william faulkner - enquanto agonizo

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Neste romance, o autor distancia-se da aristocracia sulista americana para falar de gente comum e humilde, como a família Bundren, que se reúne para cumprir o último desejo da matriarca - ser enterrada em Jefferson, ao lado de seus parentes. O marido e os cinco filhos partem com o caixão determinados a cumprir seu objetivo, sem saber como essa viagem mudaria suas vidas.

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  • Para Hal Smith

  • Introduo

    Amar a Humanidade

    Inteira"

    HLIO PLVORA

    Na obra vasta de William Faulkner, Prmio Nobel de Literatura em 1949, As I Lay Dying o Enquanto Agonizo desta verso brasileira surgiu em 1930. Para ser mais preciso, no dia 7 deoutubro daquele ano. Posterior, portanto, a Sartoris e The Sound and the Fury, que foram publicadosem 1929, e, cronologicamente, seu terceiro grande romance.

    O romancista trabalhava, noite, na usina eltrica da Universidade de Mississipi, com aincumbncia de levar carvo para a caldeira. Mas, como entre a meia-noite e as 4 horas da manhnada tivesse que fazer, escreveu Enquanto Agonizo em seis semanas, junto a um dnamo que emitia"um zumbido profundo e constante".

    O critico alemo Gunter Blocker1 lembrou, a propsito de The Sound And the Fury, que em1929, quando este romance saiu, excertos do Ulysses de James Joyce circulavam na revistaamericana Little Review e, quase dez anos antes, Proust recebia o Prmio Goncourt pela segundaparte de la Recherche du Temps Perdu. Eu acrescentaria trs romances de Virginia Woolf: To theLighthouse (1927), Orlando (1928) e The Waves (1931). A poca, portanto, era de mudanasprofundas, estruturais, na novelstica. Estava instalado, sem dvida, o laboratrio de renovao doromance, e Faulkner, a comear de Sartoris, contribua decisivamente para a viso nova doficcionismo. Sartoris, no entanto, ainda um livro de carpintaria quase clssica. The Sound and theFury e As I Lay Dying que rompem ousadamente com as convenes at ento observadas nognero e abaladas a partir de Proust e Kafka.

    Quando apareceu, Enquanto Agonizo trazia sabor intenso de novidade. Uma novidadeinslita, incmoda. Quarenta e trs anos depois, as inovaes do romance, na sua maneira de narrar,entraram inteiramente para o patrimnio da novelstica moderna. Mesmo assim, embora algumas desuas conquistas tcnicas estejam hoje ao alcance de qualquer escritor, principalmente do escritorjovem, que procura caminhos novos de expresso, Enquanto Agonizo conserva sua fora original euma imagstica poderosa, que frequentemente incorpora o microcosmo no macrocosmo. Alm,naturalmente, de uma viso sombria, pessimista, da vida e dos homens, interrompidas de vez emquando pelo grotesco de situaes esdrxulas.

    Entre as novidades deste romance, pelas quais Faulkner seria imitado, copiado e pastichado,convm destacar: a) ausncia do escritor em relao ao relato, ou seja, sua absoluta neutralidade; b)a fragmentao da narrativa: o romance um patchwork, uma colcha de retalhos; e) predominnciado tempo psicolgico, interior, sobre o tempo convencional, cronolgico ou a alternncia dosdois tempos, habilmente dosada; d) a incerteza do romancista: ele no sabe, ou finge ignorar o que sepassa ou o que vir; e) a verdade do relato, ou dos vrios relatos entrelaados, uma coisa sempresujeita a contestao: depende de verses que ora lanam luz, ora obscurecem os fatos, e a verdade

  • procurada ser sempre, por conseguinte, ambivalente, ambgua, incompleta e, no entanto, una,indivisvel; f) a narrao feita pelas personagens, que se explicam pela maneira de falar, de reagiraos acontecimentos: suas psicologias esto indissoluvelmente presas s suas palavras; g) a linguagemdas personagens deste romance equivale a um signo, o reflexo de seus temperamentos, inclinaes,conflitos; h) os depoimentos fazem a ao do romance avanar e retroceder, e um vai esclarecendo ooutro, embora certas zonas permaneam obscuras intencionalmente ou no.

    O plot bastante simples: a famlia Bundren, representante do poor white do Sul dos EstadosUnidos, ao tempo da decadncia agrcola, viaja at a cidade de Jefferson, em carroa, levando ocaixo de Addie, que manifestara em vida o desejo de ser enterrada ali, e fizera o marido Anseprometer-lhe a satisfao de to humilde vontade. "No fiz mais que imaginar um grupo de pessoas eas submeti simplesmente a essas catstrofes naturais, universais, que so a inundao e o fogo, comum motivo lgico e simples, para dar sentido sua evoluo"2, disse o romancista.

    Depois de vrias peripcias (Addie fica oito dias sem sepultura), os Bundren chegam aJefferson. Atravessaram um rio turbulento, pelo lugar do vau, e salvaram o caixo de um incndio.Anse um preguioso, um oportunista, um pobre diabo cheio de fraquezas morais, mas aferra-se palavra empenhada. Sepultada a mulher, aparece com uma dentadura nova, cabelo bem alisado eoutra Mrs. Bundren, que apresenta aos filhos sentados na carroa e todos eles atnitos.

    A abertura do Romance solene: o quadro trgico de Addie agonizante, ouvindo pela janelaaberta as marteladas de Cash e o rudo de sua serra, no preparo do caixo, somente quebrado poralgumas cenas grotescas, de humor negro, e descries de um lirismo fundamental um lirismo decomeo de mundo. "A cena inicial tem o ar macabro de uma pintura medieval da Dana da Morte",dizem os crticos Campbell e Forster.3

    Mas so muitas, na verdade, as passagens literariamente admirveis de Enquanto Agonizo e eu citaria, entre outras, o monologo de Addie, alguns monlogos de Darl e Vardaman, as cenas detravessia do rio e o incndio no celeiro de Gillespie.

    Campbell e Forster referem-se, a propsito dos captulos sobre a travessia do rio, capacidade que tem Faulkner de "dar o salto metafsico para o csmico". As personagens deEnquanto Agonizo so pessoas rudes, toscas, assoberbadas por apetites mesquinhos e pequenosinteresses. No entanto, tm, como a gente sofrida do povo, em qualquer parte, sobretudo no campo,uma compreenso da vida que envolve formulaes no raro de alto teor filosfico. Este poder deaceitar os acontecimentos, por piores que sejam, e a eles resignar-se, equivale submisso dasdramatis personae ao Destino, no teatro grego que universalizou a tragdia.

    O romance parece, com efeito, desenvolver-se em funo de dois cenrios. No seu incio, afigura magra de Addie na cama, ouvindo (e vendo) seu caixo morturio ser preparado pelo filhomais velho. A partir da viagem para Jefferson, a carroa onde est o caixo, com o pai e filhos. Oromance se compe com estes dois elementos como ncleo. Eles funcionam como cenrio, ponto dereferncia, ponto de partida, atrao e repulso. Enquanto Agonizo a mais teatral das tragdias deFaulkner, e os captulos curtos, esquemticos, correspondem, sem dvida, entrada de protagonistasem cena e s suas falas.

    Em 1962, pouco antes de falecer, William Faulkner foi sabatinado em West Point.Perguntaram-lhe, entre outras coisas, "em que medida a apresentao de personagens mais ou menospervertidas pode contribuir para elevar o corao do homem". Sua resposta: "A primeira coisa queum escritor sente compaixo por suas personagens, como, alis, pelas personagens de no importa

  • que outro autor. Ele no estima o poder que tem para julg-las, e essas personagens permanecem comsuas taras, quer o escritor queira ou no.

    Quando conta uma histria, parece-lhe necessrio, bom,essencial mesmo, ter em conta essaevidncia. No lhes advoga a causa, no as condena; uma vez consciente de seus defeitos, a primeiracoisa que deve fazer amar a humanidade inteira, embora chegue a odiar certos indivduos. Entre aspersonagens que criei, h algumas que odeio ferozmente, mas no me compete julg-las, conden-las:elas existem, fazem parte do quadro em que vivemos. E recusando falar delas no aboliremos omal."4 Ao receber o Prmio Nobel, Faulkner disse, em discurso, que, enquanto permanecer o medouniversal, fsico, que caracteriza nossa poca, o escritor "escrever no do amor, mas do desejo, dederrotas em que ningum perde nada de valor, de vitrias sem esperana e, o que pior, sem piedadenem compaixo. (... ) Escrever a respeito das glndulas, no do corao".5 Das personagens deEnquanto Agonizo, a nica moralmente boa, pura, ser Cash, o carpinteiro.

    A traduo requer algumas palavras. O estilo de Faulkner, aqui, direto, extremamentecondensado, como se ele pretendesse carregar uma frase ou uma palavra do maior nmero possvelde significaes. O tradutor optou pela verso quase literal do texto, somente a ela fugindo quandoforado pela necessidade de clareza. O outro critrio possvel neste caso seria traduzirliterariamente a linguagem de Faulkner; o texto ficaria mais bonito, mais fluente, mas no teria arudeza, o coloquialismo e a feroz condensao do original, O leitor no afeioado a este universodeve nele procurar penetrar munido de pacincia: a cena vai se esclarecendo aos poucos, medidaque falam as personagens. Certos trechos permanecero obscuros, porque, em alguns casos, aspersonagens no sabem o que dizer ou como dizer. Conforme observou o prprio Faulkner, "ningumprocura ser obscuro s pelo prazer de s-lo, Mas, em certos momentos, o escritor simplesmenteincapaz de encontrar um meio mais eficaz de contar a histria que busca contar".6 Preferiu o tradutoro dilogo americana. Indicado por aspas, em vez de travesso. No fosse assim e seria obrigado aalterar a estrutura de composio do livro, quebrando-lhe o ritmo, uma vez que muitos dilogos estoembutidos no texto. Procurou tambm manter a pontuao do autor, especialmente em certosmonlogos que aparecem em grifo.

    NOTAS

    1Faulkner A Collection of Critical Essays, edited by Robert Penn Warren, Prentice-Hall,Inc., 1966, New Jersey. USA. 2Citado por Agustin Caballero, no prefcio a Obras Escogidas deWilliam Faulkner, Tomo I. Aguilar, 1956, Madrid. 3Harry M Campbell e Ruel E. Forster, WilliamFaulkner. Editorial Schapire, Buenos Aires, 1954. 4Faulkner at West Point. Citado do resumotraduzido por Hlio Plvora no Dirio Carioca, dezembro de 1964.

    5Ver Nota 2.6Ver nota 4.

  • DarlJewel e eu samos da plantao, pela vereda, um atrs do outro. Embora eu esteja uns quinze

    passos sua frente, quem nos observasse do depsito de algodo veria o chapu de palha de Jewel,roto e esfiapado, ultrapassando o meu por uma cabea.

    A vereda, suavizada pelos ps e endurecida, qual tijolo, pelas quenturas de julho, estende-se,reta, entre os renques verdes de algodo capinado, at o depsito no meio do campo, onde ela setorce e contorna o depsito, em quatro ngulos retos de vrtices imprecisos, e depois avananovamente pelo algodoal, batida por ps de efmera preciso.

    O depsito feito de troncos grosseiros, de entre os quais o enchimento caiu h muito tempo.Quadrado, com um telhado esburacado, que se inclina, ele pende, semelhante a uma runa desolada efulgurante, luz do sol; duas amplas janelas, em paredes opostas, abrem para as imediaes davereda. Ao chegarmos ao depsito, eu viro e sigo o caminho que rodeia a casa. Jewel, uns quinzepassos atrs, olha em frente e, com uma s pernada, entra pela janela. Ainda com os olhos fitos suafrente olhos plidos, de madeira, incrustados no rosto de madeira , atravessa o cho dodepsito em quatro passadas, com a rgida gravidade de um ndio de tabacaria* vestido com umponcho remendado e dotado de vida dos quadris para baixo, apenas; e sai, com uma s pernada, pelajanela fronteira do depsito e entra novamente na vereda, no justo instante em que eu dobro aesquina. Um atrs do outro, a uma distncia de cinco passos, e Jewel agora na minha frente,continuamos a subir a vereda rumo ao p da encosta.

