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COLETÂNEA DE CONTOS 7º ANO Nome: _________________________________________________ 7º ano ________

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COLETÂNEA DE CONTOS7º ANO

Nome: _________________________________________________7º ano ________

CARACTERÍSTICAS E ELEMENTOS DO CONTO

Page 2: portuguesvillare.webnode.com.br · Web viewToda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as

O que é conto? O Conto é uma narrativa curta, que gira em torno de um único conflito, tomado já próximo de seu desenlace, e apresenta uma limitação de personagem, de tempo e espaço.

Do verbo latino contare (falar), o conto foi, em sua origem, uma narração oral, podendo ser de um fato verídico ou lendário. Não se sabe ao certo quando ocorreu a passagem da pura narração para a escritura.

Toda narrativa literária é constituída de elementos básicos essenciais que são: enredo, personagem, tempo, espaço e narrador.

ENREDO - é a sequência de eventos. Envolve a ação, o desempenho das personagens. O enredo é também chamado de trama, conflito, intriga e pode mudar o rumo dos acontecimentos.

Toda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as coisas começam a acontecer.

O enredo tradicional, geralmente chamado de linear, apresenta quatro etapas principais que são: apresentação, complicação, clímax e o desfecho.

- Apresentação - apresenta os personagens principais, a história é situada no tempo e no espaço e começa o conflito.

- Complicação - ocorre quando a trama vai se complicando e os personagens vão se envolvendo cada vez mais no conflito.

- Clímax - é o ponto máximo, é o ponto culminante da história. - Desenlace - é o momento em que se resolve o conflito.

PERSONAGENS - são os agentes, as pessoas que estão envolvidas na narrativa, os que desempenham as funções ativas da narrativa.

Cada personagem tem uma função na história. Assim, as personagens vão se desenvolvendo, vão dizendo o que pensam, o que sentem, o que fazem, o que não fazem, enfim, o que acontece com eles. Geralmente os personagens imitam seres humanos, mas podem também surgir histórias em que representam outros seres como animais, robôs, seres extraterrestres, os elementos da própria natureza, princípios éticos e outros seres.

Tipologia dos personagens: podem ser classificadas de acordo com o papel que elas exercem na história; podendo ser protagonista, antagonista, secundário e figurante.

- Protagonista - é o personagem principal do episódio. - Antagonista - é o personagem que gera o conflito, que cria o clima de tensão, é aquele que se opõe

ao personagem principal. - Secundário - são as personagens que exercem certa influência no desenrolar dos acontecimentos e

auxiliam o protagonista e antagonista, também são chamados de coadjuvantes. - Figurante - são os que ajudam a compor o cenário e não têm quase importância nenhuma na história.

TEMPO - Toda narrativa tem um tempo de duração, desenvolve-se dentro desse determinado tempo, gerando o movimento da história.

ESPAÇO - é o cenário onde a história acontece, podendo o espaço ser físico, sociocultural e psicológico.

NARRADOR - é a voz que conta a história. Existem dois tipos de narrador: o narrador em primeira pessoa e o narrador em terceira pessoa.

- Narrador em primeira pessoa é aquele que participa da história, é também personagem. - Narrador em terceira pessoa é o narrador que conta a história de outro, ele não participa da história.

(Adaptado do site: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2010/2010_unioeste_port_pdp_celina_de_andrade.pdf)

Coletânea de Contos – 7º ano (2017) – Professora Zaine Santos 2

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VENHA VER O PÔR DO SOL

Lygia Fagundes Telles

ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num

largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito

jovial de estudante.

– Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

– Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar

destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do taxi lá longe,

jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.

– Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora

me aparece nessa elegância… Quando você andava comigo, usava uns

sapatões de sete-léguas, lembra?

– Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? –

perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. – Hem?!

– Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço rindo.

– Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado… Juro que eu

tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?

– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela

ferrugem.

– Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram,

olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua

ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. – Ricardo e suas ideias. E

agora? Qual é o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

– Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o

pôr do sol mais lindo do mundo.

Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.

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– Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus… Fabuloso, fabuloso!… Me implora um último encontro, me

atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para

quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

– Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu

apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a

dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…

– E você acha que eu iria?

– Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos

conversar um instante numa rua afastada… - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as

pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus

olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse

instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.

Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir.

– Quer dizer que o programa… E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

– Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

– Mas eu pago.

– Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito

decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

– Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos

pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a vida.

– Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem

lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele,

abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que

estivemos aqui.

– É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não

suporto enterros.

– Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos

ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar

o braço, não tenha medo…

O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira

pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos

esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da

morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam

sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada

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mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou

outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.

– É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou

ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo,

chega.

– Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza

não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa

ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.

– Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

– Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

– É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

– Ele é tão rico assim?

– Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente?

Vamos até o Oriente, meu caro…

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em

redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o

sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

– Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

– Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã… Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade

daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto,

imagine um ano.

– É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que

romance você está lendo agora. Hem?

– Nenhum – respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje

despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo. - Pois sim.

Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção

dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha

brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as

raízes, depois as folhas… Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem

isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

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– Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só

mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. – Chega Ricardo,

quero ir embora.

– Mais alguns passos…

– Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei

tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

– A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta

alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: – Sabe,

Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os

domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e

minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas

estão mortas.

– Sua prima também?

– Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns

olhos… Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário

como vocês duas… Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos,

como os seus.

