vulgaridades teóricas debilitadoras do marxismo como força política na contemporaneidade: "a...
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O artigo trata de como a falta de uma dialética das mediações pode enredar o marxismo num jogo de bem contra mal bem ao contrário do que gostaria o autor de O Capital.TRANSCRIPT
Vulgaridades teóricas
debilitadoras do marxismo: "a mais-valia é um roubo",
"o capitalista não trabalha", "o Estado é o
escritório da burguesia".
Glaucia Angélica Campregher* Lucas Schönhofen Longoni**
(* Professora do Departamento de Economia da Univer sidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). ** Graduando em Ciências Econômicas pela Universida de Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS))
ABSTRACT O artigo defende a necessidade de reforçarmos a compreensão das mediações dialéticas
que nos permitem compreender que fenômenos imediatos estão imbuídos de uma lógica
contraditória. Lógica esta só percebida quando se persegue os links, ou encadeamentos e
desdobramentos, das formas históricas. Formas estas que, por sua vez, só podem ser
percebidas enquanto tais se não identificamos no imediato a única forma possível de
existência do que quer que seja. Sendo assim, a mais-valia não é apenas o lucro surgido na
esfera da troca; o capitalista não é apenas a pessoa beneficiada pela apropriação ocorrida
também nesta esfera; e o Estado não é a operacionalização de um conjunto de ações
facilmente definidas visando a dominação.
Palavras chave: dialética, marxismo, mais-valia, estado
Introdução
Partimos no presente trabalho da constatação de que a construção intentada por Marx do
"socialismo científico" só pode elevar as questões práticas - dos interesses, dos valores, da moral -
ao status de problema científico por ter se baseado num método ainda hoje de conhecimento não
trivial. A sua "inversão da dialética hegeliana" tornou possível, de um lado, as críticas da ciência e
da política de sua época (a economia política inglesa e as utopias políticas liberais e socialistas) e,
de outro, uma concepção do homem ao mesmo tempo condicionado historicamente e livre
ontologicamente. Sua crítica da ideologia escaparia de ser ela mesma ideológica, dado seu ponto de
partida totalizante. Assim sendo, sua defesa dos interesses do proletariado seria feita desde um
ponto de vista maior e imparcial - mais amplo e mais vasto no tempo e no espaço - que não
necessitava do encobrimento dos interesses parciais - no tempo e no espaço precisos - mas do seu
desnudamento.
É nosso ponto de vista que para se manter vivo e respondendo aos problemas teóricos e
prático-políticos enredados inclusive por sua própria intervenção no mundo, o marxismo teria de
continuar refinando esse sofisticado tecer de mediações entre parte e todo conseguido pela dialética
hegelo-marxiana. No entanto, as considerações metodológicas foram se enredando em território à
parte do mundo real, em complexas e sofisticadas discussões acadêmicas, deixando caminho aberto
para uma vulgarização do marxismo que apela frequentemente à parcialidade das considerações
sem as mediações devidas. Três delas nos parecem exemplares. A primeira, e mais simples, diz
respeito à consideração da mais-valia como "roubo", a despeito de todo o esforço de Marx em O
Capital para qualificar o processo de expropriação do trabalho coletivo que ocorre na produção
como algo impossível de ser compreendido corretamente a partir da noção de roubo ou enganação,
bem próprios ao processo de troca. Consideração esta que vai trazer enormes prejuízos - novamente
teórico-práticos (ou seja, políticos) - ao dar a entender que se pode calcular a mais-valia individual
sobre a contribuição de cada trabalhador na produção direta ou os lucros individuais como se a taxa
de lucro não tivesse uma determinação sistêmica, devida não apenas à concorrência como à própria
organização das formas de propriedade. Esse problema que remete à famosa discussão da
transformação dos valores em preços é um bom exemplo do que ocorre com o legado marxista pois,
se alguns o debatem em publicações acadêmicas sofisticadas, no dia a dia, mesmo da academia,
apenas é mencionado, de tal modo que um aluno de economia, tanto quanto um sindicalista,
acreditam mesmo ser fácil calcular a exploração.
A segunda se relaciona a esta primeira e diz respeito à vulgata de que, por ser a acumulação
de capital o destino do sobre-trabalho do trabalhador coletivo, o capitalista proprietário é, ele
mesmo, um bufão ladrão, fundamentalmente um indivíduo que não trabalha. Concepção esta que de
imediato faz crer que o trabalho de organização do trabalho, não é trabalho ele mesmo. Defendemos
aqui que as atividades de organização, seja do trabalhador coletivo, seja do capital coletivo, são
uma certa forma de trabalho. De certo modo um trabalho de racionalização, ainda que de uma razão
subordinada aos ditames do capital. A nosso ver, a construção de novas experiências de socialismo
terá de enfrentar esta difícil questão do trabalho de gestão do todo. É ingênua a fantasia marxiana de
que cada um possa decidir o que fará pela manhã, tarde ou noite, como se todo o trabalho feito para
o conjunto da sociedade fosse realizado por máquinas, e como se ainda a manutenção de estruturas
e instituições não exigisse um trabalho, digamos, obrigatório. Também é ingênua a ideia de que as
trocas (econômicas e sociais, ou seja, aquelas relativas a interesses, liberdades) possam ser diretas
sem a mediação de nenhuma forma de Estado ou mercado. Do nosso ponto de vista, o que o
socialismo terá de fazer é construir instâncias de mediação compatíveis com a não exploração e a
alienação capitalistas.
A terceira e última consideração, talvez a mais complexa, tem justo a ver com essa questão,
do Estado como instância de mediação. Defendemos que este tema foi tratado com descuido pelos
fundadores do marxismo, Marx e Engels. Tendo sido sempre adiado e merecendo atenção apenas
quando da análise de eventos específicos (a despeito dos esforços mais dedicados de Engels), o
Estado é tratado de modo quase vulgar, com descuido das mediações entre parte e todo e entre
classes em luta. Se Marx e Engels por vezes simplificam demasiadamente suas impressões sobre o
Estado é porque acreditavam que o desdobramento das categorias (mercadoria, valor, dinheiro e
capital) seria suficiente para explicar a realidade das lutas de classes. Contudo, a importância de ter
o Estado como mediação – o que equivale a vê-lo, como dirá Poulantzas, como relação (e não como
sujeito ao modo liberal, ou como objeto ao modo marxista clássico) – significa colocá-lo dentro do
movimento destas categorias, pois só assim conseguimos entender as formas específicas que ele
assume no desenrolar da história concreta. Na falta de uma compreensão maior das formas
concretas do Estado, o pensamento marxista deixa de alimentar projetos políticos exequíveis,
buscando construir uma crítica que se ausenta totalmente das instituições vigentes e vendo uma
suposta essência a ser atingida com um só movimento (revolucionário) para além do campo de ação
posto diante de nós.
Para o desenvolvimento das teses expostas acima, este trabalho contém quatro seções, além
desta Introdução: a primeira destinada ao esclarecimento de questões metodológicas preliminares
que nos permitem ir além de uma concepção maniqueísta do marxismo como oposição moral; a
segunda dedicada à discussão do lucro como criação de riqueza nova antes indisponível, que impõe
a preponderância da produção sobre a circulação; a terceira dedicada à discussão da natureza do
trabalho dos que organizam (direta ou indiretamente) o trabalho social e os capitais privados com
fins de valorização em escala; e a última dedicada ao Estado como espaço de mediação entre as
classes em conflito, o que faz com que a dimensão de organização dos interesses dominantes seja
mais importante que a mera execução de tarefas a priori conhecidas.
1) Considerações preliminares sobre a dialética hegeliana - imediato x mediado e senhor x
escravo - e a dialética marxiana da forma abstrata do trabalho no capitalismo.
Sem nos atermos em querelas filosóficas demasiado sofisticadas, queremos destacar apenas
que vemos na dialética hegelo-marxiana o ponto de partida racional mais eficaz para trabalharmos
com concepções de mundo que sejam ao mesmo tempo interessadas e neutras, ou neutras porque
interessadas. Ou seja, o reconhecimento de que o nosso olhar é um olhar interessado - e, portanto,
parcial - menos contamina e ideologiza nossas teses que a afirmação (verdadeiramente ou
falsamente ingênua) de que podemos estar acima de interesses. Isso significa que vemos o ponto de
vista da totalidade não como um ponto de vista sobre-humano ou supra-histórico, ou ainda, a nossa
narrativa como uma meta-narrativa a julgar todas as outras; mas com uma narrativa melhor
adaptada para negociar com estas, o que seria mais verdadeiro. Ou seja, a nossa capacidade de
incluir a dimensão oposta, o aparente equívoco ou mero erro, no nosso próprio raciocínio, é o que o
torna mais potente, mas nunca eterno ou absoluto.
Muitos hão de pensar que se trata de uma concepção relativista de mundo, mas preferimos
pensar que se trata menos de uma relativização do absoluto (de tal modo a se admitir que não haja
qualquer papel para um operador verdade objetivo) que de uma absolutização do relativo, onde se
pensa que verdades são possíveis e úteis, mesmo que carregadas de negatividade. Essa negatividade
resta então menos que subjetiva, referida aos sujeitos dos discursos, e mais objetiva. O que significa
mais do que dizer que os objetos jamais possam ser captados pela razão em sua plenitude, à maneira
kantiana; mas que a razão, que se instala justo quando o pensar começa a operar, estabelecendo uma
relação sujeito/objeto, capta do objeto justo o principal: a sua negatividade radical – qual seja de
que ele próprio é finito, instável, estado de passagem a outro estado. Sendo possível um
“pensamento do conceito”, à la Hegel, que capte justamente essa unidade na negatividade, é
possível uma verdade que se estabeleça no conhecimento do que chamamos o algoritmo da
mudança, que é o que há de mais essencial a ser conhecido. Afinal, como bem o diz Safatle (2012):
“Em Hegel, o conceito traz as cicatrizes do fracasso reiterado em apreender aquilo que se dá como conteúdo da experiência. E se as feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes é porque o conceito aprende que, em certos momentos, fracassar a apreensão do conteúdo é a única maneira de manifestar aquilo que é da ordem da essência dos objetos”.
O pensar conceitual é o grande legado da filosofia hegeliana apreendido por Marx. Este
entendeu bem que para apreender a verdade do mundo em sua objetividade máxima seria preciso
entender a essência social e histórica das concepções do sujeito que não podem ser separadas do
movimento da própria realidade objetiva. Por isso mesmo o conceito de mercadoria, por exemplo,
não poderia jamais ser pensado por Aristóteles, tendo em vista que não havia condições objetivas
para a existência da mercadoria na sociedade aristotélica. Se existe um conceito de mercadoria é
porque ele existe acima e/ou ao lado das “n” mercadorias particulares. Um pensar conceitual estaria
preparado assim para perceber as coisas para além de sua percepção no imediato, não num um além
transcendental (como poderia querer um Pareto1), mas inserido no contexto histórico-social.
1 Numa demonstração ímpar de preconceito contra o raciocínio mais complexo, Pareto irá fazer o elogio da redução dos objetos à sua percepção na realidade imediata pelo sujeito (o que deixa sem problematizações todo o jogo de representações que os torna de fato apreensíveis por nós). Em seu Manual de Economia Política, ele se solidariza com
É importante começarmos nossa reflexão aqui sobre o pensar conceitual de Marx, a partir da
dialética de Hegel, porque é essa compreensão que faz da identificação das contradições que
movem a sociedade o diferencial da obra marxiana. Por outro lado, é a dificuldade em conviver
com a contradição (seja no mundo real, da ação política inclusive, como no discurso científico) - o
ser e não ser ao mesmo tempo isso e aquilo - que explica um sem número de simplificações dessa
mesma obra. Assim antes de analisarmos cada uma das três inverdades que acreditamos subsistirem
dentro do universo marxista é preciso que exploremos, ainda que marginalmente, porque estas
inverdades puderam ter lugar.
