ysabel, a catÓlica: mulher, rainha, mãe, guerreira senhora de … · 2008-06-27 · reforçada:...
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YSABEL, a CATÓLICA: Mulher, Rainha, Mãe, Guerreira...
Senhora de dois Mundos
Sônia Maria Ribeiro Simon Cavalcanti
RESUMO: O objetivo deste artigo é revisitar o período em que viveu Ysabel, a
Católica enfatizando sua postura como Rainha e focalizando alguns momentos mais
significativos do reinado que compartilhou com Fernando de Aragão, unificando a
Espanha e alargando os horizontes do mundo antigo com a descoberta da América.
Palavras-chave: Ysabel a Católica, Espanha, América.
ABSTRACT: The goal of this article is to re-visit the period during the which Isabel,
la Catolica lived, giving emphasis her posture as a queen and focusing on some of
the most important moments of the kingdom she shared with Fernando de Aragon,
unifying Spain and enlarging the horizons of the ancient world with the discovery of
America.
Key words: Ysabel, la Católica, Spain, América.
1. UM POUCO SOBRE YSABEL
“O que me comove é o parto de uma sociedade e de uma
civilização – segundo uma lógica contrariada e mesmo feita
de acasos. Não há nada menos 'factual' do que os fatos”.
J. Le Goff.
Na construção da memória, na diferenciação entre memória e história situa-se um
ponto crucial. No tecer da memória o tempo aparece como elemento fundamental, o
tempo histórico que trabalha as ações do indivíduo inserindo-o em um contexto
específico, em um momento histórico que é peculiar a cada indivíduo que dele
2
participa e que dele se lembra na interação da sua, com as várias memórias que
partilharam o momento.
O indivíduo que organiza esse tempo de lembrar organiza-o segundo seu
instrumental pessoal de codificar o que lhe é interessante em contraponto com
aquilo que o desmerece, construindo um lugar de memória quase que sacralizado
por suas lembranças, lugar esse que se opõe a uma espécie de “porão escondido”
onde as outras lembranças - aquelas que não interessa guardar - são amontoadas
nos desvãos escuros e empoeirados do esquecimento proposital.
“O tempo em que se dizem os mitos e o tempo em que se cultuam os
mortos também se caracterizam por ser uma composição de
recorrências e analogias. A sua nota principal é a irreversibilidade.
Reversibilidade que é estrutura, pois abraça retornos internos” 1.
Ainda:
“O tempo reversível é, portanto, uma construção da percepção e da
memória: supõe o tempo como seqüência, mas o suprime enquanto o
sujeito vive a simultaneidade. O mito e a música que trabalham a fundo
a irreversibilidade são ‘máquinas de abolir o tempo’, na feliz expressão
de Lévi-Strauss... A memória vive do tempo que passou e,
dialeticamente, o supera” 2.
Eu me lembro do que não vi porque me contaram. Ao lembrar re-atualizo o
passado, vejo, ‘historío’ o que outros viram e me testemunharam.
É esse “lembrar”, “re-apresentar” um momento do passado vivido e construído pela
Rainha Ysabel I de Castela durante seu reinado, que pretendo compartilhar neste
artigo.
No dizer de um dos maiores especialistas em Ysabel “solo cuando haya sido
borrado com discreción el halo legendário, entonces podrá la gran reina ostentar
outro halo más preciado” 3, deixando entender que a “santificação” da rainha
impede que se revele seu perfil de estadista, de governante poderosa.
1.1 A CASTELA DE YSABEL
3
A História de Castela desde o início da Idade Moderna até a morte de Felipe II é
marcada por quatro momentos significativos:
1. Fundação de um novo Estado (1474/1504 – morte de Ysabel);
2. Crise política e econômica que se inicia com a morte de Ysabel até a posse
de Carlos V e sua consolidação com a derrota de Villalar (1504/1523);
3. Castela atrelada á política imperial – no restante do governo de Carlos V,
entre as Cortes de 1523 e sua abdicação em 1555;
4. Durante o reinado de Felipe II e que durou 47 anos (Felipe II iniciou seu
governo de Castela, de fato, em 1551 – portanto, quatro anos antes da
abdicação de CarlosV).
Na fase 1 – Consolidação do Estado - o novo governo dos Reis Católicos contou
com alguns apoios inovadores, principalmente com o da Universidade.
Os principais “Estudos Gerais” da nova Espanha estavam centralizados em
Salamanca e em Valladolid. A estas duas Universidades o Cardeal Cisneros
acrescentou uma outra, do mesmo nível: Alcalá de Henares.
As Universidades agregavam ao governo um ganho cultural, contudo, à época, sua
influência limitava-se às áreas da política (ideologia) formando juristas e teólogos,
homens de cultura que iriam integrar os quadros administrativos do novo Estado.
Das Universidades saiam também moralistas e inquisidores que garantiriam a
conservação da fé e da religião, sempre a serviço da monarquia absolutista vigente.
A concentração de poder conquistada através da aliança entre Castela (Ysabel) e
Aragão (Fernando), superando os problemas da insegurança interna dos dois
reinos, facilitou a operação militar que seria a grande marca do reinado dos Reis
Católicos: o término da Reconquista com a vitória final sobre Granada onde Boabdil,
o “rei Chico” governava como último representante da dinastia dos nazaries.
Contudo, há que se estabelecer uma ligação estreita entre a Reconquista (queda de
Granada) a aversão a mouros e judeus e a Inquisição.
A alteridade explicitada maniqueísticamente entre fiéis (cristãos) e infiéis
4
(muçulmanos e judeus) – ambos ocupando um espaço físico culturalmente
constituído e identificado como reduto de infiéis - levou a Guerra da Reconquista a
se transformar em uma “guerra Santa”.
A conquista de Granada significou a um só tempo a realização de um ideal do
medievo – a Reconquista – e a concretização de um propósito típico da Idade
Moderna: a unidade territorial.
A aceleração do processo da Reconquista provocou o esvaziamento da função
militar – até então desempenhada especialmente pela nobreza – ao tempo que
acelerou a criação do exército moderno permanente.
Outro ponto a ser destacado é que, envolvidos nas Guerras da reconquista – por
motivos tanto religiosos como pecuniários, e ainda por ser a guerra o esporte dos
nobres – a nobreza não tinha tempo, neste período, de conspirar contra os reis
dando a eles o tempo necessário para a consolidação de seus projetos e fazendo
cair no esquecimento as dúvidas quanto à legitimidade da ocupação do trono
castelhano por Ysabel 4.
Naquele período de guerras a autoridade da instituição monárquica também foi
reforçada: no reinado de Enrique IV os nobres tratavam o Rei (quase refém de seus
desmandos, dívidas e comportamentos pouco apropriados) como igual.
Ao final do reinado de Ysabel e Fernando, nobreza e clero, ou cooptados ou
seduzidos pela nova forma de governar obedecem humildemente as regras e as
imposições reais.
O poder real e seus efeitos atingiram também as cidades, centralizando suas
administrações e padronizando ações de mando e de justiça, sempre sob as ordens
reais e absolutas de Ysabel e Fernando.
No reinado, que Ysabel compartilha - em termos 5 - com Fernando inicia-se a
formação de uma consciência de pertencimento a um Estado6 que começa a
desenhar-se como nação, com um exército que nascerá das Hermandades 7 com
uma burocracia formada pela nova Universidade, com uma língua regrada pelos
estudos de Nebrija, com um território definido que se alarga além das fronteiras
européias e lança no Novo Mundo a semente deste castelhanismo de Ysabel.
5
É o redesenhar de um mundo que se abre além das fronteiras demarcadas pela
Igreja e pelo saber por ela controlado, que rompe os grilhões com o antigo para se
lançar na descoberta do novo, na semente da globalização que interliga os homens
do Velho com os do Novo Mundo fazendo com que a língua castelhana, o Deus dos
castelhanos, seus valores e suas crenças universalizem-se, na ambiciosa
empreitada de conquistar espaços e almas.
“Por outro lado, nesta época Castela e Portugal eram Estados que
estavam se fortalecendo, enquanto que a França, a Borgonha e o
Império se dilaceravam”8.
O senhor da guerra - representado por Fernando - cede seu lugar à senhora da
conquista, uma Ysabel disposta a abraçar as visões do homem que media o mundo
por sua cobiça, que alargaria as fronteiras do conhecido pela vontade
inquebrantável de tornar-se um “Don”, de intitular-se “Almirante dos Mares”:
Cristóvão Colombo.
Se Fernando adequou-se aos paradigmas medievais, de príncipe sempre disposto
às batalhas, Ysabel ultrapassa a barreira e os grilhões do seu século e torna-se
rainha em três continentes: Europa, África e América - ainda que disso não
demonstre consciência nem valore o fato nos documentos em que enumera seus
títulos.
Enquanto Fernando trava suas batalhas, quase sempre em benefício de Castela,
Ysabel estabelece fortes laços com Inglaterra - através do casamento de sua filha
mais nova, Catalina, primeiro com Artur, e depois, ao se tornar viúva, com Henrique
VIII; com Portugal, através de Isabel, a primogênita, que morre ao dar à luz o
sonhado herdeiro que uniria definitivamente os reinos ibéricos, Don Miguel de la
Paz; com Portugal, mais uma vez, ao casar Maria, sua outra filha, com o mesmo D.
