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“Reflexões Psicanalíticas sobre Tantalização de Vínculos”XXII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - RIO DE JANEIRO –
FEBRAPSI – 2009.*Antonio Sapienza
INTRODUÇÃO
“Ó dama em quem minha esperança vive, e que, por mim, no Inferno até inscreveste
o rastro teu quando eu perdido estive;
por tantas coisas que me oferecesteconhecer, por tua força, tua bondade,graça e valor a agradecer sou preste.”
Alighieri, Dante, 1265-1321- “A divina comédia”Paraíso – Canto XXXI – versos 79-84 - p. 218 .
Ed. 34 – São Paulo – 1ª. Edição – 1998.
Partirei de uma discussão proposta por Bion ao sinalizar finas e sutis resistências a
Transformações na direção de O e que abrem preciosas pistas para detectarmos jogos
evasivos contidos basicamente em transformações em alucinose, com infindáveis
movimentos hiperbólicos tanto em salas de análise quanto em instituições, constituindo
pares antitéticos polarizadores que entretêm rivalidades sedutoras mais ou menos
encobertas tais como superioridade/inferioridade; aristocratas/párias, preferidos/rejeitados,
etc. O XII e último capítulo de “Transformações – do Aprendizado ao Crescimento” (Bion
- 1965) poderá constituir-se em fértil estímulo aos leitores interessados.
Desde os vértices científico e mítico-religioso, a imaturidade se revelará através de
intensificação de estados de mente tomados por julgamentos precoces e precipitados que
aprisionam personalidade dominada por “tudo saber, pouco compreender e tudo condenar” [Bion
– 1962 - “Uma Teoria sobre o Pensar”].
O termo tantalização refere-se a uma situação que se caracteriza por uma incitação de
desejos insaciáveis, não realizáveis. Remete-se ao mito de Tântalo, que sofreu o suplício de ficar
mergulhado para sempre num lago rodeado de árvores frutíferas, com sede e com fome e
impossibilitado de beber e de comer.
Esse mito representa a forma de viver da pessoa que passa sua vida tentando atingir objetivos
que, pelos mais variados motivos, vão além de uma possibilidade viável de ser realizada, e, por
essa razão, é marcada por uma insatisfação constante e torturante.
Indivíduos e grupos humanos podem ser capturados por uma cilada estruturada por fantasias
de busca de posições de importância e de supremacia. Nesse caso, mostram-se sedentos de
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admiração e prestígio. Sua preocupação maior liga-se constantemente a temas relativos a : quem
é superior ou inferior, aristocrata ou plebeu, preferido ou rejeitado. Estabelecem-se, às vezes,
polaridades extremas do tipo ou o primeiro ou o último, ou tudo ou nada.
Na situação da clínica psicanalítica, mecanismos defensivos psicóticos são usados para
conter o temor de mudança catastrófica através de reversão de perspectiva, que buscam manter
bloqueios e paralisia mentais, caracterizando splitting estático, visando compulsão a preservar
status quo.
Fatores sociais e culturais frequentemente contribuem para aumentar e alimentar certas
ambições desmedidas. Mas a manutenção de uma tal maneira de ser está apoiada em uma tríade
de características emocionais: arrogância, curiosidade ilimitada e desrespeito para com os outros
e com as coisas (Bion – “Sobre a Arrogância” - 1967).
Quando essas características se estabelecem rigidamente e a necessidade de ser o/a melhor é
enorme, isso se manifesta como uma máscara que procura ocultar ativo e atuante desastre
mental, alimentado por forças destrutivas de inveja e voracidade.
Nessas situações, há uma fixação de metas que devem ser atingidas a qualquer custo, e, para
alcançá-las, vai-se tornando necessário o emprego de estratégias de jogos de um fascinante vale-
tudo impregnado de astúcia, violência e sedução.
A pessoa torna-se prisioneira e refém de suas próprias ambições de sucesso permanente. Com
isso, ela se distancia de tantas outras coisas que também poderiam constituir sua existência. Ela
deixa de cuidar de outras dimensões significativas de sua vida.