Citamos no título desta seção dois pares de oposições hegelianas (imediato x mediato e
senhor x escravo) que, a nosso ver, uma vez mal compreendidas em sua íntima relação, irão dar
numa compreensão equivocada - promovendo mais o julgamento moral preso às formas presentes
que a compreensão dialética que entende o movimento de passagem de uma forma a outra2. Logo,
para não termos uma compreensão estática, maniqueísta ou moralista das oposições marxianas que
são nosso objeto aqui - roubo x lucro, capitalistas x trabalhadores, e estado de classe x de todos (que
esconde uma outra contradição entre eternidade das instâncias de mediação x fantasia da sua
superação), precisamos fazer um detour rápido à dialética hegeliana do imediato x o mediado, e do
senhor x escravo.
A difícil reflexão hegeliana na Fenomenologia do Espírito almeja, como salientado por
inúmeros intérpretes3, tornar-nos conscientes de quão pouco o somos do como processamos as
nossas experiências. Para tanto, em primeiríssimo lugar, Hegel deverá mostrar como a “certeza
sensível” não é certa de nada. O que a princípio parece dizer a coisa na sua máxima plenitude
porque capturada no “aqui e agora”, aparentemente poderoso justo porque não requer qualquer
mediação, é na verdade uma ilusão pois, i) só capta da coisa o seu momento que ii) só é neste
momento, neste lugar, e esta coisa precisamente, justo por não ser outro o momento, o lugar, ou
outra coisa qualquer. Ou seja, mesmo o este/isto, aqui, e agora, só são o que são comparados a
outros estes/istos, aquis e agoras. Estes dêiticos são meros indicadores4, sendo que o que mais
indicam é quão insuficientes são para dizer da coisa o que ela é. Isto só seria possível tendo outras
coisas como parâmetros. Como diz Safatle (2012) eles são algo como shifters, unidades gramaticais
que só podem ser definidas junto ao que referem, ao ato mesmo de enunciação, funcionando dentro
de um contexto, portanto. Logo, impõe-se uma estruturação de contextos para compreendermos as
Diógenes e ridiculariza Platão por este ter olhos que vêm coisas demais, uma vez que viam uma “essência da xícara, qualidade de ser uma xícara, a xícara em si”, por trás da xícara. Diz ele: “Devo confessar ao leitor que sou quase tão cego quanto Diógenes, e que a essência das coisas me escapa inteiramente” (PARETO, 1996, p. 53). 2 É por isso que a defesa da ação consciente dos homens sobre a história que propõe o marxismo está longe de ser voluntarista. O socialismo científico requer pois a compreensão das contradições. Se queremos atuar na história temos de reconhecer que a herdamos em movimento. Para decifrar o código desse movimento não podemos estabilizar os opostos nas suas formas presentes, mas ver como estas estão se alterando mutuamente. 3 Vide os comentários de Henrique Vaz na apresentação desta obra onde o estudioso mostra o porquê de Hegel chamar a Fenomenologia de a “ciência da experiência da consciência” (HEGEL apud VAZ, 1992, p. 10). 4 Como explica Paulo Arantes: “O dêitico ‘agora’ não remete à ‘realidade’, nem a posições objetivas no tempo, mas à enunciação, cada vez única, que o contém e assim reflete seu próprio emprego, ou seja, remete à mensagem, é enfim auto-referencial ou, na língua hegeliana, mostra-se como ‘simplicidade mediatizada’” (ARANTES, 1977, p. 389).
designações que se dão dentro destes. É o necessário ‘isto em relação a que?’. Isto significa impor
uma distância entre o imediato e o real, e uma aproximação deste com a linguagem (e todo o jogo
de representações que lhe será sempre, de algum modo, anterior). Ou ainda, não existe um
imediato, virgem, natural, onde a compreensão do que está a ocorrer é instantânea. Mesmo o
imediato é fruto de mediações.
Vemos o convite hegeliano como, de certo modo, humilde. Trata-se menos do
estabelecimento de um “tribunal da razão” (Kant) que fiscaliza os usos e abusos desta no seu
exercício de apreensão do real, e mais do reconhecimento de que a falha é estrutural - pois que há
uma “exterioridade irredutível do sensível ao dizível”5. Mas trata-se de uma humildade relativa,
uma vez que Hegel acredita que o conceito pode fazer a reconciliação entre o significado da coisa e
o seu designar pela linguagem.
Não podemos nos deter aqui a explicar como seria isso6, apenas deixamos marcado que, é ao
se relacionarem entre si, que todas as coisas, umas e outras, vão determinando seus limites de
existência. Mas, o importante para nós, é reter que a consciência só alcançará a verdade das coisas
quando se perguntar sobre quais são os processos sociais que sustentam suas expectativas
cognitivo-instrumentais, dado que, como dirá Brandon, não há uma só ideia transcendental que não
seja uma instituição social7. Isso significa que o pensamento não é uma mediação do meu cérebro
com o mundo externo, mas o legado das mediações anteriores, de todos os homens que me
antecederam com seus mundos, que funciona como pano de fundo para que eu registre o meu.
Acreditamos que o que foi dito até aqui seja suficiente para mostrar como a dialética
hegeliana aponta para um exercício radical de mediação. Mas ainda assim falamos desse processo
em abstrato. Uma maior concretização dele encontramos no próprio Hegel e em sua dialética do
Senhor e do Escravo (DSE). A tese geral de Hegel é que: "A consciência-de-si é a reflexão, a partir
do ser do mundo sensível e percebido; é essencialmente o retorno a partir do ser-Outro" (HEGEL,
1992, p. 120). E isso valeria tanto para a razão universal, que ao longo da história vai tomando
consciência de si nas controvérsias nas quais vai se enredando, como para a consciência individual
(lembrando que a possibilidade de que haja uma consciência individual é também um produto dos
tempos). Qualquer ideia só se formula contra uma outra, como também qualquer forma de
organização da matéria. O interessante da DSE é que há um intrincado de relações entre estes dois
5 Toda vez que vamos dizer/pensar algo, o designamos como um universal que ele não é; enunciamos o sensível como um universal, sendo que universais são próprios da nossa linguagem e não do real. Como diz Hegel: “O que dizemos é: isto, quer dizer, o isto universal; ou então: ele é, ou seja, o ser em geral. Com isto, não nos representamos, de certo, o isto universal, ou o ser em geral [pois não temos a menor ideia de quantos caberiam nessa designação], mas enunciamos o universal; ou, por outra, não falamos pura e simplesmente tal como nós os ‘visamos’ na certeza sensível. Mas, como vemos, o mais verdadeiro é a linguagem: nela refutamos imediatamente nosso visar, e porque o universal é o verdadeiro da certeza sensível, e a linguagem só exprime esse verdadeiro, está pois totalmente excluído que possamos dizer o ser sensível que visamos” (HEGEL, 1992, p. 76). 6 Remetemos o leitor à leitura do próprio Hegel, facilitada recentemente pelos esforços de Safatle, 2012. 7 Como explica Safatle, a consciência compreende que suas “expectativas cognitivo-instrumentais” são dependentes de modos de interação e de práticas sociais. Algo como se fosse prévio a toda operação de conhecimento a configuração “background normativo socialmente partilhado, no qual todas as práticas sociais aceitas como racionais estão enraizadas.” Daí Safatle concluir com Brandon que: "toda constituição transcendental é uma instituição social” (SAFATLE, 2012, aula 15).
pólos – ideia e matéria –, indo da carência (onde se quer submeter a matéria às nossas necessidades,
destruindo-a), ao trabalho (onde se transforma a matéria segundo uma intenção), que vai dar as
bases para o reconhecimento, mais limitado - Senhor (S) - ou mais potente - Escravo (E). Mais uma
vez não podemos explorar aqui todos os argumentos e desdobramentos da análise hegeliana, logo
vamos nos atentar apenas para o que mais nos interessa.
O ponto de partida da DSE é a luta de vida e morte, tanto dos homens com a natureza, como
dos homens entre si. Nesta segunda, fica ainda mais evidente que é uma situação que coloca um (o
vencedor) como S e outro (perdedor) como E. Mas os pólos opostos nessa luta não têm qualquer
identidade prévia, natural, apenas com sinais trocados; de fato, eles vão se constituindo, se
determinando, nessa luta. O interessante é que, a posição do S no conflito aponta desde saída para
um paradoxo, pois, se “a consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para
uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido" (HEGEL, 1992, p. 126), e o outro E não
aparece para o S como um Outro igual (ou seja, um verdadeiro Outro, um igual em quem possa
recair a diferença), logo o S vive um impasse. Este paradoxo só faz crescer se sabemos ainda que a
oposição do S e E no conflito guarda também uma relação específica de mediação com a
coisa/matéria que é, por sua vez, condição para a mediação entre consciências. Ou seja, haveria não
só uma limitação para o reconhecimento da consciência de si do S no seu Outro (E) porque esse
Outro não aparece como tal (como Outra consciência) mas como objeto (subjugado às ordens
daquele), mas também uma relação entre S e o mundo objetivo que guarda ainda novas dificuldades
de reconhecimento. A relação do S com a coisa (por conta da relação que tem com o E) é reduzida a
uma relação de consumo, destruição da coisa.
O paradoxo do S ilustra bem como a consciência se recusa num primeiro momento a se
render às mediações. A tentativa do S de se afirmar suprimindo seus vínculos de dependência para
com o mundo objetivo exterior e para com a outra consciência-de-si, a fim de se afirmar em sua
pura imediatez, está fadada ao fracasso uma vez que só faz tornar-se mais dependente de ambos.
Sendo a consciência-de-si dependente da negação do outro como Outro, e assim também negação
da coisa, ela não é certeza de nada. Por outro lado, o E só irá reconhecer-se na mediação, uma vez
que este vê sua essência na coisa, resultado de um trabalho que ele produz, mas que sequer produz
para a satisfação de suas necessidades particulares. Segundo Hegel isso confere independência ao E,
ainda que não o retire da condição de escravidão, dado que sua essencialidade (independência) está
posta nas mãos do S que dispõe de sua vida e trabalho. De todo modo, o sair da particularidade e
imediaticidade do desejo (ao qual está preso o S) coloca o E em relação com o universal, o qual ele
passa a trabalhar dado seu condicionamento imposto. Uma relação que não se definirá apenas por
sua dimensão de negação. Ou seja, a submissão ao outro do E ainda joga um papel positivo porque
não fica na dissolução,
"mas se implementa efetivamente no servir. Servindo, suprime em todos os momentos tal aderência ao ser-aí natural e trabalhando-o, o elimina. Mas o sentimento da potência absoluta em geral, e em particular o do serviço, é apenas a dissolução em si e embora o temor do senhor seja, sem dúvida, o início da sabedoria, a
consciência aí é para ela mesma, mas não é ainda o ser para-si; ela porém encontra-se a si mesma por meio do trabalho". (HEGEL, 1992, p. 132).
Essa relação entre trabalho e consciência superior a encontraremos também em Marx e na
defesa do proletariado como classe revolucionária. Já em Hegel vê-se o trabalho (objetivo, material,
mesmo quando intelectual) como produtor da consciência (subjetiva). A consciência de si aparece
pois não como fruto de uma “dedução transcendental”, mas como resultado de um processo social
de reconhecimento realizado no interior de práticas de interação social. O trabalho do E sobre a
matéria mostra que as relações de mediação que este estabelece, com as necessidades e aspirações
do outro que o subordina, é também possibilidade de passagem para um outro ainda mais universal.
Com isso Hegel prova que existe uma racionalidade em operação nos modos mais elementares de
interação social8.
