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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
VLADSON PATERNEZE CUNHA
DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE
GUARAPUAVA/PR (1971-2011)
LONDRINA
2014
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VLADSON PATERNEZE CUNHA
DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE
GUARAPUAVA/PR (1971-2011)
Dissertao apresentada como requisito
parcial obteno do grau de mestre em
Histria Social do curso de Ps-
graduao em Histria da Universidade
Estadual de Londrina.
Orientador: Dr. Jozimar Paes de
Almeida
LONDRINA
2014
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Catalogao elaborada pela Diviso de Processos Tcnicos da Biblioteca Central
da Universidade Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)
TERMO DE APROVAO
VLADSON PATERNEZE CUNHA
C972dCunha, VladsonPaterneze.
Do lixo ao aterro : uma histria socioambiental de Guarapuava/PR (1971-2011)
/ VladsonPaterneze Cunha. Londrina, 2014. 158 f. : il.
Orientador: Jozimar Paes de Almeida.
Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Estadual deLondrina,
Centro de Letras e Cincias Humanas. Programa de Ps-Graduao em Histria
Social, 2014.
Inclui bibliografia.
1. Histria social Teses. 2. Polticas pblicas Guarapuava (PR) Teses. 3. Lixo Guarapuava (PR) Teses. 4. Questo ambiental Teses. I. Almeida,Jozimar Paesde. II. Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Cincias Humanas.
Programa de Ps-Graduao em Histria Social. III.Ttulo.
CDU 930.1:628.4
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DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA SOCIOAMBIENTAL DE
GUARAPUAVA/PR (1971-2011)
Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre
no Curso de Ps-Graduao em Histria Mestrado em Histria Social, da
Universidade Estadual de Londrina, pela seguinte banca examinadora:
Orientador Prof. Dr. Jozimar Paes de Almeida
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Prof. Dr. Maria Amlia Mascarenhas Dantes
Universidade de So Paulo USP
Prof. Dr. Zueleide Casagrande de Paula
Universidade Estadual de Londrina - UEL
Londrina, 28 de maio de 2014.
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PARA MINHA ME E MEU PAI.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Dr. Jozimar Paes de Almeida por toda a amizade, pacincia e
dedicao ao seu ofcio de educador.
Ao meu amigo Everton Arajo Carneiro pela generosidade em me acolher por
tanto tempo em seu lar.
Ao Edson Holtz pela amizade sincera e por revisar o texto contribuindo com
suas observaes.
Aos funcionrios do Arquivo Histrico Municipal de Guarapuava, Cmara dos
Vereadores de Guarapuava, Biblioteca Municipal de Guarapuava e da Secretaria de Ps-
graduao da Universidade Estadual de Londrina pelo atendimento sempre prestativo e
pela dedicao.
CAPES por proporcionar as condies materiais para este trabalho poder ser
desenvolvido.
minha filha Maria Carolina Stader Cunha por suportar a ausncia sem
reclamar e sorrir a cada chegada.
Elisabeth Stader, por tudo.
Aos meus amigos que sempre acreditaram na minha capacidade e no deixaram
que eu me desanimasse.
todos aqueles que direta ou indiretamente ajudaram a fazer com que esse
trabalho pudesse ser realizado.
todos aqueles que duvidaram...
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A prata tem suas minas, e o ouro tem o lugar onde refinado. O
ferro extrado da terra, e ao fundir-se a pedra, dela sai o
bronze. O homem pe limite s trevas, e explora at o extremo
limite as grutas mais sombrias. Perfura poos em lugares
inacessveis, sem apoio para os ps, balanando suspenso longe
dos homens. A terra que d o po, por baixo devorada pelo
fogo; suas pedras so jazidas de safiras, e seus torres contm
pepitas de ouro.
O abutre no conhece esse caminho, e o olho do falco no
consegue enxerg-lo; as feras no o trilham, nem o leo o
atravessa. O homem estende a mo contra a rocha, e revira as
montanhas pela raiz; abre galerias na pedra, atento a tudo o que
precioso; explora as nascentes dos rios, e traz luz o que est
escondido.
A sabedoria, porm, de onde tirada? Onde est a jazida da
inteligncia?
J 28, 1-12.
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RESUMO
Partindo do pressuposto de que possvel historicizar o lixo e as relaes sociais das
quais resulta, demonstrando assim suas inter-relaes com outros temas sociais,
ambientais, polticos e econmicos nas sociedades capitalistas, procuramos
compreender como foram formadas as polticas pblicas ambientais relativas aos
resduos slidos urbanos na cidade de Guarapuava, interior do estado do Paran, entre
os anos de 1971 e 2011. Utilizamos como fonte histrica os planos de gerenciamento de
resduos, leis, debates legislativos em atas, relatrios da administrao municipal e
jornais locais demonstrando de que forma o lixo se tornou um problema social, poltico
e ambiental exigindo por parte dos representantes do Estado solues adequadas.
Empregando um referencial terico-metodolgico baseado no materialismo histrico,
demonstramos que o problema do lixo se agrava na sociedade capitalista devido ao
aumento da produo e do consumo que desconsidera os efeitos negativos de tais
prticas para a natureza e para a sociedade. Assim, as solues para os problemas
relacionados ao lixo no meio urbano so vistashegemonicamente porum aspecto
tcnico-econmico, segundo o qual todos os problemas so passveis de serem
resolvidos, bastando no caso do lixo, melhorar os sistemas de reciclagem ou implantar
um aterro sanitrio, opo esta adotada em Guarapuava.
Palavras-chave: Histria, Polticas Pblicas, Lixo, Guarapuava.
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ABSTRACT
Assuming that it is possible to historicize the trash and the social relations of which
results, thus demonstrating their interrelations with other social, environmental, political
and economic issues in capitalist societies, we seek to understand how public
environmental policies were formed waste municipal solid in Guarapuava, the state of
Paran, between the years 1971 and 2011. Used as a historical source plans for waste
management, laws, legislative debates in minutes, reports of municipal administration
and local newspapers demonstrating how garbage has become a social, political and
environmental problem requiring by representatives of the State appropriate solutions.
Employing a theoretical and methodological framework based on historical materialism,
we demonstrated that the garbage problem worsens in capitalist society due to increased
production and consumption that disregards the negative effects of such practices for
nature and society. Thus, the solutions to the problems related to garbage in urban areas
are seen by a hegemonic techno-economic, whereby all problems are likely to be
resolved aspect, just in case the waste, improve recycling systems or deploy a landfill
health, this option adopted in Guarapuava.
Keywords: History, Public Policy, Garbage, Guarapuava.
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LISTA DE ILUSTRAES
Mapa 01 Localizao do municpio de Guarapuava e do permetro urbano................24
Mapa 02 Disposio de resduos slidos urbanos no estado do Paran......................86
Mapa 03 Localizao do municpio de Guarapuava....................................................89
Foto 1 Lagoa das Lgrimas.........................................................................................95
Foto 2 Parque do Lago.................................................................................................99
Foto 3 Aterro Sanitrio e lixo..................................................................................117
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LISTA DE TABELA
Tabela 1 Evoluo populacional do municpio de Guarapuava e do Paran................92
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LISTA DE ABREVIATURAS
ABRASP - Associao Brasileira de Prefeitos
ACG - Associao Conservacionista de Guarapuava
ACPG - Associao dos Catadores de Papel de Guarapuava
ADEA - Assessoria de Defesa e Educao Ambiental
BMS - Bristol-Myers-Squibb
BP - British Petrolium
CAPES - Coordenao de Pessoal de Nvel Superior
CEDOC - Centro de Documentao e Memria
CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente
COPEL - Companhia Paranaense de Energia
EMATER - Instituto Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural
FAFIG - Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Guarapuava
FUBEM - Fundao do Bem Estar do Menor
FURG - Fundo de Urbanizao de Guarapuava
GAECO - Grupo Especial de Represso ao Crime Organizado
IAP - Instituto Ambiental do Paran
IBAMA - Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis
IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
ICMBio - Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade
IDH - ndice de Desenvolvimento Humano
ITC - Instituto de Terras e Cartografia
MNCR - Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Reciclveis
ONU - Organizao das Naes Unidas
PEDU - Programa de Regionalizao do Desenvolvimento Urbano
PROICS - Programa Integrado de Conservao de Solos
PROMACO - Programa de Preservao dos Mananciais pelas Comunidades
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RIO-92 - Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
RMC - Regio Metropolitana de Curitiba
SANEPAR - Companhia de Saneamento do Paran
SEDU - Secretaria de Desenvolvimento Urbano
SEMA - Secretaria Especial do Meio Ambiente
SEMA-PR - Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hdricos do Paran
SEMAFLOTUR - Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento Florestal e Turismo
SISNAMA - Sistema Nacional do Meio Ambiente
SUDEPE - Superintendncia do Desenvolvimento da Pesca
SUDHEVEA - Superintendncia de Desenvolvimento da Borracha
SUREHMA - Superintendncia de Recursos Hdricos e Meio Ambiente
SURG - Companhia de Servios de Urbanizao de Guarapuava
UNESP - Universidade Estadual Paulista
UNICENTRO - Universidade Estadual do Centro Oeste
USP - Universidade de So Paulo
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SUMRIO
INTRODUO.............................................................................................................14
CAPTULO I A QUESTO AMBIENTAL E AS POLTICAS PBLICAS
COMO FORMA DE COMPREENSO HISTRICA DA SOCIEDADE..............32
1 A questo ambiental e a (des)ordem planetria..................................................34
2 O Estado como indutor de polticas pblicas e normas para a sociedade..........43
2.1 Contribuies para uma definio do Estado na Sociedade..................................44
2.2 O Estado capitalista e a elaborao de Polticas Pblicas....................................48
3 Contribuio do Ambientalismo para a formao de polticas pblicas
ambientais em mbito mundial...................................................................................53
CAPTULO II ALGUNS CAMINHOS DAS QUESTES AMBIENTAIS E DO
LIXO NAS POLTICAS PBLICAS.........................................................................60
1 Polticas pblicas, meio ambiente e o lixo no Brasil............................................62
2 Apontamentos da questo ambiental e do problema do lixo no Paran............71
CAPTULO III OS CAMINHOS DO LIXO NA SOCIEDADE
GUARAPUAVANA......................................................................................................88
1 Guarapuava: natureza e histria..........................................................................88
2 Consideraes a respeito de questes ambientais em Guarapuava....................93
3 Aes do poder pblico relacionadas ao problema do lixo em Guarapuava...107
CAPTULO IV DO LIXO AO ATERRO: UMA HISTRIA DO LIXO EM
GUARAPUAVA..........................................................................................................116
1 Uma reflexo a respeito da questo do lixo em Guarapuava...........................117
2 Uma histria do lixo em Guarapuava (1971-2011)..........................................123
2.1 O lixo ao lado da minha casa: 1971-1976........................................................124
2.2 O problema do lixo se torna o problema do Lixo (1977-1993).........................132
2.3 O fim do lixo: a epopeia do aterro sanitrio (1993-2011)...............................138
CONSIDERAES FINAIS....................................................................................148
FONTES......................................................................................................................153
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................154
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INTRODUO
[...]
