xenofobia na África do sul pÓs-apartheid: … · vinculadas a discursos de ódio e posições...
TRANSCRIPT
XENOFOBIA NA ÁFRICA DO SUL PÓS-APARTHEID: VIOLÊNCIA E O
CONCEITO DE UBUNTU PELO TRAÇO DE ZAPIRO
Kennya Souza Santos
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História na UFSC
“A diferença é um problema apenas se acreditarmos
que a uniformidade é o estado normal das coisas”.
(Achille Mbembe)
Resumo
O presente artigo tem por objetivo discutir a xenofobia na África do Sul pós-
apartheid. Acredita-se que essas ações hostis de cunho chauvinista podem ter relação
com o passado histórico de um regime de segregação racial, mas também com o
presente e futuro de construção nacional e identitária. Com base na charge do
caricaturista sul-africano Zapiro, intitulada Xenofobia e o significado de ubuntu, parte-
se por abordar a relação entre o conceito de ubuntu e os ataques de violência xenofóbica
na África do Sul. Com foco nas teorias de Frantz Fanon e Achille Mbembe conduzimos
acerca da xenofobia enquanto perturbação fóbica, sustentada por uma política de estado
que distingue seus cidadãos de outras pessoas.
Palavras-chave: África do Sul; xenofobia; ubuntu; charge.
Introdução
Em quase todos os países presenciamos hoje manifestações xenófobas,
vinculadas a discursos de ódio e posições extremistas que visam trazer o regresso e o
protecionismo, poderíamos vê-las como reflexo do processo de um mundo globalizado.
A globalização tem seu início nas relações comerciais de troca, atravessando fronteiras
e forçando um contato de interação expondo as diferenças (GILROY, 2001). Com o
colonialismo, as mesmas desenvolvem-se apoiadas na lógica da inferiorização, que
conjuntamente a ideia de uma consciência nacional, não só estabelece barreiras, mas
suprime o outro que está fora de seu contexto. A atual economia global – subproduto da
modernidade – não se restringe exclusivamente ao contexto da nação, nesta perspectiva,
manifesta-se a reação dos nacionalismos contemporâneos, os quais rejeitam a ideia de
uma dissolução das nações (WIEVIORKA, 1993).
Testemunhamos novas leis de migração e normas de proibição de costumes,
como o uso do véu na França1 ou as ações de recuo e isolamento adotado pelo Reino
Unido ao sair da União Européia2. Todas essas medidas fazem parte de um projeto que
visa não se misturar, ou seja, a segregação e o medo da influência de outra sociedade
sobre a minha, da qual considero inferior por ser diferente3.
Ataques contra imigrantes e refugiados tem ocorrido em diversas partes do
globo. O estrangeiro passa a ser o culpado para os problemas econômicos e sociais no
país de destino, como se trouxessem na bagagem tudo de pernicioso que agora o atinge.
Esse é também o motivo exposto pelo governo da África do Sul para a onda de ataques
xenofóbicos que vem ocorrendo. Por via de fatores sociais e econômicos, as autoridades
afirmam que são os imigrantes os principais responsáveis pelo aumento da violência e
desemprego.
No passado histórico da África do Sul, por volta de 1850, os ingleses começaram
a contratar trabalhadores oriundos de outros países africanos, como Moçambique e
Lesoto, para trabalhar nas minas de ouro e diamante nas regiões próximas a Pretória e
Joanesburgo. Com o sistema de apartheid imposto em 1948, muitos imigrantes
voltaram para seu país de origem. Com efeito, a partir da implantação do sistema
democrático no início da década de noventa e o surgimento da regulamentação de
estrangeiros e refugiados, cresce o número de imigrantes em direção a nova nação arco-
íris (VISENTINI; PEREIRA, 2010, P.66).
