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8º ENCONTRO DA ABCP
01 a 04/08/2012, Gramado, RS
Área Temática 11: Segurança Pública e Segurança Nacional
O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DO EXÉRCITO NO
BRASIL E NO CHILE EM PERSPECTIVA COMPARADA
Adriana A. Marques (EBAPE/Instituto Meira Mattos/ECEME)
Jacintho Maia Neto (EBAPE/Instituto Meira Mattos/ECEME)
RESUMO
Desde o final da Guerra Fria, a maioria das Forças Armadas latino-americanas,
os Exércitos em particular, estão passando por um processo de transformação
estrutural tendo em vista as mudanças na configuração da ordem internacional
e o restabelecimento da democracia na região. O presente artigo analisará a
transformação do Exército no Brasil e no Chile de forma comparada buscando
identificar a gênese do processo em cada país, a visão institucional que
orientou sua adoção e os objetivos propostos por cada força armada,
lembrando que a transformação de instituições militares visa projetá-las para o
futuro através do desenvolvimento de novas capacidades para cumprir novas
missões ou desempenhar novas funções em combate.
Palavras-chave: Política Comparada, Relações Civis-Militares e
Transformação Organizacional.
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1 INTRODUÇÃO1
Em maio de 2010, o então chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro,
general Fernando Sérgio Galvão, tornou público um documento chamado O
processo de transformação do Exército. Na capa, uma foto da Terra vista do
espaço focando o território brasileiro e as datas 2015, 2020, 2025, 2030, 2035
impressas em vermelho simulando uma contagem regressiva. O marco
temporal a que se refere a imagem, compreende o período no qual se espera
que o Exército adquira as capacidades necessárias para fazer face às
demandas de um país que, na visão governamental, será um ator global com
interesses a preservar em todo o mundo. A necessidade de transformação da
estrutura e da cultura organizacional da instituição partiu da constatação de
que a continuar o estado atual da articulação e do equipamento da Força,
estaríamos chegando ao final do ano de 2030 com um Exército articulado
nacionalmente e equipado para combater com armamento, material, estrutura e
doutrina da Segunda Guerra Mundial (BRASIL, 2010).
Dois países, um europeu e outro sul-americano, servem de referência e
são analisados no processo de transformação do Exército: a Espanha e o
Chile. Esta escolha não é fortuita. Tanto a Espanha quanto o Chile transitaram
de um regime autoritário para um regime democrático nas últimas décadas e
estão transformando suas estruturas organizacionais de modo a adaptá-las à
nova configuração da ordem internacional pós-Guerra Fria e pós 11 de
setembro. Além disso, a transformação do exército espanhol foi o parâmetro a
partir do qual os chilenos iniciaram seu processo de transformação
organizacional em 2002.
Porém, se no âmbito internacional podemos dizer que as mudanças no
ambiente estratégico impactaram profundamente os exércitos nacionais em
várias regiões, levando, entre outras medidas, à redução de verbas e de
efetivos, à relocação de tropas das grandes potências, à busca de tecnologias
que aumentassem o poder dissuasório e a reconfiguração desses exércitos
1 Os autores agradecem a Luis Claudio Weber Orellana pelo acesso às fontes documentais sobre o
processo de transformação do exército chileno. Também aproveitamos para lembrar que as análises feitas
neste artigo são de nossa responsabilidade e não refletem a opinião da instituição na qual trabalhamos.
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nacionais para atender às novas demandas de segurança e defesa como a
guerra assimétrica, as operações de não-guerra (OEA, 2003). Além de
demandar um aumento significativo de missões de paz da ONU com
características que as diferem muito das tradicionais missões de imposição e
manutenção da paz (Capítulos 7 e 8 da Carta da ONU). No âmbito regional,
ainda que possamos identificar características semelhantes em regiões
diferentes como a crescente atuação dos órgãos regionais de segurança e
defesa em suas respectivas áreas de influência, muitas vezes sob a égide da
ONU, as especificidades locais fazem com que a comparação entre exércitos
da mesma região seja mais frutífera.
O objetivo desse artigo é compreender o processo transformacional dos
exércitos do Brasil e do Chile em perspectiva comparada, de forma a contribuir
para o debate sobre segurança e defesa no subcontinente sul-americano.
