wittgenstein.pdf

15
5/21/2018 Wittgenstein.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/wittgensteinpdf 1/15 FREUD E WITTGENSTEIN: A PERSPICÁCIA DO CIENTISTA E A SABEDORIA DO FILÓSOFO [Publicado em Teixeira, A. & Massara, G. (Orgs.). Dez Encontros. Psicanálise e Filosofia. B. Hte: Opera Prima, 2000, p. 169-190] Paulo R. Margutti Pinto Introdução: a ambiguidade de Wittgenstein em relação a Freud O problema de estabelecer uma relação definida entre os pensamentos de Freud e de Wittgenstein revela-se bastante complexo. Isto é assim porque, por um lado, Freud nunca fez referência a Wittgenstein e, por outro, embora Wittgenstein tenha feito mais de uma referência a Freud, os textos em que elas se encontram são fragmentários e enigmáticos. Mesmo assim, os comentários de Wittgenstein sobre Freud parecem envolver críticas sutis à psicanálise, as quais justificam o continuado interesse pelo assunto. Para esclarecê-las, temos de enfrentar o desafio de esmiuçar as intenções de Wittgenstein. Uma ilustração da dificuldade deste empreendimento está na existência de observações ambíguas, até mesmo aparentemente contraditórias, de Wittgenstein a respeito de Freud. Por volta de 1940, ele declarou a Rush Rhees que era um discípulo e um seguidor de Freud (Wittgenstein 1994: 41). Em 1945, uma carta a Normam Malcolm, ele reconheceu que as críticas feitas à psicanálise em nada diminuíam a extraordinária realização científica de Freud (Bouveresse 1995: xix). Em outro momento, cuja data não é fácil de localizar, ele disse, na presença de Rush Rhees, que “sabedoria é algo que eu nunca esperaria de Freud. Perspicácia, certamente; mas não sabedoria” (Wittgenstein 1994: 41). Em 1946, ele afirmou que as imaginosas pseudo-explicações de Freud, exatamente porque são brilhantes, realizam um desserviço (Wittgenstein 1980: 55). Em 1951, ele também declarou que, embora a escrita de Freud seja excelente e que sua leitura constitua um prazer, tal escrita nunca é grandiosa [gro β ] (id.: 87). Em todas essas declarações, exceto na primeira, que é altamente elogiosa, podemos constatar a atribuição simultânea de um mérito e um demérito em Freud. A aparente contradição está em que boa parte destes deméritos não deveriam ser apontados por alguém que se diz um “discípulo de Freud”. Desse modo, se Wittgenstein tinha uma avaliação consistente de Freud, a explicação de como as

Upload: lucio6

Post on 12-Oct-2015

16 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • FREUD E WITTGENSTEIN: A PERSPICCIA DO CIENTISTA E A SABEDORIA DO FILSOFO

    [Publicado em Teixeira, A. & Massara, G. (Orgs.). Dez Encontros. Psicanlise e Filosofia. B. Hte: Opera Prima, 2000, p. 169-190]

    Paulo R. Margutti Pinto

    Introduo: a ambiguidade de Wittgenstein em relao a Freud

    O problema de estabelecer uma relao definida entre os pensamentos de Freud e de

    Wittgenstein revela-se bastante complexo. Isto assim porque, por um lado, Freud nunca fez referncia

    a Wittgenstein e, por outro, embora Wittgenstein tenha feito mais de uma referncia a Freud, os textos

    em que elas se encontram so fragmentrios e enigmticos. Mesmo assim, os comentrios de

    Wittgenstein sobre Freud parecem envolver crticas sutis psicanlise, as quais justificam o continuado interesse pelo assunto. Para esclarec-las, temos de enfrentar o desafio de esmiuar as intenes de

    Wittgenstein.

    Uma ilustrao da dificuldade deste empreendimento est na existncia de observaes

    ambguas, at mesmo aparentemente contraditrias, de Wittgenstein a respeito de Freud. Por volta de

    1940, ele declarou a Rush Rhees que era um discpulo e um seguidor de Freud (Wittgenstein 1994: 41). Em 1945, uma carta a Normam Malcolm, ele reconheceu que as crticas feitas psicanlise em nada diminuam a extraordinria realizao cientfica de Freud (Bouveresse 1995: xix). Em outro momento, cuja data no fcil de localizar, ele disse, na presena de Rush Rhees, que sabedoria algo que eu nunca esperaria de Freud. Perspiccia, certamente; mas no sabedoria (Wittgenstein 1994: 41). Em 1946, ele afirmou que as imaginosas pseudo-explicaes de Freud, exatamente porque so brilhantes,

    realizam um desservio (Wittgenstein 1980: 55). Em 1951, ele tambm declarou que, embora a escrita de Freud seja excelente e que sua leitura constitua um prazer, tal escrita nunca grandiosa [gro] (id.: 87). Em todas essas declaraes, exceto na primeira, que altamente elogiosa, podemos constatar a atribuio simultnea de um mrito e um demrito em Freud. A aparente contradio est em que boa

    parte destes demritos no deveriam ser apontados por algum que se diz um discpulo de Freud.

    Desse modo, se Wittgenstein tinha uma avaliao consistente de Freud, a explicao de como as

  • declaraes acima se articulam sem gerar contradio parece capital para compreendermos esta

    avaliao.