Com o fim do sistema de segregação racial, a população negra – responsável
atualmente pela maior parte dos ataques xenofóbicos – são incluídos na nova sociedade
1 BBC Brasil. Tribunal Europeu mantém proibição de uso de véu na França. 1 jul. 2014. Disponível em:
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/07/140701_veu_franca_ms . 2 G1. Reino Unido decide deixar a União Européia em referendo. 24 jun. 2016. Disponível em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/reino-unido-decide-deixar-uniao-europeia-em-
referendo.html. 3 Convém lembrar que a diferença se tornou um problema político e cultural através do colonialismo e do
racismo, classificando e institucionalizando hierarquias em nome da diferença, como se fossem naturais e
não construídas, instituindo-se imutáveis e legítimas. In: RUCKTESCHELL, Katharina Von. Achille
Mbembe “Por que julgamos que a diferença seja um problema?”. Goethe Institut Brasilien. Trad. José
Geraldo Couto. dez de 2016.
democrática, onde direitos e recursos lhe são agora concedidos através de ações
afirmativas. Diante da situação, os imigrantes negros passam a ser acusados de estarem
se apropriando de recursos que deveriam ser destinados a sul-africanos (VISENTINI;
PEREIRA, 2010, P.262). Como parte na construção do preconceito, estereótipos são
atribuídos aos imigrantes a fim de justificar as atrocidades, muitas vezes por parte do
próprio governo. Os Makwerekwere – gíria utilizada na África do Sul para nomear
aquele que é “de fora” – são vistos como criminosos, portadores de doenças como o
HIV e “ladrões” de empregos4.
Movimentos anti-imigratórios de 1994/95, tiveram seu início em Joanesburgo e
exigiam que os refugiados e estrangeiros fossem removidos e voltassem para seus locais
de “origem”, entre os principais alvos aqueles vindos de Moçambique e do Zimbábue.
Os primeiros casos de morte ocorrem no ano 2000, mas é em 2008 que uma onda de
ataques a imigrantes toma conta, tendo início em Alexandra, township em Joanesburgo,
e se espalha para o restante do país. Moradias incendiadas, casos de roubo a lojas de
imigrantes e diversos mortos.5 Dentre os mais recentes casos, no ano de 2015, o Rei
Zulu Goodwill Zwelithini, da província de KwalaZulu-Natal, pronunciou em discurso
oficial que “os estrangeiros deveriam fazer as malas e sair do país”6.
Em virtude das considerações supracitadas, o objetivo está em compreender
como essas manifestações ganham força e crescem após 1994, bem como sua relação
com a implantação do novo regime democrático baseado na unidade e humanidade.
Abordar ainda por que esses crimes de ódio, enquanto perturbação fóbica ocorrem de
maneira violenta com ataques diretos ao corpo. De acordo com o proposto, convém
considerar que a ideologia xenófoba na África do Sul hoje e suas contradições possam
ser melhor compreendidas a partir de seu contexto histórico político-social. Uma
sociedade que abandona um regime de segregação e ainda com seus vestígios presentes,
constrói uma nova nação.
4 RWIYEGURA, Alois. 'I am Makwerekwere'. Mail&Guardian. 09. Mar. 2005. Disponível em:
https://mg.co.za/article/2005-03-09-i-am-makwerekwere. 5 SAHO. Xenophobic violence in democratic South Africa. 15 ago. 2017. Disponível em:
http://www.sahistory.org.za/article/xenophobic-violence-democratic-south-africa. 6 SMITH, David. Zulu leader suggests media to blame for South Africa’s xenophobic violence. The
Guardian. 20 abr. 2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2015/apr/20/south-africa-
xenophobic-violence-zulu-king-goodwill-zwelithini.
Contexto Histórico - Apartheid e construção nacional.
A prática de uma rígida e completa separação em bases raciais se tornou um
complexo e elaborado sistema legal em 1948, classificando e dividindo os sul-africanos
por categorias linguísticas – definindo os grupos básicos da população – e pela cor da
pele, em brancos, negros e coloured7. A partir de 1960, viabilizado por uma secessão de
novas leis constitucionais, foram criados os “estados étnicos”. Na política do apartheid,
essas formações eram terras reservadas para negros africanos onde condensavam-se
inúmeros micro-estados nativos em torno da grande nação africânder. O conceito de
nação elaborado era de um desenvolvimento separado, entre a nação africânder8 e as
“principais identidades nacionais étnicas” fragmentadas em grupos, como os zulus,
xhosa, sotho, tswana, entre outros.
