xxv encontro nacional do conpedi -...
TRANSCRIPT
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
HISTÓRIA DO DIREITO
ÁLVARO GONÇALVES ANTUNES ANDREUCCI
JULIANA NEUENSCHWANDER MAGALHÃES
RICARDO MARCELO FONSECA
Copyright © 2016 Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Todos os direitos reservados e protegidos. Nenhuma parte destes anais poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados sem prévia autorização dos editores.
Diretoria – CONPEDI Presidente - Prof. Dr. Raymundo Juliano Feitosa – UNICAP Vice-presidente Sul - Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – PUC - RS Vice-presidente Sudeste - Prof. Dr. João Marcelo de Lima Assafim – UCAM Vice-presidente Nordeste - Profa. Dra. Maria dos Remédios Fontes Silva – UFRN Vice-presidente Norte/Centro - Profa. Dra. Julia Maurmann Ximenes – IDP Secretário Executivo - Prof. Dr. Orides Mezzaroba – UFSC Secretário Adjunto - Prof. Dr. Felipe Chiarello de Souza Pinto – Mackenzie
Representante Discente – Doutoranda Vivian de Almeida Gregori Torres – USP
Conselho Fiscal:
Prof. Msc. Caio Augusto Souza Lara – ESDH Prof. Dr. José Querino Tavares Neto – UFG/PUC PR Profa. Dra. Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches – UNINOVE
Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva – UFS (suplente) Prof. Dr. Fernando Antonio de Carvalho Dantas – UFG (suplente)
Secretarias: Relações Institucionais – Ministro José Barroso Filho – IDP
Prof. Dr. Liton Lanes Pilau Sobrinho – UPF
Educação Jurídica – Prof. Dr. Horácio Wanderlei Rodrigues – IMED/ABEDi Eventos – Prof. Dr. Antônio Carlos Diniz Murta – FUMEC
Prof. Dr. Jose Luiz Quadros de Magalhaes – UFMG
Profa. Dra. Monica Herman Salem Caggiano – USP
Prof. Dr. Valter Moura do Carmo – UNIMAR
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr – UNICURITIBA
H673
História do direito [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UnB/UCB/IDP/UDF;
Coordenadores: Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, Juliana Neuenschwander Magalhães, Ricardo Marcelo
Fonseca – Florianópolis: CONPEDI, 2016.
Inclui bibliografia ISBN: 978-85-5505-193-7
Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: DIREITO E DESIGUALDADES: Diagnósticos e Perspectivas para um Brasil Justo.
1. Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Brasil – Encontros. 2. História do Direito. I. Encontro Nacional
do CONPEDI (25. : 2016 : Brasília, DF).
CDU: 34
________________________________________________________________________________________________
Florianópolis – Santa Catarina – SC www.conpedi.org.br
Comunicação – Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro – UNOESC
XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI - BRASÍLIA/DF
HISTÓRIA DO DIREITO
Apresentação
A história do direito é uma área jovem no campo acadêmico brasileiro. Como qualquer
disciplina em consolidação, apresenta fortes desafios, que oscilam entre a profissionalização
e o rigor acadêmico (indubitavelmente presentes na área no Brasil) e um certo diletantismo.
Assim como o grande historiador francês do século XX, Phillippe Ariès, dizia-se (no caso
dele, pela mais legítima modéstia) um mero “historiador domingueiro”, no Brasil temos
ainda muitos acadêmicos provenientes de outras áreas alheias à história do direito que se
aventuram nas plagas da “história do direito”. Os resultados desse fenômeno são
heterogêneos: de um lado, vemos como altamente positivo que haja um interesse crescente
pelo passado jurídico e pelo esforço de compreensão da esfera jurídica pelas lentes históricas;
de outro lado, porém, vemos algumas aproximações à disciplina sem a devida mediação
metodológica, sem a devida compreensão de que “atingir” o passado não é tarefa simples,
mas que exige ferramentas e adestramento, sob pena de se cometer uma série de “pecados”
teóricos – sendo que o maior deles para o historiador, segundo o célebre Lucien Febvre, era o
pecado do anacronismo.
Os resultados compilados nessa nova coletânea do CONPEDI revela, a um só tempo, o
robustecimento do GT de História do Direito, já que muito nos impressiona pela quantidade
de trabalhos enviados (sendo alguns de excelente qualidade), e a heterogeneidade da
produção acadêmica da área de história do direito no nosso país.
Como coordenadores do GT, nossa tarefa é sobretudo aquela de, durante o desenvolvimentos
dos trabalhos no encontro do CONPEDI, encaminhar as discussões de modo a pontuar as
especificidades teóricas e metodológicas do campo da História do Direito, refletindo sobre os
limites de um campo do saber ainda em consolidação no Brasil.
Enquanto organizadores dos anais do GT, incumbe-nos organizar as contribuições dos
participantes, ordenando-os tematicamente, em consonância com a temática geral do XXV
Encontro Nacional do CONPEDI e de forma a tornar minimamente coerente a organização
da diversidade temática e metodológica presente no corpo de textos apresentados. Assim,
tendo em vista o arco temático “Direito e Desigualdades: diagnósticos e perspectivas para um
Brasil justo”, organizamos da seguinte forma os trabalhos apresentados no GT História do
Direito do XXV CONPEDI:
1) História do Direito e do Pensamento Jurídico
2) História do Direito na Europa
3) História do Direito e construção do Estado brasileiro
4) História Constitucional brasileira
No primeiro bloco, História do Direito e do Pensamento Jurídico, inauguramos o volume, em
homenagem à temática geral do XXV Encontro Nacional do CONPEDI, com uma reflexão
de caráter metodológico sobre a Nova História, a partir do estudo da obra Las mujeres ante la
ley en la Cataluña moderna, de Isabel Pérez Molina, que aborda a condição das mulheres na
Idade Moderna. No texto intitulado Melheres perante a lei na Catalunha moderna, Maria
ereza Fonseca Dias pretende contribuir para a compreensão dos fenômenos sociojurídicos do
passado relacionados à temática de gênero.
Em seguida apresentamos textos que abordam aspectos de uma historiografia dos conceitos,
o primeiro intitulado O conceito de Justiça na História, escrito por Ana Carolina Nunes
Furtado e o segundo O conceito de soberania entre a formação das cidades medievais e a
sociedade internacional clássica, escrito por Marcelo Markus Teixeira e Idir Canzi. Nesse
último, a pesquisa histórica sobre o conceito de soberania leva a uma problematização da
noção de soberania na Idade Média, abrindo espaço para se discutir a modernidade desse
conceito em face do surgimento de uma sociedade de Estados, assim como do Direito
Internacional.
O segundo bloco é composto por artigos que abordam temas variados da história do direito
na Europa. Dada a proximidade temática com o último texto do bloco precedente,
inauguramos esse grupo de textos com o ensaio Estado, Direito e religião na ordem jurídica
medieval, em que Viviane Lemos da Rosa e William Soares Pugliese desenvolvem diferentes
aspectos da ordem jurídica medieval, com enfoque nos temas do pluralismo jurídico, da
ausência de unidade politica e da importância que a religião adquiriu na formatação de uma
cosmovisão medieval. Os dois últimos textos desse bloco recuperam expressões do Direito
Romano, com enfoque sobre a visão romanista da estrutura familiar. No texto A família
romana: contributo histórico-jurídico, no qual Maisa de Souza Lopes e Vivian Gerstler
Zalcman, no qual se pretende recuperar a contribuição daquela visão para o contexto atual e
no estudo. Já Ricardo Alejandro Lopez Tello e Adriana Silva Maillart, no ensaio Tribuno da
Plebe: contextualização histórica do acesso à justiça por métodos extrajudiciais de resolução
de conflitos, têm por objetivo analisar a luta e o resultado das reivindicações da plebe,
enquanto excluídos na sociedade, sobretudo no que diz respeito às suas chances concretas de
“acesso à justiça”, pela via do “Tribuno da Plebe”.
