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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO – DPTO. DE DIREITO PRIVADO TURMA T-04 – DIREITO DE FAMÍLIA FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA RESENHA CRÍTICA DO FILME “VICKY CRISTINA BARCELONA”. UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO DE FAMÍLIA.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO – DPTO. DE DIREITO PRIVADO

TURMA T-04 – DIREITO DE FAMÍLIA

FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA

RESENHA CRÍTICA DO FILME “VICKY CRISTINA

BARCELONA”. UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO DE FAMÍLIA.

Salvador, novembro de 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE DIREITO – DPTO. DE DIREITO PRIVADO

TURMA T-04 – DIREITO DE FAMÍLIA

FILIPE ALMEIDA CAMPOS MOTA

RESENHA CRÍTICA DO FILME “VICKY CRISTINA

BARCELONA”. UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO DE FAMÍLIA.

Salvador, novembro de 2013

Vicky Cristina Barcelona, filme estadunidense escrito dirigido

por Woody Allen, em 2008, serve como parâmetro para analisar a quebra

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de paradigmas que o Direito de Família vem sofrendo nos últimos anos,

precisando adequar as suas regras e princípios a um panorama social que

não tem mais o patrimônio e as regras estritas do casamento como cerne.

Ao revés: a dignidade humana e as diversas formas de relacionamento.

Regulado historicamente por regras oriundas da doutrina cristã,

o casamento no Direito Brasileiro por muito tempo permaneceu estaque,

patrimonialista e cuja figura central era o pater famílias , estando a

mulher relegada ao segundo plano, como papel de coadjuvante, moral,

social e juridicamente submissa ao desejo marital.

Todavia, com a crescente complexidade assumida pela população

ocidental, o Direito brasileiro se viu obrigado a modificar, por mais que

lentamente, os seus dispositivos sobre o casamento. Inicialmente dando

mais liberdade à figura feminina, posteriormente legalizando o divórcio,

equilibrando a figura da mulher na sociedade conjugal, reconhecendo a

União Estável e até mesmo a união estável entre pessoas do mesmo sexo,

o que revela uma viragem de trezentos e sessenta graus em relação ao

que pensava o legislador de 1916.

Toda esta realidade e a supracitada mudança no nosso

Ordenamento Jurídico pode ser metonimizada nos personagens do filme

Vicky Cristina Barcelona.

Vicky, mestranda da cultura catalã e fascinada pelas obras de

Gualdi e Miró representa a idealização de um casamento “à moda

antiga”. Escolhe para ser seu parceiro um “bom partido”, estável

economicamente, homem de negócios, com boa reputação social e ideal

para a vida tranqüila e dentro dos padrões que, ao menos inicialmente,

almejava.

Cristina, por sua vez, representa o oposto simétrico de Vicky.

Impulsiva nos relacionamentos, portadora de instabilidade crônica e

altamente comunicativa, parece estar constantemente insatisfeita, como

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se procurasse por um real sentido da vida, já que não encontrava guarida

nos rótulos socialmente já criados.

Na viajem que fazem juntas para Barcelona, ambas protagonizam

um verdadeiro uma espécie de relacionamento que desarranja qualquer

estrutura de relacionamento estável – ou casamento – que um civilista se

proponha a estudar.

Apaixonadas pelo mesmo homem encontramos, em primeiro

plano, Vicky, que representa o ideal do casamento do século passado,

tentar resistir aos seus verdadeiros desejos que lhe impulsionam ao

adultério, outrora ilícito no Direito Brasileiro. Mesmo estando diante de

um noivado praticamente perfeito, onde todos os caminhos a direcionam

para um casamento digno da benção da religião cristã, a mestranda não

resiste e acaba por derrubar um dos maiores paradigmas do casamento: a

fidelidade.

O adultério provoca em Vicky uma guerra interna: de um lado,

vê no casamento a possibilidade de um relacionamento não só estável

mais aprovado por toda a sociedade, com um parceiro fiel e bem-

sucedido, tal como mandam os “bons costumes”. De outro lado parece

tentada a ceder aos prazeres carnais de envolver-se com um encantador e

complicado pintor espanhol, mesmo sob o risco de colocar todo o seu

planejamento sócio-afetivo a perder.

Na contramão está Cristina. Loira, atraente e sedenta por

relacionamentos intensos e únicos é a primeira a ceder aos encantos de

Juan Antonio Gonzalo, artista espanhol que teve um divórcio conturbado

com sua ex-mulher, que tentou matá-lo (e vice-versa).

Cristina metonimiza, em seu personagem, o verdadeiro complexo

em que vive a sociedade atual, principalmente dos brasileiros nascidos de

1980 até então. É que, enquanto portadora de insatisfação crônica,

Cristina não se enquadra em nenhum dos padrões já estabelecidos na

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sociedade, não admitindo rotulações e revelando verdadeira ojeriza ao

que é imutável, trivial, ao que não oferece emoção.