Diante do exposto, o apartheid visava sobretudo, excluir a noção de uma
unidade populacional negra, substituindo por minorias “étnicas” e impedindo que uma
maioria numérica pudesse vir a se tornar uma maioria política. As marcas desse
processo divisional permanecem na violência contra aqueles julgados a não pertencer
uma maioria nacional, aqui devemos incluir paquistaneses, chineses e grupos étnicos
minoritários sul-africanos. Esses atos de hostilidade muitas vezes são justificados ao
diferenciar o outro afirmando que “eles são mais escuros do que nós” (MBEMBE,
2015), marcando o legado de uma política de racialização forçada durante o apartheid.
A característica mais notável da xenofobia na África do Sul é de que esta parece
ter assumido uma forma racial. Dirige-se aos imigrantes, mas em especial aos
imigrantes negros, provenientes de outras partes do continente em oposição a europeus
ou americanos, que são em certa medida mais aceitos. Os negros são identificados como
ilegais pela mera aparência. Quanto mais negro você é, maior a probabilidade de estar
em perigo, de ser preso pela polícia ou ser morto por uma multidão enfurecida. À
exemplo sobre esse argumento, o fato de que 21 das 62 pessoas mortas em 2008 a
7 No contexto da África do Sul, o termo coloured é utilizado para se referir aqueles “de cor”, em especial,
mestiços, mestiços da Cidade do Cabo, chineses, indianos, outros asiáticos e outros de cor. 8 Africanos brancos descentes dos Bôeres que afirmam uma identidade nacional formalizada com a
criação da União Sul-Africana em 1910.
ataques xenófobos eram negros sul-africanos9. Esses fatos podem ser explicados – mas
não exclusivamente – como resquícios da institucionalização de sistemas racistas como
foi o colonialismo e o apartheid, podendo observar como a xenofobia neste caso,
prosperou com base no racismo contra a população negra10.
O regime de segregação tem seu fim em 1994 com as eleições de Nelson
Mandela, primeiro presidente negro da África do Sul após anos preso por resistir contra
o sistema. Em uma sociedade erguida na desigualdade, a primeira medida a ser tomada
pelo novo governo multirracial pós-apartheid era nítida, a de unir a nação dentro de um
mesmo sistema nacional democrático.
Com a intenção de sanar os problemas do passado e visar à promoção de uma
reconciliação nacional, uma das ações adotadas pelo governo foi investir em uma
política dos direitos humanos centrada no vocábulo em Bantu ubuntu. “Em termos
gerais, ubuntu significa, por um lado, a humanidade que é vivenciada e realizada com os
outros, e, por outro, a humanidade como valor” (KASHINDI, 2017, p.3), o conceito é
uma forma de definir quem somos e como nos relacionamos com os outros.
O termo utilizado pela nova nação sul-africana está presente na Constituição
Transitória de 199311, nas eleições de 1994 e durante o processo de reconciliação após o
fim do apartheid pela Comissão de Verdade e Reconciliação (TRC no inglês). Como se
depreende, ubuntu desempenhou um papel importante na criação de uma consciência
nacional sul-africana e no processo de sua transformação democrática12.
Para salientar a nova política, o Departamento de Relações Internacionais e
Cooperação (DIRCO em inglês) lançaram a rádio Ubuntu e a revista Ubuntu, em um
esforço para vender estrategicamente a “Marca” da África do Sul e chegar a ambos os
públicos interno e externo. Contudo, o princípio fundamental da filosofia ubuntu
9 MNGXITAMA, Andile. Xenophobia is in fact Afrophobia in disguise. Sowetan. 30 Nov.2010.
Disponível em: https://www.sowetanlive.co.za/opinion/columnists/2010-11-30-xenophobia-is-in-fact-
afrophobia-in-disguise/ Acesso em: 10 Sobre esta análise, tive como base a obra de Angela Davis “A Liberdade é Uma Luta Constante”,
lançado no Brasil pela Editora Boitempo no ano de 2018. 11 “These can now be addressed on the basis that there is a need for understanding but not for vengeance,
a need for reparation but not for retaliation, a need for ubuntu but not for victimisation” In: ÁFRICA DO
SUL. Constitution of the Republic of South Africa Act 200 of 1993. 25 jan. 1994. 12 África do Sul, DIRCO (Departamento de Relações Internacionais e Cooperação). 2011. Construindo
um mundo melhor: a diplomacia do Ubuntu: documento branco sobre a política externa da África do Sul.
