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BENAMONTE Teresa Salema Benamontez v$feb tòf** PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA Capa: estúdios P. E. A. (c) Teresa Salema 1997 Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passívei s de procedi mento j udici ai Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8

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BENAMONTE

Teresa Salema

Benamontez v$feb tòf**

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA

Capa: estúdios P. E. A.

(c) Teresa Salema 1997

Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia,

xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica

do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte

prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passívei s de procedi mento j udici ai

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.

Apartado 8

2726 MEM MARTINS CODEX

PORTUGAL

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[email protected]

Edição n.°: 103401/6866 Outubro de 1997

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra Mem Martins

DcpÓMlu Icgjl n l 11729/1)7

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

Teresa Salema nasceu em Lisboa, em 1947. Licenciada em Estudos Germanísticos, Ciências Políticas e Ciências da Comunicação, integra actualmente o corpo docente do

Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras de Lisboa.

Para além de diversos textos científicos na área da sua especialidade, publicou também quatro romances:

Entre Dois Países. Estaçõespara um Romance (1918, sob o nome de Teresa Rodrigues Cadete);

Nós, Outros (1979, em colaboração com Casimiro de Brito);

Educação e Memória de André Maria S. Tríptico;

O Lugar Ausente.

1. Não encontro palavras.

2. Mãe preta

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3. "Falagui malakiá"

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NÃO ENCONTRO PALAVRAS

Não sei o que you encontrar, apenas respondo à mensagem de Leónia no gravador, Logo que possas.

Não corro, antes meço os passos como se pisasse arame no vácuo, hesito entre o dever de amigo e o desejo de chegar tarde de mais. Vejo os filmes possíveis, todos

se vão desfazendo em absurdos, é agora mais do que evidente, anseio por ver tudo consumado, pacificado de qualquer maneira, a desfazer-se por resignação, piedade,

desleixo, destruição. Já só quero à chegada cumprir um papel mínimo, como o de saudar com reserva cordial quem lá estiver, encostar-me à cena que ainda reste, ficar

no retrato com um mínimo de movimentos. Ou, então, consolar, recolher o que resta.

Quem estará lá? Leónia, sempre com pose e estatura de guardiã, talvez mais rígida do que o habitual, ou talvez descomposta pela emoção, quem mais? Salvador, magro

e esquivo, talvez Homero a acompanhá-lo, talvez Nuria, vinda de parte incerta. A inevitável Sora. Já sabemos da ausência de Frederico.

Depois de uma passagem das caras conhecidas, o filme parece parar no tempo e o cenário torna-se deserto, apenas com escuridão húmida a colar-se às paredes de hera,

cinzas ainda quentes, papéis rasgados no jardim, dejectos humanos, animais? E tudo se emaranha num amontoado orgânico, aperta-se em contracções vitais, o fechar

e abrir de uma planta, a boca de um peixe, mas nada é pesadelo, antes um recomeço de história tomando corpo entre medos avolumados e memórias à deriva.

Há quanto tempo não voltava a Benamonte?

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TERESA SALEMA

Não sentia os pés, já bastante andados para cá da estação. Tudo parecia como nos tempos em que corríamos a reunir-nos em Zoon, a partir do fim da tarde os gradeamentos

ao longo do passeio, luzes presas às janelas dos prédios, o cheiro, a maçã frita de um vendedor ambulante. Os plátanos aparavam a humidade, respiravam o cheiro acastanhado

de Outono. Mais adiante, as casas acabavam e só ficava a borda do passeio para recordar a avenida construída pelo avô de Leónia.

Começavam ali os acampamentos, cogumelos, improvisados.

Alguém cantava a várias vozes. Olhei mais de perto as figuras sentadas em volta de fogos baixos, os compassos de palmas, os cães que competiam com o choro das crianças,

colónia e colmeia de construções obsessivas, materiais de tabique recolhidos em quintais desabitados.

Começou a chover de manso. O canto fez-se forte, na pronúncia seca e gutural de que eu já entendia algumas palavras. Ninguém se levantou para barrar-me o caminho,

pedir-me uma moeda ou convidar-me a sentar junto às chamas, como acontecia uma vez ou outra. Parei junto de um vendedor de fruta frita e especiarias, dominei o enjoo

do óleo a ferver só para retardar a marcha. Enquanto era servido de uma pasta branca com passas e amêndoas, pensava nas perguntas a fazer ao vendedor, sempre para

ir atrasando, a tempo de deixar que tudo acabasse sem mim para lá do portão.

O homem parecia calmo e começou por dizer, enquanto doseava a porção, que era novo no sítio, que veio para ali porque alguém lhe contou que aquelas gentes davam

bom negócio, gostavam de doces e compravam tudo o que podiam com o ordenado pago pela senhora da quinta. Fez um sinal com o queixo para algumas tendas de comércio,

fechadas a essa hora desse princípio de noite. Tudo como dantes.

Tinha de seguir os vestígios da antiga avenida, as lanças do gradeamento, cruzar carcaças de automóveis que agora eram abrigos e tinham mantas a fazer de cortinas,

passar por animais a esfregarem as patas molhadas pelas orelhas ou esgravatando à procura de cheiros conhecidos. Manter

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o passo até chegar ao muro alto, passar os batentes do portão entreabertos com uma pedra, saudar com a cabeça e um monossílabo quem estivesse sentado num banco do

jardim, chegar à porta, tocar e talvez Salvador viesse abrir, depois de erguer o pesado reposteiro.

O frio húmido embebia-se no cheiro de plátano, de roupa humana ao relento. Um sinal de guizos fez-me seguir com os olhos o rasto de uma cicatriz escura, vertical,

na pele brilhante e lisa de uma mulher, e ela cantava, sentada, mãos em cruz no novelo escuro da saia, um estilhaço a ondular da testa ao pescoço, em forma de língua

e labareda. De repente, bateu as mãos e cantou sukhavu, sochamu na sua direcção, a cicatriz parecia erguer-se da cara e derreter-se no calor da roda e do álcool,

das roupas endurecidas pela terra e palha.

Corria o risco de ali ficar, de afundar-me em conversas que embebedavam com sons enrolados e cheiros de couro e metal, de aceitar uma bebida que já não me deixasse

levantar. Alguém chamava para o pé de si e isso bastava-me para querer seguir uma voz que apelava à piedade pela cicatriz e à veneração pela cara oval, tudo numa

só mulher. Ela pareceu pressenti-lo, porque me deitou um olhar que parecia ora sofrer, ora seguir um transe indiferente às dores do momento, às necessidades de comida

e tecto.

A um determinado sinal, fez-se ouvir no escuro um ritmo de tambor enquanto três homens traziam uma panela enorme. Estava a um passo de tornar-me instrumento, de

dissolver os restos de vontade, de aproximar-me do lume, Ei, tu! exclamou a mulher numa língua que de repente se percebia e apontando na minha direcção, Come

connosco.

Como se acordasse não sei de que pesadelo, quis convencer-me de que nada disso me dizia respeito e desatei a correr, esquecendo as dores e sem reparar em que passos

podia tropeçar, entre destroços oleados, ao brilho da chuva miudinha. Sentia o ar a arder nas narinas mas continuava, seguia uma memória desconhecida, um caminho

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com pedras alisadas, com luzes para guiarem até ao refúgio. Quando dei por mim, tinha passado o portão e estava

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TERESA SALEMA

no jardim, a poucos metros da porta fechada. Hesitava, olhava em volta, o fumo embaciava tudo, fumo de objectos queimados pelos habitantes da noite. E subia, o fumo,

por entre as ramagens de cobre. Perfurava a respiração, intrometia-se nos o*sos doridos da humidade. No pavilhão ao fundo do jardim, as janelas abertas deixavam

ouvir cantares lentos e graves naquela língua que já fizera capitular Frederico diante de toda a espécie de dicionários.

A porta da casa continuava fechada, as persianas das janelas corridas.

Do pavilhão abriu-se uma saída lateral, um homem correu a mijar ao canto do muro e continuava a fazer eco solitário às palavras musicadas lá dentro. Desatou a rir,

como se estivesse perdido de bêbedo, a fazer variações em notas goliardas, ao que do interior se fazia ouvir com solenidade e concentração; parecia jogar com o membro

na mão, arqueando o líquido na luz húmida ao ritmo do canto. Ao ver-me, riu ainda mais alto e acenou-me com a outra mão para se aproximar, e começou a apanhar galhos

secos do chão. Mas já Salvador abria do lado oposto meia porta da casa, tabaco e vozes, cadeiras arrastadas. Corri para ele e ouvi-o dizer a meia voz, Entra primeiro

para aqui. Logo nos vêm chamar para irmos ao pavilhão.

Ao ver que eu continuava indeciso junto ao espelho do patamar, murmurou Estranhas criaturas temos ali, chegadas há bocado. Amigos da Leónia.

Subi o lance de cinco degraus, entrei no salão e olhei sem disfarce, no foco do primeiro instantâneo. Cerca de sessenta anos, cento e vinte de casal. Homem de barba

branca e cachimbo, mulher de turbante claro e pérolas compridas, perfil de águia. A terceira figura era mais nova embora mais calva, trazia lentes redondas, olhos

líquidos e medidas finas nas feições. Era filho deles? Entre eles falavam uma língua que não se entendia, para fora um francês polido.

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Depois de uma breve apresentação, senteime numa mesa próxima para continuar a observá-los. Era evidente que não se tratavam de refugiados mas de viajantes, que pareciam

vindos de outras épocas, desses que andavam com malas de compartimentos e não dispensavam roupa à

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BENAMONTE

medida, alfaiate e modista. Um trio, dois grisalhos espigados, um loiro que não se parecia com eles e todos pareciam saídos de uma biblioteca, ou desses salões onde

círculos privavam consigo próprios, aplicando-se no exercício de comentar os dramas universais e as chalaças quotidianas, depois de ter entregue os abrigos da rua

no vestiário. O homem mais velho rodava a mão na ponta de prata de uma bengala. A mulher, talvez antiga actriz com máscara de aproximação a juventudes agora quase

póstumas, alucinadas, embalsamava as pontas dos dedos, a nuca e a atmosfera espessa com um aroma tumular. Donde os conhecia Leónia, de que férias ou excursão ou

visita a amigos de amigos? Não pareciam cansados.

Depois de certificar-se de que eles o entendiam, Salvador contou-lhes, num inglês diluído, que os habitantes do pavilhão tinham insistido em preparar a cerimónia

e que viriam chamá-los quando terminasse a parte mais íntima, a que só podiam assistir Leónia e a família do patriarca. Ao passar por mim, segredou Domingo vamos

à caça, aos patos bravos. Depois seguimos para Vincos, festejar os oitenta anos da avó de Homero.

Voltou à tarefa de equilibrar cinzeiros, servir líquidos. Embora se soubesse que tinha começado a frequentar um curso de gravador numa cooperativa de artes e ofícios,

tornava-se difícil imaginá-lo num cenário que não fosse o que restava daquelas mesas, paredes e espelhos. Muito menos ele e Homero juncos fora, agarrando pelas asas

um pássaro ainda morno. Peregrinavam pelas madrugadas dos fins-de-semana, contrariando trânsitos para a lareira da família de Homero, que lhes cedia dois quartos,

cada um com a sua cama de ferro, arca de linhos, (Gostavam de convidar amigos e também me apanharam num fim-de-semana, em estação morta. E eu cedera, como quase

sempre, ao pensar que também Nuria ia lá estar. Acabei controlando o álcool à lareira, com peregrinação ao café da aldeia a soluçar de chuva, leitura de revistas

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atrasadas.)

Salvador cantava baixinho, velejava entre mesas, talvez no gozo antecipado de brisas, madrugadas mal dormidas, pensei, mas que sabia no fundo? Só podia imaginar

um silêncio largo, breve ruído de indício de bicho, a luz do dia

TERESA SALEMA i

subindo aos poucos, o ácido do ar nas narinas, tudo guiada] pelo faro e instinto seguro do companheiro. Homero vem! cá ter? ;

Nuria também não tinha chegado de mais uma das suas| viagens. Estajnformação deixou-me ainda mais perplexo por ter sido transmitida por Sora, sentada num canto,

obstinado e indiferente à língua sibilina dos visitantes.! Faltava também Frederico, que ninguém conseguia encontrar em casa. í Bateram à porta com toque apressado.

Salvador não j estava de momento na sala e Sora saiu ao patamar para \ abrir, puxando o reposteiro de feltro pesado que separava ; o salão da entrada, para que todos

vissem quem era, num gesto de quem vivia em permanente defesa. E foi como presa cercada que Sora se arredou, desconfiada e muda, para que todos ouvissem o que dizia

o homem vestido de escuro com voz quente e um mínimo de frases aprendidas para pedir que aceitassem, enquanto esperavam, uma parte da sua comida. Trazia uma tigela

ainda quente, que entregou a Sora num pano branco bordado a vermelho, desaparecendo na noite do jardim. Ficámos todos suspensos dessa figura; Sora fez um gesto aflito

com o recipiente nas mãos, como se temesse peso ou queimadura, e Salvador surgiu no momento oportuno para lhe aparar a tigela e levá-la para a mesa dos forasteiros,

Ora aqui está uma especialidade dos nossos hóspedes, que festejam o dia do seu padroeiro.

As palavras soavam a falso, mas não podíamos fazer mais nada do que agarrar-nos a elas. Obedecemos ao sinal para nos aproximarmos e molharmos um pouco de pão no

guisado, que tinha um cheiro muito agradável a especiarias e onde boiavam carnes e legumes de cor indistinta. Enquanto Salvador trazia pratinhos e talheres para

todos, desculpando-se por haver pouco pão. experimentavam-se formas de conversa; e foi numa profusão enredada de línguas que cada um dos presentes foi acrescentando

pormenores acerca do grupo ali instalado havia meses.

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A comida tinha um sabor excelente, diluía-nos, pacificava. Olhei em volta era tudo o que restava da casa

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herdada de Emílio Soledo, do piso térreo batido por conspirações e discussão, intrigas e ironias, bebidas em peso, resignações, onde nos habituáramos a comentar

o que se ia passando, quantos anos, quantas noites a desfio? Fora Frederico a dar o nome de Zoon àquele enorme salão com portas vidradas, azulejos com cenas de caça,

mesas redondas e cadeiras de palhinha, uma poltrona gorda onde geralmente se sentava ele, chegado do outro extremo da cidade na sua velha bicicleta. (Quando chovia,

trazia um capote de pescador. Resfolgava um pouco na asma, sacudia o pó e o líquido e sentava-se com aguardente vagarosa, equilibrada com água, durante um serão

inteiro.)

De repente, a dama começou a cantar, como se ignorasse o momento presente, e para espanto de todos abriu um soberbo cordão de voz soul e engrossou-o de forma controlada,

na sua calma de gola alta e pérolas cinzentas em três voltas. Não se levantou, mesmo ao notar que se ia fazendo silêncio e que Salvador apagava algumas luzes. O

rapaz loiro tremia nos dedos e gotejava nas têmporas. Últimos acordes prolongados, segurados entre os espelhos que reflectiam as costas tensas, a nuca direita da

vocalista; após um silêncio de respiração funda, as palmas libertaram-se e senti reviver um pouco da atmosfera de anos anteriores, quando os corpos chegavam ali

depois de terem atravessado os dias e atracavam nas mesas ansiando por contarse, ouvirse, olharse e fumarse.

Ninguém, excepto Frederico e Leónia, tinha estado na cidade donde vinham a senhora e os seus acompanhantes, uma terra de nome molhado e quase impronunciável; sabíamos

vagamente pormenores soltos por imagens de satélite, palácios muito restaurados, pontes velhas, cidadela, do pintor maldito dela exilado voluntariamente e muito

cotado nos últimos anos. Todos ali pareciam desarmados, como miúdos obrigados a fazer sala diante da visita daqueles seres anacrónicos. Salvador desaparecera. Da

sala ao lado vinham sons metálicos, vozes em competição entusiástica. com licença, disse Sora, levantando-se da poltrona de Frederico. Quando voltou, já tinham

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reduzido a emissão a um ruído de bastidores e Sora, sem esconder o triunfo da pequena vitória junto dos adolescentes, anun-

C ONTEMPORANEA l 2

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TERESA SALEMA \

ciou, Humberta disse agora mesmo para irmos para o pavilhão e sairmos pela cozinha.

Disse que já lá ia ter e senteime na poltrona, que outrora pertencera a Soledo. Quando Frederico estava, ninguém lha"disputava, nem mesmo Alfredo. De resto, foram

raras as vezes em que Alfredo descia ao convívio. Ou, então, vinha dar dois dedos de conversa para voltar aos seus mapas no primeiro andar. Agora estava a ser ceie-;

brado um ano depois do suicídio, a ser homenageado não se sabia como, pelos grupos que ele e Leónia tinham deixado! instalarse dentro e fora dos muros e, pelos

vistos, ] também no piso térreo da casa.

Despedimo-nos no jardim embebido em nevoeiro. A dama e o senhor entraram em casa e subiram ao andar de cima, a convite de Leónia. Vito, o mais jovem, insistira em

ficar no quarto do hotel que já tinha marcado e perguntou-nos em que direcção íamos.

Entrámos no ar da noite. Alguns nódulos húmidos, troncos de roupa escura, dormiam em volta de cinzas. Caminhávamos, arriscávamos o descampado. Vito puxou um cigarro,

ofereceu outros e apertou o cinto da gabardina. Perguntou-nos se não nos importávamos de falar em francês e anunciou que ficaria por três meses. Sora perguntou-lhe

qual o papel que desempenhava nessa equipa, encarregada de avaliar a habitabilidade, o valor patrimonial da casa e da propriedade. Olhei-a de revés, temendo que

descarregasse os seus humores sobre alguém que para mim nada mais era do que um convidado de Leónia, com corte de perfil e maneiras de novela oitocentista. Num francês

de sacadas, Sora recarregou as perguntas e lamentou que dessa equipa não fizesse parte um historiador, inadmissível, e ela com o seu curso incompleto a ter de preencher

lacunas. Vito recuava para a geologia, defendia a solidez do lugar e admirava as técnicas dos peritos, outrora contratados por Soledo, para erguer uma propriedade

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daquelas em solos sob permanente ameaça de afundamento.

Calei-me, ouvindo os dois discutir numa língua que não era a deles e sobre um assunto que a nenhum competia

BENAMONTE

decidir. As informações que eu próprio possuía eram contraditórias. Ora se dava a casa como perdida, ora se contava da existência de planos para recuperar apenas

os jardins. Enquanto prosseguiam as negociações, o instinto de Leónia levou-a a dar guarida a um grupo de refugiados, a tolerar outros nas margens, a atrair jornais

e câmaras para um património em vias de ser abandonado aos credores.

Mas ninguém podia pensar, memoriar, junto da voz ácida de Sora. Comentava os cânticos que haviam acompanhado a cerimónia, a insistência do patriarca do grupo em

que todos entoássemos um refrão que ele se empenhou a transcrever na fonética da nossa língua, oi tsvetiót kalina. Parei para olhar aquela mulher de pele inglesa

e cabelo pálido, mais o seu entusiasmo que me parecia despropositado, os olhos azuis que brilhavam enquanto as mãos longas repetiam o ritmo com palmas. Vito disse

que lamentava desiludi-la, mas que conhecia o mesmo texto e a mesma música, de uma canção popular russa. Sora emudeceu um instante para logo se insurgir que não

podia ser, nenhum deles era russo e eu lembrava as longas entrevistas com os poucos deles que sabiam alguns restos de idioma pronunciável, os grandes planos obtidos

por Nuria, a compostura com que rebatiam os boatos a seu respeito e que ocultavam o que suspeitávamos serem informações sobre uma cultura em extinção. E que sabíamos

nós sobre eles, para além do desejo confessado por quase todos eles de fugir a guerras civis, de conhecer paragens atlânticas, praias, mulheres, de ter uma oportunidade

de fazer trabalhos de restauração, para além da pronunciada vénia que encenavam diante de Leónia, de respeito e temor por Alfredo e agora de comiseração para uma

viúva que até durante a cerimónia parecia não levar muito a sério esse papel?

Certo era que a ameaça de afundamento voltara a manifestar-se com fracturas no edifício, vegetação de cheiro sulfuroso e flores inclassificáveis; em torno dessa

ameaça, superstições várias haviam desertificado a pouco e pouco lugares antes tão apetecidos por especuladores imobiliários. Dizia-se que, no seu tempo, Soledo

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se rodeara de um

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grupo que o ajudara a encontrar uma fórmula, nunca] depois reconstituída, de secagem dos pântanos, construção? e conservação. Senti pena de não ser jornalista, por

não poder contar o que Vito não parecia aliás interessado em ouvir. A caminhada aquecia, abria as roupas mas não as i confidências. Sora falava de outros pormenores

da cerimónia para fazer um silêncio e dizer de repente Mereceu a | sorte que teve. ]

Sabíamos que falava de Alfredo, que nada havia a acres-; centar às alusões arrastadas, aos silêncios tristes. Vito i mostrou mesmo sinais de cansaço e desinteresse,

invulgares num homem tão educado. Passávamos numa zona de pinheiros mansos, com mesas e bancos de piquenique, agora humedecidos pelo cacimbo. Vito pediu que nos

sentássemos um pouco, ainda não se tinha recomposto da viagem, e Sora advertiu que iríamos perder o último comboio. O outro ofereceu-se para a levar de táxi e perguntou-lhe

o que queria dizer com a sorte de Alfredo. Sei que não se suicidou, como Leónia quis fazer-nos acreditar. Foi vítima da sua intransigência, do seu autoritarismo

cego.

Podia ali abrir-se uma nova história. Não era difícil imaginar Sora no papel de viúva na sombra, entre arquivos, rancores e fantasmas. Estávamos os três sentados

à mesa como em Zoon, e só faltavam bebidas para conversarmos sem limite de horas. Vito tirou do bolso uma garrafa espalmada de um álcool cor de alperce, muito forte,

advertiu ao passá-la envolta num grande lenço de linho incrivelmente limpo, com iniciais bordadas. A volta, as pessoas passavam em grupos pardos e fechados, os carros

rareavam e uma mulher alta e forte, de cabelo grisalho e curto como Sora, deixou que um cão enorme farejasse o lixo de antigos piqueniques muito perto de nós. Vito

fez uma festa ao bicho, que se sentou imóvel diante dele. Sentia-se uma vibração inquisidora que saía da órbita daquele ser, um magnetismo opaco de funcionário,

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cientista, agente? A dona sorriu, disse umas palavras incompreensíveis e afastou-se à rédea curta enquanto Sora falava, falava. Via-se como ela se comprazia em deixar-se

arrebatar por Vito, compelida a responder a perguntas que ele não fazia,

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a contar episódios da sua vida pessoal que eu também não conhecia, para além de pormenores sobre Salvador, as estadas mais ou menos secretas numa propriedade do

norte (da família de Leónia) para destilar os restos de uma travessia de droga ( Notei que tinha estruturas de vício observava Vito, que as mãos lhe tremiam, mas

pareceu-me ter força de vontade para chegar aonde quisesse).

Nada se disse acerca de Frederico. Omitiu-se Nuria, por razões distintas: as duas mulheres odiavamse e qualquer referência feita por uma delas à outra, em presença

ou ausência, parecia condenar ambas a ilustrar os mais aborrecidos lugares-comuns. Na bibliotecária de Leónia eram ciúmes evidentes do nomadismo de Nuria, dos favores

que esta obtinha com um mínimo de esforço junto da dona da casa. Em Nuria era o gozo visível em fazer rabiar a mulher mais velha, de ironizar com os seus movimentos

desconcertados, pés e mãos enormes e em estado de permanente queixume pelos emaranhados domésticos, pelos entraves que Leónia lhe colocava.

Mas Sora sabia também o que me ligava a Nuria e não jogava a perder, naquela mesa de tábuas inchadas pela humidade e de onde nenhum de nós parecia querer levantar-se,

como se quiséssemos descansar com Vito de uma longa jornada. Como arquivista, Sora endireitava as pesadas omoplatas e revivia numa figura de profissional, em sereno

entusiasmo. Pôs-se a contar da biblioteca de Sole'do, do espólio familiar, de inúmeros documentos que Leónia lhe confiava. Falava de passagens manuscritas que se

estendiam sobre as lutas liberais oitocentistas, lidas num dos papéis menos apagados. Os mais antigos (confidenciou) tinham sido comprados pelo industrial já enriquecido,

para evidenciar uma árvore genealógica que não possuía. Depois, Sora continuava por testemunhos dos anarco-sindicalistas, mergulhados inúmeras vezes na cave de Emílio

Soledo, que os abrigara das perseguições da ditadura. Sabia ou inventava pormenores: era o próprio dono da casa a trazer-lhes o cesto do jantar, velas, toalhas,

para não levantar suspeitas junto das criadas. E os hóspedes reclusos envolviam-no a congeminar lutas, usavam

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TCRt'SA SALEMA

BENAMONTE

í

uma impressora que Soledo punha à sua disposição, com ai condição de se confundirem no barulho com os teares na fábrica, entre as enxergas que lhes serviam de cama,:

móveis velhos, ferramentas e vinhos de qualidade que Soledo trazia"catalogados. E o industrial jogava com a sua boa sorte, convidava para a sua sala de jantar amigos

pertencentes ao regime, em clausura gastronómica, onde ninguém fazia cerimónia com a língua, no andar por cima dos sindicalistas em conspiração? Leónia também gostava

] de revelar a sua desmesura de orgulho pelas ousadias do j avô. Era neta única e fora criada com ele, uma vez que a mãe casara teimosamente pobre e que Soledo insistiu

em treinar a sua mais pequena herdeira, desde muito cedo, a , percorrer com ele as lides da fábrica e da quinta.

Fazia frio e levantámo-nos quando começou a chuviscar. Sora abriu um enorme guarda-chuva, passou-me o cabo e enganchou-se entre nós. As perguntas discretas de Vito

traziam cá para fora, enquanto caminhávamos entre tendas e fogos apagados, o melhor dos dias de Sora, que assim nos poupava a episódios mais pessoais, de um quotidiano

entre pavores de doença grave e médicos naturistas, três filhas adolescentes e sonhos adiados de doutoramento em paleografia; tudo isso enquanto penteava no pescoço

curvo as pontas de cabelo com as unhas roídas e acendia mais um cigarro. Que idade tinha, ninguém sabia, com o seu cabelo grisalho, a pele clara com vincos, o vidro

dos olhos que se abria quando falava dos labirintos do arquivo. Ou das filhas que, sabíamos por Leónia, se lhe apropriavam de cintos e camisolas para lhe emprestarem

brincos e perfumes penetrantes.

Compreendia bem a delicadeza de Vito perante um ser afinal frágil, mas percebia igualmente os impulsos sarcásticos de Nuria. Eu próprio sentia nesse momento um desejo

algo malévolo e difuso, que se deleitava em imaginar a figura de Vito, proporções miúdas e objectivos foscos, em vê-lo subjugado, nem que fosse apenas por minutos,

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pelos fumos de nervo de uma criatura com mais idade e estatura mas muito menos controlo de si.

Mas Vito parecia mais interessado em divagar por recordações, pelo tempo em que tivera de aprender russo a

contragosto na escola. Falou dessa língua que principiara por desafiá-lo a abrir um muro imperceptível de resistência passiva, até acabar por entusiasmá-lo a ponto

de o fazer decorar mnemónicas para chegar a ler textos literários, a entoar letras de canções para ir entendendo Tchekhov sem dicionário. Passeava pelos bosques

e cantava tsvetiót kalina entre os cogumelos inchados do Outono, mal sabendo que daí a pouco tempo os seus pais o arrastariam para uma aventura de emigração e passaportes

falsos.

Dois indivíduos surgiram pela frente, acordando-nos do passo embalado por histórias pessoais. Calaram-se por instinto, abrandaram e endureceram a marcha entre folhas

húmidas e detritos, painéis de cartazes com fotografias em grande plano, uns apregoando campanhas em defesa de crianças com fome de arroz, velhos sem lar nem sabedoria

de biblioteca, animais abandonados, matérias a apodrecer no espaço ou a contaminá-lo em círculos concêntricos. Outros cartazes limitavam-se a recarregar nas fórmulas

já conhecidas, perfumes, motores, etc., e pareciam já tão anacrónicos como a publicidade de cintas e corpetes, restauradores de cabelo e tisanas para a tiróide do

tempo de Soledo.

Seguiam-nos à distância, sem perguntar horas ou pedir lume. Vito parecia não ter pressa e pôs-se a falar de um amigo que o desiludira e que sabia que nós conhecíamos.

Frederico? Silêncio, Vito recompunha-se. Olhou para cima, vapores de óleo e folhas no ar da noite, nasal e dorido. Embaciavam-se-lhe as lentes, Foi há dois anos.

Apetecia-me perguntar coisas. Lembrava-me como Frederico nos deixou suspensos de ouvir o que trazia de experiência, no regresso de uma viagem. Paisagens desfeitas

e refeitas entre fronteiras cada vez mais incertas; todos esperávamos que ele fosse desdobrando o que vivera, dissonâncias, rasgões, amálgamas, vidros, perspectivas

opacas ou estreitamente certas, névoas, desesperos, fervuras, cepticismos indissolúveis de bons propósitos, de falcatruas de sobrevivência, de puro gosto pelo risco.

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Em vez disso, ele falara longamente de cultos religiosos em luxos ortodoxos, de mais festas e outros ritos pagãos, de arquitectos empenhados na reconstrução de templos,

de

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TERES'\ SALEMA '

arqueólogos mobilizando-se para destapar de neve e lixo industrial outras cidades e civilizações de tempos mais encantados. Como se todo um mundo quisesse recuperar

as antigas vontades e os seus pacientes portadores. í

Quem era esse amigo? perguntou Sora, quebrando as barreiras da aiscrição não apenas para satisfazer a curió-; sidade mas também para manter o fio de conversa que

l ameaçava romper-se. Estávamos ainda a uma certa dis-1 tância da estação, mas os caminhos tinham recuperado aí segurança do asfalto e já ninguém nos seguia. Arqui-

n tecto, respondeu, e a palavra soou como um mero agluti-1 nado de sílabas. Tive a sensação de que mentia para pró- À teger Frederico.

Atravessámos duas filas de fachadas cegas, sem foguei- ; rãs nem passos estranhos. Expliquei a Vi to que morava noutra direcção mas que o acompanhava, a ele e a

Sora, até ' à gare. Apetecia-me um café, mesmo em plástico incerto, e um croissant, ainda que fosse já só um resíduo de fornadas, para ter um álibi à minha frente

e olhar as gentes que " se cruzavam num néon de caras e ombros a todas as horas ' do relógio. Gostava daquela estação, preservada havia décadas em poderosa armadura

de ferro e vidro. Onde se \ abrigavam pequenas lojas a funcionar por turnos, quios- ', quês. Onde se revezavam farrapos dobrados em bêbedos e estudiosos de antiguidades

e alfarrabismos, onde se cruzavam viajantes de alta velocidade e com fobia confessada de aviões, amadores de périplos em locomotivas a vapor que dali partiam, recostados

em pau ou veludo consoante as posses, em viagens de nostalgia devidamente exploradas por várias agências, buscando paisagens de outras épocas. Soledo costumava contar

(dizia Leónia) como o próprio o pai tinha ainda trabalhado na construção daquele cais de ferro. Mais tarde, a estação servira o seu bairro operário, a sua fábrica.

E ainda se mantinha ali, descongestionava metro e autocarros, transportava Frederico e Salvador. E, ocasionalmente, Sora, que se queixava agora de ter de atravessar

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inúmeras ruas e esperar por vários transportes, por se encontrar avariado o automóvel que i^egateara do divórcio.

Seguíamos na avenida, a umas centenas de metros da gare, entre a calma estranha nas entradas escuras, nas

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BrNAMONTL

fachadas sem roupa estendida nem luzes acesas, mas onde se sabia que morava gente. Ouviu-se de repente um grito de índio por dentro das casas e de uma das portas

saiu um bando de rapazinhos, vestidos com velhos uniformes esfiados, antigas organizações juvenis, paramilitares ou clandestinas, emblemas quase irreconhecíveis,

ícones transfigurados. Um dos maiores fez um sinal e todos cercaram Vito, deixando-me de lado com Sora. Por que tinha ar de estrangeiro?

Vimo-lo fechar os olhos por um momento e respirar fundo, imóvel. Quase todos traziam óculos escuros na noite, alguns enfiavamse em lentes de motociclista, luvas,

cabeças descobertas. Silêncio por momentos; o bloco de suor e nervos adensavase, mas ninguém disse palavra até Vito sorrir, pousando a mão que tinha fora do bolso

numa cabeça encaracolada, ao acaso, Tem um emblema que nos ofereça?, disse a cabeça.

Vito levou a mão ao bolso e mostrou uma estrela de sete pontas atravessada por três setas em feixe, raios de sol ao canto. Vermelhos, negros e dourados. Concentraram-se

algumas lanternas, molhos de cabelos sobre o objecto. Um deles tirou da algibeira um pequeno catálogo e principiou a folheá-lo sob a luz dos focos trémulos, a enumerar

os símbolos. O mais alto, de uniforme azul prussiano e maxilares salientes e impassíveis, levantou a mão e Vito antecipouse em inglês a qualquer pergunta, explicando

como tinha encontrado o objecto em questão numa loja onde vendiam muitos ao desbarato; tudo imitações, obviamente.

Sora aproveitou as reacções suspensas para nos puxar o braço para longe dali, com o instinto da fêmea que salva as crias. Seguimos a direito para a escadaria, a

bilheteira automática e íamos despedir-nos sem que eu conseguisse perguntar-lhe o que acontecera ao amigo. Vito entrara num mutismo que parecia contagiar-nos e nada

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mais me restava do que dar-lhe trocos para a máquina, subir com ele ao cais certo e fixar os carris com embaraço. De um lugar próximo soava uma melodia quebrada

dos seus vinte anos e não pude impedirme de a trautear entre os dentes, sem texto. Vito não devia conhecê-la. Aliás, parecia obcecado

25

TERESA SALEMA

BENAMONTE

com os seus próprios sons: "Slov ya nhi naidú", entoava^ como uma ladainha. De repente, pareceu acordar do sei| transe e lembrar-se de nós. Traduziu-nos, "não encontrei

palavras". Acenou-nos, com uma vivacidade que nos esj pantou, ao entrar na carruagem. Sora riuse com indul<| gência, como perante uma criança apanhada numa faltai

mínima. ";

Começava a acender-se uma manhã pesada. Não tinha] sono e ruminava pequenas andanças domésticas, refazia! os cuidados das plantas, dos arbustos da varanda e dal

comida do gato antes de me sentar diante do computador; j disfrutava um silêncio inclinado nas ruas e nos telhados. ' Pus música baixa, La Folia, deitei fora os

restos de peixe e ', folhas mortas, estremeci ao esmagar um enorme insecto em acto irreflexo e desejei que Angela chegasse depressa enquanto ouvia o som das cordas

barrocas. Podia entrar em ! qualquer momento, tirar os sapatos logo que fechasse a porta, desfeito o cabelo, e com vontade de beber café e conversar.

Não liguei o computador; uma lassidão fez-me deitar no sofá. Precisava de ordenar as memórias, principiar pelas mais próximas. Quem me fazia mais falta, Nuria ou

Frederico? Qual o papel de Vito? Custava-me a acreditar que simpatizasse com grupos fanáticos, como segredara Salvador no momento em que nos despedimos. E que grupos

afinal, e em que sítio do mundo, agora que eles surgiam e proliferavam um pouco por toda a parte, alguns tão seguros da sua força que faziam questão em deixar que

os outros conversassem um pouco com eles, se familiarizassem com os seus códigos, para depois decidir num rápido sinal o que fazer. Nem sempre eram violentos; muitos

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deles declaravam não estarem interessados em roubar ou matar. Quase todos adoravam exibir-se, voltear a própria imagem diante de câmaras. (Os poucos que não o faziam

eram os únicos de temer, dizia Nuria.)

Adoram gerir o medo, comentava ainda com uma inconfessada admiração, para logo a seguir se calar e baixar os olhos, porque eu sabia do seu lamento pessoal e secreto,

26

a inconfessada fobia de fazer reportagens sobre esse objecto apetecível que era a violência em carne viva e contudo intencionalmente encenada, muitas vezes até coreografada.

E eu sabia a origem, pelo menos a causa próxima desse temor, ela que quase fora agredida por um dos clãs mais aguerridos, se vira envolvida num desses novelos de

raiva cega e só por acaso não se tornara no seu alvo ao querer filmar uma cena de esquina com uma câmara de vídeo amador. Minha senhora, dissera-lhe um deles ao

estender-lhe a mão apontada para o aparelho, não lhe queremos tocar num cabelo. Sabemos que a senhora deve ter família, ou pelo menos alguém que vá sentir a sua

falta. Mas o que não sabemos é se tem ligações com alguém que nos tenha denunciado e por isso temos de ficar com esta câmara.

Ao contar-me a cena, Nuria abandonava o porte seguro que lhe conhecíamos. Foi aí que a abracei pela primeira vez. Volume instável e trémulo, que eu mal conhecia

e que me recordou episódios transmitidos por via satélite.

Não. Vito não podia estar associado a cenas daquele género, de pegajosa atrocidade, o ritual de ódio e palmas, pulsando organizado, com cantigas quase sempre imperceptíveis,

estômagos e pulmões em vertigem, desilusão e raiva, esperança retorcida e em transe. Recusavame a conceber aquele homem doce, de cabelo humedecido na nuca, indo

para a rua de blusão e correntes, golpear, saltar para o rio colectivo, exaltar o êxtase mórbido de sufocar sopros de vida mais indiferente do que inocente, no gozo

aleatório de ver sofrer vítimas, de refugiar-se em certezas viscerais e comunhões orgiásticas. Impossível. Lembrei-me de como se havia levantado para ir aos lavabos

e trazido na palma da mão uma borboleta ferida, que soltou até vê-la pousar nos canteiros do jardim. (Se Nuria o tivesse visto, talvez confirmasse um dos seus diagnósticos

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favoritos acerca da violência para com os humanos, coexistindo com ternura para com animais, a exemplo dos guardas nos campos de concentração, etc.)

Nuria. Quando foi aquela tarde?

Ao passar pelo canto onde ela entretinha um telefonema, aproximei-me da roupa embebida de cabedal e fumo

27

í TERESA SALEMA l

que ela trazia, da voz que segredava preocupada pari

o auscultador. Ali entre cartazes mosqueados, numj

corrente de ar que fazia um tempo de suão e desfazia nos

dedos os segundos de gelo e chumbo, já lhe vivia a cintura

nuca, boca deitada, meias rasgadas a balouçar de uma

grade de cervejas, ao canto extremo onde se empilhavani

objectos em dissolução, enquanto na sala se cruzavam risos

e uma voz feminina e aguda gritava por Salvador. Estava

ali perto dela; e na esquina Frederico, para ela invisíve

mas à distância de uma respiração, quase arrebatando os

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passos, e Nuria enrouquecia ao telefone, carregando uma

série de protestos contra uma entrevista falhada, mudando j

de língua para rematar, Temos pouco tempo, e isso que i

esperava já não faz sentido. .