Manuel, viúvo de Isabel; com o Flandres, através do casamento de Juan, herdeiro
do trono e Príncipe das Astúrias, com Margarita. Juan morre pouco depois do
casamento, “de amores”, como relata o cronista Pulgar. Finalmente, a aliança mais
duradoura e profícua: casa Juana, conhecida como A Louca, com Felipe, O Belo,
pais do futuro Carlos V, Imperador dos Romanos e I de Castela, e de Fernando, pai
de Felipe II, Áustria.
Seria já, a Espanha de Ysabel e Fernando, pelo menos Castela, uma nação?
6
A definição formal de nação, nas palavras de Maravall “un grupo humano que se
contempla como una multitud reunida, y en tal sentido, dotada de una cierta unidad
formal, bajo un aspecto determinado, y solo bajo ese aspecto” 9 parece encaixar-se
no perfil do novo governo que se iniciava sob Ysabel e Fernando.
Há que se levar em conta também a natureza comum de seus membros
constitutivos, ou seja, a mesma origem de seus cidadãos.
Textos castelhanos antigos usavam as palavras “nación” e “generación” como
equivalentes, mostrando que o conceito de ‘nação’ ainda não estava esclarecido.
A partir de Hauriou 10, nação pode ser “una mentalidad” ou, mais modernamente, do
ponto de vista sociológico, pode ser um conjunto de vários fatores como raça,
língua, religião, cultura, geografia, noção de pertencimento; a relação entre um
conjunto de seres humanos que, normalmente assentados em um dado espaço
concreto, apresentam-se como um grupo cultural homogêneo, ou seja, como uma
“nação”.
Pode-se ainda agregar um outro fator para o entendimento do conceito de nação: o
conjunto de direitos e deveres compartilhados pelos membros de uma comunidade
que se organiza politicamente.
Deste modo, o homem natural se transforma em “cidadão” ao aperceber-se,
conscientemente, de que está ligado a outros iguais em direitos e deveres, dotados
de possibilidades de participação política e comprometidos com o futuro e com a
preservação atual dos bens e legados comuns.
Para Max Weber,
“El concepto de nación lo encontramos siempre orientado hacia fuerza
política, y así lo que se expresa con la voz nacional - si en general es
algo unitario - es una específica manera de “phatos”, el cual en grupo de
hombres ligados a través de una comunidad de lengua, confesión,
costumbres o destino, enlaza con una idea de organización de fuerza ya
existente o deseada” 11 .
Segundo a visão de Weber, poderíamos ter os traços da “nação” na Espanha dos
Reis Católicos? Parece-me que sim, uma vez que todas as condições explicitadas
7
pelo autor são encontradas.
Contudo, para a maioria dos tratadistas de Ciência Política, a idéia de nação plena
só acontece com as primeiras revoluções liberais e a queda das monarquias,
fazendo com que o referencial personalístico do Rei passe para o referencial
territorial e simbólico do Estado em sua soberania. Entretanto, alguns signos deste
Estado começam a aparecer no início da Idade Moderna, como, no caso, durante o
reinado de Ysabel e Fernando.
A união “nacional” de Castela em torno dos propósitos da Reconquista traça os
primeiros contornos de um território vinculado à idéia de “pertencimento”. Teríamos
aí, então, a terra, a geografia e a “nacionalidad” incipiente.
A língua, objeto da Gramática de Nebrija, a religião unificada e unificadora, a origem
compartilhada, a força das “Hermandades” que aos poucos se tornam um exército
permanente; a nascente burocratização das carreiras de serviço público com
exigências culturais e provas de competência, todos esses fatores interligados
anunciam já uma “nação” castelhana que nasce sob a coroa que Ysabel usa ainda
com “poder real e absoluto”, vestígio de um tempo que já se fazia distante e quase
anacrônico.
1.2 - YSABEL DE CASTELA
Nasceu Ysabel no ano de 1450, “en el mês de Noviembre, dia de Santa Elisabet en
Ávila” 12.
A partir desta afirmativa percebe-se que o início da vida de Ysabel é também motivo
de controvérsias, isto porquê, não há fonte documental nem narrativa da época que
registre o lugar, a data e hora do nascimento. O fato não é mencionado nem pelos
cronistas de seu pai, Juan II, nem pelos de Don Álvaro de Luna, eminência parda
que deixou registrados pelos cronistas grande parte dos feitos de sua época.
Segundo o “Comité Nacional Beatificación Isabel la Católica”, capítulo dos “Nobles
Caballeros de Isabel”13, “solo una fuente narrativa posterior (el historiador Gil
González Dávila, a principios del siglo XVII) hace referencia expresa al bautismo de
Isabel, y al hacerlo, señala la Parroquia de Santa Maria del Castillo, en Madrigal de
las Altas Torres”14.
8
O texto de Gonzáles Dorea diz que Ysabel “recibió la agua del bautismo y el título
de cristiana en la Parroquia de Santa Maria del Castillo de la misma villa (Madrigal),
y dieron la el nombre de Ysabel”15.
Outra fonte documental aceita e citada por Azcona 16, o Doutor Toledo diz que
“Nació la Santa Reina católica Doña Ysabel, fija del rey Don Juan el
segundo, e de la Reina Doña Isabel, su Segunda mujer en Madrigal,
jueves xxii de abril, iiii horas e dos tercios de hora después del medio
día anno Domini mccccli años”17.
Ao afirmar que Ysabel nasceu em Madrigal, o Doutor Toledo confronta-se com a
opinião de Andrés Bernaldes del Castillo, o Cura dos palácios, que a faz natural de
Ávila, em 19 de novembro de 1450; e com Colmenares, que dá a Madrid o privilégio
de ter sido o berço da Rainha.
Entretanto, hoje há um consenso entre os estudiosos de Ysabel que aceitam ter ela
nascido em Madrigal de las Altas Torres, no dia 22 de abril de 1451, quinta-feira
santa, embora Palencia 18 e a Crónica de Juan II apontem como data do nascimento
23 de abril. Lucio Marineo Sígulo 19 diz que a rainha nasceu em 1449.
Juan II comunica ao reino o nascimento através do Conselho de Segóvia:
“Fago vos saber que, por la gracia de nuestro Señor, este jueves
próximo pasado la Reina Doña Ysabel, mi muy cara e muy amada
mujer, encaescio de una Infanta, lo cual vos fago saber porque dedes
muchas gracias a Dios”,
em carta datada de Madrid, 27 de abril de 1451 20.
Ysabel não foi a filha primogênita de seus pais: antes dela, Juan II e sua segunda
mulher Isabel tiveram uma outra filha que se chamou Maria e que morreu quase ao
mesmo tempo em que sua avó, Isabel de Barcelos, no ano de 1465.
A infância de Ysabel transcorreu em Madrigal, Arévalo, Tordesilhas e Valladolid,
cercada pela atenção da avó – Isabel de Barcelos, portuguesa -, e da mãe, até que
a primeira faleceu em 1465 e a segunda enlouqueceu após a morte de Álvaro de
Luna em 1453 e de Juan II, em 1454.
Segundo Pulgar, Ysabel,
9
“...desde niña se le murió el padre, y aun podemos decir la madre, que a
los niños no es pequeño infortunio. Vinole el entender, y junto con él los
trabajos y cuidados; e lo que más grave se siente en los reales, mengua
extrema de las cosas necesarias”21.
Antes de morrer, Juan II antevendo os problemas que Ysabel e seu irmão Alfonso
teriam na corte do novo rei Enrique IV, resolveu refazer seu testamento
expressando sua vontade:
“...mando que la dicha reina, mi mujer, sea Tutriz y administrador de los
dichos Infantes don Alfonso y doña Ysabel, mis fijos y suyos, e de sus
bienes, fasta tanto que el dicho Infante sea de edad cumplida de catorce
años, y la dicha Infante, de doce años e que los rija e administre con
acuerdo e consejo de los dichos Obispos de Cuenca e Prior y fray
Gonzalo, mis Confesores e de mi Consejo, que son personas de quien
yo mucho fío...”22.
O testamento permite uma leitura interpretativa: Juan II já notava a loucura de sua
mulher, Isabel de Avis e tentou proteger seus dois filhos cercando a Tutriz de
homens sábios e de sua confiança. Não afastou a mulher do cargo de criar os dois
príncipes, pois sabia que, ao fazê-lo estaria condenando a rainha viúva a uma vida
de exclusão na corte do novo Rei Enrique IV. Entretanto, salvaguardou os
interesses de Ysabel e Alfonso nomeando co-tutores para garantir suas disposições
testamentárias.