O terceiro bloco de artigos, reunidos sob a temática História do Direito e construção do
Estado brasileiro tratam de aspectos variados da formação do direito e das instituições
jurídico-políticas brasileiras, da época colonial à República. O bloco é integrado por textos
sobre o direito penal colonial, de autoria de Karina Nogueira Vasconcelos e Rodrigo Teles de
Oliveira e intitulado Penalidade e Colônia: da liberdade punitiva às Ordenações Filipinas
numa análise da punibilidade dos homens livres na capitania de Pernambuco; sobre as
origens do contrato de arrendamento rural no Brasil, no estudo apresentado por Luís Felipe
Perdigão de Castro no texto Os contratos de arrendamento rural no Brasil: origens históricas;
assim como sobre a História do Federalismo Fiscal no Brasil Império, Guilherme Dourado
Aragão Sá Araujo e Maria Lírida Calou De Araújo e Mendonça, em que se aborda a
influência do modelo federalista norte-americano no movimento descentralizador no Brasil
da década de 1830, a partir da pesquisa historiográfica e da análise de estudos financeiros e
de documentos político-legislativos do Império. Outro interessante estudo é Uma análise da
elaboração do Código Comercial brasileiro à luz da doutrina e debates legislativos históricos,
em que Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Raphael Vieira da Fonseca Rocha
discorrem acerca dos debates na Câmara dos Deputados nos anos que precederam a
promulgação do Código Comercial Brasileiro em 1850, dando relevo à votação do projeto
em bloco. Nesse segmento, destaca-se ainda, como particularmente afinada com o campo
temático do XXV CONPEDI, a pesquisa de Jahyra Helena Pequeno dos Santos e Ivanna
Pequeno dos Santos sobre a demanda pelo voto feminino no Brasil e sua abordagem histórica.
O quarto e último segmento, sobre História Constitucional Brasileira inicia-se com uma
interessante reflexão sobre as expressões da temporalidade na história constitucional
brasileira, elaborada por Luiz Fernando de Oliveira no artigo Tempo que passa, tempo que
fica: o prescritível e o imprescritível como expressões de temporalidades na história
constitucional brasileira. Em seguida apresentam-se pesquisas diversas sobre as
transformações históricas em diferentes aspectos do constitucionalismo brasileiro, como
ocorre nos textos A evolução do modelo burocrático de gestão brasileiro na República, de
autoria de Daniela Almeida Bittencourt e Fabrizia Angelica Bonatto Lonchiati; A tutela
constitucional da cultura no Brasil, de Letícia Menegassi Borges e Análise da gestão privada
de recursos públicos a partir da contextualização histórica das políticas publicas de saúde no
Brasil, escrito por Elda Coelho De Azevedo Bussinguer e Shayene Machado Salles. Ainda
nesse bloco, uma reflexão sobre a evolução do constitucionalismo brasileiro à luz da nova
perspectiva do constitucionalismo latino-americano, no trabalho Texto e contexto do
constitucionalismo brasileiro: releituras a partir do constitucionalismo latino americano do
século XXI, que tem por autor Pedro Henrique Nascimento Zanon.
Dois textos abordam a temática da história das transições políticas no Brasil. De forma mais
direta, o texto Poder Judiciário, Regime Autoritário e Memória: a narrativa institucional
sobre o regime autoritário, de Vanessa Dorneles Schinke, descreve a narrativa oficial sobre a
atuação do poder judiciário durante o regime autoritário de 1964-1985 que foi apresentada
nos espaços de memória da justiça comum brasileira. Já o texto De Médici a Marighella: uma
história “certa”escrita por linhas tortas, ou uma história “torta” escrita por linhas certas,
escrito por Filipe Segall Tavares , José Maria Barreto Siqueira Parrilha Terra , parte de relato
de um caso relacionado com a temática dos “lugares da memória” para empreender um
debate, a partir de Michel Foucault, sobre aspectos epistemológicos da história do direito.
Veja-se, pois, uma amostragem da produção cientifica no campo da História do Direito no
Brasil, que convidamos nosso leitor a visitar.
Prof. Dr. Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci (UNINOVE)
Profa. Dra. Juliana Neuenschwander Magalhães (UFRJ)
Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR)
ANÁLISE DA GESTÃO PRIVADA DE RECURSOS PÚBLICOS A PARTIR DA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO
BRASIL
ANALYSIS OF THE PRIVATE MANAGEMENT OF PUBLIC RESOURCES BASED ON THE HISTORICAL CONTEXTUALIZATION OF PUBLIC HEALTH POLICIES
IN BRAZIL
Elda Coelho De Azevedo BussinguerShayene Machado Salles
Resumo
Propõe-se a adentrar o contexto das transformações resultantes da hegemonia do sistema
capitalista para questionar, no âmbito da relação público-privado, as consequências da gestão
privada de recursos para a concepção de saúde que tem orientado as políticas públicas de
saúde no país. Promover-se-á um aprofundamento teórico em movimentos historicamente
demarcados, do período militar à República democrática em 1988, tendo em vista a distinção
da concepção de saúde que alicerçou o desenvolvimento das políticas em cada lapso
temporal. Esclarecer-se-á a relação entre o contexto sócio-político em que as políticas foram
concebidas e a orientação contemporânea das mesmas rumo às tendências privatistas.
Palavras-chave: Políticas públicas de saúde, Relação público-privado, Gestão privada de recursos públicos
Abstract/Resumen/Résumé
The purpose is to study the changes that resulted of the capitalist system hegemony to
question, in the context of public-private relationships, the consequences of private
management on the idea of health that has guided public health policies in the country. A
theoretical deepening on historically demarcated movements will be conducted, from the
Military Regime to the Democratic Republic in 1988, keeping in mind the distinction of the
idea of health in each time frame. The contexts in which these policies were created and the
orientation of these policies toward private tendencies will be clarified.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Public health policies, Public-private relationships, Private management of public resources
269
1 INTRODUÇÃO
Problematizar o conhecimento em saúde, numa conjuntura pautada em propostas
políticas estimuladoras da abertura do mercado ao capital estrangeiro, da privatização de
empresas e de serviços públicos, bem como da desregulamentação e flexibilização das
relações de trabalho, implica em situar sua práxis no dinâmico contexto sociopolítico que a
sustenta, sobretudo por já não ser possível ignorar as influências do capital ao modo como as
políticas de saúde, no Brasil, tem se desenvolvido ao longo dos últimos anos.
Para demonstrar as mudanças vivenciadas no fenômeno da saúde e, mais
especificamente, no âmbito das políticas públicas, torna-se indispensável o aprofundamento
na dinâmica de construção social que caracterizaram os movimentos históricos no processo de
desenvolvimento das políticas públicas de saúde no Brasil. Para tanto, foram realizados
estudos descritivos mediante pesquisa bibliográfica acerca do desenvolvimento das políticas
públicas no Brasil. A partir do levantamento bibliográfico realizado, promover-se-á uma
análise do contexto contemporâneo, caracterizado pela gestão privada de recursos públicos, à
luz dos movimentos históricos viabilizadores da elucidação do processo de desenvolvimento
das políticas públicas de saúde no Brasil.
Dito isto, cumpre esclarecer que a pesquisa encontra-se estruturalmente alicerçada
pelas seguintes hipótese/ premissas: 1) No âmbito da saúde, a análise teórica dos principais
movimentos históricos, do período colonial à república democrática constituída em 1988, é
imprescindível para a contextualização de uma concepção democratizada das políticas
públicas de saúde no Brasil; 2) É possível relacionar o contexto sócio-político em que as
políticas foram concebidas e a orientação contemporânea das mesmas rumo às tendências
privatistas. 3) A gestão privada de recursos públicos, por meio das Organizações Sociais de
Saúde, representa uma tendência resultante da hegemonia do sistema capitalista no âmbito da
relação público-privado, repercutindo, diretamente, na concepção de saúde que tem orientado
as políticas públicas de saúde no Brasil.
Por razões metodológicas, os movimentos históricos que foram objeto analítico deste
estudo são os seguintes: a) do período getulista ao golpe de 1964; b) do golpe de 1964 à
reforma sanitária; c) do movimento da reforma sanitária, cuja emergência se deu como
resposta à crise de um modelo de saúde, à realidade contemporânea.