(Frederico não hesitou, arrancou um segundo de sur- :

presa em Nuria, entre o ar espesso e uma onda de jazz no |

som da parede, e ela fez-se sonâmbula, logo acordou, ré- *j

fugiou-se num canto inacessível aos espelhos do salão, }

defendeu-se para logo agarrar a respiração e o tronco e ,

mergulhar na terra e no pó, num ângulo mínimo entre a ,

cabina e a arrecadação de grades de garrafas, jornais

antigos; não se tratava tanto de dominar Nuria nem que ;

fosse só por uma vez, mas de criar uma cena íntima à ;

margem estreita e próxima de todos, a uma hora em que

sempre tanta gente queria telefonar ou descarregar a bebida.) ,

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Nada aconteceu do que alucinei por momentos. Nuria falou ao telefone enquanto esperei com Frederico a nossa vez; Sora passou por nós, mais o seu perfume agridoce,

o cigarro extralongo, os ângulos da voz a querer qualquer coisa inócua de uma Nuria que abertamente detestava. Todos regressámos aos nossos lugares e eu voltei nessa

noite a não encontrar a chave de casa e ter de tocar à porta da vizinha do lado, sabendo que não a ia acordar porque passava a noite em jogos de computador e dormia

de dia, atenta a qualquer sinal do marido que guiava o táxi por zonas de risco. Como sempre, na volta das rondas por Zoon, acendi a luz baixa do gabinete onde trabalhava

e dormia, para não acordar Angela. E Frederico desfez-se uma vez mais no seu próprio fumo, no seu perfil interrogado, olhos azuis e magro.

BENAMONTE

Éramos todos gregários, por isso condenados ao ciúme.

Todos menos Nuria, nas suas buscas incessantes de torn, nos périplos profissionais. Estava então uma vez mais nas paragens onde torn era suposto ter desaparecido,

pelo que Salvador me dissera ao chegar. Os eternos pacifistas aprendem geralmente à sua custa, ao serem ultrapassados pelas circunstâncias, comentara-me ainda Salvador.

Frase do caçador de patos, lembrava agora. Porque eu sabi a como era impossível a Nuria renunciar à perseguição de trilhos impossíveis, embora já custasse a todos

os outros acreditá-la. Repetia as excursões e narrava-se a seguir, com variações e imprevistos, miragem de voz rouca que prescindia de fumo, madeixa branca no cabelo

escuro atado na nuca. Nuria. Nunca esperava que lhe pedissem para se pôr a falar em torn, a evocar os jeans, a camurça, o dois-cavalos, o corpo possivelmente morto,

por permitir demasiado contacto, boleias a desconhecidos. Voltava sempre às variações, exagerava detalhes para contradizer e entreter quem a desafiasse. Quem já

conhecesse a história fingia dar-lhe ouvidos e tentava concentrar-se nas mesas vizinhas, nos movimentos precisos de Salvador, para não voltar a ouvir ficções de

arqueologia policial, num penoso repescar de peripécias gastas por insistentes relatos. De que serviam fotografias, algumas já enroladas nos cantos? torn sofrera

talvez a morte mais consequente e invejável. Amado pelos deuses, etc.

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Nessas alturas, calava-me e pedia uma bebida forte porque também me enjoavam viúvas de pacifistas que, a acreditar nas palavras de Nuria, se expunham com pateta

ingenuidade às entranhas do mundo, não só davam boleia a toda a gente como faziam do seu gasto automóvel um altar de latas e amor cósmico, pneus gastos e fraternidades

alucinadas, e acabavam às mãos de toda a espécie de peregrinos com ^intenções pouco claras e impulsos curto-circuitados. É o destino diria Angela, nos gestos marciais

dos surdos-mudos.

Estava então outra vez no centro do país, Nuria. Imaginava-a pela centésima vez no sítio aonde uma vez me tinha levado, molhando as mãos à beira-rio, no último degrau

29

\

TERESA SALEMA l

i

das escadas que descia às águas escuras da albufeira^ alisando a superfície verde-opaca com os dedos em mo-| mentos de hesitação sobre o passo a seguir. No topo

dos l, degraus, ainda muito perto da margem escarpada, sobre- j viviam ruínas^e termas onde aparecera um corpo um ano ', atrás, entre garrafas velhas com rótulos,

prometendo metabolismos milagrosos desde a pele até aos rins, paredes escavacadas de caliça, murais de azulejos com imagens de > barcos de ponta revirada, por cima

da bica que ainda ', escorria o líquido de tratamentos. (Também isso fotografou. com os recantos que achou fotogénicos, de abandono fixado a grosso grão.)

Estava talvez na aldeia que ficava a uma dezena de quilómetros das antigas termas de luxo; fora inquirir mais coisas, porque alguém vira dois homens a jantar à mesa

com toalhas de papel, entre velas foscas (imaginei). Na altura, Nuria insistira com todos os empregados, até com a cozinheira, e fora interrogá-la pelo hábito que

dela as gentes diziam ter, esse de vir espreitar à sala de jantar nas folgas dos tachos, conversar com os comensais conhecidos, gentes da terra ou camionistas de

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repetida passagem. Todos tinham sido torrenciais em detalhes, comentários díspares, descrições ajustadas ou não à fotografia. E Nuria interrompera todos com perguntas

(contou depois), saíra dali para interrogar donos de lojas e gasolineiros num raio de quilómetros; fizera todas as direcções de alcatrão e terra, lamaçais, organizara

companhias para batidas na erva. Tudo como se programasse desvios da meta, da mancha de corpo entretanto encontrado por um pastor que descera as cabras à albufeira

e pisara os vidros no átrio das termas.

Estava ali um corpo (disse o pastor a alguém, que foi contar a Nuria). Seminu, com golpes no tronco.

Mas as cabras tinham horas solares e não podiam ser deixadas à deriva. Só depois do sol-pôr no curral é que o pastor se dirigiu à lareira onde Nm'ia recebia todas

as mensagens, é que se telefonou à Polícia entre balcão e mesas, álcoois e sons metálicos da televisão. De imediato se fez aos quilómetros rápidos, para acabar por

encontrar apenas o blusão de cabedal. De nada sei^viram batidas

w

BENAMONTE

pelos arredores, incisões na fundura da água (e ela de máquina, fotografando com a persistência com que depois nos vinha contar). Não havia ali corpo algum.

E era sempre à mesa de Zoon que Nuria acabava por desfiar a sequência de esforços e desilusões, relatos fantasiados da gente da aldeia que pretendia toda ter visto

nas vésperas um rapazinho vivo, igualzinho ao retrato, acompanhado por figuras mais ou menos bravas, mutantes em cabelos, estatura, fato; ao narrar, Nuria nunca

esquecia de evocar a descrição que o pastor fizera do corpo; e todos sabíamos que a ordem dos instantâneos era arbitrária porque tudo culminava em interrogação pura.

Mas à parte as estocadas de Sora, todos dávamos um passo para trás e ficávamos sem argumentos diante daquela obsessão em estado puro.

Por que lembrava um episódio que já se perdia nos meses? Por que me deixava inundar por imagens que nada tinham a ver com dias preenchidos num ritmo meticuloso,

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de repetições pacientes, quase insensíveis? No fundo, acreditava tão pouco na morte de torn como em alegadas implicações conspirativas de Vito. Como amigo dos amigos

de Leónia, talvez conhecido de Frederico, Vito vinha decerto procurar restos de um mundo em risco de desaparecer, de ficar preso em interesses contrários ou soterrado

em desinteresses de maré. A própria Leónia tinha anunciado várias vezes a sua vinda, juntamente com a dos amigos mais velhos.

Não era preciso voltar à infância para reencontrar formas de oásis e sossego contra toda a espécie de inquietações. O meu defeito físico, a doença arrastada e os

cuidados por Angela tornavam inevitável um sedentarismo para o qual nem me apetecia procurar alternativas. Compraziame no regresso a lugares passados, não necessitava

de álbuns para lembrar a primeira^ visita à casa aonde a mãe passou a levar-nos, a mim e a Angela, a tomar chá ao sair o da filha do industrial Soledo (mãe de Leónia).

Corriam anos de dureza e restrição; embora a guerra já tivesse entrado nos livros de História e se princi-

31

TERESA SALEMA Ê

piasse a respirar ao ritmo de sonhos americanos, os costujll mês impunham fatos de costura polida e atacadores no" sapatos; as pessoas, ao visitarem-se, traziam

umas àm outras embrulhos de bolos pelo fio. l

Mas as imposições de silêncio e compostura eram ignojl radas ao lanche para os meninos, e só muito mais tardí" estranhei que nos deixassem jogar às escondidas entre

asa portas de espelho, rodopiar no espaço que mais tarde serial Zoon, à volta das mesas entre os aventais das criadas e oa toque dos talheres de prata nas cerâmicas.

Os adultos i conversavam sem tréguas, por entre um insuportável ba-1 rulho de infantes pulsando de guinchos, vitória e derrota,! raspas de arranhões leves. Só muito

mais tarde é que vim ' a saber que alguns desses embrulhos escondiam infor-: mação proibida, que me foi ocultada mesmo na idade adulta até Leónia a ter subtraído

à severidade cataiogadora de Sora para me mostrar como os meus pais tinham ' feito história, ao contrário da memória apagada que tinha i deles. Vim assim a saber

que tinham sido precisamente i as gargantas dos miúdos a lançar nuvens irrequietas e \ ruídos de dissipação, o que dificultava a escuta dos criados. , Temia-se qualquer

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orelha presente na casa; poderia lá estar a soldo do regime, que insistia em vigiar os herdeiros de um homem que os desafiara.

Só muito mais tarde vim a saber tudo isso, que teria l

maior importância se tivesse decidido ser escritor e fazer l

crónicas de resistência. Mas não era e não me apetecia 1

contrariar a ordem em que surgiam as imagens. Divertia- l

-me saltar um número indefinido de anos, esgravatar em l

torno dos tempos mais próximos até compreender porque 1

se tornou Zoon, lugar de muita passagem nos tempos do |

avô e da mãe e da juventude de Leónia, no reduto obstinado |

de agora, onde um impulso atávico nos reunia ainda. |

Leónia aproveitava-se de pareceres contraditórios sobre o

valor da propriedade, do eco e da aura do nome Soledo, para

fintar decisões oficiais sobre o destino a dar ao que restava j

da fábrica, da quinta, da casa. Não se tratava apenas das i

técnicas de construção que tinham preservado o conjunto j

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do afundamento, enquanto os arredores se desertifica- j

vam. Bastava passar o portão de entrada para respirar a

BENAMONTE

harmonia daquele jardim, concebido para crescer com um mínimo de cuidados em plantas semi-selvagens, agrupadas em cores e tamanhos diversos como se formassem ramalhetes

esparsos. O caminho da esquerda ia dar à casa, com a porta de Zoon debaixo do alpendre; os caminhos do centro e da direita entravam pelo que tinham sido o bairro

operário e a fábrica; quantas vezes Leónia nos mostrara fotografias das casas e mesmo gravuras que deixavam ver as cores, o leque estudado de azuis e amarelos.

Soledo costumava dizer (contou Leónia uma vez) que era preciso reunir norte e sul num lugar, cruzar ali oriente e ocidente, as cores holandesas e mediterrânicas,

ocres pálidos e azuis plantados no verde do jardim e no branco árabe da casa. Toda a gente que convivia com ele sabia como detestava o corderosa, que dizia ser a

cor amaricada de um regime que até se preocupava em mascarar o seu autoritarismo. O avô não gostava de ver sangue (comentava Leónia) e preferia encher de regalias

os seus operários para não ouvir sequer falar de reivindicações. Não lhe custava fazêIo, uma vez que supervisava ele próprio todos os trabalhos e que os seus gastos

pessoais eram espartanos Até conhecer Dona Iria, mas isso fica para mais tarde, despediu-nos Leónia nessa noite.

No caminho para casa, pensava na aproximação que ela fizera entre o horror do avô pelo sangue (a única vez que o viu chorar lágrimas gordas foi quando se cortou

num dedo) e a sua aversão pelo movimento operário organizado. Avisava que o vermelho no poder era tão execrável como o cor-de-rosa, apontava para o exemplo bolchevista

e continuava a esconder na sua cave anarcosindicalistas. Esses sim, tinham nervo e fibra nas suas convicções de metal negro imagino que poderia ter dito algo semelhante.

Ouvi chamar pelo meu nome. Era Frederico, que também precisava daquela meia hora a pé para se desanuviar dos fumos de Zoon e arejar a asma. Por razões diversas,

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éramos refractários a conduzir automóvel. Caminhámos em silêncio, cada um de nós com a sua particular divergência em relação ao outro.

Ao contrário de Frederico, entendia as aparentes cedências de Leónia aos grupos de refugiados que tinham

f ON rFMPORÃNEA 13

33

TERESA 'íALEM A B

aparecido de um momento para o outro e fazendo relawB

contraditórios sobre a sua proveniência: a neta quer"

prosseguir na memória viva do avô. Do alto do seu retrai!

de pouco cabelo alourado, lentes muito redondas e charuw

grosso, DonijEmílio (como gostava que o tratassem, pe"

remota ascendência castelhana) pontificava agora no sali"

privado de Leónía, no primeiro andar. Em anos de pobrezil

a brincar com os garotos do bairro (segundo Leónia), ejl

jurara cumprir as duas coisas, enriquecer e fazer obá|

social; em anos maduros, depois de subir pela sua próprií

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corda como lojista e em pequenos negócios, acabou poa

construir primeiro uma oficina, depois a fábrica, depois q|

bairro. Servira-se das suas amizades corporativistas para

consolidar a simpatia do regime e desta, por seu turnoi

para abrigar figuras pouco gratas ao mesmo. l

Foi um choque para todos o que o rodeavam quando Domi

Emílio renegou, de súbito, os círculos diversos onde eraj

estimado e invejado e se retirou para os últimos andares!

do seu casarão. Para preparar o que já dizia ser a suai

lenda, construída à custa de efabulações forçadas e segre^i

dos incómodos. E dizia-o com a perna já quase paralisada,,

apoiando-se numa bengala e no punho firme de Dona Iria.:

Depois passeava longamente nos jardins.

A temperatura contrariava o calendário pensei ao acordar, depois de um esforço de memória para me situar no tempo. Estendi a mão e caiu diante de mim um molho de

fotografias que Nuria trouxera havia semanas, Vê se tudo isto ainda pode ter algum interesse. l

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Carregara no ainda ao dizer aquilo. Eu já sabia que se l tratava de mais uma obsessão que ela não se resignava a l guardar para si, porque acreditava na revelação

plástica j das coisas. Eram imagens meticulosam-mie recolhidas em f terras de ninguém. Principiara anos pntes, por aquelas j fronteiras europeias que marcavam os

j imites de ideolo- ] gias, de programas políticos, de sistemas económicos e , militares. Acompanhara o quotidiano de muitos guardas ] de cancelas e arames farpados,

falara com as famílias í deles em cadeiras de espaldar duro e em poltronas que

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BLHAMON7C

aspiravam suores indefinidos, sufocados e sintéticos, entre roupa estendida e vasos nas janelas. Comeu muita salada de cartão, salsicha incolor e conserva indistinta.

E contou-nos ao regresso, como quem vai distribuindo amostras até ter pronto o produto final: anos atrás, por exemplo. Teve de passar horas numa dessas barreiras

de fibra opaca e ideologia de rotina, numa linha que cortava uma antiga estação, prolongava as cisões pelos passeios da gare, pelos espelhos que os guardas enfiavam,

periscópios de encenada obsessão, por debaixo dos comboios. Por alguma razão acharam que Nuria não tinha papéis em ordem, que lhe faltava um carimbo, e fizeram-na

esperar num canto improvisado entre tabiques. ( Não construíam nada em definitivo notava. Como se previssem, intuitivamente, que teriam de deitar um dia abaixo

todas aquelas divisórias enquanto afirmavam que o regime estava de pedra e cal.)

Sentaram-na, contou, sem a proibirem de se levantar e caminhar de mãos atrás das costas numa meia dúzia de metros quadrados, junto de uma pequena família de exilados

comparkas para a chuva por cima de tecidos de açafrão, sandálias com pedras a reluzir de falsas e peúgas, ao colo uma bebé de dois anos irrequieta; línguas de garganta

áspera; e a curiosidade de Nuria estava nesse dia minada (depreendi do que ela dizia) pela impaciência de se juntar a torn, que a esperava para além dessa linha,

no local combinado. A descrição que acabou de fazer daquele casal, à mesa de Zoon e noutro artigo em que relatou uma cena semelhante, era uma mistura doseada de

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piedade e convicção acerca de incompatibilidades culturais. Aqueles dois pareciam a Nuria dispostos a tudo para convencerem as autoridades de que haviam fugido de

uma guerra, de uma tenda precária, de uma terra de rocha e cinza; e ali estavam, confortando a bebé, decerto instalada no sujo e no húmido, enquanto Nuria tirava

notas depois de esgotadas as poucas páginas que lhe faltavam para acabar o livro que estava a ler.

Os guardas não a deixaram usar a câmara.

No centro de tudo o que ela contava das viagens a Leste estavam sempre presentes a estreita passagem pelo con-

35

TERESA SALEMA JI

trolo dos passaportes e vistos, o enjoo impaciente diante"

eterna trivialidade sintética, presa às fórmulas e slogctm

nas paredes, aos tecidos pardos de uniforme, aos galai

bordados à máquina, ao material dos tabiques; e os esjjfl

lhos oblíquo^, por cima dos balcões de controlo, réplica <$"

que metiam por debaixo dos comboios, davam a caql

pessoa que olhasse ao alto uma imagem de si própria ta

enrugada e translúcida, durante o interminável compas"

de espera, que nada mais restava ao portador de passa

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porte se não respirar de olhos fechados, à espera que1"

funcionário não notasse no papel oficial qualquer mancMJ

de mosca a mais, qualquer traço ou ilusão suspeita dl

fraude. i

Nuria acabou por seguir, nessa noite ou noutra, atrás dg

uma grande família empurrando trouxas, túnicas, malal

de tempos mais generosos e transatlânticos, crianças da

colo e embrulhadas em feixes, mais filhas e filhos adolesl

centes, amêndoas recatadas e sombras atrevidas, umall

com véus, outros com gargantas de faca agreste. Toda w

tribo principiara por retardar e ver-se retardada no balcãol

do controlo. J

Os papéis, as malas, as línguas. Desespero de gestosj

concílio de cabeças, impaciência dos que estavam atrás.l

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Até que Nuria tentou traduzir francês, alemão, o estatuto!

de foragidos, os desejos de asilo. l

A família não a largou mais, pela gare fora. Entraram, J

e Nuria entrou também, no compartimento destinado aos l

portadores de grandes volumes de bagagem; e iam-lhe l

contando das atribulações de uma casta semínobre, se-1

miarruinada, em território de tribos hostis em torno de um ^

fio de água no deserto, lutas que principiavam por ser ]

semifratricidas até as redes de sangue se apertarem em \

torno de um só clã, como quem isola uma célula suspeita, j

Já sentados todos, as raparigas alisavam com ternura a ;

manga de Nuria, perguntavamlhe se era casada; o pá- ;

triarca devia ter levantado o bigode, a sobrancelha, a j

manga da túnica para levantar quatro dedos enquanto ;

chorava a trouxa com a criança lá dentro e a mãe limpava '

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os olhos de fadiga. Ao fim de algumas fórmulas francesas,

Nuria principiou por pensar (contava, divertida, à mesa de

BEN A MONTE

>Y>

Zoon e com um olhar oblíquo para Sora) que ele tinha nuatro mulheres, com aquele porte palatino de quem reza antes de um combate mortal. Mas acabou por deduzir que

o que ele queria era saber se estava bem apearem-se na quarta estação depois da fronteira.

No primeiro cais ocidental, a porta do compartimento rasgou-se de relâmpago e entraram outros uniformes, a mandarem despejar tudo o que ali tinha ar evidente de

refugiado; e as raparigas penduravam-se ao braço de Nuria, em súplica para que ela os acompanhasse, para que servisse de filtro e de moderação, intérprete de angústias

e intransigências, fiança de eventual prolongamento indefinido de mais tempos de ninguém. Mas Nuria tinha torn à espera e fez um sinal pesaroso, apontando para o

relógio, voltando-se no rasto deles para dizer adeus a todos pela janela, ao movimento de arranque da carruagem.

Acabei por adormecer de novo no sofá.

Acordei com o gato enroscado junto de mim, um pressentimento indefinido e ainda com restos de álcool pesado. Saltei ao toque do telefone e arrasteime para, no último

minuto, desligar a minha voz no gravador de chamadas e atender Leónia, rouca, Ninguém sabe de Frederico. O afilhado não o vê há dias, mas prefere esperar mais algum

tempo antes de decidir o que vai fazer. Podes tu passar lá por casa?

Não podia, não queria. Além do mais, uma pessoa como Frederico devia ter todos os direitos, inclusivamente o de que ninguém se apoquentasse por sua causa. Não lhe

bastara o abandono da carreira académica décadas atrás, em puro desgosto com tráficos de mediocridade?

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Por que não contornas o problema, ou seja as pessoas não gratas dissera-lhe na altura Leónia , e crias um recanto só teu e onde ninguém te bloqueie ou atinja, um

gabinete de estudos, um projecto de investigação no estrangeiro?

Palavras que equivaliam a um convite velado para entrar em teias sociais a que ela devia ter acesso. Frederico disse não, sem explicações. E eu só podia supor que

ele

37

TERCSA 54/XU,\

sabia de mais acerca de envolvimentos de pessoas que Iffl

estavam próximas, que conhecia distribuições de benesse"

pequenos golpes de desculpável cobardia, sobrevivêncÍM

de maré quotidiana, pareceres redigidos a contrapelo pam

afastar, pelo elogio oco, o visco e o bafo de seres que o sei

íntimo repudiava. 9

Sabia era que seres puristas como Frederico só podiajj

suportar uma coexistência com jogos de poder até se vereaj

enredados neles. Tudo se tratava afinal, pensei muita"

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vezes, considerando o peito estreito e a asma crónica dl|

Frederico, de um problema de respiração, da incapacidadjl

de subsistir longe dos ares de montanhas, miragens. i

Seguiram-se para ele anos cinzentos. Vencendo maiíJ

uma náusea, ingressou no ensino secundário particular'!

com um generoso número de horas por semana e tempof

para abrir a sua grande casa a grupos de jovens, em partel

levados por Fausto, o afilhado, e para estar com a namoJ

rada que nunca trouxera a Zoon. l

Frederico logo apareceria, pensava ainda uma parte dei

mim, tentando iludir o que já suspeitava. Precisava dei

movimento. Eesolvi sair e caminhar a pé para o jardim dal

tapada, mesmo tendo em conta travessias de terra ingrata, j

trânsitos. Mas fazia questão em manter de vez em quando i

o velho hábito de subir a calçada periférica, entre araucá-1

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rias e faias com o jornal na mão, para chegar à zona das l

fontes e dos pavilhões com as notícias já lidas e sentar-me l

entre os cactos e aloés gigantes, a olhar para a fresta de rio l

dada pela perspectiva de voo manso. Ali sentado, podia l

digerir as piores ou mais esperadas notícias. Interessa- l

vam-me menos os acontecimentos mundiais do que certas j

ocorrências locais. Foi encontrado na madrugada de sá- j

bado (li) o cadáver de um rapaz aparentando dezasseis l

anos, vestindo jeans, blusão e sapatos de marca. Tinha a j

camisola repuxada para cima e a pele retalhada no tórax, l

como se alguém pretendesse gravar-lhe um cinturão em i

carne viva. Ignorava-se a identidade... í

Interrompi a leitura: porquê e sempre a atracção por ]

mortes provocadas, pela repetição de séries de violência j

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lapidar, que não merece história? Deitei o jornal para um ]

cesto de lixo, pedi um café na esplanada e pensei que Vito j

BENAMONTE

gostaria que eu o levasse ali num dia próximo. Cada vez tinha menos paciência para jornais, mas faltava-me coragem para não os comprar. Na esplanada, alguns estudantes

debruçavam-se em fórmulas, uma senhora retocava_se num espelho, pintando os lábios de preto. Um gato caçava os reflexos de sol que o espelho fazia rabiar entre o

chão empedrado, as mesas e cadeiras de ferro em branco. Enquanto o gradeamento se esfumava, lembreime que precisava de novas lentes.

Insistentemente e sempre contra a minha vontade, vinham-me à ideia outras notícias acerca de lutas de clãs. Meses atrás, assistira em Zoon a um debate televisivo

entre dois chefes desses grupos rivais, duros e imberbes e guerreando-se não se percebia porquê, uma vez que ambos diziam defender os mesmos valores e ídolos, da

família à religião, das plantas aos animais, dos monumentos aos humanos sem voz activa como dizia um, aí secundado pelo outro. Na altura, alguém desejou que Sora

ali estivesse (jazia acamada, presa pela cíclica gripe familiar) para fazer em voz alta uma das perguntas ingénuas que todos trazíamos em surdina: por que se guerreavam?

Ninguém fazia de resto menção de ocultar uma curiosidade viva, que não despegava ninguém das figuras no ecrã. Duas cabeças que decerto haviam feito juramentos bélicos,

uma delas saída pouco tempo antes de uma pena de prisão que a habilidade dos advogados conseguira reduzir ao mínimo.

Lembrei-me do grupo que rodeara Vito, moscas atraídas por uma carne de leite loiro, talvez pressentindo que tinha chegado de um destino difuso, com fronteiras cruzadas

na pele. Teriam eles a ver alguma coisa com os outros? Não sabia. Enquanto bebia o café, um pássaro escuro pôs-se a debicar em torno das mesas, espiando o gato entretanto

enroscado junto ao cabedal dos pés da senhora de boca preta. Mas a memória teimosa fugia daquela cena de quase paz para as constantes interrogações. Aqueles serzinhos

vorazes em torno de Vito. Não cheiravam a acampamento forçado mas a quarto adolescente em apartamento familiar, à cozinha da mãe, a aparas de lápis e jogos de computador.

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Em gestos soltos, a senhora despiu o casaco cintado, abriu dois botões da blusa e principiou a ler em voz alta folhas finas de poemas. Não interessava mais uma sensação,

a que os estudantes responderam com um breve sorriso para se*emaranharem de novo nas anedotas contadas a meio dente e em pequeno grupo, ou em apontamentos de solitária

mastigação. Queria atrair piedade, cumplicidade? Não parecia demente. Mais um caso que se ia juntar às bisbilhotices e friezas?

Exausta e com gotinhas a brilhar por debaixo do pescoço, a senhora calou-se e bebeu fundos goles de uma \ garrafa de litro, entretanto trazida para a sua mesa. Outra

do género de Sora, pensei. Por que razão nunca dissociava mulheres que se odiavam, por que me vinha à mente Sora quando queria dizer Nuria, uma que me era indiferente,

' outra de quem me custava calar a saudade? Não contive um suspiro pelos momentos mais frágeis de Nuria, esses que ela ocultava de quase toda a gente e sobretudo

do faro azedo da catalogadora de Leónia.

Nasci na época errada, dizia Nuria de si, jurando logo a seguir tirar o melhor partido possível dessa fatalidade. Tentava captar tudo o que surgia com um olhar de

zoom, mas continuava a proteger-se, a si e à memória de torn, às' suas rotas de viagem, a segredos que pressentia mas não interrogava. Apesar de tudo, tinha a certeza

de que ela era,) feliz, com ou sem torn, livre para produzir relatos e ima-; gens. torn está vivo, aposto. E assustei-me com o som da: própria voz. Em todo o caso,

pensava que ela gostaria de' conhecer Vito. Mas não o conhecera já? .

Naquela noite de fronteiras e emigrantes, depois de ter acenado pela última vez aos peregrinos, Nuria continuou na carruagem até chegar ao salão verde onde torn

dissera que a esperava mas não chegara ainda. Atirou-se para a primeira mesa livre e pediu comida, cerveja; ouviu línguas bêbedas à mesa vizinha, sons que logo lhe

chamaram a' atenção por serem familiares e estranhos oi tsvetiót kalina Fritz fahre nicht fort párnhia maladóva, pa- \ Ihiúbilaya Teodoro não vás ao sonoro

velhas ou inusi- ] tadas letras, com momentos que pareciam de champanhe < hilariante, mas todos brindavam com vinho tinto que a!

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dona da casa, pequenina de avental, fazia escorrer do garrafão; e entremeavam copinhos, exaltações a uma pátria qualquer, vodkas instantâneos. Ao ouvir Nuria perguntar

em português se tinha ali estado um rapaz com blusão de cabedal, o seu homem com cabelo loiro, um dos convivas levantou-se Sei quem é, mas ainda não chegou. Permita-me

que me apresente: Jorge Escudeiro.

Não fazia parte dos cantores improvisados. Os sons da língua familiar vinham de uma voz feminina límpida, vestida de vermelho cingido e que ocupava a cadeira ao

seu lado; os sons estranhos vinham de um sujeito que parecia saído de uma novela oitocentista, assente em pequeninos dramas de escrivães, aparo, tinta e cautelas

várias, num microcosmo de bétulas dobradas ao vento, fetos vergados na neve, troncos humanos muito próximos de cogumelos. Nuria não fixou o nome do cantor, assinalado

por Jorge como um bom amigo com quem fazia de momento um périplo geológico. Mas tiroulhe uma fotografia, que me mostrou numa altura em que eu não conhecia ainda

Vito.

Enquanto a dona da casa trazia um prato quente, Jorge convidou-a para a parte privada do castelo que a família do amigo Victor, chamava-se assim?, tentava recuperar

da tutela estatal que transformara em hotel a maior parte dos aposentos, apenas a trezentos quilómetros daí. Passando mais uma fronteira, claro. Nuria agradeceu

vagamente o convite e guardou o cartão na bolsa.

São malucos mas têm dinheiro, confidenciava a Nuria a dona do restaurante, apontando para o grupo numeroso onde estavam Jorge e o amigo. Ainda outro dia alugaram

a sala por toda uma noite e quiseram marisco, peixe, vinho tinto das melhores colheitas e vodka. Traziam um grupo que tocava instrumentos de cordas de uma maneira

esquisita, o meu marido chamou-lhe quase divina, única em todo o caso, como bárbaros e como génios, e disseram-me que eles só actuavam para eles em particular. Não

sei se hei-de acreditar neles, são também muito mentirosos, enfim, alguns parecem de raça arime...

Nuria fez-lhe um sinal de moderação, adivinhando a palavra que a outra ia usar. Mas sorriu logo a seguir (contou), porque a própria dona da casa parecia tão próxima

de

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TERESA SÁ I LM A

i

todas as raças morenas, tão pária e privilegiada em simul-! tâneo, comerciante em terreno estrangeiro, senhora de \ uma sala com chão em xadrez pretoe-branco e quinze;

mesas, mantendo três filhos pequenos e o marido em j cadeira de rodas. Receitas simples que resultavam, comi- i das e bebidas^ convívios, da salada por dois táleres

ao : vinho húngaro da década anterior à guerra, do estudante ! ao milionário de obscuros negócios passando por quem " tinha ares de artista, de académico. Cultivava

intrigas e | desabafos, manejava-os com a ligeireza de quem tinha logo a seguir de interromper conversas, atender outra pessoa, responder ao toque da cozinha. Filha

de mãe algarvia e pai de uma região qualquer mitteleuropeia (contava Nuria), todas as noites trazia, pratinhos de petiscos para a mesa , onde o marido jogava as

cartas com exilados de toda a ' espécie aprendera mesmo a arranhar o basco. Por conta da casa, sublinhava ao pousar os calamares avinagrados, ' os pimentões;

mas deixava propositadamente escorrer o sal para os bocadinhos espetados em palitos, para provocar a sede; e as bebidas, apontadas no rol de dívidas, não paravam

de subir.

Naquela noite, os estrangeiros pagaram com notas saídas à solta dos bolsos do casaco, contou Nuria. Jorge e o amigo observavam, incómodos e hirtos na sua polidez.

Nuria só podia suspeitar de pactos e conjuras que ninguém lhe revelava. O mais natural era que desconfiassem de ligações entre a lente fotográfica, periscópio indiscreto

que ela transportava quase sempre consigo sem a ocultar, e a transmissão indesejável de informações. Ou simplesmente que quisessem evitar a banalização das suas

histórias individuais em magazines de fim-de-semana, entre revelações empoladas e publicidade arranhando com cores e marcas a duvidosa grafia das páginas. Foi com

grande pesar que Nuria teve de adiar naquela noite o convite de Jorge para mais tarde, ao atender uma chamada de torn dizendo que fosse ter com ela a outro sítio.

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Ao recordar tudo o que ela havia contado, tentando reconstituir o que faltava, não consegui explicar por que razão naquele dia na esplanada, onde a autora dos versos

42

BENAMONTE

acabou por fingir que desmaiava, me veio à ideia que o amigo de Jorge poderia ser Vito.

Era verdade que não precisava de acreditar nas histórias de Nuria para as imaginar e viver. Bastava-me ler os postais dela com o coração aos saltos, para depois

fazer exercícios de calma e distância quando a via. Porquê?, voltava sempre a perguntar-me. Mas embora pressentisse que nada mudaria entre nós, teria gostado de

vê-la convencida de que torn andava por aí sem querer mais saber dela e de que esse Jorge, que chegara a acompanhá-la uma vez ou outra a Zoon, depois do desaparecimento

de torn, não tinha mais história do que um episódio de passagem. Tudo o que sabia de ambos, Nuria e Jorge, resumia-se a convites familiares para fotografar a casa

senhorial em ameaça de ruínas num interior de difícil acesso, a escadaria de pedra, a fonte de musgo e água que saía noutras décadas de uma cabeça de Jano, o labirinto

barroco crivado de raízes por podar, ervas por arrancar. Dentro da casa, a mãe lamentava os anos de infância pelos litorais, a maresia e o ocaso nas praias, o pai

ausente em passeios e divagações nocturnas, falando de vez em quando em planos de reconstrução a que o filho não dava qualquer importância, empenhado que estava

em ensaios de agricultura biológica.

Por que persistia ainda em acreditar nas fábulas de

Nuria?

O que recordava agora, ao descer a alameda, era a noite em que ela me viera procurar quando se acidentou a sua melhor amiga, cineasta, prima afastada de Jorge pela

coincidência que o acaso traz.

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Era Verão, mas Nuria embrulhou o peito num blusão de torn. Dei-lhe de beber e trouxe-a para a varanda, onde se viam as luzes confusas e palpitavam ruídos do mundo

mais próximo; e ela não parava de falar, primeiro de coisas mais ou menos incoerentes, da montagem do filme em que acompanhara Petra, da hesitação em cortar cenas

que tinham tirado o sono à própria Nuria, depois de as ter visto no pequeno ecrã da montagem.

Fechei os olhos, tentei recompor a imagem dessa amiga, que ela garantia ter levado a Zoon, embora eu não me lembrasse, com Jorge, numa noite de grande bebedeira

em

TERESA SALEMA l

que Frederico quisera comemorar uma reforma antecíl

pada, o abandono definitivo das salas de professores, daa

casas de banho com desenhos pornográficos, farruscadaá

de dejectos, dos pátios barulhentos. Estávamos todos orm

pingados e tristes, ora produzindo alegria loquaz e soltaj

enquanto Salvador distribuía cerveja e uísque novo. Nãol

conseguia memorizar o rosto da tal amiga; tinha, pois, dei

recorrer ao que contava Nuria, como ela suspeitava de umal

doença incurável. Mas não era verdade. Soube pela mãe l

que as análises deram todas negativas, a biópsia também, l

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Para ela, a doença, fosse real ou hipótese, era só mais um l

pretexto para concluir o seu último projecto: pôr em ima- ]

gens o que me contava ao longo de todos os anos em que nos j

conhecemos, desde os tempos do liceu. Nunca deixou, J

disse-me uma vez, de querer filmar em câmara lenta toda l

a espécie de desejos ocultos, do kitsch à perversão, de uma l

forma clara, sagrada ou comestível. Dizia coisas assim, l

Nem chegou a abrir o envelope com o resultado dos testes, i

mas tinhao junto dela quando a mãe a encontrou, no carro l

parado em frente de casa, com a cabeça adormecida no l

volante. l

Talvez fosse um acidente dentro do acidente, o cora- l

cão que não aguentou, era gordinha disse ainda Nuria, i

ou algo parecido, enquanto a madrugada se abria numa luz j

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húmida, enevoada, e lhe vim trazer a manta de quadrados j

em que se enrolava Angela ao regressar das aulas de dança, j

uma caneca de chocolate. Acho que sei por que Petra <

desapareceu, suicidada ou não. O que ela mais quis foi ,

fazer um filme de ficção, mas não conseguiu ir além de

fragmentos. Não deveria nunca entrar em tentações desse

género quem não possui talento. l

Nuria tinha uma vez mais razão, pensava agora. Tanta j

frieza de juízo fazia-me desconfiar da sua aparente cegueira ]

acerca dos pacifismos de torn. Olhei-a, quase adorme- >

cida, abandonada no cansaço, numa pausa desse volunta-

rismo em produzir uma figura firme e lúcida. Entregue ao ',

momento. Aproximei-me, aconcheguei-a na manta, en- ;

volvi-lhe as mãos e retive-me nelas sobre a respiração do ;

peito. Nada mais podia fazer sem um impulso dela que me

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animasse a prosseguir, a inventar-me na sua pele mais !

44

BENAMONTE

próxima, a mergulhar na seiva mais estreita. Acabei por adormecer ao lado dela.

Lover man, o where can y ou be?, cantava Sarah Vaughan, gravada no dia em que nasci, 19 de Agosto de 1946. Era mais fácil evocar essa época, a que nunca havia verdadeiramente

assistido, inventar cheiros e sabores, princípios de uma euforia americana com jazz de grafonola a salpicar a gravidade da família, onde a hora do almoço era sagrada

e as criadas se curvavam ao engomar os fatos de tecido pesado. Da casa onde morava agora, no último andar, via as fracturas da cidade, entre um horizonte de pequenas

luzes ordenadas, muros e acácias, esplanadas cobertas e lojas abertas até tarde, e os descampados para além da estação, a propriedade de Soledo para além das

matas.

Quando Angela e eu recebemos a herança da mãe, propus a Frederico emprestar-lhe dinheiro para comprar um apartamento no mesmo bloco; ele recusou, entrincheirado

na sua casa antiga, apesar das frinchas mal calafetadas, dos bolores, da dificuldade em aquecer tectos altos. Apegado com amor e raiva ao bairro onde nascera, parecia

comprazer-se no meio de mulheres que lhe iam agora bater à porta por tudo e por nada, arrastando o peso dos dias e do trabalho e confiandolhe as tardes dos filhos

em idade espigada.