    O problema de explicar a articulao das declaraes wittgensteinianas a respeito de

    Freud foi enfrentado por vrios autores. Em todos eles, embora encontremos boas pistas para tal

    explicao, sempre parece faltar alguma coisa. McGuinnes, por exemplo, conclui que Wittgenstein

    aceitava e rejeitava Freud em igual medida. Ora, isto simplesmente repete o que j dissemos no pargrafo anterior. Isto assim porque as razes que McGuinness d para justificar sua interpretao so to fragmentrias quanto os textos de Wittgenstein e pecam pela falta de uma viso de conjunto do pensamento do filsofo austraco (ver McGuinness 1982). Coisa semelhante acontece com os estudos de Cioffi, que so bastante tcnicos, mas voltados para temas especficos, no articulados por uma

    viso de conjunto da filosofia wittgensteiniana (ver Cioffi 1989, Cioffi 1998). Nos dois casos, falta o elemento que considero fundamental para a soluo do problema, a saber, a referida viso de conjunto. Dois outros autores, Assoun e Bouveresse, apontam na direo certa. O primeiro considera que as

    relaes entre Freud e Wittgenstein devem ser tratadas como uma confrontao entre dois tipos

    diferentes de racionalidade (Assoun 1988: 13-14) e segundo concorda (Bouveresse 1995: 122 ss.). Mas, aqui tambm, alguma est incompleta. Nenhum dos dois deixa suficientemente claro o tipo de

    racionalidade que Wittgenstein representaria. Em minha opinio, falta um detalhamento maior desta

    ltima, detalhamento este que contribuir no apenas para esclarecer as relaes entre Freud e

    Wittgenstein, mas tambm as relaes entre o primeiro e o segundo Wittgenstein.

    O objetivo do presente texto realizar pelo menos parte desta tarefa. Para tanto, tendo em vista que a esmagadora maioria das observaes de Wittgenstein a respeito de Freud se encontram

    dispersas nos textos de sua segunda filosofia, concentrarei a anlise neste perodo da evoluo de seu

    pensamento. Isto no significa, porm, que no sero feitas referncias ao jovem Wittgenstein. Na verdade, pretendo mostrar que a explicao das declaraes acima se tornar mais clara na medida em

    que for possvel estabelecer alguma forma de continuidade no pensamento deste enigmtico autor.

    O procedimento que utilizarei para atingir este objetivo envolve dois passos fundamentais. Em primeiro lugar, farei uma comparao dos aspectos mais significativos das vises de

    mundo de Freud e Wittgenstein, estabelecendo, assim, o pano de fundo da discusso. Em segundo, com

    base na oposio entre estas vises de mundo, procurarei articular as observaes de Wittgenstein

    sobre Freud numa perspectiva coerente. Espero, com isso, poder colaborar para um maior

    esclarecimento dessa difcil questo.

    2

  • As vises de mundo de Freud e Wittgenstein: duas racionalidades muito diferentes

    Uma das caractersticas mais marcantes do pensamento de Freud o seu apreo pela

    viso cientfica do mundo. Isto explica a sua preocupao em fazer da psicanlise uma disciplina

    cientfica, que parece inspirada no modelo da medicina de tipo cartesiano. Podemos encontrar em

    Freud declaraes que revelam com clareza esta tendncia, como, por exemplo, a seguinte:

    Os analistas [...] no podem repudiar sua descendncia da cincia exata nem sua ligao com os representantes dela. [...] Os analistas so, no fundo, mecanicistas e materialistas incorrigveis (cit. por Capra 1997: 171).

    Tudo isso parece indicar uma firme adeso ao otimismo cartesiano, segundo o qual a

    clareza do pensamento capaz de reformar a vontade. isto que possibilita a idia de efetuar uma viagem ao mundo interior de cada um, para conhec-lo melhor e, desse modo, habit-lo com maior

    segurana. Neste sentido, o homem neurtico um doente que a psicanlise capaz de curar.

    Isto conduz a uma concluso importante, que interessa de perto minha anlise: neste

    caso, a religio uma espcie de neurose. A religio no passa de um conjunto de representaes falsas, justificadas por razes falsas. Tendo em vista a comparao que farei a seguir com Wittgenstein, este ponto merece maior detalhamento.

    Atravs da religio, o homem transforma as foras da naturezas em deuses, concedendo-

    lhes o carter de um pai (Freud 1927: 97). Com base na necessidade de tornar seu desamparo tolervel neste mundo, o homem criou um estoque de idias, construdo a partir do material proveniente das

    lembranas do desamparo de sua infncia e da infncia da prpria raa humana. Estas idias tm a

    finalidade de proteg-lo tanto dos perigos da natureza como dos danos provenientes do convvio

    humano (id.: 98). Assim, quando o indivduo descobre que est condenado a permanecer criana para sempre e que nunca poder dispensar a proteo contra poderes superiores, acaba por atribuir aos

    mesmos as caractersticas que encontrou em seu pai. Ele cria para si prprio os deuses, aos quais

    simultaneamente teme e confia sua proteo (id.: 102). A partir da, Freud caracteriza as idias religiosas da seguinte maneira:

    3

  • As idias religiosas so ensinamentos e afirmaes sobre fatos e condies da realidade

    externa (ou interna) que nos dizem algo que no descobrimos por ns mesmos e que reivindicam a nossa crena (id.: 103).

