1.1 a condição fronteiriça na bacia do plata e na amazônia

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Este ensaio compara e aproxima os conceitos de condição fronteiriça propostos porAdriana Dorfman e por Jadson Porto. Sua primeira seção recupera brevemente ahistória do pensamento geográfico sobre fronteiras, mostrando dois momentos. Oprimeiro momento é caracterizado por uma teoria em busca de tipos universais defronteiras, geralmente organizada em pares opostos, mas sempre mobilizada peloprotagonismo do estado; no segundo momento, a busca por uma tipologia arrefece ea multidimensionalidade do poder é afirmada na fronteira, que passa a ser estudadatambém em sua interação local, com destaque para o trabalho de campo. Nasegunda seção, as duas propostas para o conceito de condição fronteiriça sãoapresentadas, buscando abordar ambas as construções teóricas e discutindo oparadoxo contido num conceito que se apoia nas especificidades da fronteira.Adriana Dorfman afirma que, na fronteira gaúcha, os agentes experimentam umacondição fronteiriça em que as diferenças se ampliam pela justaposição deexperiências nacionais, ao mesmo tempo em que se apagam através de dispositivosde transição; em outros casos, práticas e objetos geográficos são unificados (redesde infraestrutura), criados (extraterritorialidades e ilegalidades), espelhados (redescompartilhadas) e distinguidos (administração dos limites e das barreiras nacionais).Jadson Porto afirma que a condição fronteiriça amapaense resulta da ação doestado na construção da fluidez do espaço fronteiriço, tornando-o mais poroso parao capital internacional, propondo sucessivas condições fronteiriças, cada vez menosperiféricas, cada vez mais articuladas. A terceira seção apresenta o movimentocontemporâneo de securitização das fronteiras, enfocando algumas estratégiasnacionais empregadas para o arco central do Brasil e busca conclusões sobre asrelações entre a situação geográfica, o contexto político e a teoria sobre fronteiras.

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  • 1

    A CONDIO FRONTEIRIA DIANTE DA

    SECURITIZAO DAS FRONTEIRAS DO BRASIL1

    Adriana Dorfman2

    RESUMO

    Este ensaio compara e aproxima os conceitos de condio fronteiria propostos por

    Adriana Dorfman e por Jadson Porto. Sua primeira seo recupera brevemente a

    histria do pensamento geogrfico sobre fronteiras, mostrando dois momentos. O

    primeiro momento caracterizado por uma teoria em busca de tipos universais de

    fronteiras, geralmente organizada em pares opostos, mas sempre mobilizada pelo

    protagonismo do estado; no segundo momento, a busca por uma tipologia arrefece e

    a multidimensionalidade do poder afirmada na fronteira, que passa a ser estudada

    tambm em sua interao local, com destaque para o trabalho de campo. Na

    segunda seo, as duas propostas para o conceito de condio fronteiria so

    apresentadas, buscando abordar ambas as construes tericas e discutindo o

    paradoxo contido num conceito que se apoia nas especificidades da fronteira.

    Adriana Dorfman afirma que, na fronteira gacha, os agentes experimentam uma

    condio fronteiria em que as diferenas se ampliam pela justaposio de

    experincias nacionais, ao mesmo tempo em que se apagam atravs de dispositivos

    de transio; em outros casos, prticas e objetos geogrficos so unificados (redes

    de infraestrutura), criados (extraterritorialidades e ilegalidades), espelhados (redes

    compartilhadas) e distinguidos (administrao dos limites e das barreiras nacionais).

    Jadson Porto afirma que a condio fronteiria amapaense resulta da ao do

    estado na construo da fluidez do espao fronteirio, tornando-o mais poroso para

    o capital internacional, propondo sucessivas condies fronteirias, cada vez menos

    perifricas, cada vez mais articuladas. A terceira seo apresenta o movimento

    contemporneo de securitizao das fronteiras, enfocando algumas estratgias

    nacionais empregadas para o arco central do Brasil e busca concluses sobre as

    relaes entre a situao geogrfica, o contexto poltico e a teoria sobre fronteiras.

    1 A pesquisa teve apoio do CNPq. Publicado em: D. Nascimento; J. P. Rebelo. Fronteiras em

    perspectiva comparada e temas de defesa da Amaznia. Belm: EDUFPA, 2013. 2 Dra. em Geografia; professora do Departamento de Geografia e do Programa de Ps-Graduao

    em Geografia da UFRGS.

  • 2

    Palavras-chave: Fronteira. Limite. Condio fronteiria. Pensamento geogrfico.

    Securitizao das fronteiras.

    1. Introduo

    O limite internacional fruto da territorializao do estado-nao. Sua

    existncia fsica constri-se em lugares concretos que o condicionam, em regies

    plenas de vida em que convivem projetos de diferentes agentes. A conjuno da

    fisiografia, histria, povoamento, mercados e redes que os articulam explicativa do

    carter de cada fronteira. Nossas teorias tendem a privilegiar aspectos institucionais

    (ligados ao estado e ao seu regime jurdico) e econmicos na anlise dos territrios

    fronteirios, colocando o mbito cultural como uma instncia menos ou

    (in)determinante. No entanto, a esfera social , a um s tempo, aquela em que a

    histria deixa marcas e em que a geografia do presente se realiza. O texto que

    segue busca conceitos situados, afirmando que o espao social onde as fronteiras

    se desenham informar o carter de cada construo terica.