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- . Sim. Bem. Eu fico muito em casa. No saio muito. Sabe como .
- Namorada?
- No.
- Mas h uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. At
bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Voc no rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, voc quer
que ela volte.
- Voc j est analisando o meu lixo!
- No posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de
conhec-la. Acho que foi a poesia.
- No! Voc viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas so muito ruins!
- Se voc achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles s estavam
dobrados.
- Se eu soubesse que voc ia ler...
- S no fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que,
no sei: o lixo da pessoa ainda propriedade dela?
- Acho que no. Lixo domnio pblico.
- Voc tem razo. Atravs do lixo, o particular se torna pblico. O que
sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo
comunitrio. a nossa parte mais social. Ser isso?
- Bom, a voc j est indo fundo demais no lixo. [...]
O lixo Luis Fernando Verssimo
Estaremos vendo lixo em todos os lugares? Ou ser que nas lixeiras, os restos
tm algo a nos dizer? O que fazemos com os dejetos, produzidos diariamente em nossas
casas? Em nossas cidades? Qual a responsabilidade do sistema produtivo pela gerao
de resduos? Ser o consumo globalizado responsvel pela cultura do desperdcio e da
obsolescncia, que tanto desperdcio gera? Estaremos dispostos a mudar nossa forma de
viver e produzir para minimizar este dilema social do lixo? Afinal, todos somos parte
desse problema e tambm da soluo.
H pessoas, no entanto, que agem como se no se importassem com o fato de
suas aes contriburem para agravar os infortnios relacionados ao lixo. Nossos
concidados, talvez no tenham a percepo de que existe o problema. Quando andamos
pelas ruas da cidade vemos nas lixeiras e caladas defronte as casas sacolas e sacos
plsticos pretos que sero recolhidos pelo caminho compactador e tero como destino
mais provvel algum lixo a cu aberto ou talvez um Aterro Sanitrio.
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No necessrio abrir os sacos, ou vasculhar o lixo alheio, como as
personagens de Verssimo fizeram, para saber da vida dos vizinhos e perceber que
existem ali materiais reciclveis e outros resduos que poderiam no estar no lixo
comum que recolhido pelo caminho da limpeza pblica.
Ao andar pelas ruas tambm vemos que muita coisa que deveria estar nas
lixeiras, onde elas existem, est nas caladas, nas ruas e nos gramados. Nas lixeiras
coloridas (verde, amarela, vermelha, azul e marrom), da Coleta Seletiva, ser que os
materiais ali depositados, esto depositados na cor correta? Ser que na verde
encontraremos vidro, na azul papel, na vermelha plstico, na amarela metais e na
marrom resduos orgnicos? Em todas as que olhamos, motivados por uma curiosidade
cientfica, tinha um pouco de tudo em todas as cores.
Os abundantes terrenos sem construo e prdios desabitados, mas que
possuem proprietrio, so fruto da expanso urbana improvisada conjugada com a
lenincia regulatria e fiscalizadora estatal, intensificada pela especulao imobiliria.
Acabam se transformando em baldios pela ao natural e inao possessria, ou
depsitos de lixo clandestino pela ao humana circunvizinha. Enquanto isso, seus
proprietrios esperam o melhor momento para vend-los, ou us-los em benefcio
prprio, sem se importar com o mato e o lixo que neles abundam.
O mesmo problema dos baldios visto em reas pblicas, principalmente na
periferia urbana onde, sob o manto da escurido e do anonimato, so despejados
entulho, mveis velhos, restos de construo e uma infinidade de resduos que ajudam a
deixar essas reas muito parecidas com pequenos lixes a cu aberto. Acreditamos que
essa realidade no seja exclusiva de uma nica cidade brasileira.
Ao realizarmos uma pesquisa histrica, iniciamos com perguntas, hipteses e
algumas certezas que podem sugerir certa simplicidade, mas que, no entanto, buscam
uma compreenso complexa da sociedade. Dessa maneira, a busca por um
conhecimento social mais abrangente nos obrigou a aprofundar nossa relao com o
campo da histria e nos colocou em contato com certas dificuldades, inerentes ao
trabalho dos profissionais que nele se aventuram.
No caminho percorrido para encontrar, acessar, ler, selecionar, analisar e
interpretar as fontes, algumas questes so respondidas, novas questes so propostas e
muitas dvidas nos assolam. Confrontamos documentos, investigamos hipteses,
elencamos prioridades e definimos caminhos para produzir um texto que possa
contribuir com a transmisso de informaes relevantes sobre o tema escolhido. Ao
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final temos um trabalho que, longe de ser perfeito e definitivo, se apresenta aberto a
novos caminhos e possibilidades de avano do conhecimento.
A operao historiogrfica1 apresenta-se a ns como uma relao entre um
lugar social, os procedimentos de anlise utilizados no trato das fontes e o texto
historiogrfico que informa os leitores a respeito daquilo que se pesquisou e que agora o
historiador relata/informa. Priorizamos o entendimento do lugar social e o entendemos
como lugar socioeconmico, poltico e cultural que o ponto articulador de toda
pesquisa historiogrfica. O lugar social o que instaura os mtodos, delineia os
interesses, prope e organiza as perguntas s fontes e encaminha a escrita.
De fato, a escrita histrica ou historiadora permanece controlada pelas prticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela prpria
uma prtica social que confere ao seu leitor um lugar bem
determinado, redistribuindo o espao das referncias simblicas e
impondo, assim, uma "lio"; ela didtica e magisterial. Mas ao
mesmo tempo funciona como imagem invertida; d lugar falta e a
esconde; cria estes relatos do passado que so o equivalente dos
cemitrios nas cidades; exorcisa e reconhece uma presena da morte
no meio dos vivos.2
A escrita resulta das prticas sociais que impe seus valores, deixando contudo
suas faltas e defeitos mostra. O lugar social define aquilo que possvel ou impossvel
numa pesquisa, o que permitido e o que proibido e o que poder ser publicado ou
no. Entendemos que articular o lugar social com a histria uma condio
fundamental para uma interpretao profcua da sociedade.
Na busca que empreendemos em nosso trabalho, concentramos nossa ateno
na possibilidade de historicizar um objeto significativo para entender a sociedade.
Nosso objeto de estudo o lixo e as possibilidades de interpretao de questes sociais,
ambientais e polticas atravs das relaes humanas das quais resulta esse produto
social.
Mesmo nas mais simples atividades humanas produzimos lixo. Isto se
d tanto na preparao como ao fim da vida til daquilo que
processado. Ao prepararmos nossos alimentos, por exemplo, sobram
cascas, folhas, peles, etc e, ao final, ossos, sementes e etc. O
metabolismo de nosso corpo, por sua vez, produz dejetos (fezes, urina,
secrees diversas). Tanto o lixo como os dejetos devem ser
segregados e destinados a locais onde no criem problemas para as
1CERTEAU, M. de. A escrita da Histria, Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 1982. 2Idem, p.91.
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atividades comunitrias. Ao fim de nossa existncia, deixamos nossos
restos mortais, nosso corpo.3
Eigenheer nos chama a ateno para a questo do lixo mostrando sua inevitvel
presena junto sociedade e aos seres humanos. Em qualquer atividade que realizemos,
produzimos lixo ou dejetos. O autor destaca que dentro das dinmicas sociais as prticas
de recolhimento e destinao do lixo ocupam lugar de destaque. Apesar da importncia
que adquire no ordenamento urbano, e de estar presente em todas as sociedades, o lixo e
os dejetos no so temas bem vistos.
Ao longo dos sculos, no encontramos com frequncia autores que
dediquem a ele mesmo parte do seu tempo. Ainda hoje no corrente
se tratar com profundidade a questo fora do mbito tcnico. As
dificuldades para se tratar do tema decorrem provavelmente do fato de
ele apontar para a finitude de nossas produes e de nossa prpria
vida, o ciclo natural de vida e morte. Afinal, o medo e a incerteza
quanto ao desconhecido podem ter levado o ser humano, j em tempos
imemoriais, a olhar os dejetos e o lixo com insegurana, como sinais
de precariedade. Fezes, restos de comida, cadveres podem ser
ameaas no s visuais e olfativas.4
De fato, como aponta Eigenheer, a finitude da vida, as incertezas do
desconhecido, o medo e o asco causado pelos dejetos e pelos restos podem ser as causas
do pequeno interesse que assuntos como esses despertam nos pesquisadores e nas
pessoas. Compartilhamos assim desta limitao de obras que tivessem o lixo como
objeto de uma pesquisa, principalmente de histria. A historiografia estuda o tema de
maneira indireta, quando se estuda o processo de urbanizao as populaes
marginalizadas, por exemplo.
Algumas obras ainda que no sejam de historiadores, como o caso de
Eigenheer que filsofo, so dedicadas ao tema. O autor traa um roteiro histrico,
desde as civilizaes da Antiguidade at o sculo XX, demonstrando numa perspectiva
histrica a continuidade do enfrentamento do problema de dar destino a essa
inexorvel produo humana.