Não cheguei a conhecer a nova namorada, a mulher, como dizia Leónia. Sabia apenas que era médica e que não habitava com ele. Mais uma vez fora Leónia a arrancar

informações à sua reserva habitual, numa altura em que Frederico vinha a Zoon quase todas as tardes para a ajudar na compilação da correspondência de Soledo, da

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filha e do genro com judeus que haviam passado por Lisboa no período nazi e a quem eles haviam dado guarida enquanto se esperava lugar num transatlântico, cabina

ou porão. Eram as cartas daqueles que, já radicados 110 continente americano, não tinham esquecido aquela família, que Leónia pretendia editar. Porquê a ajuda de

Frederico, esse geógrafo lunático, interrogara-me muitas vezes sem porém comentar o que quer que fosse em voz alta. Por que não Sora com o curso de História ainda

que incompleto, ou

45

TbRhSA SALEMA l

mesmo a fotógrafa Nuria com a licenciatura em Ciência

de Comunicação? l

Leónia queria Frederico e bastava. Entretanto, ia-nl

contando episódios da sua própria memória: Uma noíi

acordei com sede, depois de um pesadelo em que homeil

mascarados "me queriam obrigar a passar por um túnl

baixo e demasiado estreito. Às escuras e a tropeçar m

camisa, tínhamos camisas de dormir feitas das melhJ

rés peças da fábrica do avô para durarem muitos anos nl

nosso crescimento, às escuras porque não dava com o|

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interruptores no alto das paredes, as criadas já se tinham

deitado, segui os corredores que conhecia, entre o cheira

das madeiras, desci os quatro degraus em direcção à parta

baixa dos quartos, à sala de visitas. Só parei ao pé dal

cortina de veludo que fazia espirrar com o pó mas quá

era um óptimo esconderijo, e fiquei ali quieta a ouvir aáj

vozes dos desconhecidos que falavam uma língua estranhai

com a minha mãe, ela traduzia para o meu avô e o meul

avô fazia novas perguntas ou propostas, e eu julgava!

perceber que se tratava de qualquer forma de câmbio, bens!

ou dinheiros, e que esse outro casal, a avaliar pelo torn dal

voz, baixo, de súplica mesmo... onde ia eu?, ah, fiz ranger i

o soalho e o homem, decerto habituado a persegui- í

coes e espionagens, apontou para o reposteiro e o meu avô ;

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disse que não podia estar ali ninguém, que as criadas

já se tinham ido deitar e as crianças também (um l

primo afastado estava a passar uma temporada lá em

casa).

A partir dessa noite, em que escapei de uma enorme "

reprimenda por viver num país onde as desconfianças ]

eram outras, fazia tudo para abrir qualquer caixa que

encontrasse e me parecia ter arribado ali em qualquer vaga :

de emigração. Não esperava encontrar notas estrangeiras l

ou pedras preciosas, mas objectos raros de coleccionador, j

um amuleto, um livro raro de miniatura; alguma coisa que !

me mostrasse enfim que a Leopoldina, a criada da mãe, não i

tinha razão ao dizer que a curiosidade era castigada de ,

forma terrível, com metamorfoses que iam de sapo a bruxa.

Palavras que só carregavam minha curiosidade de entrar

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no mundo dos adultos, que naquela noite apenas via por ,

BENAMONTE

uma frincha de reposteiro, ao mesmo tempo que tentava dominar a alergia ao pó.

Quantos anos tinha?, não mais que três ou quatro. Sei que não me estão a acreditar, mas lembro-me nitidamente de ter visto o senhor ajoelhar-se diante da minha mãe,

beijar-lhe as mãos, nas costas e nas palmas, as mãos tão brancas que ela andava sempre a tratar e a limar e que protegia com luvas da jardinagem; ouvia-se alguém

soluçar e eu, na posição em que estava, só podia ver de frente a minha mãe e o meu avô; ele era baixo e calvo, de fato às riscas e ela parecia-me magra e miudinha

e mantinha-se afastada na sombra, vestida de escuro. A minha mãe a dizer que ela própria ia buscar mais bebidas, não convinha envolver os criados; o senhor voltou

a olhar desconfiado para as dobras do reposteiro e eu não me atrevia a mexer-me nem a respirar; e só quando a minha mãe os foi acompanhar à porta da rua é que fugi

para a cozinha, onde podia mais facilmente mentir com uma verdade se alguém me apanhasse.

Tocou o telefone. Era Salvador e perguntei-lhe pelos resultados da caça. Não fomos respondeu. E acrescentou, O afilhado de Frederico acaba de telefonar, o padrinho

partiu para longe e deixou um pacote para Nuria. Como ela não está, Fausto pede-te que a vás buscar.

Disse que sim e desliguei; respirei fundo e fui buscar uma bebida forte. Já cá não estava o Sr. Fritz como Salvador lhe chamava por vezes, com a ironia de dias

bem dispostos. Faltava a voz pausada para defender ou criticar a fragilidade das nossas antigas ilusões e mante-las com isso na lembrança, no nosso círculo restrito,

entre marés passadas e presentes incertos. Fora também ele que mais se empenhara na defesa dos refugiados, em convencer Leónia e Alfredo de que era preciso abrigá-los

ou protegê-los de forma mais duradoura que uma mera chantagem mediática. Usou palavras duras, foi ouvido e seguido nas suas opiniões sobre os homens, as terras,

a casa. E eu calara-me, não porque não concordasse, mas porque estava a sentir que tinha perdido a influência sobre Leónia.

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fCKESA SALEMA

Apesar de tudo isso, Frederico fazia-me falta. Ajuoj vamo-nos mutuamente a suportar aquilo a que ele CM mava as nossas paralisias, resignações várias, ressaca a

cigarros não fumados, de álcool sempre insuficiente, pi mais que corresse; equilibrávamos as falhas como poda mós, evitandfl a sensação de estar cedendo a cobardias

<i cinismos óbvios. Sem arreganhar missionarismos COOT Sora, Frederico sabia conservar um respeito sincero pjj ousadias loucas, fortuitas ou inviáveis. E calar.

J

Em certa altura, andava a ler um livro encontrado nua alfarrabista, da autoria de um general sul-americano qiá refazia memórias de campanhas militares nos anos 6uj

comandando tropas governamentais. Segundo o generafl os guerrilheiros tinham sido sentidos de imediato, pela população da serra andina, como estranhos a um senta

mento nacional que talvez fosse a última coisa que pudessw ser arrancada da sua crosta viva, da sobrevivência quotí J diana, de peso ritual e telúrico. Pouco teriam

servido aoffl guerrilheiros o treino nos melhores campos que traziam dm Cuba, o sopro socialista, a formação de quadros de combate" J contra elementos tão irreversíveis

e opacos como rios &í fadiga, fome e insectos, cheiros estranhos e a indiferença Í nas casas de adobe, nas aldeias por onde passavam. Os! aldeões reconheciam o respeito

que aqueles barbudos | (como lhes chamavam) tinham pelos parcos haveres | campesinos, comprando escrupulosamente as mercearias. | Consideravam-nos heróis mas denunciaram-nos.

| Querem ainda a moral da história? j

Frederico contou tudo isso numa noite em que ficaram 1 mais tempo que o habitual em Zoon. Mais tarde, Leónia t fechou a porta atrás de Salvador e fez sinal para

subimos ] ao primeiro andar, à sala de música, onde o marido cabe- ' ceava por cima da tradução de Plutarco sobre a vida de i Sertório, ao lado de um abat-jour

de cor torrada, uma ) garrafa de conhaque Napoléon e de um cinzeiro com um ; cachimbo sem lume. A minha primeira reacção foi despedir-me, sair de um serão anacrónico

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para o ar ácido da noite, para o borralho dos refugiados, onde sempre podia í encontrar alguém afável e acolhedor, mesmo recolhido no seu osso.

BEN A MONTI

-/A

Pensava no que devia dizer quando Alfredo acordou, enquanto a mulher se instalava com Frederico em torno de uma mesa com mapas, junto da garrafeira, apontando-me

um assento ao pé deles. Mas não fui, preferi ficar a conversar com Alfredo, que me ia comentando o quadro familiar de Soledo: pais raianos, avó espanhola, irmãos

e irmãs em escada indistinta de camponeses, imigração para a capital, o pai trabalhando nas obras públicas da monarquia, o jovem Emílio como moço de fretes e com

o olhar de quem estava a aprender todos os truques dos patrões até se tornar sucessivamente em ajudante, pequeno e grande industrial, homem de sociedade de políticos

e actores, marqueses e oposicionistas, parlamentares, desde que não lhe falassem de sessões no parlamento, sindicalistas, desde que não o aborrecessem com sermões

reivindicativos, comidas fartas e amizades ambíguas. Estacionava em círculos mas permanecia sempre fora deles, doseando os seus desregramentos.

Teve várias fases na vida. Uma recheada de caprichos e filantropias. Usava o seu secretário plurilingue para se corresponder com livres pensadores de todo o mundo,

propondo-lhes receitas para uma rede de planos que ambicionava contrariar injustiças, construir harmonias em pedra e jardim, sempre jardins, água, poentes rasgados

e animais a correr em liberdade. Convidou as pessoas mais estranhas para passar temporadas na sua casa, como um grupo de beduínos do deserto.

Nessa noite, Alfredo ficava-se pela fase dos caprichos. E eu escutava pacientemente o que já tinha ouvido muita voz, mas não sabia até que ponto podia acreditar.

Leónia admoestavame repetidas vezes para não contrariar Alfredo e eu continuava a escutar, os olhos fixos nos óleos enormes das paredes mesmo por detrás do marido

calvo, de óculos grossos que tirara da testa para voltar a pôr no nariz. Eram os retratos de Soledo ainda jovem e da amante Iria, essa última mulher que Leónia conhecera

já de idade mas que, ali na tela, se encostava a um espaldar de palhinha, no seu vestido de veludo azul e o cabelo preto apanhado em espirais no alto da cabeça,

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tudo oval e altivo, junto da pose do homem sentado à tábua de uma mesa com

< ONTPMPORÂNH l 4

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TERESA SALEMA

um copo de vinho. Alfredo contava com redobrado praaB

acerca da velha enlouquecida, inclinada no terraço B

jardim de Inverno, do primeiro andar para a rua, a atijl

coisas aos passantes para logo fugir, como uma criar"

apanhada en* falta, para esconder-se entre vasos de pfl

meiras exóticas; principiou por atirar flores, depois roujB

de que ela não gostava e que despia quando lha vestian"

força, recitando frases que só para ela tinham coerência

entoando canções com letras inventadas numa língi"

desconhecida e trajando as rendas menores que era"

resíduo dos anos em que fora actriz; e assim se perdera!"

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varanda abaixo, túnicas de lã grossa, meias, todos os bibel

a aventais que a dona Iria usara nos anos em que foáj

presença tutelar na creche do bairro operário, a menina dq|

olhos de Soledo. Leónia jurara que lhe ouviu dizer uma vél

O pais que passam j lá no sertão / e os vossos filhos / serm

direcção / mas algum dia/há-de chegar j e Deus fará/ista

mudar. I

Noutras alturas, cantarolava palavras indecifráveis!

Corriam, entretanto, os anos do regime, mas ninguém sj

atrevia a silenciar aquela que era ainda uma lembrançai

viva do lugar e que pelos vistos gozava da liberdade doJ

loucos. l

Observava Alfredo que não parava de falar de Soledo, osl

olhos num ponto de fuga a boiar no tecto. Faltava-lhej

disciplina. Ao menos devia ter aprendido qualquer coisal

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com o secretário escocês, que a dona Iria destestava pelai

meticulosidade. Nunca foi um empresário organizado,!

apenas soube aproveitar os ventos de feição e os golpes dei

sorte. O irmão sim, se tivesse vivido mais tempo... j

Sabia que não era bem assim, quis contrapor-lhe a obra

social do avô de Leónia e Alfredo deu uma gargalhada só-,

nora que fez que Leónia e Frederico levantassem a cabeça '

dos mapas. Obra social?, ou não terá sido mais um

prolongamento dos seus caprichos narcísicos, por gostar de

ver meninas à volta a beijarem-lhe as mãos, a cantarem-

-Ihe de bibe canções de Natal, de ver as operárias virem ter

com ele para lhe agradecerem favores, e quantas vezes as

mães e os pais de filhas adolescentes foram no jogo e

vinham pedir-lhe emprego para filhas de corpo bem feito

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BLX \MONTh

ue não tinham aproveitamento na escola? Ah, se o irmão não tivesse morrido tão novo...

Endireitou-se na cadeira para logo se inclinar em confidência, Gostava de ver o que diria dos meus exercícios com os refugiados. Dentro de pouco tempo teremos uma

força bem treinada para combater toda essa criminalidade que anda por aí. Ironia das ironias acrescentou, erguendo o balão de conhaque ao retrato de Soledo,

nunca o velho havia de sonhar os usos que viria ainda a

ter a sua propriedade.

Tinha de estar demasiado bebido para falar assim. Calou-se de repente, acendeu o cachimbo e encostou-se no cadeirão. Ao ver os outros dois distraídos na conversa,

pedi licença para sair por um momento e desci à cozinha, onde Humberta zelava num crochet, em luz de canto. Não se sabia ao certo a idade que tinha essa velha ama

de Leónia, com o seu perfil de pássaro nocturno. Reinava nas câmaras traseiras de Zoon até altas horas (sofria de insónias, contara uma vez; não as compensava com

sonos de dia). Era a ela e não a Leónia que Salvador confiava os pequenos receios de perder o frágil quotidiano com Homero, as amarguras em éter.

Quase lhe perguntei É verdade que Alfredo faz treinos no terreno? Mas travei-me; Humberta olhava-me com olhos de vidro e por momentos pensei que estivesse a ensurdecer.

Foi então que bateram à porta e ela pôs o dedo nos lábios, mas os toques continuavam insistentes e as pernas levantaram-se a custo, depois de o braço proibir o movimento

de ajuda. Entraram dois rapazes com a cara encarvoada, a respiração curta, o cabelo molhado pela chuva. Tiraram de dentro dos blusões ensopados, com inscrições de

guerra, bolsinhas atadas com elásticos. Já vamos ver o que trouxeram, disse Humberta. Sentem-se, que lhes sirvo sopa quente.

Sentaram-se em cadeirinhas baixas, de espaldar pintado de verde, a cantarolar sons sibilantes párnhia paIhiubíla nasvaiú bidú nhi maga atcrítsa slov ia nhi naidú

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quando entraram um homem e uma mulher, vestidos de roupa escura, queixo e boca envoltos em écharpes, que só não escondiam os olhos pisados. Dirigiramse aos

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TERESA SMEMA

BLNAMON1E

rapazes e puseram-lhes as mãos carnudas sobre os c|

bros. Houve uma troca de palavras que nem Humbel

nem eu percebemos julguei então. A velha fezlhes sinj

para se sentarem e estendeu-lhes as tigelas de sopa qã

tinha tirado,, do panelão. Pediram colheres e tiraram!

lenços, que ataram ao pescoço para comer. Olharam pai

mim de modo tão directo que tive a sensação de qnj

esperavam a minha saída para fazerem confidências!

desempacotarem qualquer mercadoria. Como sempre, l

Ia perguntar-lhes onde tinham aprendido aquel

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canção quando ouvi a voz de Leónia a chamar-me. j

Como em anos esquecidos, detive-me no vão da escada

minutos quietos a palpitar no correr dos segundos, etei

nidade a latejar junto da pequena porta, entrada para

corredores secretos, mais um capricho que o velho Solei"

quisera instalar na mansão. Noutro tempo, partíamos dal

para as câmaras, onde o avô de Leónia guardava objectei

desirmanados no rescaldo de uma viagem e que repousa

vam em caixas rotuladas e malas de cabedal. Ao passarmos

aquelas portas pintadas da cor da parede, fechadas apenal

por ganchos por debaixo do gradeamento do corrimãoi

nunca sabíamos o que íamos buscar longe das criadas, dá

mãe, da indiferença adulta pouco interessada em proibir!

Talvez por ter bebido de mais, apetecia-me arrastas

Leónia para esse armazém de pó, nem que fosse para nãdj

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ter de perguntar o que andava Alfredo a fazer com om

refugiados, não pôr a descoberto a curiosidade mais infanJ

til e directa de quem tem medo do que não entende. i

Como és ingénuo disse Leónia, alinhando-me ol

cabelo, agora como dantes. l

Sentia seu hálito a cigarro e álcool; os vapores torna-1

vam-na ainda mais obsessiva, mas sentia-me preso pela f

generosidade do que ela estava a revelar. Aguentei os bafos l

de húmus e cinza e puxei-a para mais perto, sentei-me l

com ela na penumbra dos degraus. l

Não, não são russos afirmava, embalando-me com l

a sua carne amolecida aos anos, mas ainda de sucos l

perfumados. Só que muitos deles falam e cantam numa j

língua que lhes é mais familiar do que a nossa ou o inglês, l

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Gostam de cantar, não reparaste, rimas, modinhas, que sei J

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eu e a Humberta já lhes ensinou algumas. Creio que se servem de certas frases para se darem a conhecer junto de outros, mas isso já não sei. Guardam-me Zoon. Protegem_rne.

Animam opiniões públicas. Deixam-me pensar o que quero fazer.

Nem uma palavra sobre Alfredo enquanto me levava pela mão escadas acima. Não vais voltar para casa a estas horas. Faço-te a cama na sala, já instalei Frederico

no quarto de hóspedes, esse que tem os murais do meu avô com cenas de cabaret.

Quanto tempo tinha realmente passado? O calendário marcava poucas semanas, mas a sombra de Frederico já se tornara mais leve. Nuria continuava a não dar sinal. Olhava

de vez em quando para o pacote que, entretanto, tinha ido buscar e guardava entre os livros de encadernação mais antiga. Tinha de resto mais em que pensar. Faltava-me

um mês para entregar o projecto, o que me obrigava a passar todos os dias algumas horas no gabinete. Ia para lá com a luz alta, ficava pelas horas depois de saírem

todos, e retocava com uma lentidão saborosa e sem testemunhas os dados no ecrã do computador, entre as plantas dispostas pela mulher da limpeza e os livros indispensáveis,

a máquina de café e os restos de pizza da última refeição mandada vir de fora. Regressava a casa numa longa caminhada a pé, sem dinheiro, nem cartões, nem medo das

figuras apressadas à minha volta. Custavam-me as curvas da última subida, o pesado portão de entrada de que se tinha avariado o comando electrónico, o elevador que

parava em andares intermédios sem que se soubesse porquê. Mas acompanhava com um prazer minucioso os últimos passos do trabalho e pensava muito pouco em Zoon, em

Frederico ou Vito. Nem sequer em Nuria; consolava-me a ouvir música, deitado no tapete, com o gato enrolado na barriga, antes de ir dormir sem esperar por Angela.

Sentia-me quase feliz naquela solidão irreal. Como me tivesse desligado, sem dar por isso, de tudo o que dizia respeito a Benamonte.

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TtVFSM S/l/£A/4

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Até que Víto me apareceu uma vez em casa, não sem fy

telefonado antes do café mais próximo. (Nem em tempt

como esses desaprendera as maneiras ensinadas pel<

pais.) Chovia torrencialmente e estava aberta a janela c

varanda para que entrasse o cheiro da terra dos jardins ei

baixo. Enquanto esperava pela campainha, ia anotanc

num pequeno bloco o que me ocorria para continuar /

trabalho no dia seguinte. Não trazia disquetes para cãs

nem queria prolongar ao serão as horas do instituto

preferia deixar subir aos ouvidos os ruídos do longe, (

terraço de entrada, da rua, dos pregões do mercado c

manhã, dos bêbedos da noite. >

Vito vinha despedir-se como quem pedia desculpl

por faltas não cometidas. Pergunteilhe vagamente o qu<

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tinha feito em todo esse tempo e contou-me das suai

hesitações entre a amizade por Leónia e a opinião acerca d<

destino a dar a Zoon. Parecia mudado em relação a esta,

Agora, aconselhava a demolição da casa para libertar m

linha de água sobre a qual estava construída; ao contrariei

do dia em que o conheci, não mostrou especial apreço peloJ

caprichos arquitectónicos de Soledo e disse aprovar os pá J

receres dos geólogos locais, assim como os planos para ai

transformação dos jardins em parque público. l

Os refugiados? Vito não parecia interessarse por tais l

pormenores. Olhou-me com o mesmo olhar difuso quel

eu lhe vira depois da cena dos rapazinhos e do emblema, j

Um esgar que se esforçava por ser um sorriso. J

Tem a certeza de que eles ainda lá estão? pergun-1

tou. E eu não sabia que responder. Não acreditava que l

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Leónia, agora sem a protecção de Alfredo, tivesse optado j

por uma viragem brusca na sua atitude de sempre, empe- j

nhada em defender sobretudo a memória do avô, aquela i

aura já enjoativa de filantropia. i

\ Desço as escadas da estação. í

Última vez, prometo-me. l

Décadas atrás, a mãe levava-nos por esses mesmos de- 1

graus a lanchar com a família Soledo. Composta e reser- j

vada nos anos que sucederam à separação do pai, carregava j

BENAMONTE

na severidade; os saltos dos sapatos pretos faziam eco no passeio enquanto mandava trotar os filhos, direitos, e nós redobrávamos insultos e puxões.

Sempre me convencera de que a nossa mãe não se importara muito com a partida do homem que tudo fizera para lhe contrariar a vocação de bióloga. Nós tão pouco vivemos,

Angela e eu, essa separação com especial agrura. Tínhamo-lo visto sair com frequência para viagens incertas, e depois da última saída continuaram para a mãe os dias

de laboratório, para nós os dias de escola e criadas, nas mãos da avó. Muitas vezes a mãe trazia amigos para jantar; ensaiava calças de pregas, fumo de boquilha

e a sala voltava a encher-se de bebidas e conversas, uma ou outra anedota ou frase oblíqua.

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Era a avó que nunca esquecia de fazer a ronda nocturna pelas camas dos netos, de juntar mais uma ou duas cenas à história que inventava para nos adormecer. Os duendes

que nelas habitavam tinham de travar uma luta esquiva e desigual contra todos os monstros, continuavam a viver nos sonhos diurnos, levantavam os olhos meigos e baço

s em pedido de ajuda. (Pareciam-se com alguns dos refugiados ou era a luz das ruas que criava a ilusão.) E eu acordava, suado e triste por não poder socorrê-los,

preso como me sentia às traves da cama.

Uma noite, sonhei que batia à porta alguém com um pé lesado de correr por cima dos carris, entre destroços de vagãos e montículos de carvão. Disse-lhe que se sentasse

e trouxe uma bacia de água morna, uma toalha branca. Enquanto o descalçava, sentia-lhe as mãos nos ombros, e olhei o seu rosto demasiado familiar a anunciar para

breve uma perda muito dolorosa e acordei com a voz da mãe a repetir que ia chegar atrasado, que não havia duche nem pequeno-almoço se queria que ela me levasse

ao colégio no velho Buick preto, herdado do avô. Respirava enervada, muito perto dos meus olhos de sono, ajustando as meias com as ligas.

Lembro agora como o pequeno duende do sonho tinha os traços de Vito, como a mãe carregava a cor do baton, luto vermelho que lhe acentuava a irregularidade dos traços,

o i'osto longo.

^

TERESA S\LEMA 9

Leónia chama-me: Logo que possas. m

Não quis dizer no gravador do que se tratava. M

Podia ter a ver com tudo, com o destino da casa, m

refugiados, ou apenas com os papéis de Soledo, esses m

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tentavam Nuria a ponto de a levarem a fazer cercq"

Leónia e investidas a Sora. Pelo que sabia, Soledo deidj

um grosso caderno de memórias. Que ilusão a de Leódl

querer publicar aquele amontoado de tinta atravessai

por paixões comerciais, revezes de guerra, conspiracy

entre álcool e fumo, décadas e gráficos, livros de conta

vertigens de negócios e financiamentos de invençíji

absurdas, tudo ligado ao fio das décadas pelas roncjH

dos mesmos amigos que iam envelhecendo, e era a gotas!

coágulo na artéria, e tudo se repetia todas as manhãs col

a solenidade com que Soledo rapava a cara com a navalhl

escolhia a roupa branca, os botões de punho, a gravatajj

fato de fazenda. Todos os dias, até ao último; era assim qttl

eu o imaginava. l

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Por essas e mais razões, por ter traído a figura COOT

posta para retratos a óleo e fotografias, pela forma coifil

abdicara daquela mesma figura ao retirar-se da teia social

por ele próprio criada, eu dava razão a Frederico e a Vital

Como eles, achava, mesmo já morto, que ele merecia ver J

sua casa demolida e os jardins convertidos em monumentJ

vegetal, de preferência com entradas pagas. l

Ao passar o portão, hesito ainda acerca da maneira dm

dizer tudo a Leónia, para depois me despedir dela e nuncal

mais a ver. Já não se trata só de romper com a paralisia dal

infância, a incerteza da adolescência, com a única mulher!

que talvez tenha gostado de mim. É uma mera questão de 1

sobrevivência para o tempo que resta. \

Ao fundo, o volume escuro da casa parece adormecido e l

nem a luz verde do jardim de Inverno ilumina já as som- j

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bras das plantas no primeiro andar, aí onde dona Iria se {

debruçava, em risco de vida, para atirar aventais à antiga '

calçada. '

Empurro a porta encostada do pavilhão para dar com l

Leónia sentada num sofá, com um penteado muito curto e |

ainda vestida de preto como na cerimónia do ano anterior,

copo na mão como todos os outros, numa sala que tem ao

w

BENAMONTE

findo urna enorme fotografia de Alfredo. Indiferentes à cena, alguns adolescentes passam de uma porta para a outra, equipados para sair, aparelhos electrónicos nos

cintos, um ou outro brinco de faísca. Slato sinaliza uma mistura de gestos, línguas conhecidas e indecifráveis qualquer coisa como Não sei se nos deixam ficar aqui,

entretanto, senhora, temos muita pena se decidir ir-se embora.

Faz uma vénia exagerada, enquanto a mulher sai do lado dele para voltar com um animal esfolado, coberto por um pano; transporta-o numa bandeja com gestos vagarosos

e delicados, como se embalasse uma criança. Olho para Leónia como a pedir um esclarecimento, mas ela encontra-se ocupada em representar o seu papel na cena, em completar

com gestos o que a língua não diz.

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O homem assegura que sim, percebe tudo. Olho para Salvador, para Sora, para os amigos que parecem achar tudo naturalíssimo. A sala vai-se enchendo de gente, falam

todos ao mesmo tempo e Leónia, parecendo despertar de um sonho, faz-me sinal de que devo esperar. Porquê, por quem?

Ao sinal de Slato, outros homens pegam numa das mesas com oferendas e levam-na para o descampado no fundo do jardim. Junto à porta, Sora zela para que ninguém saia.

Salvador aponta para a comida, oferece tragos de uma bebida forte. com a testa a tornarse pesada no fundo de um sofá, tenho a sensação de que alguém reacendeu uma

das fogueiras, porque cheira a cogumelos queimados. O fumo de alguns cigarros presentes mistura-se ao das fogueiras lá fora; Sora continua a dosear as entradas de

ar e de pessoas e estremece ao ver aparecer Nuria com o estojo fotográfico à tiracolo.

Esta mal a saúda, vai ter com o grupo onde está Leónia e começa a preparar os instrumentos para um ré trato de família, com a dona da casa rodeada pela prole numerosa

de Slato. Sora larga o papel de vigia e aproxima-se do meu ombro. Sinto de novo o cheiro incomodativo do gel de cabelo, enquanto Nuria dá por mim e faz um sinal

para que me junte aos outros. Parecem todos muito alegres, quanto mais não seja para disfarçar um excessivo nervosismo.

57

TERESA SALEMA l

Não sei quanto tempo vai durar a cena, mas talvez seja

a última oportunidade de ver as luzes de abat-jour sobre ai

mesas, bebidas e vozes, quase como na tarde em que LeóniJ

fez anos e foi recitar para cima de um banco, diante da

adultos que dedicavam uma atenção cortês à menina dm

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casa enquantotrocavam olhares, problemas, despedida"

surdas. (Por mero acaso, vi nessa tarde o pai de Leóniai

aproximar-se dos ombros escuros da minha mãe, pousar*

-lhe as mãos, segredar-lhe uma frase rápida e voltar paráj

junto da mulher. Que fazia aquele homem que só apareci

de vez em quando? Por que estava tão leve a minha mãe noa

regresso a casa, a falar num torn invulgar e agudo, a con-1

duzir o Buick às sacadas? Por que teimo ainda em deixar!

suspenso em pergunta aquilo que foi a mais dolorosa res-1

posta que tive até hoje?) J

Salvador rodeia todos da atenção do costume, leve e dis-|

tante. Na moldura de uma porta, Homero discute anima-1

damente com o filho mais novo de Slato, num inglês que J

o rapazinho não teve a mínima dificuldade em aprender, i

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(A língua franca, penso; os restos das outras línguas, i

românicas ou eslavas ou o que quer que seja, vão ficar l

quando muito para cantar saudades.) i

Leónia bate as palmas e levanta as mãos a pedir silêncio, i

(Como se fosse recitar, de laço no vestido e no cabelo.) l

O novo torn de ruivo dá-lhe um ar ainda mais cansado aos i

sacos lacrimais, ao peso da pele nos maxilares. Aqui está l

reunida a minha família. J

com mais ou menos teatro, acaba por falar verdade, l

O culto das heranças do avô impediua desde muito cedo de J

ter família normal, uma vida correndo entre primos e l

jantares, tias e toalhas de praia, amigos de amigos e botas l

de montar, raquetes de ténis, olhares oblíquos e pés dês- l

calços depois de serões mais entrados nas horas. Depois |

entrámos nós em cena, com as noites de conversação, l

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bebida e excesso. Depois o inexplicável casamento com '

Alfredo e a sua reserva castrense. Nada mais lhe resta '.

agora se não apoiar-se em quem parece demonstrar-lhe ;

gratidão, a família fortuita dos refugiados. Leónia faz sinal l

a Nuria para uma fotografia com Slato e a mulher, que não

pára de puxar a camisola para a tornar mais comprida. j

BEN A MONTE

Tenho uma novidade a anunciar. Pena que Frederico

já não esteja entre nós para a ouvir. Foi aprovado o projecto que integra a casa, o jardim e uma urbanização a construir no sítio da horta, do pomar e parte do parque.

Haverá trabalho para todos.

Não quero acreditar no que ouço. Ainda semanas antes, Leónia declaravase intransigente: nem pensar no sacrifício da mais pequena parcela de verde. Depois de falar,

acende um dos seus mais compridos cigarros e fica a olhar o fumo durante largos minutos, enquanto os grupos se repartem por conversas misturadas e tons de júbilo,

Junto ao nosso núcleo já descrente, Leónia critica aquilo a que chama cobardia por parte de Frederico. Contestamoslhe: como censurar quem arrisca viajar para um

continente estranho, com as incertezas da primeira vez e apenas motivado pela busca de uma pessoa querida?

Parece-lhes?, responde com um olhar desconfiado.

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Aproximo-me dela como para felicitá-la e vejo-lhe de novo os olhos encharcados pelo cruzamento de álcoois, comprimidos, dúvida e teimosia. E abraço a pele e o peso,

o cheiro, ancoro-me com ela ao que resta de chão herdado, de papéis com letra cada vez mais ilegível, de fotografias na sua arqueologia de sonhos industriais, de

renúncia por Soledo a tudo isso em favor de uma mulher vulgar, penso pela enésima vez enquanto um pontapé oco escancara a porta e deixa Sora a esfregar o braço de

dor, Ninguém se

mexa.

Uma corrente de corpos e cintos metálicos atravessa a sala e forma-se em diagonal, Leónia desfaz-me os dedos e avança, Que pretendem? Aqui já não há nada que lhes

possa interessar. Vendi tudo o que era de valor para poder editar os papéis do meu avô.

Sora apressa-se a confirmar o que a outra diz, enquanto Nuria desliza com lentidão milimétrica, agarrada à câmara. O segundo membro da fila invasora solta um riso

curto e seco, Devem-nos tomar por idiotas. Onde está

Strado?

Era um dos filhos de Slato, que tinha saído antes agarrado a uma rapariga de nádega em ganga estreita e madeixas pintadas. Leónia acende novo cigarro; em gestos,

59

TERESA SALEMA fl

peço licença para tomar uma bebida, agarro-me ao coJB

cheio de um líquido que desconheço e queimo a gargariH

com tragos apressados. Já que não posso sair daquela ceiB

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quero ao menos adormecer dentro dela, deixar que à minfB

volta aconteçam sinais que não entendo. 11

A senhora sabe muito bem que não viemos roubai

com um grito rouco, Sora parece reconhecê-lo e atirai

-se-lhe ao braço. É repelida por uma tacada que a deixa ejl

posição fetal. Quero acorrer para a ajudar a levantar-sB

mas Nuría segurame com um olhar severo. Num relâi

pago, percebo que não é a aversão pela outra que me mand"

estar quieto. l

Slato levanta a mão e pede que conversem. Leónia tent"

disfarçar a sua fúria, controlar os ímpetos de autoridadJI

que tão bem sintonizaram com Alfredo durante aquelell

anos, voltar à pose de anfitriã serena e oferecer bebidas aos!

intrusos. Salvador não se mexe do canto para onde HomerJj

o empurrou, como se também quisesse esperar, com o seul

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perfil de estátua desdenhosa, que passe mais aquele sonhql

ruim. 3

A minha filha, onde está a minha filha, vocês devení'1

saber, repete Sora sem cessar, dirigindo olhos e dentes dai

chão para as cinturas blindadas; estas continuam hesitan-'l

tes em aceitar o convite de Leónia, até que se dividem e J

deixam três de prevenção e arma apontada enquanto l

outros cortam tiras do assado e entornam garrafas na boca. l

Deixome cair para o lugar sentado mais próximo, à espera l

do que se possa passar. Leónia sabe que não pode contar i

comigo para apoiar qualquer acção de punho e forca bruta, l

com a entrada dos refugiados, devia também ter sabido i

que abria a porta a todo o tipo de estranhos; com a morte de '\

Alfredo, deixava de poder contar com a segurança física i

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que sempre acreditara ter na sua presença. ;

Alguém põe a tocar uma música de cordas e metais ;

ensurdecedores e Leónia faz um gesto de dança com os ,

braços e o tronco. Mas nem o som das guitarras e baterias j

electrónicas pode já despertar-me do longo sono em que me

sinto disposto a entrar, como uma criança enfim liberta

para as birras que ao longo dos anos foram inibidas pela

tristeza vertebral da mãe, pelo voluntarismo de Leónia,

BENAMONTE

60

pelos entusiasmos de Nuria, pela melancolia de Angela. £)eixo-me afundar numa resistência com que mais ninguém parece importar-se, numa compaixão crescente por Sora

e pelo que não sei, apenas pressinto estar a acontecer

à filha.

Estranho, penso. Como é paralisante a piedade, esse sentimento que deveria fraternizar o mundo e levar-me a erguer aquele corpo que se sentou no chão a chorar baixinho,

só rugas avermelhadas, só cabelos grisalhos, e busca com mão cega o seu saco de rua.

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A pretexto de ir buscar uma bebida, Leónia sai com um gesto de dona de casa, que ninguém se atreve a contrariar. E altura de pegar também numa garrafa e deixar-me

embalar no fingimento de um convívio que secou há quantos anos? De um hábito pegado de conversas a que todos acorremos enquanto Zoon esteve aberto e no país não

havia bares como aquele, com a parede invadida por fumos, quadros e espelhos em que nos revíamos de passagem, na ilusão de aguentar por tempo indefinido a capacidade

de remoer discussões, dilatar horários a ponto de sair dali pela madrugada e seguirmos Nuria para um passeio ao molhe, com a condição de não lhe espantarmos

as gaivotas.

Slato entra de cabeça baixa, Tudo está resolvido, diz com voz baça, e acrescenta em torn mais agudo para Leónia, que entretanto regressou com um cesto de vime e

garrafas, Dá-me o prazer desta dança?

Faz-se um grande silêncio enquanto o patriarca escolhe um disco e o põe a tocar no antigo aparelho que animou os nossos serões anos atrás, até se ver substituído

por um leitor de compactos. Ao ouvir os primeiros acordes, Leónia ainda murmura, Não sei dançar o tango.

Mas já o outro a agarra pela cintura, rompendo os tabus que todos sabemos existirem na tribo, no clã familiar que garantiu a sobrevivência através do tempo, nas

agruras do clima, nas lutas regionais, nos campos minados, com

passaportes falsos.

Alguém abre as janelas para que corra uma aragem. A música sobe de volume e os dois movimentam-se colados, guiados por uma voz longínqua, talvez a mesma que ajuda

61

flRLSA SAL CM\ 1

também Sora a levantar-se, dorida e de mansinho, páj

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mão da mulher de Slato, que vai juntando à sua voa

um grupo de palmas ruidosas e cantares agudos; tocJH

reconhecemos a cantiga que com eles atravessou todas J

fronteiras e ^gora está ali, sem se importar com o tana

que roda no prato de vinil, oi tsvetiót kalina. Roubada aã

russos, dissera Vito... que importa isso ainda? J

Estamos presos, sem oportunidade de fugir ao sopro dm

mulheres que manteve os homens, enquanto passage!

ros clandestinos do continente, e continua a mante-los, I

encobrir-lhes os avanços, os acordos, as retiradas. Eri

quanto os filhos de Slato pegam nos blusões para sai

lembro-me da tradução que em tempos me fez Vito. NãA

encontro palavras... ali não são precisas. l

Do lado de fora ouvem-se outras vozes crescentes. Nuri J

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parece reconhecê-las e sai ao encontro de outro grupo quJ

tenta entrar atrás de outro familiar de Slato, filho, sobriJ

nho?, em todo o caso recortado do seu perfil, dos seus modos!

calmos. Leónia continua agarrada ao homem e ao tangol

enquanto o coro das mulheres se cala. Nuria levanta o j

braço do gira-discos. l

Confirmam-se os nossos receios, diz num torn brando J que lhe desconheço. Nada mais resta se não conformar- \ mo-nos. j

Conformarmo-nos?, ouve-se de repente uma voz | grave, enquanto o seu corpo vai passando para a frente. Um ç rapaz de olhos escuros e cabeleira farta faz uma vénia

j irónica diante de Leónia. Permita-me que me apre- | sente: Josué Silva. E possível que não se lembre do mim, ] tenho vindo procurar documentos à sua biblioteca

acerca j do seu avô. Como pensa que pode anular assim sem mais nem menos as disposições legais que ele deixou para os cem anos que se seguem à sua morte? Se julga

que mais ninguém as conhece, está enganada. Em breve os jornais falarão disso.

Sora... é verdade o que ele diz, que puseste os arquivos do avô à disposição deste senhor?

Sinto Leónia a tremer entre a raiva e o desejo de negociar, a procurar a mão de Nuria para lhe dar coragem, enquanto Sora lhe riposta num sarcasmo seco:

Do nosso avô, pus, sim, senhora. Por que não havia de fazê-lo ao namorado da minha filha mais nova? Fica tudo em família...

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Sai com Josué, deixando-nos mudos de espanto. Nenhum de nós se atreve a fazer perguntas. Estamos de novo um pequeno grupo, com Slato, a mulher e poucos mais. Perplexos,

tentamos restaurar o que nos resta de humor e compostura as palavras que fiquem para mais adiante, os ódios que se degladiem lá fora. Nuria volta a pôr o disco

de tangos na primeira faixa e aproxima-se, como se quisesse convidar-me para dançar.

Não te apoquentes com estas mulheres loucas, segreda-me, enquanto a música nos envolve.

62

6?

MAE PRETA

Precisa de um banho, acabou de chegar. Abre as janelas para arejar as tábuas carcomidas do chão e os objectos em cima delas, aparelhagens desirmanadas, canapés,

livros abertos, uma escrivaninha de mogno coxo. Pousa o saco e o pacote e senta-se a olhar os desenhos de humidade nas manchas da parede. Faz um gesto de levantar

o braço. O perigo maior já passou há muito tempo, mas o médico foi categórico em afirmar que teria de viver doravante com a forca diminuída, de atender aos movimentos,

de não se ferir.

Enquanto enche de água a banheira, abre os nós do pacote com as unhas, quase as jompe ao desfazer o que só agora lhe foi entregue por uma Angela sempre composta

na sua mudez, nos gestos aéreos, impermeável a qualquer condolência.

