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MJ . P4_po, Junho 2011
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Prevenção Quaternária: Antes de mais nada, não prejudicar.
M. Jamoulle, médico da família
O terror accentuou-se. Năo se sabia já quem estava săo, nem quem estava doido
Joachim Maria Machado de Assiss (1839-1908) O Alienista
[email protected] . Bélgica
Texto preparado para o 11º Congres of the Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC),
Brasília, 23-26 de junho de 2011
Artigo A prevenção clínica vem sendo organizada de maneira cronológica desde meados do século XX. Uma
mudança paradigmática de uma organização de prevenção de base cronológica para uma de base
pragmática oferece uma nova compreensão do trabalho e, especificamente, das atividades
preventivas dos médicos, e traz à luz o conceito de prevenção quaternária, um olhar crítico sobre a
atividade médica com ênfase na necessidade de não prejudicar.
Analisando o trabalho de um médico na Prática Clínica/Medicina de Família: Como não prejudicar?
O bom médico, como definido por um de meus colegas, há de ser um bom ator. O forte
compromisso com a equidade, um histórico científico e bons relacionamentos são as principais
qualidades necessárias a um profissional no campo da medicina1. Padrões éticos e boas relações não
são muito difíceis de entender ou definir, mas o mesmo não pode ser dito a respeito do “histórico no
campo da ciência” na prestação de serviços em saúde.
A boa medicina
Nos últimos trinta anos de minha prática profissional, a tecnologia melhorou consideravelmente o
tratamento de algumas categorias de doenças. Linfomas de Hodgkin não são mais um prenúncio
inevitável de morte e fumantes podem continuar a fumar depois de um stent coronário. Embora não
esteja claro se os médicos têm responsabilidade por estados de saúde resultantes de desvantagens
sociais2, eles sem dúvida podem melhorar uma saúde debilitada e lucrar com isso. Viciados em
drogas não são os melhores amigos dos médicos até terem hepatite C, e a ética médica exige que
salvemos mais e mais pessoas sofrendo de doenças potencialmente fatais e lidemos com pacientes
idosos que são abandonados por suas famílias e amontoados em asilos mantidos por fundos de
investimento3. Fica claro que em países de alto custo chegamos aos limites da boa medicina, mas
ninguém sabe qual seria a alternativa.
A má medicina
O serviço de saúde vem sendo poluído por forças impulsionadas pelo mercado4, e o conhecimento
científico foi transferido dos cuidados para a avaliação de riscos. Virtualmente todos os seres
humanos correm risco de ficarem doentes ao abordarem médicos5. O médico é onipresente, do
berço à cova, e toda a existência é medicalizada6,7,8. As classificações de doenças são adaptadas às
necessidades da indústria9 enquanto conflitos de interesse enfraquecem a confiança dos pacientes
em órgãos de saúde10 e nos chamados ‘especialistas’11,12 em medicina ou saúde mental. A distinção
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tradicional entre enfermidade e doença, embora profundamente arraigada na cultura ocidental, está
desaparecendo. Em nossa sociedade, não há espaço para uma pessoa enferma que não tenha uma
doença, enquanto aquele que tem uma doença e não está enfermo é visto como alguém tentando
evitar a medicina. A distinção entre normal e patológico13 se esvazia, à medida que empresas e
psiquiatras predem as emoções humanas e vendem doenças ao medicar comportamentos como
timidez14. Os gastos com saúde continuam a crescer, impulsionados por tratamentos em excesso15 e
medicina defensiva. E por toda parte, as ‘necessidades humanas’ estão sendo transformadas em
‘perfis de usuário’16.
O bom caminho
Nesta atmosfera de pressão econômica, seria razoável indagar como é possível ouvir o paciente, e
tratá-lo de forma científica e dentro de limites aceitáveis definidos pela ética médica. Um dos
principais argumentos dos criadores de doenças é a importância crescente atribuída ao risco, e a
costumeira confusão entre risco e doença no dia-a-dia profissional dos médicos. Quantos pacientes
hipertensos não recebem tratamento para sua ‘doença’, ainda que a hipertensão sem complicações
seja apenas um sintoma? O que deveríamos pensar a respeito da hipercolesterolemia e de outros
marcadores biomédicos cujo papel na prevenção de doenças específicas e na busca por marcadores
pré-doença é questionado17? Passar do controle de doenças para a administração de riscos18 em
nome da prevenção, significa que todos os seres humanos são candidatos para remédios. De acordo
com Dr. Knock na magistral peça de Jules Roland19, todo homem saudável é um paciente sem o saber
(‘Tout homme bien portant est un malade qui s’ignore’). Sabemos que as ações preventivas são a
base da mercantilização da medicina20 e torna-se mais e mais difícil separar a boa medicina da má
medicina.