A continuidade histrica de problemas e a existncia de prticas especficas de
limpeza nas cidades em vrios perodos, alm de regras e legislaes que, apesar de
endurecer as penalidades aos infratores no conseguiam obrigar a populao a cumpri-
las so demonstradas pelo autor, inclusive quando trata do contexto brasileiro, em
captulo especfico. Eigenheer estabelece um relato histrico amplo e diversificado, 3EIGENHEER, E. M.. Lixo: a limpeza urbana atravs dos tempos. Porto Alegre: Grfica Pallotti,
2009, p.15. 4Idem, p.17.
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segundo ele, mais informativo e com diversos recursos iconogrficos para instigar
leitores e subsidiar debates a respeito da histria da limpeza urbana.
Um levantamento feito em bancos de dados de universidades e da Coordenao
de Aperfeioamento do Pessoal de Nvel Superior (CAPES) nos mostrou uma intensa
produo cientfica relacionada ao tema, onde encontramos as mais variadas leituras,
interpretaes e preocupaes de diversas reas do conhecimento. Podemos citar, por
exemplo, pesquisas de administrao5, arqueologia
6, arquitetura
7, agronomia
8,
engenharia ambiental9, sociologia
10, direito
11, engenharia mecnica
12 e oceanografia
13
como algumas delas.
Dentre os poucos trabalhos de histria encontrados e disponveis, os que
contriburam com nossa pesquisa e nos elencaram possveis perspectivas de
interpretao, foram os de Miziara14
e Couto15
. Esses trabalhos foram fundamentais para
que pudssemos vislumbrar nosso objeto e as relaes sociais, polticas, econmicas e
ambientais envolvidas com a sua dinmica dentro da cidade.
Miziara traa as trajetrias do lixo em So Paulo, principalmente durante a
dcada de 1970, demonstrando que a preocupao com os restos tambm estava
presente em pocas anteriores na cidade. Atravs dos ordenamentos legislativos
procurou-se assegurar a limpeza e a salubridade da cidade evitando-se epidemias.
Campanhas e propagandas governamentais tentaram embutir valores de higiene e
civilidade na populao e mudanas tcnicas objetivaram dar cabo dos restos, a
5ARRUDA, J.A..Administrao do lixo: eis a questo!. Especializao (Administrao gerencial).
Guarapuava:UNICENTRO, 1998. 6ANDRADE, A.W.O.. Arqueologia do lixo: um estudo de caso nos depsitos de resduos slidos da
cidade de Mogi das Cruzes em So Paulo. 2006. 145f.. Tese (Doutorado Arqueologia). Museu de
Arqueologia, USP, So Paulo, 2006. 7CORDEIRO, M.P.. O lixo urbano: fonte de matria-prima reciclada e o caso do vidro. 1993. 53f.
Dissertao (Mestrado Arquitetura e Urbanismo). USP, So Paulo, 1993. 8KROM, V.. Estudo da viabilidade econmica de uma usina de compostagem de lixo. 1987. 74f.
Dissertao (Mestrado Agronomia). Unesp, Botucatu, 1987. 9VILLELA, S.H.. Validao social de polticas de resduos slidos domiciliares. 1998. 188f. Tese
(Doutorado Engenharia Ambiental). USP, So Paulo, 1998. 10
KUHNEN, A.. Reciclando o cotidiano: o lixo como poltica pblica e como representao social.
1994. 144f. Dissertao (Mestrado Sociologia Poltica). UFSC, Florianpolis, 1994. 11
MAIA FILHO, R.. O lixo visto sob uma outra tica jurdica. 2005. 279f. Tese (Doutorado Direito).
PUC, So Paulo, 2005. 12
FERRAZ, J.L.. Modelo para avaliao da gesto municipal integrada de resduos slidos urbanos.
2008. 241f. Tese (Doutorado Engenharia Mecnica). Unicamp, Campinas, 2008. 13
ARAJO, M.C.B. de. Resduos slidos em praias do litoral sul de Pernambuco: origens e
consequncias. 2003. 104f. Dissertao (Mestrado Oceanografia). UFPE, Recife, 2003. 14
MIZIARA, R. Nos rastros dos restos: as trajetrias do lixo na cidade de So Paulo. So Paulo:
EDUC, 2001. 15
COUTO, A. M. S.. Das sobras indstria da reciclagem: a inveno do lixo na cidade (Uberlndia-
MG, 1980-2002). 2006. 336f. Tese (Doutorado Histria Social). PUC, So Paulo: 2006.
-
19
exemplo dos incineradores de lixo. A autora tambm destaca as relaes entre os
poderes pblico e privado e a transformao da coleta de lixo em um grande negcio,
vinculado a um maior controle e planejamento da urbe.
Couto trabalha o lixo em outro espao, a cidade de Uberlndia, em Minas
Gerais. Suas reflexes enfatizam problemas e situaes que demonstram uma disputa
entre os administradores e a populao em que, estes querem continuar com seus
hbitos e padres de vida tradicionais e aqueles querem impor uma nova lgica de
ordenao e uso dos espaos urbanos. A autora procura destacar em seu trabalho o
problema do lixo hospitalar na cidade e a vivncia dos catadores de materiais reciclveis
envolvidos com o trabalho.
Couto demonstrou um agravamento da situao da coleta e da disposio final
dos resduos durante a dcada de 1980 que culminou com a construo de um aterro
sanitrio na cidade para solucionar a questo. Atravs de uma srie de entrevistas com
os catadores, traz a pblico as opinies deles destacando as agruras do trabalho nesta
atividade e o componente de anonimato que tanto o lixo quanto os trabalhadores que
o manipulam adquirem perante a populao.
Outros autores entre os quais destacamos Thomas16
, Morin17
, Tembil18
,
Ribeiro19
e Gonalves20
nos auxiliaram no entendimento de questes relacionadas
histria social do objeto, s mudanas na relao homem/natureza, na busca de
entendimento da complexidade planetria dos temas ambientais e no conhecimento da
cidade e dos problemas que a atingem.
Podemos assim afirmar que ao entendermos o lixo como expresso da
sociedade, tivemos a oportunidade de compreender as relaes sociais e desenvolver um
perfil da cidade. Investigar como as autoridades pblicas equacionaram os problemas do
lixo propiciou uma oportunidade de perceber os conflitos polticos, levados a cabo
dentro da cidade e da prpria administrao pblica.
Tal qual outros assuntos, tidos como bizarros, ou melhor dizendo, como outros
assuntos considerados tabu, o lixo e as relaes humanas que o produzem, nos fazem
16
THOMAS, K.. O homem e o mundo natural: mudanas de atitude em relao s plantas e aos
animais, 1500-1800. Traduo Joo Roberto Martins Filho. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. 17
MORIN, E.; KERN, A.B..Terra-Ptria. Traduo de Paulo Neves. Porto Alegre: Sulina, 1995. 18
TEMBIL, M.. Em busca da cidade moderna: Guarapuava... recompondo histrias, tecendo
memrias. Guarapuava/PR: UNICENTRO, 2007. 19
RIBEIRO, W. C.. A ordem ambiental internacional. So Paulo: Contexto, 2001. 20
GONALVES, C.W.P.. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004. (Os porqus da desordem
mundial. Mestres explicam a globalizao)
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20
pensar que realmente muito difcil fixar uma escala de importncia para o interesse do
historiador, que no seja de alguma maneira subjetiva. A subjetividade da histria
advm do fato de ser apenas resposta a nossas indagaes. materialmente impossvel
fazer todas as perguntas e descrever todos os fatos do passado.
Ao escolhermos um tema de pesquisa, tomamos a deciso em funo de
situaes objetivas e subjetivas como o gosto pessoal, o domnio do contedo, as
leituras anteriores que temos, as convices religiosas ou polticas e a facilidade ou
disponibilidade de acesso s fontes. A histria subjetiva [...] pois no se pode negar
que a escolha de um assunto para um livro de histria seja livre [...]21.
Historiadores pesquisam o passado, interpretam o passado e escrevem a
respeito do passado, mas sempre buscando respostas para perguntas feitas no presente.
Procuram nas pginas do passado conexes com preocupaes recentes envolvidas com
o tema pesquisado. Estamos, pois, no campo inteiramente indeterminado da Histria
onde a nica exceo que [...] tudo o que nele se inclua tenha realmente acontecido
[...]22.
Procuramos aquilo que aconteceu na sociedade, no cotidiano dos seres
humanos. Aquilo que, acontecido, pode tornar-se histria. E tornando-se histria,
tornou-se caa para o historiador. Assim como outros historiadores23
, pretendemos que
nosso trabalho auxilie na compreenso de alguma lacuna da pesquisa sobre um tema ou
um perodo da histria e anunciamos assim sua caracterstica de estudo provisrio.
Um tanto quanto enigmtico escrever uma histria daquilo que muitos no
querem mais saber que existiu, mas continua de certa forma existindo. Aps a
transformao de um objeto que fazia parte de nossa vida em lixo, ele colocado para
fora de nossas casas e, acreditamos, de nossas vidas. Esperamos que o pessoal da
limpeza pblica o leve para longe do nosso campo de olfato e viso, e no pensamos
mais nisso.
No estamos acostumados a visitar o lixo ou o Aterro Sanitrio em busca de
nossas recordaes da vida, entendendo-os como sambaquis24 modernos. Entendemos
21
Veyne, P. M.. Como se escreve a histria: Foucault revoluciona a histria. Trad. Alda Baltar e Maria
A. Kneipp. Braslia: Ed. UnB, 1998. p.37 22
Idem, p. 25. 23
BURKE, Peter. Uma histria social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003. 24GASPAR, M. (2000) apudEIGENHEER, E.M.. op.cit. p.94. Sambaquis: Os stios so caracterizados basicamente por serem uma elevao de forma arredondada que, em algumas regies do Brasil, chega a
ter mais de 30m de altura. So construdos basicamente com restos faunsticos como conchas, ossos de
peixe e mamferos. Ocorrem tambm frutos e sementes, sendo que determinadas reas dos stios foram
-
21
que a aluso aos sambaquis serve para acentuar, que em diferentes locais e pocas, as
reas de destino de lixo foram fontes de estudo e reflexo sobre as estreitas relaes
que se do entre lixo, morte e memria25.
Tiramos os cadveres, os restos, os resduos, o lixo de nossas casas e, na
maioria dos casos, tiramos tambm de nosso ncleo urbano. Esquecemos que os
mesmos, alm de poluir, podem informar a respeito de nossas vidas e explicar
caractersticas importantes de nossa sociedade.