Em suma, a filosofia hegeliana herdada por Marx, mostra como nada, coisa alguma,
fenômeno algum, nos é dado, é exclusivamente natural, mas que nossa participação ao tentar dizê-
los, percebê-los, é que os produz enquanto tais. Vimos como o próprio Hegel vai inserir o trabalho
como fator maior de mediação entre o sujeito e o objeto (do qual carece, forma e se expressa
através). É esta herança hegeliana que faz do trabalho em Marx um fundamento ontológico, ou
próprio à existência dos homens9, e não uma descoberta científica, lógica, que explicaria, por
exemplo, os preços numa dada sociedade. O trabalho (suas formas e relações) é que, ao contrário,
explicaria porque há sociedade onde coisas têm preços. Dito isto, o trabalho aparecerá em Marx
como também sendo passível de ser visto como a chave para a compreensão de uma certa
“gramática social” (daí o valor ser apenas um dos signos) que estrutura (numa determinada
dimensão) a sociedade burguesa. Ou seja, só compreendendo todo o contexto – no seu vir-a-ser –
pode-se alcançar a contradição que é então estruturante (e motora) do todo social. Só por partir da
totalidade em movimento (vendo o link entre as formas finitas de cada tempo) é que Marx consegue
centrar na “forma mercadoria” do produto do trabalho o segredo da estruturação e da dinâmica do
modo de produção capitalista. Daí ver a gênese deste no processo de generalização daquela forma
(o que inclui a transformação em mercadoria do trabalho, bem como da terra e do capital, mesmo
não sendo coisas). Daí ver na contradição entre o trabalho coletivo – produtor de mercadorias - e a
apropriação privada dos seus frutos, a condição para o desenvolvimento da acumulação capitalista
8 Esta racionalidade também está presente em Marx, uma vez que o que o diferencia, por exemplo, dos economistas políticos que o antecederam, é que o trabalho não tem para ele uma dimensão empírica imediata de dispêndio de energia, mas resulta de “práticas de interação social” por sua vez resultantes de um certo modo de lidar com a matéria (aí a dimensão técnica das “forças produtivas” do seu pensamento) e um modo de lidar com os homens (aí a dimensão social da “luta de classes”). O desvelamento da forma mercadoria só foi possível por Marx acreditar, como Hegel, que há nas práticas sociais uma racionalidade objetiva que compartilhamos, algo como uma gramática a estruturar uma linguagem. A mercantilização das relações, o cálculo de valores, que Marx viu no capitalismo, era assim algo como uma gramática social, conferindo uma certa racionalidade (a do cálculo) às práticas de interação social. Apontar seu alcance (revolucionário inclusive) e seus limites perversos, a partir de certo momento, era sua tarefa científica e política. Tarefa esta que, como veremos a seguir, não desempenhamos a contento se perdemos o movimento por trás das formas. Se congelamos as formas aparentes apenas porque já sabemos lidar com elas, perdemos justo o que interessa, o movimento da história, onde quanto mais conscientes, mais atuantes somos. 9 Vide CAMPREGHER, 1993, onde se faz uma investigação do trabalho como fundamento ontológico da construção marxiana.
que já de início, nega o trabalho como medida original do valor (como Marx mostra no Capital) e
que, ao fim, nega o trabalho como fundamento da produção de riqueza10.
O que fica evidente para o leitor atento11 é que i) o trabalho que gera a mercadoria (seja no
aspecto coisa concreta e útil, seja no aspecto de veículo de trabalho social), ii) que possibilita o
cálculo do valor (relacionado àquele segundo aspecto), iii) que justifica a continuidade do processo
de valorização via incorporação em máquinas e equipamentos do mais valor obtido na produção e
venda das mercadorias produzidas, é o trabalho social, combinado, dos muitos trabalhadores
individuais que não tem como produzirem sozinhos ou associadamente.
O que ocorre pois é que é a mediação desaparece da vista dos homens. Já de início,
desaparece na troca, onde o dinheiro é que aparece como trabalho imediatamente social – o que
deveria revelar, mas ao contrário vela, o segredo das sociedades mercantis onde ele domina. Mais
tarde, com o surgimento da maquinaria e ainda de toda uma superestrutura administrativa da
produção, vai ficando cada vez mais, ao mesmo tempo óbvio e difícil, ver como se combinam as
várias formas de trabalho. Primeiro o uso da maquinaria aparece como meio privado de produção
que se contrapõe aos trabalhadores como algo que lhes é externo, algo que os subjuga e subordina e
não algo criado por outros como eles. Depois, a complexidade do todo social aparece cada vez mais
como um sistema de coisas. É nesse ponto que vemos Marx e Engels caírem sob o encanto do
desaparecimento da necessidade das mediações, colocando o comunismo como um estado de coisas
onde “o governo das pessoas é substituído pela administração das coisas”, onde o processo de
produção traria a socialização por seus próprios meios, e onde “o Estado extingue-se”12.
Veremos a seguir como a falta desta reflexão dialética que aposta nas mediações sócio-
históricas produtoras de formas (que por sua vez estabelecem mediações entre si), gera
compreensões um tanto simplistas e equivocadas como: a mais-valia ser roubo, o capitalista ser
alguém que não trabalha e o estado ser um mero escritório da burguesia.
2) A mais-valia não é roubo cometido contra indivíduos na circulação isolada, é expropriação
do trabalho social numa mediação permanente entre produção e circulação.
Nosso ponto de partida aqui não é apenas o que Marx expõe a respeito de que o “roubo” é
uma melhor caracterização de processos que se dão na circulação, entre indivíduos e que não tem
sustentabilidade de longo prazo (a não ser com a ajuda de violência), mas ainda que: i) sem uma
teorização em torno da correspondência entre valores-trabalho e preços de produção (que, grosso
modo, devem levar em consideração regras sociais outras, que não os valores na distribuição
10 Ambos os aspectos são bastante explorados em CAMPREGHER, 1993. 11 Talvez devêssemos dizer o leitor não preconceituoso com a reflexão filosófica e também antropológica mais presente no jovem Marx, reflexão esta recusada equivocadamente, a nosso ver, pelo marxismo estruturalista althusseriano (o que é explorado também em CAMPREGHER, 1993. 12 “O governo das pessoas é substituído pela administração das coisas e pela direção dos processos de produção. O Estado não será ‘abolido’, extingue-se” (ENGELS, 1977, p. 332).
reiterada do excedente13) fica sem sentido qualquer intenção de mensuração rigorosa da mais-valia;
e ii) independente da correlação entre valores e preços, ou seja, mesmo pensando apenas em termos
de valores absolutos (e não valores de troca), o fato de que o trabalho envolvido na produção é cada
vez mais separado de suas partes intelectuais (que são incorporadas à maquinaria ou repassadas a
outros trabalhadores), que também se vê acrescido de atividades novas, implica que a medida
universal originária vai perdendo utilidade contraditoriamente quando ganha ainda mais
universalidade.
Marx na sua tarefa maior de explicitar a especificidade histórica do capitalismo começa por
diferenciar roubo do lucro capitalista uma vez que este seria criado (do nada, ou, mais propriamente
de uma situação que não existia antes) e não seria obtido graças ao que ele chamava a “violência
extraeconômica” – que dominou a história pregressa do capitalismo14 e foi preponderante ainda na
fase dita da acumulação primitiva já na transição para este15. Não provém pois do comprar barato e
vender caro próprios da enganação, do segredo, de relações de poder e favor, mais marcadas por
contingências que por qualquer forma de racionalidade impessoal. O lucro capitalista provém da
racionalidade no processo de exploração do trabalho, que ganha assim um significado moral seu –
explorar é tirar o máximo, combinando as capacidades e habilidades individuais de modo a obter a
máxima produtividade, o que significa reduzir o custo, em trabalho, ao menor possível e a frente
dos demais produtores. Se há uma questão a ser denunciada aí é que os trabalhos privados só são
passíveis de serem combinados pelo capitalista porque os produtores não podem fazê-lo eles
mesmos, dado o processo anterior que lhes destituiu da posse dos meios de produção, este sim, um
processo marcado pelo roubo.
Desse modo, a mais-valia é uma expropriação de sobre-trabalho mas não é roubo porque
não se trata de iludir ou ludibriar os trabalhadores na esfera da circulação mas de se criar valor novo
na esfera da produção. O problema é que, como salienta João Antonio de Paula (2000, p. 122), a
circulação se imiscui na produção:
“os capitalistas, de posse das informações de mercado, buscam a cada momento tanto adequarem suas estratégias competitivas, quanto seus relacionamentos com fornecedores e clientes, e, sobretudo, suas
13 Esse modo de pensar pode parecer próximo dos “marxistas críticos” (como POSTONE, 1993) que duvidam da eficácia da lei do valor e de toda uma ênfase que o “marxismo tradicional” dá à exploração em detrimento das análises mais atentas às mudanças de formas de sociabilidade. Mas há análises marxistas que conseguem validar a ideia de exploração justamente apelando para as formas concretas de sociabilidade (como PAULA, 2000). São análises que criticam ao mesmo tempo abandonar a teoria do valor ou validá-la numa operação completamente estranha ao marxismo, de construção de sistemas de determinações simultâneas de valores e preços a partir de uma quadro de equilíbrio geral. Como sugere Paula, há que construir sistemas que captem a não automaticidade das passagens sucessivas circulação-produção-circulação, de modo a captar o que há de mais concreto: “os elementos da concorrência: as modalidades concretas de extração da mais-valia operada pelos outros capitalistas; a dinâmica do progresso tecnológico; a ‘politização’ dos preços decorrente da atuação do Estado; a entrada de novos capitalistas no ramo da produção considerado; as modificações no gosto e nas preferências dos consumidores...” (PAULA, 2000, p.119). 14 Sohn-Rethel resume bem este ponto ao dizer que: “A distinção decisiva entre antigos e modernos é que só entre os modernos a produção de riqueza provém da produção de mais-valia, e não da apropriação (portanto puro deslocamento de propriedade de valores existentes). Nos clássicos antigos a formação de riqueza era essencialmente de tipo extra e não intra-econômico, ou seja baseada no roubo e exploração de outras comunidades e de estrangeiros, portanto na submissão a dever tributário ou na transformação em escravos” (SOHN-RETHEL, 1989). 15 O que não significa que práticas dessa natureza não estejam presentes ainda hoje, como mostra Harvey (2011) ao falar da “acumulação por espoliação” que marca o capitalismo financeiro dos nossos dias.
políticas de salários, organização do trabalho e inovações tecnológicas, de tal modo que, de fato, há uma permeabilidade permanente entre as esferas da circulação e da produção”.
Este tipo de reflexão faz com que muitos marxistas nos nossos dias se empenhem em
construir modelos de determinação de valores e preços não inspirados em resolver o problema da
transformação mas em entender a dialética da relação valor-preço (PAULA, 2000), o que significa
menos construir modelos matemáticos à la equilíbrio geral que construir modelos efetivamente
dinâmicos e concretos onde o papel da esfera da circulação e da mercadoria sejam fundamentais
para criar os signos e a estrutura gramatical onde se darão as relações de produção propriamente.
Chamar a atenção para a “anterioridade lógica e histórica da esfera da circulação” (PAULA,
2000) é, partir desta esfera, como dissemos na seção anterior, como de uma instância de mediação,
socialmente compartilhada, que funciona como pano de fundo para o posicionamento dos
indivíduos no processo que se dá a seguir, a produção. No capitalismo, esta instância é o mercado, e
o que há nele, as mercadorias e seus preços. Ao marxismo será fundamental mostrar, como Marx no
Livro I d’O Capital, que por trás dessa aparência de imediaticidade há todo um mundo de
mediações, mas, contudo, apenas alguns marxistas notarão que algo desta imediaticidade veio pra
ficar. Ela se impõe justamente porque é fruto da construção social anterior, e, como tal, está sempre
condicionando as ações de cada capitalista, cuja reação a alterará no futuro. Mas, o que importa
ressaltar é que a extração de mais-valia será ao mesmo tempo o fator de ajuste no interior das
estratégias de sobrevivência dos vários capitalistas que irá definir, para o sistema como um todo,
trajetórias mais ou menos dinâmicas em termos tecnológicos, distributivas, financeiras, etc.