Quanto tempo passou depois daquela noite? Tenta fazer contas e lembra o choque que teve ao ver a bailarina ainda de luto pelo irmão e ela, Nuria, sem saber o que

dizer para não ferir a memória silenciosa daquele amigo que lhe fora sempre fiel embora impermeável e estranho. Não ousa, ou não lhe apetece, voltar a uma memória

de que também ela saíra lesada e não apenas no braço.

Tens de te poupar, tinha-lhe dito o irmão de Petra ao visitá-la no hospital. E depois, sabes lá se ele queria ser salvo?

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Separa os papéis e introduz a cassete no aparelho de vídeo; com o ouvido no escorrer soluçado da velhíssima canalização, vai reconhecendo algumas caras da casa de

Frederico. Esse sim, afastou-se a tempo daquela atmosfera claustrofóbica de Zoon incestuosa, sabe-o agora.

( OMEMPOKAM.X 15

65

..V^NV "- \

TLRESA SALEM \

Jogam em círculo, num ritmo acelerado de palmsfâjf palavras onde não é possível entender tudo. Quem see" a câmara? Frederico não, porque vem juntar-se às cacM cias.

Depois, o cenário muda e a câmara aproxima-sll um barracão,^le um fundo pardo com um grupo sentadal chão, a olhar para qualquer coisa por detrás do especta" Apaga

os aparelhos. Bolas, também estes são deat siado sisudos para serem reais, chega de fantasmas -< em voz alta para ouvir outro som no silêncio nu daque" paredes.

Volta para a casa de banho, o corredor é compra e não resiste a dar duas voltas completas sobre as mãí como no tempo em que se treinava em todas as espécies acrobacias.

Ô braço não vacila. Descalça as botas psaj sentir a madeira do chão, as lajes gastas junto à banhe de esmalte com pés. Está para fazer uma careta ao espel" quando

o toque do telefone a obriga a fechar de novo m torneiras. ||

Só pode ser Jorge, o único a saber que ela acabou M chegar. com a voz ainda mais rouca do que o habitual perguntalhe como está instalada, se a casa ainda ten condições

e que uns amigos lhe pediram para lá irem ficai de passagem, vão chegar daí a dias. Não pode precisar i data e promete ligar-lhe de novo. Nuria sente-se entregui

a uma eternidade incerta, num sítio que não acha ferol mas acolhedor, entre trepadeiras que roem a pedra, janela! mal calafetadas, paredes onde o bolor se incha

em arai bescos. l

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Há anos que sabe da existência daquela casa, mas foi preciso chegar à situação em que se encontra para recorrer! a toda a sua ousadia e fazer aquele pedido em forma

dei proposta. Jorge tinha-lhe contado do acordo a que finalmente chegara com a mãe e os irmãos. Iam pô-la à venda, | logo que recebessem a resposta de um t''o que

tinha tam- j bem direito àquela herança. O irmão rnyis velho, preso à i cidade, ainda pensou em habitá-la. Mandou reparar os muros, instalar um sistema de vigilância

electrónica, e , preparava-se para fazer obras na casa quando a mulher o j deixou, regressando ao país de origem. Foi assim que o ! irmão cedeu ao coro familiar,

não sem lamentar a perda do . que para ele fora um teatro de cenas infantis. !

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p^fa"õ""éra o caso de Jorge com a sua vocação rural. Nuria rlg0 duvidava das suas palavras quando falava daquela casa como de um pesadelo. Relembra os serões na

quinta com amigos vindos de todas as partes, e também esse engenheiro polaco que conhecera numa das suas viagens a Berlim, beijamão, cortejador, sem se preocupar

com a presença de Jorge. Lembra-se agora de que Manuel, ao ver a sua fotografia, o confundira com Vito. Respira fundo. Decididamente, as fotografias servem muitas

vezes para alimentar equívocos, pensa, sabendo que está de novo a tentar consolar-se da perda dos equipamentos, da impossibilidade momentânea de manejar uma câmara.

Mete-se na água. Enquanto os nós do corpo vão amornando, sobe uma saudade física palpável, mas sem destino. Por alguns segundos fica submersa no líquido e volta

à superfície com os cabelos ofegantes e a sensação vaga de odores, frutos, cinza, estações passadas, um fechar de olhos para reter uma cara ao acaso comida pela

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luz da rua. torn? Tem de contrair-se para evocar o que a memória deixou há muito de alimentar, o volume de pele, o suor alaranjado, o sorriso de sardas de quem se

desculpa de ter feito uma asneira por equívoco ao agir na melhor das intenções? De que serviu procurá-lo, afundar-se há anos em interiores desolados, gentes opacas

e episódios pouco credíveis, apenas para desmentir as denúncias de Sora? Lembra o aguilhão da outra, associando datas a notícias de jornal, confrontando a morte

dúbia de um traficante de droga a uma pretensa viagem de torn. De qualquer modo, o único que acreditou nela, contra a bibliotecária de Leónia, foi Manuel. Acreditou

ou fingiu, com a generosidade de quem já nada tinha a perder.

Não quer pensar mais em Manuel e muito menos em Sora. Nota que não consegue ainda apagar os traços nem de um nem de outro. Mas até isso tem de ser exercitado, o

apagamento de imagens, a esperança de que não regressem em pesadelos, a sua substituição gradual por outras.

Experimenta fixar o tecto e vê nas fendas uma paisagem de planícies e declives suaves. Faz por pensar intensamente em Jorge, grisalho e esguio, distante. Face àquele

67

BFVAMONTb

fERESA SALEMA *

paSTsarTn?0' ^^ lembra C°m° semPre se esforç,

decLento tf & T r6SerVa' Sem esconder aS°ra ° ""5 F nrZ í P ConflanCa P°r ele demonstrada com a cas

vidPaTqueTaseSSa T íf° SÍmpIeS que era areJar e trí

,éS55?^^^ sS?"vr=

cokhío a Jorge que lhe bastava perfeitamente un Sés de te^n n ^ NeSS& C0nversa' e aPesar das limita

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SSi=s"^±-r:

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cPhToCd°eT nUm restaute a° fimdo S rua. O loS eS< televiín er!f8' ° CheÍr° a frit° cola-se aos azulejos, â

wn^Sn? COntÍrT a dÍSparar Chapas Colorida" ^ ninLém "í J1Splda' num canto J'unto ao tecto. Já!

S dTstantrm°Kda C0m ÍSS°' tod°S 6Stã° entretidos e^ omos distantes e bocas próximas do prato e da toalha

Amda faz um gesto para chamar o moço mas antes de pedfr

voltar mS6m °S T^ Iembra-Se ^ue talvez t^lfa de IheirL i S> Paga> atravessa a rua dentro de um

dhTd g f8 6 Separa Sem palavras duas crianças Í

et;: Ss%cr0:echadas'que trocamj°^deí

de vMeS1 MpSlfeCha alpersianas e liga de novo o aparelho j

cer as razttT T?Ue,na° 6ntenda &S Íma^ens' ^er conhetos sohrP Fredenco. Começa por ver caras indistin-

ona Se Z,! TS1Ca mdistinta' zes sobrepostas numa autorpT^! T ^qUe fezem tudo Para esconder os

cassete errada H"8' C°meÇa & duVÍd&r Se nâo Se trata da ^ nf,nní T' Uma emissão gravada por equívoco !

Só nLTeR e re?ente acordes familiares num dkco^: '

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tigo, picado. Reconhece um canto do terraço que Frederico \

j

j =1, a casa, a melodia que ...nas traseiras dasud. quela época

A r"^^biaremZoon,flo^^temasdo diae ^anda^ vaa dam fartos de discuU^^o elecost^aosPa(Lva para uma partida a rn&

etn que^ d^^aBadas, flores *^ricoac£ntua Salvado^ 1Itie as nea cadeira de verga,^^^ redo.

BnSeI<conbece, na voz ^^^a dos seus estafe e^Lssivo que se caravana ^

as notai ^ o _ía cfcicotea-wcHn egtãQ ^

^d^>flr a o f^o branco do senhor^.^ j&

^ ^^^s^^ °-e riscada nura ^^ssSJ^-i^

dÍSSl^Seafeontinuaatraute^ate^ ^ E.

^^SK'er^eSSir*8 ^fe^-^S-a^

^^^.d^^^ídB^na Paciente a ÍS^Í sonolenta das aflições olhado> uma

s^f^3"j*jíjssr.

^^Aff-s55*---11--" ^r^^--^-çsar2K^

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nenteS ^'^^do-lhe na mac.como velh0j

Fo' asse, f |Unquanto fazlair>^honras^ ^ que V""^ Frederico na toPef^C°"tudos feitos no fno

rí^^sírs^^1^^^ ^^V^^^sr^^^^

^iss^^sSa^^

^^r^^^i^.

\cfOw; trabalhos TUU^- -- onuecimentos. tora ^"^ t ^s Ceavam amizades ^^^sitas a Zoon, os í Ve Ste principiara a ee.paçai a s todQ Q pesQ que tt^4.rh?r^^S"ava

a .nventa, a

r "rzK-"a rtprarPòr todo 0;-"<," ^i^^&^í3^-1"1111"''

S-

6,V

Mas não podia queixar-se. Seguira a fundo os objectivos, alternara generosidades e egoísmos. colaborara em projectos em que não acreditava, a fim de conseguir dinheiro

para sonhos caros, para álbuns temáticos que a faziam correr uwndo e fotografai gentes dilaceradas por fronteiras ou por águas inquinadas ou paisagens ameaçadas,

com vegetação que palpitava como um grande animal. Viajara, estivera pouco no país onde não tinha nascido e só se sentia de passagem, servira-se de um quarto na

casa de tias que acabaram por morrer e deixar o apartamento aos primo;? que não a conheciam e a desalojaram por meio de cartas registadas.

dom a herança em dinheiro, de que as mesmas tia.-, se serviram para com p rã r uma consciência de j u si iça na hera cie uma morte de hospital '.pensou Nuna na altura,

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ao receber o cheque cio notário), ela ofen céu a si propna um tempo de tréguas. Fez-se invisívo a maior parte deamigos, ora inquietando-se em excesso por eles e

pelos seus próprios sentimentos de cuipa. enquanto obedecia, leunosa, ao que na altura lhe eram imperativos de sangue quente, fôlego de metas próximas.

Não tinha medo de ninguém. Ho recuou, por respeito, diante de duas pessoas.

Uma delas foi .Jorge, i Sabe-o a envelhecer, eiure silêncios e compromissos pai a com a mãe. Not a como se deleita a deixar entrar na imaginação cenas que a sua

s romã desfaz logo a seguir.) i'] a outra foi Saptra. Nem sequer Frederico, com a sua pose distante, fora poupado a sua vu/ e á sua câmara, às questões incisiva,-

com que ela n; 01 n u nava todos ao querer revelar outras tuce ; de tudo. aos ensaios- fotográficos que Iodos voltavam a esque-er ao verem os produtos finais. Tão

pouco a perl urrara ai'juma vez Manue . amigo de fundo que .-e foi deixai/!'' !'icar. constante, sedenta HO, ai é ao fim que devi-. mvs.-er l :r ;aa a breve.

Não. não vá i con t aiuar o dês; i!c de meai > 'a- ' a .; :.; "a i-

Concentra-se na imagem que irem.1 de i;i.;.:.a'' . i a camará manejada por Saptra. ouve rises a-la de ir cari co e de mais alguém para den! m d;: poi i a ee>

;,;> ..:ç. d;:. Fora do ecrã. no terraço, uma série d'- Ia1 IMOS eee.-ao-a

: em--- na desligar u s a parei ho< e n1 esprei! e i. ' ooa i ;.!"

.i- rao ( aouoio lamatii'io cruzar a espessuia do oor'ao.

eíibrar-s" no gradeamento? Num gesto irn. Hec'ido de a e-a e boas-vindas. estendelhe a mão e vê que tem olhos

M-! n e l hose co l ados, uma pata ferida. Alarga-lhe a coleira,

íemasiado apertada sobre o espesso pelo cor de mel, e o .-nine. d não só se de-i xá manusear como lhe oncost a ao hraco em focinho húmido e cansado. --Que se lixe.

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de qualquer

"..ido não you ficur aqui eternamente, di/ em voz alta.

a io u an l o procura, num d.os saco.- a farmácia msi ant anca.

'epois de ho desinfectai a ferida e lava; o-orno, roda a leira para ver se teia .ligum nome aravado

--- \'ais ehamar -í e (.'."</'o. decido, e -, eao a -e a' a - -^ - o o ao para \er Sarara oa cena s-a-mnlo d"iiada noa r-.a ' eu a. a sn'nbra de í erraie ' ee(oian1

- > a ' i >y -a- r rei í e n . u 'nina a melodia e impede qu.t cia a.o'ae, ; -\ .,/ o..í--e''- e .edu lad a. de.-cuhre N n ri a. : '. 'o m um ao-*'o t aoido ia"

'"leMiani.to. iui(*i'ili/a a imaa'eaa íaxendo 'árias ,;o animai .m a ou! rã n i ao. Solta de n avo a í m a gê: r.- S. i pi rã tem o> ; ais fechados, a pele escora

sobe e desce, v; "a- -~e a M o r m i r b ré os flancos na respiração confiante o e vá;-:1';: -o:; aã e!o

,,!!iel. Por q-|... foi ela paaar a um,

-aaaod- uiiive. --idade i i,;.-!,..;, ' IV: . eni !loi-;'.rio.s de bani e e e-ei jOeie-o! o i .recari! >.'

l ,em i ira de i M a'i i ' ' .---i: -o a a oOs a . n. ' odí .s mo il; 'S :-' ; l ;i !"i ' aã- n l i o-'a

l

TERESA SALEMA l

\ s i

continente onde nascera, pelas tardes em que ele dava j explicações aos garotos do bairro. l

Nuria tenta reconstituir o momento em que tudo se J precipitou, a reforma antecipada, a partida de Saptra; 1 sempre lhe custoi* a acreditar que os dinheiros paralelos,

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f as magras receitas da pedagogia doméstica, tivessem real- í mente ajudado Frederico a antecipar a reforma, a dar o J salto para fora do colégio, a libertar-se

pelo menos de l metade do que ele próprio chamava ruminância de vida, em l que variava ao lanche o que repetia pela manhã. Acredi- | tasse ou não, Nuria comovia-se

com o tradicionalismo do l sistema criado por Frederico e que pelo menos tinha vali- l dade quando Frederico o expunha entre bebidas e cachim- i badas, à mesa de

Zoon: bastava-lhe que as mães pagassem J o que queriam dar, quantas vezes em géneros, à maneira l antiga; assim viu entrar (contou) os mais variados alimen- m tos,

embrulhados em panos frescos, um serviço de chá e um m livro raro, roído por bichos de sótão. Quanto mais reniten- l tes eram os miúdos às escolas, quanto menos

sílabas l articulavam e mais abanavam a cabeça a ritmos que se lhes I tinham metido debaixo da epiderme, quanto piores eram li as notas que traziam, mais Frederico

se interessava por i eles. com a ajuda de Fausto e de arrumações na casa, l organizou uma oficina de filmagem e outra de escrita. No i que ele próprio chamava uma

fuga dupla para a frente, l procurava as saídas possíveis para a questão em torno do n desafio entre a escrita e a imagem, que mobilizara anos a 'l fio as discussões

à mesa de Zoon, em grande parte a l propósito dos papéis de Soledo. l

Ao querer evitar memórias dolorosas, Nuria nota como i caiu nelas em cheio. 'l

Tenta concentrar-se na cassete. Decididamente, pré- i fere a imagem ao texto. I

Do lado de fora do portão, alguém acena com um braço vermelho. Nuria desce a escada do terraço, Ordio acompanha-a pelo jardim ressequido, a saltar de alegria inquieta,

e vai lamber a mão que o desconhecido mete pelas grades, enquanto diz algumas frases ao animal que se

BLNAMONTE

senta para ouvi-las, a olhar ora para um, ora para outro. O homem de cabelo comprido e camisa aberta diz a Nuria que vem substituir um amigo na ronda de segurança.

Treme, quase de lágrimas, e Nuria não ousa olhá-lo nos olhos. Sem grande convicção, como se soubesse que ela não vai acreditar, ele ajuda-se de gestos tímidos, pousa

o saco de lona junto ao portão e tenta convencê-la de uma história.

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Que perdeu o resto da família quando esta foi levada por uma onda mais forte, na parte baixa das rochas onde quis tirar uma fotografia, num passeio dominical.

Quanto mais absurda lhe vai parecendo a narrativa, mais apetece a Nuria acreditar. (Lembra ter lido nos jornais de infância uma história semelhante, uma família

completa refugiada de um país longínquo e gozando o sol da costa atlântica, arriscando a maré brava para uma fotografia com sabor a espuma salgada enquanto se endireitavam

nos fatos pespontados e ajustavam as cinturas dos casacos, os lenços saindo das algibeiras, os brilhos fixados no cabelo.) Pergunta como lhe fugiu o cão, mas ele

faz-se desentendido, Aconteceu.

Ao fazer-lhe um sinal contrariado para levar o animal, abre uma estreita faixa de portão e fica à espera que Ordio se levante e acompanhe o dono, mas em vez disso

o bicho abocanha-lhe o tecido das calças e arrasta-o com firmeza suave para dentro do jardim. Nuria espreita para a rua, onde passam algumas pessoas rumo a destinos

indiferentes. Não sabe o que fazer mas não sente medo.

Pergunta-lhe onde vive.

No cais, responde ele. Nuria volta a desconfiar. As roupas parecem-lhe lavadas, o cabelo loiro-escuro debaixo de uma boina, um cachimbo no bolso da camisa vermelha,

barba feita. Caminhante por opção, não mendigo. O nome? Daniel. Se aquele saco é toda a bagagem que possui? Ele ri e diz que tem o resto em casa de um amigo, Então,

por que diz que vive no cais? Daniel levanta as mãos com os dedos abertos, para indicar quantas pessoas já vivem nesse apartamento.

Ordio encosta-lhe o focinho à mão, como quem não quer ser levado dali para fora, e Nuria tenta fazer o cálculo da

73

TLRLSA SALEMA

situação enquanto espera que Daniel tome qualquer inicia*,!

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tiva, entre o ir-se embora e o pedir uma bebida, uma roupa,1!!

um abrigo. Sabe que vai ter de renunciar ao novo amigo, i

Olha para o terraço e pensa que os dias já vão estando!

tépidos para pôryima mesa e uma cadeira cá fora, pelo i

menos para ler. l

Num impulso, pede a Daniel que a ajude a transportar i

a mesa de ferro pintado que viu numa arrecadação do l

jardim, por uma porta entreaberta. Vai-lhe contando que l

espera um primo para mais logo à tarde, chegado do Norte, m

e que entretanto tem de rever uns papéis. Ao caminhar I

junto dela, o outro olha-a com a ironia de quem adivinha l

receios e intenções, enquanto Nuria está apenas inte- l

ressada em apurar se ele observa o terreno como se qui- l

sesse apoderar-se dele. l

Da porta que range escapa-se uma gata, pesada na l

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gravidez. Ordio dá um salto guloso e é travado por um l

som autoritário de Nuria que o faz sentar-se, de olhos J

humildes. Daniel ri de dentes brancos e pergunta-lhe se i

não quer adoptar o cão, já que ele não tem vida para o J

manter e não o pode levar a sítios aonde tem de ir nessa l

noite. Aliviada, ela acena com a cabeça e as quatro mãos l

tocam-se antes de se separarem para agarrar os cantos da |

mesa. l

O homem senta-se no chão quente do terraço, depois de '|

a ter ajudado a pousar a mesa, e olha-a de azul aberto, para i

cima. Num gesto de desalento, sugere-lhe a dor de ficar, l

maior do que a de andar ao desbarato por aí, do que a !|

preocupação em transitar de países em guerra para países \

preocupados com o dia presente. Que profissão apren- ;

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deu?, insiste Nuria, e ele diz que antes de tentar sobreviver l

foi um pouco de tudo, historiador a reboque de padrinhos ;

académicos, técnico de computadores, vendedor de fast food >,

numa rouUote num subúrbio mandado evacuar por falta de

higiene, E;n que país? insiste Nuria numa obsessão de ;

ordenar pelo menos a geografia, o outro sorri, Um pouco \

por toda a parte. Faz um gesto com a mão em direcção ao

queixo dela, muito perto, mas de repente parece mudar de

ideias, levanta-se e sai com uma despedida silenciosa.

Ordio não o segue.

74

BEN'\MONTE

Sozinha com o animal, Nuria lembra os tempos de Zoon, o círculo fechado para o qual só ela e Salvador traziam narrativas do exterior, que Manuel bebia não para acreditar

mas para preencher com imagens o tempo que vivia entre fórmulas e a paciência com a irmã.

Começa a comprender melhor Manuel, o seu mutismo, o propositado desinteresse pelos jogos que envolviam Leónia e os refugiados, sem excluir Alfredo nem mesmo a velha

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Humberta. Apesar dos anos passados, sente a falta da sua proximidade tépida, consoladora, ouvinte. Não sabia se acreditar ou não no que contavam dele; via-o em todo

o caso sentar-se junto das fogueiras e negociar com a ajuda de todas as línguas e todos os gestos; às insinuações de Leónia sobre uma cigana que lhe teria dado a

volta à cabeça, abanava a mesma cabeça quase calva com ironia triste. Nuria sentelhe agora a falta física, na persistência calma com que ele a assistira, ouvindo-lhe

fábulas sem ocultar o seu descrédito sente essa falta, mais do que a saudade do corpo de torn. Compreende agora o que significara para ela o porto seguro desse

ouvido, que se apagara ao tentar arrastá-la para longe do fumo e das chamas.

(Não, não vai continuar.) Senta-se no chão e começa a

!er.

Vou-me embora antes de dizer que os meus projectos falharam. (Assim principiava o molho de papéis manuscritos de Frederico, sem data.) Um fracasso isolado, por mais

cruel que seja, não conta, se quem o sofre sentir que rompe as suas malhas. O pior é quando esse fracasso cresce e se põe a palpitar com vida própria, imparável

a arfar, salivar, ramificar-se noutros falhanços.

Dias a fio me entretive a observar o que se passava à volta, a afastar os avisos de Saptra contra tudo o que lhe parecia suspeito, ela que sempre desconfiou da quietude

nas pessoas, da fleuma sonsa de Ivo e da mansidão de Cláudia. E eu que não lhe dei ouvidos ao crer que se tratavam de ciúmes dessa miúda de olhos melados que vinha

ter comigo com as perguntas mais crédulas, que ficava aqui mais tempo do que os outros. Só mais tarde vim a saber as razões. Mas serão mesmo as verdadeiras, as últimas?

Não quero estar cá para saber mais.

TERESA SALEMA 'l

Os motivos para me ir embora, posso agora enumerá-lou sem me preocupar com a sua ordem de importância. m

Por exemplo, o desabrochar de uma folha de palmeirm diante da janela do meu gabinete de trabalho. Posso escrtjt ver, convencer-me de que parto para longe para não

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a vem cortada por algum dos miúdos, num daqueles actos ar6£n trarias de passagem e destruição que por comodismo se dim que são sinal dos tempos. Longe daqui, entre

palmeiram adultas, posso imaginar a outra a crescer, a resistir entrm ventos e carros mal humorados, entre gentes que adormeM cem a ruminar peças de curta vida e

se levantam sem teremjl anotado o que sonharam. i

Outra razão: a ausência de Saptra. Parto para lhe> contrapor outra ausência, para descrever um grande cír4. culo, onde talvez a encontre num cruzamento mais fortuito;

que forçado.

Outra ainda: as resistências de Fausto, paredes finas e\

cortantes contra as quais deixei de querer fazer qualquer^

coisa. l

Outra, permanente: a obsessão, cada vez mais insupor-^

tável, de que podia ter evitado a tempo tudo o que previ e quem

acabou por acontecer. (É impossível querer ser ao mesmo i

tempo pedagogo e pessimista. Gostava que vissem a minha l

cara ao escrever isto.) l

Neste momento não penso muito no que talvez mais me J

doa a fundo: prefiro voltar à razão aparentemente mais l

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anódina, àquela folha da palmeira em forma de coração i

verde tenro. Estive durante semanas a olhar para o rebento, J

ainda de leque fechado, como já estivera meses a pensar no i

absurdo de plantarem nesta zona tão fria da cidade uma l

árvore tropical. Cheguei a tirar uma fotografia àquele 1

vegetal exilado, mas ainda não acabei o rolo e levo-o comigo l

dentro da máquina. Descobri, então, que eram as palavras J

no papel que melhor sabiam conviver com as fragilidades i

que parecem e são ridículas mas que nos obcecam, com os l

lugares de passagem espezinhados na sua insignificância l

e que depois se viram contra nós e nos assombram as \

memórias. Dei-me conta de que não existem áudios nem |

vídeos capazes de registar os despojos dessas batalhas |

perdidas à partida, mistura de tristezas atentas, resigna- \

BENA MONTE

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coes adiadas, reconstituições inúteis do modo como poderiam ter decorrido as cenas desastrosas.

A única pessoa com quem teria podido falar sobre isto já cá não está. Nunca seria Saptra, com aquela vitalidade sempre pronta a arrepiar caminho, com aquela intuição

que se compraz em decidir num instante se desvia a cara do sangue ou combate uma injustiça. Mas sim Vito, que sempre foi, desde criança, atento às mais pequenas

coisas. Lembro-me dele quando vivia com os pais e foram meus vizinhos durante algum tempo, da sua obsessão em libertar as plantas debaixo da neve, em esconder na

cave os animais de que os amigos se cansavam, antes de pedir autorização aos pais para ficar com eles. Apesar da diferença de idades e ideias entre nós, foi a única

pessoa que nunca traiu uma cumplicidade.

Deixo tudo para trás? Poderá Nuria censurar-me, ao ler estas linhas, de lhe fazer parar às mãos uma série de factos que ela ignora e cuja revelação talvez seja matéria

não para reportagens mas para dilemas de consciência ? E é precisamente porque sei como Nuria trabalha, como selecciona as informações, como tem ela própria de ocultar

tanta coisa, que lhe quero fazer chegar tudo isto. Antes que ela decida o que fazer disto tudo, quanto mais não seja deitar fora, you estar longe. Talvez volte.

Invejo Nuria. Como sempre invejei Saptra. Seja o que for que as preocupe, tanto uma como outra permanecem ao mesmo tempo criaturas do ar e da terra e atravessam

sem problemas as tarefas da agenda. E talvez por lamentar agora nunca ter partilhado com Saptra os conflitos surdos que tinha com Ivo, com Cláudia, com Josué, imagino

que ela reagisse a todos os enredos com a mesma seriedade leve com que na altura me disse Parto. Algo se está a passar com a minha mãe. Depois telefono.

Ambos sabíamos que não dependia dela regressar, nem mesmo pegar num aparelho sob a escuta da família ou andar quilómetros até ao correio para fazer uma chamada internacional.

E de que me servia conhecer o que a atormentava em relação à mãe? Ainda passámos umas horas da noite na casa dela, extenuados depois do telegrama, da marcação do

bilhete cm lista de espera (É sempre assim assegurava , mas

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TERESA CALEMA

1

acabamos sempre por seguir destino), da confusão da\ bagagem, de um jantar no restaurante da esquina em que\ um bando de turistas se instalou mesmo ao pé da nossa

mesa a festejar o aniversário de um deles. Tinham várias nacionalidades, falavam um inglês que parecia não ser a i língua de ninguém. Um deles estava sentado quase

em frente de Saptra e não parava de olhá-la, até que lhe pediu autorização para fotografá-la, "So sad and so beautiful", dizia com uma garganta grossa de bêbedo.

Ao contrário ' do que poderia esperar-se, Saptra soltou uma gargalhada e os dentes brancos luziram tanto como o gel com que 1 alisara o cabelo, como a fila de botões

prateados no fato ',í creme. Saímos dali e ela pediu-me para andar, andar, <\ fomos caminhando pela beira-rio e sentindo o ritmo da l marcha agarrados pela cintura

e pelos dedos, a maresia | húmida, cruzámo-nos com cães à procura de lixo, com um ) casal que parecia saído de um casino, ela a arrastar o , sapato com um salto

partido, ele silabando uma canção ' infantil enquanto enfiava uma garrafa pela boca de san- j guessuga.

Bastava a Saptra ouvir qualquer ponta de melodia para i começar a cantar, sem parar. Nas poucas horas que nos í restavam o avião partia de madrugada ela ainda

] começou por trautear sem palavras a mãe preta, mas logo ; passou propositadamente a ritmos da minha geração, sen- ; tada nas pedras quase desfeitas e com o

olhar fixo nas < gaivotas a debicar lixo. Lembro-me como começou a cair uma chuva miúda e ela se virou de repente para ir apanhar junto ao muro um gatito escuro

que devia ter perdido a ninhada. Adivinhei o que estava a pensar e disse que não tinha vida para criar um animal tão jovem. Se alguém pode fazê-lo és tu, além de

que seria uma ajuda para Ivo e Cláudia.

Como sabia ela do que estavam a passar aqueles dois? Calei-me e deixei-a transportar o gato junto ao peito, ao meu ombro, debaixo da gabardina, pousá-lo na cozinha

e dar-lhe um pires de leite. Talvez nunca venha a saber que logo no dia seguinte, já ela tinha passado o equador, pedi a Cláudia que levasse o bichopara casa e nunca

mais perguntei por ele.

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BENAMONTE

Escrevo tudo isto para me livrar das lembranças mais incómodas, as que passaram por uma decisão ingrata acerca do destino a dar a um ser vivo. Por esse episódio

vi uma vez mais como a piedade inibe e se confunde com a cobardia. Empara verdade, nunca gostei muito de gatos e nunca entendi bem a fidelidade de Manuel àquele

bicho gordo e luzidio, irremediavelmente autista, que tem em casa.

Em todo o caso, a partida de Saptra aumentou a minha disponibilidade para observar o que se passava à volta, apontar palpites e desconfianças a lápis e apagar com

a borracha, corrigir o que viesse a alterá-los.

Quantos meses têm aquelas páginas, soltas e sem data, ordenadas sem dar a certeza de uma cronologia? Não lhe apetece continuar a ler, o sol desapareceu do terraço.

Levanta-se para fazer a ronda dos portões e Ordio vem ter com ela aos saltos. Enquanto dá com ele uma corrida pelo jardim, tenta não pensar em nada mais para além

das brincadeiras na casa de campo das tias com os filhos dos caseiros, nos desafios de destreza ao subir às árvores, nas lutas corpoacorpo contra os miúdos de mãos

demasiado ágeis para os impedir, em vão, de ir aos ninhos para roubar ovos ou e dissecar pássaros vivos. Insiste nos exercícios de memória mais anódinos e remotos

para não pensar ainda no que vai acontecer quando sair: como salvara ninhos, por exemplo, e os escondera num sótão onde a roupa criava bolor em tempo de chuvas,

num canto de fácil acesso às mães andorinhas, que entretinham os filhos enquanto ela tentava decifrar correspondências das tias, sépias se-

midesfeitas.

Ou, então, muito mais tarde, numa fronteira, enquanto esperava que os raios X lhe atravessassem a bagagem e o visto no passaporte. Uma senhora, considerada pelas

autoridades do país como já tendo idade para viajar, aproximou-se dela com a cara branca e uma malinha de fechos luzidios e pediu-lhe que guardasse um pequeno molho

de dólares na viagem de comboio, que para ela era de regresso para o outro lado, o sofá na sala da filha mais

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TERESA SALEMA

velha, para cuidar dos netos enquanto a filha montalB todas as manhãs a bicicleta para o trabalho. Nuria, qjl fazia uma viagem de estudo para um documentário qujl

pensava realizar com Petra, sentou-se no compartimeniB junto ao tricot Aã velhinha, que acabou por desmaiar dl emoção ou dos exageros do aquecimento. |H

Chega de memórias. Fecha as portas para o terraçH estende um cobertor para Ordio junto de si e volta a lig&B a cassete. Reconhece algumas experiências musicais àjJM

Fausto, sons minerais e metais, pequenas pedras rítmicfflB em cadência ternária a contrastar com um gongue orientals Recorda como Frederico ironizava com o que dizia

serem a|n chineseíras do afilhado, que passava horas a copiar comi estilete uma caligrafia de que ainda só percebia umáM ínfima parte. Na cena seguinte, um grupo

toma chá eixjB redor da mesa grande, deve ser ainda a mão de Fausto aw segurar a câmara, pensa ela, e o plano aproxima-se dgfl uma cabeça curvada sobre um cachimbo

comprido, maaral desce à ponta dos dedos antes de revelar a identidade de" alguém. Nuria reconhece o anel de família na mão dea Frederico, vê outras nucas em concentração

inclinada à I volta da mesa, entre o fumo e o vapor do chá. A câmara m move-se porém com extrema agilidade, detém-se de pró-1 pósito em pormenores insignificantes

como um montículo m de cinza, papéis rasgados, um livro aberto para baixo, um M copo bafejado pelos interiores. Omite os olhos, lábios, adere l ao segredo das vozes

que sussurram frases de cumpli- *| cidade. l

A cena permanece imóvel por tempo indeterminado; l Nuria domina-se para não a fazer avançar com o comando l à distância. Quem lhe diz que essa cena não faz parte

das l exigências de Frederico, de um desejo que ela a veja na l íntegra, nem que seja aos poucos, sem alterar a ordem de f sons e imagens? \

E depois não, não consegue continuar, acha injusto j aquele isolamento a que se votou num emaranhado de .; causas. A fuga aos restos de abrigo familiar. Consentimentos,

pactos mais ou menos duvidosos ou precários, com torn, com Jorge. A vontade de esquecer o que se passou na última noite de Zoon, a curiosidade por esclarecer

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BENAMONlh

pormenores em torno de pessoas que continuam a interessá-la. Como Saptra.

precisa de sair. com Ordio pela coleira, passa o portão, que obedece ao código, e desce a calçada íngreme, com pedras irregulares e escorregadias. Á Lua quase cheia

substitui um pouco os candeeiros partidos; no muro de um chafariz, um grupo canta uma canção em tons magoados, enquanto um deles apanha água com a palma da mão e

a levanta para deixar escorrer um rego líquido pela camisola, feita de um material prateado e impermeável. Como se respondessem a um coreógrafo ou telecomando, agarram-se

com dedos fortes, avançam numa roda até Nuria e a rapariga que segue adiante estende-lhe o braço num convite. De perto, os olhos tornam-se carvão incisivo, as gotas

de concentração endurecem os cabelos, o cheiro a fritos de um restaurante próximo.

A rapariga solta-se do grupo, chega-se a Nuria e está quase a puxá-la para si quando um rosnar surdo do cão a faz recuar; os outros riem-se e ela não lhes presta

atenção, hesitante entre as boas-vindas a Nuria e o apelo da tribo, indiferente ao bloco sereno de mulher e cão, ligados por unia mão nervosa na cabeça peluda. Ordio

aumenta os sons hostis e ela cambaleia, para logo fugir pela esquina mais próxima. Os outros saltam para um muro, dão início a uma nova dança de equilíbrio e não

parecem notar a sua falta. Ao dobrar a esquina, Nuria já não vê a rapariga.

Da porta em frente sai um homem de cabelo e barba grisalhos e soltos no ar, de camisa larga a carregar um vaso enorme com uma planta de folhas pretas e flores azuis

para dentro de uma furgoneta. Uma voz de mulher chama-o dois andares acima, atira-lhe da varanda de luz uma écharpe de algodão amarelo com um peso de fumo e lavanda,

e Nuria apanha-a, porque o outro tem as mãos ocupadas. Ficam ambos frente a frente, sem poderem evitar o momento espesso, mal coberto pelo vidro frágil de bocas

em arco, maneiras aprendidas. E é do ferro forjado em cima que vem a saudação sonora, uma gargalhada de terra que incomoda ainda mais Nuria e põe Ordio de orelhas

tensas, Há muito tempo que não a vemos. Não quer subir?

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CON1EMPOR\\r\ 16

TERh SA S4/CWA

Irresistível, a tentação de entrar na órbita daqueljl verniz que em dias passados rejeitou frontalmente comS hipocrisia. (Mas não o faz declina com delicadeza tristeB

como se sentisse capitular por diminuição física.) AgradecJI à mesma o convite enquanto o outro tosse e enrola o tecida no pescoço. Mais, sublinha que já vai atrasada

e perguntJI como têm passado, pelos filhos. Sabato oferece-lhe boleiál na carrinha e os passos dela entram em fuga instintivajj para sair de vez daquele episódio

entre um agradecimento!! e uma despedida. Mal suporta os olhares azuis do outro, asl nervuras das mãos que bem conhece e nesse momentoa forçam um vaso a entrar no

veículo atafulhado de objectos]! em segunda mão. Obriga-se ainda a olhar para cima, ema direcção à voz de terra que entretanto desapareceu dal moldura de ferro forjado

no segundo andar, e continua ai descer a rua com passo lento. l

Porquê?, pergunta-se mais tarde ao dar a Ordio metadel de uma bifana. Nada lhe apetecera mais, por instantes, dai que sentar-se ao lado do condutor, deixar-se levar

para um i sítio que dessa vez seria ela a indicar, à revelia das boas I educações de todos e dos desejos daquela esposa, que l tantas razões tinha de amargura certa.

Ficaria para mais l tarde, talvez, quando tivesse o pretexto de devolver a l aparelhagem que pertencera a Petra e que o irmão Sabato J fora colocar provisoriamente

na casa de Jorge. (Aquela l tarde, prolongada no escuro do soalho vazio, envolvidos no l tacto da bebida e da pele, ia agora longe.) As coisas do l mundo, essas

que eram tidas por imutáveis, não o permi-1 tiam de outra maneira. Talvez daí a algum tempo Sabato l se tornasse mais livre se conseguisse registar em patente |

multimedia as experiências botânicas a que se dedicava l para maior desespero da dona da casa e da écharpe, que i continuava a ser a fonte segura da sopa. Nuria

duvidava já | da sua vontade, do jeito que pensava ter para jogar com o !] tempo, lançar a moeda mais oportuna, rebelião ou compro- \ misso. }

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Paciência, não evitou a tempo passar por ali; ou terá ) feito passos inconscientes? Incomoda-a agora a sensação de ter queimado etapas, aniquilado a expectativa

dos períodos em que deliberadamente não se viam, de ter gerido

f!2

BEN\MON1C

com mão pródiga uma ausência até então doseada a pulso, pensa como é sempre assim, como o mais ligeiro desvio de composição faz estragos irreparáveis nas frágeis

teias, no acaso de amores imprevistos. Mas não pode evitar um incómodo e este torna-se corpóreo, viscoso, ameaça dificultar-lhe a respiração e desorientar-lhe os

passos.

Pelo barulho de objectos a caírem na água, percebe que está perto do rio; Ordio faz remoinhos no ar com um cão pequeno e ela chama-o para o pé de si, receosa de

que o outro cão pertença a um dos clãs que dominam a margem nessa zona. De repente, vemlhe à ideia de que o dono de Ordio pode estar perto e essa sensação principia

a adensar-lhe os membros, a alastrar ao espaço próximo, a guiar-Ihe os passos em torpor e lentidão mas sem parar. A margem está cheia de passantes diversos que não

se tocam nem se hostilizam. Poucos pares, nota com alívio, acariciando a nuca peluda de Ordio. Continua a andar como sonâmbula, contando as árvores esgalhadas em

fila, perdendo-se no ponto de fuga ao longo da margem. Lembra o que leu do relato de Frederico e julga reconhecer mais adiante o sítio onde ele deu o último passeio

com Saptra, mais além na zona que confina com as marinas a que se tem acesso com o cartão electrónico.