O lixo tudo aquilo que um dia foi natural, artificial, matria-prima,
mercadoria, produto, fetiche e que, de acordo com o julgamento de um determinado ser
humano, deve ir para a lixeira. Pode ento, contaminar o ambiente, atrair doenas e
cheirar mal nos lixes e aterros sanitrios.
Podemos observar sua existncia e sua resistncia ao continuar presente nas
ruas, entupindo bueiros, provocando alagamentos e contribuindo para o repasse de
verbas federais aos estados e municpios. possvel mesmo afirmar que as pessoas
podem ser conhecidas, em parte, pela qualidade e quantidade do lixo que produzem em
suas residncias, escritrios, fbricas, oficinas e supermercados.
A disposio inadequada dos restos chama nossa ateno para os graves
problemas que resultam dessa atitude, comum na maioria das cidades brasileiras. A
contaminao das guas pelo chorume, a proliferao de vetores de doenas nos lixes,
a situao das pessoas que vivem e se alimentam do lixo, o aumento da quantidade de
lixo e a mudana na qualidade do lixo, so causa e consequncia desses e de outros
problemas, e nos levam a pensar e repensar nossa relao com os restos.
Tambm chamou-nos a ateno o fato de, recentemente, o lixo ter sido
transmutado de uma coisa sem valor, para algo que tem valor social, e principalmente,
econmico para a sociedade. O lixo das cidades, quando bem gerido, pode contribuir
com a gerao de empregos, o aumento da renda de diversas famlias e com a
lucratividade das empresas. A importncia do assunto tem levado diversas instituies
do Estado a incluir em suas pautas de discusso e prioridades a questo da destinao
ambientalmente adequada dos resduos.
espaos dedicados ao ritual funerrio e l foram sepultados homens, mulheres e crianas de diferentes
idades. Contam igualmente com inmeros artefatos de pedra e de osso,marcas de estacas e manchas de
fogueira, que compem uma intrincada estratigrafia.. GASPAR, M. Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2000. p.9. 25
Idem, p. 94.
-
22
O lixo um indicador do consumo e da produo urbanas e foi, aos poucos,
sendo inserido na lgica da sociedade capitalista onde comeou a ser visto como fonte
de renda para populaes carentes, e como um material que no deveria ser
desperdiado, mas sim reaproveitado pela prpria indstria na produo, diminuindo
custos com matrias-primas.
Para a histria do lixo no Brasil, o ano de 1970 apontado por Miziara como
um marco, tendo em vista as transformaes urbanas e sociais em curso no perodo que
concorreram para que o lixo se tornasse um problema pblico, deixando a esfera da vida
privada. O poder pblico amplia a contratao de empresas privadas ou cria empresas
pblicas que tem como objetivo implantar servios relacionados coleta e destinao
adequada do lixo.
Ao longo da dcada de 1970 so tambm registradas as primeiras pesquisas
sobre o uso de sacolas plsticas (1971) e a campanha nacional do Sujismundo,
personagem sujo, desorganizado e confuso de um desenho animado veiculado na
televiso e no cinema como uma tentativa do governo de conscientizar a populao
contra o mau hbito de espalhar lixo em lugares pblicos. Como dizia o slogan da
campanha, Povo desenvolvido povo limpo26.
Assim, partimos do pressuposto de que existe uma profunda
interdependncia entre a problemtica do lixo e as transformaes sociais urbanas.
Dessa forma, o problema do lixo pode ser apreendido como problema da vida urbana e
dos governos municipais, tornando-se um problema poltico e de administrao pblica.
A sociedade, atravs de seus representantes pblicos passou a legislar,
regulamentar e controlar diversos setores garantindo sobre eles o domnio da histria
poltica. Entendemos que esse domnio no significa a superioridade da poltica sobre
outros aspectos da sociedade. Significa que entendemos o poltico como um campo de
possibilidades historiogrficas, que nos demonstra oportunidades de dilogo com outras
instituies sociais, culturais e econmicas que so encontradas no campo da poltica.
Acreditamos que o poltico tambm nos ajuda a historicizar as relaes entre
seres humanos e natureza. Alegamos ser possvel problematizar o lixo e estabelecer
conexes com outros temas sociais, econmicos, culturais e ambientais, como a questo
da produo e do consumo na sociedade. O lixo ganhou importncia no debate poltico
e se tornou objeto de disputas, inclusive econmicas, dentro da administrao pblica.
26
MIZIARA, R.. op.cit..
-
23
O aumento das atribuies do Estado na segunda metade do sculo XX levou a
um crescimento da ao governamental, favorecendo a reintegrao dos fatos polticos
como parte constituinte da histria social27
. O Estado passou a abarcar uma srie de
problemas que estavam fora de sua alada a exemplo da cultura, sade, habitao e
tambm da conservao e proteo da natureza e do meio ambiente, estendendo sua
ao reguladora e fiscalizadora para essas esferas e ampliando seu poder na sociedade.
Ao tecermos essas consideraes gostaramos de frisar que situamos nossa
pesquisa no conjunto de estudos historiogrficos que buscam, atravs de uma
abordagem materialista histrica, contribuir para o entendimento da sociedade
priorizando questes polticas e ambientais relacionadas sociedade capitalista,
enfatizando as relaes sociais e a produo de lixo.
Adotamos como objeto de pesquisa o lixo por expressar uma problemtica
sociopoltica das relaes humanas e ambientais relativas a um determinado espao, a
cidade de Guarapuava/PR, e uma temporalidade especfica de 1971 a 2011.
Vislumbramos nessa pesquisa a produo de conhecimento cientfico e historiogrfico
que permita uma interpretao de nossa sociedade.
Nosso objetivo interpretar as aes da sociedade e do poder pblico para
enfrentar os problemas e relacionados ao lixo na cidade de Guarapuava, entre os anos de
1971 e 2011. Entendemos que o problema do lixo relaciona-se com a produo, coleta e
destinao final do lixo na cidade. Procuramos entender as mudanas na relao
humanos/natureza buscando uma nova viso do ser humano, da sociedade e de nossa
relao com a natureza da qual somos parte.
Nossa busca pela reconstituio das prticas sociais e polticas que legaram
cidade suas caractersticas socioambientais e suas polticas pblicas para o setor, inter-
relacionando-as com as polticas estadual e federal ligadas regulamentao das
atividades que envolvem a temtica ambiental de maneira geral, e do lixo
especificamente.
Objetivamos, ainda, demonstrar as possibilidades de interpretar problemas
sociais, econmicos, polticos e ambientais a partir do objeto e produzir uma
interpretao que revele esses diversos interesses presentes num tema da histria
escondido debaixo do tapete.
27
RMOND, R..Por uma histria poltica. Traduo Dora Rocha. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
p.23.
-
24
Demarcamos como nosso espao de estudo a cidade de Guarapuava, na regio
Centro-Oeste do estado do Paran, na regio sul do Brasil, como podemos visualizar no
mapa abaixo:
Mapa 01 Localizao do municpio de Guarapuava e do permetro urbano da cidade
Fonte: elaborado pelo autor
O municpio de Guarapuava, cuja cidade sede tem o mesmo nome, est
localizado no centro oeste do estado do Paran, no Terceiro Planalto ou Planalto de
Guarapuava, com latitude sul de 2523'36" e longitude oeste de 5127'19". Segundo
Ferreira, o municpio possua em 2010 uma populao de 167.328 habitantes, sendo a 9
maior cidade do estado do Paran e plo da Microrregio-Guarapuava, composta por
outros 18 municpios. Apresentava um ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) de
0,773 sendo este o melhor ndice da regio, mas comparando-o a outros municpios do
estado Guarapuava ocupava a 83 posio28
.
Neste espao, segundo relata Antonio, desde o final dos anos 1960 houve um
intenso processo de periferizao urbana, relacionado ao xodo rural na regio,
acarretando o aumento da populao na cidade sede, e durante a dcada de 1970 ocorreu
a superao da populao urbana em relao rural. A rea do municpio passou por
desmembramentos administrativos com a emancipao de diversos distritos, resultando
em diminuio territorial. O crescimento urbano no perodo estudado foi acompanhado
pela ocorrncia de problemas de infraestrutura relacionados urbanizao acelerada,
notadamente as demandas sociais por gua encanada, esgoto e moradia.29
28
FERREIRA, A.. Uma anlise da eficincia econmica e da efetividade ambiental dos instrumentos
econmicos de gesto ambiental: um estudo de caso da Taxa de Lixo em Guarapuava-PR. 2009. 95f.
Dissertao (Mestrado Desenvolvimento Econmico). UFPR, Curitiba, 2009. 29
ANTONIO, J.N.. Mapeamento de reas potenciais a implantao de aterro sanitrio em
Guarapuava-PR, com uso de redes neurais artificiais. 2009. 131f. Dissertao (Mestrado Gesto do
Territrio). UEPG, Ponta Grossa, 2009.
-
25
O desenvolvimento da agricultura comercial e tecnificada garantiu o aporte
produtivo e financeiro para a instalao de agroindstrias. A dinmica da cidade no
perodo foi tambm marcada pelas ideias de progresso e de desenvolvimento
econmico. Essas ideias, para Kobelinski, nortearam e transformaram as pessoas e a
paisagem natural, e reestruturaram o meio urbano.30
No aspecto ambiental, segundo relata Ferreira, o municpio apresentava em
2009 uma mdia de 18,77% da rea geogrfica com cobertura florestal (57.948,60
hectares), superior a mdia estadual (12,7%). O autor salienta ainda que, no mesmo
perodo, a infraestrutura urbana contava com 92,5% das residncias atendidas com
ligaes de gua potvel, 50,56% do municpio era atendido por sistema de coleta de
esgoto, 97% das residncias tinham energia eltrica e 96,74% tinham coleta de lixo
regular.31
Quanto historiografia regional, destacamos a existncia de duas correntes de
autores que trabalham com a histria de Guarapuava. Um conjunto de escritores locais,
moradores da cidade e historiadores no acadmicos e acadmicos, atualmente reunidos
em torno da Academia de Letras, Artes e Cincias de Guarapuava. O segundo grupo
historiogrfico composto por professores e acadmicos oriundos da Universidade
Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO) que, atravs de programas de ps-graduao
em diversas universidades produziu uma renovada historiografia regional.