Vejamos como um clínico geral básico poderia lidar com todas essas contradições e lacunas éticas.
Lidando com a prevenção clínica, de doenças comunicáveis aos cuidados
controlados, a principal corrente da Prática Clínica/Medicina de Família
Na busca do caminho correto, com dúvidas persistentes quanto à abordagem científica, saber a coisa
certa a fazer no momento certo é um desafio diário para um genuíno clínico geral. A continuidade
dos cuidados, um dos aspectos centrais da Prática Clínica/Medicina de Família, baseia-se, entre
outros fatores, em bons relacionamentos e na disponibilidade de dados pessoais do paciente. A
continuidade também depende do tempo e do quão bem o médico conhece o paciente. Ao acumular
informações pessoais de um paciente em particular e acompanhá-lo ao longo dos anos, o clínico
geral pode se tornar o organizador de atividades preventivas. De fato, a prevenção clínica implica no
controle de um dado processo ao longo da vida de um paciente. A ênfase excessiva na prevenção
clínica é apenas um fenômeno recente. O superdesenvolvimento do conceito de prevenção é
resultado do uso extensivo do conceito de diagnóstico21.
A ideia de prevenção é relativamente recente na história da medicina. Embora a quarentena
preventiva tenha surgido na Croácia durante o século XIV, uma profunda medicalização das medidas
de quarentena ocorreria apenas nos primeiros 30 anos do século XX. Em 1903, o termo ‘lazaretto’
(usado especialmente para a peste) foi substituído pelo termo ‘estação de saúde’, quando na Europa
– particularmente na França e na Itália – a distinção entre pessoas ‘doentes’, com ‘suspeita de
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doença’ e ‘saudáveis’ começou a ganhar importância na medicina22. Até o início do século XX, a
prevenção era uma atividade relacionada puramente à saúde pública, e tratava da compreensão e
controle de doenças comunicáveis23.
Linha do tempo e cuidados focados na doença.
O termo prevenção primária foi cunhado no fim da década de 1940 por Leavell & Clark24 e foi usado
para descrever “medidas aplicáveis a uma doença ou grupo de doenças em particular de forma a
interceptar as causas da doença antes que estas envolvam o homem”. A prevenção secundária
consiste num conjunto de medidas utilizadas para a detecção precoce e imediata intervenção para o
controle de um problema ou doença e a minimização de suas consequências, enquanto a prevenção
terciária se foca na redução de maiores complicações de uma doença ou problema existente, através
de tratamento e reabilitação25.
Embora esses conceitos tenham sido amplamente usados e ensinados no mundo todo para gerações
de estudantes de medicina, alguns autores argumentam que as definições dos diferentes níveis de
prevenção não são específicas o bastante para serem usadas por todos da maneira apropriada26. De
fato, ainda que haja grande consenso a respeito da prevenção primária, o controle de processos e a
promoção da saúde antes do surgimento de qualquer problema, o termo prevenção secundária varia
de acordo com o contexto médico. Ele é usado principalmente no sentido cronológico – significando
“após” – para cardiologistas e para a indústria farmacêutica, enquanto para clínicos e
epidemiologistas tem o sentido de “antes da ocorrência de um evento dramático suspeitado” na
triagem de doenças.
O conceito de prevenção terciária, que naturalmente inclui cuidados curativos, se refere a processos
de reabilitação assim como à prevenção de complicações, mas não é amplamente usado. No banco
de dados MESH, a prevenção terciária é definida como “medidas voltadas a fornecer serviços
adequados de apoio e reabilitação para minimizar a morbidade e maximizar a qualidade de vida após
a presença de uma doença ou lesão de longo prazo.” Quando buscado isoladamente no Pubmed, o
termo aparece apenas 5 vezes, mas constitui uma parte importante da literatura em cuidados
controlados.
Esta visão cronológica, definida puramente por médicos e centrada na doença, levou a uma proposta
por Bury em 1988 de uso do termo prevenção quaternária no sentido cronológico, para definir os
cuidados paliativos27,28,29. A Figura 1 ilustra uma visão geral cronológica das atividades médicas. O
problema de saúde a ser prevenido pode ser posicionado em qualquer ponto ao longo de toda a
linha de tempo de alfa a ômega, do berço à cova.