– Vocês se amaram?

– Ela me amou. Foi a única criatura que… - Fez um gesto. – Enfim não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

– Eu gostei de você, Ricardo.

– E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

– Esfriou, não? Vamos embora.

– Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia

num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu

um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar

meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina

ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias

já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na

parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo

em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

– Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.

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– Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha

dedicação, certo?

– Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão.

As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade

do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo

cinzento.

– E lá embaixo?

– Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a

portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de

bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

– Todas estas gavetas estão cheias?

– Cheias?…- Sorriu. - Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha

mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado,

embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

– Vamos, Ricardo, vamos.

– Você está com medo?

– Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo.

Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado:

– A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas

antes de morrer… Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?… -

Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não, não é que fosse bonita, mas os olhos…Venha ver,

Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

– Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando…

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

– Pegue, dá para ver muito bem… - Afastou-se para o lado. - Repare nos olhos.

– Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça… - Antes da chama se apagar, aproximou-a

da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil

oitocentos e falecida… - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua

namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…

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Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o

olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio

inocente, meio malicioso.

– Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela,

subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à

chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

– Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco. - Detesto

esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses.

Brincadeira mais estúpida!

– Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando

devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

– Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com

mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de

lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos,

abra…

Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas

abertas em leque.

– Boa noite, Raquel.

– Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… – gritou ela, estendendo os braços por entre as grades,

tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em

folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o

olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a

face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.

– Não, não…

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas

escancaradas.

– Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam

pesadamente numa expressão embrutecida.

– Não…

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos

pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

– NÃO!

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Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal

sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das

profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou

atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a

ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE

Marina Colassanti

Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e

parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse

os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou

todas as joias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a

tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.

Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela.

Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.

Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos

cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.

Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do

desejo inflamado que tivera por ela.

Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim

para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos. Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava

mais em lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de

vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.

A CAOLHA

Júlia Lopes de Almeida

A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado, braços compridos,

delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e

pelo trabalho; unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o

louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento; boca descaída, numa

expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.

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O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua altura e extraordinária

magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito horrível: haviam lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra

descera mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.

Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação incessante de pus que

a tornava repulsiva aos olhos de toda gente.

Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa fábrica de alfaiate; ela lavava a

roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era

pequeno, comia os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia

crescendo, ia-se a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa comida; até que um

dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora…

Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.

Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.

Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe pagasse com um beijo todas as

amarguras da existência?

Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para o triste coração de mãe!

Mas… os beijos foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos

braços e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita, aquela onde não havia

vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!

Ela compreendia tudo e calava-se.

O filho não sofria menos.

Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os colegas, que o viam ir e vir

com a mãe, a chamá-lo – o filho da caolha. Aquilo exasperava-o; respondia sempre:

– Eu tenho nome!

Os outros riam e chacoteavam-no; ele se queixava aos mestres, os mestres ralhavam com os

discípulos, chegavam mesmo a castigá-los – mas a alcunha pegou. Já não era só na escola que o chamavam

assim.

Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou outra janela dizerem: o filho da caolha! Lá vai o filho da

caolha! Lá vem o filho da caolha!

Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos irmãos, feriam o

coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!

As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lanche, aprenderam depressa a

denominá-lo como os outros, e, muitas vezes, afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas,

diziam, estendendo uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:

– Taí, isso é para o filho da caolha!

O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras; tanto mais que os

outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num estribilho já combinado:

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– Filho da caolha, filho da caolha!

O Antonico pediu à mãe que não o fosse buscar à escola; e muito vermelho, contou-lhe a causa;

sempre que o viam aparecer à porta do colégio os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos

para o Antonico e faziam caretas de náuseas.

A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.

Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os condiscípulos, que o

intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro

aprenderam depressa a chamá-lo – o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.

Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios. Arranjou então um lugar

de caixeiro de venda: os seus colegas agruparam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente

mandar o caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta nos

sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre Antonico!

Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos, dormindo às

moscas, sempre zangado e sempre bocejante! Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe;

esta poupava-o: tinha medo que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem sequer

o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de

alfaiate. A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não deixasse os

aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!

Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros; quando o

mestre dizia: sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco

essa suspeita, ou esse sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.

Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra pretensão

de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem

grandes mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! Amava como um louco a linda moreninha da

esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludos e boca fresca como um botão de

rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia, em

que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na

face esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!

Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! Tornara a encontrar o seu querido filho! Pôs-se

a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia consigo:

– Sou muito feliz… o meu filho é um anjo!

Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia seguinte

mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar. Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas

conjecturas.

Ao princípio pensava: – É o pudor.

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Page 12: portuguesvillare.webnode.com.br · Web viewToda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as

Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim recebeu uma carta em que a bela moreninha

confessava consentir em ser sua mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações

confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por filho da caolha, e

bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser alcunhada em breve de – nora da caolha, ou coisa

semelhante!

O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse pensamentos tão

práticos!

Depois o seu rancor se voltou para a mãe.

Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua infância, quebrara-lhe

todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter

nascido de mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; iria considerar-se humilhado

continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em quando vê-la à noite,

furtivamente…

Salvava assim a responsabilidade do protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada a

felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor…

Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa levava o seu projeto e a decisão de o expor à mãe.

A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo engordurado. O Antonico

pensou: “Ao dizer a verdade eu havia de sujeitar minha mulher a viver em companhia de… uma tal criatura?”