Se Ysabel conquistou os louros de muitas vitórias – começando pela sua própria
ascensão ao trono de Castela – não deixou, contudo de ter uma vida cheia de
percalços, dores e sofrimentos: a morte prematura de seu pai; a loucura de sua
mãe; a corte de Enrique IV e a convivência com os costumes licenciosos que
aprendera a abominar; a morte do irmão e companheiro de infância, o “rei-menino”
Don Alfonso; a vida sacrificada nos tempos em que Enrique IV se recusava a
aceitar seu casamento com Fernando; os abortos – pelo menos quatro são
registrados pelos cronistas – que sofreu nas longas viagens pelo seu conturbado
reino; as mortes de sua filha Isabel, de seu filho amado Juan, do neto Don Miguel
de la Paz; a loucura de Juana; os quatro filhos adulterinos de Fernando – dos quais
não se descuidou...
Entretanto, Ysabel era, acima de tudo, uma mulher forte acostumada às perdas, às
guerras, às lágrimas escondidas, a conviver com a ameaça da loucura que afetara
10
sua mãe e sua filha. Os mesmos ciúmes de Isabel de Portugal, sua mãe, causaram
a loucura de Juana, apaixonada por Felipe o Belo, que se defendia dizendo que “mi
señora madre és más zelosa que yo y nadie la consideró loca” 23.
De muitas morte morreu Ysabel e a muitas mortes sobreviveu. Aqueles que
estavam na linha de sucessão, Alfonso, Enrique IV, tiveram finais de vida que
lançaram suspeitas sobre a participação de Ysabel nos passamentos. Pedro Girón,
o noivo arranjado pelos acordos de Enrique IV com a nobreza, a poucos passos de
concretizar seu casamento com Ysabel, morreu de morte semelhante à de Alfonso
com terríveis dores de garganta, suspeita de assassinato, envenenamento, quem
sabe?
Não se pode esquecer que, no episódio Pedro Girón, Beatriz Bobadilha, a amiga de
infância de Ysabel, que viria a se casar com o converso Andrés Cabrera, futuro
Marquês de Moya, ofereceu-se para assassinar o pretendente indesejado caso ele
se aproximasse de Ysabel. Qual teria sido, naquele momento, a reação da futura
Rainha Católica? Os cronistas não registram.
Lacunas... Silêncios que a história não gravou mas que deixou para o pesquisador
do futuro a possibilidade de trabalhar com hipóteses, com suposições...
Após a morte de Ysabel, Juana, a Louca e Felipe o Belo assumem o trono de
Castela e, o novo Rei, buscou por todos os meios anular o que restou do poder de
Fernando.
Felipe o Belo tentou aproximar-se do Rei de França, Luis XII, porém Fernando
usando de astúcia, casou-se com a sobrinha do rei francês, Germana de Foix.
Com este casamento ocorrido menos de um ano após a morte de Ysabel, Fernando
se mostra um homem prático e pouco ligado a emoções duradouras e que sabe
aproveitar as oportunidades. Sabia que Felipe o Belo podia contar com o apoio dos
castelhanos que, depois de algum tempo do governo conjunto com Ysabel,
passaram a tratar o Rei Fernando de “Viejo Catalán” – referindo-se à sua origem e
ao seu não pertencimento à Castela, o que parece bastante estranho, uma vez que,
ao olhar a história do reinado dos Reis Católicos, vê-se sempre o Rei empenhado
nas causas da rainha, mais dedicado à Castela do que a Aragão seu reino por
herança, deixando, muitas vezes, de lado os seus interesses pessoais – como no
11
caso da Guerra de Granada e dos assuntos pendentes da Cerdania e Rosellón -
para cuidar das guerras de sua mulher.
Talvez que esse ódio devotado pelos castelhanos a Fernando, sentimento esse que
se explicita com maior força após a morte de Ysabel, deva ter uma explicação mais
convincente do que o simples fato do velho rei não falar bem o castelhano ou de se
suspeitar que o povo tivesse tomado as dores de Ysabel em relação aos deslizes
matrimoniais do rei explicitados nos seus quatro filhos bastardos.
Parece que a história revelada até agora não dá conta de explicar essa aversão
castelhana ao rei que compartiu o trono de Castela com Ysabel. Esse é mais um
dos silêncios que, talvez um dia sejam esclarecidos.
Entretanto, há um ato que merece ser comentado: antes de casar - se com
Germana de Foix, Fernando, o Católico havia proposto casamento a, Dona Juana
(a Beltraneja), a excluída sobrinha de Ysabel que vivia reclusa em um monastério
em Portugal, pensando em, com esse casamento, pleitear novamente o trono de
Castela 24 .
A ser verdade essa proposta de casamento à Juana de Castela, Fernando estaria
lançando ainda mais dúvidas sobre a legitimidade do acesso de Ysabel ao trono de
Enrique IV, uma vez que, ao pretender utilizar a Excelente Senhora (como Juana
era tratada em Portugal) como alavanca para voltar ao trono de Castela era
necessário, primeiro, admitir a legitimidade dela no passado e, com isso,
deslegitimar Ysabel e seu próprio reinado.
Esse fato, se realmente aconteceu, lança uma nova dúvida sobre o caminho
percorrido por Ysabel para chegar a reinar em Castela e, pela participação
consciente de Fernando nos dois momentos – no passado quando se alijou Juana e
na ocasião em que pretendeu com ela se casar, vendo-a como herdeira possível da
coroa de Castela - traria a certeza de que Ysabel usurpou o trono que de direito
pertencia à sua sobrinha e afilhada.
A situação de Fernando em Castela, após a morte de Ysabel, era crítica. Os nobres,
seus antigos companheiros de armas, voltavam-lhe as costas.
2. América e Granada
12
Ysabel considerou sempre a conquista de Granada como o principal feito de seu
reinado, inclusive mais importante que o descobrimento da América.
Após a rendição da cidade, Ysabel e Fernando regressaram a Granada para passar
uma longa temporada, em 1499. Contudo, o que observaram de seus novos súditos
os desapontou: a maioria da população constituída por mouriscos, continuava com
sua vida normal, seguindo seus costumes, sem que nada tivesse sido modificado.
Ainda que, formalmente tomada pelos cristãos, Granada continuava moura.
Foi o suficiente para que Ysabel delegasse a Frei Hernando de Talavera a
empreitada de converter seus novos súditos. O frei ocupado já com os negócios da
Inquisição delegou poderes para que Francisco Jimenez de Cisneros cumprisse a
missão.
Cisneros era um homem de grandes aptidões para o comando – como comprovou
ao gerir Castela durante a ausência de Fernando, após a morte de Ysabel – e não
titubeou em utilizar os procedimentos mais duros para cumprir seu mandado,
fazendo com que os mouros se convertessem compulsoriamente ao cristianismo,
queimando em praça pública vários exemplares do Corão.
A atuação de Cisneros marcou a mudança radical da política castelhana em relação
à população árabe, o que veio a provocar as primeiras revoltas contra os cristãos,
como a de Albaicín, em 18 de dezembro de 1499.
Entretanto, em uma ata a Talavera, um escrivão anota: “Ya non ay moros”, mas
havia, e eles estavam ali para sempre, parte do panorama, parte da serra Nevada,
nas pedras da Alhambra, nos desvãos da cidade, nas ruas estreitas onde ainda se
pode ouvir a voz do muezin chamando para as orações a Alá, eternos, como El
Andaluz, eternos como a própria Espanha.
A cristianização dos costumes e a necessidade de uma só fé para legitimar o poder
real, exigiam signos e, nenhum mais apropriado do que a Virgem Maria, esculpida
por quantos tivessem algum dom artístico para adornar uma Granada que se queria
redimida e cristã.
13
Na situação política inaugural do “estado moderno” de Ysabel e Fernando, a
unidade de fé religiosa era condição indispensável da ordem social e uma premissa
para o total exercício do poder como o pretendiam os reis.
Enquanto na América a alternativa seria a guerra (extermínio) ou a evangelização,
em Granada a alternativa seria posta entre o batismo e a expulsão dos judeus e
muçulmanos que não aceitassem a fé cristã. Nos dois casos - América e Granada -
aparece um paralelismo produzido pela proposta política-religiosa. Entretanto, os
procedimentos e atitudes foram muito diferentes e dependeram, em grande medida,
da coesão cultural-religiosa dos dois grupos afetados, coisa de que, segundo
parece, Ysabel e Fernando estavam cientes.
A relação com os muçulmanos foi bastante diferente da que se estabeleceu na
América com os nativos.
Os agarenos de Granada faziam parte de uma religião organizada e de uma
civilização muito mais complexa - segundo os padrões europeus - que dominava
toda a costa mediterrânea. Além disto, na Espanha havia uma relação antiga com
os muçulmanos que oscilava entre a convivência pacífica e a hostilidades, o que
explica o teor das capitulações que serviriam para manter a tranqüilidade durante
alguns anos, enquanto foram cumpridas.
Para Ysabel e Fernando, a conquista só estaria terminada com a completa
conversão dos mouros e judeus ao cristianismo o que, forçosamente, provocou a
ruptura nas relações entre os grupos afetados.
Em 1492, a grande maioria dos judeus espanhóis optou pela imigração, e os que
escolheram o batismo não tiveram oportunidade de voltar atrás: a Inquisição
encarregou-se de punir os recalcitrantes.