Lacheski32
ao trabalhar com os discursos constituintes da histria de
Guarapuava, analisando as representaes construdas e emitidas pelos indivduos a
respeito do processo de ocupao regional, destaca o primeiro grupo como sendo de
nascidos ou radicados na cidade que emitem um discurso regionalista e pico
diametralmente proporcional autoridade de quem o manifestava e que, nos anos 1990,
pregou o resgate e a preservao da memria permeada pela ideia de progresso.
Alguns dos autores e obras citadas e analisadas pela autora so: Luiz Cleve
Teixeira, poltico e esportista autor de Reminiscncias do passado (1993) e Terceiro
Planalto (2000); Heitor Francisco Izidoro poltico autor de Histria de Guarapuava
(1971) e Guarapuava: das sesmarias Itaipu (1976); Sebastio Meira Martins,
fazendeiro e autor de Guarapuava, nossa gente e suas origens (1997); Gracita
30
KOBELINSKI,M..Guarapuava isto aqui: da seduo dos discursos ao marcketing da cidade. 1999. 123f. Dissertao (Mestrado Histria). UNESP, Assis, 1999. 31
FERREIRA, A.. op cit. p.44. 32
LACHESKI,E.. Guarapuava no Paran: discurso, memria e identidade (1950-2000). 2009. 170f.
Dissertao (Mestrado Histria). UFPR, Curitiba, 2009.
-
26
GruberMarcondes, historiadora e autora de Guarapuava: histria de luta e trabalho
(1998), Murilo Walter Teixeira, dentista e autor de Continente guarapuavano: transio
poltico-social (1999) e Nivaldo Kruger, poltico e fazendeiro autor de Guarapuava:
seu territrio, sua gente, seus caminhos, sua histria (1999).
O segundo grupo historiogrfico, formado pelos profissionais de histria e seus
trabalhos em programas de mestrado e doutorado possui uma produo mais
diversificada e atualizada da histria de Guarapuava. Entre os diversos trabalhos
disponveis utilizamos os de Tembil, Kobelinski e Lacheski para fundamentar e
esclarecer os processos de constituio dos discursos sociopolticos e o processo de
urbanizao caracterstico local.
Tembil33
analisou as formas discursivas constitutivas das prticas e
representaes da elite guarapuavana a partir da dcada de 1950, durante o processo de
modernizao da cidade e que acabaram modificando a configurao do ncleo urbano
surgido no sculo XIX, rompendo seus vnculos com o passado. A autora prioriza a
anlise dos imaginrios em diferentes pocas e demonstra que num primeiro momento
(a partir de 1960) motivaram intervenes no espao urbano vinculadas aos ideais de
progresso e modernidade; e numa segunda etapa (a partir de 1990) inverteram o
discurso procurando privilegiar a preservao da memria e histria da cidade.
Contribuindo com o que foi dito, Kobelinski34
demonstrou em seu trabalho o
predomnio de uma propaganda oficial da cidade baseada nas transformaes urbanas
que aconteceram. Tais intervenes formaram uma imagem glamorosa da cidade devido
ao progresso que materializava-se em obras e na legislao atravs do primeiro Plano de
Urbanizao de 1967. As prticas administrativas e suas realizaes, divulgadas com a
colaborao da imprensa local procuraram mostrar uma cidade moderna e progressista
que, no entanto, no se apresentava dessa maneira para toda a populao.
Assim, definimos nosso recorte temporal a partir das especificidades do lugar
de estudo entre os anos de 1971 e 2011. Entendemos o ano de 1971 como recorte
inicial, devido a criao, atravs da Lei n 52/1971, do Fundo de Urbanizao de
Guarapuava (FURG) e da Companhia de Servios de Urbanizao de Guarapuava
(SURG), responsveis por receber e gerir os recursos para executar os servios urbanos
de que a cidade necessitava, como pavimentao de ruas, abertura de loteamentos,
canalizao de crregos e limpeza urbana.
33
TEMBIL, M.. op.cit. 34
KOBELINSKI, M.. op.cit.
-
27
Demarcamos o final de nossa pesquisa em 2011 por ser o ano da inaugurao,
pela Prefeitura Municipal de Guarapuava, do Aterro Sanitrio Municipal. A obra,
idealizada e projetada no incio da dcada de 1990 foi construda a partir de 2008 e
iniciou suas atividades em maio de 2011. A administrao municipal buscava dar fim ao
problema do Lixo e do destino do lixo urbano a partir da operao dessa obra de
engenharia.
Nossas fontes so compostas por documentos do Poder Legislativo e
Executivo, alm de peridicos locais. Foram pesquisados no Arquivo Histrico da
Cmara de Vereadores de Guarapuava, no Arquivo Histrico Municipal e Centro de
Documentao e Memria (CEDOC) na UNICENTRO e na Biblioteca Municipal da
Casa da Cultura Arlindo Trinco Ribeiro. Algumas leis consultadas durante a pesquisa
foram encontradas no sitio eletrnico da Prefeitura Municipal de Guarapuava35
e as
mais antigas foram consultadas nos respectivos livros anuais de registro de leis,
disponveis na Secretaria de Administrao da Prefeitura.
Elencamos uma srie de leis, s quais chamamos de legislao ambiental que
compe-se de leis que tratam de assuntos como o Plano Diretor, Cdigo de Posturas,
Zoneamento e uso do solo urbano, criao de reas de proteo ambiental e parques
municipais, alm do transporte de resduos e outros temas relacionados direta ou
indiretamente com nosso objeto de pesquisa, o lixo.
Tambm consultamos requerimentos dos vereadores e as Atas das Sesses da
Cmara de Vereadores em que foram discutidos e votados os projetos dessas leis para
que pudssemos entender seus trmites burocrticos e as discusses, quando havia, que
levaram a sua aprovao ou recusa. Alm dos debates relacionados aos projetos de lei,
consultamos as atas para tentar localizar as falas ou debates de vereadores que foram
citados pelos jornais por terem se pronunciado a respeito de determinados assuntos
relativos a temas ambientais.
Ao trabalharmos com os arquivos legislativos nos preocupamos em procurar
conhecer o funcionamento da administrao pblica do municpio durante a
temporalidade estabelecida para poder entender como leis, projetos de leis, sesses
legislativas, sanes e outros expedientes burocrticos funcionavam. Como foram
criados, discutidos e destinados dentro da mquina burocrtico-administrativa analisada.
Ao adentrarmos os arquivos para o trabalho de pesquisa das fontes, atentamos
para um olhar crtico em relao s fontes como requisito para uma interpretao 35
Disponvel em: .
-
28
correta, como nos casos de algumas atas das sesses da Cmara Municipal. Quando o
presidente era da situao e um vereador da oposio usava a tribuna para fazer crticas
ao executivo municipal, a ata citava que houve a crtica mas no trazia por escrito o teor
da mesma, nem citavam-se os partidos dos vereadores para no explicitar as diferenas,
ou deixar registro das desavenas. Desconfiamos das fontes, pois elas no so neutras e
os documentos devem ser julgados com a criticidade do olhar historiogrfico. Todo
documento est carregado de intenes daqueles que o produziram, quer sejam pessoas
ou instituies36
.
Um problema que enfrentamos em relao aos documentos do Arquivo
Histrico da Cmara de Vereadores foi que no incio de nossa consulta estavam
alocados em um espao da Casa que depois foi mudado em virtude de reformas nos
gabinetes dos vereadores, impedindo sua consulta. Logo aps houve a priso do
presidente da Cmara de Vereadores pelo Grupo Especial de Represso ao Crime
Organizado (GAECO) e denncias de corrupo envolvendo diversos outros
vereadores, o que provocou um atraso nos trabalhos, pois muitos documentos ficaram
sob a tutela do Ministrio Pblico.
Ainda com relao a isso, as reformas se estenderam mais que o esperado e o
Arquivo foi mudado de lugar por mais trs vezes at se encontrar um espao para aloc-
lo devidamente. Todas essas circunstncias acabaram acarretando prejuzos ao
trabalho de pesquisa e tambm a desorganizao de boa parte do acervo, alm da perda
de alguns documentos.
Alm da legislao e das Atas de sesses, o livro do Programa Planalto Verde
da Prefeitura de Guarapuava nos possibilitou conhecer as metas e aes propostos pelo
mesmo. Conseguimos um exemplar do Estatuto social da Companhia de Servios de
Urbanizao de Guarapuava (SURG) e os Relatrios Anuais da Secretaria de Meio
Ambiente e Desenvolvimento Florestal dos anos de 2004 e 2010 referentes ao balano
final e parcial, respectivamente, das duas ltimas administraes municipais.
Alm desses documentos a Secretaria nos forneceu os dois ltimos Planos
Municipais de Gerenciamento de Resduos Slidos dos anos de 2010 e 2012 onde
constam as aes, projetos e obras para o setor. Tambm foi disponibilizado pela
Prefeitura Municipal o Plano Municipal de Saneamento Bsico do ano de 2012 com
diversas informaes a respeito das condies sanitrias e de infraestrutura do
36
BACELLAR, C.. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In:PINSKY, C.B.Fontes
Histricas. So Paulo: Contexto, 2006.
-
29
municpio, alm do plano de investimentos para o setor e informaes relativas
limpeza urbana.
Com relao aos peridicos, utilizamos dois jornais de perodos diferentes para
problematizar questes na pesquisa. Sabemos que a imprensa comeou a ser usada
como fonte historiogrfica no incio dos anos 1970 e, na atualidade, o uso de tal fonte
tido como fundamental para analisar ideias e projetos polticos ou questes sociais. O
uso da imprensa peridica local como fonte de pesquisa visou produzir um trabalho
historiogrfico de maior valor interpretativo37
O uso de peridicos objetivou encontrar e trazer cena da histria outras
perspectivas que pudessem expressar a experincia de diversos grupos e camadas
sociais. Entendemos o uso dos jornais como uma possibilidade de encontrar neles
registros e representaes dos embates cotidianos na arena do poder no mbito da urbe.