A par dessas considerações preliminares, convém esclarecer que o objetivo primacial
deste estudo consiste em analisar o contexto das transformações resultantes da hegemonia do
sistema capitalista para questionar, no âmbito da relação público-privado, as consequências da
270
gestão privada de recursos públicos para a concepção de saúde que, contemporaneamente,
tem orientado as políticas públicas de saúde no Brasil. Nesse sentido, afirma-se que a temática
objeto deste artigo representa um dos desafios inerentes a contextualização das políticas
públicas na democracia brasileira não consolidada.
2 UMA CONTEXTUALIZAÇÃO PRELIMINAR DO HISTÓRICO DO
DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL: DO
PERÍODO COLONIAL À DÉCADA DE 1930
A premissa fundamental da qual se parte consiste na constatação de que a
compreensão do processo histórico de construção da acepção de saúde, e de sua ampliação, no
Brasil assume sua relevância por estar diretamente atrelada ao modo como as práticas
sanitárias e as políticas públicas, visando à promoção da saúde, irão se desenvolver,
decorrendo daí a importância desse esforço histórico para o avanço das reflexões atinentes ao
objetivo central deste estudo.
No Brasil, pode-se dizer que o marco histórico representativo do início da
regulamentação das práticas de saúde ocorreu, em 1808, com a vinda da família real para o
país, fato que inaugurou a preocupação da Coroa Portuguesa com a saúde dos imigrantes que
viriam integrar a mão-de-obra que alicerça a manutenção da atividade econômica
desenvolvida (COTTA et al., 2013, p. 88-89). Nesse período, a diversidade étnica que
caracterizava os povos que habitavam o Brasil (negros, índios, imigrantes europeus,
portugueses) implicava na coexistência de tradições culturais plurais que, no âmbito da
aplicação de serviços de saúde, exprimiam práticas próprias no tratamento das doenças
(COTTA et al., 2013, p. 88) (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, p. 279-322).
A princípio, o interesse na estruturação de um projeto de institucionalização do setor
saúde nasce atrelado à necessidade de atender as necessidades da elite dominante, isto é, da
aristocracia portuguesa, assegurando a manutenção do status quo, mediante a
instrumentalização de medidas capazes de proporcionar respostas às doenças que acometiam a
sociedade no século XIX, tais como a varíola e a febre amarela (COTTA et al., 2013, p. 89)
(ESCOREL, TEIXEIRA, 2012, p. 279-322). No Brasil colonial, a percepção embrionária
apresentada no âmbito da saúde reservava à ação pública um espaço restrito à implementação
de práticas como (COTTA et al., 2013, p. 89-90):
271
proteção e saneamento das cidades, principalmente as portuárias, responsáveis
pela comercialização e circulação dos produtos exportados;
fiscalização do exercício da medicina;
atendimento às camadas da população com maior poder aquisitivo;
controle das doenças/epidemias que pudessem afetar a principal atividade
econômica da época (economia agroexportadora cafeeira);
avanço das biotecnologias para adoção de práticas mais eficazes no controle das
moléstias (criação das vacinas).
Nota-se, portanto, que o proveito mercantil, decorrente circulação de mercadorias, e a
consequente importância de promover o controle das epidemias sociais integravam um papel
relevante para o padrão de conhecimento em saúde daquela época, ao qual era atribuído uma
concepção restritiva necessariamente vinculada ao saneamento das cidades, à cura e ao
tratamento de doenças.
Apenas com a proclamação da República, ocorrida em 1889, é que a saúde passa ser
assumidamente uma política de Estado, embora essa atuação estatal permaneça fundada no
viés mercantil, uma vez que decorrente da constatação de que “[...] as epidemias que se
alastravam entre os trabalhadores, devido às péssimas condições de saneamento,
prejudicavam o crescimento da economia” (COTTA et al., 2013, p. 90). As ações
direcionadas à saúde, promovidas pela política sanitarista do governo de Rodrigues Alves, nos
anos de 1902 e 1903, foram responsáveis pela contenção de graves epidemias (febre amarela,
peste bubônica e varíola), bem como pela implementação de medidas de saneamento e de
urbanização da cidade do Rio de Janeiro (COTTA et al., 2013, p. 91). Nesse período, a
Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), criada em 1897, era coordenada pelo médico-
sanitarista Oswaldo Cruz, o qual, dentre outras medidas implementadas durante a sua gestão,
ficou historicamente reconhecimento como o agente intelectual que incitou a denominada
“Revolta da Vacina”, movimento que se insurgiu contra o decreto presidencial da “Lei da
vacinação obrigatória”, numa clara desconsideração da autonomia e da subjetividade dos
indivíduos destinatários da medida (COTTA et al., 2013, p. 91-92).
Ademais, o discurso de higienização urbana que respaldava a política de vacinação
obrigatória, proposta por Oswaldo Cruz, atribuía à saúde uma conotação policialesca
alicerçada na necessidade de vigilância sanitária, a qual, embora, em tese, fosse destinada à
todos, restringia-se às zonas urbanas produtivas (COTTA et al., 2013, p. 92) (ESCOREL;
TEIXEIRA, 2012, p. 279-322).
A ampliação das ações estatais no que diz respeito ao acesso das políticas sanitárias às
zonas rurais ocorreu somente na metade da década de 1910, com a instituição do
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), dirigido pelo médico Carlos Chagas
272
(COTTA et al., 2013, p. 93). Salienta-se que, nesse período, era possível identificar no Brasil
a coexistência de três subsistemas paralelos, responsáveis pela implementação da denominada
“Medicina Institucional”, a saber: a) o sistema de “Saúde Pública”, cuja aplicação prática se
realizava mediante a instituição das políticas sanitárias destinadas, em tese, a toda população;
b)o sistema de “Medicina do Trabalho” e; c) o sistema de “Medicina Previdenciária”, sendo
que esses dois últimos sistemas destinavam-se à assistência individual dos trabalhadores das
zonas urbanas (COTTA et al., 2013, p. 93).
Tendo apresentado o delineamento institucional da saúde no contexto colonial e
republicano, convém prosseguir historicamente a partir da primeira grande crise do
capitalismo, ocorrida em 1920, que afetou a economia capitalista cafeeira, tendo sido capaz de
redefinir a conjuntura institucional da Saúde Pública, na medida em que contribuiu para que a
saúde fosse assumida como uma questão social de dever do Estado.
Constata-se, portanto, que essa crise afetou não só o cenário econômico, tendo
repercutido também de modo significativo no contexto social dos trabalhadores urbanos, por
meio do descontentamento com suas condições de saúde laboral, fato incitador de lutas,
promovidas por esses segmentos sociais de classe, que resultaram em relativos avanços
quanto à regulamentação do que, mais adiante, constituirá uma base para a emergência do que
se entende por Previdência Social. Assim, em 1923, a Lei Eloy Chaves foi um importante
instrumento regulamentador da formação de Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) para
os trabalhadores urbanos (COTTA et al., 2013, p. 94).
Vale ressaltar que a lei beneficiou somente o operariado urbano. Para que fosse
aprovada no Congresso Nacional, dominado na sua maioria pela oligarquia rural, foi
imposta a condição de que esse benefício não seria estendido aos trabalhadores
rurais – fato que na história da previdência do Brasil perdurou até a década de 1960,
quando foi criado o FUNRURAL (COTTA et. al., 2013, p. 94).
A política pública de saúde permaneceu, portanto, exclusivamente, voltada para as
cidades, relegando aos trabalhadores da zona rural, cerca de trinta anos de espera quando à
implementação de um fundo social, operado nos moldes de um seguro, que os abarcasse.
Além disso, curioso observar que embora a crise socioeconômica, vivenciada nos anos
20, tenha sido apresentada nesse estudo como desencadeadora do remodelamento institucional
da saúde pública e, mais especificamente, como incitadora da ênfase institucional da saúde,
enquanto política atribuída eminentemente ao Estado, pode-se dizer que os tímidos avanços
identificados, nesse período, não resultaram efetivamente num agir eminentemente estatal
sobre a saúde, uma vez que a própria criação do seguro social implementado pelas CAPs
273
consistiu na implementação deum fundo tripartite alimentado por contribuições de
trabalhadores, empregadores e consumidores de serviços da empresa organizadora do fundo,
ou seja, sem a contribuição do Estado. No entanto, é importante reconhecer que (COTTA et
al., 2013, p. 95) (BAPTISTA, 2008, p. 36)
Apesar de o Estado não ter definido um sistema de proteção abrangente e de ter-se
mantido fora dessa forma de organização privada, restringindo-se a legaliza-la e a
controlá-la à distância, esse modelo serviu de base para a constituição de um
primeiro esboço de sistema de proteção social no Brasil que se definiu a partir dos
anos 1930 no governo do então presidente da república do Brasil, Getúlio Vargas.