“Para cada nível de preço do produto, e para cada nível da taxa de juros, os produtores em função de sua estrutura técnica da produção e das relações concretas das relações de dominação do trabalho, adotarão estratégias que implicam em tentativas de renegociar preços de capital constante, salários, juros e alugueis, redefinição da jornada de trabalho, esforço de venda, busca de subsídios, incentivos e proteção, etc. Contudo, a grande e fundamental estratégia que os produtores podem adotar, é a alteração das formas concretas de extração de mais-valia.” (PAULA, 2000, p.126).16
Sendo assim, o que a consideração deste sistema de mediações ligado à concorrência nos
mostra é que “as mudanças não são sincronizadas e nem absolutamente proporcionais” (PAULA,
2000, p. 126), o que torna as massas totais de mais valia e lucro, bem como as taxas de lucro
medidas em termos de valor e de preços, apenas tendencialmente iguais. Qualquer cálculo preciso é
grosseiro e ilusório, e mais, uma falsificação da própria dinâmica capitalista.
Em suma, o que estamos vendo é que o capitalismo cria uma ilusão de mensuração a partir
da presença de certas formas universais imediatas (o dinheiro da forma preço, o trabalho abstrato da
forma valor) que no entanto obscurecem o principal, a natureza mediata delas próprias e da
dinâmica do processo social que lhes dá sustentação. Dialeticamente, se levamos a sério tais
mediações, o imediato não nos aparece mais em sua forma negativa de mero possibilitador de
16 Entre estas estratégias não se descarta a pressão para a diminuição dos salários, que seria pois algo como um retorno a formas pretéritas (mais assemelhadas ao roubo) da fase da acumulação primitiva.
medidas17 mas como um imediato reconciliado, por exemplo, o trabalho social se reconhecendo
como trabalho social. Vejamos como isso pode ser a partir da evolução das condições da
cooperação que vão tornando cada vez mais impossível a percepção das contribuições individuais.
Sabemos que, como coloca Marx, as características individuais devem desaparecer de “n”
modos na produção dirigida pelo capital. No que diz respeito ao capitalista ele mesmo:
"Um mínimo determinado e sempre crescente de capital nas mãos de todo o capitalista é a premissa, bem como o resultado constante do modo de produção especificamente capitalista. O capitalista deve ser proprietário ou detentor dos meios de produção a uma escala social: seu valor não tem, de ora em diante, nenhuma proporção com aquilo que pode produzir um indivíduo ou sua família. Este mínimo de capital é tão mais elevado em um ramo de produção quanto este seja explorado de uma maneira mais capitalista e quanto mais desenvolvida a produtividade social do trabalho. À medida em que o capital vê aumentar seu valor e assume dimensões sociais, ele perde todas suas características individuais" (MARX, 1971, pp. 194-195)
No que diz respeito aos trabalhadores, apenas na produção manufatureira não sofisticada, os
diferentes atributos individuais eram a base da cooperação e os trabalhadores especializados
tornados especiais. E se num primeiro momento o aprofundamento da divisão do trabalho irá
reforçar a especialização, tratar-se-á já de um outro movimento, onde se é especialista na execução
de simples movimentos, condição, por sua vez, de seu repasse para sistemas mecânicos. Chegados a
este ponto, temos o aprendizado de gerações de trabalhadores convertidos num mecanismo que
aparece ao trabalhador como estranho, quando não inimigo. Sendo assim, o processo de
transformação da cooperação simples em grande indústria é também um processo que vai do
mediato, ou da mediação visível (o social vindo da combinação de trabalhos individuais), ao
imediato visível (a máquina sendo o social imediato).
Não podemos nos deter aqui sobre as similaridades e diferenças entre estas formas de
cooperação, em Marx e em todo um debate entre marxistas depois dele18, mas nos importa mostrar
que em todos os casos o que está em jogo é o trabalho social, e não o trabalho individual, como
base da exploração do capital. Na cooperação simples ou na manufatura pouco se modifica o
processo de trabalho herdado do artesanato e as mediações sociais - ideológicas e políticas, entre as
quais o uso da violência – que são necessárias para se combinar o trabalho individual sob comando
do capital (o que implica que a mais-valia deva ser extraída por meios despóticos); já na grande
indústria tais mediações se tornam desnecessárias (e a mais-valia é obtida de modo “mecânico”).
Daí Marx (1996b, p. 20) dizer que:
“No sistema de máquinas, a grande indústria tem um organismo de produção inteiramente objetivo, que o operário já encontra pronto, como condição de produção material. Na cooperação simples e mesmo na especificada pela divisão do trabalho, a supressão do trabalhador individual pelo socializado aparece ainda como sendo mais ou menos casual. A maquinaria, com algumas exceções (...), só funciona com base no trabalho imediatamente socializado ou coletivo. O caráter cooperativo do processo de trabalho torna-se agora, portanto, uma necessidade técnica ditada pela natureza do próprio meio de trabalho.”
Os efeitos desse sistema onde “máquinas produzem máquinas”, no que diz respeito à
liberação de uma força produtiva sem par na história, são amplamente conhecidos. Mas o papel
17 Esse primeiro modo de aparição do universal é o que Hegel chama de universal abstrato, negação primeira do particular concreto. A segunda negação seria positiva e concreta ela mesma. O que quer dizer aqui que o que se torna concreto é o imediato, social. 18 Para isto, veja-se, por exemplo, CORIAT, 1985; NETO, 1991; ANTUNES, 2002.
central da cooperação aí não fica claro, até porque ele irá transcender a fábrica19. Que não se trate
mais de um “aumento da força produtiva individual por meio da cooperação, mas da criação de uma
força produtiva que tem de ser, em si e para si, uma força de massas” (MARX, 1996a, pp. 442-443)
é o que mostra que o trabalho coletivo já é, então, imediatamente social. Não à toa, nos Grundrisse,
Marx vai falar que essa força produtiva cada vez mais socializada, cada vez mais “geral”, aparece
na sua imediaticidade como um “indivíduo-social”.
"O que aparece com a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza [é que] não é nem o trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do indivíduo social”. (MARX, 2011, p. 587; grifos nossos).
Mais uma vez, vemos reforçada a ideia de que o universal trabalho abstrato não serve mais
como medida, da riqueza ou da exploração: “O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual a
riqueza atual se baseia, aparece como fundamento miserável em comparação com esse novo
fundamento desenvolvido, criado por meio da própria grande indústria." (MARX, 2011, p. 589).
A realidade dos nossos dias mostra que é mesmo o capital que resiste a abandonar o trabalho
como fonte e medida do valor (com toda precariedade que, como vimos, permite a atuação de uma
lógica da concorrência atuando paralelamente a uma lógica do valor), preferindo a precarização a
uma diminuição radical das jornadas, entre outras práticas retrógradas ressuscitadas nesta fase de
“acumulação por espoliação” (HARVEY, 2011). Ao contrário, a utopia guia de Marx para o
socialismo é trocar as contribuições individuais à produção da riqueza passada pelo potencial
produtivo de cada um (uma vez que a autonomia individual ganharia novo significado) e as
necessidades de cada um (uma vez que se partiria do reconhecimento de que todos teriam direito
imediato a alguma parcela desse produto). 20
Enfim, vimos que não há propriamente um roubo no capitalismo ainda que os ganhos do
trabalho social sejam apropriados pelo capital. Agora, defenderemos que o agente desta apropriação
apenas muito grosseiramente poderia ser caricaturado como ladrão ou ocioso. Estas são caricaturas
que, se já cumpriram um papel histórico e político contribuindo para a construção de uma
identidade de classe dos trabalhadores datada do início da revolução industrial21, hoje obstruem
uma análise mais produtiva teórica e politicamente. Isso não significa que apontemos para a
inutilidade da análise de classes, mas o oposto, a necessidade de atualizarmos tal análise para
reconstruirmos a identidade da classe trabalhadora.
3) O trabalho de organização do trabalho e do capital alheio é feito pelos capitalistas
19 E transcende porque antecede. É a cooperação que torna possível uma aparente não cooperação, o cada um por si é o melhor para todos, no capitalismo. Curioso ver como é justamente isso que diz Adam Smith, o primeiro a cantar as glórias dos ganhos de produtividade advindos com a especialização e a maquinaria. Antes de ser um defensor da mão invisível e de um egoísmo natural, o que este tinha em mente era que a produção combinada de todos para todos era um pressuposto do seu desenvolvimento. Ou seja, o auto-interesse não é natural mas é um auto-interesse combinado socialmente. Vide CAMPREGHER; LONGONI, 2013. 20 No comunismo “a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!” (MARX, 2009). 21 Não é assim um despropósito que Marx & Engels (2011, p. 28) tenham dito que: “há aqueles (...) que [no regime capitalista] trabalham e nada adquirem, e aqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham”.
Como víamos acima, o taxar de roubo a expropriação do trabalho coletivo guarda equívocos
porque o roubo é algo melhor estabelecido entre indivíduos, na troca, e ainda assim se a tornamos
estática, fora do tempo. Assim, o roubo sistemático entre indivíduos não pode ser uma boa
caracterização da nossa sociedade. Isso não significa que não se possa dizer que uma classe rouba
outra, ou que um país roube outro, mas não é uma boa descrição do processo, porque, afinal, há um
processo envolvido (que o imediato da ação roubo não capta)22, que transcende o fenômeno. Algo
semelhante acontece com o taxar de preguiçoso ou ocioso o capitalista. A análise não tem sentido
ao nível individual, não apenas porque há efetivamente os que fazem ‘alguma coisa’ como os que
nada fazem, mas porque o que define o que é um capitalista é que este seu fazer esteja a serviço do
capital, mais propriamente do seu processo de valorização do capital, o que ele faz apropriando-se
de tanto trabalho alheio quanto permitem a sua posição na concorrência. Logo, a questão é: o que
fazem os capitalistas e por que, do nosso ponto de vista, isto que fazem é também trabalho?
Em primeiro lugar devemos fazer menção ao conceito de trabalho com o qual operamos. Em
linhas gerais, entendemos o trabalho como um dos fundamentos ontológicos da existência
humana23, ele abarca toda e qualquer mediação entre os homens e a natureza, bem como dos
homens entre si, que produza as condições objetivas, materiais, da sua sobrevivência e do seu
desenvolvimento enquanto espécie de vida, mas ainda as condições subjetivas que nos permitem o
desenvolvimento da própria individuação, o que implica também o desenvolvimento das
sociedades, e da humanidade em um sentido que transcende ao natural24.
Não podemos desenvolver muito mais este conceito, mas interessa marcar que ele confere
ao marxismo não só uma teoria crítica do capitalismo, mas uma teoria da história, cujo fundamento
está mesmo numa compreensão alargada do conceito de trabalho25. Esta compreensão guarda
bastante proximidade com a teoria lukácsiana do trabalho como práxis e vai no sentido contrário ao
desenvolvido por certos marxistas críticos que jogam fora junto com a centralidade do valor-
trabalho e a ênfase no proletariado como classe revolucionária (esta última de fato por vezes
exagerada num primeiro Lukács), a própria dimensão ontológica do trabalho.26 No entanto, a
perspectiva de autores como Postone, ao descartarem um papel preponderante ao trabalho e
preferirem as categorias marxianas (principalmente a mercadoria e o capital) como “capazes de
abordar a sociedade capitalista como um modo de vida social caracterizado por formas de
dominação quase-objetivas que sublinham uma dinâmica histórica específica” (POSTONE, 2004, p. 22 Como salienta Marx, ridicularizando Bastiat, roubos sistemáticos não existem, quer dizer, fora de um contexto de produção: “Verdadeiramente engraçado é o senhor Bastiat, que imagina que os antigos gregos e romanos teriam vivido apenas do roubo. Quando porém se vive muitos séculos do roubo, tem que haver constantemente algo para roubar, ou seja, o objeto do roubo tem que reproduzir-se incessantemente. Parece, portanto, que também os gregos e romanos tinham um processo de produção” (MARX, 1996a, p. 206). 23 À la Hegel estes seriam três, o trabalho, o desejo e a linguagem. Para maiores detalhmentos sobre a ontologia do trabalho em Hegel e Marx, vide CAMPREGHER, 1993. 24 Segundo Mészáros, é por isso que o trabalho como "atividade com finalidade", "atividade essencial da vida", é “anterior lógica e historicamente ao conceito de homem” (MÉSZÁROS, 198, p.112). 25 É exatamente isto o que fizemos em CAMPEGHER, 1993. 26 Entre estes, se destaca Moishe Postone (1993), com o qual concordamos em uma série de questões mas não justamente com o ponto de partida de se fazer “uma crítica do trabalho, mas não do ponto de vista do trabalho”. Ao nosso ver é este ponto de vista que faz o marxismo ter uma teoria materialista e dialética da história.