Entendemos que no cômputo regional, e em especial no brasileiro, as novas
demandas de Defesa (sejam elas convencionais ou não-convencionais,
internas ou externas) tais como a atuação em operações de garantia da lei e da
ordem, em desastres naturais, na segurança de grandes eventos e na defesa
das/nas fronteiras, têm exigido das Forças Armadas novas adequações
estruturais que lhes permitam agir com presteza a esses desafios. Dentro
desse contexto, que exige das instituições militares uma nova estrutura que
possa atendê-lo, considera-se que “transformar é alterar a realidade ao mesmo
tempo em que se muda a maneira de pensar; é crer no poder das ideias, nos
limites da realidade e na capacidade infinita de os seres humanos buscarem
novas formas de ser e de agir.” (MOTTA, 2001, p.59). É sob esse enfoque que
pretendemos realizar uma análise comparativa entre os processos
transformacionais dos dois exércitos.
Deve-se enfatizar que ao comparar esses processos não buscaremos
apenas identificar o que há de comum aos dois casos. Acreditamos como Cohn
que através da comparação será possível trazer à tona o que é peculiar a cada
um dos casos analisados (COHN, 2008). O espaço temporal a ser analisado
nesse artigo serão as duas últimas décadas, lembrando que o Chile publicou a
primeira edição do seu Livro Branco de Defesa em 1997 e já está na terceira
edição do documento (2010). E o Brasil que, recentemente, encaminhou ao
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Congresso Nacional sua primeira edição do Livro Branco2, vem pautando a
transformação do seu exército na segunda edição da Política de Defesa
Nacional (2005) e na Estratégia Nacional de Defesa (2008). Faremos uma
rápida menção ao processo de transição de regime nos dois países, pois
acreditamos que o “modo” de transição para a democracia influenciou tanto a
decisão de iniciar o processo de transformação organizacional quanto os
objetivos da transformação.
Um ponto em comum pode ser destacado nos documentos chilenos e
brasileiros: os dois exércitos buscam reestruturar-se com base em capacidades
e não somente em hipóteses de emprego. Também devemos ressaltar que as
demandas de segurança e defesa no subcontinente sul-americano são muito
similares, o que, em tese, pode favorecer a consolidação do Conselho de
Defesa Sul-americano. Neste sentido, um estudo comparado do processo
transformacional dos exércitos do Chile e do Brasil pode nos ajudar a
compreender como a mudança estrutural em duas das principais forças
armadas da região – uma tradicionalmente voltada para o Pacífico e outra para
o Atlântico - pode impactar a configuração do sistema de segurança e defesa
regional. Por fim, acreditamos que esta comparação também nos permitirá
refletir sobre a contribuição da bibliografia norte-americana mais recente sobre
relações entre civis e militares para o estudo dos países em questão.
2 AS TRANSIÇÕES DE REGIME NO CHILE E NO BRASIL E SEUS
IMPACTOS NO PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO ORGANIZACIONAL
DOS EXÉRCITOS NOS DOIS PAÍSES
Os estudos sobre a transição de regimes autoritários para democracias
na América Latina criaram algumas tipologias a partir das quais foi possível a
construção de modelos explicativos que apontassem com certa precisão de
que forma a correlação de forças entre os civis e militares no momento da
transição influenciaria a estabilidade e a consolidação do novo regime. O grau
de subordinação dos militares ao poder civil passou então a ser visto como um
bom indicativo para se medir a maturidade, a institucionalização e a qualidade
da democracia (O’DONNELL E SCHMITTER, 1988; STEPAN, 1988;
2 Em 17/07/2012. Fonte: http://www.defesa.gov.br.
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ZAVERUCHA, 1994). Além de aferir características mais amplas da
democracia nascente, como o grau de estabilidade do novo regime, o modo de
transição também pode nos ajudar a compreender como a formulação e
implementação de políticas públicas para algumas áreas sensíveis do Estado,
como a política de defesa dependem em certa medida do tipo de arranjo feito
entre os opositores e defensores do antigo regime no momento da transição
política.