    A carroa de Tull est ao lado da nascente, atada ao moiro, as rdeas enroladas atrs dobanco. A carroa tem dois assentos. Jewel para na nascente, apanha a cabaa que pende de um ramodo salgueiro e bebe. Tomo sua dianteira e subo pela vereda, comeando a escutar a serra de Cash.

    Quando chego em cima ele j parou de serrar. De p sobre uma poro de aparas, ajusta duastbuas. Entre os espaos de sombra, elas brilham amarelas, como ouro, como ouro plido, ostentandonos flancos, em ondulaes suaves, as marcas da lmina da enx: bom carpinteiro, este Cash.Mantm as duas tbuas no cavalete, ajustando as bordas para que formem a quarta parte do caixo.Ajoelha-se e calcula com o olhar as arestas, depois baixa as tbuas e empunha a enx. Um bomcarpinteiro. Addie Bundren no podia desejar um melhor que ele, nem um caixo melhor em quedescansar. O caixo lhe dar confiana e conforto. Dirijo-me para a casa, acompanhado pelo chaquechaque chaque da enx.

    * No original, a cigar store Indian: boneco usado como cartaz porta de tabacarias eestabelecimentos semelhantes (N. do T. )

    CoraPortanto, guardei os ovos e cozi, ontem, no forno. Os bolas ficaram muito bons. Dependemos

    um bocado de nossas galinhas. So boas poedeiras, as poucas que nos restaram das sarigueias eoutros contratempos. Cobras tambm, no vero. Uma cobra devasta um galinheiro mais depressa queoutra coisa qualquer. Assim, elas saram bem mais caro do que Mr. Tull pensava, e como prometipagar a diferena com ovos, tive de ser mais cuidadosa do que nunca, porque por minha causa foram

  • compradas. Podamos ter comprado galinhas mais baratas, mas eu j havia prometido, como disseMiss Lawington, que me aconselhou uma boa raa, e tambm porque o prprio Mr. Tull admite queuma boa raa de vacas ou porcos que d bons resultados a longo prazo. Portanto, quandocomeamos a perder tantas galinhas, tivemos de poupar ovos, pois eu no suportaria repreenses deMr. Tull, ainda mais porque as galinhas foram adquiridas com a minha palavra. De maneira que,quando Miss Lawington me falou dos bolos, pensei em prepar-los e ganhar dinheiro equivalente aduas cabeas de galinhas. E guardando os ovos, um de cada vez, eles no me custariam nada. Estasemana elas puseram tantos que eu no somente juntei uma quantidade acima do que ia mos vender,como tambm usei-os nos bolos, e ainda me sobraram bastantes ovos para que a farinha e o acar ea lenha do fogo me saiam de graa. Por isso, fiz bolos ontem, com o maior zelo de minha vida, e osbolos saram muito bons. Mas quando fomos cidade esta manh, Miss Lawington me disse que asenhora mudara de ideia e que no ia dar festa nenhuma.

    "Mesmo assim deve ficar com os belos", diz Kate. "Bem", digo eu, "acho que agora ela noprecisa mais deles." "Ela deve ficar, sim", diz Kate. "Mas essas senhoras ricas da cidade mudammuito de ideia. Os pobres que no podem ." Riquezas nada significam aos olhos do Senhor, poisEle v o fundo dos coraes. "Talvez eu consiga vend-los, sbado, no bazar", digo. Eles ficaramrealmente bons.

    "Voc no arranjaria dois dlares por um", diz Kate."Bem, na verdade como se eles nada me tivessem custado," digo. Economizei ovos e troquei

    uma dzia por acar e farinha. No creio que os bolos custassem alguma coisa, pois o prprio Mr.Tull sabe que os ovos que guardei ultrapassavam em muito a quantidade que havamos prometidovender, de forma que, para mim, como se tivssemos encontrado os ovos, ou recebido de presente."Ela deve ficar com os bolos, pois ela mesma fez a encomenda", diz Kate. O Senhor l no fundo doscoraes. Se Seu desejo que os pobres tenham, da honestidade, ideias diferentes de outras pessoas,no sou eu quem vai contrariar Seus desgnios. "Aposto como ela no precisava dos bolos", digo.Eles ficaram bons, de fato. A enferma tem o cobertor puxado at o queixo, embora faa calor, emantm descobertos apenas as mos e o rosto. Est recostada no travesseiro, com a cabea alta, deforma que pode ver alm da janela, e podemos ouvi-lo sempre que ele empunha a enx ou a serra. Sefssemos surdos, poderamos, provavelmente, ouvi-lo e v-lo, atravs do rosto da mulher deitada.Um rosto consumido, de forma que os ossos apontam logo embaixo da pele, em linhas brancas. Seusolhos so semelhantes a duas velas que a gente v derreter-se e pingar o espermacete nas arandelasdos castiais de ferro. Mas a salvao eterna e a graa imperecvel no descem sobre ela.

    "Os bolos ficaram realmente bons", digo. "Mas no iguais aos bolos que Addie costumavafazer." Basta olhar a fronha para ver como essa criatura lavava e passava bem a ferro, pois a fronhaparece engomada para sempre. Talvez isso lhe desse conscincia de sua cegueira, ali deitada merc e aos cuidados dos quatro homens e de uma menina traquinas. "Nenhuma mulher por estasbandas far bolos to gostosas quanto os de Addie Bundren," eu digo. "Quando a gente menosesperar, ela se levanta e volta ao forno, e assim no teremos de vender os nossos bolos." Debaixo docobertor, o volume que ela faz no maior que o de uma barra de ferro, e a nica maneira de sesaber que est respirando pelo som das molas do colcho. At o cabelo em suas faces no se move,embora a menina, em p ao seu lado direito, esteja a aban-la com o leque. Enquanto ns a obsorvamos, ela passa o leque para a outra mo, sem parar de abanar.

    "Ela est dormindo?", sussurra Kate.

  • "Est olhando Cash, l embaixo", diz a menina. Ouvimos a serra na tbua. Parece roncar. Eulavira-se e olha pela janela. Seu colar assenta bem com o chapu vermelho. Difcil pensar que custouapenas vinte e cinco cntimos.

    "Ela devia ficar com esses bolos", diz Kate.Eu bem que saberia aplicar o dinheiro. Mas, na verdade, como se nada me tivessem

    custado, salvo o trabalho de ass-los. Posso dizer-lhe que ningum est imune a erros, mas nem todomundo pode escapar sem prejuzos; o que pretendo dizer-lhe.

    Algum vem pelo corredor. Darl. No olha para dentro ao passar pela porta. Eula observa-o enquanto ele anda e desaparece novamente na direo dos fundos. Ela levanta a mo e toca, deleve, nas contas do colar, e depois no cabelo. Quando me descobre a observ-la, seus olhos perdemo brilho.

    DarlPai e Vernon esto sentados no alpendre dos fundos. Pai, inclinando a tampa da tabaqueira no

    lbio inferior, que ele estica com o polegar e o indicador, deixa cair tabaco. Olham em volta quandoatravesso o alpendre, mergulho a cabaa no balde e bebo.

    "Onde est Jewel?", pergunta Pai. Quando eu era menino, aprendi que a gua fica maissaborosa quando recolhida, durante algum tempo, numa tina de cedro. Fresca, com um leve gostosemelhante ao clido vento de julho tirando aroma das folhas de cedro. Tem de ficar guardada pelomenos seis horas e ser bebida em cabaa. Nunca se deve beber gua em vasilhas metlicas.

    E, noite, ainda melhor. Eu costumava deitar-me na esteira, no corredor, esperando ouvirque todos dormiam para levantar-me e voltar tina. Estaria escura, a superfcie quieta da gua,brilhando qual redondo orifcio no nada, e nela, antes de agit-la com a cabaa, eu veria, talvez, umaestrela ou duas, e talvez, na cabaa, uma estrela ou duas antes de beber. Depois eu cresci, fiqueimais velho. Ento, eu esperava at que eles todos fossem dormir, e deitava-me com a fralda dacamisa levantada, ouvindo-os dormir, sentindo meu corpo sem tocar-me, sentindo o frio silnciosoprar sobre minhas partes e pensando se Cash estaria, l embaixo, na escurido, fazendo o mesmo,ou se ele j o faria h dois anos, antes que eu tivesse querido fazer ou pudesse fazer.

    Os ps de Pai esto em pssimo estado, os dedos engelhados e torcidos e intumescidos, semsinal de unha nos dois dedos menores, de tanto trabalhar duro, na umidade, com sapatos feitos emcasa, quando era menino. Ao lado de sua cadeira esto os sapates grosseiros. Do a impresso deterem sido talhados, com um machado cheio de dentes, em lingote de ferro. Vernon acaba de chegarda cidade. Nunca o vi ir cidade de poncho. Por causa de sua mulher, dizem. Ela ensinava, htempos, na escola.

    Atiro ao cho o resto da gua e enxugo a boca na manga. Vai chover antes do amanhecer.Talvez antes de escurecer. "L embaixo, na cavalaria", digo. "Atrelando o cavalo." L embaixo,divertindo-se com o cavalo. Passar pela baia e entrar no pasto. O cavalo no estar vista: estmais em cima, gozando a fresca entre os pinheiros. Jewel assovia, um nico e penetrante assovio. Ocavalo relincha, ento Jewel o v brilhando, por um breve instante, entre as sombras azuis. Jewelassovia novamente; o cavalo aproxima-se, descendo a encosta, com as pernas rgidas, as orelhaserguidas e inquietas, rolando os olhos de grandes rbitas, e para a uns vinte passos, de lado,

  • observando Jewel por sobre a crina, em atitude travessa e alerta."Venha c, senhor", diz Jewel. O cavalo adianta-se. A pele move-se, estirada e tensa,

    percorrida por lnguas retorcidas semelhantes a chamas. Agitando crina e cauda e revirando osolhos, o cavalo d outra curta carreira corcoveante e para outra vez, de patas firmes, observandoJewel. Jewel caminha rapidamente para ele, com as mos nos quadris. A exceo das pernas deJewel, eles parecem duas figuras esculpidas ao sol para um grupo selvagem.

    Quando Jewel est prestes a toc-lo, o cavalo ergue-se sobre as ancas e cai com as patasdianteiras sobre Jewel. Agora Jewel est enclausurado em cintilante labirinto de cascos queimprimem cena uma iluso de asas; entre eles, debaixo do peito levantado do cavalo. Jewelescorrega com a instantnea flexibilidade de uma cobra. Por um instante, antes que o solavanco lhechegue aos braos, ele v seu corpo inteiro no ar, horizontal, mexendo-se como um chicote, at queencontra o focinho do cavalo e toca novamente a terra. Ficam, ento, eretos, imveis, aterradores, ocavalo sobre as patas traseiras, firmes e vibrantes, mas de cabea baixa; Jewel, com os calcanharesfincados no cho, abafa o resfolegar do cavalo com uma mo e, com a outra, acaricia-lhe o pescoo,em inmeros golpes de afetividade, enquanto pragueja contra o animal com uma ferocidade obscena.

    Permanecem assim, nesse hiato rgido e terrvel, o cavalo tremendo e fungando. Ento, Jewel,de um pulo, cavalga-o. Corre para cima, em espantoso redemoinho, qual golpe de chicote, o corpogrudado ao cavalo e recortado no ar. Durante outro instante, o cavalo fica parado de cabea baixa,antes de lanar-se em desabalada carreira. Descem a colina numa srie de saltos corcoveantes,Jewel no lombo, qual sanguessuga, e chegam cerca onde o cavalo para, de inopino, na trepidaodos cascos.

    "Bem", diz Jewel, "agora fique quieto, se j est satisfeito." Dentro da cavalaria, Jewelescorrega para o cho antes que o cavalo pare. O cavalo entra no Estbulo, seguido por Jewel. Semolhar para trs, o cavalo o escoiceia, e a pata ecoa, na parede, qual tiro de pistola. Jewel d-lhe umpontap no ventre; o cavalo arqueia o pescoo e arreganha os beios, descobrindo os dentes; Jewelatinge-o no focinho, com um murro, e, escapando para o depsito de feno, nele sobe. Pegando ummonte de feno, baixa a cabea e espia, atravs dos tabiques, em direo porta. O caminho estdeserto; dali, no pode ouvir sequer a serra de Cash. Ergue-se e, s braadas, empilha feno namanjedoura.