53) é mais “amigável” com a nossa perspectiva de ver como trabalho o que faz o capitalista que a
perspectiva do marxismo tradicional.
Retomemos então o fazer dos capitalistas justamente acompanhando as dinâmicas históricas
específicas. Bem sabemos que nos primórdios da transição para o assalariamento e a produção
especializada para o mercado, a pessoa do capitalista – vinda do comércio ou da produção ela
mesma – não apenas arregimentava os trabalhadores que iria colocar num mesmo espaço como
poderia dividir o trabalho com seus contratados ao mesmo tempo que geria o “chão de fábrica” e o
todo do negócio (o que incluiria o trabalho administrativo de compra de insumos e venda das
mercadorias). Daí dizer Hobson (1996, p. 74) da produção artesanal que:
“O ponto fraco dessa economia estava nas complicações e incertezas na comercialização do produto. Era aí que o comerciante, representando a forma mais antiga do capitalismo industrial, exercia pressão sobre o artesão-capitalista, que era seu próprio empregado. Tomando do pequeno produtor o seu produto, pagando por ele, e assumindo as dificuldades, os atrasos e os riscos de encontrar consumidores para adquiri-lo a um preço que lhe permitisse lucro, o comerciante o desobrigava da função para a qual ele tinha menos competência.”
É cada vez mais frequente pois que o agente financeiro que assume os riscos do negócio
passe a querer geri-los desde dentro. Nesta fase o fazer do capitalista no chão de fábrica já não se
mistura aos dos subordinados, atendo-se a vigiá-los e observá-los de modo a inventar novas formas
de organização do trabalho, novos processos e sistemas mecânicos27 – que viessem a simplificar e
substituir o trabalho, mormente onde ele é mais caro ou mais organizado (MARGLIN, 1974). Além
deste resta ainda o fazer administrativo que, contudo, desde muito cedo também vai se dividindo e
sendo passado a funcionários até que o escritório se pareça também com o chão de fábrica
(BRAVERMAN, 1980). Mas é a gestão dos resultados do processo produtivo, dos lucros obtidos,
que faz o capitalista, já desde o início, se especializar na tarefa de planejamento do crescimento dos
negócios, tornando o proprietário dos meios de produção o responsável pela obrigatória expansão
do seu capital (tanto mais obrigatória quanto mais pese sobre o capitalista a concorrência que o
pode jogar nas fileiras dos candidatos ao assalariamento). Desde então o capitalista se especializará
no cálculo estratégico do que fazer para ampliar produção e mercados tendo em vista a valorização.
Este trabalho exigirá um conhecimento profundo de “n” realidades espaciais, temporais, além de
um certo afastamento de motivações particularistas de aventura, prazer ou sucesso. Daí o homem de
negócios ser um racionalista onde, como diria Weber (2010), o método está adiante dos fins, e
como diria Hirshman (2002), os interesses substituem as paixões, e onde, como diria Marx, ele seja
a “personificação do capital”. Isso significa que o capitalista “trabalhará” não para ficar rico ele
próprio (ainda que isso seja uma consequência) mas para aumentar o capital.
É verdade que, num certo sentido, isso signifique não que o capitalista trabalhe, mas que ele
não trabalhe mais. Agora que ele é o “capital personificado”, o que faz é eleger seus beneficiários,
reproduzindo e aumentando (claramente de modo relativo e por vezes mesmo de modo absoluto) as
desigualdades. Sim, isso seria verdade se então tivéssemos uma teoria que nos explique de onde
27 O que não significa que este trabalho inovador seja uma exclusividade do capitalista. Já Smith anunciava que tais inovações poderiam vir de homens de fora da produção, pensadores, cientistas, além dos próprios trabalhadores.
vem esta autonomia e esta liberdade do capitalista, que o coloca sujeito e não fantoche do capital.
Ou retiramos seu ser livre e sujeito unicamente da riqueza que ele dispõe? Se assim for, esta teoria
existe, é a da desutilidade marginal do trabalho frente a utilidade marginal do lazer, que parte da
naturalização (ou da posição mais que da pressuposição) de que sejamos todos indivíduos, livres,
iguais, e conscientes. Do nosso ponto de vista quem é livre e sujeito aqui é o capital, não o
capitalista. Pode até ser que estes tenham mais condições de virem a ser livres, mas isto, se se
livrarem de servir ao capital.28
Na falta pois de uma teoria da liberdade, da emancipação, e das possibilidades de
individuação do capitalista29 , haveria apenas um outro senão, que as funções
administrativas/criativas/inventivas venham a ser todas ocupadas por funcionários assalariados e
não pelos proprietários/serviçais do capital. Isso é verdade, mas i) se estas funções forem
consideradas estratégicas pelos próprios capitalistas não deverão ser ocupadas por “meros
trabalhadores”, os que o forem deverão ser devidamente cooptados, e ii) não há porque pensar que
estas funções tenham um limite e sua super simplificação tornará o capitalista e os seus
completamente desnecessários, uma vez que a função principal dos capitalistas visando a
valorização do capital consiste justamente em inventar necessidades! Já Marx sabia que os
capitalistas não desaparecerão por causa dos efeitos da divisão do trabalho e da mecanização, trata-
se de luta de classes e dominação. E por isso eles têm de se justificar como classe, que organiza e
gere a exploração e a alienação, o que contudo, faz deles também explorados e alienados.
Sendo assim, detalhemos um pouco mais o que consideramos ser o trabalho (já não
usaremos mais o neutro fazer), dos capitalista. Sabemos que se trata de um trabalho bastante
intelectual que um dia foi dos próprios produtores diretos. E que estes só o perderam porque antes o
trabalho individual deu lugar ao trabalho socializado. Como diz Marx (1996b, p. 137):
“Na medida em que o processo de trabalho o é puramente individual, o mesmo trabalho reúne todas as funções que mais tarde se separam. (...) Mais tarde ele será controlado. O homem isolado não pode atuar sobre a Natureza sem a atuação de seus próprios músculos, sob o controle de seu próprio cérebro. Como sistema natural cabeça e mão estão interligados, o processo de trabalho une o trabalho intelectual com o trabalho manual. Mais tarde separam-se até se oporem como inimigos.”30 (grifos nossos)
28 Por outro lado, mesmo insistindo na designação do capitalista enquanto personificação do capital veremos que este não representa tão somente a propriedade do capital, senão que é o responsável por realizar a movimentação produtiva do dinheiro entesourado que, portanto, passa a funcionar como capital. É nesse sentido que a função do capitalista se separa da sua mera designação como proprietário, o que faz diferenciar sua renda, o lucro líquido descontado do juros referente ao prestamista. “O capitalista funcionante é pressuposto aqui como não-proprietário do capital (...) a parte do lucro que cabe ao capitalista ativo aparece agora como ganho empresarial oriundo exclusivamente das operações ou funções que ele efetua com o capital no processo de reprodução, especialmente, pois, das funções que como empresário ele exerce na indústria ou no comércio” (MARX, 1984, p. 280). 29 Uma teoria desta ao nosso ver teria de retomar o argumento hegeliano na dialética do senhor e do escravo (DSE). Poderia começar por reconhecer que se o capitalista enquanto Senhor não vive de usufruir/destruir o objeto, mas se participa de alguma maneira do processo de mediação, ele comunga algo aí com o Escravo/trabalhador. Por outro lado, se antes o Escravo era esvaziado de vontade, o capitalista Senhor, também. Ao nosso ver o que esta aproximação teria de alvissareira esbarra no mesmo problema que já havia na crença hegeliana de uma reconciliação possível entre sujeito e objeto por meio da consciência. Mas o pior é que mesmo o materialismo marxiano não colocou muito maior materialidade na crença do operariado como classe revolucionária, parecendo o raciocínio de Marx com o do próprio Hegel. Afinal definir os trabalhadores como revolucionários porque não têm mais nada a perder não é transformar o abstrato e negativo em positivo sem mais? Voltaremos oportunamente a este tema. 30 Interessante notar com Cavalcante (2012, p. 9) que esta última frase não aparece na tradução francesa feita por J. Roy mesmo tendo sido esta revisada pessoalmente por Marx. No nosso entender Marx não quis usar aqui a expressão de oposição do trabalho manual com o trabalho intelectual, pois o significado da passagem diz respeito à transformação do
Entre as funções intelectuais que aparecerão como “inimigas” não estão apenas aquelas
diretamente ligadas à produção, mas outras que lhes dão sustentação, e que o processo de divisão do
trabalho transformará em negócio também. Estas funções intelectuais cobrem: i) as de planejamento
e crescimento do negócio, portanto, elaboração e encaminhamento das estratégias de valorização
dentro e fora (associações, conluios, e aplicações financeiras) da produção; ii) as de direção e
gestão do processo produtivo ao nível micro (das unidades produtivas); iii) os desenvolvimentos da
técnica e da ciência aplicada à produção (se dando estas no nível micro ou ainda num nível maior,
digamos nos espaços que vão sendo constituídos para a pesquisa e mesmo para o treinamento
profissional e a educação formal, que, contudo, se servem diretamente àquele, também o
transcendem); e iii) a estrutura legal-constitucional-política-cultural que serve a legitimação da
nova classe dominante.
Hoje, muitas destas funções estão contidas naquilo que se chama (a nosso contragosto
porque não existem fora da materialidade) de “trabalho imaterial” (NEGRI; LAZZARATO, 2001),
mas não são muito distintas do trabalho intelectual inicialmente feito pelos próprios
proprietários/gestores na produção artesanal clássica. Como dissemos o que ocorre é que a divisão
do trabalho alcança também estes processos a tal ponto de mecanizá-los, dado que também as
operações mentais podem ser simplificadas a ponto de não as precisarmos mais executar, como bem
ilustram, as antigas máquinas calculadoras e registradoras, e os modernos computadores31. É fato
que este processo leva tempo e que, no caminho, tenha produzido uma grande diferenciação
também entre trabalhadores32, que além de tornar mais difícil as estratégias de unidade e identidade
de classe na ação política e na análise científica, deixaram transparecer que, se um dia o capitalista
trabalhou, agora ele não o faz mais.