    Isto o leva a concluir que as idias religiosas no constituem resultados da experincia ou concluses

    de pensamentos. Elas correspondem a iluses, que realizam os mais antigos e fortes desejos da humanidade. E o segredo da sua fora reside exatamente na fora destes desejos (id.: 107). Em ltima instncia, a religio corresponde neurose obsessiva das crianas. Suas origens se encontram no

    complexo de dipo (id.: 117). Alm das restries obsessivas, a religio envolve um sistema de iluses marcadas pelo desejo e pela rejeio da realidade, gerando uma forma de amncia, de estado de confuso alucinatria beatfica (id.: 118). Por estas razes, a longo prazo, as idias religiosas no conseguiro resistir razo e

    experincia. At mesmo as idias religiosas purificadas tero tal destino, na medida em que tentarem

    preservar alguma coisa da consolao que a religio nos oferece (id.: 126). E Freud termina otimisticamente seu ensaio O Futuro de uma Iluso com as palavras:

    No, nossa cincia no uma iluso. Iluso seria imaginar que aquilo que a cincia no

    nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar (id. 128).

    Estas palavras trazem mente, de imediato, o aforismo 6.52 do Tractatus, que claramente se contrape ao cientificismo freudiano:

    Sentimos que, mesmo que todas as questes cientficas possveis tenham obtido

    resposta, nossos problemas de vida no tero sido sequer tocados. certo que no restar, nesse caso, mais nenhuma questo; e a resposta precisamente essa

    (Wittgenstein 1994).

    verdade que este aforismo est ligado primeira filosofia de Wittgenstein. Considero, todavia, que ele condensa admiravelmente a viso tico-religiosa qual tudo o mais se submete e que permanece

    constante durante toda a evoluo do pensamento do filsofo austraco. Se existe alguma continuidade

    entre as duas filosofias de Wittgenstein, tudo indica que ela est exatamente a.

    Em um texto anterior, tentei mostrar que o Tractatus constitui uma obra de iniciao,

    atravs da qual somos introduzidos ao sentido da vida, que corresponde a uma forma de cristianismo

    transcendental que se vive no mais completo silncio (Margutti Pinto 1998). Nesta perspectiva, o maior 4

  • desafio para o homem neste mundo est em encontrar o sentido da vida. E este alcanado atravs

    duma experincia inexprimvel, que s pode ser atingida com base numa mudana radical de atitude. A

    principal caracterstica desta ltima a renncia prpria individualidade. O homem deve passar por

    uma revoluo interior que resulta, depois de muito sofrimento, numa vitria sobre o eu. Em linguagem

    tolstoiana, o desafio do homem est na mentira da carne, que inclui a sexualidade e deve ser vencida a

    todo custo, para que ento ele possa viver a vida autntica do esprito, que corresponde contemplao

    do eterno presente.

    Nesta perspectiva, o homem um doente metafsico, para o qual a nica terapia possvel

    est na revoluo interior. A terapia freudiana no passaria de um paliativo eticamente

    desaconselhvel, pois a sua viagem ao mundo interior que ela preconiza tem como objetivo a reestruturao e o reforo daquele eu individual que deve ser vencido a todo custo. A terapia

    tractatiana foi projetada para propiciar a vitria do esprito sobre a carne. A terapia freudiana teria sido projetada para fazer o trabalho inverso, reforando a carne e dificultando o trabalho do esprito. A cura prometida pelo Tractatus est na experincia inefvel de sintonia com o

    universo, experincia esta que no constitui uma representao e no se justifica atravs de razes. Neste sentido, o discurso sobre a interioridade que experimenta o sentido da vida no apenas

    impossvel, mas eticamente imoral.

    No mesmo texto anteriormente citado, procurei mostrar que a filosofia tractatiana est

    ligada distino schopenhaueriana entre o conhecimento abstrato e o intuitivo. Este ltimo

    corresponde forma autntica e no discursiva do conhecimento e s pode ser expresso de maneira

    muito deficiente atravs do conhecimento abstrato, que discursivo. A distino entre estes dois tipos

    de conhecimento est ligada distino schopenhaueriana entre o gnio e o homem vulgar. O

    conhecimento intuitivo pertence ao gnio, que pode ser um filsofo ou um artista, enquanto o abstrato

    pertence ao homem comum; cuja expresso mais elevada est no cientista. A essncia do gnio consiste numa preeminente aptido para a contemplao, cuja condio bsica o esquecimento completo da personalidade individual e suas relaes com o mundo. O gnio consegue atingir a

    intuio pura, nela se perdendo atravs da libertao da sujeio vontade. O homem comum, por sua vez, caracterizado como produto industrial que a natureza fabrica razo de vrios milhares por dia

    (Schopenhauer s/d: 36), no consegue esquecer sua personalidade individual e suas relaes mundanas. Ele permanece plenamente satisfeito com sua vontade e sintonizado com seus interesses e

    seus fins prticos. O homem comum s concentra sua ateno sobre as coisas na medida em que elas se

    relacionam com sua vontade. A cincia por excelncia do homem comum a matemtica, que

    meramente oferece um encadeamento de conseqncias fenomnicas com base no princpio de razo.