    "Coma", diz. "Encha a maldita pana enquanto puder, seu comilo estpido, meu querido filhoda puta."

    Jewel

    Por isso fica a fora, bem embaixo da janela, serrando e pregando o maldito caixo.Exatamente onde ela pode v-lo. Onde todo o ar que ela aspira est cheio de suas marteladas e dosgemidos da serra, onde ela pode v-lo dizendo "Veja. Veja que caixo bom estou fazendo paravoc." Eu lhe disse para trabalhar em outro stio. E" lhe disse mesmo: "Meu Deus, voc quer v-la aidentro?" igual ao tempo em que ele era pequeno e ela disse que, se tivesse adubo, tentaria cultivaralgumas flores, e ele apanhou a cesta de po e trouxe-a, da estrebaria, cheia de estrume.

  • E agora todos os outros l esto sentados, como pessoas estpidas. Esperando, abanando-se.Pois eu j lhe disse: "Ser que voc no para de pregar e de serrar at que algum possa dormir?" Eas mos dela, pousadas no cobertor como razes desenterradas, que a gente se esfora por lavar enunca consegue limpar direito. Posso ver o leque e o brao de Dewey Deli: Eu disse: "Era bom queela ficasse em paz." Serrando e pregando sempre, e agitando o ar, to depressa, contra seu rosto, queuma pessoa cansada no consegue respirar direito, e o diabo daquela enx dizendo: "Falta pouco.Falta pouco. Falta pouco." At que todo mundo que passa pela estrada tenha de parar e ver o caixoe dizer: "Que excelente carpinteiro." Se dependesse de mim, quando Cash despencou daquela igreja,e se dependesse de mim quando Pai caiu doente, por causa da carga de madeira que lhe desabou emcima, nenhum filho da me dessas redondezas viria olhar para ela, porque, se existe Deus, ento paraque diabo Ele existe? Ficaramos sozinhos, eu e ela, no alto de uma colina, e eu rolaria pedras, pelacolina, contra essas mesmas caras, e pegaria as caras, dentes e o resto e atiraria tambm pela colina,Deus me perdoe, at que ela estivesse tranquila e a maldita enx parasse de dizer: "Falta pouco, faltapouco", e ns ficssemos tranquilos.

    DarlNs o observamos dobrar a esquina e subir os degraus. No olha para ns. "Esto prontos?",

    pergunta."Se que voc j atrelou", eu digo. "Espere", digo ainda. Ele para, olhando para Pai. Vernon

    cospe, sem se mover. Cospe com decorosa e deliberada preciso sobre a poeira acamada embaixo,no alpendre. Pai esfrega as mos, devagar, nos joelhos. Tem o olhar fixo alm do cume dodespenhadeiro, do outro lado da plantao. Jewel observa-o um pouco, depois dirige-se ao balde ebebe novamente.

    "Detesto indecises, mas nada posso fazer", diz Pai."Isto significa trs dlares", eu digo. A camisa nas costas recurvadas de Pai est mais

    desbotada que em outros lugares. No h ndoas de suor na camisa. Nunca vi manchas de suor emsua camisa. Ele adoeceu uma vez, de tanto trabalhar exposto ao sol, quando tinha vinte e dois anos, ediz a todo mundo que, se suar algum dia, morrer. Acho que ele fala a srio.

    "E se ela no durar at que vocs voltem?", pergunta ele. "Ela ficaria desgostosa." Vernoncospe na poeira. Chover, no entanto, antes do amanhecer.

    "'Ela conta com isto", diz Pai. "Deseja partir logo. Eu a conheo bem. Prometi-lhe deixar acarroa atrelada, e ela conta com isto." "Ento, precisaremos com certeza dos trs dlares"; eu digo.Ele fixa o olhar na plantao, esfregando as mos nos joelhos. Desde que ficou desdentado, suaboca, quando engole, decai em vagarosas repeties. Os fios da barba do-lhe mandbula inferioruma aparncia comum a ces velhos. Melhor vocs se decidirem logo. Assim, podemos chegar l earranjar uma carga antes que escurea", eu digo.

    "Mame no est assim to doente", diz Jewel. "Cala a boca, Darl." "Est certo", diz Vernon. "Hoje ela parece melhor do que h uma semana atrs. Quando voc

    e Jewel voltarem, ela estar de p." "Voc quem sabe", diz Jewel. "Voc no se cansou de olhar para ela. Voc ou seu

    pessoal."

  • Vernon olha para mim. Os olhos de Jewel parecem madeira esmaecida em seu rostosanguneo. Ele uma cabea mais alto que qualquer um de ns; alis, sempre foi. Eu lhes disse que,por causa disso, mame surrava-o e dengava-o muito mais. Porque ele se mostrava mais dentro decasa. Por isso ela lhe deu o nome de Jewel,* foi o que eu lhes disse. *Joia. (N. do T.)

    "Cala a boca. Jewel", diz Pai, mas dando a impresso que no ouvia direito. Olha para longe,atravs da plantao, coando os joelhos.

    "Voc podia tomar emprestada a carroa de Vernon e ns iramos apanh-lo", eu digo. "Seela no nos esperar."

    "Ah, fecha esta maldita boca", diz Jewel. "Ela quer ir na nossa carroa", diz Pai. Esfrega os joelhos. "Mas isto no me agrada nem um

    pouco.""Est estirada l, observando Cash preparar o maldito...", diz Jewel. Fala com aspereza,

    selvagemente, mas no diz a palavra. Como um menino no escuro, para ganhar coragem, e que, derepente, se assusta, no silncio, com o barulho que faz.

    "Ela assim o quer e tambm quer ir na nossa carroa", diz Pai. "Descansar melhor se souberque um bom, feito de encomenda. Sempre foi muito exigente. Vocs sabem disso." "Nesse caso,que tenha um s para ela", diz Jewel. "Mas que diabo, como vocs podem esperar que seja..." Olhapara a nuca de Pai. com seus olhos claros, de madeira.

    "Certamente", diz Vernon. "Ela aguentara at que fique pronto. Aguentara at que tudo fiquepronto. Aguardar o momento adequado. Com as estradas secas como esto, no ser difcil lev-la cidade."

    "Vai chover j", diz Pai. "Sou um homem sem sorte. Nunca tive sorte." Esfrega as mos nosjoelhos. "E o danado do mdico, que deve chegar de uma hora para outra. No pude avis-lo antes.Se ele chegasse amanh e lhe dissesse que o instante estava prximo, ela no esperaria. Eu aconheo bem. Com carroa ou sem carroa, ela no esperaria. Se isso acontecesse, ela ficariazangada, e eu no quero aborrec-la de jeito nenhum. Deve estar impaciente, pensando na sepulturada famlia, no cemitrio de Jefferson, e nos parentes que a esperam l. Dei-lhe minha palavra que osrapazes a levaro o mais rpido que as mulas puderem, a fim de que ela descanse em paz." Esfregaas mos nos joelhos. "Mas no gosto disto, nem um pouco."

    "Se vocs todos no estivessem ardendo de vontade para lev-la logo...", diz Jewel, naquelasua voz spera, selvagem. "Com Cash, o dia inteiro, bem embaixo da janela, serrando e pregandoaquele..."

    "Foi ela quem quis", diz Pai. "Voc no tem afeto nem considerao por ela. Nunca teve. Noqueremos dever nada a ningum...eu e ela. Alis, nunca devemos coisa alguma, e ela descansarmelhor se souber que algum do seu prprio sangue serrou as tbuas e fincou os pregos. Ela semprepreferiu cuidar de suas prprias coisas."

    "Isto significa trs dlares", eu digo. "Quer que vamos, ou no?" Pai esfrega os joelhos. "Voltaremos amanh, quando o sol se puser." "Bom...", diz Pai. Olha por sobre o campo, com o cabelo despenteado, apertando

    vagarosamente o tabaco contra as gengivas."Ento, vamos", diz Jewel. Desce os degraus. Vernon cospe cuidadosamente na poeira. "At o sol se pr, ento", diz Pai. "No quero faz-la esperar." Jewel lana um olhar rpido para trs, em seguida rodeia a casa. Entro no corredor, ouvindo

  • as vozes antes de chegar porta. Nossa casa est inclinada na colina, e por isso uma brisa soprasempre no corredor. Uma pluma que se deixasse cair perto da porta de entrada subiria at o teto, atser colhida na corrente, que a levaria porta dos fundos: o mesmo acontece s vozes. Quando agente entra no corredor, elas parecem soar em pleno ar, sobre nossas cabeas.

    CoraFoi a coisa mais comovente que j vi. Como se ele soubesse que jamais voltaria a v-la, que

    Anse Bundren afastava-o do leito de morte de sua me, e que ele jamais voltaria a v-la nestemundo. Eu sempre disse que Darl era diferente dos outros. Eu sempre disse que, entre todos, ele erao nico com a natureza da me, o nico que lhe dedicava afeto. Ao contrrio de Jewel, que lhe deutanto trabalho para nascer e que ela dengou e mimou, para ganhar, em troca, demonstraes de clerae mau-humor, no se contando as diabruras que a atormentavam e que, se fossem comigo, eu lhedaria uma surra de quando em quando. No ser ele quem lhe vir dizer adeus. No ser ele quem vperder a oportunidade de fazer trs dlares extras, ao preo do beijo de despedida da me. UmBundren da cabea aos ps, que a ningum ama e s se preocupa mesmo em ganhar algum dinheirocom o mnimo de trabalho. Mr. Tull diz que Darl lhes pediu para esperarem. Disse que Darl quaselhes suplicou de joelhos para no o obrigarem a deix-la nessa situao. Mas Anse e Jewel noperderiam, por nada desse mundo, a oportunidade de fazer trs dlares. Ningum que conhea Ansepoderia esperar outra atitude, mas pensar que esse rapaz, esse Jewel, venda todos esses anos deabnegao e ostensiva parcialidade (no me enganam: Mr. Tull diz que Mrs. Bundren gostava menosde Jewel, entre todos, mas eu que sei. Sei que ela tinha predileo por ele, porque via nele amesma qualidade que a fazia suportar Anse Bundren quando Mr. Tull dizia que ela devia envenen-lo) por trs dlares, negando sua me agonizante o beijo de despedida.

    Pois, nas ltimas trs semanas, eu tenho vindo aqui, sempre que posso, s vezes quando nodevo, abandonando minha prpria famlia e minhas obrigaes para que algum possa estar com elanos seus derradeiros instantes e ela no tenha de enfrentar o Grande Desconhecido sem um rostofamiliar a dar-lhe coragem. No que eu deseje agradecimentos por isso: espero o mesmo quandochegar a minha hora. Mas, graas a Deus, terei os rostos dos meus, meu sangue e minha carne, poisem matria de marido e filhos tenho sido mais feliz que muitas, apesar de provocaes ocasionais.

    Ela vivia solitria, sozinha com seu orgulho, tentando fazer com que a gente pensasse outracoisa, ocultando o fato de que apenas a suportavam, pois, antes de esfriar no caixo, eles j estariamlevando-a a sessenta quilmetros de distncia, para enterr-la, menosprezando, assim, a vontade deDeus. Negando-lhe o descanso na mesma terra desses Bundrens.

    "Mas ela queria ir", disse Mr. Tull. "Foi seu prprio desejo descansar entre sua gente." "Ento, por que no foi quando estava viva?", eu disse. "Nenhum deles a impediria, nem

    mesmo o pequeno, agora j bastante velho para ser egosta e ter o corao empedernido, como oresto deles."

    "Foi desejo dela", disse Mr. Tull. "Ouvi Anse dizer isto." "E, naturalmente, acreditou em Anse", eu disse. "S mesmo voc. V contar esta a outro."

    "No vejo por que duvidar de uma coisa que, alis, ele no tinha interesse em me contar", disse Mr.