    2. Uma histria do pensamento geogrfico sobre fronteiras

    As fronteiras que abordamos aqui so objetos geogrficos ligados ao estado

    territorial moderno, materializado em espaos sobre os quais se realiza a soberania

    poltica e onde se organiza um sistema econmico, ao quais, finalmente, se vinculam

    populaes e culturas, todos operando a partir de marcadores nacionais. De modo

    bastante abrangente, falamos dos limites do territrio do estado moderno ideal que

    vm se constituindo em diferentes pontos do planeta ao longo dos ltimos trs ou

    quatro sculos, a partir dos acordos conhecidos como Tratados de Vestflia, que

    selaram a paz entre estados europeus conflitantes e puseram em cena o sistema

    internacional, o equilbrio de poder, a soberania estatal, o stado-nao com sua

    fronteira linear. A virada do sculo XVIII para o XIX relevante para as

    independncias americanas, enquanto a frica e a sia ainda abrigavam relaes

    coloniais importantes at meados do sculo XX.

  • 3

    O pensamento geogrfico combina o trabalho dos precursores com os

    diferentes contextos histricos e geogrficos em que se faz, de modo que os

    conceitos (abstratos e, supostamente, no espacializados) adaptam-se ao

    experimentado localmente. Assim, podemos falar em teorias situadas: o

    desenvolvimento terico da disciplina e o lugar em que se enunciam as teorias so

    igualmente relevantes na compreenso das ideias. Por lugar de enunciao

    entende-se o aqui/agora do autor e de seus interlocutores, nas redes de poder e

    representao que o contextualizam.

    O desafio de pensar o estado territorial moderno e suas fronteiras tem sido

    aceito pelos gegrafos, sempre em seu contexto e tradio. A gegrafa francesa

    Hlne Velasco-Graciet identifica duas fases no pensamento geogrfico sobre as

    fronteiras (VELASCO-GRACIET, 2008).

    2.1. O primeiro perodo do pensamento geogrfico sobre as fronteiras

    Cabe lembrar que a discusso dos limites do territrio estatal, iniciada ainda

    no sculo XVIII, se ocupava constantemente da busca de feies do terreno que

    pudessem corroborar com o desenho de limites naturais, considerados uma opo

    preferencial s linhas retas descoladas do compromisso com o espao fsico e,

    principalmente, com a ocupao humana a ele correspondente.

    O primeiro perodo vai esquematicamente do final do sculo XIX dcada de

    1970, com os gegrafos europeus tomando a si o estudo cientfico das fronteiras em

    meados do sculo XIX e se centrando na discusso da espacialidade da poltica e

    do poder. Esses autores so hoje os nossos clssicos, como o alemo Friedrich

    Ratzel (1844-1904), o francs Jacques Ancel (1879-1943) e o ingls Halford J.

    Mackinder (1861-1947).

    A conceituao alem baseia-se na ligao entre povos e espao, e a

    fronteira viva e mvel, o marco espacial da ao geopoltica de um estado,

    condiz com seu grau de "civilizao". Friedrich Ratzel apresenta a fronteira como o

    lugar onde deixam de existir as condies vitais necessrias expanso do territrio

    do estado, ou como o encontro com um movimento de mesma natureza, em sentido

    contrrio (RATZEL, 1990, p.148).

  • 4

    Os franceses definiam a fronteira como um elemento poltico que poderia ou

    no se apoiar noutro de ordem natural (montanha, rio) e, na dcada de 1930, o

    francs Jacques Ancel metaforiza a fronteira como isbara de poder, isto , como

    uma linha que demarca igualdade de poderes capacidade de controle entre dois

    estados (ANCEL, 1938, p.195).

    Se a fronteira europia claramente internacional, a ideia norte-americana de

    frontier aparece no sculo das independncias americanas, associada aos espaos

    vazios, ao futuro, s terras virgens e frteis dentro de um estado territorial moderno

    em construo. Para Frederick Turner (1861-1932), a fronteira

    o limite externo da onda o ponto de encontro entre a selvageria e a

    civilizao () A fronteira americana distingue-se claramente da fronteira

    europeia uma linha fortificada que corre atravs de populaes densas. O

    fato mais importante que ela se encontra no extremo mais distante da

    terra livre3.

    Assim, o frontier americano representa um movimento, significando avano

    sobre o desconhecido, espao de liberdade e criao, que tem em seu reverso a

    violncia monolgica, enquanto grenzen e frontires europeias so linhas com

    sentido militar, onde se est face a face com o inimigo, num dilogo de foras.

    Portanto, o espao onde os processos de fronteira se desenham informar o carter

    de cada construo terica. A teoria de fronteira, mesmo quando produzida em

    ambiente positivista, de expectativas de uma cincia neutra e universal, identifica o

    carter poltico, no natural da fronteira, bem como suas variadas formas materiais.

    Metodologicamente, a multiplicidade encontrada no mundo canalizada em

    formulaes nomotticas ou a conceituao em pares (viva/morta, natural/artificial

    etc.). As tipologias e classificaes levam em considerao o processo histrico

    (fronteiras esboadas, em processo de traado, vivas, no estabelecidas ou,

    finalmente, mortas); suas funes (fronteira de contato ou fronteira de separao,

    fronteira militar, econmica etc.); seu estatuto jurdico (fronteira internacional, intra-

    3 Is the outer edge of the wave the meeting point between savagery and civilization [...]. The

    American frontier is sharply distinguished from the European frontier a fortified boundary line running through dense populations. The most significant thing about the American frontier is that it lies at the hither edge of free land. (TURNER apud BABCOCK, 1965, p. 31) [traduo nossa].