Munck e Leff (1997) apresentam uma interpretação interessante a
respeito de como a identidade dos agentes de mudança e as estratégias por
eles adotadas influenciam as políticas pós-transição. Os autores argumentam
que as transições importam porque elas geram heranças relativamente
duráveis que impactam o regime resultante e as políticas pós-transição por
meio dos seguintes mecanismos causais: sua influência no padrão de
competição entre as elites, nas regras institucionais que são produzidas
durante o período de transição e na disposição dos atores relevantes a aceitar
as novas regras do jogo (MUNCK; LEFF, 1997, p. 73).
No caso chileno o impulso para a mudança veio de fora da elite
governante, de grupos que haviam sidos excluídos da arena política no regime
anterior. Mesmo não tendo sido capazes de evitar a mudança, as elites
situacionistas tiveram sucesso em exercer mais controle sobre a transição do
que qualquer outro caso latino-americano. Como o ímpeto para mudança veio
de fora da elite governante, uma ampla coalizão de forças com identidade
própria e forte foi formada para pressionar pelo fim do regime, mas o fato da
antiga elite ter se mantido como uma força política viável e ativa colocou uma
série de entraves institucionais ao processo de redemocratização, como a
permanência do general Pinochet no posto de comandante do Exército e
senador vitalício. Por isso, mesmo tendo vencido o plebiscito que decretou a
fim do regime autoritário do general Pinochet, a oposição teve que adotar uma
estratégia de acomodação e atuar dentro de um marco legal limitado para
garantir a estabilidade do novo regime (MUNCK; LEFF, 1997).
Contando com poucos mecanismos institucionais para garantir a efetiva
subordinação dos militares ao poder civil e temendo um retrocesso no lento e
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sinuoso processo de redemocratização do Chile, os novos governantes tiveram
que lançar mão de mecanismos informais e aproveitar as brechas no marco
legal que a Constituição de 1980 permitia para tentar mudar o padrão das
relações entre civis e militares no país. Claudio Fuentes mostra como os dois
primeiros governos da Concertación, a coalizão oposicionista que venceu as
eleições em dezembro de 1990, utilizou os recursos de que disponha para
tentar negociar com os militares sobre temas específicos, porém importantes
como a promoção de oficiais e a alocação do orçamento militar (FUENTES,
2000). Ainda segundo o autor, especialmente a partir do governo de Eduardo
Frei (1994-2000) os governantes civis mudaram o foco do relacionamento com
a instituição militar passando a enfatizar a importância da discussão dos
assuntos relacionados à Defesa e da formulação de políticas públicas voltadas
para esta área bem como a necessidade de um maior envolvimento da
sociedade civil com a temática militar. A agenda do controle civil sobre os
militares ficou num segundo plano (FUENTES, 2000).
Esta “estratégia indireta” dos governantes civis para lidar com as Forças
Armadas surtiu efeito. O fortalecimento e a diversificação da agenda de
pesquisa em Defesa qualificou o debate sobre o tema e aproximou a Academia
da instituição militar. O ressentimento da sociedade civil chilena em relação aos
casos de violação dos direitos humanos no país durante a era Pinochet, no
entanto, impedia o aprofundamento das reformas necessárias para adequar as
Forças Armadas aos novos contextos nacional, regional e internacional que se
desenhavam. Com o tempo os militares perceberam que a mera manutenção
das prerrogativas herdadas da Constituição de 1980 não seria suficiente para
garantir os recursos financeiros que eram necessários para a reestruturação
das Forças Armadas e também não seria útil, pelo contrário, poderia dificultar o
apoio dos políticos que combateram o antigo regime aos projetos de interesse
militar (GUTIÉRREZ, 2008).
Os militares então mudaram sua estratégia de aproximação com a
sociedade civil. O Exército em particular passou a focar nas atividades que
desenvolvia em apoio à população (assistência humanitária, profissionalização
dos jovens que prestam serviço militar, etc.) e ao desenvolvimento nacional.
Por sua vez, o envolvimento do ex-ditador em escândalos financeiros (os
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“pinocheques”), sua detenção em Londres (em razão das violações aos direitos
humanos ocorridas durante sua presidência) e seu falecimento em 2006
(GUTIÉRREZ, 2008), levaram ao processo de “despinochetização” do exército
chileno que procurou paulatinamente desvincular sua identidade/imagem do
regime do general Pinochet. É neste contexto que o processo de transformação
organizacional do exército chileno ganha força.