Um dos jornais utilizados foi o Esquema Oeste, semanrio que trazia notcias
locais, estaduais e nacionais populao e circulou no perodo de 1970 a 1998. Nesse
perodo, existiam outros jornais na cidade como, por exemplo: a Folha do Oeste (1930-
1982), a Tribuna de Guarapuava (1994-1999) e a Folha de Guarapuava (1979-1980).
O Esquema Oeste, no entanto, foi o de maior durao no perodo pesquisado e
o que tem a coleo mais completa. Era composto de oito pginas, ampliadas no
decorrer dos anos 1980 para 11 pginas e em edies comemorativas no final do ano
tinha cerca de 20 pginas. Publicava reportagens de poltica, esporte, sociedade e sees
de colunistas locais, como a Coisas de Luis Antonio Pereira de Arajo, e a Tribuna,
escrita por Waldemar Garcia.
O editor e diretor era Leonel Jlio Farah, jornalista e poltico local, fato que
pode ter contribudo para que o jornal logo se tornasse o veculo de comunicao oficial
da Prefeitura de Guarapuava, publicando as leis, balanos e editais oficiais do
municpio.
O outro jornal utilizado foi o Dirio de Guarapuava que comeou a circular
na cidade e regio em 1998 e continua sendo publicado at este momento. Diferente do
Esquema que era impresso sem cores, o Dirio era colorido e tinha um formato
diferente do anterior. Sua tiragem era de cerca 23 mil exemplares e possua mais
pginas e algumas sees especficas como Poltica e Cidade. O jornal possui
vrios scios, entre eles o Grupo Tribuna de Comunicao, o maior grupo de mdia do
37
LUCA, T.R. de. Histria dos, nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, C.B.. Fontes histricas. So
Paulo: Contexto, 2006.
-
30
interior do Paran e tem como diretora presidente Delise Guarienti Almeida e como
diretor geral Andr Guarienti Almeida, que em entrevista reportagem comemorativa
aos 15 anos do Dirio salientaram sua orientao editorial [...] sempre na defesa dos
interesses da comunidade [...] sem cunho poltico e sempre trabalhando de forma
independente com iseno e responsabilidade.38
Os peridicos podem ser considerados fontes histricas e analisados como
documentos, mas sempre levando-se em conta que a notcia uma reconstruo dos
acontecimentos e no o espelho da sociedade ou dos fatos. Ela um relato do que
ocorreu e como tal possui limitaes, o que no quer dizer que o que foi relatado no
verdadeiro, mas uma aproximao do fato acontecido. Sendo um veculo de
comunicao de massa os jornais podem ser entendidos como espaos de representao
do social e problematizados nas pesquisas historiogrficas.
Dessa forma, pretendemos desenvolver nossa proposta de trabalho dentro dos
limites espao-temporais propostos e delimitados por nossos objetivos, procurando
estruturar nosso texto para, nos captulos a seguir, realizar uma interpretao da maneira
como nos propusemos.
Assim, no primeiro captulo denominado A questo ambiental e as polticas
pblicas como forma de compreenso histrica da sociedade definimos nossa
compreenso da questo ambiental como resultante dos impactos na natureza das
relaes estabelecidas com ela pela sociedade capitalista, demonstrando a necessidade
de uma mudana nos atuais padres insustentveis de produo e consumo da mesma.
A seguir estabelecemos um debate a respeito do conceito de Estado e sua funo no
estabelecimento de ordenamentos para a sociedade apontando como nosso referencial
terico o materialismo histrico. A partir disso procuramos empreender uma definio
do conceito de Polticas Pblicas como resultantes da mediao do Estado na busca de
solues para problemas da sociedade atravs da participao democrtica e, ao final,
elencamos as contribuies do ambientalismo para a formao de polticas pblicas
ambientais no mbito das conferncias da Organizao das Naes Unidas (ONU).
No segundo captulo intitulado Alguns caminhos das questes ambientais e do
lixo nas polticas pblicas, primeiramente procedemos um levantamento histrico da
formao de polticas pblicas para o meio ambiente no Brasil e ao final analisamos
algumas delas relacionadas aos resduos slidos e ao lixo especificamente. Na sequncia
38
15 anos de histria acompanhando o crescimento de Guarapuava e regio. Dirio de Guarapuava.
Guarapuava, 13 nov. 2013. Disponvel em:. Acesso em: 12/01/2014.
-
31
analisamos a temtica no mbito do estado do Paran utilizando as notcias dos jornais
Esquema Oeste e Dirio de Guarapuava para demonstrar a incorporao da temtica
ambiental e do lixo na agenda governamental, alm de seus efeitos para a sociedade
atravs da interpretao das mesmas.
No terceiro captulo Os caminhos do lixo na sociedade Guarapuavana
apresentamos nosso espao de estudo e procedemos uma retrospectiva de sua histria
recordando suas caractersticas socioeconmicas presentes na produo historiogrfica
para nos situarmos em relao s especificidades locais. A seguir apresentamos
algumas consideraes relacionadas s questes ambientais que localizamos em nossas
fontes e que direta ou indiretamente vinculam-se com a questo do lixo com o intuitode
demonstrar que a cidade apresentou outros problemas socioambientais dentro da
temporalidade pesquisada. Ao final elencamos as aes tomadas pelo poder pblico
municipal para solucionar os problemas relativos no s ao lixo mas outras demandas
socioambientais, com destaque para a criao da empresa de limpeza pblica, da
secretaria de meio ambiente e para os diversos projetos e programas implementados
pela Prefeitura com a colaborao da sociedade, destacando a caracterstica
incrementalista dessas polticas pblicas.
No quarto captulo, cujo ttulo Do lixo ao aterro: uma histria do lixo em
Guarapuava apresentamos a situao mais recente do problema utilizando informaes
coletadas nas fontes e na bibliografia especficas para identificar um panorama da
situao do lixo na cidade. Prosseguimos atravs de um histrico das aes tomadas
pela sociedade e pelo poder pblico relativas aos problemas socioambientais do lixo
urbano e, principalmente do lixo municipal, dividindo esta etapa em trs partes, sendo
a primeira de 1971 a 1976, e a segunda de 1977 a 1993. Estabelecemos a terceira parte,
que vai de 1993 a 2011, onde apresentamos as demandas sociais e administrativas para
concretizar a obra do aterro sanitrio.
Nas consideraes finais realizamos um balano de nossa pesquisa tecendo
observaes a respeito das polticas pblicas como elementos de ordenao e mediao
dos conflitos na sociedade e das responsabilidades inerentes s escolhas envolvidas nas
mesmas. Salientamos tambm questes atinentes questo dos resduos em Guarapuava
e seus desdobramentos na busca de uma sociedade sustentvel local e globalmente.
-
32
CAPTULO I
A QUESTO AMBIENTAL E AS POLTICAS PBLICAS COMO FORMA DE
COMPREENSO HISTRICA DA SOCIEDADE.
Se um homem gasta a metade de cada dia a passear pelas florestas
simplesmente por gostar delas, arrisca-se a ser considerado um
preguioso; mas se ele gasta o dia inteiro como especulador,
devastando a floresta e provocando a calvcie precoce da terra, a
ento ele ganhar a admirao de seus concidados como pessoa
ativa e empreendedora. Pode uma cidade se interessar por suas
florestas apenas para acabar com elas?!
Henry Thoreau
A citao de Thoreau nos permite questionar, assim como ele fez, qual o
interesse que nos move na relao com a natureza que nos cerca. Quais so os princpios
que norteiam essa relao? Seria a busca do lucro a todo custo com o trabalho, ou seria
o preguioso desinteresse financeiro da contemplao da natureza? O autor, em A vida
sem princpio, texto do qual faz parte o trecho acima, fazia pesadas crticas
pragmtica e utilitarista sociedade da Nova Inglaterra, onde residia e onde [...] no
era popular defender o prazer de trabalhar, a contemplao da natureza, o lazer, a
mltipla aptido pessoal; afinal de contas, ali o tempo era e ainda dinheiro1, segundo
Drummond.
Apesar das diferenas, levando-se em conta que o autor escreve no sculo XIX,
a comparao nos parece pertinente tendo em vista os problemas advindos das relaes
dos humanos com a natureza. Ao pensar em como nossa sociedade trata o meio
ambiente, ser que podemos dizer que o interesse mais econmico ou utilitarista do
que de respeito e admirao? Ser que podemos afirmar que nos interessamos mais em
acabar com nossas florestas do que em preserv-las? Valorizamos os seres
empreendedores e ativos, ainda que suas atividades causem problemas natureza e a
outros seres humanos?
Thoreau chamou nossa ateno para uma caracterstica de nossa sociedade
capitalista que no pode passar despercebida: o fato de nela considerar-se admirvel
ganhar dinheiro devastando a natureza, transformando-a em mercadoria e explorando
o trabalho. O autor escreveu no sculo XIX, expressando crticas aos valores
socioculturais estabelecidos, como trabalho, riqueza e ostentao, que ainda se
encontram presentes no mundo contemporneo.
1DRUMOND, J.A..Introduo. In: THOREAU, H..Desobedecendo A desobedincia civil & outros
escritos. Trad. Jos Augusto Drummond. So Paulo: Crculo do Livro, 1987. p.27.
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Como escritor e admirador da natureza, Thoreau [...] abre uma linhagem de
preservacionistas que desemboca diretamente nos modernos militantes e cientistas do
movimento ecolgico [...]2. Dessa maneira, ao utilizarmos a citao desse autor,
queremos chamar a ateno para os valores sociais envolvidos na questo ambiental,
que nos levam a questionar o modelo de sociedade em que vivemos.
Os cientistas naturais sabem que os componentes do mundo natural
tm uma realidade material, objetiva, independente da cultura humana, mas os cientistas sociais sabemos que a cultura um filtro subjetivo e nada neutro que se aplica inevitavelmente a eles. Um estudo sobre a natureza sem a considerao dos valores culturais
humanos legtimo, mas no um estudo socioambiental, e sim um
estudo de cincia natural, como a ecologia, ou a histria natural. O
plano simblico, valorativo ou cognitivo , portanto, parte necessria
de uma investigao socioambiental. bem verdade que os humanos
so animais que consomem recursos naturais, como quaisquer outros
seres vivos, mas, pelo que sabemos, eles so os nicos que emprestam
valores simblicos aos recursos que consomem.3
Reconhecemos que, ao levarmos em considerao os valores culturais,
subjetivos e sem neutralidade, envolvidos com a questo, chamamos a ateno para os
problemas que envolvem principalmente as sociedades urbano-capitalista-industriais e
sua relao com a natureza. Ressaltamos que essa relao pode ser analisada por
diferentes cincias, utilizando diversas teorias e sob a tica das mais variadas vises
cientficas, polticas, filosficas e religiosas.