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    estatal etc.) ou ainda a intensidade das relaes scio-econmicas que elas

    permitem (relaes intensas ou eventuais etc.).

    A dualidade linha (descontinuidade) / zona (regio, troca) de outra ordem,

    pois

    as abordagens diferem a respeito da temporalidade reconhecida na linha e

    na rea. Para os gegrafos franceses, ambas as formas coexistem, a linha

    coexistente com a zona. Na concepo alem, a zona precede a linha,

    pois quanto mais forte for o Estado, com mais vigor mais ele marcar suas

    fronteiras at uma linearidade perfeita.4

    Ainda segundo Velasco-Graciet, a classificao das fronteiras em tipos que

    enquadram as muitas manifestaes do objeto em esquemas descritivos totalizantes

    um gnero cientfico que no foi totalmente abandonado, embora corresponda, de

    modo geral, a um perodo pr-paradigmtico de ordenao da realidade (idem, p.2).

    Seguindo a concepo kuhniana de cincia, isso quer dizer que no havia consenso

    ou campo comum entre os tericos da fronteira, que a metodologia para os estudos

    no estava definida, sequer o vocabulrio permitia uma discusso fluente.

    2.2. O segundo perodo do pensamento geogrfico sobre as fronteiras

    Esse perodo inicia na dcada de 1970, juntamente com o resgate da

    Geopoltica do descrdito em que tinha sido lanada pela associao com o

    fascismo na primeira metade do sculo XX. Yves Lacoste (1929-) um nome central

    nessa repolitizao da Geografia. A retomada da Geopoltica numa perspectiva

    multiescalar proposta no Brasil por Bertha Becker (BECKER, 1988). Seria o ocaso

    da fronteira moderna e geopoltica, reconhecendo a existncia de populaes na

    zona de fronteira que no necessariamente se enquadram na purificao

    pressuposta pelo estado territorial moderno.

    A descolonizao certamente tem um papel relevante nesse momento. Os

    limites tnicos africanos foram desconsiderados na construo territorial colonial,

    4 Mais les approches diffrent quant la temporalit accorde tant la ligne qu la zone. Pour les

    gographes franais, les deux formes coexistent, la ligne est coexistante de la zone. Dans la conception allemande, la zone prcde la ligne au motif invoqu que plus un tat sera fort et plus il marquera avec vigueur ses frontires jusqu une linarit parfaite. (VELASCO-GRACIET, 2008, p. 1) [t.n.].

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    que privilegiava os poderes europeus e transpunha a lgica do estado territorial

    moderno para o solo africano. A maioria das fronteiras foi mantida depois da

    descolonizao, pois dialogam com o sistema jurdico internacional ancorado na

    soberania absoluta do estado. Etnicidade, religio e prticas morais, que vinham

    sendo largamente desconsideradas, surgem como territorialidades legtimas,

    enfraquecendo a fronteira-ruptura representada como europeia. Mark Bolak Funteh

    afirma que as fronteiras africanas eram zonas em que dois estados se uniam ou

    encontravam, no onde se separavam. Em outras palavras, as fronteiras africanas

    se ancoravam em contato social e tnico.5 Tambm fora da frica, a observao

    das tradies, costumes e, principalmente, das prticas das populaes fronteirias

    e de suas representaes ganha relevncia, lanando-se mo de anlises que

    levam em considerao as escalas geogrficas.

    No Brasil, o momento paradigmtico da teoria sobre fronteiras pode ser

    identificado com a conceituao proposta por Lia Osrio Machado (1998), que tem

    como base a geografia poltica brasileira e corresponde, de certa forma, clssica

    oposio entre as vises da fronteira como zona ou como linha, como lugar de

    contatos ou de rupturas. Ao atribuir ao limite caractersticas que acredita no

    pertencerem fronteira (linearidade e ruptura) a autora preserva a institucionalidade

    estatal da fronteira (em sua manifestao como limite), sem negar seu carter

    dinmico e de constante recriao. Textos posteriores enfatizam o carter sistmico

    das trocas fronteirias em suas diferentes escalas, e a simbiose entre legal e ilegal,

    territorialidade e extraterritorialidade, so revelados nos estudos sobre a fronteira

    (por exemplo, MACHADO, 1996). Em 2005, com o lanamento do Programa para o

    Desenvolvimento da Faixa de Fronteira, a proposta de Lia Osrio Machado ganha

    carter de poltica governamental, e a tipologia de interaes fronteirias do

    gegrafo francs Armand Cuisinier-Raynal resgata o esforo classificatrio, dessa

    vez em 5 tipos: margem; zona-tampo; frentes; capilar; e sinapse. (BRASIL, 2005, p.

    144). Cabe notar que temos uma anlise da fronteira em diferentes escalas: como

    lugar, zona, faixa, arcos e em sua posio nos fluxos inter- e paraestatais.

    5 Boundary to them was the zone where two states were united or joined together, not separated. In

    other words, African boundaries were usually rooted in ethnic and social contact. (FUNTEH, 2012, p.7) (t.n.)