Está na hora de voltar para trás, pensa. Para onde?, interroga-se a seguir. Para uma casa vazia onde, de momento, pouco mais resta do que esperar, ir consumindo

o papel e as cassetes, a letra miúda e as imagens difusas de Frederico? Vai caminhando pela linha de água, com a massa tépi da e irrequieta de Ordio a parar aqui

e além, com olhares e focinhadas insistentes, junto a uma roulotte de comida rápida. Senta-se na pedra do cais a aquecer as mãos no plástico de um café e, enquanto

o cão mastiga uma ponta de carne, sente o passo mínimo que lhe falta para se ir deixando ficar por ali, vivendo os dias em respiração de bolor, em roupa sem banhos,

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entre barros e lâminas.

Não, levanta-se. Ainda não lhe apetece voltar para as paredes ocres de Jorge, mas também não fica no alcatrão de sal. Quando dá pelos próprios passos já não sente

o cheiro a maresia. Deve ter-se desviado da água algum tempo antes, ao querer fugir de um cacho de gente que gesticulava

ÍERESA SALEMA

BLNAMONTE

alto no meio de música metálica. Sempre odiara gentelB mais; sempre tratara, ao segurar a câmara, de isolJM indivíduos no meio de multidões, de construir retratos

com traços aceitáveis ao sentido de quem a lesse ou ouvissjB

Segue por ifma rua larga, de lojas com iluminac" nocturna por baixo de mais varandas. Olha para cimalB reconhece, entre manchas verdes e o esvoaçar de toldos,""

terraço de Canosso. Ordio pára com ela, orelha em pd Nuria sente um enorme impulso de tocar à porta e subi contar-lhe da teia em que se via enredada, perguntar-iwl

o que achava, de falar horas com ele, como no tempo em quB Petra era viva e se lhe encostava ao ombro largo enquant" corria a cerveja debaixo de uma latada de Verão,

nudl quintal de família. ^Ê

Ordio põe-lhe o focinho húmido na mão, o que a sow bressalta. "Se aceitar de novo partir para longe", pensá| "onde you deixar o animal, já que Daniel não parecJI

interessar-se muito por ele?" Volta a olhar para o terraçffl quando ouve vozes. Sente-se capaz, sim, senhor, de subi" e entrar em conversas cruzadas, de chamar a

si todos om ouvidos ao contar a sua história num torn irónico, o quffl além do mais daria uma razão para o ar cansado das roupa" que traz vestidas. Talvez seja disso

mesmo que está M precisar, uma rede de gente conhecida e desconhecida, uifll número controlável de indiferenças e hostilidades, a surfl presa de reencontrar alguém

que não vê há muito tempoll o dosear de comentários e entreditos, bebidas e comisell rações, recordações de férias recentes, viagens, o diluir dei uma ou outra ironia

grossa nos canais de música, nasa espirais de fumo, na rua vista de cima. l

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Ouve risos misturados, reconhece a voz e a silhueta dei Canosso muito perto desses risos, demasiado perto parai lhe tirar qualquer desejo de se aproximar da cena.

Senta-ffl -se no passeio, abraçada ao pescoço do cão, sente o conforto! do pêlo contra o cacimbo da noite, subir para onde, abando-i nar o quê, you'll survive, segreda

para o animal com ter-1 nura feroz. I

Uma voz inconfundível dirige agora as outras, que sei acercam dos ouvidos no terraço. Mas não tinha LeóniaJ emigrado? Encostada ao animal, olha para as pessoas quel

se debruçam e apontam da balustrada para um sítio que Nuria não vê do sítio onde está. O instinto jornalístico leva-a, com energia de que não suspeitara momentos

antes, a tocar à campainha depois de ter recomendado a Ordio que se mantivesse quieto e a esperasse na esquina.

É a voz de Leónia que lhe abre a porta, numa figura de cabelo curto ruivo, top de lantejoulas sem alças e jeans, l beg your pardon? Nuria recua, como podia ter-se

enganado?, e já Canosso abraça por detrás os ombros sardentos da ruiva, com um sorriso empastado, Que é feito de ti, por que nunca mais apareceste? Entra, toma

qualquer coisa, tenho aqui uns amigos que vão tocar um trio de cordas, composto por eles.

Nuria vai sentar-se no chão, entre os murmúrios que principiam a fazer-se silêncio, comprimentos cabeceados para desconhecidos. Onde está o círculo de Canosso e

de Petra, com quem tantas vezes discutiu até altas horas o problema dos refugiados, da despenalização da droga, trocou ideologias e cinismos, disputas sobre que

música ouvir, tensões de parelhas em quebra e restos de frango e fruta comidos a dedo na madrugada? Estes parecem-lhe muito mais velhos e muito mais novos, de curiosidades

e paixões prisioneiras do cuidado que põem na composição das próprias figuras. Por que não cheiram, nem sequer a suor ou a fumo? Ou é só ela que se admira em silêncio?

Enquanto o violoncelo dá um acorde muito suave, alguém lhe passa um papel e ela lê palavras numa língua que desconhece. Guarda o bilhete sem saber o que fazer, enquanto

o violino varia em si bemol maior e o contrabaixo bate pulsações. Canosso vem sentar-se ao lado dela e pede-lhe o papel com um gesto mudo para o passar à ruiva com

a voz de Leónia. Nuria encosta a cabeça à mesinha que parece um altar de fotografias, com Petra em pose de atleta e a câmara ao ombro e deixase dormir.

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Quando acorda está na rua de novo, sem saber como lá foi parar. Continua a andar, por ruas já sem nome e sem lojas, com árvores de grande copa e muito semelhantes

aos plátanos do caminho para Zoon.

84

TERESA SALEMA

BENAMONTE

A antiga avenida de Soledo parece recuperada, limpa dim pessoas e papéis àquela hora morta. Ordio desapareceu" ISluria estende a mão, assobia e ele não vem. As perna"

andam por ela, com uma leveza que a surpreende, quasll gravitação. Não muito longe, vê um carro a parar junto m fachada de ferros da estação. m

O pé toca num volume morno, numa zona fora dal iluminação do tempo de Soledo. Debruçase e sente cheiroB conhecidos, ao perfume que sempre a enjoou, às mão" roídas

de tabaco, tudo agora enrolado na lama, na estopa dal uma túnica. O todo respira com ruído por baixo dos cabeloll curtos cor de palha, as varizes das pernas parecem

chagas! abertas donde correm fios de líquido grosso. A cara deixo de ter expressão, reduzida ao traço original de olhos e boca fechados, nariz direito. Perplexa,

Nuria levanta uma ponta da túnica e vê coágulos a crescerem como se tivessem vidáj animal para se reproduzirem. Pensa que ouve gemer, mail não é o corpo caído; dois

animais peludos, enormes @| escuros perseguem-se, em lamentos de raiva e cio, através* sam a rua deserta e fogem ao vê-la enquanto aparece maiáj lua entre as nuvens.

E também ela desata a correr no qual supõe ainda ser a direcção de Zoon, para lançar o alertai

Segue pela rua que se alarga ao encontro do velhol portão, sempre entreaberto. Ouvem-se músicas e genteal dentro da luz embaciada das janelas e o cimo da portai

mostra um letreiro, Soul Club. Abrem-se de repente ai luz e o som com a porta e sai um par de risos abraçados qual se deitam no relvado do canteiro mais próximo,

na mar4 gem da bebida, pedaços de frases, mãos, bocas corpo acima,! O homem assemelha-se a Frederico e a mulher muitol junta a ele não é Saptra, mas loira, miúda

e magra, dei óculos como se fosse a gémea feminina de Vito, notai Nuria. Lembra-se que veio pedir socorro e aproxima-se dói par que espezinha flores e se enche

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de terra. |

Nurita, bichana diz Frederico ao soerguer-se ,1 que estás para aí a dizer? Sora está lá em cima ai conversar com Leónia acerca de edição do livro de Soledo. j

Deve ser outra pessoa caída na rua mas entra, vai telefonar, l

S6

Acorda com a camisa molhada.

Estende a mão e sente a língua áspera de Ordio, o bafo do instinto agradecido. Olha em volta e reconhece a sala nua de Jorge. Deve ter regressado a casa por um resto

de caminho sonâmbulo e sonhado com o resto do percurso, com Canosso, com Frederico. Porque foi sonhar também com aquela figura que a fez afastar-se de Zoon para

proteger torn, que ela ameaçara denunciar? "Não", pensa Nuria, "não é suficiente sonhá-la assim, como um organismo em putrefacção." Imobilizase no desejo de vê-la

julgada, despida, chicoteada em público, renegada pelas filhas; e dá por si a gostar demasiado desse desejo.

Levanta-se e começa a dobrar as mantas, chocada com a própria vulnerabilidade, que até então não conhecia. Recorda agora como adormeceu nas ruas e foi o pescoço

de Ordio que a guiou de volta para a cama. "Tudo efeito deste sedentarismo forçado", pensa agora. "Ninguém, talvez só a imaginação, me obriga a estar presa a este

ou a outro sítio, a vigiar os passos que dou. Tenho de fazer qualquer coisa contra esta sensação de peso, de teia."

Abre a porta ao jardim e Ordio sai aos pulos. Senta-se no banco de pedra do terraço, já quente pelo sol, que a reconforta um pouco mas que também lhe desdobra memórias.

Naquela tarde em Zoon, por exemplo. Quando pediu uma chamada internacional e, enquanto esperava a ligação, viu Sora no canto da porta, fumando na boquilha de madrepérola

que Leónia dizia ter perdido dias antes. Olharam-se por segundos, entre as luzes indirectas e as paredes com cartazes de cinema a preto e branco até ao tecto. O

fumo fazia bloco com o aroma da outra, mistura de desodorizante e suor na roupa de fibra, essas essências de múmia e fruta podre como chamava tantas vezes ao perfume,

diante de terceiros, para humilhar a outra que além do mais gaguejava. Nesse momento, em vez de retomar o duelo de venenos verbais do costume, Sora parecia absorta,

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atravessava o espaço com as pupilas fixas num ponto indistinto para além dela, Nuria, com uma expressão parada em beatitude quase idiota, enquanto cantarolava baixinho

uma moda de infância e os sapatos de

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TERESA CALEMA

e

camurça se sujavam por distracção numa poça de café que Salvador entornara momentos antes. j

Tudo o que se seguiu foi muito rápido, o cruzamento! nesse estreito lugar de passagem entre o telefone e a casai de banho, Manuel e Frederico vindos não se sabia

dondeJ Sora recaindo nos sapatos sujos de café e Nuria foi sentar-] -se junto de Leónia para fazer-lhe perguntas acerca dog! documentos mais secretos de Soledo.

Pelas conversas com; a herdeira do lugar, já havia percebido que ela confiara os papéis mais importantes a outros investigadores, a quem Sora tinha também de prestar

contas. A sua estratégia dera resultado.

Ao tomar o pequeno-almoço no café e com os olhos na lentidão do moço, Nuria lembra os gestos ágeis de Salvador, as frases guturais e macias, a paciência de fundo

para escutar tudo e aturar todos, para se esquecer das partes1 pisadas do corpo desde aquele estúpido acidente. ( Não | digas nada que ninguém sabe, nem sequer a

minha madri- j nhã, fizera-a ele prometer num fim-de-semana em que a 1 convidara mais a torn, em casa da avó de Homero. A l culpa não é dos refugiados mas de alguém

que os desgo- j verna; o pior é que sei quem é.) ^

Decididamente, não pode ficar muito mais tempo '\ naquela casa. Senta-se no chão da sala com as folhas ! deixadas por Frederico; procura um fio de lógica, uma linha

que possa seguir por mais pálida que seja. Passa revista a j todos os papéis, são sobretudo fragmentos de tamanho í irregular e escritos com canetas diferentes,

sempre com ; caligrafia segura. Por momentos, tem a sensação de que Frederico se refugiava ali como último reduto privado, por viver numa casa trespassada e aberta

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a todas as horas por sapatos de ténis, experiências em audio e vídeo, vozes agudas. Entende também como a relação com Saptra estava condenada a uma falta de privacidade

que lhe dava à partida o destino incerto; era ali que se encontravam e dormiam, pois ela partilhava com uma colega um minúsculo apartamento. Ao dar-se conta da asfixia

e exiguidade das superfícies onde Frederico se movera, Nuria sente o privilégio do momento onde se senta, nas tábuas a aquecer

88

BENAMONTE

ao sol, entre os desenhos gretados das paredes e os móveis cobertos, junto ao pêlo de Ordio.

Liga o aparelho de vídeo e vê naquelas imagens a medida justa dos territórios disputados à medida de cada corpo, de cada respiração, das lutas e razões várias. Vê

uma Cláudia de olhos de corça a ser interpelada e a abanar a cabeça, que não uma experiência dessas é totalmente absurda e vai de certeza fracassar. A música sobe,

três rapazes ensaiam ao fundo uma combinação de sintetizadores e o olhar da câmara volta à mesa onde as mãos e as mentes se aplicam no fumo, E ópio meus senhores,

diz a voz irónica de Frederico. Tive durante anos esta porção guardada, à memória de um grande amigo iraniano que conheci em tempos em Paris e que morreu no exílio,

de um estúpido desastre de automóvel. Iniciou-me sem êxito, ele que sempre foi um fumador exímio. O que vamos filmar é uma cena única, vamos gastar um tempo indefinido

a consumir a última reserva que possuo e a recolher as vossas impressões.

Irritada, Nuria desliga: mesmo quando pretendia montar uma performance de risco calculado, Frederico permanecia um homem de palavras. Busca nos papéis qualquer alusão

àquela experiência. Não tem dificuldade em encontrá-la, os fragmentos possuem todos um título. Começa a ler Visões quando surge Ordio, com as patas na vidraça, seguido

de perto pelo dono. Nuria sai para o terraço e admira-se de ver Daniel barbeado de fresco, vestido de linhos que lhe parecem de corte italiano. Diz-lhe que vem buscar

o cão porque parte no dia seguinte para uma quinta no interior, vai começar nova vida com um grupo de amigos. Nuria nada tem para responder e espera que ele se afaste

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com o bicho. Ele nota-lhe a tristeza na mudez e senta-se no banco de pedra, fazendo-lhe sinal para vir para o seu lado. Por que não vai lá visitar-me e fazer uma

reportagem pergunta num discurso fluido, quase perfeito. Antes que ela se recomponha da surpresa e lhe faça as perguntas de desconfiança que ele parecia esperar

de início, Daniel recorda os tempos em que ela aparecia em fotografias de reportagem com rabo de cavalo, os jeans apertados e o blusão de cabedal (que partilhava

com torn).

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1LRÍ.SA SALEMA

Quem é você? Quem é você?, dizem quase em l simultâneo. Satisfeita por encontrar alguém mais efabula-1 dor do que ela, Nuria quase esquece o desgosto de perder

o amigo e desafia Dafúel a construir as histórias que queira, j Há quanto tempo está no país. Que língua aprendeu " realmente em miúdo. l

Daniel encosta-lhe um dedo aos lábios e promete contar l tudo na altura devida. Segue-a para a cozinha, onde Nuria l espreme sumo de laranjas e ele assegura que

vai ficar fora l pelo menos um mês. Vi-a passar muitas vezes no dois- l -cavalos para aquela casa com jardins muito bonitos, em 'l Benamonte. Nessa altura fazia

também de intérprete l junto de alguns grupos de refugiados que insistiam em I manter ali as tendas porque sabiam que a senhora da casa i os protegia. i

Leónia de novo. A memória de Zoon que ela não sabe se i quer enterrar ou resgatar. Mas Daniel conta por iniciativa J própria, sem querer saber das perguntas dela,

sem preocu- l pação de disfarçar o sotaque mínimo. Fala do tempo em que l gozava do privilégio das línguas para se tornar indispen- l sável junto de serviços de

estrangeiros e de organizações, l

Sabia que há escolas especializadas em eliminar o l sotaque? Acredita se lhe disser que os meus pais eram 'J apátridas, que já morreram ambos, não interessa como?

I Vejo pela sua cara que não acredita, não tem importância, l

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Nuria deixa que ele a distraia enquanto ali está, que l componha a imagem que quiser, desde que lhe conte | histórias que lhe embalem o presente e a transportem

para l os seus tempos nómadas, mas ele pergunta-lhe Que foi l feito do seu automóvel? l

Também ela pode inventar um acidente, de preferência v| com causas solitárias, como uma perda total por ter ador- í mecido ao volante, no regresso de uma das

muitas reporta- l gens que se estenderam sem horários nem limites, nem j mesmo o da fadiga mais baça. Criar um final demasiado { realista, uma cena com a saída

intacta de um monte de ; ferro torcido. Carro mandado para a sucata. Fim do objecto, i Mas tem a sensação de que o outro sabe a quem ela o cedeu e está apenas

à espera de ver isso confirmado com uma mentira óbvia.

90

BENAMONTB.

Emprestei-o a um amigo que precisava dele, responde a Daniel, enfrentando-lhe o olhar. Que quinta é essa para onde vai? Não estou a vê-lo na figura de agricultor

ou de monitor de grupos de reabilitação social.

É a vez de Daniel redobrar a jogada irónica com a mesma naturalidade. Nuria sente-o vacilar mas não mostra que o nota. O outro responde com necessidades de repouso

por agora, com mudança de ares, com projectos vagos para rentabilizar o lugar, Venha visitar-me.

Num impulso irracional, Nuria só quer ter a certeza de que se não se trata da quinta de Jorge, daquele reduto que ela quer intacto na mão da família, com a severidade,

o gradeamento de heras, a capela de linhos, as madeiras pesadas na memória, os pequenos sítios onde nunca ousou demorar-se e que continuam habitados por pessoas

com quem ela não consente misturar Daniel. O mundo é promíscuo, os cruzamentos sucedem-se, mas há espaços que têm de ser preservados para fazerem ainda um mínimo

de sentido, pensa ela. Quanto ao resto, que ele disponha da liberdade que é dada aos pequenos interceptores de qualquer produto mais ou menos proibido. Deseja que

ele saia já a seguir para deixar que ela volte aos papéis de Frederico, mesmo sabendo que isso significa despedir-se de Ordio, ficar reduzida ao seu próprio circuito

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aberto e cego, sem os bafos no pescoço nem olhares animais que de algum modo compreendem.

Pergunta a Daniel quem vai substituí-lo. com uma voz distante e indiferente, ouve-o dizer que não se sabe ainda; alguém aparecerá decerto, mandado a tempo pela firma

de segurança. Saturada daquele discurso, Nuria passa à defesa final, diz-se indisposta e pergunta ao outro se quer mesmo levar o cão que já se lhe afeiçoou, se não

acha que encontrará outros cães no sítio para onde vai, talvez um cachorrinho para criar de pequenino. Nota o seu esforço para equilibrar-se de novo na articulação

dos sons, na dobra do corpo que volta a sentar-se e oferece a Daniel outro sumo. Ele responde que sim, pode ser, que dirá qualquer coisa mais tarde. Mais uma trégua.

Quando ele sai, Nuria enrola-se nas mantas com os papéis de Frederico, Ordio aos pés.

91

TERESA SALEMA

l

Visões. Saptra tinha-me ensinado a acreditar no que \ via, apenas com uma condição: assumir à partida que todo < o cenário é verdadeiro mas também incompleto, que

é ] necessário dar uma volta e espreitar-lhe pelas traseiras. \ Um pouco como uma pessoa próxima do actor, a quem este " convida a assistir à peça do lado de dentro

do palco e que vai espiolhando todos os ângulos possíveis, enquanto o amigo ', segura a atenção do público e o mesmo público respira e palpita com as cenas às quais

resolve conceder uma verdade de duas ou três horas.

Saptra adorava tanto o teatro como os bastidores e í irritava-se a valer quando os enganos vinham mal disfarçados e as ficções deixavam de parecer credíveis, de

modo a \ tirar-nos toda a curiosidade de espreitar. Mas Saptra já não está aqui para me aconselhar quanto aos problemas de Cláudia e de Rito, ao procedimento de

Josué. Não liguei a tempo aos avisos que ela ainda chegou a fazer-me, ao ver como essa aprendiza de modista me rondava, como vinha mais cedo, como ficava até mais

tarde. Tomei por ciúme o que era intuição fina do que se estava a passar, quando os J miúdos circulavam longe da mesa do convívio e apenas | imaginávamos o

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que se passava fora daquela sala, onde 'j comunicavam com abertura total, onde as agressões di- * rectas e os palavrões costumavam acabar em risos. ]

Já cá não estava Saptra para dar uma opinião sobre o j caso. Fausto fechava-se na satisfação de quem está habi- \ tuado a escrever os romances do mundo a partir

do final e ' ri de quem, se esforça por traçar a pulso a narrativa desde i o princípio. De quem descreve as feridas que os outros vão ter e, depois de feitas

as feridas e embora tendo os instru- \ mentos para aparar o sangue, estende a mão que ajuda, fazendo-a acompanhar de uma insuportável lição de cinismo.

Havia já uns tempos que Cláudia me olhava como se estivesse à borda do passeio, segura por um pé e ameaçada por qualquer chantagem baixa. Não quis acreditar até

vê-la sentada uma manhã aos pés da minha cama, junto a um tabuleiro de pequeno-almoço. Quando lhe perguntei se não chegava atrasada ao atelier, ficou a olhar-me

por segundos intermináveis, a desafiar a minha imobilidade, a

BENAMONTE

tentar penetrar, doce, na rigidez da minha defesa instintiva. Depois confessou-me precisar de dinheiro. Tudo na mesma voz com que costumava pedir a Rito para se

irem embora, quando as nossas conversas acabavam tarde.

Ela sabia como atrair-me, precisamente por submissão de feminilidade insistente e muda, anacrónica, quase gelatinosa, pela nostalgia de musgos, por tudo aquilo que

era deixado em branco e fora da acção magnética de Saptra. Estava ali de olhos líquidos, pronta à mais natural das aproximações na casa vazia de gentes e desarrumada

de cinzas, agora que me sabia vulnerável pela partida daquela a quem sempre chamara de senhora doutora, com um respeito sonso que irritava a perspicácia de Saptra.

Olhei-a nos olhos, segurei-lhe as mãos. Queria verificar até que ponto ela já trazia droga no corpo. Medi-lhe a pulso os níveis químicos, sosseguei por aí e mandei-a

embora com o sobrolho mais autoritário que arranjei.

Não tinha tempo a perder. Nessa tarde, resolvi falar ao grupo das experiências que tive com Sadeh no intervalo de um colóquio fora de Paris, entre casas de madeira,

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sardinheiras, tabuletas e montanhas. Sadeh tinha-me contado das longas sessões defumo em que o pai, tios e primogénitos não deixavam entrar as mulheres, e como estas

se compraziam a aceitar um jogo que só estabilizava autoridades próprias, feitas de entreditos, frases lapidares, olhares de aparente submissão em que pairasse qualquer

maldição

velada.

Nos anos europeus, Sadeh comprazia-se em descrever com minúcia a sua comunidade natal, com um torn de voz que não pretendia abusar do espírito crítico nem abafar

a saudade, apenas respirar no ritmo que as coisas tinham. Contava, por exemplo, como a mãe sempre quisera usar o véu, mesmo sob o regime de Reza Pahlevi que lhe

era hostil. Dava-lhe dizia ou sugeria uma independência no trajar, no movimento e na expressão do rosto, uma liberdade que só aparentemente contradizia a severidade

e o peso do tecido e que me fazia lembrar, ao ouvir o relato na voz suave e articulada do filho, as túnicas de praia e os óculos escuros das ocidentais.

93

TCRhSA SALEMA

Aprendi muita coisa com Sadeh, a começar pelos contorjm nos do conceito de liberdade, que se concretiza como urnalÈ rede de malhas tão abertas como cerradas. Opositor

doXáJm contou-me que em Paris nunca participava em manifesta^ím coes para não se"privar do direito de visitar a sua terra/M sempre que os dinheiros o permitissem.

Isto porque bemjm conhecia as tramas da Polícia política, dos agentes infiltra^M dos entre os seus colegas de estudo. Porém, não renunciavam a acolher refugiados,

mesmo sabendo que podia ser subme-M tido a interrogatórios logo na fronteira. Queria sobretudo'jm tactear o terreno de cada situação, do correr da vida à sua "m

porta, da osmose de sangues entre a existência corpórea dos IS que ele conhecia e os factos que os historiadores registavam, l

Sadeh era um homem feminino, feito assim pela bran- .j dura firme de um pai incontestado e pela energia da mãe, \ que cumpria as regras de submissão para poder amassar

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à J vontade a matéria bruta onde o quotidiano a fechava. | E assim crescera Sadeh, rodeado pelos clãs de homens e l mulheres como círculos que permaneciam a uma

boa e \ magnética distância uns dos outros, entre rios e fogos, os l cordeiros, a prata e o barro. l

No meio da análise mais precisa, como por exemplo as | considerações que fazia sobre a liberdade, era capaz de J deixar cair uma palavra que fazia ver nele a eterna

criança f pronta a escutar um conto de fadas. A liberdade, pois. O seu í uso como uma matéria escaldante e perigosa, que só não \ traz consequências nefastas se

for usada parcimoniosa- ' mente, dizia ainda Sadeh. Abanava a cabeça diante daquelês que comparava a insectos estonteados pela luz de ideias abstractas e que rejeitavam

os amores vivos que apareciam, pedindo em voz discreta para serem cultivados.

Sadeh não compreendia o horror deles à mera ideia de que teriam de prestar contas a alguém. Tontos, comentava. Recusam os compromissos mais humanos para em qualquer

volta inevitável (concluía) acabarem submetidos a toda a espécie de drogas amortecedoras da vontade, só por não terem sabido usar a mesma vontade como o deveriam

ter feito: como um peregrino que inspecciona um campo armadilhado, como um estrangeiro que pisa pel a primeira vez uma terra desconhecida, se ensaia na sua língua

e tem

94

BENAMONTL

de tactear os espaços vazios entre as coisas para só então resolver o que vai fazer. Limitativo, tudo, sobretudo para

um ocidental?

A esse ponto da discussão, Sadeh sorria e calava-se, ao perceber que não podia privar ninguém, muito menos o interlocutor que tivesse na frente, do vírus da experiência,

do voo, da queda e da vertigem.

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Foi pensando em Sadeh que organizei a sessão de fumo, com os últimos restos de ópio que ele me deu na última vez que estivemos juntos, fazendo planos entre a erva

e o chá. Nessa altura soube que ele pensava partir em breve, viver o que lhe faltava não sabia o quê, logo se veria numa propriedade da irmã, no sopé de montanhas.

Hoje, lamento não lhe ter pedido que me escrevesse. Teria gostado de saber o que foi feito dele, se conseguiu remergulhar naquelas origens brutas depois de todos

os anos europeus. Não sei porquê, sinto-me inclinada a dar-lhe o benefício da dúvida, quanto mais não seja pela sua lucidez: se regressasse à Europa, iria apenas

integrar o exército difuso de académicos desempregados.

Ao pôr de lado a folha interrompida, Nuria relembra a cena da cassete. De uma escrita ao correr das pulsações, Frederico passara às imagens pretensamente feitas

para convencer. Mas quem e de quê? Cláudia surgia num plano recuado, olhos postos na cena. Fausto provocava o padrinho tirando uma fumaça prolongada com a mesma

expressão austera com que se dedicava às caligrafias. E depois: teria sido na verdade uma intenção pedagógica que levara Frederico a toda aquela encenação? Não era

solenidade que se via nas imagens, mas muita ironia seca, desajeitada mesmo, algum riso nervoso. Tudo ali parecia um ensaio incipiente, de uma representação que

já não cabia dentro daquela sala, em redor da mesa de família. A um dado ponto, via-se mesmo entrar a Sr.'J Laurinda para renovar o bale de chá e trazer bolinhos

caseiros, e uma mão qualquer aproximava da câmara um desses objectos amarelos, polvilhados de açúcar, trincado numa ponta.

TERESA SALEMA

As imagens seguintes já não mostram a casa de FreçfH rico mas urn sítio que parece escolhido de propósito por $]H pardo, esgarçado de lixo indistinto, farrapos e

tijolos. NuílM estremece diante do aparelho de vídeo e pára a imagejlH enquanto vai feehar a porta envidraçada e chama pifl Ordio. que entretanto saiu para o jardim.

O bicho não volflB e ela conforma-se em mergulhar sozinha no ecrã, na ceiÉM preparada por Frederico para mostrar ao seu círculo aquilH que ele devia ter chamado

qualquer coisa como os últimfJB efeitos das drogas mais duras. |B

Para sua surpresa, a imagem só se detém por aquellB chão de garagem durante escassos segundos; sugerem-saB as palavras, as trocas, as seringas, e os olhares correnlB

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apenas por uma mesa encostada à parede nua, por debaixjH de uma janela de grades ao alto; a mesa mantémse numsi" serenidade turquesa e concentra em si a atenção

para oil ruídos do metal, do cimento, do vidro, de um suspird| impaciente. Nuria desliga o aparelho e folheia de novo osjl papéis, com a sensação de que era outro

o problema quell preocupara realmente Frederico. ""

Já não podia fazer mais nada do que embalá-lo, com oim peito e a voz baixa, como se me transfigurasse para m&M tornar naquilo que nunca tive a vocação de ser, uma

espécie jl de Pietá paternal. Por poucos minutos ou ainda algumasm semanas. Estava condenado a ouvi-lo gemer, tudo ainda e m sempre para fazer um favor à mãe que

me garantia a'I limpeza da casa, para ensinar frieza e pragmatismo aos sl outros, sobretudo a uma Cláudia atemorizada. Segurava-o i com ternura genuína mas também

calculada. Tinha a J certeza de que Rito nunca teria deixado a mãe aproxi- f -mar-se de mim daquela maneira. Sempre a rejeitara, com J o instinto natural de quem

repele gorduras. Só quisera dela os l trocos para comprar sensações prometidas, ludibriadas, in- 5 dispensáveis agora. Não tenho a menor dúvida de que mal suportava

a mãe, o buço a pingar o vapor das panelas para o avental, os olhos pisados por perguntas que era melhor não fazer. Pegava o dinheiro, saía e voltava para comer

a sopa, | dormir dois dias e ver-se despedido de mais um emprego, j

Mordidos pela terra era assim que Saptra chamava a | quem se tornava incapaz de viver sem aquilo que ela e eu '

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BENAMONTE

apenas supúnhamos ser uma certeza de providência orgiástica. Nenhum de nós tinha tido alguma vez desejo de experimentar. O seu desprezo por tudo o que se assemelhasse

a debilidades da vontade era tão grande que nem me atrevi a contar-lhe das minhas tardes com Sadeh, que agora me parecem anódinas, das horas de infusão, fumo e chá,

melancolias tácitas entre panos pesados e livros que já não nos ajudavam a mudar o que quer que fosse para além de desilusões em caleidoscópio, e o roxo dos veludos

orientais lembrava-me os intermináveis minutos de Quaresma, em que o filho único que eu era tinha de ser mantido quieto na igreja, que ainda funcionava em latim.

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Um som de campainha interrompe a leitura; Nuria lembra agora que Daniel sempre entrou por ali dentro, com chave própria ou conhecimento dos códigos, e resolve experimentar

o circuito electrónico. Pelo monitor vê e ouve uma figura alta e queimada, cabelo rente, dizer que chega da parte de Jorge. Sobressalta-se: quantos dias passaram

desde o telefonema do dono da casa? A inquietação cresce-Ihe desordenada, nesse estado difuso de independência em relação a agendas e relógios, Sim, you abrir.

Sai ao jardim, dobra a esquina da casa até chegar ao portão. Ordio vem ter com ela e ela volta a sentir o conforto do pêlo áspero, o bafo a palpitar na mão. De súbito,

lembra que tem de justificar a presença do cão, embaraça-se e perde a desenvoltura ao carregar no botão, Trouxe uma amiga por um ou dois dias, não se importa?

Ina, Noel, entrem pois. Subentendidas as curiosidades e intromissões, resta acomodarem-se nos colchões de palha e pó, nos nós do chão. Nuria tem de refrear um desejo

irresistível de os atravessar com perguntas, antes de devolver à circulação do mundo dois sacos indiferentes com pernas, olhos e roupa pendurada no tronco. Assusta-se

com os próprios juízos, sente a injustiça das catalogações, amansa a voz e domina uma ligeira aversão pelo perfume da mulher que lhe recorda o de Sora. "com os diabos",

pensa logo a seguir, "não têm ar de necessitados ou viciados, não acharão outros amigos onde ficar? Dinheiro para

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C ON TEMPORÂNEA 1 1

TERESA SALEMA

uma pensão?" Entretanto, vão subindo ao andar super" onde os outros dois escolhem o quarto mais virado fl poente, rodam a maçaneta da porta para o varandiJB aceitam

a aragem que entra e desenrolam uma sober manta vermelha velha, acolchoada com arabescos. A rapjM riga abraça Nuria, fá-ía recolher-se num sorriso trémiJB e arrependido

e pergunta se tem uma chave sobressaleniB para saírem e voltarem sem incomodar. Não tem. PaciêncijH

Sozinha de novo, senta-se com a pasta de Frederico. M! vazio apenas preenchido por suspiros de Ordio em sonW enroscado, suspendese no papel e na tinta azul, alimentai

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da respiração. Folheia as palavras que encabeçam os grfl pôs ligados por agrafes, como se o autor resolvesse transfoM mar em textos definitivos o que tinham sido

notas djjl momento, saudades perplexas, interrogações que podiaífl ser pose, artimanhas para encobrir preparativos para sail da casa e do continente, apenas com

o cuidado de não deixJB à deriva aquele testemunho. Teria Frederico tido uJ| cuidado semelhante com aqueles que vinham ter com e" todas as tardes? jm

Visionários, lê Nuria. com uma inquietação que nuncm tive com Saptra nem com mais ninguém, espero por Josum enquanto os outros chegam com as suas conversas, os seum

fumos, os seus ruídos, ou faltam sem justificação. Por elem cheguei à tentação de fazer uma lista de presenças, como om professores que precisam de assinaturas para

legitimar cm sua falta de engenho em tornar as sessões tão interessantem que ninguém as queira perder. l

Sabíamos de mais, ele e eu. Eu, das consequências queA poderiam ter os sentidos viciados do muito que se diz e qu&í se faz. Ele, dos actos que estão apenas a um

passo de certas} conclusões. Porque o que aconteceu com Josué tem a ver com \ os nossos debates, com as reminiscências de carvão quei- J rnado que ficam de ideias

trocadas sem qualquer crítica ou j censura mas que podem acabar, e nele acabaram, em \ teimosias obsessivas, à beira de um mutismo que prenuncia j quase sempre o

abismo dos actos sem reverso. '.

O aparo enrola-se em palavras. j

O vídeo há muito que deixou de servir-me para dar forma aos silêncios mais penosos. ,

BENAMONTh

De nada serve levantar-me e fumar três cigarros junto à vidraça, para depois apagar os cigarros a meio, na terra dos

vasos.

Não poderá tudo ser reduzido a uma história ingenuamente contada?

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Josué tinha um grupo com quem passava muito tempo livre. Nunca me interessou saber o que faziam, até um dia em que ele propôs, nas nossas tardes, que se falasse

dos motivos que poderiam estar por detrás do caso daquele rapazinho que apareceu com a pele da cintura arrancada.

Pôs o recorte da notícia em cima da mesa; tinham já passado cerca de duas semanas sobre o acontecimento a que ninguém tinha dado muita importância. Estamos num tempo

que não me atrevo a prever quanto durará, dominado pelas lutas de grupos, os refugiados pelo meio, tudo baralhado e voltado a servir pelos entusiasmos épicos que

se apossam das mãos e dos olhos dos media para relatar as mais incríveis histórias sobre peregrinações a pé, desde guerras no extremo leste até ao oceano.

Aposto que no ano que vem vamos todos fazer por esquecer; aposto que já ninguém vai querer falar de um capítulo que todos parecemos tolerar, eu também, com palavras

humanistas para fora mas no nosso íntimo com a postura passiva de quem engole um remédio amargo. São tempos demasiado cómodos para as mentes, que fazem que essas

poucas dezenas de pessoas transportem toda a carga de difamações, tudo quanto é crime, assalto ou simplesmente apertão nos transportes e precaridade de emprego.

E Leónia aproveitando-se de todas estas rábulas...

Falamos como se não tivéssemos acesso a relatos sobre séculos de história, sobre grandes migrações a valer. Entretanto, vão enferrujando de vez os restos de tolerância

activa, que nenhum de nós se atreve a praticar - e porquê? Qual de nós tenta aprender a língua deles ou servir-se de um dicionário para o essencial, já que a maioria

nem sequer balbucia o inglês? Quem se ofereceu para adoptar uma criança, alojar uma grávida? O que escrevo é puro e consciente cinismo, já que fui o primeiro a minimizar

o problema nas nossas tardes, a delegá-lo para quem desejasse exercitar um coração filantrópico. E tudo porque sei

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TERESA SALEMA

demasiado bem o que está em jogo, ou seja, quem manipulam aqueles grupos de modo a fazer que eles se tornassermÊ intocáveis. JÈ

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Foi também o que me foi afastando de Leónia, emboram não conhecesse afundo as suas implicações para além díjm interesse no jogo da preservação da propriedade. Sei

matíjÊ do que Manuel, sempre a milhas de quaisquer intrigas "B apenas preocupado em gerir o que lhe resta de tempo. Anteijm da morte de Alfredo, enjoava-me aquele

triângulo indecisojjm a fidelidade forçada de Leónia ao marido porque o homemim de quem ela sempre gostou é inatingível. (Por que estou etjim aqui com eufemismos

e não escrevo: impotente?) M

Nuria tem um sobressalto lê agora a confirmação dojJB que sempre suspeitou, ali escrita com letra elegante, ligei*fl ramente inclinada, mais apropriada para enviar

felicita^" coes de aniversário do que para registar focos sentimen-íja tais, confissões embaraçosas. Antes de continuar a leitura1" voltam a tocar e o monitor mostra

uma cabeleira curta &<m encaracolada, farta e grisalha, um sorriso rasgado, tecidos m de sombra verde, Sou Evara, cunhada de Jorge. m

Também traz um saco, como para um fim-de-semana. f| Num gesto que pretende ser de gentileza para com alguém 'J da família, Nuria desce até ao portão acompanhada

de a Ordio que, ao ver a mulher, se perfila numa posição de | defesa, chegando a rosnar de modo quase imperceptível. J Nuria põe-lhe uma mão firme no pescoço e oferece

ajuda à -] outra, que se apoia numa pequena bengala. Devia ter j avisado que vinha. Mas não you ficar muito tempo, tenho ! onde dormir e quero apenas trocar umas

palavras consigo, l se me prometer que mantém esse bicho longe de mim. J Estranho, Jorge não me falou da existência de um cão, sabe i do meu pavor a esses bichos.

Oferece-me um chá? l

Suspira, sorri, abre-se num perfume de musgo. Nuria | sente-se dividida entre a atracção pela nova figura e a piedade pela inquietação de Ordio, que tenta acalmar

para ' que fique no terraço. A outra pousa o saco junto à porta e ; acompanha-a até à cozinha, onde admira o antigo fogão a ' lenha que já não serve a ninguém,

enquanto Nuria equili- | bra um púcaro grande num bico de camping gaz. J

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BENAMONTE

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Desculpe se não disse logo o motivo que me traz aqui. Vivo na Bélgica, sou investigadora num centro de ciências sociais e trabalho há alguns anos sobre o fenómeno

das migrações. Soube pelo meu cunhado acerca desses grupos que por aqui passaram, e também que você recolheu material inédito e não sabe o que fazer com ele.