    Esta parafernlia adequada para lidar com a natureza em funo de interesses e fins prticos, no para

    5

  • a contemplao pura. Assim, podemos dizer que o homem comum calcula, ao passo que o gnio, em

    sua profundidade tica, no o faz (Philonenko 1980: 131). Isto conduz a uma distino original entre a cincia e a filosofia (id.: 127). A cincia, recorrendo matemtica, pergunta pelo onde, como, quando e pelo porqu dos fenmenos. A filosofia suspende estas questes ligadas ao princpio de

    razo e se preocupa com a essncia. Sua pergunta pelo quid (ib.: 119; 122). O que caracteriza a apreenso do quid o esquecimento de si mesmo como indivduo, a negao do prprio corpo, o

    desinteresse pelas coisas mundanas e uma transformao radical da representao, que agora no mais

    ope sujeito e objeto, mas unifica-os no xtase (id.: 123). Para Schopenhauer, a apreenso do quid corresponde eternidade do olhar mergulhado na contemplao da essncia (ib.: 122). neste sentido que a cincia e a filosofia constituem duas dimenses completamente distintas. A cincia, interessada

    no mundo, nos proporciona um conhecimento-utenslio; a filosofia, preocupada em contemplar a

    essncia do mundo, nos proporciona um conhecimento ontolgico (ib.: 123). A cincia a realizao mxima do homem comum, que interessado e, por conseguinte, ordinrio e vulgar. A filosofia uma

    das realizaes mximas do gnio, que visa contemplar desinteressadamente o universal e, portanto,

    est acima da vulgaridade do cientista.

    Como afirmei h pouco, penso que estas idias tico-religiosas constituem o cimento

    comum que d continuidade s filosofias do primeiro e do segundo Wittgenstein. No momento, as

    principais razes que apresento para justific-la so as seguintes. Primeiro, Wittgenstein confessa, no Tractatus, que passou por alguma forma de experincia mstica, que envolve exatamente o tipo de

    intuio descrito por Schopenhauer. Segundo, os demais escritos de Wittgenstein e os autores que ele

    leu poca da fermentao da filosofia tractatiana sugerem que, para ele, o sentido da vida estaria na

    experincia schopenhaueriana de apreenso do quid. Terceiro, tendo em vista o carter

    profundamente marcante da experincia mstica na vida de todos aqueles que a experimentaram e

    relataram o ocorrido, seria muito difcil imaginar que Wittgenstein, depois de passar por ela, seria

    capaz de esquec-la ou de diminuir a sua importncia. Quarto, h diversos textos que ele escreveu, desde seu retorno filosofia, na dcada de 1930, at o momento de sua morte, nos quais se encontram

    preciosas indicaes de que a viso tico-religiosa permaneceu viva na mente de Wittgenstein por

    muito tempo depois da publicao do TractatusTPF1FPT. Quinto, esta viso tico-religiosa perfeitamente compatvel com as duas filosofias de Wittgenstein, permitindo consider-la como o principal elemento

    que justifica a continuidade do seu pensamento. Neste sentido, ela funciona como a fonte espiritual de

    TP

    1PT A ttulo de ilustrao, cito a seguinte passagem de 1949, ou seja, apenas dois anos antes da morte de Wittgenstein: Posso

    achar as questes cientficas interessantes, mas elas nunca me tocam de fato. Somente questes conceituais e estticas

    fazem isso. No fundo, sou indiferente soluo dos problemas cientficos; mas no quelas outras questes (1984: 79).

    6

  • duas abordagens filosficas que, despojadas dela, no passariam de jogos de desconstruo da filosofia tradicional, sem qualquer finalidade mais elevada. Reconheo que esta hiptese exige uma justificao mais detalhada e pretendo trabalhar isto em um futuro texto. Aqui, porm, tomarei a liberdade de

    consider-la assentada, pois penso que a comparao entre Freud e Wittgenstein s se torna plenamente

    compreensvel pela comparao de suas respectivas vises de mundo, o que fatalmente nos conduzir

    ao vis da perspectiva tico-religiosa.

    Freud visto por Wittgenstein: em busca de uma articulao de declaraes aparentemente

    incoerentes

    Se minha interpretao de Wittgenstein estiver correta, ento a oposio entre

    conhecimento discursivo e intuitivo, que alimenta a filosofia do Tractatus, continua presente na fase

    das Investigaes. Ora, isto significa que a distino entre o gnio (ou sbio) e o cientista tambm permanece na segunda filosofia. Isto permite uma interpretao relativamente fcil das declaraes

    desfavorveis que Wittgenstein faz sobre Freud. Com efeito, a viso de mundo deste ltimo a do

    cientista, do homem comum que elabora um conhecimento instrumental para lidar com as coisas do

    mundo. Seu apreo pelo conhecimento cientfico tal que ele considera uma iluso qualquer tentativa

    de buscar em outro lugar aquilo que a cincia no nos pode dar. Para Wittgenstein, em contrapartida, a

    iluso est em buscar na cincia aquilo que ela no nos pode dar. A experincia de compreender o

    sentido da vida, alm de inefvel, ultrapassa de longe as possibilidades do discurso cientfico. Nesta

    perspectiva, Freud, enquanto cientista, pode ser astucioso e escrever muito bem, mas definitivamente

    no um sbio e sua escrita no grandiosa.

    Embora Wittgenstein no faa referncias a isto, a ausncia de sabedoria em Freud

    poderia ser ilustrada por sua anlise da religio, anteriormente citada. Ali, ela classificada como uma

    espcie de neurose. Para chegar a esta concluso, Freud procura mostrar que a religio um conjunto de representaes falsas, justificadas por razes falsas. Isto porque as idias religiosas envolvem afirmaes acerca de algo que no descobrimos por ns mesmos e que exigem uma atitude de crena. E

    a fora destas idias est na fora dos desejos que as alimentam. Esta fora pode ser to grande que, em alguns casos, se torna capaz de gerar uma forma de amncia, ou seja, um estado de confuso alucinatria beatfica.