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    Voltando ideia de paradigma, pode-se dizer que hoje bastante consensual

    o entendimento da relao gentica entre a formao dos estados territoriais

    modernos e de suas fronteiras, do carter simultaneamente linear do limite

    internacional e zonal da fronteira e da importncia metodolgica de trabalhos de

    campo no reconhecimento da diversidade desse objeto geogrfico.

    Esclarecendo esse ltimo ponto, lembremos que a diversidade das fronteiras

    concretas constantemente ofuscada pela eloquncia dos discursos nacionais, que

    as prticas fronteirias frequentemente se afastam das normas nacionais, no sendo

    por elas descritas e que a fronteira apresenta dinmicas aceleradas. Assim, so os

    trabalhos de campo que permitem a observao e o contato com a populao, a

    gerao de fontes e a aproximao aos sentidos locais dos objetos em anlise.

    3. Duas propostas para o conceito de condio fronteiria

    Claramente ligadas ao segundo momento do pensamento geogrfico sobre

    fronteiras, duas propostas para o conceito de condio fronteiria surgem no Brasil

    no final dos anos 2000. Conforme o gegrafo Jadson Porto j registrou, o dilogo

    sobre o sentido de uma condio fronteiria iniciou-se em 2008 e vem gerando

    trabalhos e trocas desde ento (PORTO, 2011).

    3.1. A condio fronteiria gacha

    Em 2000, comecei a estudar o cotidiano nas fronteiras e as prticas dos

    contrabandistas de pequenos volumes atravs da interpretao de textos de

    natureza diversa, de trabalhos de campo e de entrevistas com pessoas com

    conhecimento de causa sobre o contrabando, por habitarem a regio ou por

    insero profissional (juzes, advogados, aduaneiros, historiadores, gegrafos). Da

    anlise das prticas dos moradores desta fronteira emergiram o conceito de

    condio fronteiria e algumas concluses sobre a relao entre espao, poltica e

    cultura e, principalmente, uma geografia social dos contrabandistas que praticam

    aquela fronteira. Em 2009 defendi a tese Contrabandistas na fronteira gacha:

    escalas geogrficas e estratgias textuais, onde empregava o referido conceito.

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    Em 2008, durante o Encontro Nacional de Gegrafos, em So Paulo,

    apresentei o trabalho A condio fronteiria: a experincia local de um objeto

    nacional e so as afirmativas contidas naquele texto que recupero e atualizo aqui.

    Cabe esclarecer que, naquele momento, resisti bastante a propor um conceito,

    porque em geral a falta de uma expresso apropriada se origina em revises

    bibliogrficas precrias. Nesse mesmo conceito, havia uma dificuldade inicial,

    porque minha opo metodolgica era sublinhar a agncia de indivduos e grupos,

    mas falar em condio fronteiria chamava a ateno para o contedo do espao,

    para o espao fronteirio em si. Reiteradas vezes me perguntei se era o lugar ou

    seus habitantes que estavam em condio fronteiria e, finalmente, conclui tratar-se

    da especificidade da fronteira, que oferece as condies de possibilidade (e de

    necessidade) para certas agncias.

    A fronteira internacional usualmente vista como periferia da formao

    estatal, e na geopoltica, por exemplo, as metforas mais recorrentes so de

    epiderme do corpo do estado (Friedrich Ratzel, 1872) ou fim da civilizao (Frederick

    Turner, 1893). Num ponto de vista distante do lugar, a condio fronteiria

    imaginada como plena de restries e conflitos, onde a fronteira representa apenas

    o cerceamento de possibilidades e a fonte da violncia estatal contra a comunidade.

    Esses cortes, rupturas e fechamentos fazem parte do dia a dia da fronteira,

    mas as diferenas geradas pela justaposio de dois ou trs territrios nacionais

    originam tambm uma srie de adaptaes e oportunidades tpicas da condio

    perifrica de contato apontada por Gervsio Neves (NEVES, 1976, p.159.) e da

    renda fronteiria descrita por Karine Benaffla (2002).

    Outra forma de descrever a vida fronteiria supe que os sujeitos a

    territorializados desconsideram a fronteira ou esquecem-na, agindo como se a

    mesma no existisse. Atravs do conceito de condio fronteiria enfatizo a

    agncia dos habitantes da fronteira, observando a transformao das limitaes em

    oportunidades na experincia desse objeto geogrfico originado na territorializao

    dos estados-nao. Milton Santos enfatiza ser esta a fora prpria do lugar, que se

    expressa nas aes mais ou menos pragmticas e mais espontneas,

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    frequentemente baseadas em objetos tecnicamente menos modernos e que

    permitem o exerccio da criatividade (SANTOS, [1996] 2002, p.228).

    A fora prpria ao lugar fronteirio resulta dos processos de desenho da

    fronteira e da contiguidade de territrios estatais, criando picos de centralidade em

    aspectos ligados soberania sobre o territrio, na forma de equipamentos voltados

    ao controle e interrupo das trocas interestatais e ao estabelecimento de prticas

    nacionalizantes. Esse processo leva construo de escolas e quartis, criao

    de uma paisagem de marcos, muros, bandeiras e outros smbolos nacionais,

    presena de servidores pblicos civis e militares em nmero significativo vindos de

    diferentes pontos dos pases.

    Por outro lado, a fronteira chama a si certos tipos de prticas legais e ilegais,

    atraindo pessoas que desejam beneficiar-se das vantagens locais, na forma de um

    leque mais amplo de servios (de sade, energia e comunicaes, por exemplo),

    custo de vida menor, maiores oportunidades de trabalho, ainda que, para isso,

    muitas vezes aspectos da legalidade estatal sejam esquecidos ou francamente

    burlados, criando extraterritorialidades de base local.