De fato, nos parece mais consequente pensar que estas funções ainda sejam desempenhadas
em grande parte pelos capitalistas a estas alturas tornados sócios majoritários. Senão vejamos o que
dizem Hobson (1996) e Lenin (2011), das funções de planejamento e crescimento dos negócio,
elaboração e encaminhamento de estratégias de valorização dentro e fora da produção, organização
trabalhador individual em trabalhador coletivo, que “mais tarde será controlado”. Já na Ideologia Alemã, Marx se utiliza da mesma ideia e anota ao lado que esta separação “coincide [com] a primeira forma de ideólogos, padres” (MARX, 1996c, p. 56) – tão mediadores quanto os capitalistas na concepção idealista do mundo com a qual Marx ainda dialogava. Este controle é típico da inserção do trabalho na manufatura capitalista e não diz respeito ao trabalho intelectual em si, mas aquele relacionado as funções de supervisão, engenharia, e outras que se assemelham as do próprio capitalista. Interessante notar que Marx “resolve” a questão no Capítulo VI Inédito, colocando o capitalista como executor de trabalho produtivo. 31 Segundo os manuais de arquitetura de computadores, estes nada mais são que máquinas de armazenar e processar dados: “Todo e qualquer processamento de dados, por mais complexo que seja, nada mais é que uma combinação de ações elementares baseadas em tomadas de decisões simples” (http://www.bpiropo.com.br/arqcom1.htm). O que vai de par com a reflexão smitiniana de que a rotinização e mecanização alcançariam “a filosofia ou pesquisa [tornando-as] como qualquer ofício, a ocupação principal ou exclusiva de uma categoria específica de pessoas” (SMITH, 1983, p. 45). Pesquisadores nos nossos dias mostram os efeitos dessa superespecialização no mundo científico, padronizando conteúdos, empregando rotinas controladas, impedindo o remanejo, reforçando monopólios exercidos por indivíduos no topo da hierarquia das equipes, frequentemente no lugar de quem decide sobre financiamento, concepção e divulgação do produto. (COUTO, 1999). Isso prova, para nós, que os da base, mesmo da produção científica se tornam, mesmo com status diferenciados, meros trabalhadores, e os do topo, capitalistas lucrando com o trabalho coletivo. 32 Desde os “operários aburguesados” ou “aristocracia operária” de Lenin (2011), passando pelos “colarinhos brancos” de Braverman (1980), a “nova pequena burguesia” de Poulantaz (1978), até os “analistas simbólicos” de Reich (2008).
da expansão e divisão dos mercados, na fase do capitalismo financeiro e monopolista. Segundo
nossos autores trata-se de um processo que cria uma “oligarquia financeira”, que incluirá, ao nosso
ver, a incorporação de todo um staff de executivos à classe proprietária (o que é facilita pelo regime
das sociedades anônimas). Que isto seja obrigatório, tem a ver com as próprias condições de
acirramento da concorrência em meio à crescente concentração monopolista. Hobson (1996, p. 8), já
no final do século XIX advertia que:
“Uma grande parcela do esforço intelectual engajado no mundo dos negócios, está dirigida a experimentar e inventar métodos administrativos, incluindo organização empresarial e financeira com o duplo objetivo de obter economias de escala do lado do custo de oferta e, desta maneira, monopolizar e controlar os mercados para impedir que estes ganhos passem ao consumidor pela competição entre produtores.”
Não se trata aqui apenas de uma função a ser executada por um tipo novo de funcionário,
mas de serem os antigos proprietários e os novos financistas os novos donos do poder. “A estrutura
do capitalismo moderno tende a lançar um poder cada vez maior nas mãos dos homens que manejam o
mecanismo monetário das comunidades industriais — a classe dos financistas” (HOBSON, 1996, p. 235;
grifos nossos)33.
Que os proprietários (sócios majoritários) continuem ativos e importantes no comando
dessas operações não exclui que: i) deixem de administrar suas empresas de origem, ii) grande
parcela do trabalho de gestão financeira não possa ser executada por trabalhadores especializados
que, mesmo bem pagos (e cooptados em seus valores, costumes e estilos de vida) não se confundem
com os proprietários do capital, iii) não elimina que alguns dentre estes não sejam alçados de fato
ao seu grupo dos sócio proprietários, e iv) que todo um universo de familiares/dependentes destes
dois grupos não se tornem plenamente ociosos se dedicando exclusivamente a dissipação e não a
produção (real ou fictícia) de riqueza. Sua função é ainda essencial se atentarmos para a
complexificação dos processos de gestão e construção de estratégias de valorização quando da
superconcentração e centralização dos capitais. Ou ainda como diz Hobson (1996, p. 236):
“O ganho em complexidade atingido pelos processos industriais, que resultou na formação de empresas separadas, a concatenação de uma longa série de diferentes empresas, contribuindo diretamente para a produção de todo tipo de mercadoria, a relação de cada elemento dessa série com empresas dependentes ou subsidiárias, cada uma das quais é, individualmente, um elemento de outra série de processos ordenados em separado, a interdependência dos processos manufatureiros ou comerciais mais amplamente divergentes, por meio do uso de uma fonte comum de força mecânica ou de um instrumento de transporte, a expansão e conseqüente transformação de mercados locais em mercados nacionais e mundiais, que concretizam a unidade de sistemas industriais antes distintos e autossuficientes — em resumo, o funcionamento de tal organização industrial importa um mecanismo delicado e intrincado de ajustamentos. Para que esse sistema possa funcionar correta e economicamente, torna-se necessário um instrumento automático para a aplicação de estímulos econômicos e a geração de força produtiva em pontos de carência industrial e uma correspondente aplicação de dispositivos de contenção em pontos de excesso industrial: a força industrial deve ser distribuída de forma geral por todo o organismo, a fim de ser transformada em formas específicas de energia produtiva onde for necessário.”
33 Na continuação do parágrafo: “Os pequenos financistas, como usurários ou emprestadores de dinheiro, viveram, em todos os tempos, dos transtornos e infortúnios da classe dos agricultores, artesãos e pequenos negociantes. Mas foi só depois que o desenvolvimento dos métodos industriais modernos exigiu um fluxo grande, livre e variado de capital, em muitos canais do emprego produtivo, que o financista deu sinais de assumir o posto de autoridade que hoje ocupa em nosso sistema econômico. Cada passo importante que demos no sentido do desenvolvimento da estrutura industrial contribuiu para afastar a classe dos financistas da classe mais geral dos capitalistas, assegurando-lhe um controle maior e mais vantajoso sobre o curso da indústria” (HOBSON,1996, pp. 235-236).
O fato de Hobson (na esteira de Veblen) caracterizar os especialistas em finanças - cuja
tarefa seria “a direção estratégica das relações intersticiais do sistema” e cujos métodos
aperfeiçoados de informações comerciais aumentaria enormemente o espectro de investimentos
(HOBSON, 1996, p. 236) – como um nova classe, instalada entre os antigos proprietários que
perdem o controle direto de seus capitais, não implica que estes últimos tenham se tornado meros
dissipadores como em Veblen. Os especialistas em finanças – alçados a sócios –, e os proprietários
– não mais controladores diretos de seus capitais originários mas controladores indiretos de muitos
capitais – é que são a classe capitalista reconfigurada mas ainda correspondente a sua função
essencial, de fazer valorizar e acumular o capital. Se no início do capitalismo o trabalho dos
capitalistas era a organização dos trabalhos cooperados, a partir do final do sec. XIX ele passa a ser
a organização do que Hobson chama dos “capitais cooperados”.
De fato, podemos dizer que o trabalho do capitalista na fase das sociedades anônimas se
assemelha ao da administração pública. O capitalista na ponta de todo um conglomerado de
empresas e organizações parece mesmo o chefe de um governo – o que não significa que se trate de
um governo democrático34 ou voltado para a equidade e a justiça; mas que sua função transcende os
objetivos particularistas de seus negócios originários, isso transcende. Tal conclusão é semelhante
ao que vemos na reflexão de Lênin sobre o capitalismo monopolista e a importância nesta fase do
capitalismo da oligarquia financeira como condutora de uma lógica de valorização que inclui uma
racionalidade macro-estratégica que vai reduzir a competição entre empresas e aumentar a
competição entre nações e a divisão do globo entre estas35.
As funções de conhecimento necessárias a estratégia de expansão do capital carregam ao
mesmo tempo algo de racionalidade (superação de objetivos particulares) e irracionalidade
(reforçando interesses ainda particulares, de Nações associadas a grandes grupos de capital); pois,
se limitar a concorrência pode significar racionalidade - menor desperdício de riquezas e energias
de trabalho – pode levar também a obsolescência programada, ao “grande demais para quebrar”, e
outras práticas que geram custos sistêmicos exorbitantes além de impedir a seleção dos processos
mais eficientes e inovadores. Entre estas a produção da especulação, como diria Keynes (1983),
mais como regra que como exceção: é o que aparece como a mais improdutiva e execrável das
34 Como diria Hobson: “Tendo, pois, a forma de uma democracia econômica, dotada de um governo elegível responsável, a sociedade anônima é, porém na maior parte dos casos, uma oligarquia fechada: deseja-se o apoio monetário do público, mas não sua direção”. O que tornará seu governo bastante despótico, uma vez que “esse expediente de controle centralizado constitui a base racional de um poder financeiro que é responsável por grandes e perigosos abusos” (HOBSON, 1996, p. 240). A atualidade desta reflexão de Hobson quase não exige comentários. 35 Para Lenin no centro desta oligarquia financeira estariam os bancos a funcionar tal qual um “capitalista coletivo” mais racional. "Os capitalistas dispersos acabam por constituir um capitalista coletivo. Ao movimentar contas correntes de vários capitalistas, o banco realiza, aparentemente, uma operação puramente técnica, unicamente auxiliar. Mas quando esta operação cresce até atingir proporções gigantescas, resulta que um punhado de monopolistas subordina as operações comerciais e industriais de toda a sociedade capitalista, colocando-se em condições - por meio das suas relações bancárias, das contas correntes e de outras operações financeiras -, primeiro de conhecer com exatidão a situação dos diferentes capitalistas, depois de controlá-los, exercer influência sobre eles mediante a ampliação ou a restrição do crédito, facilitando-o ou dificultando-o, e, finalmente, de decidir inteiramente sobre o seu destino, determinar a sua rentabilidade, privá-los de capital ou permitir-lhes aumentá-lo rapidamente e em grandes proporções, etc." (LENIN, 2011, p. 144).
modernas funções capitalistas. Mas mais uma vez, mostrar quão perniciosas ou improdutivas estas
sejam, ao nosso ver, só reforça a necessidade de vê-las no seu conjunto.
Se temos em mente que nas sociedade modernas todo e qualquer indivíduo participa de
algum modo (mesmo que frequentemente improdutivo36 ) do amálgama de trabalho tornado
abstrato37 e viva uma vida subordinada ao capital, mesmo não colaborando para a produção de
nenhuma forma de riqueza, produzindo serviços que (como as finanças especulativas) ajudam na
reprodução do sistema (com tudo de irracional que haja nele), podemos ver que o capital explora e
aliena mesmo os seus donos.38
Em suma, quisemos defender aqui que a especialização do capitalista como gestor e
estrategista mesmo que devolva para a produção de mercadorias as tarefas mais intelectuais que ele
retirou dos produtores diretos na passagem para o capitalismo, novas funções vão surgindo
associadas ao crescimento da complexidade do sistema. Se parte destas novas funções são
produtivas somente no sentido anárquico e irracional da reprodução capitalista, outras vão no
sentido de uma racionalização que se choca inclusive com os desígnios da acumulação. Tais tarefas
de racionalização do processo produtivo, incluindo a distribuição, devem sobreviver ao próprio
capitalismo, mas desta vez não mais executadas pelos capitalistas. Como e por quem, é o que
deveremos responder. Mas já antecipamos que nos parece algo fantasiosa a ideia de que possamos
dispensar todo o trabalho de mediação, e com isto nos livrarmos do problema do poder. Ideia esta
que figura na formulação de Engels (1977, p. 332) sobre o comunismo como algo onde “o governo
das pessoas é substituído pela administração das coisas”.
4) O Estado não é o escritório da burguesia, é o lócus de articulação da dominação.
Podemos dizer que a forma burguesa do Estado se constitui ao mesmo tempo que a
sociedade burguesa, ou o capitalismo (mais precisamente, europeu ocidental); que as classes
burguesas vão passando a dominantes justamente ao instituírem novas formas de participação
política junto a novas formas de vida econômica, o que significa construir a instituição Estado ao
mesmo tempo que o mercado, e também a si mesma como classe orgânica. Trata-se como sabemos
de um processo lento, ainda que mais acelerado em algumas partes do continente europeu. Sabemos
que passado o momento inicial da acumulação primitiva e hegemonia do capital mercantil (onde a
burguesia comercial não se indenpendentiza dos favores dos monarcas e estes, por sua vez, não se
indepentendizam da nobreza e não constituem uma figura política própria) será com a consumação 36 Apesar da importância que Marx dá a esta questão, não é absolutamente clara a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo. Muitos autores, como Jappe (2006) alertarão que o que torna produtivo um trabalho qualquer é que o produto que ele crie retorne a produção, consumido pelos demais trabalhadores ou usado por eles como bem de investimento. 37 Lembremos que, para Marx, o que torna indistintas toda e qualquer forma de trabalho não é o que ocorre num processo produtivo específico, mas a generalização das trocas mercantis compatíveis com a liberação do trabalho de vínculos obrigados. Daí Marx explicar porque era impossível para Aristóteles entender o valor. (MARX, 1996a, p. 187). 38 Obviamente, as condições desta exploração e alienação divergem, mas podemos dizer que o que muda é a qualidade da gaiola, não o fato de o serem. De todo modo, haveria que fazermos pesquisas no intuito de mostrar o que nos parece intuitivo, que nunca antes na história o fazer dos que se colocavam na posição de grupo no poder foi tão semelhante aos de seus subordinados. Seria o outro lado de todo uma agenda de pesquisa já existente que coloca enorme ênfase no papel dos hábitos e modos de vida (à la Bordieu e outros) na diferenciação entre as classes.
da Revolução Francesa que o Estado nacional adquirirá tal figura, que se afigurará tão importante
que Hegel o verá como “o princípio racional em si e para si do homem”39.