  • Tull. "No me diga", eu disse. "O lugar de uma mulher com o marido e filhos, esteja viva ou morta.Voc admitiria que eu quisesse voltar ao Alabama e deix-lo com as crianas, quando chegasseminha hora? Ao Alabama, que deixei por minha livre vontade, a fim de me unir sua, nos bons emaus momentos, at a morte e depois da morte?" "Bom, nem todos so iguais", ele disse. Espero quesim, Tenho procurado viver com retido aos olhos de Deus e dos homens, para honra e conforto demeu marido cristo e para o amor e respeito de meus filhos cristos. De maneira que, quando tiverde morrer, consciente do dever e da recompensa que mereo, estarei cercada de rostos queridos,recebendo o beijo de adeus de cada um de meus afeioados, como recompensa. No como AddieBundren, morrendo sozinha, ocultando o orgulho e o corao despedaado. Contente por deixar avida. Estirada na cama, com a cabea no alto para poder observar Cash a fazer o caixo, obrigada avigi-lo para que ele no poupe madeira, para que trabalhe bem, e os outros homens sem sepreocuparem com nada, exceto se haver tempo de ganhar mais trs dlares antes que a chuva caia eo rio cheio impea a travessia. Pois, se eles no houvessem resolvido pegar essa ltima carga,teriam levado Addie na carroa, sobre um cobertor, e cruzado logo o rio, e depois parado para dartempo a que ela morresse da morte crist que seria licito permitir-lhe.

    Exceto Darl. Foi a coisa mais confortadora que eu vi. As vezes, eu perco temporariamente af na natureza humana; sou assaltada pela dvida. Mas sempre o Senhor restaura-me a f e me revelaSeu bondoso amor pelas criaturas. No por Jewel, a quem ela tanto amou; no por ele. Ele spensava nesses trs dlares extraordinrios. Foi por Darl, de quem todos dizem que um estranho,um preguioso, sempre vadiando, igualzinho a Anse, enquanto Cash bom carpinteiro sempre maisatarefado do que pode, e Jewel sempre a fazer algo que lhe rendesse dinheiro ou desse o que falar, eaquela mocinha quase nua, sempre em p, ao lado de Addie, com um leque, de forma que, quando agente tenta conversar com Addie e anim-la, responde logo em vez de Addie, como se quisesseimpedir que a gente se aproxime dela.

    Foi por Darl. Ele chega porta e fica parado, olhando a me agonizante. Apenas olha paraela, e eu sinto novamente o bondoso amor do Senhor e Sua misericrdia. Compreendi, ento, que elafora fingida a respeito de Jewel, mas que era entre ela e Darl que havia entendimento e verdadeiroamor. Ele apenas olha" para ela, sequer entra para que ela possa v-lo, a fim de no sobressalt-la,sabendo embora que Anse o espera e que nunca mais voltaria a v-la. Ele no disse nada, apenasolhou para ela.

    "Que deseja. Dar!?", disse Dewey Dell, sem parar o leque, falando com rapidez, impedindoque ele, mesmo ele, se aproximasse. Ele no respondeu. Continuou em p, olhando a me moribunda,o corao penalizado demais paia poder falar.

    Dewey DellA primeira vez que eu e Lafe fomos colher algodo. Pai no quer suar, porque se arriscaria a

    morrer da doena que tem, por isso todo mundo nos vem ajudar. E Jewel no se importa com nada,ele no parece de nosso sangue nessa coisa de demonstrar interesse. E Cash como se serrasse nastbuas os dias compridos, quentes e tristes, para preg-las em alguma coisa. E Pai pensa que osvizinhos sempre se mostraro solcitos, pois sempre esteve muito ocupado em deixar que os vizinhostrabalhem para ele, sem imaginar mais nada. E no creio, tambm, que Darl pense nisso, porque se

  • senta mesa, para o jantar, com os olhos postos alm da comida e da lmpada, cheios de terra tiradade sua cabea, e com as rbitas cheias da distncia para alm da plantao.

    Colhemos algodo ao longo do renque, os bosques cada vez mais prximos e mais prxima asombra secreta, avanando na direo da sombra secreta com meu saco e o saco de Lafe. Porque eudisse: "Talvez eu queira ou no, quando o saco estiver pela metade." Porque eu disse: "Se o sacoestiver cheio quando chegarmos aos bosques, no ter sido por minha vontade." Eu disse: "Se noestiver escrito que terei de fazer isto, o saco no estar cheio e eu voltarei pelo ren que prximo,mas se o saco estiver cheio, no terei jeito a dar." E colhemos algodo na direo da sombra secretae nossos olhos procuravam os do outro, e nossas mos se tocavam e eu sem dizer nada. Eudisse:"Que est fazendo?" E ele disse: "Estou pondo algodo no seu saco." E, assim, o saco estavacheio quando chegamos ao fim do renque de algodo e eu no pude evitar.

    E assim aconteceu porque no tive outro jeito. Aconteceu ento, e eu vi Darl e ele soube. Eledisse que sabia sem precisar falar, da mesma forma que me disse que Me est morrendo semprecisar falar, e eu soube que ele sabia por que, se ele dissesse que sabia, com palavras, eu no teriaacreditado que ele estivera ali por perto e nos vira. Mas ele disse que sabia mesmo, e eu disse:"Voc vai contar a Pai, voc vai mat-lo?" Disse-lhe isto sem falar, e ele disse: "Por qu?", tambmsem falar. E por isso que eu lhe posso falar com certeza, com dio, porque ele sabe.

    Ele fica parado porta, olhando para ela. "Que deseja, Darl?", eu digo. "Ela vai morrer", elediz. E aquela velha ave de rapina Tull que vem v-la morrer, mas eu posso engan-los. "Quando elavai morrer?", eu digo. "Antes de voltarmos", ele diz. "Nesse caso, por que leva Jewel?", eu digo."Preciso dele para me ajudar com a carga", ele diz.

    TullAnse continua a esfregar os joelhos. Seu poncho est desbotado; em um joelho, um remendo

    de sarja cortado de uma cala domingueira j est reluzente de tanto uso. "No gosto disto, nem umpouco", ele diz.

    " preciso a gente antecipar as coisas", eu digo. "Mas, de qualquer forma, no haver malalgum." "Ela quer partir imediatamente", ele diz. "E Jefferson no fica nada perto." "Mas as estradasesto boas agora", eu digo. Alm disso, vai chover esta noite. E os parentes dele esto enterrados emNew Hope, a menos de cinco quilmetros de distncia. Mas prprio dele ter casado com umamulher que nasceu a um dia inteiro de viagem e que morre antes dele.

    Ele olha a plantao, esfregando os joelhos. "No gosto nada disso", diz. "Voltaro comtempo de sobra", eu digo. "Se fosse voc, no me preocuparia." "Sero trs dlares", diz. "Talvezno precisem voltar a toda pressa", eu digo. "Espero que no." "Ela est se acabando", diz. "Nopensa em outra coisa." Sem dvida, a vida das mulheres dura. De algumas mulheres. Lembro quemame chegou at os setenta e poucos. Ocupada o dia inteiro, chovesse ou fizesse sol; no caiu decama um s dia, desde que lhe nasceu o ltimo filho, at que, um dia, pareceu olhar em volta, foiapanhar a camisola rendada que tinha h quarenta e cinco anos e nunca havia tirado da arca, vestiu-a,estirou-se na cama e, puxando o cobertor, fechou os olhos. "Agora vocs todos cuidem de Pai omelhor que puderem", disse ela. "No aguento mais." Anse esfrega as mios nos joelhos. "Deusprov", diz. Podemos ouvir a serra e o martelo de Cash, no oito da casa, verdade. Nunca ningum

  • disse nada mais verdadeiro. "Deus prov", repito. O rapaz sobe a colina. Traz um peixe quase tocomprido quanto ele. Atira-o ao cho e resmunga: "Ahn", e cospe, por cima do ombro, como umhomem. Um peixe quase do seu tamanho. "Que diabo isto?", digo. "Um peixe-porco? Onde opegou?" "Perto da ponte", ele diz. Vira o peixe, e a parte de baixo est grudada de poeira, e o olhofechado intumesceu sob a poeira. "Pretende deix-lo a mesmo?", diz Anse. "Vou mostrar a Me", dizVardaman. Olha para a porta. Podemos ouvir a conversa trazida pela corrente de ar. Tambmouvimos Cash, batendo nas tbuas. "Agora ela tem visitas", diz. " o meu pessoal", digo. "Tambmgostaro de ver o peixe." Ele no diz nada, observando a porta. Depois, volta a olhar o peixetombado no p. Vira-o com o p e, com o dedo grande do p, comprime o olho saltado. Anse mira aplantao. Vardaman olha o rosto de Anse, depois a porta.

    Volta-se, avanando para o canto da casa, quando Anse e chama sem olhar ao redor. "Limpe epeixe", diz Anse.

    Vardaman para. "E por que Dewey Dell no o limpa?' "Limpe o peixe, voc", diz Anse."Ora, Pai"- diz Vardaman."Limpe-o, voc mesmo", diz Anse. No olha ao redor. Vardaman volta e apanha o peixe. O

    peixe escorrega-lhe das mos, sujando-o de lama, e cai ao cho, emporcalhando-se novamente; deboca aberta, olhos protuberantes, esconde-se no p, como se tivesse vergonha de estar morto, comose tivesse pressa de ocultar-se outra vez. Vardaman pragueja contra ele. Pragueja como um adulto,em p, com o peixe entre as pernas. Anse no olha ao redor. Vardaman apanha novamente o peixe.Rodeia a casa, levando-o nos braos como quem carrega uma braada de lenha, e a cabea e o rabodo peixe saem pelos lados. Quase do tamanho de Vardaman.

    Os punhos de Anse ultrapassam as mangas: nunca o vi, em toda a minha vida, com uma camisaque parecesse sua. Parece at que Jewel lhe d as camisas que vo ficando velhas. Mas a camisa no de Jewel. Ele tem os braos compridos e o corpo espigado. E. alm do mais, no h mancha desuor. Pode-se dizer, sem medo de errar, que elas no pertenceram a mais ningum, salvo Anse. Seusolhos, estendidos alm da plantao, parecem dois carves queimados fixos no rosto.

    Quando a sombra da tarde atinge os degraus, ele diz: "So cinco horas." Assim que melevanto, Cora aparece porta: diz que chegou a hora de irmos embora. Anse procura os sapatos."Ora, Mr. Bundren", diz Cora, "no se levante agora." Ele cala os sapatos, com dificuldade, o quesempre lhe acontece, pois pensa que no tem foras para nada, mas, assim mesmo, insiste. Quandoentramos no corredor, ouvimos os sapatos arrastarem-se no cho como se fossem de ferro. Dirige-se porta do quarto onde ela est, piscando os olhos, como quem espera encontr-la de p, talvez numacadeira ou talvez varrendo o cho, e olha, porta adentro, com aquela sua atitude de surpresa com quesempre a olhou, e sempre a encontra na cama, todas as vezes, e Dewey Dell ainda maneja o leque.Ele para ali, como se no quisesse mover-se, ou coisa que o valha.

    "Bem, acho que melhor a gente se apressar", diz Cora. "Tenho de dar de comer s galinhas."Alm disse, vai chover. Nuvens como essas no enganam, e o algodo recebe todos os dias asbnos do Senhor. Mais um problema para ele. Cash ainda aplaina as tbuas. "Se que noprecisam de ns...", diz Cora.

    "Anse nos conhece", eu digo. Anse no nos olha. Olha ao redor, piscando, naquela suamaneira surpreendida, como se fosse a primeira vez, e, ainda mais, como se a sua surpresa oassombrasse. Ah, se Cash trabalhasse com o mesmo empenho no meu celeiro. "Eu disse a Anse queprovavelmente no haver necessidade de nada", digo. "Pelo menos, espero que no." "Ela no pensa

  • em outra coisa", diz ele. "Acho que est decidida a ir." " o que nos espera, a todos ns", diz Cora."Que Deus no nos abandone." "Eu me referia quele milho", digo. E volto a garantir-lhe que oajudarei, estando ela doente e tudo isso. Como a maior parte das pessoas desta regio, j o ajudeitanto que no posso parar agora. "Queria colher o milho hoje", ele diz. "Mas parece que no consigopensar em nada." "Talvez ela aguente at voc recolher o milho", cu digo. "Deus queira", diz Cora,Ah, se Cash trabalhasse assim, com todo o cuidado, no meu celeiro. Ele ergue a vista quandopassamos. "No sei se posso trabalhar para voc esta semana", diz. "No ha pressa", digo. "Vquando puder." Subimos na carroa. Cora pe a caixa com os bolos no colo. certo que vai chover."No sei o que vai ser dele", diz Cora. "Juro que no sei." "Pobre Anse", digo. "Ela forou-o atrabalhar durante trinta anos. Acho que est cansada." "E tenho a impresso que ela o perseguir pormais trinta anos", diz Kate. "Se no for ela, Anse arranjar outra_ antes da colheita do algodo." _"Creio que, agora, Cash e Darl podem casar", diz Eula. "Esse pobre rapaz", diz Cora. "Essepobrezinho." "E que me diz de Jewel?", diz Kate. 'Tambm pode casar", diz Eula. "Uhm", diz Kate."Acho que ele quer. Acho que sim.