3 O MOVIMENTO HISTÓRICO DA SAÚDE DO PERÍODO GETULISTA AO
GOLPE DE 1964
Foi sob a vigência do governo de Getúlio Vargas e, mais precisamente, em 1933, que
as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), os quais
assumiram uma incidência mais abrangente quando comparados aos seguros que os
antecederam (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, p. 279-322).
Tais institutos foram criados por Getúlio Vargas ao longo dos anos 30, favorecendo
as camadas de trabalhadores urbanos mais aguerridas em seus sindicatos e mais
fundamentais para a economia agroexportadora até então dominante. Ferroviários,
empregados do comércio, bancários, marítimos, estivadores e funcionários públicos
foram algumas categorias assalariadas favorecidas pela criação de institutos (LUZ,
1999, p. 79).
Nesse sentido, todas as categorias organizadas de trabalhadores urbanos passam a
gozar os benefícios previdenciários, marco relevante para o início do arcabouço institucional
do “Sistema Público de Previdência Social” (COTTA et al., 2013, p. 97).
No entanto, esse marco não foi capaz de oferecer respostas às desigualdades sociais
existentes e, mais especificamente, aos trabalhadores informais, que juntamente aos rurais,
permaneceram socialmente marginalizados e destituídos de proteção, uma vez que, o
benefício assegurado pelos IAP‟seram usufruídos apenaspor aqueles que efetivamente
contribuíram com o seguro (COTTA et al., 2013, p. 93). Nesse ponto, merece menção as
reflexões teóricas apresentadas por Sonia Fleury e Assis Ouveney ao tratarem da importância
de se identificar a modalidade de proteção social adotada pelo país para a compreensão das
implicações políticas resultantes do sistema implementado (FLEURY, 2008, p. 23-64).
274
Os autores advertem a necessidade de analisar uma política social de saúde tendo em
vista não o beneficio adquirido, mas o “status” atribuído a concessão desse benefício e a
consequente configuração do modelo de cidadania atribuído a esse contexto (FLEURY, 2008,
p. 9).
Sob esse prisma analítico, considerando os apontamentos históricos delineados até
então, é possível identificar na instituição dos IAPs um sistema de proteção pautado no
modelo de seguro-social, destinado a grupos ocupacionais unidos por uma relação contratual,
orientados sob uma lógica de proporcionalidade direta segundo a qual “[...] quanto maior a
contribuição, maior o benefício” (FLEURY, 2008, p. 23-64). Sob essa ótica de análise,
ressalta-se que o acesso à saúde corresponde a “[...] um benefício adquirido mediante
pagamento prévio” e não a um direito de cidadania assegurado universalmente (FLEURY,
2008, p 1; p. 12) (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, p. 279-322).
Esse modelo de sistema de proteção caracteriza-se, dentre outros elementos, por
restringir a incidência da política social ao mercado de trabalho formal e permite que os
destinatários dos benefícios sejam identificados segundo o “modelo de cidadania regulada”,
(ESCOREL, TEIXEIRA; 2012, p. 279-322) o qual alude “[...] à regulação exercida pela
inserção de cada beneficiário na estrutura produtiva” (FLEURY, 2008, p. 13). Trata-se, pois,
de uma concepção de cidadania necessariamente atrelada ao âmbito profissional devidamente
regulamentada e definida pela lei (FLEURY, 2008, p. 13). Nesse ponto, torna-se importante
destacar o caráter excludente e discriminatório do modelo descrito, uma vez que os benefícios
oferecidos por cada IAP dependia, em grande medida, da capacidade de contribuição e de
organização das respectivas categorias profissionais .
As categorias com maior poder econômico, como os industriais e os bancários,
tinham maior disponibilidade de verbas e, por isso, podiam oferecer a seus
contribuintes um leque maior de benefícios. No que diz respeito à saúde, um padrão
melhor de assistência médica e hospitalar era oferecido, diferenciado por categoria e
mantenedor da desigualdade social entre os trabalhadores (COTTA et al., 2013, p.
99).
Foi no governo de Getúlio Vargas que ocorreu uma tentativa de alteração institucional
quanto ao financiamento da previdência, uma vez que, estabeleceu-se o rompimento da
relação direta entre empresa e caixa, a fim de que a União, e mais especificamente o
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, passasse a repassar as cotas dos consumidores
para a Previdência (COTTA et al., 2013, p. 100). Entretanto, essa medida, na prática, não
logrou êxito, culminando em um endividamento entre a União e a Previdência (COTTA et al.,
275
p. 100). Foi também durante a Era Vargas que foram criados o Ministério da Educação e
Saúde Pública (MESP) (ESCOREL, TEIXEIRA, 2012, p. 301), responsável pela instituição
de ações preventivas de saúde pública, e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio
(MTIC), um importante mecanismo institucional para a proteção da saúde dos trabalhadores,
mediante a garantia de assistência médica individual previdenciária. Assim, (COTTA et. al.,
2013, p. 100)
[...] Quem não se inseria na medicina previdenciária contava com alguns serviços
ofertados pelo MESP em áreas estratégicas (saúde mental, tuberculose, hanseníase e
outros), além da caridade e do assistencialismo dos hospitais e de profissionais de
saúde. O MESP promovia também as ações de saúde pública, cuidando do controle
e prevenção das doenças transmissíveis ainda nos moldes do sanitarismo
campanhista.
No período em questão, as ações e serviços de saúde eram gozados pelos beneficiários
da previdência, ao passo que os não beneficiários eram residualmente contemplados por ações
e serviços de saúde pública preventiva, bem como pelas medidas de caridade que lhes fossem
dispensadas. A saúde pública, embora desempenhada pelo Estado, não constituía um dever
por parte do mesmo e nem um direito de cidadania a ser gozado e exercido pelos usuários.
É interessante observar que o período getulista deixou como marca a separação entre
saúde pública e a assistência médica previdenciária. A saúde pública era destinada
a controlar e erradicar doenças infectocontagiosas que atingiam a população
como um todo e estava direcionada a solucionar os problemas da coletividade.
[...] A lógica das práticas sanitárias deste período se caracterizou, portanto por ações
verticalizadas, centralizadas e emergenciais e que permaneceu por longos anos
influenciando sobremaneira o desenho e a formulação do Sistema Nacional de
Saúde Brasileiro (COTTA et al., 2013, p. 101-102, grifo nosso).
Trata-se, portanto, de um modelo pautado numa concepção de políticas públicas de
saúde centradas na prevenção de enfermidades, na cura de doenças infecciosas, na noção de
saúde como ausência de doença (COTTA el al., 2013, p. 18). Essa perspectiva, na prática,
mostra-se insuscetível de contemplar, de modo abrangente, as necessidades básicas da
população, tendo em vista os Determinantes Sociais em Saúde, bem como a melhoria da
qualidade de vida e das condições materiais de existência dos sujeitos. Cumpre apontar
algumas das características marcantes do modelo de saúde pública e das instituições de
previdência social no período Getulista, valendo destacar que, ainda hoje, encontram-se
resquícios dessas características na base das instituições responsáveis pela agenda, pela
formulação e pela implementação das políticas públicas brasileiras.
276
Dessa forma, na primeira metade deste século podemos observar: centralismo,
verticalismo e autoritarismo corporativo, do lado da saúde pública; clientelismo,
populismo e paternalismo, do lado de instituições de previdência social, incluindo as
de atenção médica. Estes traços, modelados durante cerca de cinqüenta anos, ainda
são característicos das instituições e políticas de saúde brasileiras e integram a
própria ordem política que se constituiu nesse período. É o próprio rosto de nossa
estrutura social que se desenha sobre essa dupla face, ao menos no que esse rosto
tem de mais atroz e recorrente em termos de poder (LUZ, 1999, p. 80, grifo do
autor).