    As fronteiras so lugares da contradio, ao mesmo tempo perifricos aos

    estados-nao e plenos de alternativas polticas e econmicas oferecidas pelo

    trnsito fronteirio. So tambm lugares da diversidade, em que o contato estrutural

    entre dois grupos nacionais ou grupos nacionalizados, na medida em que a

    distino entre eles pode originar-se na ao poltico-cultural do estado-nao que,

    em seus processos de territorializao, coloniza as margens, regula o idioma,

    homogeniza o simblico, materializado em marcos, marcas e monumentos

    experimentado cotidianamente. Alm disso, o chamado da fronteira atinge os

    ouvidos de muitos outros grupos interessados na indecidibilidade caracterstica

    desse lugar.

    Assim, a experincia de vida na fronteira fornece aos seus frequentadores os

    instrumentos necessrios para articular as diferenas identitrias, instrumentalizando

    seus habitantes para tornarem-se portadores/passadores dos bens simblicos ou

    materiais que expressam tais contradies e diferenas manifestas no lugar.

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    A condio fronteiria entendida aqui como um savoir passer [saber passar]

    adquirido pelos habitantes da fronteira, acostumados a acionar diferenas e

    semelhanas nacionais, lingusticas, jurdicas, tnicas, econmicas, religiosas que

    ora representam vantagens, ora o cerceamento de trnsito ou direitos.

    Evidentemente, deve-se duvidar de uma condio fronteiria universal, haja vista a

    variedade de relaes que podem existir entre os fronteirios e o territrio estatal a

    sua frente e as suas costas: o que temos idealizado aqui diz respeito fronteira viva

    e vivida.

    Muitas das prticas dos habitantes dessas cidades lanam mo de clculos

    que consideram a condio fronteiria, desde o nascimento, passando pelo

    casamento e at a morte; na sade e na educao; na produo e no consumo de

    bens materiais e imateriais (religio, lngua, arte, folclore), em muitos tipos de ao

    poltica, as estratgias so pensadas e implementadas levando em considerao as

    possibilidades presentes em ambos os lados da fronteira. Deve-se ressaltar:

    praticando a fronteira, agindo como fronteirio, como o habitante de um lugar em

    que as possibilidades se multiplicam pelo agenciamento da diferenciao originada

    na construo dos territrios nacionais.

    O conceito de condio fronteiria, em sua materializao no-essencializada,

    foi criado para dar conta de prticas observadas em campo no Chu (Brasil) - Chuy

    (Uruguai); em Jaguaro (BR) - Rio Branco (UY); em Santana do Livramento (BR) -

    Rivera (UR); em Uruguaiana (BR) - Paso de los Libres (Argentina); em Posadas (AR)

    - Encarnacin (Paraguai); e em Dionsio Cerqueira (BR) - Barraco (BR) - Bernardo

    Irigoyen (AR). Na bibliografia produzida por diferentes autores, encontramos

    situaes prximas s observadas, por exemplo, nas pesquisas de Fernando

    Rabossi (2004), Brigida Renoldi (2007), Alejandro Grimson (2003); Sergio da Costa

    Franco (2001); Ronaldo Colvero (2004); Lidia Schiavone (1993) e Maristela Ferrari

    (2003), num corpus que rene a produo de gegrafos, historiadores e

    antroplogos sobre as relaes construdas pelos habitantes de cidades de fronteira

    no Cone Sul. O exame dos diferentes casos busca evidenciar o carter de saber

    local, tradicional e artesanal, intrnseco frequncia dos lugares e ao recurso a

    redes de relaes e de confiana entre os diversos agentes que se constri em cada

  • 11

    um desses lugares ou pares de lugares. Comportamentos ligados diferenciao e

    a tenses entre grupos, que muitas vezes expressam-se numa roupagem

    nacionalista, tambm so observveis na condio fronteiria.

    3.2. A condio fronteiria na Amaznia Setentrional

    Em 2009, Jadson Porto e Gutemberg Vilhena Silva publicaram o texto Novos

    usos e (re)construes da condio fronteiria amapaense. Segundo os autores, a

    condio fronteiria amapaense resulta da participao do Governo Federal no

    incentivo mobilidade e reproduo do capital, aumentando a fluidez do territrio

    fronteirio por meio de redes que ampliam a porosidade do territrio entrada do

    capital internacional na explorao de commodities (PORTO; SILVA, 2009). Isso se

    ligava estratgia do estado brasileiro, cujas medidas para o desenvolvimento

    estratgico e coordenado enfocavam as fronteiras como regies de oportunidades,

    de unio com os pases vizinhos e de valorizao da cidadania, conforme consta do

    PDFF de 2005.

    No texto, os autores explicitam:

    Por condio fronteiria entende-se como um espao de dilogo e/ou de

    conflitos em processo; lcus de polticas territoriais com vistas

    manuteno da soberania em sentido amplo e articulao econmica num

    contexto geopoltico de fluidez comercial a partir das redes geogrficas, que

    utilizam a atual condio fronteiria como forma de conexo entre territrios

    mais vastos (PORTO; SILVA, 2009).