    Mas existem por aqui muitas moas que no gostariam de ver Jewel amarrado. Bem, elas noprecisam se preocupar." "Puxa, Kate", diz Cora. A carroa comea a chiar. "O pobrezinho", dizCora.

    Sem dvida vai chover esta noite. Sim, senhor. Uma carroa que chia sinal de tempoexcessivamente seco. Especialmente quando se trata de uma Birdsell*. Mas d-se um jeito. Tenhocerteza.

    "Ela devia ficar com os bolos, j que fez a encomenda", diz Kate.*Marca de carroas e charretes. (N. do T.)

    AnseDiabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um

    temporal atrs deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada. Fao o queposso, espremo a cabea, mas o diabo desses rapazes. ..

    Estirada aqui, bem minha porta, um lugar que favorece a m sorte. Eu disse a Addie que noera bom morar beira de uma estrada, quando a estrada chegou at aqui, e ela respondeu, no seurampante de mulher: "Ento levante-se e mude-se."

    Mas eu lhe disse que no adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa se movimente, faz a coisacomprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroa, mas quando Ele quer que uma coisa fiquequieta, Ele faz a coisa para cima, como uma rvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que aspessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? possvelcolocar uma estrada perto de uma casa?, eu pergunto. No, nunca, eu respondo, porque os homensno descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroa, deixando aspessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como umarvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse que os homens andassem sempre de um ladopara outro, no lhes teria encompridado o ventre, como fez s cobras? Claro que sim, se Ele tivessequerido.

  • A est a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto minha porta, sem falar,acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria, quando de no teria tidotal ideia se a estrada no viesse ter aqui; e no teria cado da igreja para ficar seis meses de mosabanando e eu e Addie morrendo de trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e eleteria serrado, se estivesse em condies.

    E Darl? Todos querendo afast-lo de mim, malditos sejam. No que eu receie o trabalho;sempre ganhei o sustento para mim e os de casa e nunca nos faltou um teto: o problema que queriamtirar-me Darl s porque ele sabe onde tem o nariz, s porque ele vive a pensar na plantao. Eu lhesdisse: ele ia bem, a principio, com os olhos postos na terra, porque a terra se estendia para cima epara baixo; foi quando essa estrada apareceu e dividiu e encompridou a terra, e como os olhos deDarl continuassem postos na terra, ento eles comearam a ameaar-me de tir-lo de mim, com aajuda da lei.

    Fizeram-me pagar por isso. Ela era uma mulher s e forte como no havia outra, mas apareceua estrada. Ela se deitou para descansar, em sua prpria cama, sem pedir nada a ningum. "Estdoente, Addie?", eu disse.

    "No estou doente", ela disse."Fique deitada e descanse bem", eu disse. "Sei que no est doente. Est apenas cansada.

    Fique deitada e descanse." "No estou doente", ela disse. "Vou me levantar." "Esteja quieta e descanse", eu disse. "Voc est s cansada. Pode se levantar amanh." E ela ficou deitada, s e forte como no havia outra mulher, se no fosse a estrada."Eu nunca mandei cham-lo", eu disse. "Tomo voc como testemunha de que nunca mandei

    cham-lo." "Sei que no mandou", disse Peabody. "No estou duvidando. Onde est ela?" "Est deitada", eu disse. "S um pouquinho cansada, mas ela..." "Saia daqui, Anse", ele disse. "V sentar-se um pouco no alpendre." E agora tenho de pagar, eu que no tenho um dente na boca, eu que esperava economizar para

    poder consertar a boca e comer conforme Deus manda que um homem coma, e ela s e forte comono havia outra mulher por aqui at aquele dia. Obrigado a pagar para ter necessidade agora dessestrs dlares. Obrigado a pagar para que os rapazes tenham de sair para ganh-los. E agora eu possover, como se adivinhasse, que a chuva vai desabar entre ns, que vai chegar por essa estrada comoum homem amaldioado, como se no existisse outra casa em que chover por todo o mundo dosvivos.

    Tenho ouvido gente maldizer a sorte, e com razo, pois era gente pecadora. Mas, comigo, no praga, porque nada fiz de que me possa arrepender. No sou religioso, reconheo. Mas minhaconscincia est em paz: sei que est. Fiz coisas nem melhores nem piores do que os outros fazem edisfaram, e sei que Deus Nosso Senhor cuidar de mim como de um pardal que no consegue voar.Mas parece duro que um homem se veja em tantas dificuldades s por causa de uma estrada.

    Vardaman chega, por trs da casa, com os joelhos sujos de sangue como um leito, e aquelepeixe cortado em postas, provavelmente com um machado, ou quem sabe jogado fora, para ele mementir ento, dizendo que os ces o comeram. Bem, acho que no posso esperar dele mais do querecebo de seus irmos maiores. Ele se aproxima, observando a casa, tranquilo, e se senta nosdegraus. "Ufa", diz, "estou morto de cansao." "V lavar as mos", digo. No h mulher melhor que

  • Addie para mant-los na linha, homens e meninos: tenho de confessar."Estava cheio de sangue e de tripas, como um leito", ele diz. A verdade, porm, que no

    tenho disposio para coisa alguma, ainda mais com este tempo que me entristece. "Pai", ele diz,"Me piorou?" "V lavar as mos", digo. A verdade que no tenho mesmo disposio para nada.

    DarlEle foi cidade esta semana: a nuca est toda rapada, com uma linha branca entre o cabelo e a

    pele tostada, qual junta de osso branco. No se virou uma s vez para olhar."Jewel", eu digo. Correndo para trs, afunilada entre os dois pares de orelhas inquietas das

    mulas, a estrada desaparece embaixo de carroa como se fosse uma fita e o eixo da frente umcarretel. "Voc sabe que ela vai morrer, Jewel?"

    Para fazer a gente, so necessrias duas pessoas; para morrer, basta uma. Assim o mundomarcha para o fim.

    Eu disse a Dewey Dell: "Voc quer que ela morra para poder ir cidade, no ?" Ela no pretendia dizer aquilo que ns dois sabamos. "A razo de voc no querer dizer

    que, quando diz, mesmo a voc, sabe que verdade, certo? Ainda agora voc sabe que verdade.Quase posso dizer o dia em que voc soube que verdade. Por que, ento, no dizer isto, mesmo a siprpria?" Mas ela no dir. Insiste apenas em perguntar:. "Vai contar a Pai? Vai mat-lo?" "Voc nopode acreditar que verdade porque no pode acreditar que Dewey Dell, Dewey Dell Bundren,viesse a ter tanto azar, certo?" O sol, que permaneceu uma hora acima do horizonte, pousou, qual ovoensanguentado, sobre uma crista de nuvens ameaadoras; a luz tomou-se de cobre: fatdica para osolhos, sulfurosa para o nariz, cheirando a relmpagos. Quando Peabody chegar, tero de usar acorda. Ele entupiu as tripas de tanto comer verduras cruas. Com a corda eles o faro subir pelaestrada, qual balo no ar sulfuroso.

    "Jewel", eu digo, "voc sabe que Addie Bundren est morrendo? Que Addie Bundren estmorrendo?"

  • PeabodyQuando Anse, por fim, mandou-me chamar, por sua prpria conta, eu disse: "Ele acabou

    gastando inteiramente a mulher." E eu disse: "Que coisa", e no comeo pensei em no ir, porque, seainda pudesse fazer alguma coisa, eu teria de arranc-la fora, Deus me perdoe. Pensei que talvezhaja no cu a mesma tica estpida da Faculdade de Medicina, e que provavelmente Vernon Tull memandaria chamar outra vez, no exato momento, como Vernon sempre faz, tirando do dinheiro de Ansemaior proveito do que tira de seu prprio dinheiro. Mas quando o dia, j avanado, no me permitiuprever o tempo, eu compreendi que o chamado viera de Anse e de mais ningum. Compreendi que sum homem infeliz teria necessidade de mdico quando irromper um ciclone . E eu sabia que, seocorrera a Anse a ideia de chamar um mdico, porque j seria tarde demais.

    Quando cheguei nascente e desci e atei as rdeas da parelha, o sol j se escondera atrs deum barranco de nuvens negras semelhantes ao cume de um macio montanhoso, semelhantes a umcarregamento de cinzas ali derramado, e no ventava. Ouvi a serra de Cash a quilmetro e meio dedistncia, antes de chegar l. Anse estava em p rio alto do morro acima da vereda.

    "Onde est o cavalo?", pergunto. "Jewel levou-o", ele diz. "Ningum mais conseguiria. Acho que voc tem de ir a p." "Eu, subir a p, com meus cento e dez quilos", digo. "Subir este maldito morro?" Ele est de p, junto a uma rvore. Pena que o Senhor tenha feito o erro de dar razes s

    rvores e ps e pernas aos Anse Bundrens que Ele espalha no mundo. Se Ele fizesse ao contrrio,no haveria risco algum de esta regio ficar algum dia desflorestada. Ou qualquer outra. "Que querque eu faa?", digo. "Que fique aqui parado, at que o vento me carregue, quando aquela nuvemdespencar?" Mesmo a cavalo seriam necessrios quinze minutos para cruzar o pasto at o alto daelevao e chegar casa. A vereda parece um membro torto atirado contra a vertente. Anse no vai cidade h doze no. Eu s que- ria saber como que sua me subiu at l para traz-lo ao mundo,visto que ele o filho de sua me.

    "Vardaman vai trazer a corda", ele diz.Dentro em pouco Vardaman aparece com a corda do arado. Entende a ponta a Anse e desce

    pela vereda, desenrolando-a."Segure firme", eu digo. "J registrei esta visita nos meus livros, de forma que, chegue ou no

    l em cima, voc ter de me pagar"."Eu aguento firme", diz Anse. "Pode subir." O diabo me leve se eu sei por que no desisto. Um homem de setenta anos, com mais de 110

    quilos, tendo de subir a uma maldita montanha e depois descer, agarrado a uma corda. Acho que porque tenho de atingir os cinquenta mil dlares anotados nos livros, antes de me aposentar.

    "Por que diabo sua mulher foi cair doente?", eu digo, "e logo no alto de uma condenadamontanha?"

    "Sinto muito", ele diz.Larga a corda, deixa-a cair e se vira para a casa. Ela ainda est banhada pela fraca luz do dia,

    da cor de barras de enxofre. As tbuas parecem tiras de enxofre. Cash no olha para baixo. VernonTull diz que ele leva cada tbua ao peitoril da janela, para que ela a veja e aprove. O rapaz toma anossa dianteira. Anse volta-se e olha-o.

  • "Onde est a corda?", pergunta."Est onde voc deixou-a", digo. "Mas no se preocupe com a corda. Terei de descer desse

    despenhadeiro. No quero que a tempestade me apanhe aqui em cima. Assim que terminar a consultasairei correndo, tangido pelo diabo."

    A moa est em p ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabea e nosencara. H dez dias est como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse durante tanto tempo,ela no se decide a fazer a mudana, se que se trata de mudana. Lembro-me que, quando jovem, eujulgava a morte um fenmeno do corpo; agora, sei que no passa de funo do esprito tambm doesprito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte o fim; os fundamentalistas, que oprincpio; quando, na realidade, no mais que um inquilino ou uma famlia que sai de uma casaalugada ou de uma cidade.

    Ela olha para ns. Apenas seus olhos parecem mover-se. como se nos tocasse, no com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma

    mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nuncativesse sado por ali. No olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz.Debaixo do cobertor ela est reduzida a um feixe de varas podres.