Pretória, 13 de maio de 2011. Disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/foreignpolicy_0.pdf.
ascendeu um sentimento de territorialidade e privilégio de direitos sobre o estado-
nacional que agora ultrapassam os direitos humanos (MABERA , 2017). Validado aos
limites do estado sul-africano, passa a ser contraditório, pois não corresponde mais a
valores de humanidade. Fundamentado também na política econômica internacional,
torna-se possível presenciar um ultranacionalismo em relação ao restante do continente.
Afinal o título de África do Sul, em um continente que leva o mesmo nome, não pode
ser visto de modo insignificante.
Nesta perspectiva, o quadro hierárquico da África do Sul em relação aos outros
países do continente, juntamente a um projeto de integração nacional, tem como reflexo
um movimento segregacionista para com os países vizinhos. Atualmente, em vista dos
ataques de xenofobia, a diplomacia ubuntu vem sendo usado pela política internacional
sul-africana na tentativa de restaurar uma reintegração internacional no continente,
evidenciando uma “humanidade africana” (MABERA , 2017).
Análise do objeto – Xenofobia e o significado de Ubuntu
A onda de xenofobia na África do Sul vem sendo bastante abordada pela mídia,
contribuindo em um processo de conscientização13, como é o caso das charges políticas.
No país as caricaturas políticas estão presentes desde o período colonial auxiliando na
disseminação de uma ideologia imperialista através de periódicos e revistas ilustradas.
Todavia, ao longo do tempo as expressões gráficas de humor são cada vez mais
utilizadas como instrumento de resistência à condição de colonialidade e na construção
de nações pós-coloniais, como nesse caso as caricaturas do sul-africano Zapiro. Seus
primeiros trabalhos surgem durante o período de apartheid, como forma de resistir
contra o sistema, mas tem continuidade após a implantação do recente governo
democrático, se mantendo sempre alerta quando a nova lei não condiz às práticas
sociais.
Este estudo tem como base uma charge publicada por Zapiro intitulada
“Xenofobia e o significado de Ubuntu” 14. A forte imagem a ser analisada faz referência
13 Convém notar que algumas mídias também vêm sendo acusadas de reproduzir discursos de ódio ao
classificar os imigrantes, usando de termos como ilegais (no inglês aliens), imigrantes ilegais (ilegal
aliens), marginais e etc. 14 Tradução livre de “Xenophobia and the meaning of Ubuntu”.
a uma sequência de eventos e ataques xenofóbicos em 2008. Publicada em 25 de maio
pelo jornal Sunday Times, a mesma compõe uma série de elementos relacionados a
xenofobia, como a violência, o ódio (fobia) e a presença de um símbolo de identidade
nacional que separa e segrega. Por sua vez, o real sentido pretendido pelo cartunista se
encontra na relação da imagem com o texto e o que a palavra ubuntu representa no
contexto da sociedade sul-africana.
No descrever da cena (Fig. 1), temos ao fundo casas incendiadas e no canto
esquerdo um grupo de homens de camisetas e toucas estampadas com a bandeira da
África do Sul, como forma de representar uma cidadania legal. Os mesmos portam de
machados, porretes, facões e gasolina, aludindo a responsabilidade pelo crime ilustrado.
Logo a frente um corpo carbonizado tendo a sua volta pedras e pedaços de pau,
remetendo ao fato de ter sido espancado antes de ser incinerado. O grupo alvoroçado e
raivoso de homens demonstra estar contente e extasiado pelo feito. O sentido pretendido
pelo cartunista revela-se na frase do personagem a frente do grupo, onde este afirma:
“Eu sabia que ele era um (símbolos significando palavrões) estrangeiro, ele não sabia o
significado de ubuntu”.
Figura 1 – Xenophobia and the meaning of Ubuntu.