Estas últimas palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha levantou para ele o

rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:

– Limpe a cara, mãe…

Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:

Afinal, nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!

– Foi uma doença, – respondeu sufocadamente a mãe – é melhor não lembrar isso!

– E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?

– Porque não vale a pena; nada se remedeia…

– Bem! Agora escute: trago-lhe uma novidade. O patrão exige que eu vá dormir na vizinhança da

loja… já aluguei um quarto; a senhora fica aqui e eu virei todos os dias saber da sua saúde ou se tem

necessidade de alguma coisa… É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!…

Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo como todos os

rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado

naquelas palavras toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olhar desconfiado e medroso.

A caolha se levantou e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com doloroso desdém:

– Embusteiro! O que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! Que eu também já sinto vergonha de

ser mãe de semelhante ingrato!

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O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até então sempre paciente

e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a

caolha.

Ela o acompanhou, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se cambaleante à parede

do corredor e desabafou em soluços.

O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.

Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem; via o rosto colérico

da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-

lhe até o fundo do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho – murcho e sujo de pus; via a sua atitude

altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o

som cavernoso da voz, e o grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que

lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de outra

semelhante.

Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a

procurava.

Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo o que houvera.

A madrinha escutou-o comovida; depois disse:

– Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade inteira; ela não

quis, aí está!

– Que verdade, madrinha?

Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho – queria mandar-lhe a roupa limpinha. A

infeliz se arrependera das palavras que dissera e tinha passado a noite à janela, esperando que o Antonico

voltasse ou passasse apenas… Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho

entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.

A madrinha do Antonico começou logo:

– O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui ontem e eu aproveito a

ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias ter-lhe dito!

– Cala-te! – murmurou com voz apagada a caolha.

– Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha, rapaz! Quem cegou a tua mãe foste tu!

O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:

– Ah, não tiveste culpa! Eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste na mãozinha um

garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a catástrofe, tu o enterraste pelo olho esquerdo!

Ainda tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!

O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se rapidamente dele,

murmurando trêmula:

– Pobre filho! Vês? Era por isto que eu não queria dizer nada!

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BRUXAS NÃO EXISTEM

Moacyr Scliar

Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo

maquinando coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher

muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome

era Ana Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa". 

Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma

enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas

tínhamos a certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande

caldeirão. 

Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar

frutas e quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos

atrás dela gritando "bruxa, bruxa!".

 Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não

sabíamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao

contrário do que sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da

frente. Sob comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava

bastante, e com muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os

chifres ficaram presos na cortina. 

- Vamos logo - gritava o João Pedro -, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato

em que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa,

empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último. 

E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na

perna e não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa,

caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma

estava longe, ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida

descarregaria em mim sua fúria. 

Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas

aí viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e

começou a examiná-la com uma habilidade surpreendente. 

- Está quebrada - disse por fim. - Mas podemos dar um jeito. Não se

preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital.

Confie em mim.

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Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma

tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma

ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu. 

Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas

eu estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma

senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.

UM PROBLEMA DIFÍCIL

Pedro Bandeira

Era um problema dos grandes. A turminha reuniu-se para discuti-lo e Xexéu voltou para casa

preocupado. Por mais que pensasse, não atinava com uma solução. Afinal, o que poderia ele fazer para

resolver aquilo? Era apenas um menino!

Xexéu decidiu falar com o pai e explicar direitinho o que estava

acontecendo. O pai ouviu calado, muito sério, compreendendo a gravidade

da questão. Depois que o garoto saiu da sala, o pai pensou um longo

tempo. Era mesmo preciso enfrentar o problema. Não estava em suas

mãos, porém, resolver um caso tão difícil. 

Procurou o guarda do quarteirão, um sujeito muito amigo que já era

conhecido de todos e costumava sempre dar uma paradinha para aceitar

um cafezinho oferecido por algum dos moradores. 

O guarda ouviu com a maior das atenções. Correu depois para a delegacia e expôs ao delegado tudo

o que estava acontecendo. 

O delegado balançou a cabeça, concordando. Sim, alguma coisa precisava ser feita, e logo! Na

mesma hora, o delegado passou a mão no telefone e ligou para um vereador, que costumava sensibilizar-se

com os problemas da comunidade. 

Do outro lado da linha, o vereador ouviu sem interromper um só instante. Foi para a prefeitura e pediu

uma audiência ao prefeito. Contou tudo, tintim por tintim. O prefeito ouviu todos os tintins e foi procurar um

deputado estadual do mesmo partido para contar o que havia. 

O deputado estadual não era desses políticos que só se lembram dos problemas da comunidade na

hora de pedir votos. Ligou para um deputado federal, pedindo uma providência urgente. O deputado federal

ligou para o governador do estado, que interrompeu uma conferência para ouvi-lo.

O problema era mesmo grave, e o governador voou até Brasília para pedir uma audiência ao ministro. 

O ministro ouviu tudinho e, como já tinha reunião marcada com o presidente, aproveitou e relatou-lhe o

problema. 

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O presidente compreendeu a gravidade da situação e convocou uma reunião ministerial. O assunto foi

debatido e, depois de ouvir todos os argumentos, o presidente baixou um decreto para resolver a questão de

uma vez por todas. 