    Num momento caracterizado pela implementao de obras de infraestrutura

    de envergadura internacional, Porto e Silva afirmam que a fronteira da Amaznia

    setentrional passa de perifrica estratgica, num movimento histrico de abandono

    das teorias de segurana nacional em favor da integrao ao mundo globalizado e

    articulado em redes, mediante constantes ajustes espaciais, executados e

    fortalecidos pelo Governo Federal (PORTO; SILVA, 2010, p. 1).

    Em um texto j citado, publicado em 2011, Jadson Porto define que a atual

    condio fronteiria amapaense :

    diretamente ligada aos movimentos de construo e (des)territorializao;

  • 12

    constante e fortemente integrada ao do Estado;

    ligada a resultados das instalaes de prteses, segundo a viso

    miltoniana;

    est relacionada existncia, configurao e intensidade de

    articulao de diversas relaes;

    estimulada por expectativas;

    construda em um espao com extensas reas de restrio de uso do

    territrio, significando que a populao no pode ir para o interior do Estado,

    fazendo com que a populao seja urbana;

    estabelecida como fornecedora de commodities;

    no possui estmulos ao processo de industrializao, porque, no Amap,

    no existe uma elite industrializante forte o suficiente para romper a

    condio anterior, mas corrobora para estimular uma elite industrializada,

    que consome somente produtos industrializados, mas no estimula o

    processo de industrializao. (p.11-12).

    Trata-se, portanto de anlises na escala regional, em que os agentes so (ou

    deveriam ser) o estado, o capital e as elites. A populao local est ausente e os

    trunfos so a biodiversidade, os recursos minerais e o potencial energtico

    mobilizados atravs de prteses, isto , de atos elaborados externamente e

    implantados localmente, os quais impem novos ritmos ao meio primitivo. Essas

    prteses podem ser de vrios modelos e transformam e reconfiguram um espao j

    existente. A condio fronteiria na Amaznia setentrional , portanto, analisada na

    escala regional, sendo marcada pela interveno de agentes externos ao lugar, o

    que valorizado pelos autores na medida em que representa sua integrao aos

    espaos nacional (preferencialmente) ou internacional.

    3.3. Uma geografia do pensamento sobre a fronteira

    O reconhecimento da agncia das populaes locais nos confins meridionais

    do Brasil, por um lado, e a nfase no protagonismo dos grandes atores que

  • 13

    constroem a conectividade de lugares menos habitados (mas no menos regulados)

    na Amaznia Setentrional, por outro, parecem contradizer-se. Ao invs de tomar

    partido por uma ou outra concepo, cabe perguntar, em primeiro lugar, por que os

    autores divergem, ainda que estejam tratando da dinmica contempornea das

    fronteiras.

    Penso que a variao no conceito reflete a combinao espao-tempo-

    precursores que marca a produo terica com sua situao espacial, com o

    contexto histrico de sua produo e leitura, com os precursores eleitos pelos

    emissores, e, finalmente, com os receptores a quem nos dirigimos. As teorias

    expressam a cultura espacialmente situada. O lugar da enunciao influi na

    representao do espao formulada por cada pesquisador: o emissor situado e a

    cultura em circulao no lugar condiciona-o e s representaes que ele cria.

    Partindo desse ponto, entende-se a mudana no contedo do conceito de

    condio fronteiria conforme a situao que informa sua formulao. Situao

    um conceito bem explorado na Geografia Urbana, e refere-se relao entre um

    lugar e seu entorno, enfatizando conexes e acessibilidade. Nessa afirmativa h

    relao com o apelo da feminista americana Donna Haraway por saberes situados,

    em que a objetividade ganha corporeidade e se reconhece como construo social

    (1989), podemos afirmar que, dependendo do lugar em que se produza o texto, e a

    quem se dirija o argumento, representaes muito diferentes de fronteira e da

    condio fronteiria vo aparecer.

    No quero propor e confirmar minhas prprias proposies a respeito das

    teorias sobre o espao, apenas observo que tais representaes tambm constroem

    a realidade, porque a teoria no apenas explica, ela tambm prope, constri, se

    mistura situao teorizada. A teoria sobre as fronteiras um dos vetores de sua

    construo, tanto nos momentos em que os gegrafos so chamados a participar da

    formulao de polticas pblicas, quanto naqueles em que produzem representaes

    da realidade em seus mapas, textos e aulas. Cabe atualizar a discusso em vista da

    transformao recente nas polticas brasileiras para as fronteiras, quando

    observamos uma concomitncia do tempo curto dos sistemas de vigilncia e defesa

    e do tempo longo da arquitetura da cidadania e da integrao dos povos fronteirios

  • 14

    (MACHADO, 2005). Como Jadson Porto e Gutemberg Vilhena afirmaram em 2010

    Por ser um produto historicamente construdo, reestruturado, ressignificado, a

    fronteira possibilita conflitos entre o tradicional e o moderno; a sua condio

    constantemente (re)inventada.(PORTO; SILVA, 2010, p. 11).