Em 1937, sob governança ditatorial de Vargas, o MESP passou por uma reforma
organizacional, gerida por Gustavo Capanema, que culminou na nova denominação de
Ministério da Educação e Saúde (MES), bem como na ampliação do Departamento Nacional
de Saúde (DNS) visando assegurar maior interação entre os serviços locais e federais de saúde
pública (COTTA et al., 2013, p. 101).
Outra instituição criada no período Varguista foi o Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP) (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, p. 303), como decorrência de uma cooperação entre
os governos dos Estados Unidos e do Brasil, visando combater doenças nas áreas
economicamente produtivas para os Estados Unidos em razão da produção da borracha e do
café (COTTA et al., 2013, p. 101). Destaca-se que a criação do SESP e a finalidade para a
qual suas ações se dirigiam apenas salientam o investimento da saúde pública em ações de
medicina preventiva e curativa, tendo em vista a contenção emergencial de epidemias.
O governo que sucedeu o regime ditatorial Getulista (1937-1945) foi o de Eurico
Gaspar Dutra (1946-1951), o qual assumiu a presidência da República num contexto de
instabilidade política marcado pela ocorrência de movimentos grevistas de trabalhadores
buscando a melhoria de suas condições laborais (COTTA et al., 2013, p. 102).
No âmbito da saúde pública, vivenciou-se a intensificação do modelo pautado no
denominado “sanitarismo campanhista” (ESCOREL; TEIXEIRA, 2012, p. 305), marcado
pelo autoritarismo na gestão emergencial das práticas sanitárias (COTTA et al., 2013, p. 102).
A partir de 1950, vivenciou-se, no Brasil, um contexto de crise econômica e
instabilidade política decorrente das transformações sociais advindas da transição de uma
economia predominantemente agrária para uma economia alicerçada no crescimento
industrial (COTTA et al., 2013, p. 102-103). A década de 1950 foi marcada pelo
fortalecimento do sistema de proteção à saúde, sobretudo em razão da ampliação do número
de trabalhadores nos grandes centros urbanos, os quais usufruíam dos serviços de saúde por
meio de convênios firmados com as empresas para as quais prestavam serviços (COTTA et
al., 2013, p.103; p. 105). Nesse período, a lógica hospitalocêntrica ganha força
277
estimulando o surgimento de grandes hospitais que prestavam serviços de saúde
especializados com tecnologia de ponta. No entanto, é importante observar que
A tendência hospitalocênrica, baseada na ênfase em uma prática sanitária
especializada, individualizada, médica e medicamentosa, não se restringia apenas ao
Brasil, uma vez que o País seguia uma tendência mundial, fruto do conhecimento
obtido pela ciência médica do pós-guerra (COTTA et al., 2013, p. 103).
Esta é uma importante observação no contexto de apresentação dos principais
movimentos históricos que permitem compreender o modo como as políticas de saúde se
desenvolveram no Brasil. Isso porque, a despeito de ser fruto das influências exógenas da
medicina do pós-guerra, o investimento na prestação de serviços de saúde por grandes
hospitais, assim como a ampliação do sistema de proteção social vivenciada a partir da década
de 1950 não foi decorrência da adesão ao modelo político de Estado de Bem Estar Social, mas
sim foi decorrência de uma conjuntura política orientada pela ideologia desenvolvimentista.
Nesse sentido, afirma-se que
No Brasil, ao contrário da política da Europa ocidental, não se estabeleceu nesse
período (1951-1954), no segundo mandato de Getúlio Vargas, uma política de
Estado de Bem-Estar Social, e sim uma ideologia desenvolvimentista (MATTA,
2007), a qual considera que o nível de saúde de uma população depende
primariamente do grau de desenvolvimento econômico de um país, sem se
preocupar com o desenvolvimento social (COTTA et al., 2013, p. 103).
Nesse contexto desenvolvimentista, a saúde concebida enquanto política pública passa
a ser debatida tendo em vista a “[...] utilização de técnicas e metodologias adequadas,
importadas de outros países” (COTTA et al., 2013, p. 103-104).
Ainda nesse período, a previdência social, até então orientada pelo “modelo de seguro
social”, passa a orientar-se pelo modelo de seguridade social (COTTA et al., 2013, p. 104).
Essa alteração assume significativa importância na medida em que se esclarece que a proteção
social assumida no modelo de seguridade pauta-se no compromisso de assegurar subsistência
digna a todos os cidadãos, modificando substancialmente a concepção de justiça que orientará
as políticas de saúde. Nesse sentido, afirma-se, conforme esclarece Fleury e Ouverney, que a
proteção social assumida pela modalidade de seguridade social designa “[...] um conjunto de
políticas públicas que inspiradas em um princípio de justiça social, garantem a todos os
cidadãos o direito a um mínimo vital, socialmente estabelecido. [...] Nesse modelo, podemos
falar de uma cidadania universal, já que os benefícios são assegurados como direitos sociais,
278
de forma universalizada a todos aqueles que necessitem deles” (FLEURY; OUVERNEY,
2013, p. 104).
Apesar da alteração formal do modelo de proteção social adotado no país ter se
constituído nesse período desenvolvimentista, é possível afirmar que sua consolidação ocorre
apenas com a república democrática instituída com a Constituição Federal de 1988, a qual
viabilizou mecanismos para a concretização do modelo assumido. Isso porque, conforme
mencionado, no contexto da ideologia desenvolvimentista vigente, a saúde da população era
aferida com base no desenvolvimento econômico alcançado pelo país e não pelo
desenvolvimento social.
No ano de 1953, o Ministério da Saúde, até então atrelado ao Ministério da Educação
(MESP), passa a ser gerido independentemente, (COTTA et al., 2013, p. 104) marco político
representativo para o desenvolvimento das políticas de saúde no Brasil em razão da ênfase
setorial proporcionada pela separação dos ministérios. Importante observar que [...] as
políticas de saúde tornaram-se importantes ferramentas de Estado, uma vez que os recursos
mobilizados para os postos de trabalho, indústrias de equipamentos e medicamentos, hospitais
e ambulatórios foram significativamente elevados (MATTA, 2007).(COTTA et al., 2013, p.
104).
No entanto, salienta-se que a ideologia desenvolvimentista que caracterizou o período
e que foi responsável pelo crescimento econômico do país, pela modernização dos grandes
centros urbanos, pela introdução das políticas de saúde como “ferramentas do Estado”, não
significou um comprometimento com a melhoria da qualidade de vida da população,
sobretudo devido à falta de investimentos em ações direcionadas à prevenção e à promoção de
saúde (COTTA et al., 2013, p. 104). Nesse período, não há que se falar, portanto, em política
de saúde enquanto política social comprometida com a melhoria das condições materiais de
existência dos cidadãos. Não houve uma política assumidamente de Estado que pautassem os
investimentos e o desenvolvimento do setor.
4 O MOVIMENTO HISTÓRICO DA SAÚDE DO GOLPE DE 1964 À REFORMA
SANITÁRIA: AUTORITARISMO, CRESCIMENTO ECONÔMICO E
PRIVATIZAÇÃO
Em 1964, em razão do golpe militar, o desenvolvimento das políticas de saúde do
Estado Brasileiro orientou-se pela permanência da assistência sanitária fundada na tendência
279
hospitalocêntrica e pela ampliação da gestão privada dos recursos públicos (COTTA et al.,
2013, p. 106).
Nesse período, os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), criados no governo
de Getúlio Vargas, foram unificados no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), fato
que culminou num maior centralismo do poder no Estado e, consequentemente, no
distanciamento dos trabalhadores do processo de tomada de decisão (COTTA et al., 2013, p.
106-107). Além disso, a unificação dos Institutos foi prejudicial àqueles contribuintes que
gozavam de mais benefícios na assistência à saúde, uma vez que estes também foram
uniformizados e, em razão da demanda crescente de beneficiários, a qualidade da prestação
dos serviços assegurados foi comprometida (COTTA et al., 2013, p. 106-107).