O caso brasileiro é um exemplo clássico de reforma negociada já que a
elite situacionista manteve uma postura ambígua em relação às mudanças
democráticas enquanto as contra-elites pressionavam por elas. No entanto,
após as eleições estaduais de 1982, a oposição ao regime militar obteve
ganhos tão substantivos que conduziram as elites governantes a uma escolha
crítica: adotar medidas crescentemente repressivas para frear a liberalização
ou permitir que a liberalização se tornasse democratização e usar seu
considerável poder residual para conduzir o processo de transição de regime. A
segunda opção foi à escolhida. E a elite civil brasileira que apoiava o regime
militar, ao contrário da elite civil chilena, também não ofereceu resistência ao
processo de transição de regime. Parte desta elite, aliás, juntou-se ao principal
partido de oposição, o PMDB, formando a coalizão que venceu as eleições no
colégio eleitoral em 1985. A incorporação de parte da elite que apoiava o
regime militar às fileiras do PMDB diluiu a identidade do partido e enfraqueceu
o ímpeto reformador das forças mais comprometidas com a democracia
(MUNCK; LEFF, 1997).
O modo de transição brasileiro impactou profundamente o padrão das
relações entre os civis e os militares que se estabeleceu a partir de então: sem
contar com forças políticas que tivessem um projeto claro para a adaptação
dos militares à democracia nascente - dada a perda de identidade da coalizão
oposicionista – podemos afirmar que a reinserção dos militares à democracia
foi sendo feita através da desativação de certos mecanismos institucionais
(extinção do Conselho de Segurança Nacional, do Serviço Nacional de
Inteligência, dos ministérios militares) e da criação de novas normas e
estruturas (a reestruturação das Comissões de Defesa no Congresso Nacional,
a criação do Ministério da Defesa, a promulgação da Política de Defesa
Nacional, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco) sem que estas
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decisões governamentais tenham identificação com uma força política em
particular.
Ao contrário do Chile, no Brasil, o Exército nunca deixou de contar com o
apoio da população, especialmente a mais pobre, que é por ele assistida por
meio de suas ações cívico-sociais. O serviço militar obrigatório também
desempenha um papel importante neste sentido ao oferecer qualificação
profissional aos jovens de baixa renda (OLIVEIRA, 2005). Os políticos que
assumiram o poder depois de 1985 também nunca deixaram de apoiar, ao
menos formalmente, os projetos de interesse da Força. No entanto, as
demandas surgidas no campo da segurança e defesa, em razão das
modificações operadas nos âmbitos nacional, regional e internacional, exigem
que o Exército transforme sua estrutura para atender adequadamente as
necessidades do país.
3 A TRANSFORMAÇÃO DO EXÉRCITO NO CHILE E NO BRASIL: ALGUNS
PONTOS PARA COMPARAÇÃO.
Iniciado em 2002, o processo de transformação do Exército chileno é
tido como a principal mudança organizacional da instituição desde a
“prussianização” do final do século XIX, quando o país recebeu uma missão
militar alemã comandada por Emilio Körner (PAREDES, 2006). O Ex-
comandante do Exército, Juan Emilio Cheyre Espinosa, estabelece uma
interessante relação entre o contexto político no Chile no final do século XIX,
em 1973 e nos dias atuais. Segundo a narrativa do ex-comandante, tanto no
final do século XIX quanto em 1973, o país estava passando por uma profunda
crise política, mas com uma diferença fundamental: em 1973 o Exército
permaneceu unido e não assumiu um dos lados da disputa política que no final
do século XIX levou a uma guerra civil que ceifou cerca de dez mil vidas
humanas. Em 1973, a perda de vidas teria sido menor, porém a divisão da
sociedade teria sido mais profunda em razão dos condicionantes da Guerra
Fria. Para o general Cheyre Espinosa, o principal mérito do processo de
transformação atual do Exército chileno é ele ter sido iniciado pela própria
instituição, com seus próprios recursos humanos, materiais, visão estratégica e
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sem interferência estrangeira (ESPINOSA, 2005) É importante lembrarmos que
o processo chileno teve início após a publicação de duas edições do livro
branco no país.