Aliviado, o ministro procurou o governador e contou-lhe a solução. O governador então ligou para o

deputado federal, que ficou muito satisfeito. Falou com o deputado estadual, que, na mesma hora, contou

tudo para o prefeito. O prefeito mandou chamar o vereador e mostrou-lhe que a solução já tinha sido

encontrada. 

O vereador foi até a delegacia e disse a providência ao delegado. O delegado, contente com aquilo,

chamou o guarda e expôs a solução do problema. O guarda, na mesma hora, voltou para a casa do pai do

Xexéu e, depois de aceitar um café, relatou-lhe satisfeito que o problema estava resolvido. 

O pai do Xexéu ficou alegríssimo e chamou o filho. 

Depois de ouvir tudo, o menino arregalou os olhos: 

- Aquele problema? Ora, papai, a gente já resolveu há muito tempo!

O PRIMEIRO BEIJO

Clarice Lispector

Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam

tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

  - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz

com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou

uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:

- Sim, já beijei antes uma mulher.

- Quem era ela? - perguntou com dor.

  Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer. 

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos

garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca

bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e

sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase

pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era

difícil no meio da balbúrdia dos companheiros. 

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem

alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca. 

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente

engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede

enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

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A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz

secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava. 

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por

instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas,

enquanto sua sede era de anos. 

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus

olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando,

farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o

chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele

conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos. 

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O

primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou

todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos. 

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma

mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira

nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado

dessa boca, de uma boca para outra. 

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido

vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado. 

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo

estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia.

Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma

tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo,

espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com

sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil. 

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o

encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele... 

Ele se tornara homem.

UMA VELA PARA DARIO

Dalton Trevisan

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Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo

até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva.

Descansa na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não

se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.

Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede

aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe

tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.

Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam

de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na

calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva

ou cachimbo a seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina.

Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a

ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na

gravata. 

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do

quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobrem o

rosto, sem que façam um gesto para espantá-las. 

Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e,

agora, comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em

sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. 

Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com

vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca.

Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na

carteira é de outra cidade. 

Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora,

ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a

multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado

dezessete vezes. 

O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a

aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar

o rabecão.

A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas

para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.  

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Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue

fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se espalha, as mesas

do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há

muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça

agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva,

que volta a cair.

O GATO PRETO

Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que

estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus sentidos

rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas

amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma. Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo,

simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de eventos nada mais do que domésticos. Através

de suas consequências, esses acontecimentos me terrificaram,

torturaram e destruíram. Entretanto, não tentarei explicá-los

nem justificá-los. Para mim significaram apenas Horror, para

muitos parecerão menos terríveis do que góticos ou grotescos.

Mais tarde, talvez, algum intelecto surgirá para reduzir minhas

fantasmagorias a lugares-comuns – alguma inteligência mais

calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta

perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto, nada

mais que uma sucessão ordinária de causas e efeitos muito

naturais. 

Desde a infância observaram minha docilidade e a

humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de

fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus

companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim,

meus pais permitiam que eu criasse um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo

com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade

de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes

de prazer. Todos aqueles que estabeleceram uma relação de afeto com um cão inteligente e fiel dificilmente

precisarão que eu me dê ao trabalho de explicar a natureza da intensidade da gratificação que deriva de tal

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relacionamento. Existe alguma coisa no amor altruísta e pronto ao sacrifício de um animal que vai diretamente

ao coração daquele que teve ocasiões frequentes de testar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade dos

homens. 

Casei-me cedo e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição que não era muito

diferente da minha. Observando como gostava de animais domésticos, ela não perdeu oportunidade para me

trazer representantes das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros, peixinhos dourados, um belo cão,

coelhos, um macaquinho e um gato. 

Este último era um animal notavelmente grande e belo, completamente preto e dotado de uma

sagacidade realmente admirável. Ao falar de sua inteligência, minha esposa, cujo coração não era afetado

pela mínima superstição, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos eram

bruxas disfarçadas. Não que ela jamais mencionasse esse assunto seriamente – e se falo nele é

simplesmente porque me recordei agora do fato. 

Pluto – esse era o nome do gato – era minha mascote favorita e era com ele que passava mais tempo.

Era só eu que o alimentava e o animal me acompanhava em qualquer parte da casa em que eu fosse. De

fato, era difícil impedi-lo de sair à rua comigo e acompanhar-me. 

Nossa amizade perdurou desta forma por diversos anos, durante os quais meu temperamento geral e

meu caráter – devido à interferência da Intemperança criada pelo Demônio – tinham (meu rosto se cobre de

rubor ao confessá-lo) sofrido uma mudança radical para pior. A cada dia que se passava eu ficava mais mal-

humorado, mais irritável, menos interessado nos sentimentos alheios. Permitia-me usar linguagem grosseira

com minha própria esposa. Após um certo período de tempo, cheguei a torná-la alvo de violência pessoal.

Naturalmente, minhas mascotes sentiram a diferença em minha disposição. Não apenas as negligenciava,

como chegava a tratá-las mal. Mas com relação a Pluto, entretanto, eu ainda conservava suficiente

consideração para conter-me antes de maltratá-lo, ao passo que não tinha escrúpulos em judiar dos coelhos,

do macaco e até mesmo do cão quando, por acidente ou até mesmo por afeição, eles se atravessavam em

meu caminho. Porém minha doença cresceu cada vez mais – pois que doença é pior que o vício do

alcoolismo? – e, finalmente, até Pluto, que estava agora ficando velho e, em consequência, um tanto

impertinente, até Pluto começou a experimentar os efeitos de meu mau humor. 