O Sistema Nacional de Saúde vivenciou uma crise em razão da ineficiência do
Sistema Previdenciário em assegurar melhor qualidade na assistência à saúde dos segurados,
bem como em razão da retração financeira do Estado no que tange à prestação dos serviços de
saúde. Nesse contexto, “[...] a „privatização‟ da assistência médica previdenciária torna-se
uma opção política dos governos dos regimes militares pós-64, uma vez que era necessário
atender aos interesses de setores empresariais, importantes parceiros das elites dominantes”
(COTTA et al., 2013, p. 107). Esse período também foi marcado pela falta de investimento
em serviços de saúde pública preventiva e em promoção da saúde. Nesse sentido, as ações e
serviços de saúde, prestados por hospitais privados orientados pela especialização, visavam à
atenção individual e curativa, ao invés da coletiva e preventiva (COTTA et al., 2013, p. 108).
Aprofundando-se na historicidade das políticas de saúde no Brasil, no período de 1964
a 1990, Sarah Escorel realiza uma subdivisão temporal em quatro momentos: a) a primeira
década do regime militar; b) o momento de retração do autoritarismo e de emergência do
movimento da reforma sanitária; c) o ingresso de militantes da reforma sanitária no último
governo militar no contexto de crise da previdência; c) a 8ª Conferência Nacional, o processo
Constituinte, a saúde concebida como um direito e assumida como política de Estado,
alicerçada no Sistema Único de Saúde (ESCOREL, 2012, p. 323). Vivenciou-se, no período
militar, um crescimento econômico traduzido na modernização do aparato estatal e no
favorecimento da acumulação capitalista. Nessa ambiência,
Nesse período, foram criados o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), em
1966, o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em 1977, o PIS (Programa de
Integração Social) e o PASEP (Programa de Formação de Patrimônio do Servidor Público),
ambos em 1970 (ESCOREL, 2012, p. 326).
280
No contexto da previdência social, a partir de 1964, o modelo adotado pelo IAPI
favoreceu o setor privado de serviços de saúde, sob o fundamento de incapacidade de
fornecimento de assistência médica pela rede de serviços do INPS. De acordo com Escorel
(2012, p. 327), “No caso da previdência, o INPS passou a ser o grande comprador de serviços
privados de saúde e, dessa forma, estimulou um padrão de organização da prática médica
orientado pelo lucro”.
A despeito do crescimento do PIB, vivenciado no período do “milagre econômico”, é
importante observar que o quadro da saúde pública era instável e anunciador de uma crise,
decorrente, dentre outros motivos, da insuficiência de recursos destinados ao ministério da
saúde (ESCOREL, 2012, p. 329).
No que tange às tendências privatizantes nas políticas de saúde que marcaram o
período, estas podem ser ilustradas, exemplificativamente, pelo Plano Nacional de Saúde
(PNS), cuja pretensão consistia na venda de hospitais governamentais para a iniciativa
privada, competindo ao Estado e aos pacientes a função de financiamento dos serviços
disponibilizados. Trata-se, pois, de proposta suscitada pelo Ministério da saúde (ESCOREL,
2012, p. 329). Se por um lado, o regime militar pode ser apontado como o período da reforma
estatal que representou o marco para a privatização da saúde, por outro lado, foi também sob a
égide do autoritarismo, mais precisamente no final da década de 60 e no início da década de
70, que as bases do movimento da Reforma Sanitária foram sedimentadas.
Esse movimento, fundado na medicina social, constituiu-se preliminarmente no
âmbito acadêmico, especificamente nos departamentos de Medicina Preventiva (DMP) das
faculdades de Medicina. Desse lócus emergiu, do ponto de vista teórico, como ideário
“histórico-estrutural dos problemas de saúde” (ESCOREL, 2012, p. 330), o que
posteriormente se consolidou, do ponto de vista simbólico, como movimento político,
eminentemente, social. O projeto da Reforma Sanitária é a representação simbólica e prática
de movimento social reivindicativo que no contexto da luta por democratização, no âmbito da
saúde, foi responsável pela confrontação ao paradigma biomédico vigente nas políticas
públicas de saúde (PAIM, 1997, p. 11).
Estimulados pela OPAS, bem como pela disseminação de programas de medicina
comunitária, que geralmente eram vinculados aos DMPs, o modelo de saúde preventiva foi
confrontado, suscitando a organização de segmentos engajados, no interior da universidade,
voltados a estruturação de referenciais teóricos, no âmbito da saúde, responsáveis por
viabilizar a percepção de “[...] padrões diferenciados de formação de recursos humanos”
(ESCOREL, 2012, p. 332). Conforme esclarece Escorel, a partir da elucidação de Paim,
281
As três correntes de pensamento [...] podem ser divididas a partir da conceituação do
„social‟ em saúde: para o preventivismo, trata-se de um conjunto de atributos
pessoais, como educação, renda, salário, ocupação etc.; para o modelo
racionalizador, um coletivo de indivíduos; para a abordagem médico-social, um
campo estruturado de práticas sociais.
Dito isto, convém observar que tais categorias analíticas são fundamentalmente
importantes por suscitarem reflexões acerca das distintas concepções de saúde que
alicerçaram o desenvolvimento das políticas públicas do setor ao longo dos movimentos
históricos apresentados. A saúde, a partir da “abordagem médico-social” é concebida tendo
em vista “[...] a prática política e a consciência sanitária como parte da consciência social,
visando à transformação social” (ESCOREL, 2012, p. 333).
Ainda no contexto de repressão militar, na gestão do general Geisel, ressalta-se que a
fase desenvolvimentista exitosa passou a ser tensionada por pressões sociais insatisfeitas com
os problemas resultantes de crises econômicas tanto no âmbito nacional, quanto no
internacional. (aumento da inflação, crescimento da dívida externa, o aumento do preços, o
arrocho salarial, a especulação financeira, a retração da atividade produtiva) (ESCOREL,
2012, p. 335-336).
A segunda metade da década de 1970, período em que o capitalismo internacional
atravessou uma crise e que a desigualdade social e a concentração de renda foram as
consequências dessa crise vivenciada pelo modelo econômico desenvolvimentista vigente
desde a primeira gestão militar, foi marcada pela emergência de movimentos, tanto da
sociedade quanto das classes dominantes, que se insurgiram contra a insuficiência do modelo
de saúde previdenciário vigente visando à descentralização (COTTA et al., 2013.p.110).
O movimento político contrahegemônico da Reforma Sanitária, (FLEURY, 1997, p.
11) ocorrido, no Brasil, na segunda metade da década de setenta, foi responsável por conceber
a saúde criticamente rompendo com as matrizes teóricas que a sustentavam num conceito
estritamente individualista e biológico e, assim, contribuindo significaticamente para que a
transição epistemológica da saúde se concretizasse por meio da emergência do Constituição
de 1988 (PAIM, 1997).
A Reforma Sanitária brasileira nasceu na luta contra a ditadura, com o tema Saúde e
Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em
experiências regionais de organização de serviços. Esse movimento social
consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, pela primeira
vez, mais de cinco mil representantes de todos os seguimentos da sociedade civil
discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na
282
Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e
um dever do Estado. (AROUCA. 1998).
Sobre a emergência do movimento e a consolidação de suas matrizes, convém destacar
que transformação na orientação governamental, no âmbito da saúde, deu-se paralelamente a
assunção de cargos de gestão por militantes da reforma sanitária, tais como Sérgio Arouca,
que assumiu a presidência da Fundação Oswaldo Cruz, e Hésio Cordeiro, que presidiu o
Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) (ESCOREL, 2012,
p. 356).
A 8ª Conferência Nacional de Saúde foi incitada numa ambiência de resistência e
irresignação ante os problemas atinentes ao setor saúde, tendo resultado enérgicos embates
responsáveis por promoverem uma alteração institucional significativa, consolidando os
pressupostos norteadores na Política Nacional de Saúde (FANTON, 2014). Essa conferência
viabilizou a constituição da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), a qual
elaborou a proposta do capítulo da saúde na constituição de 1988 (ESCOREL, 2012, p. 357-
358). Nessa conjuntura, a Constituição de 1988 representou o marco paradigmático no âmbito
da ampliação da concepção de saúde, na medida em que instituiu o Sistema Único de Saúde e
definiu a saúde, em seu art. 196 e seguintes, como um direito universal e igualitário,
abrangendo em seu âmbito de efetivação a promoção, a proteção e a recuperação (COTTA et
al., 2013, p. 28).