Fonte: © 2008 Zapiro, Sunday Times - Reprinted with permission - For more Zapiro cartoons
visit www.zapiro.com
Como mencionado, a caricatura esta inserida em um contexto de uma sucessão
de crimes e tem ligação direta a um fato ocorrido no mesmo período. Em uma onda de
ataques que teve seu início em 11 de maio de 2008 e a morte de vários imigrantes, no
dia 18 do mesmo mês o moçambicano e imigrante legal Ernesto Alfabeto Nhamuave é
espancando e tem seu corpo incendiado. O acontecimento foi fotografado e noticiado
pela mídia internacional, chamando atenção do mundo e em principal do continente
para o que vinha acontecendo na África do Sul.
Todavia, em uma perspectiva metodológica, ao trabalharmos com expressões
gráficas de humor deve-se analisar a charge para além dos fatos e eventos, não apenas
reconhecer representações e referenciais visuais, mas é de igual importância analisar
como esse conteúdo é construído, como os signos são colocados em concordância,
refletir sobre os sentidos e significados construídos pelo chargista. Diante disto, a
resultado da charge de Zapiro reside em sua dupla crítica tanto ao surgimento da
xenofobia quanto as circunstâncias históricas sob as quais ela explodiu. A imagem
suscita dois pontos relevantes e que são foco neste estudo. Primeiramente, em seu
aspecto visual as práticas da violência e de como esses crimes ocorrem, ou seja, quais
são as formas criminosas cometidas. Por segundo, através do texto e na fala
contraditória do personagem, aborda o conceito de ubuntu como apropriação de
identidade nacional.
A real imagem do acontecimento, bem como sua forma representada na charge
de Zapiro, choca e assusta pela forma violenta e agressiva do ato criminoso. Ao
pensarmos nesses ataques de xenofobia como um epifenômeno das lutas contra o
processo de segregação podemos melhor compreender sua prática violenta. Achille
Mbembe comenta em seu texto ao escrever sobre a xenofobia na África do Sul, que o
fogo era a única arma que os negros tinham durante o apartheid. Por não poderem
portar armas, os mesmo preparavam coquetéis molotov e jogavam contra o inimigo de
uma distância segura (MBEMBE, 2015).
Devemos igualmente recordar o período de transição de um regime totalitário
para a democracia na década de noventa que presenciou um terrível derramamento de
sangue. Nomeado Guerra de Albergues, o conflito foi uma violenta disputa em um
espaço urbano de fábricas entre o partido do Inkatha, apoiado pelo Partido Nacional
Africânder buscando boicotar a transição democrática e o partido do Congresso
Nacional Africano. Nas páginas dos principais jornais sul-africanos do período o
fotojornalismo toma conta, retratando as ações cruéis do conflito. Os fotógrafos do
chamado Clube Bang Bang15 ficaram reconhecidos por cobrir a situação calamitosa,
suas imagens, publicadas em periódicos do mundo inteiro, apresentavam cenas
violentas entre homens negros de ambos os partidos em disputa.
Em seu livro, Greg Marinovich, integrante do Clube Bang Bang, descreve os
acontecimentos do dia 15 de setembro de 1990 que antecederam a foto vencedora do
Prêmio Pulitzer de Reportagem no mesmo ano16. A imagem tem ao centro um homem
em chamas ainda vivo, enquanto outro crava um machado em sua cabeça e a direita da
foto uma criança passa correndo. Marinovich relata como o crime foi cometido:
“Começaram a se revezar para infligir ferimentos no homem indefeso. Era como se se
tratasse de um ritual já executado antes e cuja liturgia todos conhecem, menos eu.”.
(MARINOVICH; SILVA, 2002, p.46.) Em seguida, um adolescente abre o coquetel
molotov que carregava e rega a vítima com gasolina, que em um ato contínuo é
incendiada. Não coincidentemente, Lindsaye Tshabalala, assassinado em 1990, será
chamado de human torch, ao passo que, Ernesto Alfabeto Nhamuave, morto em 2008,
será referenciado pela mídia como flaming man ou burning man17.
Tanto a foto tirada por Greg Marinovich em 1990, quanto às imagens publicadas
pela mídia em 2008, bem como a charge de Zapiro, além de retratarem práticas
criminosas semelhantes, são parecidas em termos visuais. A vítima em chamas ao
centro, pedras e pedaços de pau usados na agressão a sua volta no chão e por vezes, os
próprios agressores, portados de sua pangas18 como troféus. Contudo, convém
considerar que a forma como eram justificadas a violência na luta contra o apartheid e
na disputa durante a guerra de albergues não é a mesma contra imigrantes.