Eis a troca pretendida, pensa Nuria. Abriu demasiados segredos a quem lhe deu a chave de uma casa onde pensava esconder-se das consequências dos mesmos segredos.

E agora vêse apanhada num círculo a que dificilmente pode fugir. Deixa escapar um sorriso ao aperceber-se da ironia da situação. Tenho muito prazer em ser-lhe útil,

assegura, enquanto acomoda as folhas de chá preto num passador, mas o material que a deve interessar mais não se encontra aqui.

Enquanto vai deitando água a ferver sobre as folhas, conta à outra acerca do documentário que projectava fazer com Petra, da morte desta, suspendese Sabe com certeza

por Jorge o que aconteceu à propriedade de Soledo, a que chamávamos Zoon, e a algumas das pessoas a ela ligadas?

Evara diz que sim, vagamente. Veja, continua Nuria, principiei por investigar sobre os grupos, mas cedo me apercebi que não era por acaso que se encontravam ali,

que alguns habitavam o pavilhão no jardim da propriedade enquanto outros acampavam ao relento, embora lhes fosse prometido para breve um alojamento melhor. À medida

que ia juntando material e ia trabalhando no guião com a minha amiga, apercebíamonos de que a investigação tinha de remontar aos papéis de Soledo, nomeadamente às

memórias a que se dedicou nos últimos meses da sua vida e que estavam em posse da neta, Leónia. Ora esta jura que tudo se perdeu naquele incêndio em que morreu o

nosso amigo comum, Manuel.

À medida que desenrola os factos e vê a outra presa ao seu discurso, abranda a voz. Evara vai acenando com o queixo e declina polidamente açúcar para o chá, enquanto

Nuria sacode o cabelo e joga o trunfo que considera decisivo, Sabia já muita coisa e tinha de decidir rapidamente o que fazer com as informações. Leónia tinha-me

deixado

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fERESA SALEMA

tirar apontamentos do manuscrito de Soledo, mas sempH

na presença dela. As amizades acabavam no momento e|9

que se tratasse de defender o património familiar... cheglB

vá ao ponto de me revistar à entrada, de se sentar com ujfl

livro ou uma re*rista no cadeirão e mesmo de me fazaB

acompanhá-la à porta da casa de banho, que ficava ijB

outro extremo da casa. Só depois percebi que tudo fazw

parte de uma encenação mais ampla, como aquela festa erm

que se deu o incêndio. É verdade, os planos dela forara|

reduzidos a cinzas pelas lutas entre facções rivais doll

refugiados, que principiaram numa troca de tiros e acabai

ram em fogo posto. O resto talvez saiba por Jorge, qujl

decerto lhe contou também como eu ia ficando com o braçlH

quase paralisado, como perdi a minha aparelhagem fotqjl

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gráfica. Daí que tenha adoptado provisoriamente este cão||

que me foi cedido por uns tempos pela firma de segurançafl

que guarda esta casa. i

O Sol desapareceu de todo por detrás dos muros altos";!

Nuria sente-se mais confiante, como se quisesse insta-"

lar-se no que diz e na atenção da outra às suas palavras, l

O próprio manuscrito de Soledo, objecto de tantas i

invejas e namoros, era um amontoado de cadernos muito l

desiguais. Suspeito seriamente que a neta o mantinha i

secreto por isso mesmo, e enquanto não encontrava quem j

a aconselhasse ia fazendo bluff com um documento que l

dizia ser único, etc., etc. Era um texto estranho, escrito com l

letras diferentes, como se Soledo tivesse várias persona- |

lidades. l

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A outra mostra um arrepio, diz que se gela ali em casa J

e propõe a Nuria vir trabalhar com ela no projecto, que ]

seria possível arranjar-lhe uma bolsa. Enquanto descem, j

Nuria agradece e diz que vai pensar, que deixe um contacto )

para lhe telefonar. >

Só mais uma pergunta, diz Evara quase num murmúrio enquanto se aproximam do gradeamento. Sabe ' alguma coisa acerca do irmão de Soledo?

Qual deles? Era uma família grande, mas dispersa. A maioria dos irmãos era conservadora e não concordava com as megalomanias de Emílio. Que eu saiba, só o mais

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BENAMONTE

novo vivia com ele e o ajudava na empresa. Sofria de uma Doença incurável, pelo que me contou Leónia.

Desculpe, já estou atrasada. Outro dia continuaremos a conversa. Telefone...

Junto ao portão, vêem Ina e Noel estacionarem um carro cheio de gente e tirarem uma grade de cervejas do porta-bagagens. Amigos do seu cunhado, diz Nuria num sorriso

contrafeito, sempre em busca da cumplicidade da outra. Sabe que já só tem a alternativa de ficar, de aceitar as regras propostas pelos que vêm de fora, ou de fugir

uma vez mais para longe.

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Quem é essa tia?, pergunta um dos amigos, cabelos rentes ao crânio e voz dirigida de propósito aos saltos apressados que ressoam cada vez mais longe nas pedras da

descida. Antes cunhada e do dono da casa joga Nuria na defesa, mas já os outros combinam a melhor maneira de utilizar a aparelhagem para a festa daí a bocado.

Deixemme o vídeo, preciso dele para acabar um trabalho urgente. Ora, ora, não vai trabalhar esta noite, pois não? Amanhã a Ina faz dezanove anos e vamos festejar

todos pela noite dentro, daqui a pouco chegam os outros com a comida. Que acham da ideia de pormos mesas cá fora?

Nuria diz que vai à procura de móveis de jardim, que viu há dias numa arrecadação, e desaparece, deixando os outros a carregar bebidas para o terraço. Entreabre

a porta e ouve um miar queixoso na penumbra, entre reflexos de teias de aranha. A gata que viu dias antes, em gravidez avançada, ronda agora um conjunto de novelos

tenros com patas em busca da mãe e olhos fechados. Tenho que tirá-los daqui, pensa, os outros vão aparecer a todo o momento.

Sente a terra molhada de chuva, o nevoeiro a entrar até aos ossos, um cheiro de cinza fria, carnes de carvão, cabedal. "Devem dormir ainda", pensa.

Quieto diz para Ordio, e agarra-o pela coleira para sair à varanda do primeiro andar. Respira as copas das árvores e prepara-se para ir tomar café e buscar comida.

Sempre com a mão em Ordio, passa perto dos corpos em

/(H

TERESA SALEMA !

Noel mentiu-me... foi por Jó que soube que é serop<JH sitivo... JB

Nuria faz-lhe um silêncio convidativo a que conte, o\j|B pelo menos a que continue a falar, mas Ina olha para elaB como se considerasse já ter dito tudo com aquela

frase djn voz quebrada e esperasse agora o conselho de uma mulhelM mais velha. Nuria olha-a com insistência, para lhe fazelB doer e vomitar a fala, contar uma saga

de minúcias cruéisJB vontades débeis, voragens do instante, derivas, pulveriza-JB cão de horas, e Ina a assistir sem participar verdadeira-lí mente. Passa-me a

toalha, you falar com ele.

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Sobe a escada envolvida no roupão chinês, velha relí-|B quia das tias que sempre transportou em todas as mochi"B Ias, por todas as fronteiras, sem saber explicar

razões. Noll quarto, um Noel pálido permanece no chão, com a cabeça m muito perto do molho de gatinhes. Nuria deita-se junto m dele e olham para o ondear das minúsculas

barrigas que dormem, enquanto a mãe espia, pálpebra entreaberta. |i Posso ficar aqui? m

Levanta-lhe a cabeça nas mãos e afirma que ali nin- l guém pode ficar muito tempo, que não depende dela mas I que se quiser mesmo ficar tem de ser ele a contar a

Jorge l o que se passa. A sério, não há condições. Eu própria só l estou à espera que me confirmem uma passagem para me l ir embora. Ouvi dizer que a venda da casa

está para breve, l

Pergunta-lhe se quer falar, o outro responde negativa- l mente e Nuria diz que tem de sair com o cão, se ele a quer | acompanhar. Surpreende-se com a prontidão de

Noel a l levantar-se. Quando descem, vêem Ina a telefonar para <j um táxi. ',

Chama Ordio enquanto os outros dois trocam palavras e avança devagar até à saída. Continua sem despedir-se de ninguém, indiferente a quem a possa seguir. De repente,

lembra-se que Noel tem carro, pede-lhe a chave e prontifica-se a guie r, embarca com ele e o cão e, enquanto segue em direcção aos arredores, vai-lhe contando de

tempos não muito passados, de um reino dentro do reino aonde se peregrinava, de perto e de longe, com a voz embaladora como num conto de fadas. Parece falar de propósito

para o outro não acreditar; de repente, vira-se para ele, numa

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BENAMONTE

paragem brusca que faz saltar Ordio, Quando o reino se incendiou, salvei-me na confusão porque sabia nadar.

Ri ao sentir a perplexidade de Noel, Não, não havia lago nem sequer piscina, apenas uma casa enorme onde discutíamos quase todos os dias o que andava pelo mundo

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e por ali, onde tentávamos saber pelo menos alguns dos segredos ali guardados, o que estava por detrás das loucuras militares do marido da dona da casa, do que contava

esta última acerca do que tinha sido o avô, proprietário e industrial privando com altos círculos ligados ao governo e dando abrigo a membros clandestinos do movimento

operário. Nada disto te diz alguma coisa? Não leste nos jornais que há menos de dois anos um incêndio devorou tudo o que restava do império de Soledo e só aparentemente

por milagre é que poupou o portal e a avenida exterior? Vamos ver o sítio.

Nuria não resiste a parar o carro perto da estação, a pretexto de ir comprar uma revista. Uma rapariguinha jovem, de cara sardenta miúda e membros finos sai do vão

da escadaria ao vê-la, para lhe oferecer o que diz ser um aparelho de escuta telefónica, por bom preço. Nuria ri da oferta e recusa. Quando se aproxima do quiosque

dos jornais, vê um cordão de polícias a cercar o primeiro cais e resolve regressar ao carro, onde Noel a espera ao volante, com Ordio ao lado. Desce, já não fica

longe e o passeio é

agradável.

Parou de chover e o ar embebe-se de folhas de plátano. Um empregado alto e corpulento, com um enorme pano branco atado à volta da barriga, volta a pôr cá fora mesas

e cadeiras de plástico branco, protegidas dos pingos por enormes chapéus. Noel puxa-lhe pela manga do casaco: uns minutos apenas. Ela condescende e vê Ordio dar

voltas enquanto bebem café e ela conta as últimas cenas de que se lembra. Como se viram todos de repente cercados pelo fumo. Como se manteve à superfície dos que

caíam pela habilidade dos braços e pelos exercícios respiratórios, como desmaiou para acordar no hospital.

Levantam-se e retomam a marcha em silêncio. Chegados ao pé do que resta do portão, Nuria aponta as iniciais

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verdes E. S. nos dois batentes e entra com Noel para dentJM

de uma paisagem de agulhas e cardos, eucaliptos e estevlM

selvagens, erva de altura, silvas e ruínas de tamanhâM

diferentes. Sem se preocupar com a hesitação de Noel, qtJB

se encosta ao portão, e com a loucura de Ordio ao encontraM

um terreno solto, passa a moldura do que foi a porta de Zoo"

para ver o salão com restos dos espelhos, dos azulejos d|9

caça, no chão um anel que não reconhece e lhe parece selH

imitação barata e uns aros de óculos que conhece bem d|B

mais. Pisaos com persistência para acabar de distorcer U

metal, de pulverizar o que resta de vidro. Solta uma garH

galhada. fl

Noel parece possesso, rodopia em torno de eixos concênlH

tricôs sem ligar a picos nem a agruras, faz ranger ãJB

matérias minerais e vegetais sob as botas cardadas, QuéfB

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belo cenário para um concerto, Outros já tiveram certaJB

mente a tua ideia. Não tarda que cerquem este recinto parai

recuperar os jardins. Não ouviste falar do projecto? E a"

casa? Só por esta amostra parece ter sido fabulosa"

Dizem que está amaldiçoada, em todo o caso não é con-IB

templada no projecto, que prevê um grande parque, zonall

de diversões, jardim francês, jardim inglês, anfiteatro deli

espectáculos, não me lembro de mais. II

Interrompe-se ao notar que está a recitar em voz alta li

parte dos apontamentos que transcreveu do manuscrito de m

Soledo, misturada com a sua própria fantasia. Pega no m

braço de Noel e conduz o outro em passo lento ao que resta já

do pavilhão. Era uma casinha exemplar, que durante .

muitos anos serviu de laboratório de arquitectura para o l

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projecto do bairro operário, que ainda hoje existe. (Ali ao i

fundo, onde vês aquele homem de calções a lavar o carro.) I

Ao dar um pontapé numa lata de conservas, Noel levan- l

ta com duas unhas um objecto em forma de osso fino com l

uma inicial metálica incrustada. A boquilha de Leónia, l

reconhece Nuria. Não te preocupes, tinha meia dúzia l

delas, todas iguais, mandadas fazer num lugar que só ela i

sabia. Uma delas foi-lhe roubada pela bibliotecária, ou l

talvez lha tivesse oferecido, pois ela exibia-a impune j

mente. Essa de cabelos brancos que apareceu em todos l

os telejornais a gritar de ódio contra os estrangeiros? j

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Essa mesma. Dizem que foi ela quem alarmou tudo e

todos, quem chamou a Polícia naquela noite, creio que por pura raiva, pois uma das filhas tinha-se apaixonado por

um dos refugiados.

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Seguem pelo que resta do traçado verde dos jardins, do lago agora pântano de lama escura, com objectos estranhos suspensos no lodo, plantas de várias cores a sair

da massa viscosa. Equilibra-te bem, recomenda ao outro.

Por um caminho estreito, que Soledo projectara entre dois braços do que fora uma lagoa artificial, aproximam-se de uma mancha rochosa que deixa ver uma gruta atrás

de arbustos. A entrada está cheia de silvas. Era um dos lugares de retiro do velho Soledo. Eu própria não fui além da divisão mais próxima da abertura, mas consta

que tinha galerias de vários andares, com sistemas de canalização, de circulação de ar. Ouvi dizer que o próprio Soledo dinamitou a passagem para os aposentos mais

secretos, não, não sorrias dessa maneira porque não é o que estás a pensar, chegaram a falar de um templo mas são tudo suposições porque não há testemunhos. E como

deves calcular, o velho Soledo seria o último a deixar qualquer pista nesse sentido... Ordio...

Do interior do escuro, ouvem-se guinchos e latidos, sinais de uma luta desigual entre o cão e um animal desconhecido. Nuria e Noel suspendem-se num silêncio que

lhes parece infinito, num rosnar que os desarma, novo silêncio, novo emaranhado de sons agudos. Aparece segurando nos dentes um objecto metálico que deixa cair aos

pés de Nuria. Esta vira-o por todos os lados e não consegue encontrar-Ihe origens ou utilizações.

Parece um modelo antiquado de filtro industrial E Nuria irrita-se um pouco com o conhecimento técnico a que se vê exposta. Como sabes?Fui operário especializado

em peças produzidas por tecnologias de ponta, até resolver romper com o círculo vicioso do levantar, trabalhar,

comer...

Regressa uma poalha de chuva. Ordio passa a galope como se perseguisse um alvo noutra direcção, para lá do muro. Nuria desiste de chamá-lo e sugere que regressem.

Perplexa, não ousa interrogarse sobre as razões do seu

109

TERESA SALEMA

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silêncio junto de Evara, quando esta lhe perguntou acercai da existência da gruta. Sabia do esconderjo e muito maisj Já não podia agradecer a Manuel os avisos que

este lhei fizera, de que esquecesse tudo ou se mantivesse à distant j cia. Limitava-se* obedecer enquanto se sentisse debili-: tada. Outro dia entraria ali, guiada

por Ordio.

No caminho de volta, Noel vai apanhando uma ou outra' peça que descobre entre lixos vários, trapos, garrafas' vazias, latas de cerveja, ossos de animal, fruta podre.

Ordio' não aparece aos repetidos apelos; Nuria não se resigna a abandonar a zona e sugere outra paragem no café, detrás do vidro. Enquanto comem pastéis salgados

com vinho tinto, Noel tenta distraí-la com perguntas sobre os anos de Zoon, e ela vai respondendo distraidamente até ouvir um latido não, é um dálmata à trela curta

da dona, que faz sinal a Nuria como se a reconhecesse.

Ao contrário do que Noel disse apostar, as luzes da casa de Jorge estão apagadas e Ordio não espera junto do portão. Desapareça de vez, murmura Noel entre dentes

e ela ' sobressalta-se, Estou a falar dessa serigaita que tem < tudo o que é pior das mulheres.

com silêncio interrogador, Nuria desafia-o a continuar mas ele muda de assunto:

De qualquer maneira já não fico aqui por muito tempo, só uma ou duas noites. i

Porque fala ele em noites quando a tarde ainda vai alta, '^ de vento e céu a limpar? Sente-se muito cansada e retira-se para o seu quarto, onde renova a comida

da gata e se ( senta no colchão com os papéis de Frederico. Folheia-os, distraída. Nesse preciso momento, apetece-lhe antes ver imagens, mas o televisor e o vídeo

ficaram lá em baixo, | como tinha acabado na véspera por acordar com os outros. ]

Soledo. Poderia ter sido uma figura exemplar de contra- " dições se não tivesse descarrilado num individualismo \ piegas lá para o fim da vida. Não escondo que gostava

de \ contar à rapaziada os episódios que conhecia através de ' Leónia, de Nuria (qual delas a mais efabuladora? Nuria ' que responda por si ao ler isto).

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Leónia nunca respeitava cronologias, ou melhor, inver- í tia-as e começava do que para mini era o princípio, ou seja, \

I/O

BENAMONTE

a recusa do industrial enriquecido em obter mais dinheiro por vias menos transparentes, em associar a cadeia dos armazéns, gerida pelo primo, a um amigo deste que

correspondia a qualquer descrição do perfeito escroque. Pusera o primo entre a espada e a parede e oprimo foi implacável em mostrar-lhe como ele já dera o que tinha

a dar como patrocinador dessas miragens balofas de belas vidas.

Nunca contei ao meu auditório o fim da história de Soledo. Preferia as anedotas que circulavam acerca dos seus jogos com o poder, com o contrapoder, com as mulheres

e as suas paixões cruzadas, com invenções mecânicas e cavalos, métodos de agricultura que então se chamava naturista e filantropias várias, sociedades secretas,

mas também por gastronomia e toda a espécie de actrizes. Leónia comprazia-se em contar as situações em que ele tudo fazia para escandalizar a mulher legítima, entrando

a cavalo pela igreja dentro, enquanto um grosso cordão de senhoras, entre elas a mulher, claro, desfiava em coro o terço no mês de Maria; depois de algumas habilidades

equestres pela nave central pedia para falar com o padre a fim de lhe entregar pessoalmente um donativo bastante farto para as necessidades da paróquia. Entretanto,

imagino o trabalho do sacristão com uma pá, a remover da igreja os detritos do cavalo.

Morreu em meados dos anos 40, sabendo que já era um mito vivo. As cenas a cavalo tiveram lugar décadas antes, nos anos de casamento, da monarquia. Leónia gostava

de realçar as irreverências do avô, os seus empenhamentos de cidadão. Dos desvarios posteriores com dona Iria, era sobretudo Alfredo que se encarregava.

Numa das tardes em que fazia um esforço pedagógico altamente maçadorporque não estava muito convencido para explicar a exemplaridade republicana de Soledo, ouvi

Josué dizer ao meu lado entre dentes (creio que todos ouviram):

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Teve a morte de. um samurai. O irmão, naturalmente.

Outra vez esse irmão, de que Leónia falara tão pouco. E que queria Josué dizer com aquilo?

Olha para o lado e vê Noel deitado nas mantas muito perto de si; como foi possível não dar pela sua aproximação?

ni

TERESA SALEMA

Noel parece adormecido, sem pesadelos. Nuria sente ajÈ cabeça pesada ao voltar as folhas; com o molho de papéisa sai à varanda onde cai a última tarde. Desce à cozinhai!

domina o sono e procura as páginas onde aparece o nome d"| Saptra, enquanto* água ferve no púcaro. m

Um ruído no jardim fá-la sair, com o chá em repouso.;! Ordio, chama, e ouve apenas vento. Sente uma grande! tristeza na infusão de terra molhada, dos seres que lh0J

pesam em volta, de torn que ela pressente próximo, po"JH dendo mesmo aparecer em qualquer altura. Uma brisafi agreste leva-lhe algumas folhas pelo terraço fora e

deixa-1 -as viradas para baixo, manchadas de tinta de água. Ao J secá-las no ar, Nuria nota que uma delas traz varias-'l vezes o nome de Saptra e é encabeçada por

uma palavra,! que ela não entende, Rihanu. Senta-se à mesa da cozinha i e lê com sofreguidão as palavras diluídas pela chuva, l debaixo da lâmpada fosca. \

Rihanu. Nunca Saptra me quis explicar o significado '] dessa palavra, na língua do avô materno. Disse-me apenas 1 que correspondia a um grito de chamada do clã,

irreversí- \ vel, onde quer que todos se encontrassem, mas que era \ preciso saber em que circunstâncias ele devia ser usado J para se tornar verdadeiramente eficaz.

]

Como tudo na vida, mesmo as fórmulas químicas que \ estão na base dos remédios em que tu não acreditas, respondia-lhe eu. Ria de dentes muito brancos, mas os olhos

iam ficando cada vez mais sérios. Aceitei como uma dádiva que ela me tivesse revelado os sons que entravam na composição das sílabas, sem mais acrescentar. Só mais

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tarde soube que ela estava com isso a responder ao grito de chamada do clã, através do oceano. Mesmo que me diga que tudo é imaginação, composição forçada para poder

entender a parte que me toca na fábula, não consigo encontrar nome para essas correntes que me escapam.

Onde já não há nomes proliferam palavras. Essas nunca se esgotam, como artigos de promoção ou explorações televisivas da animalidade. Tudo tem o seu lugar, dizia

Saptra sem acrescentar os pormenores que ela esperava que eu adivinhasse. Mas há lugares tristes, e os mais tristes são aqueles de onde não se quer fugir. Quantas

semanas

BEN\MONTE

passaram sem que tivéssemos dormido juntos e agora aquele telegrama que até era supérfluo, porque ela já trazia há muito tempo a intenção de partir?

Imagino. Se ela fosse como Nuria, coleccionado uma série de recortes, reportagens jornalísticas e estudos etnológicos, e atirado uma pasta de plástico com tudo dentro

ao pequeno-almoço, para junto da minha chávena almoçadeira. Saptra conhecia algumas dessas reportagens, lia tudo mas não guardava nada. É difícil de entender, quando

não impossível. Eu também não entendo. Mas não desisto.

O que ela me contou com todo o pormenor foi a marcha voluntariosa da mãe, que atravessou, adolescente ainda e de pés nus, meio continente para fugir ao ritual da

efibulação anunciado pelas mulheres da tribo, essas que já tinham passado pela dor da retalhação e não podiam deixar de a infligir em cadeia às gerações mais jovens.

Mas a mãe fugira, depois de a patroa francesa, funcionária da Embaixada, lhe ter pegado nas mãos durante uma pausa no labor doméstico e lhe ter feito ver que podia

fazer qualquer coisa para escapar ao que ela pensava ser a sorte inevitável de mulheres, dentro do seu horizonte.

Não me perguntes como sobreviveu à travessia, acrescentou Saptra. Mas chegou ilesa a Angola, onde conheceu o meu pai, engenheiro escocês que a trouxe para a Europa.

E aqui nasci eu, já a gostar dos ventos frios do Atlântico.

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Lembro-me de a ter ouvido comentar uma vez: As feministas são muito bem intencionadas, mas temo que nunca possam perceber bem o que está ali em jogo.

Custava-me a acreditar. Estaria ela a defender costumes que mutilavam a integridade corporal de numerosas mulheres, as cortavam e cosiam e expunham à mais cruel

sangria, a infecções em nome de supersticiosidades ancestrais?

Tenta compreender, damned. Sou quase tão europeia como tu, e se faço este esforço não é pelo meu grão de africanidade, pela pigmentação genética. Claro que há essa

história dos direitos humanos, da integridade física de qualquer um, etc. Mas o que para mim e para ti são evidências torna-se de novo obscuro quando estás mergulhada

na terra e sentes aqueles ventos, aqueles cheiros, tudo

113

CONTEMPORÂNEA 18

TERESA SALEMA

o que te consola por saberes que te vai sobreviver. Trata-se l de uma questão demasiado complexa e é claro que tremo de Jj susto ao pensar no que me poderia acontecer

se a minha avó l me apanhasse. Li uma vez que uma garotinha, nascida não l muito longe do sitie onde eu andava a estudar, foi passar l férias à aldeia dos avós.

Enquanto lá estava, provavelmente i enquanto brincava, foi agarrada pelas mulheres do clã. % Imobilizada ali mesmo, entre lengalengas rituais, cortada, l cosida

a sangue-frio. Ao regressar às aulas na Europa, a l sua vida nunca mais voltou a ser a mesma. Não falo já dos i desportos que se tornaram naturais para todos nós

e que lhe 'i ficaram interditos, do volei à natação. Falo dos incontáveis l minutos de que ela passou a necessitar para ir à casa de f banho, por exemplo. l

Dói-me a memória e não posso abdicar dessa dor, con- i centrada na reconstituição do seu discurso directo. Talvez J seja apenas uma compensação posterior do silêncio

com que i a escutava. Já não fazíamos amor na altura em que tivemos l aquela conversa. Conhecendo-a como a tinha conhecido } antes, pergunto-me também se esse distanciamento

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forçado l não seria uma maneira silenciosa de me dar a entender o \ sofrimento físico que lhe custava aquele trabalho de com- j preensão. j

Saptrajá cá não está para responder às minhas dúvidas, j e assim estou sozinho para convencer-me. Disso e de que as í parcas informações que me tinha dado acerca

do possível i paradeiro da mãe, das intenções desta ao regressar às zonas familiares, enfrentando todos os riscos de punição numa secretude intencional; convencer-me

de que tudo isso era apenas para me proteger, assumindo ela só o peso dos segredos. E o que posso fazer agora, sem poder sair ainda deste papel e desta caneta, é

tentar atar os fios que me restam num tecido minimamente lógico, ainda que frágil.

Saptra contara também, com indisfarçado orgulho, como a mãe fora tirando na Europa o curso secundário e chegara a estabelecer uma oficina de tapeçarias com duas

amigas. Uma delas tinha estudado Antropologia. Fez-lhe ver uma série de implicações, de poder e de sentido de comunidade, ligadas ao rito sacrificial; contou-lhe

do trabalho de campo de uma antiga colega, de quem tinha entretanto

114

BENA.MONTE

perdido o rasto e que na altura publicara um artigo em que se interrogava sobre a possibilidade de converter os rituais de eftbulação real numa cerimónia simbólica.

Uma especulação bem intencionada, sim, senhor, mas inacessível a quem não tenha nascido com aquele sangue e naquela terra.

Ao fazer um comentário como este, não estava só a exercitar o grão de cinismo que aprendera comigo. Estava também sinto agora a dar-me uma pista, reforçada pelo

interesse que a mãe demonstrara pelo artigo. Saptra foi encontrá-lo em fotocópia, sublinhado e gasto, junto das meadas de fio que alimentavam os teares. Já nessa

altura andava a estudar Medicina em Londres e intuiu o que aquilo significava p ar a a mãe, segundo lhe confirmou o pai, que veio a falecer pouco depois com uma

súbita infecção virai.

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De que me serve este trabalho gratuito de detective, se não para passar o tempo que falta até subir para o avião? Noel acorda e boceja. Nuria e põe de parte os papéis,

ansiando por um pouco de quotidiano, Tens fome como eu? Vem comigo às compras, apetece-me cozinhar uma refeição a condizer com estas paredes.

O outro faz-se rogado, deitado no chão a acariciar os gatos. Vamos, insiste, autoritária , e depois saímos a procurar o cão. Isto se queres ficar aqui.

Surpreende-se com as palavras que lhe escapam, mas mantém o pulso e o torn. Ao chegarem ao portão, faz um gesto de meiguice, como para lhe dar o braço. Um jipe pára

em frente deles e com Daniel ao volante. Desprende o braço de Noel e fica colada ao passeio, pensando nas palavras, para lhe dizer que Ordio desapareceu.

A isto chamam um povo de marinheiros?

Receia que Daniel tenha bebido de mais. Porém ele só está a contar de um fim-de-semana uma vez passado numa praia de nevoeiros, dormindo na areia até a humidade

lhe atravessar os ossos. Para observar todos os movimentos, acrescenta. Nuria desconfia, mas já ele conta de reuniões nocturnas em torno do halo de uma fogueira,

de um autocarro

//5

TERESA SALEMA

inteiro a despejar na manhã para a areia encharcada un$B cordão de gente vestida de escuro: excursão oferecida poíil uma marca de bebidas, que assim fazia publicidade,

aos|f| habitantes mais idosos de uma aldeia raiana que pu-Jl dessem comprovaf nunca terem visto o mar. ii

Sorri, céptica. Está-lhe agradecida pela calma com que Jl ele aceitou a perda do cão ( Vai ver que logo aparece Jl respondeu), pela habilidade de cozinheiro que

preparou, om marisco, cortou os legumes, fez um molho para o peixe, a enquanto Noel regressava à sua obsessiva matriz electro- JI nica, fazendo ressoar a aparelhagem

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muito para fora dos 'J limites do muro. m

É o preço, murmurou Daniel, encolhendo os ombros, l enquanto ajustavam os poucos copos e pratos inexistentes, l ensaibrados. Por que se meteu com ele? l

Perturba-a a mistura calculada de elogio, indiscrição e l insolência. Daniel sabe-o e insiste, muito perto dos olhos '8 dela. Esses meninos nunca me convenceram.

l

Aguenta o olhar e o jogo de ocultação, deixando-o pensar fl o que quiser. com um copo na mão, ele agarra-lhe a cintura M e fá-la dar uma volta que Nuria aproveita

para se colocar i à distância, desejando que Noel não entre na cozinha e não i revele nunca que é seropositivo, envergonhando-se logo a J seguir desse encadeado

de desejos. 'l

No fim do jantar, bebem os três café de um púcaro, de ,j mão para mão. Daniel assegura que qualquer punhado de * homens irreverentes pode criar para um povo inteiro

a í fama dos heróis. Acontece que os vossos exploravam ,j oceanos e não desertos, ou montanhas. Gosto pouco de í heróis, fazem muito barulho. ,;

Olha indisfarçadamente para Noel ao dizer as últimas ;j palavras e Nuria tenta lembrar qual é o autor de quem | Daniel se está a apropriar. Quais são os vossos

planos? l

Visa-os a ambos, num terreno que defende como seu, e J ambos se levantam para arrumar a loiça, como a justificar t a sua permanência ali durante a noite. Noel diz-se

cansado l e fixa-a numa súplica de silêncio e cumplicidade. Nuria i percebe e pede-lhe que a acompanhe, para tratar de l acomodá-lo num quarto Onde estejas sossegado,

é isso : que queres, não? Noel pergunta se não pode ficar ali, junto ,

116

BLNAMONTE

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da aparelhagem, promete usar os auscultadores. Perguntalhe se tem uma vela e ela proíbe-o de acender as que comprou para a cozinha, Sabes, ainda não esqueci o que

aconteceu em Benamonte.

Sossega-o com um beijo na testa, nunca dirá nada a Daniel. Não gosto dele, diz o outro entre dentes, tem cuidado. Por que dizes isso? Tem um riso estranho e

quando fala não olha uma pessoa de frente.

Nuria não comenta. Sabe que Daniel tem mais a ocultar do que a agredir, mas compreende a vulnerabilidade de Noel. Volta para a cozinha e vê Daniel sentado à mesa

com um cigarro aceso. Sou alérgica ao fumo, diz com energia para se convencer das palavras. O outro apaga o cigarro com um sorriso. Quer que faça mais café? Daniel

lembra que trouxeram uma garrafa de brande e ela diz que prefere chá, para ter de levantar-se e de ocupar os movimentos. Daniel tira do bolso algumas fotografias

e põe-se a estudá-las com aplicação, enquanto ela cantarola a um ritmo de corpo indolente enquan-tonasanza-lachicotea-vamseuamor-mãepre-taembala-vaofilhobran-codosenhor.

Repete o refrão várias vezes, como num show obsessivo para uma plateia imaginada, fingindo ignorar que está alguém a respirar muito perto. Vai à janela e fingese

concentrada num ponto qualquer, fora do vidro.

Essa canção soame conhecida, mas parece-me que a letra é outra, diz Daniel. E, de alguns anos para cá, eu própria não era nascida quando a cantavam nas ruas e nas

rádios.

Aproxima-se do ombro dele, pede licença e olha para as fotografias não era isso o que ele pretendia? Julga reconhecer torn, o cabelo e a camisa mas sem o blusão,

dentro de um grupo numeroso, num almoço campestre debaixo de uma latada de Verão, Quem era?

Não me lembro do nome, foi o ano passado e estava muita gente que eu não conhecia na minha mesa. Só guardei a fotografia por ser uma das últimas que tenho de Viora,

vê-a aqui de vestido encarnado? Fui eu que a tirei. Suicidou-se duas semanas depois.

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Chegou o momento de todas as verdades ou de todas as mentiras. Uma história contra a outra, ou as duas

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."w

TERESA SALEMA

cruzadas, pensa Nuria. Bebe um golo fundo de brande pelj copo de Daniel e pergunta-lhe se quer contar, ao mesmlM tempo que tenta recordar onde viu aquela cara, aquelll

corpo, mesmo aquele vestido. "

Fazia parte cfè um dos clãs que tinham assentada! tendas em Benamonte. Eram como se fossem a minhdl verdadeira família, diziam gostar de mim como se fosse un|| deles,

mas nunca soube por que razão se opunham a querl casássemos. Ela ganhava a vida como bailarina... l

Interrompe-se, despe a camisola com o calor. Fazem! falta alguns elos na cadeia, muitas cenas nessa historiai pouco verosímil, mas a tristeza dele é real, irradia,

pesai no ar. Essa mesma família que me contou uma vez terl morrido afogada? Não, esses eram mesmo meus primos l e na altura morava em casa deles. Vigaristas da

pior i espécie, traficantes de tudo. Eu próprio me pergunto se | não os levei ali para os fazer morrer de morte natural, tinha l lido a notícia de uma onda gigante

naquele mesmo sítio... í

Sentem que estão a entrar num círculo cada vez mais 1 estreito e calam-se, bebendo brande do mesmo copo e j olhando-se em silêncio, como no jogo infantil de mútuo

j desafio, quem fala, quem ri primeiro.

Noel entra na cozinha e pergunta se têm qualquer coisa < para beber. Apontam-lhe a garrafa e Daniel levanta-se para buscar outro copo. Afinal, donde é que tu e Jorge

se conhecem?, pergunta Nuria com um sorriso adocicado. Mas Noel aguenta o impacte da pequena inquisição e senta-se com os outros dois, até que percebe o seu mutismo

e volta a sair. Nuria tem pena dele, mas sente que já não pode desistir dos passos magnéticos que começou a dar em direcção àquele homem, primeiro sem se aperceber,

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depois com toda a intenção.

Sente a testa a latejar. Olha para o nível da garrafa e decide moderarse na bebida. Vai buscar um copo de água à torneira e bebe de pé, com goles miudinhos e de

costas para ele até que o ouve perguntar: O que sabe ao certo sobre os papéis de Soledo?

Papéis, papéis. De Soledo, de Frederico, que importa tudo isso na era electrónica, apetece-lhe dizer. Mas tem de jogar com mais subtileza. Muito pouco. Nem mesmo

a

BENAMONTE

amizade que tinha pela neta fez que esta me facilitasse mais do que escassas informações. E agora ela emigrou, como sabe. Mas também deve saber que a bibliotecária

dela anda por aí, essa que também fazia funções de secretária. Só tem de procurá-la se é que já não o fez...

Interrompe-se; falar de Sor a nesse instante, mesmo sem dizer nomes nem descrever sinais, é o mesmo que evocar uma massa gelatinosa que ameaça de morte a escultura

fluida a nascer na noite, no cansaço diluído, nas cabeças inclinadas, nas mãos que se estendem sobre a mesa em direcções pretensamente incertas, a quererem prender-se

num destino próximo.

Nuria sabe que só tem um olhar certeiro para jogar, meia palavra para ganhar ou apenas deixar que Daniel abandone o seu campo com uma fórmula já esboroada. Num milésimo

de segundo, pergunta a si mesma se não se importaria de perder e avança o corpo, certeira e lenta, em direcção aos olhos escuros, ao tronco debaixo das roupas, ao

porto frágil de volume agora intenso, absoluto, agarrado às respirações.

Não lhe apetece mexer-se, ver as horas na claridade; enquanto dura esse tempo frágil de sede imóvel, membros doridos, odores a arrefecer, deixa-se ficar relembrando

as corridas que fizera, primeiro atrás de projectos, agora na obsessão de apagar suspeitas e fintar recordações. Pesa-lhe a imobilidade, como um círculo parado em

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retenção de líquidos, sem beber, sem mijar, olhando os pêlos grossos no braço muito perto da sua cara, perguntandose que sabe ele mais, como poderá ocultar por muito

mais tempo o que a retém ali, até quando será ainda protecção suficiente a cumplicidade longínqua de um dono de casa que parece ter encarnado apenas em várias cópias

da mesma chave...

Daniel desloca o braço, enrola-lho nas ancas, colamse, queimam-se na febre vagarosa, ainda sonolenta. Depois, ele levanta-se para dentro da roupa, sorri com um,

Até mais tarde, faz os possíveis para descer com um passo leve sem acordar a madeira do chão e Nuria readormece a

1/9

TERESA SALEMA

sonhar que ele lhe traz Ordio até junto do nariz. Nãq"

porém a lambidela húmida do animal que a acorda cáH

uma luz já alta, mas o cheiro de um café trazido por Ntfl

Fui às compras. Jm

Está a fazer ^ido para ser aceite, pensa ela. AgradeíjJ

-lhe, tentando não se obcecar com a imagem de Danw

deitado nas mantas com a bailarina arimenha. Bebe o caflj

de um trago e resolve arrumar todas as situações inacatJ|

das. Olha o outro com uma intensidade cordial e iróniâl

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embrulha-se no roupão à sua frente e sai da cena pala

cortar qualquer tentativa de comentário ou interrogação

Sozinha de novo, tenta perceber alguma ordem cronolw

gica nos papéis de Frederico e desiste na ausência de datai!

de números de páginas. Pega em todo o molho de trás para

a frente, da frente para trás, e lembra-se que interrompera

o capítulo Visionários. Retoma no sítio onde o deixou: Péjm

que continuo a pensar que ninguém melhor do que Nurim

entende o meu dilema? Pura intuição? Ou estou a escrevem

e a perguntar-me se ela sabe o que eu sei acerca de torn, m

sou demasiadamente fraco para apenas lho sugerir por estM

meio falível, anacrónico?Decerto que ela sabe que eu nz/ncfll

quereria magoá-la. Mas como sair deste dilema de conhecer^

algo em directo, que me foi confiado pelo próprio torn, dej

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fugida a meio da noite, e de não avisar quem pode estar]

injustamente envolvida? \

Noto como escrevo isto para escapar à vertigem do

segredo incómodo, trocando-o por inconfidências menores.