Linha do tempo e atendimento centrado no paciente. Mc Whinney e sua abordagem de atendimento centrado no paciente30 propuseram uma nova
perspectiva nas atividades de um médico. Quando os conceitos são posicionados da mesma forma,
uma cruz entre enfermidade e doença resulta numa figura interessante. Em 1986, propus cruzar
ciência e consciência para delimitar quatro nebulosas31.
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health issue
Time line
Before After
Primary Secondary Tertiary Quaternary
Chronological view of medical activity fields
Level & Clark 1958 Bury 1988
⍺ ⍵
Prevention Screening Curative & Rehabilitation
Palliative
Figura 1 Distribuição cronológica das atividades médicas. Aqui, o problema de saúde ocorre antes que o paciente se sinta enfermo, logo os procedimentos de triagem se aplicam (prevenção secundária). O termo prevenção Quaternária é usado aqui no sentido cronológico.
O termo “nebulosa” é usado devido ao fato de os limites entre saúde e enfermidade e entre saúde e
doença não serem claramente definidos. Contudo, na prática do dia-a-dia a distinção é comumente
usada. A ciência determinará se a doença está ou não presente; os pacientes farão a distinção entre
estar enfermo e estar bem. É válido notar que em 1994, Hellström também cruzou os conceitos de
enfermidade e doença da mesma maneira. Numa apresentação levemente diferente, ele descreveu
quatro tipos de percepção entre paciente e médico e entre o que é estar enfermo e o que não é32.
Ao criar nossas caixas baseadas no relacionamento entre o profissional de saúde e o paciente, nota-
se imediatamente que a linha de tempo do desenvolvimento da doença agora se encontra
obliquamente orientada da esquerda para a direita. Qualquer um pode ficar doente e morrer, tanto
médicos como pacientes ( Figura 2)!
De fato, se o paciente se encontra em boa saúde ou se sente saudável e seu médico não encontra
nada de errado com ele, este é o contexto ideal para empregar uma atitude primária preventiva (I)
tal como imunização ou educação em saúde.
O médico, porém, usa de todos os meios em seu poder para descobrir uma enfermidade no indivíduo
que se sente saudável. Este é o objetivo de triagens e outros exames preventivos secundários (II) tais
como triagens para Escoliose, DST e câncer.
Na Figura 2, os quatro campos de atividade de Prática Clínica/Medicina de Família
correspondem a quatro tipos de atividade (de prevenção). O paciente não está enfermo e o médico
inicia um processo de promoção de saúde ou uma campanha de imunização; o paciente não está
enfermo e o médico está fazendo uma triagem para doenças; infelizmente, o médico encontra a
doença, e agora o paciente sabe estar enfermo (mas por vezes se recusará a aceitar). Nesta fase, o
médico trata do paciente, busca evitar complicações e inicia a reabilitação.
Visão cronológica dos campos de atividade médica
problema de saúde
antes depois
Primário
Prevenção
Secundário Terciário Quaternário
Triagem Curativo & Reabilitação
Paliativo
Linha do tempo
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5
⍺
⍵
Relational view of medical activity fields
Providers
Pati
ent
Disease
Ilnes
s
(-)
(-)
(+)
(+)
I II
IIIIV
Jamoulle 1986 Figura 2: Quatro campos para o encontro paciente/médico com base em relacionamentos
Se o paciente e o médico concordam em aceitar a realidade do problema, nos encontramos no
campo curativo. Diabetes, pressão alta, doença de Lyme e cardiopatias devem obviamente ser
tratadas. Então, será preciso lançar um olhar crítico na atividade médica em si, e evitar complicações.
Mais ainda, estas enfermidades de longo prazo levam a uma nova fase em que o médico proporá a
reabilitação. A redução de complicações, somada à reabilitação, por definição implicam na prevenção
terciária (III)
O quarto campo não é o mais fácil. O paciente se sente enfermo e o médico não encontra nada de
errado, encontra a causa errada, ou não encontra causa alguma quando há uma. A promoção da
saúde, a triagem e as atividades médicas podem lançar o paciente neste quarto campo.