    7

  • Ora, a anlise de Freud explica muito bem a religio do vulgo em geral, que nela

    encontra uma forma eficaz de escapar da realidade do dia a dia e, em alguns casos mais extremados,

    pode culminar em alguma forma de amncia. Mas esta anlise paradoxalmente deixa de lado o tipo de

    experincia religiosa vivido por alguns grandes homens, tal como a mesma descrita por William

    James ou concebida pelos filsofos romnticos. Esta experincia marca profundamente a vida do

    indivduo que passa por ela e no pode ser justificada por razes. Na verdade, ela pertence a outro domnio do conhecimento, aquele que Schopenhauer define como intuitivo. Qualquer tentativa de prov-la ou refut-la racionalmente ser equivocada. Com base nisso, poderamos dizer que h duas

    fases na vida de um gnio: aquela que precede e aquela que vem depois desta experincia crucial. Na

    primeira, o gnio no passa de um homem comum, possuindo, no mximo, um grande potencial

    intuitivo. Na segunda, o gnio se realiza como gnio, efetivando seu potencial intuitivo e tornando-se,

    em virtude disso, capaz de criar alguma coisaTPF2FPT. Tudo indica que ao tipo de sabedoria que decorre

    desta experincia ao mesmo tempo radical, pessoal, injustificvel e intransfervel que Wittgenstein se refere, quando diz que Freud no sbio.

    Esta sabedoria envolve uma clareza conceitual que permite distinguir o que importante

    daquilo que no , o que autntico daquilo que ilusrio. No Tractatus, Wittgenstein declara que o

    mstico no como o mundo , mas que ele (1994: 6.44). A cincia trata do como; a descoberta do sentido da vida tem a ver com o quid. O discurso cientfico perfeitamente possvel e descreve como as

    coisas so. O discurso metafsico contra-senso porque tenta descrever o quid. Nas Investigaes,

    mesmo depois de constatar os equvocos do Tractatus, Wittgenstein ainda parece procurar manter-se

    fiel ao esprito do projeto inicial, ao se dispor a substituir a pergunta da forma o que x?, a pergunta sobre o quid, pela pergunta da forma como se usa a palavra x?, a pergunta sobre o como. Nos dois

    casos, o discurso sobre o quid vetado, ficando apenas o discurso sobre o como. Tambm nos dois

    casos, verifica-se a supremacia daquilo que no pode ser dito sobre a descrio de como as coisas so.

    Estas reflexes permitem concluir que, de acordo com a perspectiva acima, a falta de

    sabedoria de Freud no s o cega para a experincia do sentido da vida, mas tambm o despoja da clareza conceitual necessria para escapar da iluso cientificista e no se deixar enfeitiar pela

    TP

    2PT Com certeza, Freud diria que esta experincia tambm pode ser caracterizada como um estado de confuso alucinatria

    beatfica, causada pelo nosso desejo infantil de segurana. Mas isto colocaria a religiosidade dum Tolstoi, por exemplo, em p de igualdade com aquela do homem vulgar. E nos levaria a concluir que, em ltima instncia, so temores infantis que se

    escondem por trs de todos aqueles gnios que alegam ter alcanado algum estado beatfico e consideram suas melhores

    criaes resultados de tal experincia. Freud diria novamente que este resultado plausvel e nada tem de absurdo. Mas a

    questo me parece controversa. De qualquer modo, o que interessa aqui no mostrar quem est certo, mas tornar claro

    como Wittgenstein julgaria Freud. 8

  • linguagem. Desse modo, aplicando ao discurso freudiano as tcnicas de anlise desenvolvidas nas

    Investigaes, baseadas na idia de que o significado dado pelo uso e na distino entre causas e

    razes, podemos formular as conhecidas crticas de Wittgenstein psicanlise, mas agora devidamente

    articuladas no quadro de uma viso de mundo.

    Dentre estas crticas, destacam-se trs. A primeira refere-se descrio do uso da

    palavra inconsciente. Podemos constatar que ela funciona como adjetivo ou como advrbio, mas no como substantivo. Tornar esta palavra um substantivo significa deixar-se enfeitiar pelas palavras e

    criar uma iluso. Se, mais tarde, Freud recorre ao pronome id para designar o inconsciente, ele faz

    isto a partir do fascnio causado pelo uso equivocado da palavra inconsciente como substantivo.

    A segunda crtica refere-se confuso que Freud faz entre causa e razo. Toda causa

    estabelecida experimentalmente, e sobre ela fazemos conjeturas. J o estabelecimento de uma razo exige a concordncia do falante. Este ltimo pode aceitar ou no alguma coisa como sendo a razo de

    outra. Assim, se algum se pe a chorar, podemos determinar experimentalmente a causa do choro:

    este algum se feriu, por exemplo. Podemos conjeturar sobre esta causa, dizendo que todas as vezes que uma pessoa se fere de maneira semelhante, o ferimento doloroso a tal ponto que faz a pessoa

    chorar. Isto pode inclusive admitir algum tipo de verificao experimental, envolvendo o exame do

    comportamento de muitas pessoas acometidas de ferimentos mais ou menos semelhantes quele que

    gerou a conjetura. Se, porm, oferecemos uma razo para o choro, as coisas ocorrem de maneira diferente. No h verificao aqui. A pessoa que chora assentir ou no razo que lhe for apresentada.