E escrevo também consciente de estar dentro de uma rede

segura, de um círculo de amigos que infelizmente se tornou

flácido, distante, esquecido mesmo, mas onde confianças e

sigilos ainda permanecem aquilo que deveriam ser.

E depois reconsidero: não sei em quem devo ter confiança. Fausto é seguro em compromissos, com a sua ética marcial, mas nunca me seguiu em ideias e afectos. Manuel,

esse bicho ensimesmado, com os seus problemas afinal não tão secretos, nunca se mostrou capaz de realizar o que quer que fosse. E, no entanto, é em casa dele que

deponho este envelope teimosamente lacrado, como se quisesse sublinhar ainda mais o anacronismo em que nos comprazemos, todos sem excepção e há quantos anos?

120

BENAMONTE

Há contudo uma excepção Nuria. Talvez no momento em que ler isto ela note como a caneta se demora em traçar as letras, sem poder parar em rodeios inúteis como gostaria,

porque além do desejo de retardamento (recalcamento?) ainda há o impulso oposto, de continuar mesmo por linhas tortas até me libertar de toda a confissão penosa

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e depois meter estas páginas no meio das outras e fechar a porta, como todos os dias. Feitas as despedidas faltam duas horas para ser altura de chamar o táxi para

o aeroporto, para a madrugada do voo intercontinental com regresso em data aberta.

Falta Josué.

Não veio despedir-se. Sabia como a sua ausência equivalia a uma retirada e cobardia aliás inúteis, porque nunca me estaria na mente denunciar o que quer que fosse.

As ideias que debatemos no grupo, tantas vezes em fogo cruzado de reprovações e cepticismos por parte dos outros, estão ligadas de maneira tão íntima às suas maquinações

que nada mais me resta do que fechar a porta a esse infeliz capítulo e abandonar este infeliz continente onde uma ideia se pode tornar tão facilmente num rastilho

viciado.

Como não censurar-me agora do prazer imenso que me deu ver ideias minhas a brilhar no entusiasmo das suas pupilas? Tinha principiado com coisas muito simples, metáforas

quase, ideais de uma vida de eterno aprendiz, esse que vive rodeado de livros, sabe improvisar minutos e plantar espaços verdes, que abomina exageros de consumo.

Namomento seguinte (era mais eu a f alar, mas eleja não me acreditava) anulava tudo com um cinismo que tanto podia defender como atacar porque já não estava em causa

nem uma coisa nem outra mas apenas mencionar, interrogar, compreender. Como defender então aqueles que fazem comércio de crianças, de espécies raras de animais,

que criam redes de prostituição ou cortam patas a ursos para as servir em restaurantes de luxo como especialidades asiáticas?

Mais tarde, depois de os outros terem saído, veio-me pedir desculpa pela sua agressividade. Aceitei as desculpas, sem ocultar que me comprazia vê-lo dar o salto

do que eu considerava um humanismo piegas para uma visão que

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TERESA SALEMA 1^1

desgraça que infligem aos seus semelhantes. Nurwj^B tenta lembrar em que altura da sua vida teve temp]^B para ler fartas passagens da correspondência entre ambo^H

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Em todo o caso foi quando andava a estudar e antes dejH conhecer torn, Toiftás e de se envolver nos seus ideaiiH indistintos e esquivos. Quem era ele pensa agora

dessJH homem de que não conheceu família e que gostava que IhJH chamassem duas vezes pelo nome, nas versões abreviadffl|B e extensa, como se quisesse compensar uma

ausência dejB apelido? |H

Compara agora a memória cada vez mais apagada de|l torn à firmeza de Josué, nas folhas de Frederico. DelM repente, surge-lhe uma visão alta e magra, quase tãmH escura

como a maior parte dos refugiados, naquela noiteJH alucinada em Benamonte. Não tinha alguém dito cha-lM mar-se Josué? Não tinha Sora dito que ele namorava" uma das

filhas? E não seriam antes os arquivos de Soledo JÊ que ele namorava para buscar o quê? JB

Tenta ordenar imagens do que se passou quando Noel >ÍB lhe bate à porta com suavidade. Venho despedir-me 9 porque regresso a casa da minha mãe. Não digas nada:

you jm voltar a dormir na sala, a tolerá-la no que é barulhenta e JB insuportável pela bebida ou pura e simplesmente por não fl estar em casa, mas se piorar não

you querer mais ninguém 9 junto de mim. Por enquanto. x m

Nuria sai com ele para tentar ligar a Evara. À saída, m Noel diz-lhe ainda, Peço-te só mais um favor, dás-me B um gatinho quando estiver mais crescido? Leva todos,

se m quiseres. Não you ficar por muito mais tempo. 9

Chove e ela veste sem pensar o blusão de camurça de m torn, vai ficar ensopado e irrecuperável, pensa já no cami- II nho. Noel deixa-a de táxi à porta dos correios

e ela marca 4J os números com a lentidão trémula de quem não crê nem l nos próprios gestos nem na sequência que eles terão, l Ninguém responde, nem um gravador.

i

Come um pastel, engole um líquido num café de passa- i gem, compra leite para a gata e corre a fugir da chuva, só l quer enrolar-se nas mantas e adormece a fazer

cálculos J de quanto tempo será ainda preciso para que quebre as l últimas amarras. *

BENAMONTE

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Acorda ao som insistente do telefone, precipita-se na escada, derruba uma coluna de som ao tropeçar nos fios e ouve a voz de Daniel. Vamos jantar?

Não sabe dizer que não. De que lhe serve, mas também que mal faz oferecer a si mesma um tempo de tréguas, antes de ter a certeza de que encerrou todos os capítulos

que a prendem ao país? Uma por uma, vai estendendo peças de roupa no chão e escolhe as mais claras e menos amarrotadas, lenço de seda, brincos.

Encontra Daniel sentado na parte de dentro da esplanada, com o cabelo húmido penteado para trás das orelhas e uma camisola preta de gola alta. ("Mudou de roupa",

pensa, "onde terá ido tomar banho e vestirse?") Levanta-se para lhe dar um beijo breve e recomendalhe um gratinado de vegetais. Nuna nota um embrulhinho em papel

prateado junto ao talher dele e continua a não fazer perguntas. Para concentrar a atenção dele, fala-lhe dos papéis de Frederico, do caso de Josué, da criança com

a cintura marcada. (Omite Saptra, sempre calará a dor silenciosa daquela mulher que sabe que não torna a ver.) Ele parece adivinhar-lhe os pensamentos e divertir-se

a fazer o jogo dela, num torn de cumplicidade que a desarma.

Conheci rapazes como esse, diz por fim. Não entre os refugiados, ao contrário do que se fala por aí. Os refugiados queriam sobreviver no que para eles era ainda

uma espécie de terra prometida, pelo menos há duas gerações.

Como sabe.

Continua a tratá-la por você e a desafiá-la para demonstrar as informações que possui. Sim, Leónia contou-me. Leónia? Essa apenas fazia suposições, hipóteses delirantes

para espantar os ignorantes. Quem sabia de tudo era a velha criada.

Humberta? Olha-o fixamente; não estará Daniel a atraí-la de propósito para uma pista falsa, a fintá-la com frases que ela sente como carícias de aparência distraída

mas de intenção certeira? Estremece como se uma corrente de ar abrisse a porta e a apanhasse despida, presa a uma parede. Ao mesmo tempo sufoca, como se a asma a

quisesse impedir de defender-se com palavras. Como morreu ela?

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TÍ.RESA SALEMA

Morreu? continua viva e com uma saúde rija, para| além de estar surda, o que aliás é natural quando se teny cerca de cem anos. Vive em casa de uns sobrinhos-netosj

não muito longe daqui. Se quiser, podemos ir lá um dia11 destes. f l

Apetece-lhe perguntar: Como pode provar o que diz? Ou' insistir: Mas não se tem de ir embora, desaparecer do meu [ mapa mais próximo, aliviar-me deste sentimento

idiota que começa a ter ciúmes do espaço e do tempo que não é í partilhado comigo mas que circula nas minhas proximi-: dades? Desafiando a afasia, tacteia às cegas

pelo caminho' perdido da leveza: Não creio que tenha tempo, em breve. partirei para voltar não sei quando.

Não lhe aconselho. J Di-lo com uma suavidade tão categórica que deixa ',

Nuria numa mudez de defesa. Logo se recompõe e sorri, Já se vai ver.

No silêncio que se estende entre ambos ouve um piano tocar modinhas das Americas tropicais, sincopadas. Olha para as mãos sapudas do executante, sente-lhe o ritmo

de café e sonha em estar a milhas dali, ao jazz da aparelhagem j de Zoon, entre os espelhos cada vez mais mosqueados e as , cadeiras de tecido cada vez mais gasto,

a discutir com í Salvador e Frederico sobre coisas tão abstractas e tão ' concretas como as potencialidades e impotências de um ^ indivíduo perante a acção de grupos

violentos, o crepitar da l lareira da avó de Salvador enquanto os vizinhos se iam ] juntando no frio da rua para irem à procura do louco da j aldeia, fugido

de casa de uma mãe viúva. j

Sabe que de nada serve remontar mais longe, a tempôs mais dolorosos que deixaram de ser origens, não apenas porque alguém as viciou. Não compreende a tris- .

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teza em que se sente afundar, entre paredes de metal e tijolo, o rio a poucos metros e Daniel contando uma história qualquer com a sua mímica de mãos, rugas de riso

aberto e o cabelo já seco, solto e brilhante. Ouve polidamente, diz qualquer frase de transição e ataca, experimentando enterrar no outro a lâmina que sente atravessada

há muitos dias.

torn chegou a dizer-lhe alguma coisa?

726

BENAMONTE

Daniel parece surpreendido. Não sei de quem está a falar.

Creio até que sabe muito bem, Tomás que gosta de ser tratado por torn, aquele a quem cedi o meu automóvel. Aquele que anda por aí fugido com razões de sobra para

isso e que talvez você tenha informado do sítio onde estou agora.

Repito-lhe que está enganada, não conheço ninguém com esse nome. Lamento que esteja sem carro, nada pior do que sentir a falta de mobilidade depois de se ter sido

independente. Mas estará mesmo tão preocupada com ele ou foi você própria que se deixou sugestionar até chegar a esse ponto?

Mais uma vez ele põe o dedo na ferida. "Tem fair play", nota Nuria, "finta-me à distância sem me cercar." Tenta afastar a dúvida que não a abandona. "Tanto pior",

pensa, enquanto lhe toca a mão ao de leve, "ainda que ele conheça torn e tente encobri-lo, mesmo diante de mim, isso prova talvez que o momento conta, que importa

arredar personagens secundárias."

Propõe-lhe irem a outro sítio e ele olha o relógio, contrariado. Há só um pequeno problema, tenho de devolver o carro a alguém que ainda por cima dá hoje uma festa

de anos. Se quiser subir comigo uma hora ou duas, tomamos uma bebida e depois saímos.

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Nuria sabe que as coisas nunca se passam bem assim, que é impossível arrumar pessoas em horários e sobretudo em cenários de festa, mas diz que sim com a cabeça para

ganhar o tempo de observar Daniel, de ouvir palavras e música que a distraiam do lugar húmido em que se encontra, das variações de Frederico, das sombras cada vez

menos pesadas de torn, dos seus próprios temores, do que a prende agora ao homem junto de si.

Enquanto saem, Daniel insiste: Não menospreze Humberta, se realmente quer acabar esse trabalho acerca de Soledo. Não se trata apenas da única testemunha viva: tem

a certeza de saber mesmo quem ela é?

Sente-se ferida e não quer mostrá-lo. Por que está aquele forasteiro mais bem informado do que ela, que passou anos em pesquisas? Mas logo se arrepende do que

127

TERESA SALEMA

pensa... não tem ela também vivido como forasteira, iy obsessão de não se fixar? Continua muda porque além d< mais suspeita de uma intimidade entre Daniel e Sora,

qu< poderia quase ser mãe dele.

Soube por me*o acaso, num serão entre homens encontrei dois refugiados muito bebidos que eram confidentes da velhota. Dir-lhe-ia mais coisas se não me tivessem pedido

segredo. Repito, estou disposto a ir consig< visitá-la e, então, veremos o que ela ainda tem para contar^ Compreenderá que tem de ser em breve. j

Olha-o demoradamente e recebe de volta um sorrisof cúmplice, que logo regressa às manobras do volante. Dão* voltas e voltas no jipe por ruas apertadas e escorregadia^

l até que Daniel empina as rodas para cima de um monte de l papéis a amolecer numa esquina morta. Ao descer, Nuria,' reconhece a letra miudinha nas folhas deitadas

à chuva e j aos olhos que (aposta para si mesma) não se dão ao trabalho \ de decifrar as linhas apertadas, os gráficos abertos. Sente;) mais do que nunca a falta

daquela amiga que tinha a necessidade de traçar à mão as suas ideias antes de avançar com a câmara. Quem teria deitado fora tudo aquilo, com que direito? Pretexto

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para falar com Sabato, com Canosso, pensa enquanto Daniel a conduz por uma escada de pedra estreita e a apresenta num salão de pessoas sentadas numa idade de tecido

caro, cabelo químico e pérolas. Seguindo o seu instinto, Nuria faz uma vénia à dona da casa a quem Daniel beija a mão com um grande à-vontade enquanto lhe dá os

parabéns e remete o embrulhinho.

Um adereço da tua oficina?, pergunta a senhora, visivelmente encantada, depois de desfolhar o papel prateado. Mostra aos que a rodeiam uma planta de metal anguloso

do tamanho de um polegar, enquanto o trio ao fundo da sala toca uma música de cordas que faz lembrar a Nuria um laranjal entre fontes, arabescos e murmúrios raspados.

Imediatamente, Daniel se some na sala ao lado em conversas e deixa-a com um copo na mão e um sorriso de defesa.

Conheço-a de qualquer parte, diz uma voz por detrás da sua orelha. Isso, em casa de Leónia numa noite, salvo o erro até estava acompanhada por outra pessoa. Sim,

isso foi de certeza há alguns anos.

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BCNAMONTE

Tem de continuar a defender-se, sobretudo das evocações de torn. (Envergonha-se um pouco de desejar que ele nunca tenha existido.) Para todos aquele que não tinham

feito parte do grupo, Zoon era apenas a casa de Leónia. Mas já o outro continuava, desejoso de manter conversa. Sou militar aposentado, era amigo de Alfredo. Que

aconteceu àquele rapaz que na altura a acompanhava? Como deve saber, andavam à procura dele.

De novo a sina de não poder fugir à fuga, de não ser capaz, afinal, de erradicar aquela figura da cabeça, de limpar-se da cumplicidade que ainda lhe condiciona os

gestos. Não sei, alguém me disse que morreu, responde com uma convicção que a espanta. O outro inspecciona-a como se o tema torn lhe interessasse apenas para abrir

qualquer forma de comunicação entre ambos, desce-a e sobe-a, contorna-a, perfura-a com os olhos. Nuria sente-se como se tivesse cavado uma trincheira com o peito

ansioso e o braço doente, mas ergue-se como pode até ficar quase à altura do outro. Uma sugestão leve é suficiente para ele principiar a divagar por historietas

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e feitos isolados e conjuntos, pelo convite de Alfredo para transformar a propriedade da mulher num campo de treinos, na criação de uma força de elite. Absurda,

a ideia do Fred. Devia saber que com aquela gente nada conseguiria.

Aí está o que suspeitara e que nem Manuel nem ninguém lhe quisera dizer. O outro não necessita de mais incentivos para continuar e diverte-se em detalhes sobre-os

visionarismos do amigo no seu pequeno quintal, como diz, esvaziando a bebida e chamando o criado que

acorre.

Um oval puro, murmura, então, inadvertidamente, e

olha para ela. O contorno do seu rosto, sabia?

Logo regressa a Alfredo, como se tivesse também o seu gozo privado em brincar aos militares ao evocar a figura do amigo. A medida que avança no álcool, principia

a desenhar círculos com a voz enquanto alguém abre uma janela para as traseiras e uma corrente de eucalipto molhado limpa o ar de fumos e tosses. Nuria hesita em

continuar a ouvir um relato que lhe parece estar prestes a destilar-se a si mesmo, quando um arrepio quente a agarra pelos

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CONTEMPORÂNEA 1"

TF R L S A SALEMA

t

ombros e Daniel lhe pede que venha ter com uns amigos quj a querem conhecer. j

Fica imóvel, numa coluna de ar entre a insolência de umj e a decrepitude do outro que a despede com um sinal quasw indiferente. * J

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Incorrigível, o velho Ezequiel. Também tentou corte-1 já-la, vero? E preciso cortar-lhe o pio com uma ostensiva! falta de educação. É o marido da dona da casa. f|

Fala enquanto passam por um corredor de veludos e l ouros, ele envolve-a de novo num fluido que os detém numa j esquina e ela irrita-se consigo própria por não querer'3

resistir ao prazer suspenso, quase pleno; pensa que tudo,, vai ter de acabar e quase deseja uma surpresa amarga na l sala seguinte, por exemplo uma figura com o

brilho que ela l agora não tem, saltando ao pescoço do homem que ainda a ! acompanha pelo cenário adiante; e ela, Nuria, ver-se < obrigada a guinar por todos os

esgares de delicadeza para pouco depois inventar uma dor de cabeça e sair daquela moldura e daquele enredo.

Nada disso acontece: Daniel mantém-na abraçada enquanto a apresenta a um círculo de pessoas que ela não conhece, mais novas do que as da sala anterior, e só no último

instante ela domina o seu espírito de contradição e recalca um gesto rebelde contra o paternalismo do braço. Um dos homens fala-lhe do álbum que ela fez em tempos,

pergunta-lhe de projectos presentes e ela sente a pressão da expectativa como uma armadilha.

São delicados mas não ouvem sente. Para dentro dessa surdez, talvez ela possa finalmente ser verdadeira e denunciar o pesadelo em que torn a envolveu desde a hora

em que, contou, se viu envolvido numa luta letal com o seu melhor amigo. Talvez aqui, entre gente desconhecida e amável, ela possa libertar-se da pressão de saber

coisas que não lhe dizem respeito, o jogo duro e ácido de descobertas que ele lhe esteve a contar com todo o pormenor antes de desaparecer, dizendo que só por uns

tempos, prometendo iludir vigilâncias para voltar a vê-la, que ela ficasse por perto, etc.

torn só existe se eu deixar, resolve num último instante, e põe-se a descrever o trabalho de recolha de materiais em

J 30

BENAMONTL

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texto e imagem para uma série documental sobre as gerações que habitaram a desaparecida casa de Benamonte, um projecto em comum com a cineasta Petra Rulla, prematuramente

falecida. Uma ideia necessária, comenta uma mulher em cabedal ossudo, roendo a ponta do cigarro, agora que o antigo parque vai por fim ser reabilitado como um enorme

pulmão às portas da cidade. Mas quem a vai ajudar nessa tarefa, minha filha?

Surpreendida com o vocativo, Nuria volta a olhar para a mulher mas não consegue descobrir-lhe a idade por detrás de uns óculos muito escuros e redondos. Um antigo

assistente de Petra para a documentação fílmica, responde, pensando que Canosso lhe perdoaria uma classificação de que nunca tomará conhecimento. Para os testemunhos

escritos, vai ser mais difícil. A única pessoa capaz de fornecer mais informações do que as que já possuo, a antiga secretária e bibliotecária, não se encontra em

estado de sanidade mental. Os outros ou morreram ou saíram do país. Naturalmente que não tenho meios para pagar a mim mesma as viagens, para não falar das ajudas

de custo.

Apesar do cansaço, desfruta a tragos lentos ver-se de novo no centro das atenções. E principia a acreditar no seu projecto, à medida que fala dele; sente-se reconfortada

por ter ao lado uma pessoa que ainda não sabe quem é. (Ourives? não pode acreditar.) Um dos homens pergunta se alguém quer beber qualquer coisa e promete a Nuria,

segre'dando-lhe de passagem, um contacto com um amigo seu, produtor; entretanto, o grupo vai-se dispersando e ela encontra-se na noite amena do terraço, sozinha.

Não teme a teia de inverdades que acabou de montar, sobretudo acerca de Sora. Que importa exagerar um pouco acerca de quem soube tudo de torn, por coincidências

difíceis de sondar, e correu para a denúncia imediata de modo a deixar-lhe a ela, Nuria, iniciativa para dar largas à sua fúria de contradição e aconselhar a torn

que se escondesse, desaparecesse por uns tempos que ela logo arranjaria um enredo para encobri-lo? Sora soubera e não calara. Como torn principiou por discutir para

depois matar em legítima defesa o seu melhor amigo, ao saber dos

13!

TERESA SALEMA M

negócios em que ele participava, em que o queria envolvei

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também. jl

Que importa tudo isso agora? Aspira fundo, o odor vim

getal mistura-se com a música que toca sempre para fazera

dançar alguns, ft militar com damas escolhidas uma poji

uma, alguns pares desiguais, duas mulheres, não de avei3

tal e gargalhada solta como nas festas de aldeia mas eml

comunhão de blusas justas e prateadas, delírio silencioso!

Do banco onde está, Nuria sabe que não pode ser vista a nãJS

ser por quem saia para o terraço e contorne o ângulo del

palmeiras e aloés. a

Vê Daniel a dançar com alguém que parece conhecelá

de longa data. Corpos não muito próximos, risos abertos ea

cúmplices, mãos que se despegam de vez em quando dal

postura de dança para narrar ou comentar. Principia ai

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pensar na maneira de envolver aquele homem no seul

projecto e a sentir um agradável cansaço, como se ela pró-j

pria se desfizesse na música e resolvesse ficar para sempre 1

no perfume cozido do laranjal árabe. '

Lembra as palavras do antigo oficial: Um oval puro. A \

anatomia do cansaço, do envelhecimento, não principia j

pelas rugas mas pela queda dos contornos do queixo, l

dessa zona aparentemente sólida mas tão sensível da fala, 'j

da mastigação, da vontade de avançar. Das pessoas que |

conhecia, só alguém como Leónia soubera aligeirar as suas 1

peles caídas com a sua presença corpulenta, insistente e j

lúdica. O contrário de Sora, uma vez mais, com as pregas '

ressequidas do que deveria ter sido uma pele inglesa. Mas ]

por que eram tão diferentes essas duas mulheres, se afinal i

eram parentes chegadas, primas, talvez mesmo irmãs? ]

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Ou a frase de Sora naquela noite, o nosso avô, tinha sido :

apenas uma estocada de ciúme incontrolado, ainda à som- ;

bra de Alfredo?

Recomeça a chover e Nuria entra em casa por outra porta do terraço, para não dar a Daniel a impressão de o surpreender nem se ver obrigada a encenar indiferença,

a evitar olhares. Atravessa pequenos grupos em conversa e vai ao encontro de um dos conhecidos de há bocado, que a convida a subir mais uma escada íngreme até uma

mansarda ampla, com uma mesa de bilhar ao meio e vários

BENAMONTL

computadores com jogos. Aproximam-se de outra amiga do grupo, ocupada em circuitos de informação. Nuria entra no jogo.

Diga uma palavra.

Soledo.

Que é isso, um modelo de automóvel?

Logo se verá. (Entretanto, olha a decoração da sala e fica presa a uma geometria na decoração, a uma gravura setecentista com um grupo de figuras dispostas em dois

quadrados dentro de dois círculos, todas com corpo humano mas algumas com cabeça de animal. Aproxima-se mais e julga ver uma negra lindíssima, em nu invulgar para

a época, segurando uma pequena ave de rapina.)

Qual deles quer? Por ordem cronológica, o bispo herético de Segóvia, o poeta maldito, a família de empresários, a marca de pneus...

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Todos.

Não sairíamos daqui. Escolha um item, ou passe para outra palavra.

Mãe preta.

Isso não é nada.

A família de empresários.

Enquanto as mulheres discutem, Gabriel introduz uma sigla e de repente todas as cabeças na mansarda voltamse para o timbre da voz nas colunas de som, Enquantonasanza-lachicotea-vam

seuamor-mãepre-taembalavófdhobran-codosinhor. Nuria sorri e desce a escada com a melodia entre os dentes. Ainda ouve a outra perguntar Mas não quer saber nada sobre

a família de empresários? Fica para outra vez, obrigada.

Pensa em Leónia, quase tropeça na passadeira com um varão a soltar-se. Os maxilares sensuais, a pose, as invenções em torno da figura do avô: muito havia ainda por

contar, por descobrir sobre aquela mulher. A principiar pelos parentescos. E por agora chegava de mitos, pelo menos para o consumo pessoal.

Melhor assim, saber Leónia longe do mapa. Sente um calor confiante para procurar Humberta, mesmo Sora, para escrever mais outra história de Benamonte nos vazios

entre as lacunas, as ruínas. .

I CRI U CALEMA

Vê Daniel junto à escada, de casaco vestido e com q*j blusão dela no braço. *

Vamos sair, a maior parte desta gente está cansadaj ou bêbeda ou as duas coisas. A dona da casa já se retirou e1 disse que posso tef o carro por mais dois dias.

Não precisas de despedir-te de Ezequiel, que deve estar a contar anedotas pornográficas aos anjos.

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Agrada-lhe o tratamento familiar, entra no jogo. Deixa' ficar aqui o blusão. O quê? Peçote, como se ficasse esquecido em cima de um banco ou no bengaleiro. Mas,1

vais ter frio, vais apanhar chuva. Deixa. i

No sítio onde está o jipe, não se nota nenhum monte de papel mas restos de uma pasta informe. Um grupo muito alegre de máscaras e trajes longos passa por eles em

danças sincopadas e altos risos e deixaos marcados com tinta | colorida. Nuria debruça-se sobre uma folha meio pisada l pela roda do carro e nota que a chuva acabou

por apagar os | sinais de tinta. Dói-lhe o braço e Daniel põe-lhe o casaco | em volta dos ombros. Entram em silêncio no carro, ele guia \ para um destino que ela

desconhece, mas não lhe apetece \ fazer perguntas.

H4

"FALAGUI MALÁRIA"

Levanta-se, inquieto. Uma rajada de vento escancara a janela, arrasta folhas de plátano a pingar para o tapete persa.

Outra vez, diz a si próprio no mesmo torn que lhe fora imposto, cego e repetido, pela voz do pai desde os anos da infância, da migração, das novas terras. Volta

a sentar-te e levantate como deve ser, o tronco erecto, perna direita à frente.

Tinha razão o déspota reconheceo agora que os anos resvalam. Ficara a dever tanto àquele patriarca como à ternura tímida da mãe. com ambos desaparecidos, os tratamentos

distintos misturavam-se num tecido fotográfico, que logo se agitava quando se lhe juntavam os irmãos em escada, em monte de mãos e pernas.

Ainda não é hoje, pensa alto ao repetir o exercício. Precisou de chegar até ali, à estreita margem entre o ímpeto e a comiseração, para sentir as vontades, a sua

e a da memória do pai, confundidas numa energia só. Vê nisso uma razão para continuar vivo, nisso e no monte de papéis que espalhou na mesa à sua frente, e que vai

levar pelo menos dois meses a ordenar, os recortes, os manuscritos.

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Olha para a fotografia de Dório na mesinha ao lado e pensa que ele vai abrir daí a pouco a porta da biblioteca, devagar, encostar a bengala a um canto e sentar-se

junto dele a olhar para as chamas. Logo a seguir censura-se, proíbe-se de alucinar fantasmas. Há quanto tempo é que o irmão já não habita entre as lombadas, os reposteiros,

os cadernos que preenchia com letra de resignação que se

131

TERESA SALEMA

inclinava, de voluntarismo que ascendia nas hastes da palavra seguinte?

Sabia que ia morrer, teve tempo de preparar tudo, o sacana. Mas não lhe you ficar atrás.

Por momentosfEmílio esquece o frio que aperta, mal se afasta uns passos do cadeirão junto à lareira. (E tem de andar, para mais longe do que os passos circulares

dentro da sua casa e dos jardins, todos os dias disse o médico. Não. Ainda não é hoje.) Entusiasma-se com as cenas que lhe voltam ao ecrã gasto do cérebro, das retinas

fechadas de encontro à vidraça que o separa da chuva grossa, que lhe suporta a testa e suspende o tempo, embaciado.

Ouviu a mulher duas portas mais adiante, vidros e metais. Teria já chegado a hora da performance, como dizia ela nem que fosse para despertar a curiosidade em quem

a estivesse a ouvir, mesmo não sabendo muito bem o que ia acontecer? Um cheiro a sândalo entrou pela porta que Soledo nunca fechava inteiramente. Cultivava o hábito

de deixar sempre uma fresta de ar e luz, para não impedir o caminho dos espíritos, dizia. E impunha esse hábito a quem convivesse com ele.

Onde está a faixa de seda preta?, resmungou, impaciente, ao vestir um colete de veludo sombrio. Pigarreou, enfiou o casaco e compôs o passo de marcha solene pela

moldura das portas, até ao salão onde os outros esperavam sentados em cadeirões confortáveis. Cumprimentou os sócios do primo e os comerciantes árabes chegados na

véspera. Ia começar.

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Entrou a figura de fêmea, primeiro em passos de véu escuro, parou.

com a mímica de mãos, sugeriu que se ia seguir uma luta de gigantes, combate de irmãos pouco interessados em distinguir o bem e o mal, misturas do mesmo sangue.

Animais de brasão: um dragão, um grande felino. Escolha das armas: um revólver, um punhal, uma caixinha laçada com todos aqueles motivos.

Um gesto marcial arredou o véu para trás e o tronco principiou a desdobrar-se em esgrimas, facadas, ponta-

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BENAMONTE

rias, flectindo o tronco, esquivandose a partir da cintura. Depois, os sinais guerreiros foram-se pouco a pouco amaciando, como se quisessem dizer que renunciavam

ao domínio do espaço e deixavam de ameaçar os espectadores mais próximos, mantendoos apenas em tensão latente. Soledo não pôde impedir-se de pensar: não estará ela

a provocar demasiado estes beduínos, ao mesmo tempo tão ciosos das suas distâncias e tão ávidos da pele e do perfume

das mulheres?

Não te precipites, surpreendeu-se a murmurar entre dentes. Outras das frases de Soledo-pai; por que pensava agora nela, porque não se concentrava no corpo de Iria

a descrever espasmos de morte, que lhe faziam lembrar o trabalho de parto?

Que saída vai ela encontrar?, pareciam dizer os olhares postos no peito a tremer para o ar, nos tornozelos e pés nus contorcendo-se como cobras vegetais até pararem

de todo. Não podia já ter terminado ao fim de poucos minutos, depois de ter habituado os espectadores a actuações de mais de uma hora em solo. Admitia que ela tivesse

exagerado nos últimos meses, ao querer por força demonstrar que as suas capacidades continuavam as mesmas, depois dos anos em que as pusera de lado para tratar de

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Dório.

Retóricas, falácias, tarrenego, continuou a sibilar como numa oração maligna, uma fórmula de antídoto que ia de encontro a outro tema tão caro a Soledo-pai: agir

primeiro e falar depois, mesmo com o apoio surdo de superstições. De qualquer modo, sabia-o Emílio desde sempre, são precisos tempos sem medida para acumular pequenos

impulsos, avanços e recuos da vontade presa a esquemas e tolhida por princípios, até chegar a qualquer decisão. Entretanto, venham passatempos, meus senhores.

As três pancadas secas do gongue acordaram-no das cogitações que o seu instinto de humor costumava atribuir às digestões difíceis. Ao sinal de um criado na pele

da percussão, era suposto que pulsos e tornozelos voltassem ao movimento e se reerguessem com expressão renascida, expurgada de intrigas e ciladas.

137

TERESA SALEMA

Um copo di água, deprressa, soletrou um dos be- l duínos de gestos mais ligeiros, inclinando-se a uma distân- * cia preocupada e respeitosa da mulher que continuava

j desmaiada e pálida e não se erguera ainda para mostrar ao público os resultados da luta. Soledo impacientou-se. Que iriam dizer os convidados do seu teatro doméstico?

Para sua surpresa, viu os árabes trocarem olhares de compaixão sincera enquanto os sócios do seu primo continuavam l numa zona de sombra, pálpebras dirigidas aos

desenhos do J tapete. Já a criada aparava com a boca do vidro os lábios 'i que principiavam a abrir-se em monossílabos e ainda os , sócios, convidados por Emílio

a contragosto, continuavam no escuro das cadeiras, indecisos sobre a reacção a tomar ou reagindo apenas com a imobilidade, a incapacidade de soltarem qualquer gesto

ou som, nem mesmo uma fórmula ' de despedida educada.

Nada pior do que um mau actor, pensou Soledo, enquanto Iria se levantava, declinando ajudas, agradecia ; com um breve sinal a compreensão de todos e voltava a

deitar-se para retomar a acção no ponto em que perdera a l consciência dela. Todos viram erguer-se uma figura que já l não era nenhuma das que tinham sido

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anteriormente i sugeridas, gesticuladas no ar. Nem o combatente de goelas l nem o lutador de pata sibilina. Era uma silhueta jovial que J manuseava armas

aéreas como bolas de malabarista, \ pegava na caixinha com gestos intrigados para começar a abri-la com uma lentidão que provocou alguns suspiros de l impaciência.

|

Soledo enterrou-se na cadeira para melhor gozar a j incomodidade dos outros. Sabia que ela sempre acabaria i por dar a volta a qualquer incidente e aquele

não passava, ; no seu entender, de uma indisposição sem história. Sen- j tiu-se injusto no seu juízo precipitado e tentou mental- < mente corrigi]o.

Maus actores, esses sim, eram os ; ocupantes da segunda fila, esses sócios apertados nas suas } fazendas e que mal disfarçavam o seu tédio por estarem

ali a apertar mais um nó polido, obrigatório nas relações entre o ramo comercial e o ramo industrial da família. Muito piores que os beduínos, atentos estes aos

mínimos movimentos de Iria na sua dosagem sensual, equilibrando o

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BENAMONTE

olhar ávido de animais de deserto com a. cortesia de quem rejeita uma fata morgana.

Uma vez mais, Emílio interrogou-se acerca da qualidade de sangue que teria aquela mulher para improvisar de uma forma tão certeira e versátil. Era capaz de desfazer

em segundos a mais lisa das madonas de cera e piedade cristã para passar a modelar serpenteies fulvos, pagãos, a desembrulhar num golpe irreverente matéria viva,

antes envolvida em panos e precauções.

São e serão incompatíveis, cristianismo e paganismo, ironizou Soledo para consigo, num voo de imaginação que se afastava do esforço que a mão da mulher parecia fazer

para extrair da caixinha, sempre com a maior lentidão, um fio fluorescente, incomensurável, dócil. Lembrou-se das definições sarcásticas de Dório, que sempre lhe

criara complexos com a sabedoria de biblioteca: uma, a cultura de nariz e ouvidos, cega, com problemas respiratórios e rezas mal mastigadas. A outra, a civilização

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dos olhos e da garganta cheia, do trabalho em dispersar vapores e conter os prazeres úberos, sobretudo quando ameaçam tornarse roucos e serem vomitados.

Envergonhou-se logo a seguir, não do que estava a pensar mas de prestar pouca atenção ao trabalho de Iria, que concentrava os dedos em espiral na construção de uma

forma geométrica, à primeira vista indecifrável. Papagaio? Constelação?

Quando pensou ter descoberto do que se tratava, Soledo teve de recorrer a todo o seu autodomínio para não se levantar e sair ou, pior ainda, travar o braço da bailarina.

Aguentava mal esse tipo de tortura, semelhante às rabinices dos irmãos mais novos que lhe roubavam os desenhos para os mostrar aos amigos. Pior do que tratar com

fornecedores desonestos, trabalhadores renitentes ou reivindicativos, criados sonsos ou com os jogos viscosos dos primos na secção comercial, era ver ali exposta

uma figura que se parecia demasiado com um dos seus esquemas no papel. Via ali expostos aos olhares dos presentes os seus planos, moldados em fio maleável nas mãos

daquela mulher que parecia com isso troçar dele.

TERESA SALEMA l

í

'i

Como se pressentisse uma fúria muito próxima, Iria i enfiou as unhas na figura já construída e baralhou numa' massa irregular o que antes fora uma geometria de linhas

' proporcionadas. Em poucos segundos, os espectadores podiam jurar que a warn engolir uma mancha luminosa e' reforçar o acto com um suspiro ao mesmo tempo regalado,

melancólico e grotesco. .

Acabem-se estas cenas, decidiu Emílio para si, enquanto os presentes aplaudiam. Iria que se conforme de qualquer maneira.

Sabia o que tal decisão podia custar-lhe, pelo menos enquanto não se restabelecesse por completo. Detestava ver-se isolado, embora se revelasse cioso das horas de

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solidão que buscava por iniciativa própria. RestarIhe-iam então os vapores quotidianos, a mastigação, o declínio e o confronto directo com certas verdades e ilusões

até aí suspensas, ou confundidas. Restarlhe-ia a sensação consoladora de ser, agora mais do que nunca, a parte visível de uma obra que levava mais o seu nome que

o de Dório.

No rasto de incenso deixado pela bailarina que se retirara, as conversas reacendiam-se em torno da bandeja com café e bebidas espirituosas, servidas por um criado

que publicitava discretamente a fazenda riscada dos armazéns do primo ao vesti-la num corte impecável. "Não será pela roupa que estes espiões me vão tramar", pensou

Soledo. Porque não tinha dúvidas de que, o mais tardar na manhã seguinte, o primo André receberia o relato detalhado no escritório dos armazéns. Queria então pormenores?

Télos-ia, com requintes de malvadez.

Sentia dentro de si toda a seiva em circulação galopante. A adrenalina, o equilíbrio da sua ironia recuperavam. E depois não acreditava que os presentes tivessem

mesmo entendido os esquemas que ele revelara a Iria numa tarde de maior ternura e enorme debilidade? Os árabes, com quem ele discutira os planos, saberiam guardar

segredo. Os funcionários do primo, com a sua estupidez servil, tomariam tudo por um capricho de fêmea.

Recomposto da fúria que lhe roçara a epiderme, Emílio aproximou-se da sombra e fez aos convidados as per-

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BENAMONTE

guntas de circunstância, pedindo-lhes desculpa pela indisposição de Iria. Comemos ao almoço um prato muito pesado, devia ter sido por isso que ela se sentiu mal,

sublinhou com a voz já arrogante e bem disposta. Talvez fosse altura de rever as percentagens dos ingredientes, ou dos conservantes, nos vossos produtos de charcutaria.

Noto uma alteração no gosto desde que cedi ao André as quotas

dos armazéns.

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Os outros fizeram um sinal atrapalhado com a cabeça e inquiriram o estado de saúde do anfitrião. Ainda anémico, respondeu prontamente. Mas em breve restabelecido.

No mesmo torn jocoso, continuou a sugerir que aos cinquenta e cinco anos ainda havia de tirar coelhos do chapéu. A sério. Se me retirei não foi só para convalescer,

para que não me aconteça o mesmo que a Dório. Tenho planos para os quais you precisar da colaboração de gentes

de fora.

Gentes?

A voz subitamente aflautada dum dos homens da sombra confirmou-lhe as suspeitas. Depois do susto por que passara, apetecia agora a Soledo brincar com o fogo da curiosidade

dos outros, fugir para a frente segurando as rédeas. Podia assim arrastá-los para suposições delirantes, desviadas da verdade depois de terem passado muito

perto dela.