A questo ecolgica reduz-se antes e acima de tudo a uma questo de
valores, ainda que a questo muito mais difcil da compreenso da
evoluo das inter-relaes materiais (o que Marx chamava relaes metablicas) entre os seres humanos e a natureza no seja, pois, minimamente alcanada.
4
Tendo em conta que a questo ecolgica nos coloca diante de uma disputa
entre valores conflitantes envolvidos na relao humanos-natureza, analisamos neste
primeiro captulo a questo ambiental e seus problemas para a sociedade e o Estado,
que, como produtores de novas prticas sociais e novos ordenamentos polticos e
jurdicos, objetivam resolver ou diminuir os impactos negativos de suas aes
relacionadas ao meio ambiente natural e humano. O Estado, atravs das chamadas
polticas pblicas, tenta estender seu controle sobre a sociedade, reduzindo os impactos
negativos, assim como suas causas e consequncias, a partir do seu ordenamento
jurdico.
2Idem, p.21.
3DRUMMOND, J.A..Cincia socioambiental: notas sobre uma abordagem necessariamente ecltica. In:
ROLIM,R.C.; et al.(Orgs.). Histria, espao e meio ambiente, Maring,p. 26,2000. (grifo do autor). 4FOSTER, J.B..A ecologia de Marx: materialismo e natureza.Trad. Maria Teresa Machado. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. p.25.
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Abordamos a questo do interesse econmico empresarial e sua influncia nas
aes do Estado e da sociedade para enfrentar a questo ambiental. Nosso objetivo
demonstrar a incorporao da questo ambiental legislao do Estado como
preocupao social e econmica, discutindo as influncias socioeconmicas que
colaboram para a incorporao do tema agenda poltica e legislao. Devemos
observar que a lei
[...] um meio pelo qual se executam processos sociais, polticos e
econmicos; um privilegiado instrumento de realizao do poder.[...]
A legislao traz em si um carter duplo: ao mesmo tempo em que
reflete costumes e valores sociais, fator determinante destes, na
medida em que normatiza comportamentos, introduz e reprime
valores. Nesse sentido, parece-nos bastante instigante a investigao
do que est ocultado pelo texto legal, do que se busca realizar por
meio dele.5
A lei cria e modifica valores, assim como sofre influncia de determinados
valores, individuais ou coletivos, presentes na sociedade durante o processo de
elaborao legislativo.
Iniciamos nossa explanao considerando como compreendemos a questo
ambiental e sua problemtica que afeta o planeta. Em seguida apresentamos algumas
perspectivas de entendimento do Estado como indutor de discusses e propostas de
polticas pblicas para o meio ambiente na sociedade. A seguir abordamos a formao
de polticas pblicas, demonstrando suas possibilidades de interpretao da sociedade a
partir da organizao e elaborao das mesmas, e apresentamos algumas possibilidades
de entendimento da questo em mbito mundial, relembrando a trajetria do movimento
ambientalista e dos debates e conferncias sobre o meio ambiente.
1 - A questo ambiental e a (des)ordem planetria.
Procuramos refletir sobre algo que acontece todos os dias onde existem seres
humanos. Nesses locais, ns nos relacionamos com nosso ambiente. Ao longo de nossa
histria, tornou-se hegemnica uma viso judaico-crist que justificou a separao e a
dominao da natureza, mas que no a nica. Dessa maneira, os seres humanos
instituram sobre a Terra o seu domnio e passaram a utiliz-la ao seu bel prazer.
[...] toda cultura elabora os seus conceitos, inclusive o de natureza, ao
mesmo tempo em que institui as suas relaes sociais. Em nossa
sociedade, por exemplo, a natureza vista como algo passvel de ser
dominado e submetido ao Homem todo-poderoso... E s no v quem
5MOREIRA, T.C..A crise ambiental como um desafio ao direito contemporneo. : ROLIM,R.C.; et
al.(Orgs.). Histria, espao e meio ambiente, Maring, p. 68, 2000.
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no quer a ntima relao dessa idia com os propsitos de dominao
e submisso de um homem por outro homem.6
No longo caminho do caudal histrico social do qual somos parte, os cientistas
e pesquisadores procuraram formas de interpretar a sociedade e represent-la, de
diversas maneiras. O ser humano conhece o mundo por meio de seus sentidos e com seu
entendimento busca maneiras de represent-lo aos outros. As maneiras como fazemos
essa interpretao variaram de acordo com as pocas e os momentos cientficos que a
humanidade percorreu.
Vivemos em uma era planetria, [...] que comea com a descoberta de que a
Terra no seno um planeta e com a entrada em comunicao das diversas partes
desse planeta[...]7, e indagamos a respeito das escolhas de desenvolvimento que so
tomadas na sociedade. Quem as toma? Quais so os critrios ou interesses que norteiam
a deciso de investir bilhes de dlares numa sonda espacial e no em ajuda
humanitria? Quem so os seres humanos que escolhem acabar com uma floresta para
escavar uma reserva de cobre? Questionamos para procurar entender como so
formadas as opinies, divulgadas as informaes e tomadas as decises a respeito do
que a sociedade deve fazer para continuar no caminho do desenvolvimento e do
progresso. Progresso para quem? Desenvolvimento do que?
A viso de progresso e de desenvolvimento como constituidores da
potncia histrica no neutra. Ela tem um sentido etnocntrico
ocidental, estando enraizada nos primrdios por um entendimento de
unidade da histria universal, periodizada linearmente com uma
imagem de caminhada progressiva do homem, resultante da
concepo judaico-crist da histria.
Essa idia recebeu um impulso decisivo, tornando-se hegemnica a
partir do Iluminismo, quando, por uma determinada razo subsidiada
pelo prprio esprito do capitalismo, funda a civilizao industrial. No
primeiro momento, essa idia postulava a satisfao das necessidades
materiais e espirituais, fincando uma clara ciso entre o homem e o
meio ambiente.
O progresso est embasado em uma noo cumulativa linear,
pressupondo um crescimento quantitativo e um melhoramento
qualitativo, como se no pudesse existir dissociao entre esses dois
fatores.8
As ideias de progresso e desenvolvimento, fruto do etnocentrismo ocidental
burgus, so produzidas e exercidas na sociedade capitalista para beneficiar apenas uma
parte dessa sociedade e separar os humanos da natureza. A busca do progresso e do
desenvolvimento tambm responsvel por uma srie de degradaes
6GONALVES, C.W.P.. Os (des)caminhos do meio ambiente. So Paulo: Contexto, 2001. p.97.
7MORIN, E.;KERN, A.B.. Terra-Ptria. Trad. Paulo A.N.da Silva. Porto Alegre: Sulina, 1995. p.22.
8ALMEIDA, J.P. de. A instrumentalizao da natureza pela cincia. Revista Projeto Histria. So
Paulo, n. 23, p.184 e 185, nov. 2001.
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socioambientais que por sua vez afetam toda a sociedade. Uma conscincia ecolgica
planetria necessria aos seres humanos em vista da multiplicao de degradaes
ambientais e da poluio que ocorre na biosfera terrestre.
Vinculada condio de ser no mundo, a questo ambiental
fundamental existncia humana, pois do ambiente que provm a
base material de reproduo da vida, alis, das diversas formas de
vida. Em outras palavras, do ambiente que so extrados os recursos
para produo de abrigo, alimento, artefatos tcnicos, vesturio, entre
tantas outras coisas necessrias manuteno da vida, qualquer que
seja a forma de organizao social que os humanos estabeleceram ao
longo de milhares de anos de presena no planeta.9
Dependemos do ambiente para vivermos no planeta, pois o ambiente prov os
recursos materiais de que precisamos para a manuteno da vida. A partir da segunda
metade do sculo XX, vivemos uma crise mundial de desenvolvimento ligada ao
problema cultural/civilizacional e ao problema ecolgico10. A superao desse
dilema, buscada tanto pelo capitalismo quanto pelo socialismo, nos colocou no final do
sculo passado sob a hegemonia da sociedade capitalista industrial e de um pensamento
fragmentrio e crematstico11
que resolve os problemas de maneira parcial, de acordo
com seus interesses.
A importncia e o interesse a respeito das questes ambientais por parte da
populao de maneira geral e dos cientistas especificamente nos leva a pensar que esta
uma das tendncias dos estudos historiogrficos, notadamente a partir dos anos 1990.
Assim,
A natureza passou a ser foco de ateno das prticas sociais e passou a
ser projetada como espao de relaes a ser repensado neste fim de
sculo. Isto ocorreu, tanto no meio acadmico como no poltico, no
econmico e no social, conduzindo a uma nova forma de pensar a
relao homem-natureza12
.
Salientamos que, imbudos dessa nova forma de pensar, que nos leva busca
de uma outra relao social com a natureza, entendemos a ideia de natureza como
9 RIBEIRO, W. C..Teorias socioambientais: em busca de uma nova sociedade. Estudos Avanados. So
Paulo, USP, 24(68), 2010, p. 9. 10
MORIN, E.;KERN, A.B.. opcit, p. 75. 11
Segundo Carlos Walter Porto Gonalves, para Aristteles a crematstica era entendida como a busca
incessante de riqueza e o estudo da relao entre os preos das mercadorias. Gonalves utilizou o termo
ao explicar o significado de riqueza, que est relacionado ao valor de troca, sendo este determinado pela
escassez; mas riqueza no escassez e sim abundncia. Ou seja, os bens naturais (gua, ar) por serem abundantes no so considerados bens econmicos, at que se tornam escassos devido por exemplo,
poluio. Portanto, de acordo com o pressuposto de que a privao/escassez resulta riqueza; torna-se
necessrio que a maioria dos humanos no seja proprietrio, comeando pela prpria natureza (terras,
florestas, reservas minerais, nascentes) como condio para instaurar o reino da economia mercantil (a crematstica de Aristteles). GONALVES, C.W.P.. op.cit., passim. 12
PAULA, Z.C. Uma face da relao homem/natureza. Ps-Histria,Assis/SP: UNESP, v.5, 1997, p.185.