Marx será um crítico da visão hegeliana do Estado onde este é lócus (e agente) da
reconciliação entre a particularidade - da sociedade civil onde se situam os conflitos individuais e
de classes - e a universalidade - onde todos se reconhecem como cidadãos de um Estado - via
mediação da vida ética. A revolução política burguesa seria assim, segundo Marx, parcial e
insuficiente uma vez que não realizaria a emancipação formal no Estado para a realidade
socioeconômica40. Se os interesses de classes não podem ser objeto de uma síntese universal no
Estado, apenas o fim das classes o permitiria, o que traria a desnecessidade, no comunismo, do
próprio Estado. Porém Marx não desenvolveu nenhuma teoria do Estado. De fato, o que há são
referências esparsas em sua obra onde este aparece, ora de forma mais simplista como “comitê para
gerenciar os assuntos comuns de toda burguesia” (MARX e ENGELS, 2011, p. 13), ora de modo
mais complexo como “mediador entre o Homem e a liberdade do Homem” (MARX, 1996c, p. 186),
ou até mesmo não aparece, de modo a ser acusado de despolitizar as análises sobre o capitalismo41.
Do nosso ponto de vista, uma investigação mais rica acerca do papel do Estado (seja para a
mera reprodução do capital, seja para a ambiciosa emancipação humana) deve partir justamente das
diferentes formas que este assume, por mais que seja difícil precisá-las. Para que se reconheçam
estas mudanças de formas há que se romper com a ideia de um conteúdo que lhes subjaz inerte, e,
ao contrário, ver nestas um espaço para a reconfiguração daquele. Também há que se romper com a
ideia de que tais formas fazem parte de uma superestrutura (jurídica e política) em separado de uma
infraestrutura (econômica).
Mesmo sem avançar aqui no que seriam estas formas típicas42 em diferentes períodos
históricos43, gostaríamos de mencionar que as formulações em torno do Capitalismo Monopolista
39 “O fim racional do homem é a vida no Estado.” (HEGEL apud INWOOD, 1997, p. 124). “A essência do estado é o universal em si e para si, o racional da vontade; mas enquanto é sabendo-se e atuando é pura e simplesmente subjetividade, e enquanto efetividade é um só indivíduo.” (HEGEL, 2011, p. 305). Perspectiva essa distinta de outra que funda o liberalismo, a de Kant, para quem a razão jurídica aparece como resultado da deliberação individual e a realização da liberdade como amparada nesta esfera. Ver “Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?” e “Que significa orientar-se no pensamento?” In KANT, 2008. 40 “(...) o Homem se liberta por meio do Estado, liberta-se politicamente de uma barreira, ao se colocar em contradição consigo mesmo, ao se sobrepor a essa barreira de modo abstrato e limitado, de modo parcial. Segue-se, além disso, que o Homem, ao emancipar-se politicamente, o faz por meio de um subterfúgio, através de um meio, ainda que seja um meio necessário” (MARX, 1996c, pp. 185-186). “O limite da emancipação política se manifesta, imediatamente, no fato de que o Estado possa livrar-se de um limite sem que o Homem dele se liberte realmente; no fato de que o Estado possa ser um Estado livre sem que o Homem seja um homem livre” (MARX, 1996c, p.185). 41 Ver FIORI, 1999. 42 E sabedores das dificuldades que seria trabalhar com estes tipos que, como salienta Marx (2009), são ficções, menos justificáveis que aquelas que usamos para as sociedades: “A ‘sociedade atual’ é a sociedade capitalista, que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de complementos medievais, mais ou menos modificada pelas particularidades do desenvolvimento histórico de cada país, mais ou menos desenvolvida. Pelo contrário, o ‘Estado atual’ se modifica com as fronteiras de cada país. No Império prussiano é diverso do que existe na Suíça, na Inglaterra é diferente do dos Estados Unidos. ‘O Estado atual’ é, portanto, uma ficção”. 43 Para construir “tipos ideais” mais complexos precisaríamos incluir nestes determinações que não se prendessem ao econômico. Apenas a título de sugestão, poderíamos pensar em algo como: i) o Estado Absolutista; ii) o Estado Constitucional (republicano e democrático para dentro e imperial para fora) da fase de consolidação do capitalismo industrial; iii) o Estado do Bem-Estar, que se inicia no entre guerras mas se generaliza na fase pós segunda guerra; iv) o Estado Neoliberal, dos nossos dias (que substitui o Estado do Bem-Estar no centro do sistema e o aborta lá onde no máximo se constituiu um Estado Nacional Desenvolvimentista).
de Estado (CME), que motivou todo um debate entre marxistas entre os anos 50 e 80 do século
passado44, e que parecem ter sido superadas nas discussões, digamos, mais acadêmicas, ainda
informam certos grupos políticos marxistas que desconhecem as críticas a estas concepcões como
sendo limitadas a ver no Estado apenas o seu “lado coisa”, como diria Poulantzas (1984). Tais
considerações do papel do Estado como mero instrumento é justamente o que queremos criticar,
pois estas não apanham a dimensão do Estado enquanto sujeito – ainda que não livre e
independente como nas formulações liberais – mas como sujeito do qual nós mesmos, os críticos,
somos partes constitutivas. O que significa que participamos, ajudando a construir o processo de
dominação que recai sobre nós. São as lutas e os conflitos, os quais o Estado media, que vão
construindo a própria materialidade desse Estado (daí Poulantazs falar em “condensações materiais
de conflitos”) e vão condicionando assim as lutas futuras. Senão, vejamos...
Sabemos que nas formas primeiras de constituição dos aparatos jurídico-políticos, acima e
ao lado da sociedade civil, que marcam o nascimento da forma Constitucional do Estado,
encontramos uma sua fundamentação na igualação entre indivíduos promovida pela economia
mercantil. Assim é que Marx, partindo da submissão do Estado à sociedade civil, reconhece que
existe nesta uma “relação de direito” anterior (já algo “superestrutural”), que será instituída pelo
Estado e sua superestrutura jurídica e política45. As origens do contrato político estão na própria
generalização da produção mercantil e na sua liberdade e igualdade necessárias para a efetivação da
troca econômica de mercadorias. Isso significa que desde a saída os “indivíduos não são apenas
suportes mas sujeitos de direito. A relação é assim ao mesmo tempo econômica e jurídica.”
(FAUSTO, 1987, p. 295).
Todavia, importa ressaltar que há um salto entre as relações contratuais na troca e a sua
hipostasiação pelo Estado; algo como uma transposição do direito (pressuposto) para o Direito
(posto)46. Salto este que anda de par com um outro que, no lugar da harmonia contratual baseada na
equivalência de valores, estabelece o conflito entre possuidores e despossuídos de meios de
produção tão logo eles se tornem conscientes disso, uma vez a base contratual econômica originária
ao adentrar os movimentos do capital, gesta a apropriação de trabalho e a reprodução das
desigualdades47. Essa interversão da igualdade em desigualdade e dominação é responsável pelo
44 Para uma apresentação mais detalhada vide TEIXEIRA, 1983. 45 Devemos assim relativizar argumentos que supõem que nas sociedades contemporâneas a tradição tem pouca ou nenhuma relevância; pois só tem pouca relevância se pensarmos que ela se apresenta no aparato estatal como um ordenamento racional burocrático diferente. No entanto, “o surgimento e a consolidação de um quadro jurídico e político separado, ao qual todas as outras partes da superestrutura têm de estar sujeitas, deve sua determinação a fatores sócio-históricos muito mais recentes que a constituição original da superestrutura como costumes e tradição. (...) [Esta] continua sendo o constituinte estrutural e ontologicamente fundamental, não obstante a posição dominante da lei e da política ao longo da história das sociedades de classe” (MÉSZÁROS, 2011, p. 103). 46 “Uma sociedade que é coagida, pelo estado de suas forças produtivas, a manter uma relação de equivalência entre dispêndio de trabalho e a remuneração sob uma forma que lembra, mesmo de longe, a troca de valores-mercadorias, será coagida igualmente a manter a forma jurídica” (PACHUKANIS, 1988, pp. 28-29). 47 Tal movimento encontra-se bem localizado n’O Capital na passagem da primeira seção para a sétima, onde a aparência da circulação simples e da troca de trabalhos iguais sofre uma interversão na qual o trabalho alheio paga a própria força de trabalho contratada à medida que os ciclos reprodutivos do capital realizem o valor do capital inicial investido. Daí Fausto dizer que “(...) o Estado capitalista (considerado a partir das formas) não deriva da contradição entre classes, ele deriva da contradição (interversão) entre a identidade e a contradição” (FAUSTO, 1987, p. 293).
adjetivo “formal” às democracias ocidentais e, de fato, marca um lado para o Estado atuar
privilegiadamente. No entanto, isto significa também que o conflito foi internalizado no Estado. Se
é assim, este não poderia ser derivado linearmente das necessidades de uma classe social, fora da
pressuposição de uma comunidade, da qual estas emergem com luta, e luta esta que se dá com a
atuação do Estado de “n” formas e em “n” palcos diversos. Desde então, o Estado não é correia de
transmissão dos interesses da classe dominante, mas tão pouco é o defensor do interesses da
“comunidade”. Como dirá Fausto, (1987, p. 324) “o Estado é e não é a comunidade”48. Assim:
“O Estado (...) é o guardião da identidade. Ele garante o funcionamento de relações que não podem ser abandonadas a elas mesmas, mesmo em circunstâncias normais, justamente porque elas são contraditórias. Essa função o Estado exerce cristalizando a aparência do sistema (da base do sistema) e o garantindo pela violência. Por outro lado, a própria fixação dessa aparência enquanto universalidade abstrata supõe uma universalidade concreta (comunidade).” (FAUSTO, 1987, p. 311).
O que se passa é que, ao longo da história do capitalismo, cresce a profundidade daquelas
contradições e exige-se do Estado um reforço, bastante diferenciado no tempo e no espaço, desta
“universalidade concreta”, que transita da sociedade civil para o Estado e que implica certo
processo (e trabalho) de racionalização. Desta mesma compreensão compartilha Poulantzas (1984),
para quem o trabalho da burocracia e as realizações do Estado dele resultantes não podem ser
analisados nem a partir da “lógica mercantil” (empobrecimento da perspectiva materialista de
Marx), nem da lógica “não-utilitarista”, “corporativista”, de matriz weberiana. A lógica capitalista
que é constitutiva do aparelho estatal é a lógica da divisão das classes – ordenada, regulamentada, e,
inclusive, em diversos casos, instituída pelo Estado (sendo pois, ao mesmo tempo, a função e a
razão de ser deste) – e da divisão do trabalho – especialmente a divisão entre trabalho manual e
intelectual. Desse modo o Estado aparece como espaço dentro da sociedade onde se articulam as
relações de produção dominantes.