A essa ordem constitucional democrática associa-se o paradigma da produção social
da saúde, modelo centrado no ser humano que se pautava na concretização de ações políticas
suficientemente aptas a oferecer respostas aos compromissos sociais assumidos que restaram
frustrados, no final da década de oitenta, com a Crise do chamado Estado de Bem Estar Social
(COTTA et al., 2013, p. 78-79). Nesse contexto, a produção social da saúde implica em
considerá-la, para além da cura de doenças, enquanto “[...] ações políticas para a redução de
desigualdades, educação, cooperação intersetorial, participação da sociedade civil nas
decisões que afetam a sua existência [...]” (SANTOS; WESTPHAL, 1999, p. 76).
No entanto, a despeito da força propulsora, incitada pelo movimento da Reforma
Sanitária, e de todos os significativos e inegáveis avanços decorrentes as lutas assumidas, as
lacunas deixadas pelo texto constitucional no que tange ao marco regulatório da relação
público/privado no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), remontam a questionamentos
atinentes ao esvaziamento substancial dos compromissos constitucionalmente assumidos com
a saúde.
283
De maneira mais geral, o vazio institucional e a ausência de um marco regulatório
referente às relações entre o público e o privado no Sistema Único de Saúde garante
a ausência de controle público sobre o setor privado. Este não só segue existindo
como é dependente dos recursos públicos, por mecanismos como o acesso a
financiamentos de Fundos Públicos; permanentes renúncias fiscais; venda de planos
de saúde ao funcionalismo; isenções tributárias; dupla porta de entrada em hospitais
públicos (que permite atendimento diferenciado nos hospitais públicos a clientes de
planos de saúde); renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas nas declarações de
imposto; e o não ressarcimento do Estado pelo atendimento dos clientes da iniciativa
privada na rede pública (FANTON, 2014).
Tais constatações, perceptíveis pelos desdobramentos contemporâneos da orientação
das políticas públicas de saúde no Brasil, impõem novas alternativas de resistência e por que
não dizer uma ressig nificação do ativismo e da militância ante a conjuntura posta.
Dentre os anúncios de retrocessos identificados no momento histórico pós-
Constituição de 1988, ressalta-se que a “[...] criação de fundos de estabilização fiscal permitiu
a desvinculação de receitas da União que constitucionalmente deveriam ser voltadas para
políticas sociais”. (FANTON, 2014). Além disso, nos anos de 1995-2002, o Plano Diretor de
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) alicerçou a transferência de recursos públicos por
meio de Organizações Sociais da Saúde (OSS) (FANTON, 2014). Esse é ponto a partir do
qual promover-se-á um breve aprofundamento no contexto da relação público/privado,
convidando o leitor a problematizar as consequências da festão privada de recursos públicos
para a orientação das políticas públicas de saúde no país.
5 A SAÚDE NO CONTEXTO DA RELAÇÃO PÚBLICO-PRIVADO:
CONSEQUÊNCIAS DA GESTÃO PRIVADA DE RECURSOS PÚBLICOS PARA A
ORIENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL
O interesse em aprofundar os estudos acerca de políticas públicas de saúde decorre,
em primeiro lugar, da importância de se (re)pensar os desafios inerentes a contextualização
das políticas públicas de saúde no contexto da democracia brasileira não consolidada.
Nesse contexto, a compreensão do processo histórico de construção da acepção de
saúde, e de sua ampliação, no Brasil assume sua relevância por estar diretamente atrelada ao
modo como as práticas sanitárias e as políticas públicas, visando à promoção da saúde, irão se
desenvolver. Daí porque compreender a concepção de saúde que tem alicerçado o
desenvolvimento dos segmentos produtivos do setor saúde pressupõe sua contextualização na
conjuntura de transformações resultantes da hegemonia do sistema capitalista.
284
Trata-se de assunto bastante debatido doutrinariamente, o que, neste ponto de vista,
representa um aspecto positivo, pois estimula o debate e a consequente reformulação de
estratégias para que (re)pensemos, no âmbito das políticas públicas de saúde, alternativas e
possibilidades de resistência ante a força dinâmica dos fluxos do capital.
As desigualdades e exclusões que (des)caracterizam a sociedade brasileira, cada vez
mais, tem se agravado pelas novas estratificações sociais produzidas pela reestruturação
produtiva, bem como pelos efeitos do progressivo desmantelamento dos serviços públicos,
culminando no afastamento do Estado da responsabilidade social que lhe foi,
constitucionalmente, atribuída (TELLES, 1999, p. 35).
Diante desse quadro, a lógica empresarial capitalista não deve ser vislumbrada tão
somente enquanto circunstância caracterizadora de um cenário de intensificação de crises,
mas, além disso, deve ser compreendida como um componente fundamental que passou a
integrar o sistema de saúde, materializando redes de interações com o mesmo que tem sido
capazes de interferir significativamente em diversos segmentos produtivos (GADELHA,
2003, p. 522).
Trata-se, pois, de uma perspectiva analítica que demonstra o quão indissociável do
setor saúde é o “processo de penetração do capital e empresariamento”, daí porque Carlos
Augusto Grabois Gadelha ao delimitar o que nominou “complexo industrial da saúde”
assegura que o setor saúde, visceralmente atrelado à lógica empresarial capitalista, deve ser
percebido enquanto “[...] conjunto interligado de produção de bens e serviços em saúde que se
movem no contexto da dinâmica capitalista” (GADELHA, 2003, p 523).
A partir da apresentação do contexto de inter-relações entre organizações e instituições
privadas e os órgãos e as políticas públicas, buscar-se-sá compreender o processo de
construção da concepção de saúde que tem sustentado as práticas sanitárias e, até mesmo, as
políticas públicas que visam à promoção da saúde, repercutindo no modo como estas tem se
desenvolvido.
Destaca-se, neste estudo, que, no âmbito da relação público-privado, a gestão de
recursos públicos realizada por Organizações Sociais de Saúde (OSs) apresenta-se como
decorrência de movimentos fundamentalmente atrelados à onda de reformas do Estado que
tem interferido na natureza eminentemente pública de serviços e de atividades, na medida em
que tem propiciado a sedimentação de “[...] um conjunto de inovações organizacionais” tal
qual a criação de organismos públicos não estatais (GADELHA, 2003, p. 522).
O debate acerca da orientação das políticas públicas de saúde no Brasil tem se seguido
dessa constatação de interação mercadológica marcada por “[...] relações de contratualização
285
e de constituição de quaismercados, além de um conjunto de inovações organizacionais [...]”
que “[...] passam a pressionar os agentes para seguirem lógicas de obtenção de
competitividade e de eficiência econômica em suas atividades” (GADELHA, 2003, p. 522).
Nesse contexto, pretende-se confrontar a concepção de saúde constitucionalmente
adotada com a concepção de saúde que tem alicerçado, a partir de uma lógica tipicamente
empresarial, o desenvolvimento dos segmentos produtivos do setor. O que está em discussão,
portanto, é a natureza jurídica da concepção de saúde: ou seja, se seria a saúde um “bem
público”, um “bem de consumo” ou um “direito universal”?
Tensionar conceitos de mercado/comércio no âmbito do setor saúde é um exercício
que ultrapassa a ideia de “mercadorização”, isto é, a constatação de que há mercado na saúde.
Para além disso, esse tensionamento tem em vista uma perspectiva analítica pautada nos
fluxos de capital e na influência destes no conjunto de atividades, serviços e interações
relacionadas à saúde.
Nesse sentido, importante observar que nos estudos de Gadelha (2003) acerca do
Complexo Econômico Industrial da Saúde essa interação saúde-mercado é vislumbrada
positivamente uma vez que, segundo o autor, o sistema de saúde está inserido nesse “sistema
econômico produtivo interdependente” que opera na economia brasileira, correspondendo a
10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país (GADELHA, 2013). Portanto, o sistema de
saúde já não existe sem a indústria, embora haja autores que discordem dessa assertiva por
encararem a interação saúde-mercado de um modo não virtuoso. Nas palavras de Gadelha “O
CEIS é um projeto nacional de soberania e para dotar o Brasil de condições tecnológicas para
tornar o SUS protegido do mercado mundial” (GADELHA, 2013).