Assim, resta o quarto campo. O paciente tem medo e sofre, mas a ciência não oferece qualquer
ajuda. Este é o campo da descrença e muitas vezes do escárnio, onde surgem medos ancestrais. Com
frequência, é o resultado da medicalização de medos. Por isso temos invasões de pessoas com
queixas cardíacas na manhã de segunda-feira, por terem visto um site ou programa de tevê sobre
cardiopatias na noite de domingo; mulheres com cancerofobia como resultado de todas as
mensagens que ouvem sobre o câncer de mama; e pacientes “normais” patologizando tudo que
desvie da “normalidade”. Está claro que a prática médica em si pode ser a causa de questões graves,
seja qual for o setor: primário, secundário ou terciário.
Esta visão relacional se encaixa perfeitamente na definição de prevenção do
Wonca
As três primeiras formas de prevenção foram definidas e publicadas em 1995 pelo Comitê
Internacional de Classificação do WONCA no Glossário de Prática Clínica e Medicina de Família33. As
três primeiras definições estão perfeitamente adaptadas ao campo que ocupam. A existência de uma
outra, isto, é, da prevenção quaternária, parece questão de tempo. Usando as outras definições
como um modelo, o autor propos a seguinte definição num encontro do Comitê Internacional de
Classificação WONCA em Hong Kong em 199534:
Profissional
Doença P
acie
nte
Enfe
rmid
ade
Visão relacional dos campos de atividade médica
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Com base no modelo das definições, esta seria, portanto:
Ação realizada para identificar um paciente ou população sob risco de medicalização excessiva,
para protegê-los de intervenções médicas invasivas e oferecer a eles procedimentos de
tratamento científica e medicamente aceitáveis.
Esta definição foi adotada pelo Comitê Internacional de Classificação do WONCA durante seu
encontro em Durham em 1999 e foi publicada no Dicionário WONCA para Prática Clínica/Medicina
de Família35. Quando posicionadas na tabela de quatro áreas, as definições, incluindo esta quarta, se
encaixam perfeitamente. ( Figura 3)
Consciência ou
sensação do
paciente
sensação de
saúde
sensação de
enfermidade
Conhecimento científico ou do médico, evolução natural da doença
Ausente------------------------------------> Presente
I
(Prevenção) Primária
Ação realizada para evitar ou remover a
causa de um problema de saúde num
indivíduo ou população antes que ele se
manifeste. Inclui promoção de saúde e
proteção específica
(ex. imunização)
II
(Prevenção) Secundária
Ação realizada para detectar um problema de
saúde em estágio inicial num indivíduo ou
população, dessa forma facilitando a cura, ou
reduzindo ou prevenindo que se espalhe ou
cause efeitos de longo prazo
(ex. métodos, triagem, busca de casos e
diagnóstico precoce)
IV
(Prevenção) Quaternária
Prevenção Quaternária: Ação tomada para
identificar um paciente sob risco de
medicalização excessiva, para protegê-lo de
novas invasões médicas, e para sugerir
intervenções eticamente aceitáveis.
III
(Prevenção) Terciária
Ação realizada para reduzir os efeitos crônicos
de um problema de saúde num indivíduo ou
população ao minimizar o prejuízo funcional
em consequência de problema de saúde agudo
ou crônico
(ex. prevenção de complicações por diabetes).
Inclui reabilitação.
Figura 3 Quatro domínios da prevenção na prática clínica. Nesta tabela, a prevenção quaternária é usada como resultado de um relacionamento.
Esta tabela é particularmente eficaz ao ensinar prevenção a estudantes. Eles nunca esquecem o
conteúdo das caixas.
Na verdade, é possível ler o conteúdo das caixas sem o termo “prevenção” e considerar os quatro
campos como as atividades do médico, em que o terceiro é curativo com foco nas complicações e no
processo de reabilitação. A tabela reflete perfeitamente os deveres do clínico geral durante a vida
inteira do paciente. Esta é a base dos cuidados integrados, que recomenda um misto de cuidados
curativos e preventivos. É uma prática normal para um clínico tratar angina (campo III), perguntas
sobre os hábitos de fumo do paciente (campo I), medir o nível de glicose de um paciente diabético
(campo III), perguntar a uma paciente se ela fez um exame Papanicolau este ano (campo II), e, ao
mesmo tempo, ajudá-la a superar suas ansiedades ao ouvi-la com atenção (campo IV).
