualmente peculiar (tal pedagogia tematizada por Giannotti em artigo que Jabor elogia). Esta a tarefa do novo princpio presente na psicologia social, to ardiloso em face dos interesses concretos quanto a noo de tragdia nacional que ele vem substituir.

    Tomado em estado puro, o combate entre as mentalidades se consolida como conflito principal no palco da histria, o que lembra as

    JULHO DE 1994 91

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    frmulas cannicas de Srgio Paulo Rouanet (O mal-estar na modernida-de), cuja crtica aos particularismos em nome do recentramento da Razo tem seus paralelos com a dramaturgia de Jabor, com toda a diferena de estilo. Trata-se, no presente, de evitar a catstrofe e s h uma alternativa madura. Para tanto, preciso estarmos atentos s distintas formas do confronto entre Razo e barbrie. Por ora, o desejo de fracasso est a na burrice do Congresso que, encarnao do erro permanente, atrapalha a inteligncia de Fernando Henrique; no futuro prximo, o cronista detecta o Mesmo na cumplicidade entre o golpistas eternos e a tentao messinica dos radicais do PT, outra encarnao do erro permanente, que podem "melar" os projetos da esquerda moderna de Genono e Mercadante e, no limite, sabotar at um Lula-presidente. Na especulao quanto ao desfecho da crise, o cronista oscila. Ora, apocalptico, assume o dado inelutvel do golpe, a vitria do Mesmo, s vezes complementada com um cenrio planetrio de disaster movie, de uma feita inspirado no livro de Robert Kurz (numa crnica mais recente, Jabor volta a encenar a vitria da barbrie sobre a impotncia dos clculos e das categorias dos economistas). Ora, otimista, acredita no sucesso da Razo e esboa o futuro de uma democracia de verdade, vitria do moderno autntico contra o moderno esprio de Collor e dos ministros iluministas que funcionaram em seu governo como Razo Cativa.

    Dado o seu prprio percurso e as condies do ofcio, o cronista responde instabilidade do processo que observa muito de perto encenan-do cada lance como se fosse o ltimo, dilema entre danao radical ou salvao, sempre de olho no "fundo do poo". No vai e vem dos humores, desesperos e esperanas, ora retorna a evocao de Nelson Rodrigues, ora a de Glauber, dois plos antitticos mas geminados na dissonncia com esta nova f na Razo universal como tbua de salvao10. No outro flanco, o reconhecimento de que a modernizao produtiva e de que, atravs dela, a Razo finalmente pode entrar em cena define tenses com o diagnstico referido ao mundo contemporneo que o cineasta de 80 e o cronista de 90 endossaram mais de uma Vez. Tudo o que se elaborou em torno das dimenses privadas e pblicas da "doena da modernidade" e do eclipse da Razo deve ser afastado para um canto do circo aquele em que se concentram os representantes do Mesmo a conspirar pela queda do equilibrista. Figura clssica do deus-ex-machina, a Razo ganha potncia quando o sonho do cronista prevalece sobre os cenrios de desastre. E ela vem para definir uma nova ordem capaz de contabilizar em seu favor os dinamismos da sociedade do espetculo, da dissoluo da histria, da astcia do desejo, das fissuras na racionalidade humanista em que o prprio cronista assentou a psicanlise do atraso, principalmente quando enumerou o rol de iluses a "desaprender" para absorver um mundo a que o Brasil teria chegado tarde demais.

    A operao que inaugura o primado da Razo exige que esta seja, ao mesmo tempo, onipotente e modesta. Deve ser, agora noutro sentido, o lugar por excelncia da Astcia na histria. Em contrapartida, o cronista

    (10) O elogio crueza e ao pessimismo de Nelson Rodri-gues deriva de uma admirao por quem viu de perto certos infernos, atravessou cenrios do crime, colecionou imagens da experincia bruta e no vislumbrou novos patamares (para Nelson, o pas no me-lhora com a modernizao, ele afunda como Jabor faz aconte-cer em O casamento; a inrcia primeva seria verso brasileira da estupidez, senso comum da humanidade). Glauber e seu profetismo guardam uma inci-dncia residual na psicologia social do cronista pelo que h de mtico na oposio entre o reino da Razo e o reino dos iberismos e das desmedidas nacionais, embora seja notria a distncia entre a nova espe-rana social-democrata e o misto de autoritarismo caris-mtico e exaltao do mito popular (reserva moral da Re-voluo, sujeito histrico deci-sivo) do lder do Cinema Novo.