    Alm disso, a pessoa poder concordar com esta razo, mesmo no estando consciente dela no

    momento do choro. Em virtude disso, podemos dizer que analisar um sonho, ou seja, dar as razes do sonho, no a mesma coisa que analisar uma dor de estmago, ou seja, dar as causas da dor. O equvoco de Freud estaria em tratar a razo como causa, supondo que pode, por um lado, conjetur-la atravs dum tipo de procedimento cientfico e, por outro, confirm-la atravs da concordncia do

    sujeito. No podemos construir uma cincia positiva das motivaes, elas admitem somente uma hermenutica.

    A terceira crtica tem a ver com a suposta mensagem do sonho. Se possvel falar na

    linguagem do sonho, ento as seguintes trajetrias de sentidos opostos devem ser igualmente possveis: traduzir do sonho para o portugus e, conversamente, do portugus para o sonho. Mas sabemos que isto

    impossvel. Otimisticamente, Freud considera que todo sonho tem um significado determinado; que

    este significado sempre a representao disfarada de um desejo inconsciente; que todos os elementos do sonho contribuem para o seu significado. Duvidando disso, Wittgenstein considera que o significado

    do sonho aquilo que a explicao do sonho explica. Neste sentido, a interpretao freudiana no

    9

  • demonstra que o sonho tem um significado anterior significao. Isto envolveria a idia duvidosa de

    que existe o significado do sonho.

    As crticas acima podem ser sintetizadas na afirmao de que, ao tentar construir uma

    cincia, Freud na verdade est criando uma nova mitologia. por isso que Wittgenstein acusa Freud de estar fazendo mera especulao (!970: 78). Ele considera que as explicaes freudianas muitas vezes apresentam o mesmo pode de atrao que uma mitologia (id.: 87) e, logo a seguir, caracteriza a psicanlise como uma mitologia poderosa (id.: 88). Apesar de todas estas diferenas marcantes, Wittgenstein nos surpreende ao dizer que

    um discpulo e um seguidor de Freud. Isto pode ser explicado se nos dermos conta de pelo menos dois

    aspectos em comum que podem ser encontrados tanto na psicanlise quanto na filosofia de

    Wittgenstein. Em primeiro lugar, ambas constituem processos de auto-anlise, cujos resultados correspondem a alguma forma de libertao. Em Freud, a auto-anlise pretende libertar o indivduo da

    neurose; em Wittgenstein, ela pretende libert-lo do enfeitiamento da linguagem. Aqui, a auto-anlise

    se confunde com o processo de clarificao.

    Em segundo lugar, o processo teraputico conduz em ambas a um tipo de reao

    psicolgica muito especial, que envolve algo que

    as pessoas esto inclinadas a aceitar e que lhes torna mais fcil seguir determinados

    caminhos; torna certos modos de agir e pensar naturais para elas. Elas desistiram de

    uma maneira de pensar e adotaram outra (Wittgenstein 1966: 44).

    Temos aqui a descrio de um verdadeiro processo de revoluo interior. Tanto o paciente freudiano

    como o metafsico tradicional, depois de passar pelo processo teraputico, pode dizer: agora vejo a razo, embora no fosse consciente dela e no pudesse lidar com ela como agora posso. As razes que

    justificam a neurose e as razes que justificam a perplexidade filosfica so igualmente inconscientes. E tudo indica que este novo modo de lidar com as razes inconscientes constituem aquilo que

    Wittgenstein considerava a grande descoberta de Freud. Neste sentido, ele pode ser considerado um seu

    discpulo e seguidor. Mas h uma observao importante a ser feita a este respeito.

    Ray Monk faz uma ligao entre Wittgenstein e Freud atravs do seguinte trecho de

    1931, extrado de Cultura e Valor:

    No acredito ter jamais inventado uma linha de pensamento, sempre assumi uma de algum. Simplesmente me agarrei a ela de modo direto, com entusiasmo, para meu

    trabalho de clarificao. Eis como Boltzmann, Hertz, Schopenhauer, Frege, Russell,

    10

  • Kraus, Loos, Weininger, Spengler, Sraffa me influenciaram. Pode-se tomar o caso de

    Breuer e Freud como um exemplo de reprodutividade judaica? O que invento so novos smiles (Wittgenstein 1980: 19).

    Com base nestas afirmaes, Monk considera que Wittgenstein se assemelha a Freud porque ambos

    trabalham atravs de smiles esclarecedores (Monk 1995: 321). Isto, porm, deve ser entendido cum grano salis. Com efeito, podemos ver claramente que o ponto salientado por Wittgenstein no trecho

    acima a sua falta de originalidade com relao aos autores citados, que comparvel de Freud com

    relao a Breuer. A passagem sugere claramente que Freud e Wittgenstein poderiam ser tomados como

    exemplos de reprodutividade judaica. Neste sentido, os novos smiles a que Wittgenstein alude no passam de novas formas de dizer o mesmo, de dizer aquilo que outros, mais criadores, j disseram. Para que isto possa justificar a declarao de Wittgenstein a Rhees de que era um discpulo de Freud, como quer Monk (id.), devemos fazer a qualificao que segue. Em um outro texto de minha autoria, tratei das relaes entre os pensamentos de

    Weininger e Wittgenstein. Ali, tentei mostrar que as idias equivocadas de Weininger a respeito dos

    judeus exerceram uma influncia de longa durao sobre Wittgenstein (Margutti Pinto 1997). Uma destas idias est em que o judeu se caracteriza por um modo feminino de pensar, que , sobretudo, reprodutivo e sem originalidade criadora. Isto pode ser confirmado no apenas pelo trecho acima, mas

    por um outro, do perodo 1939-40, tambm encontrado em Cultura e Valor:

    Acredito que minha originalidade (se esta a palavra correta) uma originalidade pertencente ao solo e no semente. (Talvez eu no tenha semente prpria.) Plante uma semente em meu solo e ela crescer diferentemente do que o faria em qualquer outro

    solo.