Com os mudéjares, entretanto, tentou-se a persuasão, embora com poucos
resultados, tanto em Granada como em Castela ou Aragão. Mesmo assim houve
mais alternativas para esse grupo e a expulsão total tardou um pouco mais,
principalmente se se levar em conta que os árabes detinham o conhecimento e a
14
produção de hortaliças e cereais, além de outras atividades que se tornaram
indispensáveis ao cotidiano tanto de Castela quanto de Aragão.
As revoltas em Granada nos anos de 1500 e 1501 serviram para os reis como
argumento final para a proposta de conversão em massa, ainda que, neste
momento milhares de granadinos tenham optado pela emigração.
Em 1502, a medida da conversão massiva entendia-se por toda a Castela.
Entretanto, os conversos mouriscos eram apenas “investigados” pela Inquisição -
não punidos.
Apesar das tentativas de cooptação os mouros conservaram sua cultura e sua
religião sem que fosse possível romper essa identidade ou mesmo assimilá-la à
européia, ao contrário do que aconteceu na América, onde se deu uma fusão dos
costumes e acabou por triunfar a mestiçagem e uma religião personalizada que
nomeava antigos ídolos com os nomes dos santos cristãos.
Dessa diferença fundamental entre a América e Granada, estavam cientes tanto
Ysabel e Fernando como os religiosos encarregados do projeto salvacionista dos
dois grupos.
Talvez que o motivo esteja na maneira pela qual cristãos e mouros se percebem um
ao outro, resistindo a qualquer tipo de aproximação ou de busca de mediação dos
costumes, visceralmente opostos, culturalmente inimigos, convencidos cada um da
superioridade de sua cultura e, portanto, de sua religião.
A economia européia do século XIV encaminhava-se para a urbanização: floresciam
não só as cidades como o comércio urbano, aumentando a demanda por produtos
de luxo, pagos com ouro, dentre os quais se sobressaiam as especiarias e os
tecidos. A mais procurada dentre as especiarias, a pimenta da Índia chegou até
mesmo a ser aceita como meio de pagamento em contratos comerciais.
Com a tomada de Constantinopla pelos turcos e com a islamização dos tártaros, os
mercadores genoveses, venezianos e até os catalães que comercializavam com o
15
Oriente viram-se arruinados da noite para o dia: a demanda por produtos orientais
crescia ao tempo em que a oferta diminuía por problemas bélicos e,
fundamentalmente, religiosos.
Impunha-se a necessidade de se encontrar novos caminhos para se chegar até os
produtores de especiarias e assim diminuir o preço – cada vez mais alto - das
mesmas.
Entretanto, desde tempos imemoriais, quando os fenícios,comerciantes e
navegadores encarregaram-se de disseminar lendas horríveis sobre os mares
desconhecidos, o homem não ousava cruzar os limites conhecidos, não passava
“além da Trapobana”, por medo dos monstros que povoavam as antigas rotas
comerciais ciosamente guardadas pelos antigos navegantes.
Em Portugal, com a Escola de Sagres fundada pelo infante Don Enrique, alguns
progressos já tinham sido conquistados: alargavam-se as fronteiras marítimas. O
homem diminuía os seus medos enquanto alargava os limites dos seus sonhos.
Em Castela, Ysabel resolveu investir algum recurso na busca de rotas alternativas.
Como Portugal se adonava das explorações da costa Africana, Ysabel decidiu-se a
arriscar no desconhecido Cristóvão Colombo para tentar ver o que havia no além do
horizonte do “Mar Ignoto”: o Oceano Atlântico.
Colombo sabia que a 750 léguas da Ilha do Arquipélago das Canárias chamada
Hierro existiam umas pequenas ilhas (as Antilhas Menores e uma maior, Cuba, que
ele identificava com Cipango, o tão cobiçado Japão).
Colombo levava sobre os outros aventureiros e exploradores uma dupla vantagem:
sabia a que distância exatamente estava a terra do outro lado do Mar Oceano e
conhecia a rota que deveria percorrer para ir e voltar com um barco, ao sabor da
corrente do Golfo e dos ventos alísios. Atribuem-se essas informações a um
suposto náufrago “el piloto desconocido”, citado por muitos cronistas e
historiadores, a quem Colombo teria salvado a vida na Ilha da Madeira e que lhe
passou os segredos.
16
Esta antevisão, o conhecimento prévio da empreitada que Cristóvão Colombo
iniciou no Porto de Palos, deu origem a que nas Capitulações de Santa Fé,
assinadas entre o genovês e Ysabel, no acampamento real de Granada a 17 de
abril de 1492, os termos sejam “que vades por nuestro mandado a descobrir e
ganar com ciertas fustas nuestras e com nuestras gentes ciertas islas e tierra firme
de la Mar Océana...” 25 , antes que a viagem primeira se realizasse concedendo o
mérito de um descobrimento que ainda não tinha se concretizado, mas que já se
dava por feito.
Nas “Capitulações de Santa Fé”, assinadas entre os Reis e Colombo, Fernando,
irritado com as pretensões do marinheiro genovês, sugeriu à Rainha que
abandonasse o projeto e deixasse Colombo vender suas idéias a outros reinos.
Entretanto, neste silenciar da História a respeito do que teria se passado, quais
teriam sido os motivos para Ysabel tomar partido de Colombo e dar seu apoio à
viagem? Como teria sido a interlocução entre a rainha – visionária, afilhada da
sorte? - e o prático Fernando, para quem a voz da guerra soava sempre mais forte
do que os apelos de um distante “talvez” em relação a um desconhecido que nem
mesmo falava sua língua?
Assim as duas partes pactuantes, os Reis Ysabel e Fernando de um lado, e
Colombo de outro, escondiam o que verdadeiramente sabiam em relação a esta
empresa de “tomada de posse do novo mundo”.
Colombo continuou trapaceando. Quando descobriu as jazidas de pérolas na Ilha
Margarita escondeu o feito até o momento em que sentiu que a Espanha sabia dos
seus tratos para descobrir um sócio capitalista que o ajudasse a explorar as
riquezas sem a participação de Castela.
Enquanto viveu Colombo foi um homem esquecido pelas notícias e pelos meios que
poderiam ter conferido a ele a fama e as glórias que tanto almejava.
Depois de sete longos anos – lembro-me aqui de Camões
“Sete anos de pastor Jacó servia,
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Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Pois a ela como prêmio pretendia...”
Colombo, servindo aos reis Ysabel e Fernando, conseguiu ver seus planos
aprovados:
Os reis – especialmente Castela - aportaram 1 140 000 maravedíes (emprestados
por Luís de Santágel, de antiga estirpe judia); Colombo entrou com outros 500 000
(emprestados por banqueiros florentinos) e a humilde comunidade da cidade de
Palos teve que colaborar com os 350 000 restantes, como multa pela violação do
tratado com Portugal sobre os direitos de exploração da Costa da Guiné e por
“ciertos deserbicios que el pueblo había hecho a los reyes”.
Tão insignificante investimento pode ser comparado com a recompensa: durante
um século e meio os espanhóis extraíram da América aproximadamente duzentas
toneladas de ouro e cerca de dezoito mil toneladas de prata, fora a madeira, as
pérolas, as especiarias e outros lucros, embora hoje se possa afirmar que esta
riqueza tornou-se uma das causadoras do descompasso da Espanha em relação ao
processo de industrialização do resto da Europa além dos problemas sociais, da
subida exagerada dos preços, da expectativa de se fazer fortunas com os metais
americanos, das bancarrotas, etc.
Para que o projeto colombino tivesse êxito, não se pode esquecer do desempenho
das caravelas. O especialista veneziano Alvise de Mosto escreveu em 1454: ‘La
carabela es la mejor nave de cuantas han llegado a la mar [...]; con tales barcos no
veo por qué razón no será posible navegar a cualquier parte del mondo “.
Com ventos favoráveis, as caravelas de Colombo, Pinta e Niña alcançavam onze
nós, o que significava uma velocidade enorme para os padrões da época, enquanto
que a Santa Maria, uma nau “muy pesada y no apta para el oficio de descubrir”, foi
pessoalmente pilotada por Colombo.
A angústia e o medo dos tripulantes – inclusive dos irmãos Pinzon, outros dois
pilotos – era acalmada por um padre que diariamente rezava no tombadilho uma
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missa seca, ou seja, sem a consagração do vinho para evitar que uma onda
pudesse derramar o “la sangre consagrada de Cristo”.
Muitas vezes, nós, os habitantes do Novo Mundo, olhamos para o momento da
chegada de Colombo a Guanahani como sendo a própria redescoberta do Paraíso,
feito único e necessário e, portanto, de fundamental importância para a História da
Espanha.
O descobrimento da América, ainda que posto em segundo plano em relação à
reconquista de Granada, indicará, no médio prazo, novos rumos para a expansão
atlântica espanhola e, no longo prazo, atrasará o ingresso do país na revolução
Industrial, na medida que, com o aporte das riquezas do Novo Mundo a Espanha
deixou de buscar alternativas internas para o seu desenvolvimento.