    92 NOVOS ESTUDOS N. 39

  • ISMAIL XAVIER

    circunscreve seu lugar e a assimila noo psicolgica de instncia de adaptao ao mundo, lugar onde se metaboliza o Princpio de Realidade. A ponte entre tal reduo (a personalizao da Astcia) e a enormidade da tarefa se deve a um novo torneio de psiclogo (ver crnica do dia 15.3.94). A Razo encarnada no ministro se esboa como a figura de Pai de que o Brasil carece: supera o Mal do arcasmo (o Pai autoritrio, de resto j desmoralizado) e corrige o Mal que assola o pas no presente (ausncia do Pai), preparando a famlia nacional para a superao de suas catstrofes. Livre daqueles dois males geradores de delinquncia, o pas guiado pela . Razo encontra o Pai moderno, aquele que sabe atuar dentro do possvel, negociar com o Mesmo sem o freio da fidelidade s escrituras e sem a rigidez dos portadores das utopias. Evitando totalizar operao obsoleta e resolvendo o contingente com destreza, tal figura de pai, mais do que do equilbrio, a figura do equilibrista que detm o segredo da viabilidade na adversidade.

    Assentada no mito, recebida como instncia nica de salvao, a Razo desenhada por Jabor expulsa os delrios nacionais e recusa herosmo. Temendo que o messianismo entre pela porta dos fundos, ela torna seu mundo menos teleolgico. Retira-se do centro e admite a histria como um fluxo incontido que nos arrasta, potncia que se impe como ndole natural acima das classes, dos partidos, das vontades de seus lderes. Tal potncia, porm, no possui agora aquela mesma capacidade de reposio que o cronista observou nas pulses geradoras do Mesmo, e a psicologia social vem assumir um tom menos essencialista, mais emprico, que dissolve o organicismo e reconhece a vigncia de muitas foras, tradies, projetos, no emaranhado social. A tnica, ento, desse processo incontido sua enorme complexidade que, reconhecidas as resistncias, permite algumas brechas de atuao consciente, interveno dramtica nos "nichos do possvel" vislumbrados pelos que desaprenderam as esperanas da reconstruo radical da sociedade.

    Na nova forma dramtica, que a teoria dos gneros no hesitaria em chamar de Comdia, nosso destino, obviamente alheio a sacrifcios hericos e jornadas revolucionrias, dispensa tambm o que at h bem pouco nos ensinaram ser o que faltava para a modernizao da poltica brasileira: a constituio de partidos consistentes e de uma esfera pblica altura do nome. A pedra de toque da ideologia da modernizao agora o elogio da destreza, do ato cirrgico do expert, da pirueta eficaz do tcnico quando a soluo parece impossvel, este gesto inesperado porm finamente provi-dencial, ao estilo do equilibrista na arena do circo.

    f) Entre as verses do apocalipse

    No percurso de Jabor, a sucesso de alegorias esttua de Collor, massa gosmenta do Mesmo, travessia do equilibrista define a procura da

    JULHO DE 1994 93

  • VCIOS PRIVADOS, CATSTROFES PBLICAS

    imagem e do gnero que figure a experincia brasileira de forma totalizante. Ele refaz, na dimenso permitida pela crnica, um movimento afinado ao seu prprio cinema, dando continuidade a certas qualificaes inspiradas na tradio dos intrpretes do Brasil que se voltaram, em sua maioria, para a questo do carter nacional e seus efeitos na explicao do atraso. Tal como acontece com esta tradio, o cronista apresenta, numa primeira fase, aquele movimento misto de dissabor e orgulho em seu senso de identifica-o com o nacional como comunidade imaginria. Assumido que uma certa mentalidade permeia o social, mais forte do que outras determinaes, sua psicologia produz um dinamismo que, apesar do militante mea culpa dirigido ao prprio cronista e seus leitores, desliza para um organicismo que, em ltima anlise, apresenta um toque de fatalismo conservador, a par do que ilumina em aspectos importantes do processo, como observei desde a leitura dos filmes. O "ns brasileiros" do cronista, o desejo de fracasso, o erro permanente e a culpa universal repem aquele tipo de diagnstico em que, exceto pelos agentes notrios da vida pblica, as instncias do poder menos bvias, quase sempre as de aparncia mais civilizada, permanecem vontade administrando sombra seus interesses, em meio s desqualifi-caes do poltico, do pobre ou do brasileiro "em geral".

    Com explcito alinhamento a esquerda, pela biografia, pelo cinema e pelo empenho da crnica atual, Jabor vive o drama deste toque fatalista, desta ateno especial que sempre deu ao fundo do poo, temeroso da ingenuida-de. Seu ceticismo quanto viabilidade de uma sada em que as classes dominadas teriam papel decisivo como foco da mudana estariam por demais contaminadas da mentalidade-obstculo gerou, em 1992, o equacionamento da crise como pedagogia, lio subversiva no plano das mentalidades, esperana de maturao do Ser nacional na vertigem suposta-mente criada pela radicalizao do malogro. Collor era a mescla perfeita dos impulsos arcaicos e da razo cnica moderna, permitiria um duplo exorcismo. Mas em sua queda no desempenhou o papel com a pompa e sentimento trgico requeridos. Na voragem do Mesmo e beira do abismo, o mito iluminista se pe como ltimo recurso de superao, entendida a Razo como habilidade no jogo de cpula e nas solues tcnicas, viso da conjuntura internacional que promete fazer do neoliberalismo um instrumen-to da social-democracia, sem iluses de compreenso ou participao popular dentro da modernidade por demais opaca. Situao complexa que no impede que a psico