    A originalidade de Freud era tambm assim, eu penso. Sempre acreditei sem saber por qu que o verdadeiro germe da psicanlise veio de Breuer, no de Freud. Certamente o gro da semente de Breuer s pode ter sido bem pequeno. Coragem

    sempre original (Wittgenstein 1980: 36).

    Embora distantes por um perodo de no mnimo oito anos, as duas passagens revelam uma admirvel

    coerncia. Em todas as duas, a originalidade judaica, que consiste em reproduzir aquilo que j foi feito por outros, atribuda a Freud e ao prprio Wittgenstein. Nesta segunda passagem, contudo, revela-se

    que mesmo a tarefa de reproduzir exige coragem. Se isto verdade, poderamos dizer que o judeu

    11

  • Wittgenstein se considerava um discpulo e um seguidor do judeu Freud porque se inspirou no seu exemplo tico de coragem reprodutiva. O cientista Freud, por ser judeu, no era original e o mximo que conseguiu foi fazer germinar, em seu solo, a semente breueriana da psicanlise. Isto produziu, por

    um lado, uma nova e atraente mitologia, carregada de equvocos. Mas significou tambm, por outro

    lado, um esforo corajoso de clarificao conceitual, que, se no chega a realizar-se, pelo menos aponta para o verdadeiro caminho.

    Observaes finais: um confronto entre cincia e religio

    A articulao das declaraes de Wittgenstein a respeito de Freud, de modo a torn-las

    partes de um todo coerente, dependeu da localizao das mesmas numa viso de mundo tico-religiosa,

    que se contrape viso freudiana de mundo. Apegado ao ideal do cientista, Freud est preocupado em

    fazer da psicanlise uma disciplina cientfica, inspirada na idia cartesiana de que a clareza do

    pensamento tem fora suficiente para reformar a nossa vontade. Seu objetivo efetuar uma viagem ao mundo interior de cada um de ns, para melhor conhec-lo e domin-lo. Isto faz do neurtico uma

    pessoa doente que a psicanlise se esfora por curar, trazendo de volta para o convvio com as outras

    pessoas. Uma conseqncia importante deste enfoque est em considerar a religio uma espcie de

    neurose, que se organiza a partir representaes falsas, as quais so justificadas por razes tambm falsas. Da o otimismo de Freud, que pretende ver na cincia a trilha segura contra a iluso.

    Procurei mostrar que viso cientificista de Freud ope-se a perspectiva tico-religiosa

    de Wittgenstein, que parece perpassar toda a evoluo de seu pensamento. Minha interpretao deste

    autor sugere que a continuidade entre as suas duas filosofias se encontra justamente a. poca do Tractatus, Wittgenstein parece ter enfrentado com sucesso o desafio tolstoiano de vencer a mentira da

    carne para viver a vida autntica do esprito. Se isto estiver certo, ento ele viveu o restante de sua vida

    sob a marca profunda dessa experincia e a filosofia das Investigaes foi elaborada no mesmo esprito

    tractatiano, embora com metodologia radicalmente diversa, de clarificar as confuses conceituais para

    contemplar em silncio a verdadeira realidade que d sentido vida. Da o conflito entre as terapias

    propostas por Freud e Wittgenstein. O primeiro, ainda que inadvertidamente, contribui para a vitria da

    carne sobre o esprito; o segundo deseja ardentemente contribuir para a realizao do contrrio. O primeiro recorre ao discurso para curar o homem; o segundo prega a morte do discurso que se torna imoral quando procura falar sobre o que realmente importante para salvar o homem. 12

  • Considero que a viso tico-religiosa de Wittgenstein se inspira na distino

    schopenhaueriana entre o conhecimento abstrato e o intuitivo, que est ligada a outra distino

    schopenhaueriana, aquela entre o gnio e o homem vulgar. A manifestao mais elevada deste ltimo

    o cientista, que, ao invs de buscar a intuio pura, como o gnio ou o sbio, permanece plenamente

    sintonizado com seus interesses egostas e seus fins prticos mais imediatos.

    Embora esta hiptese complexa sobre a continuidade da filosofia de Wittgenstein exija uma justificao mais detalhada, tomei a liberdade de consider-la assentada para fazer esta comparao entre as vises de mundo de Freud e Wittgenstein. Espero ter deixado claro que a

    explicitao da perspectiva tico-religiosa deste ltimo imprescindvel para a realizao desta tarefa..

    Se minha interpretao de Wittgenstein estiver correta, ento Freud, enquanto cientista,

    pode ser perspicaz e escrever muito bem, mas definitivamente no um sbio e sua escrita no

    grandiosa. Embora Wittgenstein no faa referncia anlise freudiana da religio, ela poderia ser

    utilizada para ilustrar a ausncia de sabedoria em Freud, em que at mesmo o estado mstico

    caracterizado como um estado de confuso alucinatria beatfica. Esta anlise pode explica a religio

    do vulgo em geral, mas deixa de lado o tipo de experincia religiosa vivida por alguns grandes homens.

    Essa experincia simultaneamente inefvel e fundamental. Qualquer tentativa de justific-la ou refut-la racionalmente incorrer em erro. Freud no sbio porque no reconhece e no busca este

    tipo de experincia.