    4. Segurana pblica e fronteira

    H 60 anos, o Gal. Golbery do Couto e Silva, discutindo a doutrina de

    segurana nacional, escrevia que no parecia razovel temer a ecloso de um

    conflito ou ataque no arco norte da fronteira brasileira. Ele dividia a fronteira em duas

    bacias, a do Amazonas e a do Prata, articuladas pela placa giratria superiormente

    situada nas cabeceiras comuns das duas grandes bacias hidrogrficas, o centro-

    oeste brasileiro. Muito mudou desde 1952 na Geopoltica do Brasil. Primeiramente,

    os agentes na cena contempornea no se limitam aos estados: hoje os grupos

    privados transnacionais, atuando no campo da economia legal ou ilegal,

    protagonizam muitas aes em curso nas fronteiras. At por isso, a linha de tenso

    mxima no campo sul-americano (...) a nossa verdadeira fronteira viva (SILVA,

    1952, p. 58), no mais a fronteira gacha. Nem o a periferia amaznica uma

    fronteira passiva a policiar e guarnecer pela barragem dos caminhos histricos de

    penetrao" (idem, p. 59). Tampouco a vitalizao e integrao no ecmeno

    nacional, do centro-oeste brasileiro permitiu tudo esclarecer e definir nesse jogo

    mltiplo de foras que trabalham incansavelmente o corao do continente (ibidem,

    p. 58). Por fim, as fronteiras brasileiras no aparecem hoje como uma questo de

    segurana nacional, mas de segurana pblica.

    4.1. A securitizao das fronteiras brasileiras

    Em junho de 2011 foi lanado o Plano Estratgico de Fronteiras, que no

    revoga as polticas anteriores voltadas integrao regional, mas prioriza

    investimentos em segurana e equipamento, criando rgos articuladores e levando

    contratao de efetivos policiais especficos para a fronteira, o estabelecimento de

    polcias fronteirias etc.

  • 15

    Pode-se considerar o plano como o marco da securitizao das polticas para

    a fronteira brasileira. Como plano para a fronteira, traz como objetivo central o

    fortalecimento da preveno, controle, fiscalizao e represso dos delitos

    transfronteirios e dos delitos praticados na faixa de fronteira brasileira (BRASIL,

    2012). Assim, o crime situado na fronteira e um discurso em que a segurana

    pblica o argumento central nas relaes entre sociedade e estado institudo

    (GRUZCZAC, 2010).

    A Estratgia Nacional de Segurana Pblica nas Fronteiras da Secretaria de

    Segurana Pblica do Ministrio da Justia visa intensificar o controle e a

    fiscalizao nas fronteiras, de forma a fortalecer a preveno, o controle e a

    represso dos delitos transfronteirios e outros delitos praticados nas regies da

    fronteira brasileira, em parceria com Estados e Municpios. O discurso da defesa

    nacional passa, contemporaneamente, pela represso aos crimes transfronteirios e

    pela presena e integrao de rgos de controle e represso.

    Implcita nesse discurso est a criminalizao da fronteira, uma

    reconfigurao das regies fronteirias como lugares do crime. Seguindo a proposta

    de Wendy Brown, em sua anlise sobre a multiplicao de muros nas fronteiras

    contemporneas, esses movimentos teriam a ver com o enfraquecimento da

    soberania estatal por cima e por baixo, por agentes transnacionais (como no

    Amap) e por grupos locais (como na fronteira gacha). Segundo ela, os muros

    acionam fantasias: aquela do estrangeiro perigoso, causa dos males da nao; a

    fantasia da conteno diante das ameaas do mundo globalizado, numa tentativa de

    restabelecer a soberania estatal e a imaginao nacional em declnio; a fantasia de

    impermeabilidade: o muro explicita a separao entre o interior do exterior; as

    fantasias de pureza, inocncia e bondade: os muros preservariam a civilizao

    contra seu oposto (BROWN, 2010). A autora conclui que a representao do outro

    como invasor, e sua excluso atravs de muros leva ao apagamento das diferenas

    e ao ocultamento do sofrimento dos miserveis, criando uma fico da autarquia

    (BROWN, 2010).

    Uma anlise da representao do Brasil e de suas fronteiras no site do

    Ministrio da Justia mostra uma zona pontilhada de eventos criminosos ligados

  • 16

    introduo de drogas e de imigrantes clandestinos, evaso de divisas e rotas de

    carros roubados, enfim, uma srie de prticas que parecem ocorrer apenas na faixa,

    e que ameaam a segurana nos grandes centros urbanos.

    Fig. 1: Fronteira do Brasil: eventos criminosos. Fonte: Brasil. Ministrio da Justia.

    No caso em anlise, o problema internalizado e a regio de fronteira corre o

    risco de se transformar na ameaa segurana pblica, reforando uma geografia

    moral em que diferentes lugares do espao so representados como dotados de

    caractersticas morais e a fronteira estimula valores como impureza, ameaa e

  • 17

    delinquncia. A estigmatizao desse objeto geogrfico, pressupondo uma influncia

    moral sobre seus habitantes, decorre da mudana legal e territorial e da situao

    perifrica que leva ao contato/contgio com o estrangeiro (DORFMAN, 2009; PARK,

    1973, p. 66). Fica reforada a ideia de que represso, na fronteira, preveno a

    preveno de crimes no (centro do) Brasil.

    4.2. A condio fronteiria no Mato Grosso do Sul

    Para discutir as consequncias da securitizao das fronteiras sobre as

    condies fronteirias, tomemos o caso do Mato Grosso do Sul, conforme

    apresentado por Tito Carlos Machado de Oliveira, em 2011. A importncia das

    possibilidades de maior aproximao com o povo vizinho; a segurana relacionada

    condio fronteiria; a influncia do contrabando e do trfico de drogas; a

    permeabilidade cultural; e a interferncia da condio fronteiria no volume e nas

    condies de trabalho, bem como nos investimentos ou benefcios governamentais

    foram apresentadas por Oliveira como variando de mais a menos abrangentes

    espacialmente, conforme se ruma ao norte do Brasil, como mostra o esquema a

    seguir.