O ingresso de metais preciosos, ainda que não na quantidade sonhada ou esperada
pelos envolvidos na empresa colombina, aliado à expectativa que o “Novo Mundo”
trazia à gente de Castela naquele final de século fizeram com que a Espanha
ficasse desatenta aos processos que se desenvolviam no resto da Europa:
Inglaterra e França, principalmente, buscavam alternativas para o êxodo rural e a
conseqüente urbanização que deslocava um contingente cada vez maior de mão de
obra do campo para as cidades.
Enquanto isso, Espanha esperava o ouro prometido pelo visionário Colombo e
descuidava-se dos apelos iniciais da industrialização conservando suas práticas
antigas de exportar matéria prima e importar manufaturas.
No Novo Mundo os espanhóis acabaram estendendo seu domínio pela maior parte
do continente, com exceção do Brasil, possessão portuguesa até 1822 -
considerando-se o interregno de 1580 a 1640 quando a Espanha incorporou à sua a
coroa de Portugal.
Assim como a Guerra da Reconquista teve seus momentos de curta ou longa
duração, a conquista da América pode ser dividida em algumas etapas:
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1 – 1492 a 1508 – colonização restrita à Ilha Espanhola;
2 – 1508 a 1513 – estende-se a colonização às Grandes Antilhas e ao continente (Panamá);
3 – 1513 a 1535 – conquista caminha para o norte (México) e para o sul (Peru);
4 – colonos do México conquistaram a América Central e o sul dos Estados Unidos atuais, outros saídos do Peru entraram pelo Rio Amazonas e chegaram ao Chile. Expedições vindas da Europa encontraram o Rio da Prata, fundaram Buenos Aires e a Colônia do Sacramento e incorporaram o Paraguai.
Todas as conquistas foram sangrentas e devastadoras: o homem europeu não
conseguia aceitar a possibilidade da existência de civilizações grandiosas como as
dos Astecas, Incas, Maias e outros.
A imagem da conquista da América foi se formando moldada pelo saber técno-
científico e pela lógica do lucro. O homem americano se plasma, sempre, em
função do estrangeiro, aquele que lhe serve de espelho e de paradigma.
Mesmo o cenário do Novo Mundo, de início tão atrativo para seus descobridores,
aos poucos vai perdendo a magia, substituída pelos ruídos dos “huracanes”, pela
ameaça dos canibais, pelo perigo constante de animais selvagens, pela inexistência
do ouro tão cobiçado – e tão necessário para os colonizadores.
Se, por um lado, a expedição colombina, ao ser comparada com a Guerra de
Granada, teve um custo baixíssimo, as expectativas do retorno dentro do
bulionismo praticado e necessário, eram imensas.
Embora a Guerra de Granada tivesse sido quase que totalmente financiada pelo
papado, os outros projetos de Ysabel e Fernando dependiam dos ingressos de
Castela e Aragão: a política interna e externa, os exércitos e a corte eram atrelados
às finanças reais, como revelam alguns documentos.
A proposta que faço e que deixo em aberto, é uma comparação da Reconquista
com a Conquista da América em termos que possam avaliar desde o imaginário dos
20
envolvidos até a práxis 26 nos dois momentos (tanto a explicitada como a
simplesmente “possível”).
Se Ysabel e Fernando pouca atenção deram à descoberta da América e tanta
ênfase emprestaram à Reconquista de Granada, isso deve ser explicado,
investigado e proposto como tema de debate maior envolvendo pesquisadores e
estudantes dos dois continentes para que possamos entender esse momento tão
significativo do governo de Ysabel e Fernando.
4. A MORTE E OS RITOS
“C´est la Mort qui console, helás! Et qui fair vivre.
C´est le but de la vie et cést le seul espoir,
Qui comme un élixir nous monte et nous enivre
Et nous donne le coeur le de marcher jusqu´au soir…”
Baudelaire
A morte era bastante ritualizada naquela sociedade castelhana regida pela
sacralização dos costumes.
Expressar os sentimentos referidos aos últimos instantes e à expectativa de uma
vida “na glória de Deus” fazia parte do cotidiano regulamentado por práticas que
remontavam às Sete Partidas de Alfonso X, o Sábio, no que se refere aos aspectos
civis, e pela Igreja, que se dedicava com afã a assistir e guiar seus fiéis nos últimos
momentos para garantir-lhes a entrada no reino de Deus.
Além disto, uma morte cristã regida pela Igreja, principalmente quando se tratava de
alguma personalidade importante - como o caso de Ysabel - contribuía para o
exemplo educativo do povo induzido a pensar o passamento como algo que ocorre
a todos, ricos ou pobres, rainhas ou mulheres do povo.
Morte e vida faziam parte de um todo intrinsecamente unidas e inseparáveis: uma
boa vida, regulada pela fé, por atos religiosos e morais, estava ligada à expectativa
de uma “boa morte”.
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Uma morte “anunciada” quando havia tempo de se fazer um testamento, dispor
convenientemente dos bens materiais, saldar dívidas e nomear herdeiros, morte no
próprio leito, assistida por sacerdotes que se encarregavam de encomendar aos
santos e anjos o moribundo e por familiares atentos ao conforto e às necessidades
terrenas últimas, era considerada uma boa morte.
Morte e vida estavam intimamente ligadas, uma dando sentido a outra: uma boa
morte deveria ser o reflexo de uma boa vida. O tempo para testar era o tempo
pedido em orações durante a vida para o arrependimento, para por em ordem as
contas com Deus. A morte súbita, intestada, era tida como uma espécie de castigo,
quando os céus não concediam ao mortal o tempo necessário para confessar-se,
dispor de seus bens, pagar suas dívidas.
Assim, de uma “boa morte”, morreu Ysabel, a primeira rainha do Mundo Novo,
Ysabel, a Católica, herdeira por sua vontade do trono de seu irmão Enrique IV, em
detrimento da filha deste, Dona Juana, vulgarmente chamada de “A Beltraneja”.
“La muerte estaba instalada en el centro de la vida, como recordaban los
frecuentes relojes, esqueletos, calaveras y hoces. Su memoria se
imponía por si misma, aunque tendiese a reforzarse mediante todo tipo
de artes plásticas; las buenas muertes, la muerte figurada de los
santos o de la Virgen fueron tema recurrente, con ánimo de la ‘propia’ 27”.
Considerando-se que “los fallecimientos reales eran expresión de religiosidad
externa, de duelo festivo, de obligación social en los pésames y de consecuencias
económicas en los lutos” 28, a morte há um tempo ritualizada e sacralizada da
Rainha Ysabel, acompanhada do Testamento visava a confirmação de seu direito
inalienável e indiscutível ao trono de Castela e, portanto, o seu dever de dispor
quanto à herança do trono, a linha sucessória daqueles que, assim como ela,
deveriam “pela vontade de Deus” estar acima de todos e governar Castela.
O luto público era tido como uma demonstração necessária de apreço ao Rei
falecido, fundamental para a confirmação da sacralidade da morte e da ritualização
cerimonial, uma evocação de costumes ancestrais, quando o rei morto era
queimado em uma pira de madeiras oloríficas e suas cinzas esparsas pelos seus
territórios para que seu espírito continuasse presente nos dias futuros.
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Depois de um período em que, “... le aumenta la fiebre por días” sem chances de
recuperação da saúde da rainha, em 1 de outubro já se esperava o desenlace:
“el tumor, se ha expandido por las venas y, poco a poco, se va
declarando la hidropesía. No la abandona la fiebre, ya adentrada hasta
la médula. Día y noche la domina una sed insaciable (...) el mortífero
tumor va corriéndose entre la piel y la carne. Vemos ensombrecerse los
rostros del Rey y de los camareros más íntimos. Ya se están haciendo
cábalas de lo que acontecerá una vez que ella falte...” 29
No dia 26 de novembro de 1504, no Palácio Testamental 30 situado na Plaza Mayor
de Medina del Campo morreu Ysabel I.
Embora conhecedor já das disposições testamentárias de Ysabel, Fernando não
demonstra, pelo menos no comunicado, nem mágoa nem discordância das últimas
vontades da rainha. Seu empenho pela causa castelhana, muitas vezes o levou a
deixar em segundo plano os interesses aragoneses, o que traria, como
conseqüência, um estranhamento dos seus súditos hereditários para com ele.
Por outro lado, a dedicação à Castela não foi recompensada como Fernando
pretendia. Por ser mais afeito à guerra do que às artes e ao nascente cultismo
castelhano, Fernando seria conhecido no reino que compartiu com Ysabel como “el
viejo catalán”, refletindo sua origem e o distanciamento deste novo castelhanismo
fundado por Ysabel e deixado por ela como herança para Juana, a que passaria
para a história como “A Louca”.
O comunicado oficial de Fernando aos reinos expressa a ligação profunda que
existia entre os que foram chamados “Reis Católicos”.