Em busca da satisfação de desejo sem limites, todos os meios são utilizados, desde as formas
mais sutis, aparentemente ingênuas, até as mais violentas, e, frequentemente, aparece a má-fé
associada à onipotência. Os vínculos existentes ficam comprometidos, ficam prejudicados, e o
sentimento é de perene insatisfação, como Tântalo, que, rodeado de água, não consegue beber,
nunca sacia sua sede.
A mitologia grega descreve as intrigas, as seduções, as farsas usadas por deuses e mortais
com o fim de atingir determinados resultados. Quando um mortal realizava uma ação desse tipo
que ia muito além do tolerável, por vezes rompendo tabus, os gregos davam a ela o nome de
húbris. Isso queria dizer que tinha sido ultrapassada a medida própria aos humanos, tinha ido
além do métron. Era “o pecado” para os gregos.
Entretanto, não devemos confundir as configurações até aqui descritas com aquilo que
chamamos de amor-próprio, de curiosidade modulada e de vigorosa capacidade criativa que
busca complementação.
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(I)
Passo então a apresentar duas versões míticas relacionadas ao “Suplício de Tântalo”.
Ambas foram extraídas do livro “Miti – Storie e immagini degli dei ed eroi dell’antichità”
– Impelluso, Lucia – Ed. Mondadori – Milano (2007) – pp. 440-441 – [com livre tradução
do autor].
Na primeira versão, Tântalo é um rei asiático, antepassado de Agamemnon e Menelau,
considerado filho de Zeus. Em virtude de seu estreito parentesco com o rei dos deuses,
Tântalo tinha permissão de sentar-se à mesa e participar de seus banquetes. Presunçoso e
orgulhoso ousou subtrair néctar e ambrosia durante um destes convites para dá-los a seus
amigos mortais. Além disto, para colocar à prova a divina onisciência, despedaçou seu filho
Pélops e o ofereceu como um prato especial aos deuses. Porém as divindades se deram
conta do terrível crime, e ninguém ousou comer daquela carne; a seguir tomadas de piedade
recompuseram o corpo do rapaz, dando-lhe novamente a vida e puniram Tântalo,
relegando-o ao Tártaro, a região infernal onde ficam presos os que realizaram delitos
graves, e condenando-o à fome e à sede eternas”.
Na segunda versão, Homero nos conta que Tântalo ficou com os pés presos ao fundo
de um lago, com água até o pescoço e não podendo matar a sede, pois, a cada vez que
procurava beber, a água saía de seu alcance e desaparecia. O astuto rei também não podia
alimentar-se, porquanto as numerosas copas das árvores, de que pendiam todos os tipos de
frutos juntos à sua cabeça, eram afastadas pelo vento a cada vez que ele buscava alcançar os
frutos.
Introduzo ainda uma breve nota relacionada ao Mito de Tântalo e retirada do
“Dicionário Mítico Etimológico” – Vol. II – Ed. Vozes – 3ª. Edição – Petrópolis {2000},
pp. 400-401 – do Prof. Junito de Souza Brandão. O autor narra que a deusa Demeter, ao se
encontrar fora de si pelo rapto de sua filha Perséfone, chegou a comer uma espádua de
Pélops; sendo que os demais deuses não chegaram a experimentar a iguaria oferecida por
Tântalo.
Sirvo-me dos estudos de Bion sobre supostos básicos de dinâmica de grupo, para expor
e aproximar fatores emocionais nos jogos de casal em idílio e suas correlações com
momentos de lideranças messiânica e aristocrática, quando o objeto de desejos estimula
também o fascínio hipnótico por necessidades imperativas de apropriação de natureza
semelhante a um sequestro, que percorrem pautas desde pactos de morte, como na tragédia
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shakespeariana “Romeu e Julieta”, até cegos fundamentalismos e ciúmes suicidas-
assassinos.
As propostas de grupo de trabalho fazem da tarefa o vetor de sanidade, e assim
podemos ler quando Bion em “Cogitations”, livro publicado em 1992, estabelece a salutar
fluidez oscilante entre Narcisi-smo, como necessidades de amor subjetivo, e Social-ismo
enquanto desejos de amor pelo objeto, capítulo datado em 31 de Janeiro/01 Fevereiro 1960.