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Prevenção quaternária, subproduto de relacionamentos Mesmo sendo persuadidos de que um “check-up” numa pessoa saudável é algo que não faz sentido,
de um ponto de vista médico36, como lidar com um paciente persistente ou seu médico, que
atribuem alto valor à detecção de doenças insidiosas, na ausência de provas da eficácia de tal
atividade37? Como evitar prescrições subsequentes de novos fármacos, caros e similares a outros já
existentes, por um especialista? Como evitar cair nas armadilhas da medicina defensiva ou da
indústria farmacêutica, que precisa de nós38? Como saber se um processo em particular, seja em
qual for o campo (primário, secundário ou terciário), é baseado em conhecimento científico? As
respostas a todas essas perguntas formam a base da prevenção quaternária, que compreende vários
domínios. A prevenção Quaternária é uma forma de questionar e compreender continuamente os
limites de nosso trabalho.
A consulta é um encontro entre dois seres humanos, em que um é o paciente, assumindo o papel do
enfermo, enquanto o outro assume o papel terapêutico. É também um encontro entre conhecimento
e sensação. O conhecimento do médico (verdadeiro ou falso) influencia os pensamentos
(verdadeiros ou falsos) do paciente, num relacionamento dialético. De certa forma, o encontro
paciente-médico é um encontro entre ciência e consciência. O termo ciência, como usado aqui,
compreende o conhecimento do ser biológico, mental e social, assim como a observação do que
ocorre aqui e agora, uma observação cibernética da consulta em si, de certa maneira. Através de seu
treinamento, o médico inevitavelmente confronta o paciente com a doença. É seu trabalho revelá-la.
Ele ou ela será gratificado ao, enfim, encontrar o mal, sempre expandindo os limites da exploração
diagnóstica. Isto poderia explicar parcialmente a importância e o alto custo da medicina defensiva.
Os pacientes, por sua parte, embora mentalmente saudáveis, são inevitável e instintivamente
atraídos em direção aos territórios incertos da enfermidade e da morte. Eles são incapazes de resistir
à ansiedade gerada pelo fato de que em nossa civilização, que, ao menos em nossa civilização norte-
ocidental, a doença significa exclusão social, e o corpo e o corpo saudável são valores sagrados.
É natural que pacientes sejam capazes de criar seu próprio estado de enfermidade. Uma sensação de
enfermidade sem pano de fundo somático é típica em seres humanos. Este fenômeno sempre foi
conhecido como hipocondria ou histeria. A sensação de enfermidade sem embasamento somático é,
como a risada, típica dos humanos. Este fenômeno, em casos graves, foi sempre conhecido como
hipocondria ou histeria. O termo corrente para isso é distúrbio somatoforme. Os limites desta
classificação, contudo, permanecem pouco claros. Sua prevalência parece ser proporcional ao
número de terapeutas disponíveis. Seja médico ou o medicamento quem engana ao criar uma
pessoa enferma a partir de uma saudável, não há um nome ou definição para o “erro médico do
excesso”. É uma cena adequada para um personagem de Woody Allen, ou onde Jules Romains
encontra Molière e onde o Dr. Knock faz feliz o Inválido Imaginárioa. Na peça de Jules Romains, Dr.
Knock, um charlatão, toma o lugar do velho clínico de um vilarejo. Rapidamente, consegue convencer
a todos de que estão enfermos. Em vez de ter ressentimentos para com ele, a população acaba
adorando o novo doutor, que por sua vez faz fortuna e traz prosperidade ao vilarejo transformando-
o num grande hospital39.
a O Inválido Imaginário na Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Imaginary_Invalid. Para os falantes de francês, apreciem Louis Jouvet interpretando Dr. Knock em http://www.youtube.com/watch?v=gMqEkyNnjbE&feature=related
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Prevenção quaternária, um campo de intervenção A prevenção quaternária (campo IV) baseada em relacionamentos inclui todas as intervenções
contínuas feitas pelos médicos para controlar a ansiedade e falta de conhecimento dos pacientes e a
sua própria.
Neste sentido, a aplicação das diretrizes da Medicina Baseada em Evidências (BEM) pertence ao
campo IV. O campo quaternário é onde os pacientes e médicos se perdem. Para evitar ficar preso
neste campo, algumas medidas são necessárias. Os estudantes de medicina precisam aprender a
lidar com as preocupações dos pacientes e como controlar suas próprias dúvidas. Os médicos devem
implementar medidas de garantia de qualidade, aprender a aplicar as diretrizes da BEM e identificar
a mercantilização de doenças. Os médicos precisam aprender que, embora possa ser difícil, é melhor
não fazer nada e interromper investigações inúteis para tentar encontrar doenças raras não
detectadas no Atendimento Primário.