“Hoje, dia em que foi datada esta, (26/11/1504), aprouve a nosso
senhor levar para si a sereníssima rainha dona Ysabel minha mui cara e
mui amada mulher, e ainda que sua morte seja para mim o maior
trabalho que nesta vida me pudesse vir e por uma parte a dor dela e
pelo que ao perdê-la perdi eu e perderam todos estes reinos, me
atravessa as entranhas; mas por outro lado, vendo que ela morreu tão
santa e catolicamente como viveu, o que nos faz esperar que nosso
senhor a tenha em sua glória que para isto é melhor e mais perpétuo
reino que os que aqui temos, pois que a Nosso Senhor assim aprouve,
23
é razão para nos conformarmos com sua vontade e dar-lhe graças por
tudo o que faz; e porque a sereníssima rainha, que tenha a santa glória,
em seu testamento deixou ordenado que eu tivesse a administração e
governo destes reinos e senhorios pela sereníssima rainha dona
Juana... o que está de acordo com o que os procuradores de cortes
destes reinos suplicaram nas cortes de Toledo de 1502 que se
continuaram em Madrid e Alcalá em 1503, por fim eu encarrego e
mando que logo que concluirdes as datas das exéquias a que sois
obrigados alceis e mandeis alçar pendões nesta dita vila pela
sereníssima Rainha dona Juana nossa filha como Rainha e senhora
destes reinos... Encarrego muito cuidado, como sempre o tiveram, na
execução da justiça (tradução da autora).
En Medina del Campo, a 26 de noviembre de 1504 “ 31. Yo, El Rey.
Naquele dia vinte e seis de novembro de 1504, descia a cortina sobre o ato final da
Epopéia de Ysabel, a primeira rainha de dois mundos.
Sobre seu passamento há outros testemunhos como o de Angleria, para quem:
“Exalou a Rainha aquela sua alma grande, insigne, excelente em suas
obras. A terra fica sem a melhor de suas prendas; nada semelhante se
havia conhecido nem se lê na História que Deus e a Natureza tenham
dado ao mundo uma mulher como esta, nem Rainha de tal qualidade.
Aquelas que empunharam o cetro e a quem a antigüidade celebra ou
por seus dotes de espírito ou por sua brilhante história, como Semíramis
ou outras semelhantes, não têm a auréola do elogio completo, seja
pelos costumes licenciosos ou por seu descuido com a religião. Mas
nesta nossa Rainha todo o mundo sabe como era em suas decisões
para empreender as grandes obras e em sua constância para levá-las a
término; os que tomastes parte nelas conheceis melhor que eu sua
firmeza em desterrar os vícios e promover a virtude” 32.
“Tiemblo al pensar que con ella nos abandonen la religión y la virtud. Es
deseable partir, llamados de la tierra, hacia donde ella se encamina.
Sobrepasando toda grandeza humana, vivió de tal modo que nos es
posible que muera; con la muerte terminará su mortalidad, pero no
morirá...”33.
24
Nota-se que a morte da Rainha comoveu aqueles que a cercavam não só pelo seu
sofrimento - a hidropisia fazia com que padecesse de dores cruéis, além da perda
constante de sangue -, como pela importância do papel de Ysabel no governo dos
reinos que lhe pertenciam e pelo carisma que permeava suas relações com todos
os seus súditos.
Além disso, comovia aqueles que a acompanhavam em seus últimos momentos, a
força, a determinação de não se entregar ao sofrimento nem deixar que a vissem
sofrer, tendo sempre o cuidado de cobrir seu rosto com um lenço para que não
vissem nele os sinais da dor.
5. O TESTAMENTO
“Testatio mentis son dos palabras de latín que tanto
quieren decír en romance como testimonio de la
mente del hombre, y de estas palabras fue tomado el
nombre testamento”.
Las Siete Partidas de Alfonso X, O Sábio. Partida 6,
Ley 1.
“Até o mais prosaico dos documentos pode ser comentado, quer na
forma quer no conteúdo, em termos de imaginário. O pergaminho, a
tinta, a escrita, os selos, etc. exprimem mais que uma representação:
exprimem também uma imaginação da cultura, da administração, do
poder. O imaginário do escrito não é o mesmo da palavra, do
monumento, da imagem. As fórmulas do protocolo inicial, das cláusulas
finais, da datação, a lista das testemunhas – para não falar do texto
propriamente dito – refletem não só as situações concretas, mas
também o imaginário do poder, da sociedade, do tempo, da justiça,
etc.”34.
Alfonso X, o Sábio considera que o testamento é algo que os homens devem fazer
com cordura de mente por dois motivos: “(...) la una, porque en ellos muestran cuál
es su postrimera voluntad; y la otra, porque después que todos los han hecho, si se
mueren, no pueden otra vez tornar a enderezar ni hacerlos por completo (...)35.
25
A origem consuetudinária da coroa castelhana faz com que se torne necessário
buscar nos testamentos as normas que regulam a sucessão do trono. Testar era
não só um privilégio como uma obrigação dos reis que, deste modo, deixavam
dispostas as regras de sua própria sucessão e as determinações concernentes ao
governo de seus reinos, entre outras medidas, refletindo o momento em que são
escritos, carregados dos símbolos e das representações de uma determinada
sociedade em um dado momento histórico.
Os Testamentos, abertos ou fechados, são as escrituras das últimas e derradeiras
vontades de alguém que se prepara para a morte. A eles se somam, algumas
vezes, as determinações das últimas vontades, os Codicilos, ou cláusulas feitas à
parte, e que integrarão o corpo do Testamento.
Na feitura de um documento que contém as últimas vontades de alguém que se
despede desta vida para enfrentar o julgamento do seu Criador há todo um ritual de
fórmulas necessárias para a validade tanto espiritual como temporal. Parece que,
no corpo do Testamento, o indivíduo que se esconde por trás das titulações,
emerge desprovido dos seus títulos por uns instantes iniciais assustado ante a
perspectiva de uma nova passagem, desta vez para o desconhecido.
A Rainha Ysabel, a Católica outorgou seu Testamento 36 na vila de Medina del
Campo, no dia 12/10/1504, duodécimo aniversário do descobrimento da América,
perante o tabelião e escrivão da corte Gaspar de Grizio e na presença das
testemunhas que o assinam.
O Testamento é complementado por um Codicilo outorgado ante o mesmo escrivão
Gaspar de Grizio, em Medina del Campo, no dia 23 de novembro de 1504, três dias
antes do falecimento da Rainha. Este Codicilo está guardado na seção de
Manuscritos da Biblioteca Nacional de Madrid.
Não se sabe ao certo a data de entrada de tão valioso documento no Archivo
Nacional de Simancas, mas tal fato ocorreu entre os anos de 1543 e 1545, como
conseqüência das solicitações feitas por Carlos V e por seu filho, Felipe II
(25/08/1545) para que todos os documentos referentes à Coroa e ao Real
patrimônio que estivessem em mãos de particulares fossem entregues para
integrarem o acervo do novo Arquivo Nacional.
26
De maneira geral, a primeira parte do Testamento é constituída por fórmulas
religioso-confessionais, mais ou menos estandardizadas para dar ao ato de
distribuir bens materiais um certo significado espiritual, podendo com isto contar
com a benevolência da Igreja na execução das últimas determinações de um
indivíduo que, ao morrer, se declara cristão reforçando a mentalidade sacralizada
existente.
Além do seu valor ordenativo o Testamento possuía um significado extremamente
religioso na medida que servia para o testador colocar em ordem seus negócios
temporais, saldar dívidas, distribuir esmolas e doações a obras pias e,
principalmente, ratificar uma vida cristã, através da reafirmação de crenças e de
devoções, solicitando sempre de seus protetores - santos e anjos - que o
ajudassem no momento da passagem desta vida para a outra.
O Testamento também estratificava socialmente os indivíduos que o faziam
deixando aparentes as diferenças entre seus outorgantes, possuidores de bens e
de coisas de valor a serem doadas, e os outros, aqueles que morriam intestados
por não terem bens a legar.
“Una vez puestos los medios para solucionar ‘el fin último para que el
fue creado’ era imprescindible saldar las deudas terrenas y adjudicar
legítimamente los bienes materiales: precisamente, esa resolución de lo
mundano era condición indispensable de la salvación eterna.”37.
Esta conjunção de interesses, cristãos, salvacionistas, pessoais, familiares, sociais,
dinásticos, econômicos, entre outros, faz com que o Testamento se revista de uma
certa sacralidade que, por vezes chocavam com os pretensos valores cristãos da
maioria dos nobres.
O Rei - neste caso, a Rainha Ysabel -, usa de todo o seu conhecimento religioso
para invocar os santos, anjos e arcanjos, cada um dentro de sua “especialidade”
para ajudar neste instante em que, pela vez primeira, o detentor de um poder de
vida e morte sobre seus súditos, aquele que está acima de qualquer julgamento
humano, vai ser julgado pelo Deus em que acredita, por seus atos e omissões, pelo
próprio desempenho enquanto “ungido” Rei - ou Rainha -, “pela graça de Deus”.
“La protestación de la fe, lugar de su entierro, y misas que le han de
decir; los albaceas que lo han de cumplir, herederos que lo han de
27
suceder, y revocación de otros testamentos que hayan hecho antes, son
las partes esenciales que hacen testamento” 38.