(II)
Tomarei agora um breve fato histórico ligado ao final da vida e obra do pintor Rafael de
Sanzio, em sua fase romana. O crítico de arte Antonio Forcellino [ in “Raffaello – Una vita
felice”, Ed. Laterza – 2006 – Bari], descreve primitivos e intensos pressentimentos de
Rafael, desde a adolescência, por abrigar temores de que uma ligação estável e apaixonada
por uma mulher admirável pudesse ser destrutiva, a qual poderia então prejudicar sua
produção artística e criatividade; mantinha então secreta crença no terror de vir-a-ser
vítima “d’une femme fatale”. Na sexta-feira santa de 1520, morre subitamente aos 37 anos
[Urbino 1483 – Roma 1520], no auge de sua fama, enquanto ícone do Renascimento como
pintor e arquiteto, após superar Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti, mestres e
rivais junto ao Papa Leão X [Giovanni de’ Medici], cercado da aura de restabelecer as bases
arquitetônicas da antiga civilização greco-romana. Os fatos ocorridos e relatados por
Giorgio Vasari (1550), historiador de Arte, nos contam de crescente exaustão orgástica
ocorrida em alcova particular do Palazzo Villa Madama, após intensa e contínua celebração
amorosa e sexual, durante cerca de três dias consecutivos, com sua amante favorita,
retratada no célebre quadro “La Fornarina”, com seios e ventre suavemente recobertos por
diáfano véu transparente; esse quadro está hoje em dia exposto na Galeria Nacional de
Roma.
Constatou-se ainda que médicos, chamados com urgência para atender Rafael em
agonia, não foram informados das particularidades íntimas e eróticas acima relatadas.
(III)
Nas auroras do fascismo e nazismo europeus dos anos 30-40, há um crescente clima
político e econômico de intrigas e manobras favoráveis ao surgimento de personalismos
ditatoriais. Violentas paixões grupais são entretidas por jogos de retórica carregada de
onipotência e onisciência, com sucesso sustentado por inteligentes montagens de máquinas
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tecnológicas a serviço de eficiente propaganda. Armam-se lutas e guerras visando poderes
de supremacia racial apoiada em fundamentalismos e preconceitos.
Luigi Pirandello escreve em 1921 “Seis Personagens em Busca de um Autor”,
mostrando ao vivo estereotipias personificadas na peça, o que resultou por desencadear, na
pópria noite de estréia, o destroçamento do teatro por platéia enfurecida que soube captar a
mensagem crítica dirigida por Pirandello aos “carneiros sem-vida”. Entre 1945 e 1946, o
escritor Carlo Emilio Gadda inicia a escrita de uma sátira dirigida a Mussolini e seguidores
com o título “Eros e Priapo – Da furore a cenere” , cuja primeira edição sai em 1967. Os
interessados em estudar jogos fálicos em política podem consultar a 4ª. Edição publicada
pela Garzanti, Itália, em 2000.
Há quem diga que falicidade é uma tragicomédia que raramente compartilha suave e
serena felicidade. Com leve ironia, Bion comenta que a busca de fama é doença {dis-ease}
de almas nobres.
(IV)
Na literatura, Oscar Wilde nos conta, em O Retrato de Dorian Gray (1891), a trajetória
de um jovem aristocrata, um dândi, que, querendo obcecadamente permanecer sempre
jovem, como que se alimenta da juventude das belas mulheres que conquista, atraindo-as,
seduzindo-as e levando-as ao desespero e frequentemente ao suicídio. É assim que ele vive
seus vínculos amorosos, seu vínculo com a vida, sempre na procura da eterna juventude
como único objetivo. Dorian Gray encontra um célebre pintor que o retrata e guarda esse
quadro em um sótão.
Eles fazem uma negociação pela qual, no quadro, ocorreria o envelhecimento, enquanto
que uma magia faria com que Dorian Gray permanecesse jovem para sempre. Ele consegue
seu intento, mas o tédio se instala e toma conta de sua vida. Ele não vive a vida que os
humanos vivem. Resolve desfazer o pacto com o pintor e acaba por assassiná-lo. Nesse
exato momento, o quadro retoma as características da figura quando tinha sido pintada, e
Dorian Gray se torna subitamente um velho agonizante, desmantelado e encarquilhado.