Neste diapasão, Cristina começa a se envolver com Juan, que

tem uma noite de amor com Vicky enquanto a primeira encontra-se

adoecida. O que parece se configurar num triângulo amoroso revela-se

figura ainda mais complexa com o retorno de Maria Elena, ex-mulher de

Juan.

Percebemos, portanto, que o filme retrata a complexidade das

relações afetivas que, de tão complexas, não comportam o regramento de

normas jurídicas obsoletas. Cristina e Maria Elena passam a morar juntas

com Juan, ambas na posição de esposas, sem qualquer circunstância que

revele a figura do concubinato. Além disso, Cristina e Maria Elena

passam ainda a relacionar-se entre si, algo extremamente controverso e

ainda criticado na sociedade atual.

Deste modo temos uma configuração de família diferente da

socialmente esperada: duas mulheres que passam a conviver com um

único homem e ainda uma terceira que à beira do noivado não consegue

esquecer a noite de amor mantida com Juan.

No decorrer do filme percebemos a total desestruturação da

figura do casamento. Judy e Mark representam típico casal de adultos

entrando na velhice que hospedam as protagonistas em Barcelona. São

retratados, no início da película, como o típico marido e mulher “padrão”

do cristianismo. Aparentemente fiéis, vivendo juntos há muito tempo,

sob o mesmo teto, queridos por todos da vizinhança, muito bem

relacionados, com um filho que estuda em outra cidade e boa condição

financeira, poderiam ser enquadrados como figura típica que se

amoldaria ao ideal de casamento pensado pelo Código de 1916. Todavia,

esta aparência revela-se falaciosa pois, até mesmo neste relacionamento,

haverá espaço para o adultério.

Quando tudo parece correr bem, apesar do relacionamento triplo

fora dos padrões socialmente aceitos, Cristina revela-se disposta a fazer

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uma nova virada de jogo. É que ela já não se enquadra mais tríade

amorosa criada e precisa sair em busca de algo que ela realmente queira.

Do lado oposto sua amiga, Vicky, acaba por sucumbir ao

casamento planejado, revelando-se infeliz na decisão tomada, já que não

encontra a mesma paixão de outrora pelo seu marido. Neste ponto cabe a

observação de que a personagem Vicky, ao tentar respeitar todas as

regras do jogo moralmente aceitas acaba por repousar na infelicidade. É

dizer: o privilégio à forma, a aparência e a estabilidade, por mais que

reconhecidas pelo Direito e pela ordem social, não fazem a personagem

se sentir plena, digna.

O filme revela, portanto, que o antigo hábito de rotular e

modelar as relações sócio-afetivas não se adéqua mais às necessidades da

sociedade hodierna. É dizer: somente um Ordenamento Jurídico com

regras extremamente flexíveis e que tenha como princípio a realização

pessoal e afetiva do cônjuge como ser humano digno é que tem

cabimento nos tempo atuais.

Neste ponto, vale saliente Cristina, que está sempre em busca do

que realmente quer. A complexidade das relações atuais, do namoro, do

“ficar”, das relações homoafetivas, do concubinato, demonstram

imprescindível a redução de um formalismo exacerbado para uma

necessária abstração da figura do casamento. O jurista pode até não saber

o que esperar da sociedade em termos de casamento, mas, conforme narra

o filme, a sociedade atualmente composta por jovens “sabe o que ela não

quer”. E o não querido é justamente o rotulado, o normatizado, o

enquadrado como devido.

Dentre os caminhos trilhados pelas protagonistas parece a

felicidade estar mais próxima de Cristina. É que Vicky, ao se casar

diante dos paradigmas seculares do matrimônio religioso, revela-se como

cumpridora de uma obrigação social. Do outro lado temos Cristina, que

apesar de findar o enredo sem um par romântico ao lado revela-se

disposta a experimentar o novo.

E é justamente desta maneira que deve se comportar o Direito de

Família. Jamais infenso às modificações sociais, não pode jamais

revelar-se estanque. Precisa compreender os novos arranjos afetivos que

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os cidadãos contraem para dar-lhes o regramento correto, protegendo não

só os nubentes, mas aqueles que namoram, aqueles que “ficam” e também

ate aqueles que decidem não se relacionar.

É sobre esta ótica que deve ser analisada a película em comento:

como uma quebra de paradigmas e uma necessidade constante e

incansável de procurar compreender a complexidade com que se

modificar as relações intersubjetivas no campo do Direito de Família,

que não tem mais espaço para formalismos exacerbados relegando a um

pretenso segundo plano a dignidade realização pessoal.