Os Codicilos servem principalmente para alterar - ou complementar - os mandados
e legados contidos no testamento original e suprir alguma dúvida ou ponto pouco
claro existente no mesmo.
Genericamente são usados também para retificar alguma disposição de ordem
econômico-financeira devido a possíveis alterações patrimoniais do testador, assim
como renomear testamenteiros e executores por conseqüência de falecimento de
algum dos nomeados originalmente. O Codicilo só afetava e alterava as disposições
explicitamente contidas nele, preservando-se, na íntegra, todo o resto do
testamento original.
“Los codicilos son como cláusulas hechas à parte, en que explican la
parte que es necesario del testamento, o añadir, o quitar lo que el
testador quisiere, como no sea revocar, ni nombrar herederos; que esto
solo se puede hacer en el testamento” 39.
Aparece, também, de maneira meridiana no Testamento, a visão sócio-política e
econômica desta mulher que dispôs, não só dos seus bens e títulos, mas vinculou-
os à Castela fortalecendo sua pátria natal com determinações que abarcavam seus
filhos, netos, bisnetos e, de maneira geral, todos quantos viessem a reinar após ela.
Inicia-se o Testamento da Rainha Ysabel, invocando Deus, a Santíssima Trindade,
a Virgem Maria “nuestra madre y abogada”, Arcanjos, Santos e Anjos, confirmando
sua fé católica e suas devoções particulares.
Terminado o primeiro parágrafo - em louvor ao sagrado -, Ysabel se qualifica, com
todos os seus títulos terrenos “rainha de Castela, de Leão...” sem, no entanto,
mencionar a América, o Novo Mundo, aquele Mundo Novo que, graças ao seu
empenho, à sua visão política, Colombo tinha tomado posse para a Coroa de
Castela.
Deve-se notar que a ênfase dada à Granada, pelo menos durante a vida de Ysabel,
era muito maior do que a importância do feito colombino. A Reconquista de Castela
teve, à época, um significado maior do que a chegada de Colombo à Guanahani.
28
Dentre os títulos mencionados por Ysabel, existem condados, marquesados,
propriedade de cidades e vilas, mas, em nenhum momento se refere às terras do
Novo Mundo encontradas por Cristóvão Colombo das quais era, por direito, rainha.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Cabe ao historiador (...) comunicar pelo texto escrito o ‘calor’, restituir ‘a
própria vida’. Mas não nos devemos iludir: esta vida que ele tem por
missão instilar é sua própria vida. E nisto ele tem tanto mais êxito
quanto mais sensível se mostra. Deve controlar suas paixões, mas sem
estrangulá-las, e tanto melhor desempenhará seu papel se se deixar
aqui e ali levar por elas. Longe de afastá-lo da verdade, elas têm todas
as possibilidades de aproximá-lo ainda mais. À história seca, fria,
impassível, prefiro a história apaixonada. Inclinar-me-ia mesmo a
considerá-la mais verdadeira” 40 .
Caminhar com Ysabel e Fernando pelos caminhos de Castela compartilhar
emoções, capturar um ‘quanta’ da história vivida em um momento em que o homem
e o mundo se descobriam, perceber as tramas, os dramas, entrar nos palácios
quase pobres daquele momento e vislumbrar, numa sombra que ainda se desenha,
um vulto esquivo que a história esqueceu de registrar, uma mulher que agoniza e,
nestes últimos momentos, toma posse do futuro do mundo, do seu mundo, legando
poderes, fazendo contratos desfazendo mandados, senhora ainda de todo o poder
real e absoluto, é assim como um privilégio, uma oportunidade de viajar, durante
quase cinco anos pela História guiada por sábios que estavam lá, testemunhas dos
fatos acontecendo, senhores do tempo preservado, cronistas, historiadores,
cantores do povo, literatos, que, a cada momento me ofereciam suas informações
tornando a aventura uma constante descoberta.
Chamo Georges Duby para me resguardar, ele também que soube se apaixonar –
sem receios acadêmicos – por seus objetos de estudos e declarar sua paixão,
justificando-a.
Confesso minha paixão.
29
Se, de início, busquei ser o mais imparcial que me fosse possível, a cada momento,
a cada documento lido e decifrado, minha suposição inicial de que, escolhendo
Ysabel como pano de fundo para minhas pesquisas descobriria a Espanha, assim
como no quadro de Dali, ao se fixar a vista na mulher etérea, percebe-se sua força,
pois ela está, da cabeça aos pés, “situada na Espanha”, senhora absoluta de seu
território, embora femininamente apoiada em um escaninho de muitas gavetas que
poderiam guardar os segredos.
Descortinei Castela, a semente da Espanha, uma Espanha plural, mística e pronta
para ser descoberta.
Descobri Ysabel.
Ysabel, Rainha/ mulher/ mãe/ guerreira/ fêmea ciumenta/ senhora do seu poder real
e absoluto, Senhora do “yugo” – o símbolo romântico escolhido por Fernando para
adornar seu escudos de armas por ser a inicial de Ysabel (ela escolheu as “flechas”
pelo F de Fernando), aquela que legou ao seu companheiro de jornada e de
guerras muitas, não o seu reino inteiro, mas o simples “governo” do mesmo,
enquanto deixava para sua filha Joana a coroa, essa figura enigmática que alguns
querem ver como santa, e a mim me parece mais uma guerreira valente, arraigada
nos seus propósitos, determinada a cumprir sus própria vontade e impor seu
castelhanismo ao mundo conhecido e àquele que viria a desvelar: legou a América
só para Castela excluindo os outros reinos.
Após minhas pesquisas sobre o reinado de Ysabel e Fernando verifiquei que não
existe, até este momento, nenhuma tradução dos documentos ysabelinos para o
português e, além disto, a historiografia sobre Ysabel – em espanhol inglês, francês
ou italiano – costuma somente reproduzir pequenos trechos – ou excertos – de
alguns documentos e fontes.
Mesmo os autores que se debruçaram com mais afinco sobre a história de Ysabel
não cuidaram em divulgar, por exemplo, o Testamento e o Codicilo que, do meu
ponto de vista, são significativos para o estudo do período, uma vez que, iluminam a
cena mais ampla desde os costumes cotidianos da corte às práticas religiosas, aos
30
preceitos legais e jurídicos da feitura de uma carta de últimas vontades, à política
internacional daquele momento.
A não ser o trabalho da Dra. Amália Prieto do Archivo Nacional de Simancas que
traduziu magnificamente algumas correspondências trocadas entre Ysabel e
Fernando aduzindo a elas comentários sobre as circunstâncias em que tais
missivas foram escritas, as fontes primárias sobre esse período tão rico e tão
significativo para a História Universal, são distantes e de difícil acesso para o
pesquisador – notadamente para nós, os da América latina que só teremos acesso
a essas fontes se buscarmos diretamente nos arquivos espanhóis.
O Tratado de Tordesilhas, primeiro documento internacional que interessa
diretamente ao Brasil, por exemplo, merece um estudo mais aprofundado, não só
do ponto de vista da História como o das Relações Internacionais, quem sabe
podendo até mesmo lançar um pouco mais de luz sobre as viagens cabralinas à
“Ilha de Vera Cruz”, depois “Terra de Santa Cruz”, o Brasil.
Acredito ainda que o estudo e, especialmente, a compreensão do período, sejam de
fundamental importância para se estabelecer as ligações entre a Espanha e a
América - que se formava à sua imagem e semelhança -, alargando-se, portanto, o
entrelaçamento histórico que se possa fazer entre o Velho e o Novo Mundo e, para
isso, o trabalho de divulgação (de tradução para o português) de alguns
documentos poderão contribuir, encurtando distâncias e facilitando os novos
estudos que, certamente, deverão surgir, neste momento em que se busca o
“sujeito escondido”, uma nova possibilidade histórica para fatos que, até hoje,
pareciam cristalizados pela memória oficial.
Procurei, ao utilizar as fontes primárias para minha tese doutoral, traduzir o mais
fielmente possível optando pela reprodução exata do termo em seu equivalente
português, deixando muitas vezes de lado uma construção mais aprimorada para
preservar o “tom” de quem escreveu, tentando captar o momento, o ânimo do autor,
sua cultura, as cadeias de raciocínio, coisas que só poderiam ser feitas se
conseguisse transmitir o documento sem corrigi-lo, sem buscar para ele uma forma
mais elaborada de escrita.
31
Espero, com este artigo estar contribuindo para que outros historiadores retomem
esta pesquisa e alarguem seus horizontes, embrenhando-se neste fantástico mundo
do amanhecer da modernidade, onde viveram, amaram, foram (in)fiéis, dispuseram
de destinos como se fossem deuses, reinaram em benefício deles, de Castela e de
Aragão – nesta ordem -, os que ficaram conhecidos como Reis Católicos: Ysabel de
Castela e Fernando de Aragão.
1) BOSI, A. "O tempo e os tempos", In: Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p.36. iii) Idem, ibidem, p. 27.