    Fig. 2: Presena da fronteira ou da condio fronteiria nos trs arcos do limite brasileiro. Fonte: OLIVEIRA, 2011, p. 201.

    Na sub-faixa A, a vida uma vida de fronteira, e naquele espao, as relaes

    mercantis, bem como de trabalho, cultura, sade e segurana aparecem, nas

    entrevistas, entrelaadas em uma simbiose assaz complexa e de difcil mensurao

    (OLIVEIRA, 2011, p. 201). Na sub-faixa B do arco central, a preocupao dessas

    cidades est mais relacionada segurana problema que, muitas vezes, mais

    reflexo do posicionamento da imprensa televisiva nacional do que real e ao

  • 18

    consumo de entorpecentes, este ltimo um elemento central (idem, p. 202). Assim o

    autor conclui que acciones desde abajo seriam capazes de avivar comportamentos

    cooperativos e associativos na sub-faixa A, enquanto acciones desde arriba seriam

    necessrias, na forma da induo de programas de represso e de presso contra

    o contrabando, concomitante a projetos de desenvolvimento tripartites (nacionais,

    locais e internacionais) direcionados cooperao transnacional mais centralizada

    (ibidem, p. 202).

    O que vemos hoje segue a direo das aes conjunturais e geopolticas

    apontadas por Oliveira, com a valorizao das experincias dos departamentos de

    polcia de fronteira no Centro-Oeste, a aprovao de recursos da ordem de um

    bilho de reais para a iminente implementao do SISFRON (Sistema Integrado de

    Monitoramento de Fronteiras) em Dourados (MS) e a concentrao de verbas da

    ENAFRON nos municpios dessa regio, considerada como corredor de

    abastecimento de drogas e armas para as metrpoles litorneas brasileiras

    (OLIVEIRA; COSTA, 2011).

    Ao mesmo tempo, agentes na escala local aplaudem a chegada de recursos e

    contingentes em suas regies, saudando a ocupao territorial do espao fronteirio

    pelos rgos de segurana pblica. Resta saber como ficaro as relaes

    relativamente estveis entre os diferentes grupos instalados na fronteira, com a

    chegada de novos poderes no lugar. As diferenas expressas acima como

    condies fronteirias diferenciadas ajudam a explorar as diferentes reaes a

    esperar em cada um dos casos.

    5. Concluindo: as condies fronteirias em tempos de securitizao

    Apresentamos a fronteira gacha como um territrio em que se pode observar

    a convivncia entre a territorialidade estatal e territorialidades locais, onde a

    sociedade civil constri redes de relaes que acionam a fronteira em proveito

    prprio. O territrio condiciona as aes possveis aos diferentes grupos, de modo

    que a populao local conhece e respeita as normas do lugar. Assim, no caso da

    fronteira gacha, a identidade com a populao local aparece como limitante das

    aes possveis no mbito da segurana pblica, uma vez que os repressores esto

  • 19

    cientes das redes de poder que pressupem a tolerncia a certas prticas

    criminalizadas noutras escalas geogrficas. Foras ligadas escala nacional,

    capazes de intervir e se retirar, com menos vnculos locais, no tero a mesma

    compreenso das relaes locais, e sua mobilidade protege-os de consequncias.

    Ao mesmo tempo, o acmulo de experincias de prticas de integrao

    sugere que a articulao entre as diferentes escalas de gesto pblica, dentro do

    Brasil e nos pases vizinhos, sejam levados em considerao. triste observar o

    declnio dos discursos do desenvolvimento integrado, que visavam reconhecer as

    diferenas e compartilhar responsabilidades, seja no mbito do Mercosul ou na

    escala regional e sua substituio por aes pontuais e verticais, pouco eficientes na

    construo da cidadania, da democracia e da dignidade das populaes da fronteira

    gacha e do conjunto do Cone Sul.

    Seguindo o raciocnio apresentado por Jadson Porto, uma interveno como

    o ENAFRON na condio fronteiria amapaense corresponde aos captulos

    pregressos e instalao de novas prteses fortemente integradas ao do

    Estado, dessa vez satisfazendo o lucrativo negcio do controle fronteirio. Alm

    disso, a populao local permanece ausente. O controle dos ilcitos ligados

    biodiversidade, aos recursos minerais e ao potencial energtico pode ser ampliado,

    mas provavelmente sejam os fluxos lcitos, controlados por grandes empresas

    transnacionais, aqueles realmente volumosos.

    A condio fronteiria do Centro-Oeste, do Mato Grosso do Sul, representa a

    transio entre essas duas possibilidades, traz aspectos de integrao e demandas

    de controle ampliado por parte da populao da faixa de fronteira. O laboratrio do

    ENAFRON, o arco central merece ser acompanhado em suas tenses e solues.

    Lembrando as relaes entre a situao geogrfica (cada condio

    fronteiria), o contexto poltico (a securitizao) e a teoria sobre fronteiras, resta-nos

    trabalhar para que os direitos dos fronteirios de ambos os lados da fronteira

    possam ser nomeados e respeitados, apesar das representaes de crime,

    bandidagem, migrao ilegal e narcotrfico, que so contemporaneamente apostas

    s regies fronteirias.

  • 20

    6. Referncias

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