    "Ento, Miss Addie", eu digo. A moa no para o leque. "Como vai, irm?", eu digo. Suacabea descarnada no travesseiro olha para o rapaz. "Voc escolheu uma bela ocasio para me trazeraqui, na iminncia de uma tempestade." Em seguida, mando Anse e o rapaz sarem. Ela acompanhacom os olhos o rapaz sair do quarto. Ainda no se moveu, exceo dos olhos.

    Ele e Anse esto no alpendre, quando eu saio, o rapaz sentado nos degraus, Anse em p, juntoa um esteio, mas sem se escorar, os braos cados, o cabelo revolto e emaranhado no alto da cabeaqual um galo molhado. Vira a cabea, pestaneja na minha direo.

    "Por que no me mandou chamar mais cedo?", eu digo."Com uma coisa e outra, o tempo foi passando", ele diz. "Eu e os rapazes queramos colher o

    milho, Dewey Dell cuidava bem dela, e os vizinhos vinham ajudar, at que eu pensei..." "O dinheiro que v para o inferno" eu digo. "Voc j me viu perseguir algum antes de me

    poder pagar?" "No foi por causa do dinheiro", ele diz. "Eu apenas pensei... Ela est nas ltimas, no ?" O maldito moleque est sentado no degrau de cima, parecendo menor luz cor de enxofre.

    Esta regio tem um defeito: tudo, o tempo, tudo dura demais. Nossos rios, nossa terra: opacos,vagarosos, violentos; modelando e criando a vida do homem sua implacvel e soturna imagem.

    "Eu j sabia", disse Anse. "Sempre tive certeza. Ela meteu isso na cabea." "Maldita coisa", cu digo. "Com um insignificante..." Ele continua sentado no degrau de cima,

    pequeno, imvel no macaco desbotado. Quando eu entrei, olhou-me, depois a Anse. Mas agoraparou de nos olhar. Limita-se a ficar sentado.

    "Voc avisou-a?", pergunta Anse."Para qu?", eu digo. "Para que diabos iria avis-la?" "Ela j sabe. Eu sabia que, quando ela visse voc, ficaria sabendo, como se a coisa estivesse

    escrita. No preciso dizer-lhe. Ela meteu..." Atrs de ns, a moa diz: "Pai." Olho para ela, em pleno rosto."Melhor que voc saia logo", digo.Quando entramos no quarto ela est vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem

  • candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. "Ela quer que o senhor v embora", diz amoa.

    "Ora, Addie", diz Anse, "depois que ele veio de Jefferson para sarar voc?" Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. J observei

    isto em outras mulheres. J as vi expulsar do quarto as pessoas que iam levar-lhes simpatia epiedade, alm de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram debesta de carga. Eis o que elas entendem por amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo deesconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco s salas de cirurgia, edevolvemos conosco, de maneira estpida e furiosa, terra.

    Saio do quarto. Alm do alpendre, a serra de Cash ronca firme na tbua. Um minuto depoisela o chama, em voz spera e forte.

    "Cash", diz. "Escuta, Cash!"

    DarlPai est em p ao lado da cama. Por trs de sua perna, Vardaman espia, com a cabea redonda

    e os olhos redondos e a boca que comea a se abrir. Ela olha Pai: parece que toda a sua dbil vidaflui para os olhos, urgente, irremediavelmente. " Jewel quem ela quer ver", diz Dewey Dell.

    "Ora, Addie", diz Pai, "ele e Darl foram apanhar outro carregamento. Julgaram que haveriatempo. Que voc esperaria por eles, e que esses trs dlares, afinal..."

    Inclina-se e pe a mo na mo dela. Por um Instante ela o olha, sem censura, sem nada, comose os olhos apenas aguardassem o momento de ouvir a irrevogvel cessao da voz dele. Emseguida, soergue-se, ela que no se move h dez dias. Dewey Dell debrua-se sobre a cama, tentandofazer com que se deite.

    "Me", ela diz, "Me." Est olhando pela janela, para Cash que, inclinado com determinao sobre o cavalete, luz

    desfalecente, trabalha quase no escuro, e entra no escuro como se o golpe da serra iluminasse seuprprio movimento- engendrado pela tbua e pela serra.

    "Cash!", ela grita com voz spera, forte, inalterada. "Escute, Cash!" Ele levanta o olhar para orosto consumido que o crepsculo emoldura na janela. O mesmo quadro desde os seus tempos decriana, Ele pousa a serra e ergue a tbua para que ela a veja, olhando a janela do onde o rosto nose move. Levanta outra tbua e junta as duas, em sua final justaposio, apontando para as tbuas queainda esto no solo, e modelando, com a mo vazia, em pantomima, o caixo, quando estiver pronto.Durante mais um pouco ela olha para ele, do quadro composto pela janela, .sem censura ouaprovao. Depois, o rosto desaparece.

    Ela se deita novamente e vira a cabea, sem um olhar de relance, sequer, para Pai. OlhaVardaman; seus olhos, a vida neles, a vida que ainda tem, ali se concentra; os dois clares luzem porum rpido instante, e depois se apagam, como se algum, tendo se inclinado, houvesse soprado.

    "Me", diz Dewey Dell, "Me!" Inclinada sobre a cama, as mos um pouco erguidas, o leque ainda agitando-se, como h dez

    dias, ela comea a lamuriar-se. Sua voz forte, juvenil, trmula e clara, arrebatada por seus prpriotimbre e volume; ainda agita, o leque com firmeza, para cima e para baixo, sussurrando no ar intil.

  • Depois, ela cai sobre os joe lhos e Addie Bundren, e agarrando-a, sacode-a com a furiosa fora dosjovens, antes de estender-se, de sbito, sobre o punhado de ossos corrodos que resta de AddieBundren, abalando a cama com o silvo rangente do colcho, os braos estendidos e o leque, numadas mos, ainda a bater, com um sopro expirante, no cobertor.

    Por trs da perna de Pai, Vardaman espia, de boca bem aberta e a cor fluindo do rosto para aboca, como se, de certo modo, houvesse cravado os dentes em si mesmo, sugando. Comea a seafastar vagarosamente da cama, os olhos redondos, o rosto plido desmaiando no crepsculo qualpedao de papel colado a uma parede arruinada, e sai pela porta.

    Pai inclina-.se para a cama; ao crepsculo sua silhueta encovada assemelha-se ao aspectoeriado, descontente, de um mocho que disfara uma sabedoria por demais profunda, ou por demaisinerte para ser, sequer, concebida.

    "Meninos danados", ele diz.Jewel, eu digo. Por cima, o dia definha, montono e cinzento, escondendo o sol atrs de

    uma nuvem de lanas cinzentas, As mulas fumegam um pouco, sob a chuva, amarelecidas pelosrespingos de lama, e a da direita, apesar de escorregar, mantm se na estrada, acima da valeta. Acarga de madeira despede um brilho amarelo-escuro, empapado , de gua e pesado como chumbo,inclinado de banda, para a valeta, por sobre a roda quebrada; em volta dos raios entranados eem volta dos tornozelos de Jewel, um fio grosso de gua e amarelo, nem gua nem terra, gira,seguindo a estrada amarela, nem gua nem terra, desce pela encosta em forma de massa dissoluta,verde-escuro, nem gua nem cu. Jewel, eu digo Cash aparece porta, de serra na mo. Paicontinua em p, ao lado da cama, curvado, os braos pendentes. Volta a cabea; seu perfil gasto e seuqueixo desaparecem devagar, enquanto ele comprime o fumo contra as gengivas.

    "Findou-se", diz Cash."Foi embora e nos deixou", diz Pai. Cash no o olha. "Falta muito para acabar o trabalho?",

    pergunta Pai. Cash no responde- Entra carregando a serra. " melhor acabar o trabalho", diz Pai."Voc tem de caprichar, agora que os rapazes esto a caminho." Cash pousa os olhos no rosto dume. No ouve Pai de forma nenhuma. No se aproxima da cama. Para no meio do quarto, a serracontra a perna, os braos suados polvilhados de serragem, o rosto grave. "Se estiver apertado, talvezalgum venha amanh dar-lhe ajuda", diz Pai. "Vernon, por exemplo." Cash no est ouvindo. Olha orosto da me, pacificado e rgido, esmaecendo ao crepsculo como se as sombras se antecipassem ltima terra, at que, por fim, o rosto parece flutuar, destacado de si mesmo, leve como o reflexo deuma folha morta. "No faltam bons cristos para ajudar voc", diz Pai. Cash no escuta. Depois dealgum tempo, vira-se sem olhar Pai e deixa o quarto. Depois, a serra comea a roncar novamente."Vo nos ajudar em nossa desgraa", diz Pai.

    O som da serra firme, competente, sereno; agita a claridade mortia, de forma que, a cadagolpe, o rosto da morta parece despertar um pouco, em expresso de ateno e espera, como se elaestivesse contando os golpes. Pai baixa o olhar para o rosto, junto aos cabelos pretos e esparramadosde Dewey Dell que, de braos abertos, tem o leque agora imvel sobre o cobertor descorado. "Achoque melhor voc preparar o jantar", ele diz.

    Dewey Dell no se move."Levante-se, j e j, e v servir o jantar", diz Pai. "Temos de manter as foras. O Dr. Peabody

    deve estar faminto por causa da caminhada, E Cash ter de comer ligeiro e voltar ao trabalho a fimde terminar tudo a tempo." Dewey Dell levanta-se com dificuldade. Contempla o rosto da morta. Ele

  • parece um molde de bronze plido sobre o travesseiro somente nas mos um ligeiro vestgio de vida:uma inrcia encrespada, nodosa; um aspecto de coisa gasta, mas ainda vigilante, do qual ainda nosaram a preocupao, a fadiga, o trabalho, como se duvidassem ainda da realidade do repouso,guardando com penosa e eriada vigilncia a imobilidade que bem sabem no pode durar.

    Dewey Dell inclina-se, puxa o cobertor debaixo das mos e estende-o ate o queixo, alisando-o, estirando-o at que fique bem macio. Depois, sem olhar Pai, ela contorna a cama e sai do quarto.

    Vai ao encontro de Peabody, a um lugar onde passa, em p a penumbra, fitar-lhe as costascom tal expresso que, sentindo seus olhos e voltando-se, ele dir: "No fique as sim todesgostosa. Ela era velha e estava doente. Sofria mais do que se podia imaginar No ia ficar boa.Vardaman est crescendo e, como voc, tomar conta de todos. Eu, em seu lugar, no ficaria todesgostoso. Acho que melhor ir aprontar o jantar. No preciso fazer muita coisa. Mas eles tmde comer". E ela, olhando-o, parece dizer: "O senhor bem que podia me ajudar, se quisesse. Sesoubesse. Eu sou eu e o senhor o senhor e eu sei e o senhor no sabe e o senhor podia fazermuito por mim se quisesse e se o senhor quisesse ento eu lhe contaria e ento ningum precisariaficar sabendo exceto o senhor e eu e Darl".

    Pai est em p ao lado da cama, de braos pendentes, encurvado, imvel. Leva a mo cabea, puxa o cabelo, ouvindo a serra. Aproxima-se e esfrega a mo, a palma e as costas da mo nacoxa, e depois pe a mo no rosto e no dorso do cobertor, onde esto as mos dela. Toca o cobertorcomo viu Dewey Dell fazer, tentando alis-lo at o queixo, mas, em vez disso, enrugando-o. Procuraalis-lo de novo, desajeitadamente; a mo trapalhona como uma garra alisa as rugas que ele fez e quecontinuam a emergir debaixo da mo, com perversa ubiquidade, de forma que, por fim, ele desiste; amo tomba na ilharga e ele volta a esfregar palma e costas da mo na coxa. O som da serra roncacom firmeza dentro do quarto. Pai respira com um som tranquilo e rascante, mastigando o tabacocontra as gengivas. "Seja o que Deus quiser", diz. "Agora posso comprar a dentadura." O chapu deJewel pende mole sobre seu pescoo, escorrendo gua sobre o empapado saco de aniagemamarrado ao ombro, enquanto ele, enterrando os ps na valeta lamacenta, levanta o eixo com umpedao de pau escorregadio e podre, que usa como alavanca. Jewel, eu digo, ela est morta,Jewel. Addie Bundren morreu.