Uma noite, ao chegar em casa bastante embriagado, depois de um de meus passeios sem destino

através da cidade, imaginei que o gato estava evitando minha presença. Agarrei-o à força; e então, assustado

por minha violência, ele infligiu uma pequena ferida em minha mão com os dentinhos. A fúria de um demônio

possuiu-me instantaneamente. Nem sequer conseguia reconhecer a mim mesmo. Minha alma original parecia

ter fugido imediatamente de meu corpo; e uma malevolência mais do que satânica, alimentada pelo gim,

assumiu o controle de cada fibra de meu corpo. Tirei um canivete do bolso de meu colete, abri a lâmina,

agarrei a pobre besta pela garganta e deliberadamente arranquei da órbita um de seus olhos. Encho-me de

rubor e meu corpo todo estremece enquanto registro esta abominável atrocidade. 

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Quando a manhã me trouxe de volta à razão – depois que o sono tinha apagado a maior parte do fogo

de minha orgia alcoólica –, experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime que havia

cometido. Mas este sentimento foi no máximo débil e elusivo e a alma permaneceu intocada. Novamente

mergulhei em meus excessos e logo afoguei na bebida toda lembrança de minha má ação. 

Enquanto isso, o gato lentamente se recuperou. A órbita vazia do olho perdido apresentava,

naturalmente, uma aparência assustadora, mas ele não parecia estar sofrendo mais nenhuma dor. Andava

pela casa, como de costume, mas, como se poderia esperar, fugia de mim em extremo terror cada vez que

chegava perto dele. Ainda me restava uma certa parte de meu ânimo anterior e a princípio lamentei que agora

me detestasse tanto uma criatura que já me havia amado. Mas este sentimento logo deu lugar à irritação. E

então fui acometido, como se fosse para minha queda final e irrevogável, pelo espírito da Perversidade. A

própria filosofia não estudou este espírito. E todavia, assim como tenho certeza de possuir uma alma vivente,

é minha convicção que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das

faculdades primárias e indivisíveis, um dos sentimentos que dão origem e orientam o caráter do Homem.

Quem já não se flagrou uma centena de vezes a cometer uma ação vil ou meramente tola por nenhuma razão

exceto sentir que não devia? Não temos todos nós uma inclinação perpétua e contrária a nosso melhor

julgamento para violar as Leis, simplesmente porque compreendemos que são obrigatórias? Pois foi este

espírito de Perversidade, digo eu, que veio a causar minha queda final. Foi este anseio insondável da alma,

que anela por prejudicar a si mesma, por oferecer violência à sua própria natureza, por praticar o mal pelo

amor ao mal e nada mais, que me impulsionou a prosseguir e finalmente consumar a injúria que tinha infligido

sobre a pequena besta inofensiva. Uma manhã, a sangue-frio, passei-lhe um laço ao redor da garganta e o

pendurei no galho de uma árvore – enforquei-o com lágrimas nos olhos, sentindo ao mesmo tempo o remorso

mais amargo em meu coração –, assassinei o pobre gato porque sabia que ele me tinha amado e porque eu

entendia muito bem que ele não me tinha dado razão alguma de queixa – matei-o porque sabia que ao fazê-lo

estava cometendo um pecado – um pecado mortal que iria manchar minha alma imortal ao ponto de colocá-la

– se isso fosse possível – fora do alcance até mesmo da infinita misericórdia do Deus Mais Misericordioso e

Mais Terrível. 

Na noite seguinte ao dia em que pratiquei esta ação cruel, fui despertado do sono por gritos de

“Fogo!”. As cortinas de meu leito estavam em chamas. A casa inteira estava ardendo. Foi com grande

dificuldade que minha esposa, uma criada e eu mesmo escapamos da conflagração. A destruição foi

completa. Todos os meus bens materiais foram consumidos e a partir desse momento entreguei-me ao

desespero. 

Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre o desastre e a

atrocidade. Mas estou detalhando um encadeamento de fatos – e não desejo deixar imperfeito um só dos elos

da corrente. No dia que se seguiu ao incêndio, visitei as ruínas. Todas as paredes tinham desabado, à

exceção de uma única. Esta exceção foi a de um aposento interno, uma parede não muito grossa, que se

erguia mais ou menos na metade da casa, justamente aquela contra a qual descansava a cabeceira de minha

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Page 22: portuguesvillare.webnode.com.br · Web viewToda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as

cama. O próprio reboco tinha ali, em grande parte, resistido à ação do fogo – segundo julguei, porque era feito

de argamassa nova, talvez ainda um pouco úmida. Em torno desta parede estava reunida uma grande

multidão; e muitas pessoas pareciam estar examinando um trecho especial dela, com minuciosa atenção. As

palavras “estranho”, “singular” e outras semelhantes excitaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se

estivesse gravado em bas relief1 sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem estava

desenhada com uma precisão realmente maravilhosa. Havia uma corda esboçada ao redor do pescoço do

animal. 