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sendo uma criao cultural dos seres humanos, instituda por meio de prticas e relaes
sociais, sendo por essa razo engajada em valores no mundo contemporneo.
Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada
idia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza no
natural, sendo na verdade criado e institudo pelos homens. Constitui
um dos pilares atravs do qual os homens erguem as suas relaes
sociais, sua produo material e espiritual, enfim, a sua cultura.
Dessa forma, fundamental que reflitamos e analisemos como foi e
como concebida a natureza na nossa sociedade, o que tem servido
como um dos suportes para o modo como produzimos e vivemos, que
tantos problemas nos tem causado e contra o qual constitumos o
movimento ecolgico.13
Tal ideia do que seja natureza vincula-se umbilicalmente aos interesses de
determinados grupos da classe social dominante, responsveis pela manuteno de um
modo de vida baseado no consumo, sem limites, de recursos naturais e na alienao
poltico-social da fora laboral e intelectual. A chamada questo ambiental decorre dos
problemas gerados pelas formas de produzir e consumir no interior do sistema
capitalista que, ao privilegiar uma viso econmico-crematstica da vida, altera com
suas atividades o conjunto dos elementos responsveis pela manuteno da dinmica de
funcionamento ambiental planetrio. No entanto, com relao s formas de produzir na
sociedade, Gonalves nos adverte que:
[...] na nossa sociedade, a maior parte da populao no dispe da
terra e dos demais recursos naturais e, portanto, no diretamente
responsvel pelo uso que dado a esses recursos. Os proprietrios das
terras e de outros meios de produo que, em funo da prpria
concorrncia, vem-se compelidos a aumentar a produtividade de suas
empresas sob pena de deixarem de ser capitalistas. E, para isso,
lanam mo das tcnicas mais eficazes, sejam elas ecolgicas ou no.
Deste modo, no respeitam os tempos dos ecossistemas ou os humores
dos trabalhadores, como bem o demonstrou Charles Chaplin em
Tempos Modernos.14
Dessa maneira, as alteraes causadas pela ao de seres humanos no
ecossistema, a exemplo da poluio, causam a destruio do ambiente ao impedir [...]
que os ciclos naturais continuem funcionando eficientemente, devido aos detritos
acumulados e ou esgotamento dos recursos naturais pela velocidade e intensidade da
explorao[...]15. O tempo de resposta do meio natural para recuperar-se dos efeitos da
degradao e da poluio superior ao tempo da indstria, do consumo e do descarte
que vigoram na sociedade e se aceleram cada vez mais.
13
GONALVES, C.W.P..op.cit., p.23 e 24. (grifo do autor) 14
Idem, p.115. (grifo do autor) 15
ALMEIDA, Jozimar P. de. A questo ambiental: contribuio a um caosmo da Histria. Ps-
Histria,Assis/SP, v.4, p. 181, 1996.
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Dentro da lgica do sistema capitalista ocorre, segundo Almeida, a
matematizao da natureza numa tentativa de torn-la infinita como os nmeros, para
convencer o restante da sociedade [...] que a cornucpia do meio ambiente nunca se
esgotar de fornecer matria-prima e energia e de receber o lixo da produo [...]16 e do
consumo vigentes na sociedade.
Vivemos uma poca de transformao planetria em que se discute qual
caminho tomaremos rumo ao futuro da espcie humana. Com o desenvolvimento das
cincias chegamos ao consenso a respeito da finitude dos recursos naturais, sem os
quais nossa sociedade no sobreviveria, e tambm de nossas parcas possibilidades de
resoluo dos problemas ambientais globais de maneira isolada.
Questes complexas, como a poluio das guas, efeito estufa, mudana
climtica, buraco da camada de oznio na Antrtica, aumento do nvel dos oceanos, que
atingem a humanidade se misturam a problemas locais, mas com repercusso global
pelo efeito cumulativo e de disperso.
Consumismo, poluio do ar nos grandes centros, engarrafamentos, falta de
esgoto, problemas de sade e o destino do lixo domstico, comercial e industrial, apesar
de terem sido minimizados em pases desenvolvidos, ainda so um srio problema
socioambiental nos pases menos desenvolvidos.
A questo ambiental nos coloca[...] diante de questes de claro sentido tico,
filosfico e poltico[...]17, apontando para as dificuldades que se mostram na resoluo
de tais dilemas ambientais e da dificuldade em nos desprendermos de um pensamento
do sculo XVII que sobreviveu at hoje.
Nos ltimos duzentos anos construiu-se uma noo que se tornou hegemnica
de que a tcnica e a tecnologia poderiam resolver todos os problemas que surgissem na
sociedade e no planeta. No entanto, houve e h crticas a essa forma de pensar, viver e
produzir, que nos levam a reavaliarmos nossa relao com o planeta e com as outras
formas de vida nele existentes.
Ns somos seres biolgicos, culturais e histricos e estamos ligados natureza,
ao ambiente no qual estamos inseridos, sendo necessrio pensarmos nessa relao
natureza/sociedade e nas suas consequncias. O envolvimento da sociedade com a
natureza, de maneira complexa e dinmica resulta em processos acentuadamente
16
Idem, p. 184. 17
GONALVES, C. W. P..op. cit., p.18.
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desestabilizadores para o mundo natural, pois os seres humanos retiram da natureza
muito mais do que necessrio manuteno da vida.
Tal fato decorrente de que o sistema capitalista criou necessidades
socialmente constitudas que provocam o aumento da demanda por recursos naturais,
que por sua vez no podem ser renovados de acordo com o tempo social, dependendo de
processos naturais que demandam um perodo maior que o da lgica capitalista, cujo
objetivo prioritrio a multiplicao do capital no menor tempo possvel.
Quando se sabe que 20% dos habitantes mais ricos do planeta
consomem cerca de 80% da matria-prima e energia produzidas
anualmente, vemo-nos diante de um modelo-limite. Afinal, seriam
necessrios cinco planetas para oferecermos a todos os habitantes da
Terra o atual estilo de vida que, vivido pelos ricos dos pases ricos e
pelos ricos dos pases pobres, em boa parte pretendido por aqueles
que no partilham esse estilo de vida. Vemos, assim, que no a
populao pobre que est colocando o planeta e a humanidade em
risco, como insinua o discurso malthusiano.
A promessa moderna de que os homens e mulheres, sendo iguais por
princpio, so iguais na prtica no pode concretamente ser realizada
se a referncia de estilo de vida para essa igualdade for o american
way of life.18
O estilo de vida que levamos tem impacto direto no ambiente terrestre. Quanto
mais generalizada a sociedade de consumo maiores sero os desafios, visto que o ideal
consumista deve ser pretendido pelo maior nmero de pessoas possvel e isso tem
impacto direto no uso dos recursos naturais.
Ao pensarmos nessa relao entre a sociedade e a natureza no podemos
entender o mundo separando em nossa reflexo os seres humanos da natureza.
Compreendemos que, como seres humanos, fazemos parte de um nico e frgil sistema
de vida planetrio que, por meio de interaes complexas entre suas partes produz o
mundo como o vemos; entendemos isso segundo nossa insero histrico-cultural na
sociedade.
Este mundo analisado e produzido pelas relaes estabelecidas entre seres
humanos e natureza , a nosso ver, um local onde foi rompido a homeostase, o
equilbrio da vida, que aos poucos deixa de existir. Nesse planeta onde estamos vivendo
e produzindo esta reflexo histrica, onde tentamos construir sentidos e onde tentamos
interpret-los, existe uma tendncia de que:
[...] o processo de ampliao da velocidade produtiva por intermdio
da cincia e tcnica, conjugado com o aumento da quantidade de
produtos a serem transformados, intervm diretamente, e em larga
18
Idem, p.31. (grifo do autor).
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escala ampliando o grau de desestabilizao entrpica, no
funcionamento da natureza[...].19
Dessa maneira, na sociedade capitalista e globalizada, a ampliao da produo
pelo uso intensivo da tecnologia e da criao de necessidades de consumo rompe o
equilbrio do sistema de vida planetrio. Ao acelerarmos o ritmo da produo e do
consumo no damos tempo para que os processos naturais aconteam de maneira
adequada. Sobrecarregamos o planeta com uma quantidade de resduos acumulados e
concentrados em pores do territrio que muitas vezes no so adequados e, assim,
destrumos o equilbrio do ecossistema, prejudicando a teia da vida.
Entendemos que a questo ambiental fruto de um modelo de civilizao
baseado nas ideias de progresso e desenvolvimento, que propagam a dominao da
natureza pela humanidade. Em nosso entender, questionamos as noes e prticas
estabelecidas de progresso e de desenvolvimento por expressarem o poder de dominar e
explorar destrutivamente os recursos naturais e os seres vivos.
A sociedade capitalista demanda que utilizemos os recursos naturais pela
imposio de ritmos e mtodos industriais em todos os sistemas sociais. Assim,
modificaram-se geneticamente plantas e inseminaram-se embries em animais,
modificando ou melhorando caractersticas genticas. Com isso pretendeu-se acelerar a
engorda com raes e hormnios para reduzir o tempo de abate dos animais ou
aumentar a resistncia a doenas nas plantas. Intensificou-se e industrializou-se um
tempo que era natural, para que pudesse acompanhar o ritmo exigido pela produo
industrial.
A conservao de alimentos com produtos qumicos e adies de sdio para
evitar que se deteriorem e aumentar seu prazo para consumo e a produo de tecidos e
roupas em que se projetam novas fibras e fios sintticos derivados do petrleo, mais
maleveis que os naturais, tambm podem ser citados como exemplos dessas
modificaes colocadas em prtica pelos interesses industriais.
Outro aspecto relevante do sistema produtivo, no entanto, permanece nas
sombras do sistema e diz respeito aos resduos e dejetos resultantes das atividades
desenvolvidas pelos seres humanos em seu ambiente, notadamente pelo setor ind