Em seu mais recente livro, Políticas da Inimizade, Achille Mbembe aborda o
assunto sobre hostilidades e suas formas contemporâneas. Afirma como a violência
15 O Clube era formado pelos renomados fotógrafos Kevin Carter, Greg Marinovich, Ken Oosterbroek e
João Silva. Ver: MARINOVICH, Greg; SILVA, João. O Clube do Bangue-Bangue: instantâneos de uma
guerra oculta. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 16 Foto disponível em: https://iconicphotos.wordpress.com/2011/02/15/lindsaye-tshabalalas-fiery-death/ 17 Ver em: https://mg.co.za/article/2010-07-30-no-justice-for-burning-man 18 Facões semelhantes a machetes.
contra o “estrangeiro” é justificada porque o imponho a responsabilidade sobre tudo de
ruim que assola o meu país do qual “ele” não pertence. O outro, é a causa da falta de
emprego, do escasso acesso de recursos provindos por parte do governo, da doença que
aflige a população, uma ameaça aos moldes de vida sul-africanos. No discurso
nacionalista, culpo os estrangeiros por crimes dos quais eu19 mesmo cometo. A
justificativa é clara, ele não sou eu, não faz parte da hegemonia criada chamada nação,
não integra a identidade nacional. Antes de tudo, o estrangeiro não é como eu e também
não posso permitir que o seja, e aí está o impasse sem solução que Mbembe sustenta:
“O verdadeiro problema é: que eles não sejam como nós, não vale.
Mas que eles passem a ser como nós, também não é válido. Para o
dominante, ambas as opções são insuportáveis e absurdas. (...) se os
matamos, é porque pretendem ser como nós, o nosso duplo. E ao matar o
duplo, asseguramos a nossa sobrevivência. Eles só podem então ser
diferentes de nós” (MBEMBE, 2017, P.184).
Aqui, usando do discurso de Mbembe, afirma-se que para garantir os padrões de
vida da nação, a sobrevivência e evitar o “contágio”, tem-se necessidade de neutralizar
o outro, eliminá-lo. E sua perda não será lamentada, admiti-se que, entre o estrangeiro e
o local não há nada em comum, chego ao ponto de lhe excluir humanidade. O que
também pode vir a explicar o sentimento de indiferença por parte daqueles que
cometem este tipo de violência, seja ela física ou verbal. Como afirma Mbembe: “No
seu corpo e na sua carne, é aquele a quem se pode provocar a morte física, porque ele
nega, de modo existencial, o nosso ser” (MBEMBE, 2017, P.82). Segundo o autor, eu
não o mato pelo o que ele é, eu o mato pelo o que eu sou, estabelece-se uma relação de
disputa, para garantir o meu em negação ao outro.
Ao ver o outro como inimigo estabeleço uma “relação de ódio que nos autoriza a
dar curso a toda uma espécie de desejos, de outro modo interditos” (MBEMBE, 2017,
P.81). Um ódio, um excesso de raiva em eliminar o outro que não é igual a mim e é,
19 Neste artigo ao fazer uso da primeira pessoa parto dos escritos de Mbembe no livro Políticas da
Inimizade, que a meu ver se coloca como aquele pertencente do estado nacional e provido do discurso
nacionalista contra o estrangeirismo.
portanto inferior, essa mesma forma de produção de superioridade e divisão hierárquica
encontramos em discursos de ódio como o racismo. De acordo com Mbembe, ao ter
como base os trabalhos de Fanon:
“o acto racista consistia numa declaração arbitrária e originária de
superioridade – superioridade com o objectivo de consagrar a supremacia de
um grupo, de uma classe ou de uma espécie de homens sobre outra”
(MBEMBE, 2017, P.173).