Da primeira vez que contemplei esta aparição – porque dificilmente poderia chamá-la de algo menos

assombroso –, meu espanto e meu terror foram extremos. Mas, finalmente, o raciocínio e a reflexão vieram

em meu amparo. O gato, segundo recordava, tinha sido enforcado em um jardim adjacente à casa. Logo que

fora dado o alarme de incêndio, este jardim ficou imediatamente cheio de basbaques, um dos quais

provavelmente tinha cortado a corda que prendia à arvore o gato e jogado o animal dentro de meu quarto

através de uma janela aberta. Talvez até mesmo a intenção fosse boa, quem sabe queriam acordar-me do

sono e lançassem o animal janela adentro para esse fim. A queda das outras paredes tinha comprimido a

vítima de minha crueldade na própria substância do reboco recém-aplicado; o cal contido nele, misturado à

amônia proveniente da carcaça, com o calor das chamas, tinha então realizado o retrato que contemplava

agora. 

Embora eu satisfizesse minha razão assim rapidamente, se bem que não tivesse podido acalmar

totalmente minha consciência e tentasse desse modo descartar o fato assombroso que acabei de descrever,

isso não impediu que produzisse forte impressão sobre minha imaginação. Durante meses não conseguia

livrar minha visão interna do fantasma do gato; e, durante esse período, retornou a meu espírito uma espécie

de sentimento que se assemelhava a remorso, mas não era exatamente isso. Cheguei ao ponto de lamentar a

perda do animal e a procurar, nos ambientes ordinários que agora habitualmente frequentava, outra mascote

da mesma espécie, cuja aparência fosse semelhante e pudesse ocupar o vazio deixado pela primeira. 

Uma noite eu estava sentado, entorpecido de tanto beber, em um botequim da pior espécie, quando

minha atenção foi subitamente atraída para um objeto preto que repousava sobre a tampa de uma das

imensas bordalesas de gim ou de rum que constituíam o principal mobiliário da peça. Há vários minutos eu já

contemplava fixamente a tampa desse barril, e o que agora me causava surpresa era o fato de que não

houvesse percebido antes o objeto que se encontrava sobre ele. Aproximei-me a passos vacilantes, estendi a

mão e toquei-o. Era um gato preto – um animal muito grande –, tão grande quanto Pluto e extremamente

parecido com ele em todos os detalhes, salvo um: Pluto não tinha um pelo branco sequer em qualquer porção

de seu corpo; mas este gato tinha uma mancha branca bastante grande, embora de formato indefinido,

cobrindo-lhe quase inteiramente o peito. 

Assim que o toquei, o animal ergueu-se imediatamente, ronronou bem alto, esfregou-se contra minha

mão e pareceu encantado com minha atenção. Tinha encontrado a própria criatura que vinha procurando.

1 Baixo-relevo

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Page 23: portuguesvillare.webnode.com.br · Web viewToda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as

Imediatamente fui falar com o taverneiro e ofereci-me para comprar o bichano, mas ele disse que o animal

não lhe pertencia – que nunca o tinha visto antes e que não fazia a menor ideia de onde tinha vindo ou a

quem pudesse pertencer. 

Continuei com minhas carícias, e, quando me dispus a ir para casa, o animal demonstrou estar

disposto a me acompanhar. Permiti-lhe que o fizesse; de fato, durante o caminho, ocasionalmente parava,

curvava-me e fazia-lhe carícias. Quando chegamos à casa em que agora eu morava, ele familiarizou-se de

imediato, adquirindo em seguida as boas graças de minha esposa. 

  Quanto a mim, para meu desapontamento, logo descobri que não gostava do animal. Isto era

justamente o reverso do que havia antecipado; porém – não sei como nem por que – o evidente prazer que o

gato achava em minha companhia me aborrecia e enojava. Lenta e progressivamente, estes sentimentos de

desgosto e aborrecimento se transformaram em rancor e ódio. Evitava a criatura, sempre que podia; uma

certa sensação de vergonha e a lembrança de meu antigo feito de crueldade evitaram que eu o machucasse

fisicamente. Durante algumas semanas, eu não bati nele nem o maltratei violentamente; mas gradualmente –

muito gradualmente – comecei a encará-lo com uma repugnância indescritível e a fugir silenciosamente de

sua presença odienta, como se estivesse tentando escapar do sopro sufocante de um pântano ou do hálito

pestilento de uma praga. 

Sem a menor dúvida, o que originou meu rancor pelo animal foi a descoberta, logo na manhã seguinte

à noite em que o trouxe para casa, de que ele, exatamente como Pluto, também tivera um dos olhos

arrancado. Esta circunstância, entretanto, só levou minha esposa a gostar ainda mais dele, a qual, conforme

relatei anteriormente, possuía em alto grau aquela humanidade de sentimentos que em épocas passadas fora

também um de meus traços característicos e a fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros. 

À medida que aumentava minha aversão pelo gato, seu amor por mim parecia crescer na mesma

proporção. Seguia meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer o leitor compreender. Onde quer

que me assentasse, vinha enroscar-se embaixo de minha cadeira ou saltar sobre meus joelhos, cobrindo-me

de carinhos nojentos. Se eu me erguesse para caminhar, ele se intrometia entre meus pés e quase me fazia

cair; ou, então, cravava suas unhas longas e afiadas em minhas roupas e procurava, desta forma, trepar até

chegar a meu peito. Nessas ocasiões, embora eu ansiasse por rebentá-lo à pancada, ainda me sentia incapaz

de fazê-lo, em parte pela recordação de meu crime anterior, mas especialmente – confessarei de imediato –

porque tinha absoluto pavor daquele animal. 