Assim como Tântalo, que, com o objetivo de realizar seu insaciável desejo de pertencer ao
Olimpo, para agradar aos deuses destruiu seu vínculo com o filho, Dorian Gray, para
realizar seu ilimitado desejo de juventude destruiu seus vínculos amorosos, destruiu o que
poderia ter sido uma vida humana com todas as suas transformações naturais, e fez dela
algo insuportável.
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(V)
Como contraponto e desfecho ao que acabo de descrever, passo a indicar a leitura de um
belíssimo texto escrito pelo filósofo e ensaísta da modernidade Nalin Ranasinghe “Socrates
in the Underworld – On Plato’s Gorgias” – St. Augustine’Press - South Bend, Indiana –
2009. Gostaria de particularizar principalmente o capítulo IV, “The Socratic Cosmos” que
merece ser lido com profundidade, onde o autor manifesta os valores de Ética com limites
de poder, envolvendo compreensão e amor à vida autenticamente criativa. Poder-se-ia
aproximar seu texto, em especial este capítulo IV, à proposta de Bion quanto à busca de
sanidade mental na prevalência dos vínculos de amor à vida {+L}, consideração por
verdades {+K} e contínua luta por ampliar sabedoria não saturada através de
Transformações visando O, Infinito, Deus, Realidade Última.
Nessa mesma toada, os post-kleinianos procuram seguir pautas estéticas na interação
com Psicanálise expostas por John Keats em “The Vale of Soulmaking” qual uma poética a
favor da redenção e criatividade pós-posição depressiva.
Ao final do capítulo oitavo de “Seminari Italiani”, em 16 de julho de 1977, [ed. Borla -
W.R.Bion a Roma (1985) – p. 107], Bion pressente convite a ser endeusado durante o
encontro e atribuiu esta configuração a modismos religiosos; e sabiamente procurando
afastar os cantos das sereias, que podem fazer o indivíduo supor ser uma dessas pessoas
verdadeiramente importantes, Bion recita o poema de Shelley que descreve os escombros
da estátua do faraó “Ozymandias” no deserto:
“O meu nome é Ozymandias, rei dos reis
Admirai as minhas obras, oh Poderosos, e vos desesperai!
Não permanece outro. Em volta às ruínas daquela estátua colossal, imensa e
miserável
As areias desoladas e planas se estendem ao longe”.
Quero neste momento agradecer e prestar homenagem a duas sábias e sucintas
observações colhidas em sessões de análise pessoal.
A primeira através da Psicanalista Judith Teixeira de Carvalho Andreucci ao me
recomendar atender à seguinte direção: “Se você colocar todos seus ovos em um único
cesto, quando este se for, você ficará amarguradamente desolado e em profunda penúria”.
Alguns anos mais tarde, o Psicanalista Yutaka Kubo, fazendo alusão à “Noite
Escura Sem Deus”, de Juan de La Cruz, sinaliza-a como vivência altamente estimuladora
de reativação de núcleos megalomaníacos. A seguir descreveu-os como reação a resíduos
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persistentes de núcleos traumáticos plenos de ódio, ressentimento e sentimentos de
abandono nostálgico aguardando reelaboração por lutos e pesadelos paralisantes. De um
modo direto e simples chegou a me dizer que “diferentemente do personagem Hamlet,
enlouquecido pelas juras de vingança provenientes do espectro paterno, havia amplos sinais
de esperança que você esteja conseguindo encontrar um psicanalista capaz de ajudá-lo a
desarmar paranóia tão melancolizante”.
Escrevi recentemente três artigos em que busco aprofundar problemas clínicos
relacionados ao tema estudado no presente escrito: {Sapienza, Antonio: [a] “Psicanálise e
Estética – Ressignificação de Conflitos Psicóticos e Reciprocidade Criativa” – em
“Ilusão” - Revista IDE Vol. 29 - No..42 – 2006 – pp.23-28; [b] “Função Alfa: Ansiedade
Catastrófica – Pânico – Continente com Rêverie” – Congresso Internacional
Bion2008Roma}; [c] Palestra no Encontro Bion2009 na SBPSP “Bion:Da Clínica às
Teorias Possíveis” - em 03/04/2009.
*Antonio Sapienza
SBPSP – 01/maio/ 2009.
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