A xenofobia não está alheia a outras formas de segregação. Na África do Sul
ampliou-se também, entre outras características, com base no sistema do apartheid e no
racismo contra a população negra. Consideremos seus sinais patológicos, um medo do
outro que desconheço e ameaça minha forma de vida, onde o desejo último é o da
agressão, é o de subordiná-lo, de eliminar a sua presença, garantindo desta forma a
suposta pureza da nação. No entanto, não basta uma não semelhança, uma simples
negação ou afirmação da diferença. Preenche-se esse outro com características distintas
a minha. Ele é o oposto porque fala assim, se comporta assim, não faz parte do nosso
mundo, para tanto não pode ter os mesmos direitos (MBEMBE, 2014, P.151).
Sendo assim, para além de não pertencer ao mesmo grupo que o meu, justifico
sua não presença no meu meio, coloco-o sempre em comparação inferior a mim, nego-
o, e assim me auto-afirmo. Aponto questões como: Ele é “mais escuro do que eu”,
portanto não pode ser igual a mim, ele não sabe os signos e significados do meu meio,
portanto não é igual a mim, ele não fala minha língua, não é igual a mim.
Voltando a charge de Zapiro, fonte e ponto de partida para refletir sobre a
xenofobia na África do Sul, segue-se para o sentido irônico pretendido pelo cartunista
da relação da imagem com o texto: O contraste entre a violência justificada pela
diferença, no caso o conhecimento sobre o conceito ubuntu. Na imagem, o grupo
xenófobo responsável pelo crime justifica o ato por a vítima ser estrangeiro, já que a
mesma não sabia o significado de ubuntu. O conceito é transformado em uma
ferramenta de exclusão que pode ser usada para determinar quem pertence à "nova
África do Sul" e quem não. Ubuntu é ironicamente representado como uma estratégia
por aqueles que afirmam entender suas repercussões para condenar, violar e excluir
pessoas que supostamente não compreendem o termo. O que o cartunista aborda é de
como o conceito foi apropriado por uma parte da população de forma equivocada, ele é
incorporado e validado apenas nos limites do estado nacional, ou seja, exclui os
considerados não-cidadãos e perde seu sentido universal de humanidade.
Como tal, o próprio termo usado para enfatizar a importância primária de uma
comunidade inclusiva na África do Sul pós-apartheid transformou-se em um slogan que
supostamente protege esta de "forasteiros". A charge apresenta o ubuntu como marcador
de fronteira e identidade nacional, um critério de medição do outro; percebemos aqui a
ironia desse uso.
Como apontado anteriormente, ubuntu corresponde a uma noção de humanidade,
sendo assim, passa a ser contraditório como exposto na charge. Quando apropriado por
um determinado grupo em detrimento de outro, no caso em questão a nova nação sul-
africana pós-apartheid, deixa de ter validade universal e passa a ser uma política de
estado. O conceito ubuntu, apropriado de forma incompatível, possibilitou fundar um
imaginário de nação e comunidade, uma identidade nacional.
Com o fim do regime de segregação racial a população negra passa a ser
incluída na nova nação, a ela agora são garantidos os mesmos direitos que sempre
estiveram postos aos brancos. Todos passam a ser integrados nesse novo grupo
identitário chamado nação, fortemente apoiado pela filosofia ubuntu. A África do Sul
pós-apartheid investe em construir o imaginário de um grupo nacional único,
delimitado pelo estado-nação, estabelecendo consequentemente a figura do estrangeiro,
que anteriormente era a própria população nascida na região subjugada pelo apartheid,
mas agora o outro se encontra no lado oposto da fronteira dos limites nacionais.
Quando começa a se investir nesse projeto de identidade nacional sul-africana,
crescem conjuntamente os ataques xenofóbicos tornando-se cada vez mais violentos.
Essa nova unidade nacional é criada com base na democracia aos moldes do liberalismo
ocidental, que segundo Mbembe garante a liberdade, mas também a segurança e a
proteção contra o inimigo (MBEMBE, 2014, P.143). O novo formato põe em jogo um
conflito entre identidades políticas “locais” versus “estrangeiras”, essa perspectiva é
fundamental para que possamos abordar o crescimento dos movimentos xenofóbicos
pós 1994.
A partir dessa análise, podemos pensar como a xenofobia passa a ser alimentada
pelo chauvinismo nacional que defende um sentimento de “autoctonia”. Esse
pressuposto assume proporções significativas em discursos de ódio e atos criminosos,
apoiado muitas vezes nos direitos individuais enquanto cidadão que se sobressai aos
direitos humanos coletivos, legitimados sobre as vestes de uma democracia de caráter
liberal (BASTOS, 2016). Segundo esse preceito, cabe questionar, será isso uma
singularidade sul-africana?