    VardamanEnto eu comeo a correr. Corro para os fundos e chego ao canto do alpendre e paro. Ento

    comeo a chorar. Eu posso sentir onde o peixe estava na poeira. Est cortado agora em pedaos, empedaos de coisas que no so peixe, e no tenho sangue nas mos e no macaco. Ainda no tinhaacontecido isto. Isto nunca tinha acontecido. E agora ela est to longe que eu no posso alcan-la.

    As rvores parecem galinhas quando se revolvem na poeira fria, nos dias quentes. Se eu saltarpelo alpendre, cairei no lugar onde o peixe estava, o peixe que no mais peixe, cortado que foi empedaos. Posso ouvir a cama e o rosto dela e eles todos e posso sentir o cho estalar quando elecaminha, ele que veio e fez isto. Ele que veio e fez isto quando ela estava boa, mas ele veio e fezisto.

    "O gordo filho da puta." Salto o corrimo, na carreira. O topo do celeiro emerge, em curvadesgraciosa, do crepsculo. Se eu saltar, posso atravess-lo como a senhora de mai cor-de-rosa do

  • circo, e penetrar no cheiro quente, sem precisar esperar. Minhas mos agarram os arbustos; debaixodos meus ps, as pedras e a terra escorregam.

    Agora posso respirar outra vez, no cheiro quente. Entro na cavalaria, (tentando tocar nele, eento posso chorar mas engulo o choro. Assim que ele para de dar coices, eu posso chorar, euconsigo chorar.

    "Ele matou-a. Ele matou-a." A vida corre embaixo de sua pele, debaixo de minha mo,corrodo pelas manchas, cheirando em meu nariz onde a coceira comea a se transformar em choro,engolindo o choro, e ento eu posso respirar, contendo o choro. Tudo isto faz barulho. Posso cheirara vida correndo embaixo de minhas mos, subindo pelos meus braos, e ento cu posso sair dacavalaria.

    No consigo encontr-lo. No escuro, na poeira, nas paredes, no consigo encontr-lo. O chorofaz muito barulho. Eu queria que no fizesse tanto barulho. Ento eu o encontro na cocheira, no p, ecruzo o ptio, na carreira, e entro na estrada, o pau balanando em meu ombro.

    Eles me olham enquanto eu subo, e comeam a recuar aos saltos, rolando os olhos,resfolegando, puxando as rdeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo; posso ver opau atingir-lhes as cabeas, as rdeas, falhando s vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se,mas eu estou contente.

    "Voc matou minha me!" O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batemsurdas no cho; surdas, porque vai chover e o ar est vazio para receber chuva. Mas o pedao de pauque me restou ainda comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam asrdeas, e eu bato.

    "Voc matou-a!" Bato neles, bato, eles giram em longa investida, e o carro gira sobre as duasrodas at ficar imvel, como se cravado ao cho, e os cavalos param, imveis, como se pregadospelas patas traseiras ao centro de uma prancha giratria.

    Corro sobre a poeira. No consigo ver, correndo como estou na poeira absorvente, onde ocarro desaparece, inclinado sobre as duas rodas. Bato, o pau fere o cho, ressalta, fere a poeira e,depois, sobe novamente, e a poeira absorvente corre pela estrada, mais depressa que um automvelpor ali passando. E outra vez posso chorar, olhando o pau. Est quebrado em minha mo, um paucomprido agora reduzido a um pedao de lenha para o fogo. Atiro-o fora e posso chorar. Agora ochoro no faz muito barulho.

    A vaca est porta do estbulo, ruminando. Quando me v entrar no ptio, ela muge, a bocacheia de um verde gotejante, a lngua gotejando.

    "No vou ordenhar voc. No quero fazer isto para eles," Ouo-a virar-se quando passo.Quando me viro, ela est bem atrs de mim, soprando seu hlito doce, quente, pesado.

    "J no falei que no vou ordenhar?" Ela me empurra, resfolegando. Geme por dentro, com aboca fechada. Levanto a mo e praguejo contra ela, como Jewel faz. "D o fora." Abaixo a mo ecorro para ela. Ela retrocede com um pulo, gira e para, observando-me. Muge. Dirige-se vereda epara ali, olhando o alto da vereda, O estbulo est escuro, quente, cheiroso, silencioso. Posso chorarem paz, olhando o cimo da colina.

    Cash aparece na colina, coxeando por causa da queda que sofreu da igreja. Olha, embaixo, anascente, depois a estrada, em cima, e embaixo, de novo, o estbulo. Desce pela vereda, rgido, olhaas 'rdeas partidas e a poeira da estrada e em seguida a estrada, mais acima, onde a poeiradesapareceu.

  • "Acho que, a essa hora. passavam pela casa de Tull. o que espero." Cash volta-se e sobe,coxeando, a vereda.

    "Maldito seja ele. Vou dar-lhe uma lio. Maldito seja." No atou chorando agora, No sounada. Dewey Dell aparece na colina e me chama. "Vardaman." No sou nada. Estou tranquilo."Venha c, Vardaman." Agora posso chorar em paz, sentindo e ouvindo minhas lgrimas.

    "Ento, no havia acontecido nada. Ainda no havia acontecido. Ele estava aqui, ali, estiradono cho. E agora ela se prepara para cozinh-lo." Escureceu. Posso ouvir o bosque, o silncio: eu osconheo. Mas os sons no so de coisa viva, nem sequer dele. como se a escurido o retirasse desua integridade, espalhando seus elementos desconjuntados sopros e rudos de cascos; cheiros decarne fresca e de cabelo cheirando a amonaco; a iluso de uma totalidade coordenada com pelemalhada e ossos fortes sob os quais, isolado e secreto e familiar, h um ser diferente de meu ser. Euo vejo dissolver-se pernas, um olho assustado, manchas escuras semelhantes a frias labaredas e flutuar na escurido, em caldo evanescente; nem um, nem outro; um e outro, os dois e, no entanto,nenhum deles. Posso v-lo, ouvi-lo a recompor-se, acariciando, modelando sua rude forma machinho, anca, espdua e cabea; cheiro e som. No tenho medo.

    "Cozido e comido. Cozido e comido."

    Dewey DellEl e bem que podia me ajudar muito, se quisesse. Podia fazer tudo por mim. At parece que

    para mim tudo no mundo est dentro de um balde cheio de tripas, sendo de admirar que haja aliespao para uma coisa mais importante. Ele um grande balde de tripas e eu sou um pequeno baldede tripas e se no h espao para uma coisa mais importante num grande balde de tripas, por queprocurar, ento, num pequeno balde cheio de tripas? Mas eu sei que h, porque Deus deu um sinal smulheres, para quando estiverem em desgraa.

    Tudo porque estou sozinha. Se eu pudesse sentir apenas isto, seria diferente, porque eu noestaria sozinha. Mas se eu no estivesse sozinha, todo mundo saberia ento. E ele podia fazer muitopor mim, e ento eu j no estaria s. Pois, nesse caso, eu me sentiria bem, sozinha.

    Deixaria que ele se interpusesse entre eu e Lafe, tal como Darl entre eu e Lafe, e por isso Lafetambm est sozinho. Ele Lafe e eu sou Dewey Dell, e guando minha me morreu eu tive de fazerum esforo e sair de mim, e de Lafe e Darl, para lamentar que ele possa Jazer tanto por mim e nosaiba disso. No sabe de modo algum.

    Do alpendre dos fundos no posso ver a cavalaria. O som da serra de Cash chega daqueladireo. como um co fora de casa, rodeando a casa para ver em que porta a gente assoma,esperando vez de entrar. Ele disse: "Eu me preocupo mais que voc." E eu disse: "Voc no sabe oque e tormento, e por isso no |posso atormentar-me. Eu tento, mas no consigo pensar muito a pontode me afligir." Acendo a candeia na cozinha. O peixe, cortado em pedaos irregulares, sangratranquilamente na gamela. Eu o ponho depressa no guarda-loua e presto ateno ao corredor,ouvindo. Ela levou dez dias para morrer. Talvez ainda no saiba que j se foi. Talvez no queira irat que Cash... Ou talvez at que Jewel... Tiro o prato com verduras do guarda-loua e a bandeja depo do fogo apagado, e paro, vigiando a porta.

    "Onde anda Vardaman?", diz Cash. luz da candeia, seus braos polvilhados de serragem

  • parecem ter areia."No sei. No o vi." "A parelha de Peabody fugiu. Veja se encontra Vardaman. O cavalo se

    deixar pegar por ele." "Est bem. Avise o pessoal para vir jantar." No posso ver a cavalaria. Eudisse: "No sei como me afligir. No sei chorar. Tentei, mas no posso." Aps um instante, o som daserra chega cozinha, escuro, rente terra, na escurido crepuscular. Ento eu o avisto, avanando erecuando o corpo sobre o cavalete.

    "Voc a, venha jantar", digo. "Chame o doutor." Ele podia fazer tudo por mim. E no sabe.Ele suas tripas e eu sou as minhas tripas. E eu sou as tripas de Lafe. Eis a. No vejo por quemotivo ele no ficou na cidade. Somos gente do campo, no melhor que a gente da cidade. No vejopor que ele no ficou l. Ento, vejo o alto da cavalaria. A vaca est parada na vereda, embaixo,mugindo. Quando eu me volto, Cash desapareceu.

    Entro com a coalhada. Pai e Cash e ele esto sentados mesa."Irm, onde est aquele peixe grande que Bud pegou?", ele pergunta. Ponho o leite na mesa.

    "Ainda no tive tempo de cozinh-lo.""Umas verdurinhas no devem bastar para um homem do meu tamanho", ele diz. Cash est

    comendo. Em volta de sua cabea, a risca do chapu est gravada, pelo suor, no cabelo. Sua camisaest manchada de suor. No lavou as mos e os braos.

    "Voc devia ter arranjado tempo", diz Pai. "Por onde anda Vardaman?" Dirijo-me porta."No consigo encontr-lo." "Ei, irm", ele diz. "No se preocupe com o peixe. Acho que no ficarestragado. Venha sentar-se." "No estou preocupada", digo. "Vou ordenhar antes que comece achover." Pai serve-se e passa a travessa. Mas no comea a comer. Suas mos esto semifechadasnas bordas do prato, a cabea um pouco inclinada e o cabelo revolto recortado luz da candeia.Parece um boi logo aps ter sido abatido pela marreta, j sem vida, mas sem saber ainda que estmorto.

    Mas Cash est comendo, e ele tambm. "Melhor voc comer alguma coisa", ele diz. Estolhando para Pai. "Como Cash e eu.. Voc precisa."

    "Ahn", diz Pai. Soergue-se como um boi que, ajoelhado beira de um poo, recebe umainvestida. "Ela no vai me querer mal por isto."

    Quando no me podem ver da casa, corro. A vaca muge no sop do barranco. Empurra-me deleve, resfolegando, soprando seu hlito em doce e quente rajada atravs de meu vestido, contra minhapele quente, e mugindo. "Voc tem de esperar um pouquinho. Depois eu cuido de voc." Ela mesegue ao celeiro, onde deixo o balde. Ela sopra no balde, gemendo. "T disse. Voc tem de esperar.Agora tenho mais o que fazer." O celeiro est escuro. Quando passo, ele atinge a parede com doucoices. Continuo. A tbua partida como uma tbua esmaecida, sempre de p. Ento eu posso ver acolina, sentir o ar passando de novo, vagarosamente, pelo meu rosto e, onde a escurido menosdensa, vejo as manchas dos pinheiros na colina, sigilosos, espera.

    A silhueta da vaca emoldurada pela porta empurra a silhueta do balde, gemendo.Passo pelo estbulo. Estou quase a ultrapass-lo. Escuto-o muito tempo antes que ele possa

    dizer a palavra, e a parte que escuta tem medo que no haja tempo para ouvir. Sinto que meu corpo,meus ossos e a carne comeam a se separar, a se abrirem para a solido, e o processo de no ficarsozinha terrvel. Lafe. Lafe. "Lafe" Lafe. Lafe. Inclino-me um pouco para a frente, um p estendidoem passo morto. Sinto que a escurido passa pelo meu seio, pela vaca; comeo a perseguir aescurido, mas a vaca me detm e a escurido foge na doce rajada do queixoso alento da vaca, cheio

  • de madeira e de silncio."Vardaman. Venha c, Vardaman." Ele sai do estbulo. "Intrometido! Maldito intrometido"

    Ele no resiste; a ltima rajada de escurido escapa, silvando."Que isto? Eu no fiz nada.""Maldito intrometido" Minhas mos sacodem-no com dureza. Talvez eu no pudesse domin-

    las. Nunca pensei que pudessem sacudir to forte. Sacodem ns dois, nos fazem tremer."No fui eu", ele diz. "No pus as mos neles."Minhas mos param de sacudi-lo, mas eu ainda o seguro. "Que est fazendo aqui? Por que no

    responde quando eu chamo?" "Eu no estava fazendo nada." "V para casa e coma o seu jantar." Elerecua. Eu no o largo." Largue-me. Deixe-me ir embora."