Este pavor não era exatamente um temor da possibilidade de algum dano físico, todavia não sou

capaz de defini-lo de outra forma. Estou quase envergonhado de admitir – sim, mesmo nesta cela de

condenado tenho quase vergonha de admitir – que o terror e horror que o animal me inspirava tinham sido

muito aumentados por uma das mais ilusórias quimeras que teria sido possível conceber. Minha esposa me

tinha chamado a atenção, mais de uma vez, para o caráter da mancha de pelo branco que já mencionei e que

constituía a única diferença aparente entre o estranho animal e aquele que eu tinha morto. O leitor há de

lembrar que esta marca, embora grande, era originalmente muito indefinida; porém, muito lentamente, de uma

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Page 24: portuguesvillare.webnode.com.br · Web viewToda narrativa se constitui em função de um conflito, uma situação problema. É em torno dessa situação problema ou conflito que as

forma quase imperceptível, uma forma que por muito tempo minha Razão lutou para considerar como

meramente fantasiosa, acabou por assumir um contorno rigorosamente distinto. Era agora a representação de

um objeto tal que a simples ideia de mencioná-lo me faz tremer. Era por isso, acima de tudo, que eu detestava

e temia tanto aquele monstro e teria me livrado dele, se ao menos eu ousasse. Essa imagem, escrevo agora,

era a imagem de uma coisa horrível, uma coisa apavorante... a imagem de uma FORCA! Ah, melancólico e

terrível instrumento de Horror e de Crime – de Agonia e de Morte! 

E agora eis que me encontrava realmente desgraçado, um miserável além da desgraça e da miséria

da natureza humana. E era um animal sem alma, cujo companheiro eu tinha destruído com desprezo, era um

animal sem alma que originava em mim – eu, que era um homem, criado à imagem do Deus Altíssimo – tanta

angústia intolerável! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite eu era mais abençoado pelo Repouso! Durante o

dia a criatura não me deixava por um único momento; e, de noite, eu me acordava de hora em hora,

despertado de sonhos cheios de um pavor indescritível, para encontrar a respiração quente daquela coisa

soprando diretamente sobre meu rosto e seu enorme peso – um pesadelo encarnado do qual eu não poderia

jamais me acordar, oprimindo e esmagando eternamente o meu coração! 

Sob a pressão de tormentos assim, os débeis traços que restavam de minha boa natureza

sucumbiram totalmente. Os maus pensamentos se tornaram meus amigos íntimos, meus únicos amigos, logo

os pensamentos mais ímpios e mais maléficos. O mau humor de minha disposição habitual transformou-se

em um rancor indefinido voltado para todas as coisas e para toda a humanidade; e os acessos de fúria

súbitos, frequentes e incontroláveis aos quais eu agora me abandonava cegamente e sem o menor remorso

eram descarregados – ai de mim! – precisamente sobre minha esposa, a sofredora mais paciente e mais

constante, que nunca emitia sequer uma palavra de queixa ou de revolta contra mim. 

Um dia ela me acompanhou, com a intenção de executar alguma tarefa doméstica, ao porão do velho

edifício em que nossa pobreza atual nos obrigava a morar. O gato me seguiu pelos degraus íngremes e,

quando me fez tropeçar e quase me levou a cair escada abaixo, deixou-me exasperado a ponto de

enlouquecer. Erguendo um machado, esquecido em minha cólera do medo infantil que até então havia

impedido que levantasse um dedo contra ele, dirigi um golpe ao animal que, sem a menor dúvida, teria sido

fatal se tivesse acertado onde eu queria. Porém a machadada foi impedida pela mão de minha esposa a

segurar-me o braço. Esta interferência me lançou em uma raiva mais do que demoníaca: arranquei o braço de

seu aperto e, com um único golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem

soltar um único gemido. 

Tendo cometido este assassinato pavoroso, imediatamente, sem remorsos e da maneira mais

deliberada possível, voltei-me para a tarefa de esconder o corpo. Sabia que não podia removê-lo da casa,

tanto de dia como de noite, sem correr o risco de ser observado pelos vizinhos. Uma série de projetos passou

por minha cabeça. Durante algum tempo, pensei em cortar o corpo em minúsculos fragmentos que depois

destruiria no fogo. Depois pensei em cavar-lhe uma cova no chão do porão. Também me passou pela cabeça

jogar o cadáver no poço que ficava no pátio; ou colocá-lo dentro de uma caixa, como se fosse uma

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mercadoria, aplicando todos os cuidados que em geral se dedica à preparação de tais volumes e contratando

um carregador para retirá-lo da casa. Finalmente, imaginei o que me pareceu ser um expediente melhor que

qualquer um desses. Resolvi emparedá-lo em um dos cantos do porão – conforme dizem que os monges da

Idade Média costumavam fazer com suas vítimas. 

O porão estava perfeitamente adaptado para esse propósito. Suas paredes tinham sido muito mal-

construídas e há pouco tempo tinham sido novamente rebocadas com uma argamassa grosseira, que a

umidade do ambiente não deixara endurecer. Além disso, em uma das paredes havia uma projeção, causada

por uma falsa chaminé ou lareira que tinha sido preenchida com tijolos na intenção de assemelhá-la ao

restante das paredes do porão. Não tinha dúvidas de que poderia facilmente retirar os tijolos neste ponto,

enfiar o cadáver e depois restaurar a parede inteira ao estado anterior, de tal modo que olhar algum poderia

detectar qualquer coisa suspeita. 