Presenciamos atualmente uma racialização das nacionalidades ou como ressalta
Gilroy, a construção da nação como um objeto etnicamente homogêneo. Enquanto
conterrâneo, apela-se para as “características” e tradicionalidades construídas que
demarcam e distinguem do outro – devemos incluir aqui grupos minoritários dentro da
própria nação –. À exemplo da África do Sul, alguns visam delimitar o que corresponde
à formação nacional em uma unidade étnica, mas também política, econômica e
cultural. São concebidos definições e marcadores que distinguem o verdadeiro, o bom,
ou em caso mais extremos, o mais humano. Estabelece assim uma humanidade
específica dentro do estado em detrimento do outro.
Na tentativa de manter uma uniformidade nacional, para a qual “as ideias de
“raça”, nacionalidade e cultura nacional fornecem os indicadores principais (embora
não únicos)” (GILROY, 2001, p.50), posiciona-se contra aquele que é a causa dos males
que afetam a nação, a marca da impureza ou da falta de homogeneidade no corpo social.
Por fim, devemos considerar ainda as formações políticas dos estados-nacionais.
O liberalismo, base das democracias ocidentais – que garantem as liberdades individuais
e o igualitarismo – está cada vez mais apropriado pelos estados-nação dentro de seus
limites territoriais e pela elite, excluindo as minorias de cidadania. A própria
democracia, pelo menos em sua face ocidental, não tem sido mais do que uma
democracia dos que se parecem entre si. O que presenciamos é o medo da perda dessa
pretensa homogeneidade através de um nacionalismo exaltado, de manifestações de
ódio e xenofobia. A solução para esse impasse de proporção mundial talvez possa partir
de África, através da construção do conceito do ubuntu enquanto filosofia, que propõe
restaurar a humanidade e a dignidade humana.
Referências
ÁFRICA DO SUL, DIRCO (Departamento de Relações Internacionais e Cooperação).
Construindo um mundo melhor: a diplomacia do Ubuntu: documento branco
sobre a política externa da África do Sul. Pretória, 13 de maio de 2011.
ÁFRICA DO SUL. Constitution of the Republic of South Africa Act 200 of 1993. 25
jan. 1994.
BASTOS, Felipe B.C. Teorias a partir do Sul global: o caso da xenofobia na África do
Sul pós-apartheid (2000 –2015). XV Encontro Regional de História. Curitiba, 2016.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. EDUFBA, Salvador, 2008.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed.
34; Rio de Janeiro: UCAM, 2001.
KASHINDI, Jean-bosco Kakozi. Ubuntu como ética africana, humanista e
inclusiva. Cadernos Ihu Ideias. São Leopoldo, p. 3-21. jan. 2017.
MABERA, Faith. The impact of xenophobia and xenophobic violence on South
Africa’s developmental partnership agenda. Africa Review, v. 9, n. 1, p. 28–42, 2017.
MACEDO, José Rivair (org.). O pensamento africano no século XX. São Paulo:
Outras expressões, 2016.
MARINOVICH, Greg; SILVA, João. O Clube do Bangue-Bangue: instantâneos de
uma guerra oculta. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Ed. Antígona, 2014.
____________. “Afrofobia”? Achille Mbembe escreve sobre xenofobia na África do
Sul. Por dentro da África. 19 abr. 2015. Disponível em:
http://www.pordentrodaafrica.com/noticias/afrofobia-achille-mbembe-escreve-sobre-
xenofobia-na-africa-do-sul-2
____________. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.
SOUTH AFRICAN HISTORY ONLINE (SAHO). Xenophobic violence in
democratic South Africa. 17 de Abril de 2015. Disponível em:
http://www.sahistory.org.za/article/xenophobic-violence-democratic-south-africa.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes e PEREIRA, Analúcia Danilevicz (org). África do
Sul: História, Estado e Sociedade. Brasília: FUNAG/CESUL, 2010.
WIEVIORKA, Michel. A democracia à prova: Nacionalismos, populismo e
etnicidade. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.