    "Que esteve fazendo aqui? No veio aqui para me espiar?""Nunca. Nunca. Largue-me agora. Eu nem sabia que voc estava aqui. Deixe-me ir."Eu o seguro, inclino-me para perscrutar-lhe o rosto, sinto-lhe bem o rosto. Ela est a ponto de

    chorar. "V embora, ande. J servi o jantar e voltarei logo que tiver ordenhado. Melhor andardepressa antes que comam tudo. Espero que a parelha tenha voltado diretamente a Jefferson."

    "Ele matou-a", diz. E comea a chorar."Cale-se.""Ela nunca lhe fez mal e ele veio aqui e matou-a.""Cale-se." Ele debate-se. Eu continuo a agarr-lo. "Cale se.""Ele matou-a."A vaca vem atrs de ns, gemendo. Eu o sacudo novamente. "Pare com isso. Imediatamente.

    Se voc continuar assim, vai cair doente e no pode ir cidade. V para casa e coma seu jantar.""No quero jantar. No quero ir cidade.""Ento ns deixaremos voc aqui. Se no se comportar bem, ficar aqui. Vamos, v para casa

    antes que aquele balde de tripas coma todas as verduras." Ele caminha, desaparecendovagarosamente na colina. O cimo, as rvores, o telhado da casa recortam-se contra o cu. A vaca meempurra, gemendo. "Voc tem de esperar. O que voc tem ai dentro no nada em comparao comque eu tenho, embora voc tambm seja mulher."

    Ela me acompanha, gemendo. Ento o ar morto, quente e plido, sopra de novo contra meurosto. Ele podia dar um jeito, se quisesse. Mas nem mesmo desconfia. Ele podia fazer muito pormim, se soubesse. A vaca sopra em minhas ancas e costas um hlito quente, doce, estertoroso,queixoso. O cu estende-se raso sobre a encosta, sobre os secretos vultos de rvores. Alm dacolina, manchas de relmpagos sobem e desaparecem. O morto modela a terra morta na escuridomorta, at onde a vista alcana. Ele desce sobre mim, morto e quente, tocando minha nudez atravsdas roupas. Eu disse: "Voc no sabe o que tormento." Eu tambm no sei. Nem mesmo sei se estouaflita ou no. Se posso ou no. No sei se posso chorar ou no. No sei se cheguei a tentar ou no. Eume sinto como uma semente mida e selvagem na terra quente e cega.

    VardamanQuando terminarem eles vo met-la dentro e ento, durante muito tempo no pude dizer isso.

    Vi a escurido levantar-se e se afastar em redemoinhos e eu disse: "Vai preg-la ai dentro. Cash?

  • Cash? Cash?" Uma vez, estive encerrado no silo a porta nova era muito pesada para mim ela fechou-se eu no pude respirar porque o rato ficava com o ar todo. Eu disse: "Vai fech-la ai dentro compregos. Cash? Com pregos? Com pregos?" Pai caminha em volta. Sua sombra caminha em volta,sobre Cash que avana e recua o corpo manejando a serra, no cavalete que sangra.

    Dewey Dell disse que teramos bananas. O trem est atrs da cristaleira, vermelho sobre ostrilhos. Quando corre, a linha frrea brilha de quando em quando. Pai disse que a farinha, o acar eo caf esto muito caros. Porque eu sou um menino do campo e h meninos da cidade. Bicicletas. Porque a farinha, o acar e o caf custam tanto, quando a gente e menino do campo? "Em vez disso,voc no gostaria de comer mais bananas?" As bananas desapareceram, comidas. Sumiram. Quandoele corre, a linha frrea brilha novamente. "Por que eu no sou menino da cidade, pai?", perguntei.Deus me criou. Eu no pedi a Deus para me criar no campo. Se Ele pode fazer o trem, por que nopode nos fazer na cidade, por causa da farinha e do acar e do caf? "Voc no preferia comerbananas?" Ele anda em volta. Sua sombra anda em volta. No era ela. Eu estava l, olhando. Eu vi.Pensei que era ela, mas no era. No cru minha me. Ela havia sumido quando a outra se estirou nacama e puxou o cobertor. Ela havia sumido. "Ser que ela chegou cidade?" "Ela foi alm dacidade." "E todos esses coelhos e sarigueias foram mais longe da cidade?" Deus fez os coelhos e assarigueias. Fez o trem. Por que escolhe lugar diferente para eles irem, se ela igualzinha a umcoelho? Pai anda em volta. Sua sombra tambm. A serra ronca como se estivesse, a dormir. Mas, seCash pregar a tampa da caixa, ento ela no um coelho. E se ela no um coelho eu no podiarespirar no silo e Cash vai preg-la ai dentro. E se ela permite isto, ento no ela. Eu sei. Eu estaval. Eu vi quando deixou de ser ela. Eu vi. Eles pensam que e Cash vai preg-la. No era ela porqueelo estava atirado, l embaixo, na poeira. E agora est cortado em pedaos. Eu cortei-o. Est nacozinha, na gamela manchada de sangue, espera de ser cozido e comido. Ento, isso no haviaacontecido ainda e ela estava viva, e agora isso aconteceu e ela no estava viva. E amanh ele sercozido e comido e ela ser ele e Pai e Cash e Dewey Dell, e no haver nada na caixa e ento elapode respirar. Ele estava jogado no cho, l embaixo.' Posso perguntar a Vernon. Ele estava l e eleviu-o, e para ns dois ele estar e ela no estar.

    TullEra quase meia-noite e tinha comeado a chover quando ele nos acordou. Foi uma noite

    medonha, com a tempestade formando-se; uma noite em que se espera que acontea o pior, antes dese trazer o gado do pasto e se entrar em casa para jantar e meter-se na cama com a chuva comeandoa cair, e ento, quando a parelha de Peabody chegou aqui, coberta de espuma, com o a ms partido, ase arrastar, e a coleira por entre as patas do animal direita, Cora disse: " Addie Bundren. Elaacabou-se, afinal." "Peabody pode ter ido a um das dezenas de casas que existem nas redondezas",digo. "Alm disso, como voc tem certeza que z parelha de Peabody?" "Acha que no?", ela diz."Vamos, v atrelar os cavalos." "Para que?", digo. "Se ela acabou-se, nada podemos fazer at demanh. E a tempestade vai desabar." " meu dever", ela diz. "V recolher a parelha. Mas eu noqueria. "Acho melhor que eles nos chamem, se precisarem de ns. Voc nem mesmo tem certeza seela morreu." "Ora, no v que a parelha de Peabody? Insiste em dizer que no? Como quiser,ento." Mas eu no queria ir. Sempre achei que, se algum quer prestar ajuda, melhor esperar que lhe

  • peam. "Fiz meu dever de crist", diz Cora. "Quer se interpor entre eu e meu dever de crist?" "Vocpode ficar l o dia inteiro, amanh, se quiser", digo.

    Assim, quando Cora me acordou, j havia comeado a cho ver. Mesmo enquanto eu ia porta,com a candeia, fazendo-a brilhar, atravs do vidro, para que ele visse que eu ia atender, elecontinuou batendo porta. No muito alto, mas com firmeza, como se pudesse cair no sono enquantobatia, mas eu no havia percebido ainda que as pancadas soavam mais embaixo, na porta, at queabri e no vi nada. Levantei a candeia, a chuva cintilou adiante da candeia e Cora, atrs, no corredor,dizia: "Quem , Vernon?", mas eu no podia ver ningum, a princpio, at que baixei a candeia eexaminei o portal.

    Ele parecia um cozinho encharcado, com seu macaco, sem chapu cheio de lama at osjoelhos, pois caminhara seis quilmetros na lama. "Bem, que o diabo me leve", eu disse.

    "Quem , Vernon?", diz Cora. Ele olhou para mim, seus olhos redondos e pretos no centro,como quando a gente ilumina, de sbito, a cara de uma coruja. "No se esquea daquele peixe", diz."Venha para dentro", eu digo. "Que aconteceu? Sua ma me. .." "Vernon", diz Cora. Ele continuavaparado junto porta, no escuro. A chuva respingava a candeia, tamborilando de tal forma que eutinha mede que ela se quebrasse a qualquer instante. "Voc estava l", ele diz. "Voc viu o peixe."Ento Cora chegou-se porta. "Voc a, saia da chuva", ela diz, puxando-o para dentro, enquanto elecontnua a me observar. Parecia mesmo um cachorrinho encharcado, "Eu lhe disse", diz Cora. "Eu lhedisse que havia acontecido alguma coisa. Agora, v atrelar os cavalos." "Mas ele no disse..." Eleme olhou, gotas de chuva pingando no cho. "Est estragando o tapete", diz Cora. "V cuidar daparelha enquanto eu o conduzo cozinha." Mas ele continuava atrs, pingando gua, observando-mecom aqueles olhos. "Voc estava l. Voc o viu jogado no cho. Cash vai preg-la, e ele estavaestirado no cho. Voc o viu. Voc viu o sinal na poeira. Eu j vinha para c quando comeou achover. Portanto, podemos chegar a tempo." O diabo me leve se no senti calafrios, mesmo nosabendo ainda de nada. Mas Cora sabia. "Apronte a parelha o mais depressa que puder", diz ela."Ele est fora de si, de tanta dor e aflio." O diabo me leve se no senti calafrios. De quando emquando, a gente se pe a pensar. Sobre todas as tristezas e aflies deste mundo; que capaz de ferirem qualquer lugar, como o raio. Acho que. para a gente se resguardar, preciso muita f em Deus,embora eu sinta, s vezes, que Cora precavida demais, pois trata de afastar os outros e ficar o maisperto possvel do acontecimento. Mas ento, quando acontece uma coisa dessas, acho que ela temrazo e que no se pode dizer o contrrio e que uma bno ter uma mulher que age sempre compiedade e que me indica sempre boas aes.

    De vez em quando a gente tem de pensar nessas coisas. Sem exageros, porm. O que bom.Pois o Senhor deseja que a gente aja em vez de passar todo o tempo pensando, porque o crebro como uma pea de maquinismo: no precisa estar sempre em movimento. Melhor deix-lo funcionarrotineiramente, fazendo as tarefas do dia, sem utilizar, mais que o necessrio, nenhuma de suaspartes. J disse e repito que e isto mesmo o que se passa com Darl: ele pensa muito, sozinho. Coraest certa quando diz que ele precisa e de uma mulher para fortalecer-se. E quando penso nisso,concluo que, se o casamento a nica salvao de um homem, ento ele est perdido. Mas reconheoque Cora tem razo quando diz que a razo de Deus haver criado as mulheres est em que o homemno conhece seu prprio bem quando este bem aparece.

    Quando voltei casa com a parelha, eles j estavam na cozinha. Ela tinha-se vestido por cimada camisa de dormir e trazia um xale na cabea e sua sombrinha e sua bblia embrulhadas num

  • pedao de oleado; ele estava sentado num balde de boca para baixo, sobre a chapa de zinco dofogo, onde ela o tinha posto, e pingava gua no cho. "No consigo faz-lo falar, a no ser sobre umpeixe", ela diz. " castigo de Deus. Vejo as mos de Deus pousadas sobre este menino, para castigoe advertncia de Anse Bundren." "A chuva no havia comeado quando eu sa", ele diz. "Eu saantes. Eu j estava na estrada. E ele estava jogado na poeira. Voc o viu. Cash vai preg-la, masvoc o viu." Quando chegamos, a chuva havia engrossado, e ele viajara sentado entre ns dois,envolvido no xale de Cora. No falara mais nada; sentado, deixara que Cora segurasse a sombrinhasobre sua cabea. De vez em quando, Cora parava de entoar um cntico para dizer: " o castigo deAnse Bundren. Talvez