Não me enganava neste ponto. Com um pé de cabra retirei facilmente os tijolos e, depois de depositar

o corpo cuidadosamente contra a parede interna, ergui-o de modo a deixá-lo em pé, apoiado contra a parede.

Com pouca dificuldade recoloquei os tijolos e deixei a estrutura precisamente da maneira em que se achava

antes. Tendo trazido cal, areia e uma porção de pelos de animais retirados de couros, como era costume na

época, preparei, com todas as precauções possíveis, uma argamassa que não podia ser diferente da que

recobria o restante da parede e com esta reboquei muito cuidadosamente os tijolos que havia recolocado. Ao

terminar, sentia-me satisfeito com a perfeição do trabalho. A parede não apresentava o menor sinal de que

tinha sido modificada. Recolhi a caliça do chão com o cuidado mais minucioso. Olhei ao meu redor

triunfantemente e congratulei-me: “Pelo menos desta vez não trabalhei em vão”. 

Minha próxima tarefa era a de procurar a besta que tinha sido a causa de tamanha desgraça, porque

tinha, finalmente, a firme resolução de matá-la. Se nesse momento tivesse podido encontrá-la, seu destino

estaria selado, mas aparentemente o animal ardiloso tinha pressentido alguma coisa ou se amedrontado com

a violência de minha raiva anterior, evitando apresentar-se diante de mim enquanto durasse minha má

disposição. É impossível descrever ou imaginar a sensação de alívio profunda e abençoada que a ausência

da detestada criatura causou em meu peito. Melhor ainda, o gato não apareceu nessa noite – e assim, ao

menos por uma noite, desde que o desgraçado se introduzira em minha casa, dormi profunda e

tranquilamente; sim, dormi o sono dos justos, mesmo que tivesse agora o peso de um assassinato em minha

alma! 

Passaram-se o segundo e o terceiro dias e meu atormentador não regressou. Novamente eu respirava

como um homem livre. O monstro tinha fugido aterrorizado e deixado para sempre minha companhia! Nunca

mais iria vê-lo! Minha felicidade era suprema! O remorso ocasionado por minha ação tão negra e perversa

praticamente não me perturbava. Algumas perguntas haviam sido feitas, mas fora fácil responder. Até mesmo

havia sido feita uma busca pela polícia, mas naturalmente não haviam descoberto nada. Pensei que minha

felicidade futura estava assegurada. 

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Mas no quarto dia depois do assassinato, uma patrulha da polícia retornou, muito inesperadamente,

entrou em minha casa e recomeçou a fazer uma investigação rigorosa do prédio. Achava-me seguro, todavia,

devido à impenetrabilidade do lugar em que escondera o cadáver, e assim não me senti nem um pouco

constrangido pela busca. Os policiais ordenaram-me que os acompanhasse enquanto procuravam. Não

deixaram nem canto nem escaninho sem explorar. Finalmente, pela terceira ou quarta vez, desceram ao

porão. Não senti estremecer nem um só de meus músculos. Meu coração batia calmamente como o de

alguém perfeitamente inocente. Caminhei de ponta a ponta do porão. Cruzei os braços e fiquei andando de

um lado para outro. A polícia finalmente satisfez-se e estava a ponto de partir, desta vez em definitivo. A

alegria em meu coração era grande demais para ser contida. Ansiava para dizer ao menos uma palavra de

triunfo e queria garantir-me duplamente de que eles me julgavam inocente. 

– Cavalheiros – disse finalmente, enquanto o grupo subia as escadas –, estou encantado por ter

desfeito todas as suas suspeitas. Desejo a todos uma boa saúde e um pouco mais de cortesia. A propósito,

cavalheiros esta casa, esta casa é muito bem-construída. (Tomado de um violento desejo de aparentar a

maior naturalidade, falava sem prestar muita atenção no que dizia.) Posso até dizer que é uma casa

excelentemente bem-construída. Estas paredes – já estão de partida, cavalheiros? –, estas paredes são muito

sólidas. 

E foi neste ponto que, tomado por um estúpido frenesi de bravata, bati pesadamente com uma bengala

que tinha na mão justamente sobre aquela porção da parede atrás da qual jazia o cadáver da esposa que

tinha apertado tantas vezes contra o peito. 

Possa Deus escudar-me e proteger-me das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a reverberação dos

golpes que havia dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma voz de dentro do túmulo! –

respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de uma criança, mas

rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo, totalmente anormal e desumano – um uivo –,

um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, tal como só poderia ter subido das profundezas do

inferno, um berro emitido conjuntamente pelas gargantas de centenas de condenados à danação eterna,

torturados em sua agonia, e pelos demônios que exultam em sua condenação. 

É tolice tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede oposta.

Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um misto de espanto e

profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços robustos esforçava-se por esboroar a parede. Ela

caiu inteira. O cadáver, já bastante decomposto e coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os

olhos dos espectadores, na mesma posição em que eu o deixara. Mas sobre sua cabeça, com a boca

vermelha escancarada e uma chispa de fogo no único olho, sentava-se a besta horrenda cujos ardis me

tinham levado ao assassinato e cuja voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o

monstro dentro do túmulo!

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