Para os outros três campos, medidas precisam ser tomadas para evitar que o paciente caia no quarto
quadrante. Informações erradas obtidas na Internet (campo I) são fonte de ansiedade e demanda
injustificada por tratamento. Triagens para câncer de próstata ou mama (campo II) podem lançar o
paciente no quarto campo caso ele ou ela se torne cancerofóbico. Um texto pouco claro numa
receita médica, algo que não seja explicado de forma clara o bastante, pode também desencadear a
ansiedade do paciente. Logo, é necessário o controle permanente do comportamento, comunicação
e propostas do médico para evitar quaisquer danos.
A mudança de uma organização da prevenção baseada numa linha de tempo para uma organização
baseada no relacionamento abre uma nova visão no trabalho do médico. Ele ou ela se observa, e
questiona os limites éticos de suas atividades. Neste sentido, o campo IV é voltado mais ao médico
do que ao paciente.
Fadma, 30 – Magrebina
Está preocupada com uma mancha escura no
mamilo. Ela está inquieta e estressada, fala
rapidamente. Descobriu ontem que, há 10 anos, um
homem cometeu suicídio na casa que acabou de
comprar. Ela já foi possuída, e foi exorcizada por
um conhecido Iman. Ela agora teme que espíritos
malignos vão fazê-la adoecer e vão matá-la. Sua
última mamografia, feita há apenas dois meses, foi
negativa. Contudo, ela quer se certificar de que
essa mancha escura não é nada grave. Ela se senta
e mostra o seio. Após ser ouvida, examinada e
reassegurada, ela deixa o consultório com a mente
tranquila.
Elisabeth, 72 – Belga
A situação é preocupante. Esta paciente vem
sendo acompanhada há um longo tempo para
câncer de mama. O primeiro erro foi selecionar a
divisão CEA em vez de CA 15-3. O marcador de
CEA é muito alto e a paciente, cujo marido morreu
de câncer no cólon, entende imediatamente que a
situação é grave. O cólon se mostra negativo por
injeção e o exame de sangue para controle teve
resultado normal. Era um falso positivo. Ela já
sobreviveu a um câncer de mama e cuidava do
marido, portanto conhece o nível de sofrimento
envolvido. Ela não acredita em mim, acha que eu
adulterei os números e pede outro exame. Levará
várias consultas e muita paciência e atenção para
aplacar suas dúvidas e reconquistar sua confiança.
MJ, medicina de Família, Bélgica, Setembro de 2002. CEA e CA-15-3 são marcadores biológicos destinados ao
acompanhamento de câncer (CEA para câncer de cólon e CA-15-3 para câncer de mama)
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Dois casos clínicos Podemos preencher o quarto campo com dezenas de diagnósticos assim chamados. De sintomas
somáticos funcionais40 a doenças sem doença41, de sintomas sem explicação42 a somatização43, a
literatura médica apresenta casos incontáveis em que médicos se deparam com a alarmante
pergunta que todos eles precisam confrontar mais cedo ou mais tarde: o que eu posso fazer aqui?
Para ilustrar essas situações difíceis, quando o fazer deve ser substituído pelo ouvir, resumi dois
casos que encontrei em meu trabalho diário. Ambos os casos descrevem uma pessoa saudável que
ficou muito preocupada com a própria saúde. O primeiro caso está relacionado a fatores culturais do
paciente e o segundo a um erro laboratorial. Ambos são uma ilustração típica do campo IV.
Impacto internacional do conceito de prevenção quaternária A prevenção quaternária é um termo novo para um conceito antigo: antes de mais nada, não
prejudicar. Os limites obviamente não são novos, mas o conceito de prevenção quaternária
estabelece um teto para um conjunto de disciplinas e atitudes tais como medicina baseada em
evidências, garantia de qualidade, medicina defensiva, propostas nosográficas abusivas e questões
éticas relacionadas ao paciente de difícil ajuda.