A dinâmica do capitalismo é pautada na lógica lucrativa do maior retorno e a reforma
gerencial do Estado, compreendida como corolário deste dinamismo, fomentou a criação de
organismos não estatais que passaram a desempenhar gestão de serviços, de recursos, de
atividades eminentemente públicas, a exemplo das Organizações Sociais de Saúde (OSs) que,
inclusive, circunscrevem-se no corte metodológico realizado por esta pesquisa.
As Organizações Sociais de Saúde (OSs) se transformaram numa alternativa para a
administração pública que tem desmantelado o público e, consequentemente, precarizado o
Sistema Único de Saúde (SUS) que, por sua vez, na correlação de forças que a lógica
empresarial capitalista impõe, tem sofrido com as deslegitimações discursivas, por parte de
seus usuários e servidores, bem como com as práticas depreciativas incestuosas que passaram
a o envolver, a exemplo da flexibilização das relações de trabalho decorrente das
286
privatizações setoriais frequentemente incorporadas pelo setor e legalmente amparadas com a
aprovação do projeto de lei n.º 4330/2004.
Uma importante distinção que merece destaque é a diferenciação das “políticas de
desenvolvimento produtivo” das “parcerias público privadas”, uma vez que aquelas, previstas
no CEIS, consistem na transferência da gestão, do serviço, da atividade ao privado sem que,
no entanto, haja transferência do domínio da tecnologia. Nas palavras do autor, nessas
“políticas de desenvolvimento produtivo” o “[...] desenvolvimento tecnológico é
compartilhado entre as instituições públicas, os parques tecnológicos, as universidades e o
setor privado. Isso é desenvolvimento em conjunto e não apenas uma comercialização da
produção” (GADELHA, 2013).
Nota-se que a construção de uma base empírica suficientemente capaz de promover
análises das consequências dessa gestão, realizada por organismos não-estatais, para a
compreensão da concepção de saúde que tem norteado o desenvolvimento das políticas
públicas não implica necessariamente numa crítica maniqueísta direcionada à associação
saúde-mercado tão somente em razão da afirmação de um posicionamento ideológico
assentado na afirmação do público em detrimento do privado.
Trata-se, para além disso, do desafio de contextualizar a saúde no enquadramento do
mercado a fim de confrontar, dialeticamente, suas bases de sustentação a partir da
identificação das principais ações/relações/interações que se ocultam nas estruturas das
organizações sociais de saúde (Oss), tendo em vista a dinâmica do complexo econômico
industrial da saúde (Ceis). Com isso, questiona-se se o sistema de saúde, de fato, é uma
indústria e se, no Brasil, a relação dos elementos duros do capitalismo podem ser domados.
Daí a necessidade de se produzir conhecimento para, assim, contribuir para a elaboração de
estratégias políticas com esse fim.
O tratamento dispensado às questões-problema incitadas por este breve estudo tem em
seu pano de fundo o despertar das possibilidades de resistência frente a selvageria do capital
que perversamente tem alicerçado as práticas no âmbito da saúde, fragilizando, cada vez mais,
a consolidação da concepção de saúde que sustentou o contexto sociopolítico instituído com a
Constituição Federal de 1988.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os desdobramentos decorrentes da percepção do pano de fundo sociopolítico que
respalda o imaginário social coletivo, no que tange ao direito à saúde, são produtos de uma
287
realidade mercadológica fomentadora de discursos que, não raras vezes, deslegitimam a
função precípua do Estado em viabilizar e efetivar a saúde enquanto dever de implemento de
política social. Daí porque compreender a concepção que tem alicerçado o desenvolvimento
dos segmentos produtivos do setor saúde pressupõe sua contextualização na conjuntura de
transformações resultantes da hegemonia do sistema capitalista.
Esta pesquisa se propôs a adentrar o contexto das transformações resultantes da
hegemonia do sistema capitalista para questionar, no âmbito da relação público-privado, as
consequências da gestão privada de recursos para a concepção de saúde que tem orientado as
políticas públicas de saúde no Brasil. A concepção de saúde constitucionalmente adotada
parece não se coadunar com a concepção de saúde que tem alicerçado o desenvolvimento dos
segmentos produtivos do setor, daí a necessidade de se promover análises de conjuntura que
permitam compreender, a partir da macro política, os rumos a que se dirigem as políticas de
saúde no país.
Nesse sentido, salutar é o compromisso político e ideológico propiciada por uma
ambiência acadêmica comprometida com a realização de relevantes intervenções sociais. Esse
é o alicerce indispensável para o estímulo à resistência ativa, interventora e, por que não dizer,
cidadã ante aos retrocessos vivenciados contemporaneamente.
REFERÊNCIAS
AROUCA, Sérgio. Saúde na constituinte: a defesa da emenda popular. Saúde em debate, n.
20, p. 36-46, abr., 1988.
BAPTISTA, Tatiana Wargas de Faria. História das políticas de saúde no Brasil: a trajetória
do direito à saúde. Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:LTjGz8v_I-gJ:https://ufrr.br/proci
sa/index.php%3Foption%3Dcom_phocadownload%26view%3Dcategory%26download%3D1
87:historia-politicas-saude-tatiana baptista%26id%3D29:textos%26Itemid%3D275+&cd=1
&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 11 dez. 2015.
ESCOREL, Sarah; TEIXEIRA, Luiz Antonio. História das política de saúde no Brasil de
1822 a 1963: do império ao desenvolvimentismo populista. In: GIOVANELLA, Ligia et al.
(Orgs.). Políticas e sistemas de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p.
279-322.
288
ESCOREL, Sarah. História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar à
reforma sanitária. In: GIOVANELLA, Ligia et al. (Orgs.). Políticas e sistemas de saúde no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012. p. 323-363.
FANTON, Hugo. Hugo Fanton: a saúde e a luta por uma Constituinte exclusiva. Cebes:
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, set., 2014. Disponível em:
http://cebes.org.br/2014/09/a-saude-e-a-centralidade-da-luta-por-uma-constituinte-exclusiva/.
Acesso em: 26 jan. 2016.
FLEURY, Sonia; OUVERNEY, Assis Mafort. Política de saúde: uma política social. In:
GIOVANELLA, Lígia et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro:
Ed. Fiocruz, 2008. 13.
GADELHA, Carlos Augusto Grabois. Desenvolvimento e saúde: em busca de uma nova
utopia. Saúde Debate,v. 29, p. 327-38. 2007.
GADELHA, Carlos Augusto Grabois. O complexo industrial da saúde e a necessidade de um
enfoque dinâmico na economia da saúde. Ciência Saúde Coletiva, v. 8, p. 521-35. 2003.
COTTA, Rosângela Minardi Mitre et al. Políticas de saúde: desenhos, modelos e
paradigmas. Viçosa-MG: Editora Ufv, 2013.p. 89.
GADELHA, Carlos Augusto Grabois. O investimento no complexo Industrial da saúde e a
melhoria das desigualdades em saúde. 2013. Disponível em:
http://dssbr.org/site/entrevistas/o-investimento-no-complexo-industrial-da-saude-e-a-
melhoria-das-desigualdades-em-saude/. Acesso em: 06 out. 2015.
LUZ, Madel Therezinha. Notas sobre as políticas de saúde no Brasil de “Transição
democrática”: anos 80. Physis: revista de Saúde Coletiva, v. 1, n. 1, 1991. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/physis/v1n1/04.pdf. Acesso em: 11 dez. 2015.
PAIM, Jairnilson. Bases conceituais da Reforma Sanitária Brasileira. In: FLEURY, Sonia.
Saúde e democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997.
SANTOS, Jair Lício Ferreira; WESTPHAL, Marcia Faria. Práticas emergentes de um novo
paradigma de saúde:o papel da universidade. Estudos avançados, v.13, n. 35, pp. 71-88,
1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40141999000100007. Acesso em: 11 dez. 2015.
TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Revista USP, São Paulo, n.
37, p. 34-45, mar./maio, 1998. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/37/04-vera.pdf.
Acesso em: 05 out. 2015
289