Resta lembrar que para tanto é fundamental a sustentação de uma aura de neutralidade do
Estado que repousaria numa certa autonomia da política em relação aos conflitos da sociedade civil
permitindo ao Estado atuar administrando benefícios e construindo vantagens mútuas para os
conflitantes tendo em vista a reprodução do capital. Não se trata, tão somente, de controlar as
demandas sobre o Estado dos interesses conflitantes, mas de manter burocracia estatal,
principalmente nos momentos críticos, apta a identificar mudanças no caráter dessas demandas, de
tal modo que possa reagir a estas sem forçar os limites do arranjo original. Poulantzas, como um
autor esclarecido acerca destas questões, as sintetiza afirmando que:
“A separação do Estado e da sociedade civil, ou seja, o caráter verdadeiramente político do Estado capitalista, se manifesta [...] no caráter de universalidade que reveste um conjunto particular de valores que constituem os fatores objetivos de estruturação a mediação específica entre a base e a supra-estrutura política das instituições de um Estado engendrado por um ‘tipo’ particular de modo de produção que caracteriza a formação social capitalista-intercambista. Este conjunto de ‘valores’ desempenha não simplesmente um
48 “Quando o Estado capitalista (...) realiza certas tarefas de interesse coletivo, é inútil supor que a sua ação deva ser explicada em todos os casos a partir das necessidades objetivas da produção ou ainda do interesse de classe. O Estado capitalista realiza tarefas de interesse coletivo porque como todo Estado ele representa o interesse coletivo. Só que ele representa esse interesse no interior do modo de produção capitalista. E essa particularização é nessa medida uma ‘negação’ da primeira determinação. O Estado no interior do modo capitalista serve à coletividade, mas na forma pela qual o modo de produção transfigura esses serviços” (FAUSTO, 1987, p. 324).
papel ideológico de justificação, mas a função de uma condição de possibilidade das estruturas objetivas do Estado representativo moderno.” (POULANTZAS, 1984, p. 11).
A política de Estado é assim relativamente autônoma graças em primeiro lugar a este pano
de fundo de defesa de valores de “liberdade e igualdade formais e abstratos”. Em segundo lugar
estes ganham concreticidade no modelo de forma jurídica que permite reconhecer demandas
trabalhistas. Em terceiro, a burocracia estatal vai além, antecipando demandas e encaminhando
mudanças nos arranjos políticos-institucionais. Desde o princípio este esvaziamento do conteúdo de
classe permite que o Estado se transforme no negociador de demandas e mudanças estruturais
falando em nome do “bem geral”. E isso não apenas porque ele anuncia a liberdade e igualdade
enquanto oculta os conflitos mas porque administra esse jogo duplo sustentando uma cisão para
com a sociedade civil, o que permite que se apresente como um “Estado-popular-de-classe” com
“suas instituições organizadas em torno dos princípios da liberdade e da igualdade dos indivíduos
‘ou’ pessoas políticas [enquanto] o sistema jurídico moderno (...) reveste um caráter ‘normativo’,
expresso num conjunto de leis sistematizadas a partir dos princípios de liberdade e de igualdade: é o
reino da ‘lei’.” (POULANTZAS, 1984, pp. 42-43).
Há aí o que Poulantzas identifica como um “efeito isolamento”49 no qual as estruturas
jurídicas ocultam aos agentes as suas relações como relações de classe (POULANTZAS, 1984, p.
49). Ou seja, a partir da igualdade entre sujeitos no Estado, as classes passam a se relacionar entre si
como indivíduos na esfera privada, o que permite ao ordenamento estatal conduzir políticas no
sentido de atingir o “bem geral”. De tal modo que “enquanto as relações de produção privatizam os
indivíduos (...) o político visa traduzir essas relações privadas sob a forma de “interesses gerais” da
sociedade” (SADER, 1993, p. 108), os quais apesar de contemplarem as diferenças entre as
condições estruturais dos contratantes econômicos, ficam incapacitados de resolver a contradição
inerente ao conflito de classes. Ou seja, a forma do Estado capitalista carrega em si o caráter da
ideologia mercantil.
Até aqui usamos o termo sociedade civil para distinguir o Estado (Marx só o usa em suas
obras iniciais) no intuito de refutar certas concepções marxistas vulgares do “Estado como Coisa” –
apropriada como tal pela classe capitalista dominante. Mas a separação dessas esferas não pode ser
entendida como dissociação simples pois então cairíamos no conceito burguês de Estado, o qual o
entende como instância racional e positiva, ou seja, um “Estado como Sujeito”50. Em suma, Já
comentamos que, na primeira versão, o Estado aparecer como meramente funcional tem a ver com
resumir as contradições do sistema à apropriação privada de trabalho coletivo. Contudo, se
49 “Este efeito de isolamento é terrivelmente real e tem um nome: a concorrência entre os operários assalariados e entre os capitalistas proprietários privados.” (POULANTZAS, 1984, p. 49). 50 Este, como aponta Marx, só poderia atingir o que promete via revolução permanente: “Nos momentos de seu amor próprio especial, a vida política trata de aniquilar o que é sua premissa, a sociedade burguesa e seus elementos, e a se constituir na vida genérica real do homem, isento de contradições. Só pode conseguir isso, entretanto, mediante contradições violentas com suas próprias condições de vida, declarando a revolução como permanente. E o drama político termina, portanto, não menos necessariamente, com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, do mesmo modo pelo qual a guerra termina com a paz.” (MARX, 1996c, p. 189).
enxergamos que a lógica da valorização interverte a lei do valor e espalha a contradição sociedade
civil afora, podemos ver o Estado tanto sustenta uma igualdade formal sob “pés de barro”, quanto
constrói bases mais “racionais” para a reprodução social.
Antes de seguir perguntando que racionalidade é esta, até que ponto se resume aos próprios
interesses de longo prazo do capital (de que capitais e a contra gosto de que outros) e como é visada
pelas distintas formas do Estado, nos resta ainda analisar o exemplo dado pelo próprio Marx de
como o Estado age na mediação de interesses das classes dominante e dominada. Trata-se da
análise d’O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, onde o Estado bonapartista é mostrado como não
representando classe alguma, ou antes, buscando se legitimar em uma não-classe, no campesinato.
Como diz Sader (1993, pp. 110-111):
“O Estado bonapartista é um Estado de classe, para Marx, bem como todos os tipos possíveis de Estado. Porém, Estado de classe quer dizer Estado de uma sociedade dividida em classes; nesta se encontram as raízes do seu caráter classista, como também do fato da cultura, do direito etc. marcarem-se pela ideologia. A expressão “instrumento das classes dominantes” só tem sentido quando explicitada dessa forma. Porque não se identificam sumariamente “interesses das classes dominantes” e comportamento do Estado; este representa o produto de uma relação com a totalidade das relações sociais, isto é, o Estado representa a relação dos interesses das classes dominantes com os das outras classes sociais. (...) Assim, quando Marx diz que o Estado é instrumento das classes dominantes, não está afirmando que é a posse do Estado que lhe dá esse caráter, mas sim que, porque são classes dominantes, o Estado, enquanto preserva as relações sociais que lhes favorecem, funciona como instrumento seu.”
Pode se pretender que tais observações só se fizeram necessárias no contexto particular do
governo do sobrinho de Napoleão, mas do nosso ponto de vista as observações de Marx de que a
burguesia sabia que precisava impedir "o perigo de seu autogoverno", que o parlamento burguês
deveria ser posto a descansar e ela ser posta no nível das outras classes, e que é justamente por agir
como uma sociedade particular e independente no mecanismo do Estado que a burocracia assegura
a realização dos interesses da classe dominante capitalista, apontam para uma tese mais geral, a de
que o Estado deve poder ter autonomia para poder alcançar uma racionalidade de poder mais ampla,
estável e legítima.
Dito isso, podemos nos deter sobre que racionalidade que é ou não acessada pelo Estado
(mais precisamente por sua burocracia). E como fazer isto sem corrermos o risco de, ao rechaçar as
teses simplistas do Estado como escritório da burguesia, abraçarmos as teses idealistas do Estado
civilizador do capital? De certo modo é esta a aposta hegeliana recusada por Marx. E isto porque,
para Marx, não é a razão ou espírito, mas o capital que é a substância auto-movente que é sujeito do
seu próprio processo (HEGEL, 1992, p. 29). E não à toa a transição para uma sociedade superior é
um processo complexo porque o proletariado deveria tirar do capital e assumir para si este papel de
sujeito, o que, de Lenin em diante, poderia ser feito via o Estado desapropriando o capital.
O insucesso da experiência soviética e o constante reexame das teses originais de Marx,
leva-nos hoje a dois tipo de teses. Uma primeira, defende que o capital carrega as relações sociais
de um modo que não podem ser captadas pelas relações de classe, uma vez que “a lógica do capital
não é uma manifestação ilusória das relações de classe subjacentes mas é uma forma social de
dominação inseparável das formas/relações sociais características do capitalismo” (POSTONE,
2004, p. 61). Na prática, isso inviabilizaria uma crítica do capitalismo a partir do trabalho com todas
as suas consequências, entre as quais, a defesa do proletariado como classe revolucionária capaz de
colocar o Estado a seus serviços51. Uma segunda, aposta ainda que os conflitos de classe, e a
dominação resultante, tem uma dimensão outra – fora da materialidade (social é verdade) posta no
capital –, no trabalho burocrático. É a tese que afirma que a burocracia é “o institucional, quase
transcendental, racionalizador da irracionalidade estrutural do capitalismo” (CISTELECAN, 2011,
p. 7) um “mediador não evanescente”, cuja missão perpétua é “erradicar sua missão”.52
Não podemos levar adiante esta reflexão, e sequer podemos apresentar as teses evocadas
acima. Mas quisemos mostrar que ambas evidenciam a necessidade da construção de teorias mais
complexas acerca do que é (e do que pode) o Estado nesse momento. Relevante é pensar que isto
remete justo ao papel do trabalho, histórico ou ontológico. Assim, enquanto Postone (2004, p. 68)
critica a trans-historicidade do trabalho como um mediador maior que a sua forma concreta posta no
capital, este sim, “o gerador do complexo dinâmico histórico (...) que coloca a possibilidade de sua
própria superação”; Cistelecan (2011, p. 21) aposta no trabalho da burocracia justo como mediador
trans-histórico, que herda e desenvolve um papel, ou uma atividade, “a partir da qual são
estabelecidas os diferentes domínios de toda atividade”.
REFERÊNCIAS:
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51 Para Postone seria pois o caso de “abandonar a hipótese trans-histórica de que a história humana em geral tem uma dinâmica, para demonstrar que uma dinâmica histórica é uma característica historicamente específica do capitalismo. Esta dinâmica dialética não pode ser capturada nem em termos do estado nem nos da sociedade civil. Antes, ela existe ‘para além’ delas, modelando cada uma tanto quanto suas relações” (POSTONE, 2004, p. 64). 52 Daí Cistelecan dizer “paraphrase Guy Debord, unites the separate, but it unites it only as separate: while ensuring that the historical contingency is sublated into a natural necessity, it also sees that concerns regarding the expert organization of economy and the social deliberation of politics are properly kept apart.” (CISTELCAN, 2011, p. 171).
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Vulgaridades teóricas debilitadoras del marxismo: “la plusvalía es un robo”, “el capitalista no trabaja”, “el Estado es la oficina de la burguesía”. Resumen: El presente artículo defiende la necesidad de reforzar la comprensión de las mediaciones dialécticas que nos permiten comprender cuales fenómenos inmediatos están cargados de una lógica contradictoria. Lógica esta solamente percibida cuando se persigue los enlaces o encadenamientos y
fraccionamientos de las formas históricas. Formas estas que, por su vez, sólo pueden ser percibidas tal como son si no identificamos en el inmediato la única forma posible de existencia de lo que sea. Así, la plusvalía no es sólo el lucro surgido en la esfera del cambio; el capitalista no es solamente la persona beneficiada por la apropiación sucedida también en esta esfera; y el Estado no es la operacionalización de un conjunto de acciones fácilmente definidas que tienen como objetivo la dominación. Palabras clave: dialéctica, marxismo, plusvalía, estado
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