A prevenção quaternária, uma proposta surgida inicialmente como uma brincadeira, pouco a pouco
ganhou mais importância entre médicos de família. O termo apareceu pela primeira vez em inglês
num pôster numa conferência Wonca34. Desde então, foi aceito no Dicionário Wonca de Prática
Clínica35, publicado em francês44 e utilizado por vários autores americanosErreur ! Signet non défini.,
espanhóis45, 46, 47, portugueses48 e brasileiros49. Foi aprovado pela UEMO50 e incorporado nas
recomendações para regulamentos do atendimento de saúde primário no Brasil51. Em 2010, foi o
tema de uma oficina especial do Wonca, assim como de um texto coletivo52 publicado em sete
idiomas. Há também um website que busca listar as publicações referentes ao termob. A Sociedade
Brasileira de Medicina de Família e Comunidadec presta homenagem a ele em seu 11º Congresso e a
Equipo Cescad dedicará um seminário a ele em Barcelona em 2011, apoiado por discussões online.
Os limites operacionais do conhecimento e questões éticas relacionadas são respondidos através do
prisma do relacionamento paciente-médico. Para o futuro da prática clínica e da medicina de família,
a implementação da prevenção quaternária significa abrir novos campos de pesquisa.
b Menções na Web à prevenção quaternária http://docpatient.net/mj/P4_citations.htm
c Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) http://www.sbmfc.org.br d Equipo Cesca, Madri, Espanha; http://www.equipocesca.org/
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Notas
1 G. Ibanez, P. Cornet and C. Minguet, “Qu’est-ce qu’un bon médecin?” [What is a good physician?], Pédagogie
Médicale, (2011) 11(3), 151-165.
2 S. Isaacs and S. Schroeder, “The Ignored Determinant of the Nation’s Health”, N Engl J Med (2004) 351(11),
1137-42.
3 Anon. “Many Nursing Being Acquired by Wall Street Investment Firms”, Kaiser Health News (2007), acessado
em 1º de junho de 2011 <http://www.kaiserhealthnews.org/daily-reports/2007/september/24/dr00047701.aspx?referrer=search>.
4 Oshikoya KA, Oreagba I, Adeyemi O. Sources of drug information and their influence on the prescribing
behaviour of doctors in a teaching hospital in Ibadan, Nigeria. The Pan African Medical Journal. 9:13. 2011.
5 R. Moynihan, “Who benefits from treating prehypertension?”, BMJ (2010) 341(Aug 24 2), c4442-c4442.
6 R. Gori and M-JD. Volgo, La santé totalitaire: Essai sur la médicalisation de l’existence, (Flammarion, 2009).
7 P. Conrad, “Medicalization and Social Control”, Annu. Rev. Sociol. (1992) 18(1), 209-232.
8 P. Conrad, T. Mackie and A. Mehrotra, “Estimating the costs of medicalization”, Soc Sci Med. (2010) 70(12), 1943-1947.
9 R. Moynihan “A new deal on disease definition”, BMJ, (2011), 342, d2548.
10 I. Frachon, Mediator 150 mg: Sous-titre censuré, (Fr: Editions-dialogues, 2010).
11 P. Alonso-Coello, A.L.García-Franco , G. Guyatt and R. Moynihan, “Drugs for pre-osteoporosis: prevention or disease mongering?”, BMJ (2008) 336(7636), 126 -129.
12 L. Cosgrove, S. Krimsky, M. Vijayaraghavan and L. Schneider, “Financial Ties between DSM-IV Panel Members and the Pharmaceutical Industry”, Psychother Psychosom (2006) 75(3), 154-160.
13 G. Canguilhem, The Normal and the Pathological. (New edition, Zone Books, 1991).
14 C. Lane, Shyness: How Normal Behavior Became a Sickness (1st ed. Yale University Press, 2008).
15 H.G. Welch, L. Schwartzl and S. Woloshin, Overdiagnosed, (1st ed. Beacon Press, 2011).
16 C. Lerouge, J. Ma, S. Sneha and K. Tolle, “User profiles and personas in the design and development of
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17 F.R. Curtiss and K.A. Fairman, “Looking for the outcomes we love in all the wrong places: the questionable value of biomarkers and investments in chronic care disease management interventions”, J Manag Care Pharm. (2008) 14(6), 563-570.
18 B. Starfield, J. Hyde, J. Gérvas and I. Heath, “The concept of prevention: a good idea gone astray?”, J Epidemiol Community Health (2008) 62(7), 580-583.
19 J. Romains, Knock ou le Triomphe de la médecine (Editions Folio, 1972).
20 I. Illich, Némésis médicale. L’expropriation de la santé (Seuil: SEUIL, 1975).
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