3) AZCONA Tarsício. OpCit. p. XIII. 4) – Principalmente no que se refere ao caso “Beltraneja” , como era chamada Dona Joana, filha de
D.Joana de Portugal, mulher de Enrique IV e, possivelmente de don Beltrán de la Cueva, seu suposto
amante. Daí o apelido de “Beltraneja”. 5) Para maiores esclarecimentos ver o “Contrato de Casamento entre Ysabel e Fernando” 6) “El Estado moderno se formó ideológicamente no sólo mediante la traslación al reino de las notas
atribuidas por el derecho romano al Imperio, sino también por la adopción, por parte de la institución
política, de conceptos, imágenes, representaciones y sentimientos formados en torno de la institución
eclesiástica” In GARCIA-PELAYO, Manuel, “El Reino de Dios, arquetipo político” Madrid: Revista
de Occidente, 1959, p 225-226. 7) Para maiores referências ver: CAVALCANTI, S. M. R. S. Imagens no Espelho. PUC/SP, 1998 (tese
de doutoramento) “AS HERMANDADES”, p. 175-198. 8) FERRO, Marc. História das Colonizações: das conquistas às independências – séculos XIII a
XX. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 25. 9) MARAVALL, José Antonio. El concepto de España en la Edad Media. Madrid: Espasa Calpe,
1954, p. 506. 10) HARIOU, M. Précis élémentaires de droit constitutionel. Paris: Clio, 1930, passim. 11) WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1969, p.678-682. 12) BERNALDEZ, Andrés. Crónica de los Reyes de Castilla Don Fernando y Doña Ysabel.
Sevilla: s/ed. 1870. – anotado por el licenciado Rodrigo Caro, p.575. 13) O “Nobles Caballeros de Isabel”, organização empenhada na beatificação e na posterior
santificação de Ysabel, à semelhança dos “Caballeros de la Hispanidad”- estes com sede em Medina
del Campo, têm seus escritórios em Madrid. 14) GIL, José Maria– Mistério de Isabel, la Católica. Madrid: “Nobles Caballeros de Isabel, 1992,
p.22.
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15) GONZÁLEZ-DÓRIA, Fernando. Las reinas de España. Madrid: Cometa, 1981,p.10-11. 16) AZCONA, Tarsício Pe. Isabel la Católica. Estudio crítico de su vida y su reynado.
Madrid:BAE, 1993, p. 11. 17) Cronicón de Valladolid, Diário del doctor Toledo: CODOIN, XIII, 20. O “Doutor Toledo”,
também citado por outros historiadores como Gaibrois, Walsh, dentre outros, não aparece nas fontes
documentais da época. Entretanto, após a pesquisa nos “Nobles caballeros”, conseguí uma pista de
que poderia encontrar algo sobre esta personagem, testemunha do nascimento de Ysabel, na Collección
Documentos Inéditos para la Historia de España, editados por Miguel Salvá y Sáinz Baranda. Com
efeito, nesta Coleção, no volume XIII da edição de 1848, na “Advertencia Preliminar”, pp. 7-10,
aparece que o doutor Toledo era médico da Rainha Católica, residente em Valladolid, de cuja
Universidade era médico. 18) PALENCIA, Alonso. Décadas. I, livro 2, cap. 1. 19) SÍGULO, Lucio Marineo. De rebus Hispaniae memorabilibus. Cap. 19. 20) Archivo Municipal de Segóvia, Cartas de Reyes y Principes. Leg. 20 número 4 (original).
Entretanto, para esta consulta, utilizamos a publicação em facsímile do Museo Español de
Antigüedades, IV, 283. Há também uma cópia do documento em CLEMENCIN, Diogo. Elogio de la
reyna Católica, D. Isabela. Madrid: Memórias de la Real Academia de la História, tomo VI, pp. 1-
54, 1821. (Discurso lido na Real Academia de la Historia em 31 de julho de 1807). 21) PULGAR, Hernando del. Claros Varones de Castilla. Letras. Glosa de las Coplas de Mingo
Revulgo. Madrid, Clasicos Castellanos: J. Dominguez Bordona, 1942, p. 35. 22) Testamento de Juan II. C.I.C. tomo IV, doc. 239, p. 36. As personagens citadas neste momento por
Juan II são Don Lope Barrientos, bispo de Cuenca, e o prior de Guadalupe, frei Gonzalo de Illescas.
Além destes dois, o rei acrescenta como co-tutores dos príncipes, Juan Padilha, seu camareiro e o
comendador de Montiel, Gonzalo Chacón. Este último acompanhará a Rainha durante toda a sua vida,
como conselheiro, confidente, secretário “sócio” em empreitadas e, principalmente, como conselheiro
político, uma vez que sua escola havia sido sua atuação como secretário particular de Don Álvaro de
Luna, um dos homens que mais entendia e tentava preservar o poder real absoluto que tanto encantava
Ysabel. 23) Apud GIL, J. M. Misterio de Isabel la Católica. Madrid: Comité Nacional Beatificación Isabel la
Católica – (Capítulo de Nobles Caballeros de Isabel), 1992, p. 125. 24) Esse assunto da proposta de casamento de Fernando à Beltraneja é tratado por GALÁN, Juan
Eslava. La Vida y Época de Los Reyes Católicos. Barcelona: Planeta, 1996, p. 252. O autor, embora
historiador de renome, não menciona sua fonte para essa afirmativa que só nesta sua obra encontrei.
Parece-me estranho que tal fato não seja mencionado por outros estudiosos do assunto, mas,
analisando a bibliografia citada por Galán, vejo que utilizou praticamente a mesma que utilizei, assim,
cito o fato por achá-lo, no mínimo, instigante e esclareço que não achei dele referência em outros
autores.
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25) RUMEU DE ARMAS, Antonio. Nueva Luz sobre las Capitulaciones de Santa Fe de 1492.
Madrid: C.S.I.C., 1985, p. 239 – Apéndice I. 26) Tomo aqui praxis no sentido utilizado por Michel Debrun: “... essa interpenetração e essa interdependência entre a consciência e a ação política que nos propomos a chamar praxis”. DEBRUN, Michel. O fato Político. Rio de Janeiro: FGV, 1962, p.55. 27) MARTÍNEZ, Gil. Muerte y sociedad en la España de los Áustrias. Madrid: Universidad
Complutense, 1991 (2 Vols.), p .775/778. 28) GARCÍA FERNÁNDEZ, Máximo. Los Castellanos y la Muerte - religiosidad y comportamientos
colectivos en el Antiguo Régimen. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1996, p.60. 29) Carta de Pedro Mártir de Angleria dirigida ao Arcebispo de Granada e ao conde de Tendilla, datada
de Medina del Campo, 3 de outubro de 1504. 30) Alguns historiadores discutem ainda o local exato onde Ysabel teria Testado e morrido, dando
como opção o Castelo de la Mota, situado nos arredores de Medina del Campo. Entretanto, Luiz
Suárez Fernández - um dos maiores conhecedores da documentação e da história de Ysabel, aponta o
“palácio real de Medina del Campo, situado en una esquina de la plaza junto a la Colegiata de San
Antolín” -SUAREZ FERNÁNDEZ, Luiz. El Camino hace Europa. Madrid: Rialp, 1990, p. 338. 31) A.G.S., “Diversos de Castilla”, 1-70: “Otra del Rey comunicando que oy murio la Reyna”. 32) Carta de Pedro Mártyr de Angleria ao Arcebispo de Granada e ao Conde de Tendilla, datada de
Medina del Campo, 22 de novembro de 1504. A.G.S. “Diversos de Castilla”, 4-56. 33) Carta de Pedro Mártyr de Angleria ao Licenciado Polanco, 15/10/1504. In: SANCHEZ, Antonio B.
Sobre Medina del Campo y la Reyna Agraviada. Valladolid: Sever Cuesta, Prado, 1994, p. 91.
34) Le GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 13. 35) ALFONSO X. Las Siete Partidas. Partida Sexta, Título 1: De los Testamentos. 36) O Testamento está no “Archivo General de Simancas” - A.G.S. - no item “Testamentos Reales” e
foi publicado pela primeira vez em 1944, pelo mesmo Arquivo. Existe uma reprodução em faxsímile,
edição de luxo, publicada pela Dirección General de Archivos y Bibliotecas del Ministerio de la
Educación y Ciencia, para comemorar o IV centenário do casamento de Ysabel e Fernando
(Valladolid, outubro de 1469 - Madrid, outubro 1970). No Arquivo da Causa de Isabel la Católica -
C.I.C. - onde estão todos os papéis apresentados à Santa Sé para a canonização de Ysabel - o
Testamento encontra-se no tomo XXIV, doc. 2961, págs. 19-38.
37) GARCÍA FERNÁNDEZ, Máximo. Los Castellanos y la Muerte- Religiosidad y comportamientos
colectivos en el Antiguo Régimen. Valladolid: Junta de Castilla y León, 1996, p. 24. 38) MELGAREJO, Pedro. Compendio de contratos públicos. Autos de particiones, ejecutivos y de
residencia. Madrid: s/ed. 1704. p. 86. 39) MELGAREJO, Pedro. OpCit. p. 76. 40) DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Zahar/ UFRJ, 1993, p. 61-62.
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