    A sabedoria a que Wittgenstein se refere e que falta a Freud envolve uma clareza

    conceitual que permite escapar do enfeitiamento que a linguagem nos impe. Da as conhecidas

    crticas que Wittgenstein faz a Freud, acusando-o de criar uma mitologia poderosa em virtude da falta

    dessa mesma clareza conceitual, cujas principais seqelas so o substantivar a palavra inconsciente, o confundir causas com razes e o imaginar que exista efetivamente uma linguagem do sonho.

    Mesmo assim, Wittgenstein pode ainda dizer que um discpulo e um seguidor de

    Freud. Primeiramente, porque Freud pratica um tipo de auto-anlise, cujo objetivo corresponde a algum tipo de libertao. E Wittgenstein faz coisa muito semelhante em filosofia. Segundamente, porque o

    processo teraputico envolvido pela auto-anlise implica numa revoluo interior. Tanto em Freud

    como em Wittgenstein, temos de desistir de uma forma de pensar e adotar uma outra, com base na

    explicitao de razes que nos eram inconscientes.

    Mais ainda, porm. Influenciado por Weininger em sua concepo desfavorvel relativa

    aos judeus, que somente so capazes de pensamento reprodutivo, o judeu Wittgenstein v no judeu Freud um exemplo tico da coragem de reproduzir uma idia seminal. Embora, nesta empreitada, o

    esprito cientificista de Freud o faa incorrer numa srie de equvocos, isto no diminui a sua

    extraordinria realizao cientfica.

    13

  • Em sntese, para Bouveresse, Freud ainda est preso ao racionalismo cientfico clssico,

    comparvel ao Crculo de Viena, enquanto Wittgenstein pertence a uma outra ordem de pensamento

    (1995: 124). Isto me parece verdadeiro, mas temos de aceitar que essa outra ordem de pensamento se processa numa chave religiosa cujas origens esto no romantismo do sculo XIX. Nesta perspectiva, Wittgenstein estaria sugerindo uma espcie de psicanlise sem o inconsciente ou sem o id, na qual

    o analista o prprio paciente, cujo trabalho de clarificao consiste em desvelar razes inconscientes. O propsito desta anlise no seria a cura do paciente em sentido freudiano, mas

    contribuir para a salvao do homem, atravs do processo de clarificao e negao do eu que leva

    experincia inexprimvel do sentido da vida. Por incrvel que possa parecer, a psicanlise

    wittgensteiniana se exerceria no para a maior glria da cincia, como deseja Freud, mas para a maior glria de Deus, como desejam os msticos de todos os tempos.

    Referncias Bibliogrficas

    Assoun, P. L. (1988). Freud et Wittgenstein. Paris, PUF. Bouveresse, J. (1987). Le mythe de lintriorit. Exprience, signification et language priv chez

    Wittgenstein. Paris, d. de Minuit. (1995). Wittgenstein reads Freud. The myth of the unconscious. Translated by C. Cosman. With a foreword by V. Descombes. Princeton, N. Jersey, Princeton Un. Press.

    Cioffi, F. (1998). Wittgenstein on Freud and Frazer. Cambridge, Cambridge Un. Press. (1969). Wittgensteins Freud. In: Winch, P. (ed.) (1969). Studies in the philosophy of Wittgenstein. Londres, Routledge and Kegan Paul.

    Freud, S. (1927). O futuro de uma iluso. In: Freud, S. (1978). Cinco lies de psicanlise; A histria do movimento psicanaltico; O futuro de uma iluso; O mal-estar da civilizao; Esboo de

    Psicanlise. Seleo de textos de J. Salomo. Trad. de D. Marcondes et alii. So Paulo, Abril

    Cultural. Col. Os Pensadores.

    Margutti Pinto, P. R. (1998). Iniciao ao Silncio. Uma anlise argumentativa do Tractatus. S. Paulo, Loyola. (1997). Aspectos da influncia de Weininger sobre Wittgenstein. Sntese Nova Fase, vol 24, n. 77, abril-junho de 1997, pp. 199-223.

    McGuinness, B. (1982). Freud and Wittgenstein. In: McGuinness, B. (ed.) (1982). Wittgenstein and his times. Oxford, B. Blackwell.

    14

  • Monk, R. (1995). Wittgenstein. O dever do gnio. S. Paulo, Cia. das Letras. Philonenko, A. (1980). Schopenhauer. Une philosophie de la tragdie. Paris, J. Vrin. Schopenhauer, A. (s/d). O mundo como vontade e representao. Porto, Editora Rs. Wittgenstein, L. (1966). Lectures and conversations on Aesthetics, Psychology and Religious Belief.

    Ed. by Cyril Barrett. Oxford, B. Blackwell. (1984). Culture and Value. Edited by G. H. von Wright in collaboration with H. Nyman. Translated by P. Winch. Oxford, B. Blackwell. (1994). Tractatus Logico-Philosophicus. Trad., apres. e ensaio introdutrio de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 2 ed., So Paulo, EDUSP.

    15

    FREUD E WITTGENSTEIN: A PERSPICCIA DO CIENTISTA E A SABEDORIA DO FILSOFOIntroduo: a ambiguidade de Wittgenstein em relao a Freud As vises de mundo de Freud e Wittgenstein: duas racionalidades muito diferentesFreud visto por Wittgenstein: em busca de uma articulao de declaraes aparentemente incoerentes Observaes finais: um confronto entre cincia e religioReferncias Bibliogrficas