Sim, vindas de um país tão longínquo quanto possível. Desculpem não poder avançar com mais detalhes, mas compreenderão dentro de muito pouco tempo do que estou

a falar.

Antes que algum dos interlocutores quebrasse a sua mudez de espanto, um dos árabes acercou-se, inclinou-se ligeiramente com a mão no peito e Soledo pediu desculpa

por interromper, mas tinha de dar instruções ao secretário para o dia seguinte e de atender aos seus hóspedes. Os dois homens entreolharam-se. E a suposta anemia,

ou o diabo de doença que fazia o industrial receber visitas e ter reuniões de trabalho frequentemente deitado, ou andar de perna arrastada, apertando o castão de

prata da bengala como se quisesse bombear o sangue, chicoteá-lo com maior velocidade pelo corpo fora?

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TERESA SALEMA

Em silêncio, um criado acompanhou os dois visitantes até à escada principal, restituiulhe abrigos, cachecóis, chapéus e guarda-chuvas. Ainda confusos, os homens

enfiaram-se nos seus casulos e despediram-se lapidarmente. Estava um Oufono molhado, que sujava de lama as folhas de plátano nos passeios.

Soledo chegou ao pé dos árabes e anunciou-lhe que dentro de uma hora serviriam o jantar na sala. Uma hora, sorriu para si mesmo. O que para ele era um intervalo

generoso significava uma tortura de lazer inútil para o secretário escocês e uma variação incerta, humor e apetite para os homens do deserto. A distância opaca entre

o tempo de cronometro e rigor e as modulações de luz imprecisa. Si tu es pressé tu es déjà mort...

Preferia decididamente o estilo do deserto com os seus segredos, a sua crueza, os seus desafios, a uma austeridade que nada tinha a ver com a mecânica de comportamentos

nos países aonde fizera viagens de negócios. Nunca estivera no deserto. Agora talvez fosse tarde para chegar até lá, ou pelo menos para obedecer a sonhos tão longínquos.

Mas não desistira de aprender aquele estilo, ou pelo menos de aproximar-se dele. Por isso convidara para sua casa aqueles fabricantes de tapetes, com quem se cruzara

um dia no sul de Espanha.

Gentes, riu-se ainda. Teriam mesmo acreditado, os sócios de André Soledo Silva? Não fora porém gratuita tal invenção. Tinha na memória uma ceia anos atrás, na casa

de um amigo que recebia convidados de todos os países. Fora-lhe aí apresentado um Victor Cham, de pêra pontiaguda e cinto no último furo, inclinado numa embriaguez

muito razoável. Contava aos que estavam mais próximos, num francês pastoso e forçado pelo nível de aguardente, como se vira obrigado a vender as suas propriedades,

por dívidas ao jogo, por temor dos ventos políticos. Soledo não se lembrava agora do resto das histórias talvez inventadas, mas retivera as cenas de uma família

espalhada na terra e na casa, criados, trabalhadores da lavoura, da coudelaria, de uma raça dita arimenha, segregada, a quem ele dera guarida e permitira que preservassem

rituais, raízes. Era-lhe doloroso, confessara V. Ch., quase caído no chão e

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com a voz liquefeita, separarse deles, deixar que se desmembrassem, a não ser que alguém que possuísse propriedades, fábricas, os acolhesse... Que estava ele a efabular?

Emílio recompusera o laço, dera tudo por conta do álcool, mudara de círculo e de conversa. Mas não esquecera.

No otomano da marquise, a que ele chamava o seu jardim de Inverno, ele repensava agora os passos já dados e os que se seguiriam. Abriu o colarinho da camisa, desfez

os ganchos da cinta que o médico lhe impusera por causa da hérnia. Por momentos, o olhar embaciouse-lhe, a vaguear pelas manchas translúcidas, pelos vapores que

se colavam ao vidro com os focos de luz acesa. Não se admirava por Iria ter desmaiado naquele espaço interior, mais sufocante ainda do que o sítio onde ele estava

agora. Só os pedidos dela e a sua própria condescendência tinham podido transformar aquilo em sala de espectáculos. Precisava de a arejar melhor, talvez de ampliá-la.

Sentia como não podia recusar àquela mulher o que quer que fosse.

Aspirou o aroma do cedro anão, seguiu as asas de um insecto na folha de um jarro. Pensassem o que quisessem. As fantasias que contava aos outros davam-lhe ideias

novas. Fora aliás por excesso de ideias e fantasias que após a morte do irmão cedera ao primo a parte dos armazéns, mesmo sabendo como isso que o privaria de gozos

mais imediatos, esses que tinha ao inventar fórmulas para comercializar produtos. Paciência. O seu instinto ordenavalhe que desviasse agora para outras regiões as

suas capatidades visionárias. Entretanto, convinha-lhe que as pessoas fossem acreditando na lentidão da sua convalescença.

O sangue acelerava-lhe o ritmo da respiração, acompanhada apenas pelo crepitar da madeira na salamandra. À medida que os vidros se iluminavam contra o céu de chumbo-escuro,

a sua mente passeava pela construção que pensava erguer naquele sítio que por ora convinha ser tomado, pela maioria dos demais, como um parque de diversões. Antevia-lhe

a espessa cintura externa, o bosque misto com zonas de vegetação impenetrável, sulcada apenas por caminhos de limpeza florestal. Passeava já no Outono, sobre um

tapete em amarelo e cobre, patas e

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TERESA SALEMA

corações vegetais a sedimentar-se e infiltrar-se na terra.

A organização principia pelo reino vegetal, murmurou. A expressão agradava-lhe e sorriu ao pensar na reacção daqueles que havÍEftn rodeado o irmão décadas antes,

construído com ele todos os projectos sociais, se alguma vez tal expressão lhes chegasse aos ouvidos. Desculpa-me, Dório pensou por ser eu a ficar com os teus

méritos, mas preciso deles...

Quando se preparava para os próximos passos imaginários, em direcção ao interior do recinto onde as construções iriam erguer-se, fontes e arcos, pátios e lages,

muita cal, silhuetas e espaços deliberadamente vazios, abriu-se a porta e entrou um cheiro a soda cáustica, pedindo mil perdões por arrastar as solas de corda. Emílio

ia abrir a boca com rudeza para interpelar a mulher que ousara entrar naquela zona da casa, contra todas as instruções, trazer aquele odor de culpas antigas e permanentes

trabalhos para o seu território privado, onde nem sequer Iria assomava sem um discreto sinal de toque de unhas na pesada madeira da porta.

As palavras que ela não chegou a dizer foram subitamente vedadas por um caudal de náusea e sucos ácidos. Antes que a mulher ousasse acudir-lhe, no gesto espontâneo

entre humanos em aflição, já QS restos de álcool e pasta de fígado se estendiam na camisa branca. Foi assim que Nila teve um pretexto para lhe tocar pela primeira

vez, e Soledo estremeceu ao contacto daquelas mãos comidas que lhe erguiam a nuca. Lembravam-lhe demasiado as da mãe, ensalsichadas e roliças, mas eram de textura

seca e áspera ao contrário das outras, às quais ele permitira, durante anos, que lhe untassem o corpo com instinto certo.

Sentia-se furioso, por ver interrompidos os seus devaneios, e ao mesmo tempo desarmado, entregue a quem lhe retirava o colete e a camisa, o tapava enquanto ia buscar

outra roupa, regressava para lhe enfiar novos linhos lavados, botões de punho, e parecia absorvida em limpar o cenário de todas as manchas. Disparou uma rajada surda.

Já agora diz por que entraste aqui sem bater? Bati, sim, várias vezes, chamei ate, mas o senhor não ouviu,

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trazia um recado urgente da senhora dona Iria que pediu que a fosse ver.

Nada a fazer. A zona solar do seu sonho diluíra-se entre aquelas mãos comidas. A outra, crepuscular, nem sequer tivera ocasião de anunciar-se. Resignado, voltou-se

para o lado e adormeceu.

Não conseguia fechar a janela. Por momentos, pensou que as janelas queriam acompanhar as portas no desejo de fazer passar os espíritos e riu-se logo a seguir de

uma ideia tão tonta. Cuidado para não ficares senil antes do tempo, disse em voz alta.

Por que deixara o desenho dos projectos tão perto dessa vidraça alta, perra e frágil, vulnerável aos temporais? Bastara uma rajada para esbater a tinta de uma série

de esboços. Valia-lhe agora a insónia para tentar reconstruir, a lápis primeiro, contornos e detalhes que tanta tentativa e desperdício lhe haviam custado. Já não

podia perder um minuto sequer dessas horas providenciais e brancas. Anos a fio, passara por reacções rebeldes contra a falta de sono, devorando sem critério novelas

de folhetim, romances familiares e tratados clássicos, agitando bebidas no cadeirão, atirando as roupas com febre e manuseando a mulher que a noite disponibilizasse

e que se moldasse, estremunhada, como autómato sonâmbulo ao seu ímpeto mais que desperto, soltando o hálito da noite e monossílabos entre as mantas.

Talvez lhe nascesse daí a meses um filho varão. A ideia não lhe desagradava, agora que lhe morrera o único irmão que recusara, como ele, espalhar-se pelos recantos

da diaspora. Tanto ele como Dório achavam que havia um momento de travar a febre migratória, que dissipava as raízes dos Soledo havia várias gerações. Tinham ficado

por ali, ensaiando técnicas de construção em terrenos húmidos e insalubres mas que ele preferia ao casario lá de baixo, como ele costumava chamar ao bairro operário,

da iniciativa do irmão.

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Tinha principiado por reagir com moderação, mesmo cepticismo, ao sussurrar de Iria de que estava grávida.

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CONTEMPORÂNEA 110

TERFM SAL LM A

Habituara-se à certeza da esterilidade daquela mulher, que tolerara durante anos como companheira de Dório. O seu instinto era seguro a detectar dedicações (palavra

que ele preferia a fidelidades), a admirar a discrição das mãos em torno do (foente, enxugando-lhe os suores e deixando parar nele um pouco da sua seiva.

A casa era grande, permitia a quem vivesse nela olhar ou desviarse, envolver-se em focos de emoção ou ensaiar cinismos, sobretudo em estômagos instalados nos jantares

sociais.

Olhou para as figuras do projecto, umas inacabadas, outras com manchas de água. Tinha de concluí-las, todas, e discutir tudo com o seu amigo arquitecto, tendo já

na mão as visões seguras, os lugares de habitação e de culto, as luzes e as sombras. Tinha de saber bem o que queria, não fosse outra vez aceitar um peso sombrio,

convencional, como achava agora que tinha a sala onde se encontrava. Era verdade que muito dessa sombra vinha da decoração trazida por Almedina com o casamento,

os móveis escuros, os reposteiros.

Pensou na filha Isabela e na sua indiferença aos projectos do pai, na sua presença de trigo italiano vestindo cores da terra, versão demasiado saudável do que fora

a mãe, exemplar fechado de uma família de proprietários rurais. Tinham-se conhecido, Emílio e Almedina, como vizinhos. Não fora casamento de conveniência, mas sim

atracção brusca e enlace rápido, contrariado e triunfante. com a criança nascida meses depois vieram as desilusões a sufocar fantasmas romanescos, as defesas quotidianas

contra as mesmas desilusões, as cumplicidades que preenchiam as horas, na biblioteca com Dório, nos salões de chá com Iria, até à escarlatina que a vitimou de um

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golpe, por contágio com uma das criadas.

Emílio fez um esforço para imaginar a filha, agora em viagem de núpcias. Gostava dela como quem observa uma figura de ninfa a crescer entre móveis de mogno e marquises

de plantas. Sempre o divertira aquela exuberância que achava parecida com a dele, de exclamações nas pontas dos dedos. Sempre se esforçara em dosear para ela carinhos

e privações materiais. Explicação das coisas cruas e liber-

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BL<\ \MONTL

dade acompanhada à distância. Convívios na família alargada e livros seleccionados na biblioteca. Daí parecia ter resultado essa figura de cachos aloirados, intuitiva

e de temperamento alegre, mais preocupada em equilibrar pesos e medidas para receitas de felicidade e bem-estar, mesmo dentro de limitações naturalmente aceites,

do que em aventurar-se em especulações.

Um lírio do campo, achava Soledo. Tinha porém já um sentido de patroa social herdado da família. "A minha filha e os confortos que Dório e eu distribuímos à nossa

volta", pensara sempre Emílio, "vão manter coeso este microcosmo." Na sua busca das proporções justas, desconfiava tanto de filantropismos como de corporativismos.

Conhecendo-se bem nos próprios vícios e fraquezas, via com condescendência aquele fervilhar de naturezas humanas a quem procurava garantir trabalho e pão e de quem

exigia os melhores tecidos. Daí que fossem tudo menos inocentes os périplos que fazia com a menina pela mão entre os teares, enquanto Dório se fechava na biblioteca

entre os clássicos do socialismo. Explicava à filha o funcionamento e o perigo das máquinas, compunha com ela a figura de pai viúvo sobretudo diante das portas do

bairro, nos serões de Verão e bafos de aragem, em que todos traziam cadeiras cá para fora ou vinham namorar em aperto de corpos pelos cantos dos muros.

Quando Isabela lhe comunicou o desejo de ir para Inglaterra estudar Engenharia, Soledo não se opôs. Só por um instante se surpreendeu com a determinação da escolha

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daquele curso, ainda tão raro de mulheres, e passou a crescer em admiração pela filha, em confiança nos resultados do seu próprio pulso. Quando ela lhe anunciou,

no final dos estudos, que ia casar com o seu colega Oldro, não custou a Emílio fazer o papel de pai compreensivo. Passou então a ver nessa filha aberta e doce, de

manutenção pouco complicada, a incubadora do seu futuro herdeiro e confidente, sem saber ainda que Isabela tinha outros planos quanto a crianças.

Por ora, navegava em lua de mel. Depois, iria viver para Itália, nos primeiros anos do casamento, e só mais tarde regressaria ao tecto paterno, desencantada para

habitar os

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TERESA SALIMA

BENAMONTE

móveis de infância e depositar a pequenina Leónia no i

cuidado de uma ama. Mas nada disto podia ainda saber l

aquele Emílio de pijama e roupão que se aplicava à luz l

baixa, aos desenhos da sua cidade futura. Construiria J

coisas diferentes do frmão, corrigiria os lugares, que agora l

achava apertados e frios, do primeiro bairro. l

Lembrou a ideia que tivera, meses antes, de ir morar |

numa daquelas casas, por muitos já consideradas exempla- l

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rés, para se inteirar do espaço vivido pelos seus trabalha- l

dores. Levara pouco mais que algumas túnicas e mantas, 1

os rolos com os projectos, a bengala e a garrafa de álcool l

doce, da qual ia bebendo uma ponta de dosagem certeira, ao l

serão, com Iria. E ela acompanhou-o naquele retiro de i

vontade, numa existência de paredes nuas, num ascetismo l

que ambos sabiam ser impraticável pela maioria dos que se J

haviam instalado ali à volta e não podiam passar sem ossos J

na carne, sem roupas fervidas, sem crianças à solta nem i

animais domésticos, sem álcool barato. l

Essas semanas foram para ele decisivas. Ainda antes de ,|

iniciar a experiência, não teve ilusões acerca da proporção i

de ridículo que ela continha para quem não se dispusesse J

a atravessá-la, a senti-la como necessidade natural na- i|

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quele preciso momento. Assim, não ousou submetê-la aos '|

jogos de apostas tão apreciados nalguns dos seus círculos. "

Tão pouco fez menção dos seus propósitos noutras reuniões ; mais secretas. Decididamente, já não lhe interessavam nem percentagens de palpites, de quantos o achavam

louco, ou tonto, ou visionário. Já não suportava directrizes ]

nem admoestações rígidas, que o aborreciam com a prosa i

das suas fórmulas. Em vida, o irmão conseguira ainda <

contagiá-lo com a febre do empenhamento social; agora, só l

lhe apetecia seguir a voz do deserto. '<\

Achava que era tempo de agir, de provocar uma viragem j

numa teia que se estava a tornar demasiado espessa e l

ameaçava enrolar-se à sua volta, que bloqueava os seus |

lugares de livre decisão e circulação. Não queria ver-se |

nem ligado a poderes corporativos, beatos e bafientos, nem j

empurrado para uma incómoda proximidade de movi- í

mentos cooperativistas. Precisava de romper com uns e |

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com outros, instalar-se num vazio celular que não deixasse {

dúvidas quanto ao seu individualismo incorrigível, a partir de agora irreversível nas decisões tomadas e nos passos a dar.

O espaço exíguo da habitação operária, recheada apenas com os volumes indispensáveis, inspirava-lhe a proporção e medida para a sua futura cidade e sobretudo um

tempo livre para sonhar, corrigir, melhorar, acrescentar o que faltava, tanto no seu plano ainda secreto como naquelas filas de abrigo, já existentes. Descobriu

que lhe agradava a precaridade do sítio, do colchão ao canto, da mesa junto à janela, da bacia de esmalte com o jarro, da lenha a gemer de humidade no fogão. Iria

dedicava-se às tarefas domésticas com a aplicação dada a um papel que sabia passageiro. Por isso mesmo, aprendera-o e executava-o a rigor, com a excitação dada pela

efemeridade. Mais tarde, recordaria aqueles dias a esfregar lajes, encerar soalhos e estender panos, antes de levantar os cobertores na humidade animal da noite

e deslizar ao longo do corpo do homem nessa aventura controlada. Logo pela manhã, corria às compras e voltava a enfiar o bibe da creche, enquanto ele entrava nas

grossas túnicas que já nessa altura lhe facilitavam a incontinência, e se enrolava no roupão grosso. Como agora.

Onde ia, pois? Era importante não baralhar os tempos. Tinha agora a certeza de que aquele filho de Iria fora concebido nas semanas passadas no bairro operário. Lembrou

a noite em que aquela mulher, quase sempre distante, que ele aceitara no espaço destinado a Dório mesmo depois da sua morte, lhe tirara um charuto da mão adormecida

na poltrona. O seu instinto, acordado antes das pálpebras, fizera-o agarrar-lhe o braço, rasgar-lhe a renda frágil que ela remendava às escondidas, para não ter

de mendigar dinheiro.

Acaso esquecera os problemas com o pântano, as correntes, o rochedo com galerias no interior? O amigo geólogo não se cansava de repetir-lhe que a libertação das

correntes subterrâneas resolveria o fornecimento da água, o transporte de pessoas e objectos, o arranjo da paisagem. Se nada

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TLRESA SALEMA

BENAMONTE

se fizesse, Emílio bem podia dizer adeus ao seu plano mais secreto, o de criar uma habitação e um refúgio só seus no interior daquele rochedo situado no fundo da

quinta. com o sotaque estrangeiro que nunca perdera nas décadas de residência na capitalf o geólogo arranhava erres e estendia tês em arco para sublinhar que o povo

de navegadores se equivocava ao pretender que a sua vocação se esgotara nos oceanos. E os rios a crruzar, os canais a abrrir? Thudo, ou quase thudo, devia ser encarrado

como navegação, thempo incerto, estrrada thorrta. Ria em aberto do fascínio de Emílio pela pose de caos na boémia bêbeda. Pois não custava tanto, dizia, rrecomeçar

na penosidade das manhãs, constrruir mais um pouco da forrma que as miragens da noite faziam trremer?

Soledo divertia-se com a música descomplexada com que o amigo sintonizava a língua. Não partilhava a sua desconfiança pelas máquinas, sobretudo pelos automóveis

que o fascinavam, embora a sua assumida falta de reflexos lhe inibissem a vontade de se sentar ao volante. Fora, aliás, em torno dos automóveis que acabara por ter

com Iria uma discussão na semana anterior, zanga funda, ressentimentos graníticos.

Deixa-me, deixa-me, pediu ela uma tarde, pouco depois de ter desmaiado na performance, à luz melada da marquise. Apontava, afogueada na blusa de renda branca e com

o cabelo fora do sítio, a fotografia de um modelo acabado de sair. Especialmente concebido para senhoras, inovador, único. Soledo teve um gesto de recusa, pensando

menos nas despesas do que na reacção dos seus trabalhadores a uma extravagância tão visível. Confessá-lo seria admitir uma fraqueza.

Por outro lado, doía-lhe recusar qualquer coisa àquela mulher tão meiga, no fundo tão simples. Pensou: mais um capricho de grávida. Mas não tentou chamá-la à razão,

lembrando-lhe o seu estado, incompatível com sacudidelas e emoções automobilísticas. Perguntoulhe apenas por que razão uma pessoa como ela, tão moderada no gasto

de roupas e adornos, tão parca em desejos de viajar, exibia um desejo daqueles. E assegurou-lhe que um objecto assim não podia ficar ao relento e os seus planos

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não previam

garagens. Por que não fazia como ele, contentar-se com o seu fiel serviço de táxis, os motoristas de aluguer que disponibilizavam duas viaturas cromadas e negras

ao serviço de Dom Emílio?

Foram dias num puxar de corda, roer de nervos. Num ponto tinha ela razão, o automóvel acabava com a interferência de terceiros nos seus passeios íntimos, saídas

secretas. Queria ele então as contas feitas, perdas e ganhos dos dois lados? Ele respondia-lhe que seria demasiado fácil viciar os números.

Orgulhosos os dois, sofreram as insónias da cama separada, da vigília dos passos inquietos, da leitura na ponta dos óculos a entreter a espertina. com os pés na

botija de Inverno lembravam, com saudades também separadas, as semanas em que tinham sonhado à experiência, naqueles quartos exíguos de tapete de trapo. Durante

o dia, espiavam-se e evitavam-se em círculos felinos, olhares oblíquos, palavras ambíguas para quem os servia e pouco deveria notar, sobretudo à mesa onde se sentavam

comose quase nada fosse, chegando mesmo a receber convidados apenas com a voz de conversa ligeiramente

rouca.

Numa manhã súbita, Iria foi ter com ele ao escritório propor-lhe num torn claro que se encerrasse o assunto. Que precisava do táxi para ir fazer uma doação de roupas

que já não vestia. Soledo olhou-a céptico. Por que não mandava alguém levá-las ao tal orfanato? Mas ela já carregava embrulhos para a saída, com as mãos e os ouvidos

da criada muito próximos. Abriu a porta equilibrando os volumes, acenou-lhe ao de leve com a luva branca e o tiquetear dos saltos dos botins escuros perdeu-se dentro

da viatura.

Nessa tarde e noite não voltou a casa. Emílio achou por bem fingir uma naturalidade demasiado ocupada para mandar procurá-la. Inventou mesmo uma inexistente irmã

de Iria, diante das perguntas da governanta. Mas os anos passaram e a fantasia das mulheres daquela casa, mesmo a das mais intriguistas, viu-se ocupada por outros

cuidados urgentes.

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TCRESA SALEMA

Todos se queixam do frio naquela casa, da falta de ?I géneros de primeira necessidade, e ninguém pode impe- m dir-se de vaguear em círculos passados, de recordar

os m anos de fartura endividada. l

Emílio passa agora QS dias fechado na biblioteca, atiçan- l do a lareira com livros e papéis que considera inúteis, com l os que sabe ser perigosos ou apenas com

os que lhe são f incómodos. Depois de fazer um lume razoável com recortes l de jornais, duplicados de facturas e uns restos de lenha, l senta-se no cadeirão, pronto

para o conforto das memórias l enquanto lá fora aumenta o alarido de vozes. f

Lembra aquela tarde num final de Verão, ameno, tépido. >$ Há quantos anos? l

Sem anúncio, chegara um homem de estatura acima da \ média, apertado num fato de viagem, com saco enorme de <j cor indistinta, porte fechado, olhos claros. Numa

mistura l de línguas, deu-lhe a entender que vinha da parte de Victor 'I Cham. |

Alguém lhe dissera, muito depois daquela cena no salão, ] que um arremedo de sorte ao jogo trouxera a V. Ch. uma { oportunidade última de não perder as

suas terras, os seus i arimenhos. E Soledo nunca mais se lembrara dele até ao momento em que viu na sua frente aquele homem que não arredava pé, cheirava a

pó de viagem e arranhava já frases em português, como se tivesse intenção firme de se servir dele como porto de abrigo, pólo de fixação? Enquanto desconfiava, ia

mirando a figura com a qual não podia deixar de simpatizar. Amemória longínqua avivava-lhe as crostas e solavancos da sua própria jornada de infância, as noites

em tendas de campanha, as esperanças a salto.

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Levara anos a ocultar a sua origem, inventando os mais variados enredos. E agora tinha diante dele alguém que ostentava essa etnia que, constara-lhe, a sua própria

mãe lhe transmitira.

Quis acreditar que sim, que o outro executaria qualquer tarefa para depois mandar vir a sua família, a sua tribo mesmo, e criar ali raízes. Decidiu tentar a experiência,

dar abrigo e trabalho a uma figura que lhe parecia esculpida na madeira. Mas não podia criar reacções bruscas nas famílias que habitavam o bairro e propôs àquele

homem que se

BENAMONTE

instalasse no pavilhão ao fundo do jardim. Imediatamente mandaria alguém tirar de lá os objectos que preenchiam as suas horas vagas, dar uma arrumação, pôr lençóis

e loiça, etc. Despediu-o porque se sentia capitular diante do vácuo no estômago, da cabeça espetada em agulhas teimosas e finas.

Uma vez mais, pensa nas maldições lançadas sobre ele pela Informe, antes de morrer. Nunca terá um filho varão que chegue à idade adulta. A pequenina campa ao fundo

do parque, lugar de recolhimento, cultivo e desvario da mulher, cuja voz ouve cantar lá fora, está ali para lho lembrar. Mas já nem isso agora lhe importa muito.

Sente um orgulho crescente na neta que veio agora viver com ele, uma ternura pela filha magoada, ora longe do marido, ora recebendoo em visitas indecisas.

Olha em volta pela biblioteca, pelo mogno das estantes, pelas lombadas em grande parte herdadas do sogro, acrescentadas pela mulher, pelo irmão. Só depois da morte

de Dório é que principiou, a pouco e pouco, a considerar como seu aquele espaço que durante anos lhe inibia uma vitalidade. (A paralisia não vinha dos livros, sabe-o

agora depois de encontrar cartas, mas das teias tecidas nessa atmosfera de encadernações e óleos entre Almedina e o irmão.) Preferiu sempre a nudez do pavilhão,

cujas medidas projectou como antecipação do que iriam ser as casas da sua cidade futura. Que gesto irreflectido, que generosidade insana o levou a renunciar ao que

durante anos foi núcleo e berço dos seus projectos, para cedê-lo a desconhecidos?

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Instintivamente, olha através da janela do primeiro andar da casa para as paredes de madeira escura que no pavilhão se confundem com o ar da noite. Os batentes brancos

das janelas estão cerrados, sem luz. "Talvez durma dias, da viagem que fez", pensa Emílio, sorrindo ao lembrar como Flurio não descansou enquanto não lhe foi dado

a ver o mar. Regressou já no escuro, desgrenhado e extenuado mas feliz.

Emílio sai de junto da lareira para voltar a sentar-se à luz baixa da secretária, que foi o lugar predilecto de Dório. Recomeça o traço da figura que nunca mais

lhe sai da cabeça, a planta do edifício principal, dentro da sua futura

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TERESA CALEMA

cidade. Ainda não decidiu o que virá a ser, a sua imaginação nada mais faz por agora do que namorar uma forma que poderá adaptar-se a vários fins. Transportou consigo

esses planos durante décadas. Zangou-se com aqueles que lhe estiveram demasiado ptóximos. Acabou por recusar intromissões, sobretudo a do irmão.

Esperou. Primeiro a morte daquele que, esse sim, traçou as linhas de tudo o que agora existe, enquanto a sua cidade continua por construir. Não lhe custa admitir

as iniciativas que pertenceram ao irmão, o alargamento da fábrica, o bairro operário, a escola, a creche. A pouco e pouco, foi-se despojando de tudo para seguir

sonhos que continuam ali, avessos ao papel. Outra maldição daquela mulher?

Um ruído de passos rápidos fá-lo sobressaltar. Olha para a porta entreaberta e vê entrar o fio de voz de Nila, grisalha já. Pede desculpas por ter de procurar ali

o gato da cozinha. Se te parece que aqui há ratos, faz a tua obrigação, respondeu com uma súbita boa disposição que o espantou. Observava o brilho atado na cabeça

da mulher, visco do dia que se submerge debaixo dos móveis ou sobe a cadeiras. Deixa-a fazer, enquanto brinca com as chaves nas gavetas e abre uma distraidamente,

só para não ter de olhar na direcção do corpo rastejante que levanta pelo cachaço um gatinho preto e sai com uma fórmula indistinta entre dentes.

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Soledo tira os óculos e levanta-se para dar os passos que a sala permite. Respira fundo. Donde lhe vem agora aquela certeza de que aquela mulher afinal não é a filha

dele, dos momentos em que não resistira a entrar de noite no quarto da mãe? Sente-se indiferente, mesmo a essa certeza, tão ínfima nos tempos que mudam. Não é só

a memória dos factos que lhe prega partidas mas também a dos seus próprios desejos. Chega a arrepender-se de ter deixado Nila levar o gato para baixo, teria agora

com que brincar.

Recorda o velho tempo de jogo e risco, com os anarquistas na cave e o seu papel de dono de casa, cumprido à revelia de todas as mulheres. Ajeitava no cesto comidas

e roupas e depois mentia sobre o destino das mesmas. E rejuvenescera com o gozo. Só mais tarde, quando se tratou de transportar os homens para um lugar seguro, recorreu

à cumpli-

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BFNAMONTE

cidade de Iria e daquela a que o seu íntimo nunca deixaria de chamar Informe. E agora, ao tentar lembrar-se do nome da mulher que morrera na cama agarrada à mão

da filha e a um amuleto escuro, vai abrindo as gavetas e espalhando pela mesa outros papéis em cima dos seus.

Tudo manobras de diversão, pensa. Por que não consigo concentrar-me? Mas uma euforia de champanhe leve percorre-lhe o corpo, leva-o até à janela e para longe do

espelho, para não ver as olheiras cavadas, os fios grisalhos, as peles descaídas. Volta ao monte de papéis e, distraidamente, como se buscasse uma resposta, abre

as fitas de uma capa dura, sopra a poeira e os insectos roedores, folheia cadernos de contabilista e reconhece nalguns a letra de Almedina, noutros a de Dório. Lembra

como nos últimos anos ela se fechava, a horas em que ele a supunha a rezar o terço, na biblioteca que fora do pai e onde pouco entrava aquele marido sempre estranho.

Arruma os planos para um canto da secretária e enreda-se na leitura, até perder conhecimento da claridade do novo dia. A caligrafia confiante e regular, inclinada

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à direita e tão parecida com a sua, desdobrava-lhe um leque de memórias familiares, crónicas que a mulher lhe ouvira contar com ouvido aparentemente desatento, embora

interrompendo-o de tempos a tempos para pedir-lhe pormenores. Tinha então passado anos à escrivaninha, ocupada não apenas com a contabilidade de centavos, bilhetes

sociais, ementas caseiras, com o preenchimento de formulários e até imitações da sua assinatura. Pelos vistos, restara-lhe ainda fígado e alma para pequenas miniaturas

escritas de tudo o que desfilara na casa, na fábrica, no bairro. Sobretudo na casa à qual fora, até morrer, confiando os humores e abandonando o corpo.

Emílio percorre as folhas do último caderno até ao limite entre as páginas escritas e as páginas brancas, molha o aparo na tinta e começa a escrever. Às primeiras

letras, a caligrafia ingrata recusa-se a obedecer-lhe, mas a vontade dele impõe-se à mão, guia a haste encarnada, o aparo de ouro que pertencera à mulher. Falhara

a geometria, restava a escrita para subir de novo os degraus da sua cidade.

y 55

ÍERESA SALEMA

A mão só cai, extenuada de sono, à entrada do seu refúgio secreto. E manhã alta quando o vão chamar por se ter esquecido de uma reunião com o notário, por causa

do testamento.

Sozinho de novo no jardim de Inverno, ouve o fundo de guinchos e risos de duas crianças e da mulher que se lhes juntou, rolando pelos corredores e escadas sobre

o cheiro de fundo das cozinhas.

Pela porta do outro lado entra Isabela num fato escuro e justo, Tenho de falar consigo, pai. Estão a chegar cada vez mais refugiados e já não há no bairro quem

queira acolhê-los. A única alternativa é deixá-los ir para as construções do parque, isto se não quer que eles acampem nos jardins.

Tem de render-se, mais as paredes e máquinas, tecidos e fios, tudo o que se prepara para sobreviver-lhe? Ouve-se responder, Decide como achares melhor, mas não

metas ninguém cá em casa, já sabes, por causa da tua madrasta.

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Acha a palavra irreal de mais, mas não resiste a jogar com ela. Seja como for, essa palavra marca uma época cada vez mais difusa, os anos com a mulher que agora

gira por ali com a energia instintiva da sobrevivência. Emílio sai pouco, a não ser para a habitual volta ao parque, amparado por Isabela e com as meninas em corridas

perto deles.

Um canto forte leva-o à janela. Aquela voz só pode ser dessa que agora teima em fazer-se tratar por Humberta.

Falagui malakiá, surubi milhurifú, ramadi criaritá, soam as sílabas marcadas, com notas recompostas pela antiga bailarina. Lá em baixo do jardim, ela acena-lhe com

vivacidade enquanto encaminha uma mãe com criança de colo para o pavilhão.

Como vai reagir a família de Flurio, tão apegada ao lugar onde já se instalara, a esta onda que chega na ressaca de mais uma guerra? As mulheres que resolvam. Farto

está ele das lamentações da filha, frequentemente desertada pelo marido em viagem, das queixas das criadas e da cozinheira por verem Humberta enfiar os seus aventais

e

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BENAMONTE

imitar os seus gestos, cantando sempre na sua língua de espíritos carnais.

Há muito que se conformou em limitar os passos, desde que renunciou ao sonho de emigrar para o deserto, ao activismo que para ele foi a única maneira de esquecer

as miragens de céus secos, areias azuis. Sorri com a sua ingenuidade anos atrás, quando convidou os comerciantes árabes. Por que nunca soube aprender os segredos

daquela vida?

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Nunca soube. Resta-lhe o seu mundo, agora aberto aos que lhe pedem guarida. Virão novas esculturas amargas, entre bailarinas e ladrões, rostos agudos ou deformados,

comerciantes e traficantes, mãos ágeis ou indolentes, operários e desejos de artistas.

Enquanto segue pela janela os movimentos de Humberta, continua a traçar letras regulares no caderno de capa dura. Estão ali agora os registos dos anos de febre,

de descrença, de horror aos totalitarismos, de nostalgia pelas sucessivas miragens, de solidão incrustada na pele.

Dá por si com saudades do filho que Iria teve e que morreu antes de completar um ano, dos outros que nunca vieram, dos homens caídos à sua volta. Até das irritações

meticulosas do antigo secretário, reformado já nos anos em que a fortuna se dissipara. Ou das jogadas dos primos para irem ocupando os ramos da empresa. Cedeu tudo.

Ficou apenas com a casa e os terrenos, a biblioteca e os papéis da primeira mulher, do irmão, tudo o que alguém poderá tomar como seus.

Resta-lhe apenas tentar defender o que lhe resta de quotidiano, resguardá-lo da curiosidade de todos os que ainda gravitam à sua volta e que acabarão por transformar

suposições em certezas. A última que lhe chegou aos ouvidos foram palpites sobre quem engravidou Nila e a fez morrer seis anos atrás, em manhã triste de chuva miudinha,

rasgada com a filha pequena ainda presa ao cordão umbilical.

Chamem-lhe Sora, dissera antes de deixar cair a cabeça. Ninguém entendeu as razões daquele nome estranho, mas respeitou-se aquele último desejo.

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TERESA SALEMA

Quanto tempo de trabalho levou para perceber que a ameaça da Informe parte não das cozinhas pardas das mulheres mas das suas próprias enfermidades de vontade? Não

conseguiu nunca secar o pântano para construir a sua cidade, apesar das promessas dos geólogos. Já não pode fintar o avanço dos anos de gelo, a perda dos contornos

firmes na memória e no corpo.

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Não levou até ao fim o projecto no interior do rochedo. Apesar disso, sente-se apaziguado. Olha pela janela ao ouvir os sons agudos, por vezes rasando a histeria,

dessa que agora diz chamarse Humberta e se prepara para sobreviver a toda a espécie de correntes, dobrando-se aos esfregões do chão e repetindo os seus cantares

de sílabas trocadas ao remexer o panelão da sopa.

Não duvida que ela ainda durará décadas. Para si próprio, anseia agora por apenas mais uns dias, até que acabem os chuviscos e ele possa distinguir de novo as formas

frescas e cores ocres de Outono que tanto lhe agradavam. Ser-lhe-ão dados? Estremece de frio e parece-lhe ouvir o chão a tremer aos passos das brincadeiras.

Não correm ventos de feição aos nomes, murmura entre dentes. Ainda bem. Para o que der e vier, fica tudo no papel. Mas que o decifrem primeiro.

A frase sai-lhe sem que ele lhe perceba bem o sentido, mas fá-lo sorrir, confortado por um bafo vindo não sabe donde.

Um arrastar de gritos vem interromper a sua reconciliação com o mundo.

Contra a corrente de um braço de mulher que o tenta impedir, Flurio passa pela porta o nariz de pássaro enrugado, a cabeleira branca e teimosa, para queixarse de

que lhe estão a ocupar o pavilhão, que não pode responsabilizar-se pelos actos dos filhos, que ouve já dizer que querem montar milícias, vigilâncias.

Fala, diz Soledo, estendendo a mão à mulher. Envergonhada, limpa as mãos para lembrar ao marido os anos que eles próprios passaram ao relento, comidas breves, paredes

de pano.

Emílio acha que têm os dois razão. Não lhe apetece arbitrar entre esses dois que apelam a uma figura de

BENAMONTE

patriarca, enquanto eleja não acredita no papel que representou durante todos aqueles anos, cada vez com menos convicção. Patriarca foi seu próprio pai, com a autoridade

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imposta pela escassez. Mesmo o irmão, sempre mordido pela doença, sem deixar filhos, mais as suas preocupações filantrópicas, fora uma figura patriarcal. Ele, Emílio,

apenas se soubera gerir a si próprio, de humores desencontrados.

Saiam, saiam todos, profere numa cólera repentina. Estão a fatigar-me.

Passa à biblioteca, arrastando a perna com uma velocidade que atemoriza Leónia e Sora, entretidas a efabular as mil e uma noites. Escondidas por detrás do pesado

reposteiro, vêem-no atiçar a lareira, pegar em rolos de papéis e deitá-los às chamas em lenta obsessão, cantando uma dessas melodias repetitivas de Humberta, em

compasso de tear ou de locomotiva resfolgante entre cozinha e canteiros, falagui malakiá.

Quando a lareira está quase a apagar-se, Soledo parece acometido de um novo ímpeto de fúria. Pragueja, diz palavrões que deliciam as crianças, rezas de minarete,

e faz menção de atirar ao borralho mais aquele molho de cadernos com capa mosqueada e escura, folhas grossas. Desapareçam todos os vestígios, diz em voz aguda,

quase histérica.

Mas logo reconsidera, pára, começa a rir. Refaz os laços e guarda tudo no armário, deixando o riso engasgar sílabas e -melodia até lhe morrer na garganta.

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