No documento de 2010, “O Processo de Transformação do Exército”
(PTEx) é apresentada uma sinopse histórica das transformações pelas quais o
Exército brasileiro passou, especificamente, a partir de 1964. Não há menção
ao papel político desempenhado pela instituição, mas às mudanças
organizacionais na Força que foram realizadas de 1964 a 1984. E a motivações
para o processo de mudança vêm do novo marco legal ao qual as Forças
Armadas estão submetidas, especialmente da Estratégia Nacional de Defesa
(END). A END, em seu escopo, definiu ações estratégicas de médio e longo
prazo, objetivando modernizar a estrutura nacional de defesa, com base em
três eixos estruturantes: a reorganização das Forças Armadas, a
reestruturação da indústria brasileira de material de defesa e uma política de
recomposição dos efetivos das três Forças (BRASIL, 2008, p.3).
O Exército Brasileiro materializou as suas ações decorrentes da END, na
Estratégia Braço Forte (EBF), composta de 02 (dois) Planos, 04 (quatro)
Programas e 824 (oitocentos e vinte e quatro) Projetos, distribuídos em 129
(cento e vinte e nove) Ações Estratégicas (BRASIL, 2009, p.7). Essa estratégia
foi elaborada com estudos feitos pelo Estado-Maior do Exército (EME), por
todos os Órgãos de Direção Setorial (ODS) e os Comandos Militares de Área
(C Mil A).
A EBF compreende os Planos de Articulação e Equipamento, que
possuem dois Programas cada um:
- Plano de Articulação: Programas Amazônia Protegida e Sentinela da
Pátria;
- Plano de Equipamento: Programas Mobilidade Estratégica e Combatente
Brasileiro.
O Estado-Maior do Exército, ao tentar viabilizar a EBF e demais ações
decorrentes da END, verificou que não havia uma estrutura adequada para
conduzir os projetos e que as ações estratégicas a serem implementadas não
seriam viabilizadas sem uma transformação estrutural e a quebra de alguns
paradigmas da instituição.
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Nos dois processos de transformação uma diferença em especial nos
chama atenção: a passagem de um Exército territorial para um exército
funcional no Chile (JUAN, 2005). Ao adotar esta postura, o Exército passou a
utilizar parâmetros cada vez mais próximos de uma organização empresarial3.
Iniciou-se um processo de racionalização dos gastos, do efetivo e das unidades
militares. Os antigos regimentos foram reestruturados para atuarem como
sistemas operacionais integrais, comparando com o caso brasileiro, os antigos
regimentos estão se fundindo e se transformarão em brigadas no futuro. A
menor presença no território e a redução do efetivo foram compensadas com
uma maior mobilidade em decorrência dos novos sistemas de armas adquiridos
e do investimento na inovação tecnológica. O exército profissional ganha
prevalência em relação ao exército de conscritos. A interoperabilidade com as
outras forças armadas é uma exigência cada vez maior e a capacidade
operacional obtida neste processo é vista como o “produto” produzido pela
“empresa mais querida do Chile”, nas palavras do ex-comandante do Exército
(ESPINOSA, 2005).
No caso brasileiro, vemos que o Exército trabalha com duas
perspectivas paralelas. Na Amazônia, o Exército continuará com sua estratégia
de presença, criando novas unidades militares e agregando mobilidade com
novos meios de transporte e apoio logístico, comunicações, etc. No restante do
país a mobilidade ganhará prevalência em relação à presença. O PTEx prevê o
aumento e não a redução do efetivo militar e a manutenção do serviço militar
obrigatório tal como ele se encontra. A interoperabilidade com as outras forças
está no horizonte do processo de transformação (ver o quadro 01).
A postura funcional e não mais territorial adotada pelo exército chileno
também se traduz na maneira como o Chile pretende se relacionar com o
mundo. Após décadas de isolamento político e diplomático, durante o regime
de Pinochet, o país reforça suas relações com o Pacífico e retoma sua vocação
universalista no plano das relações internacionais (ARAVENA, 1997). No plano
militar isso significa maior envolvimento com as missões de paz sob mandato
da ONU e uma maior aproximação com os países sul-americanos, em especial
com os vizinhos. Neste ponto vemos novamente as diferenças em relação ao
3 Para uma melhor visualização das diferentes perspectivas organizacionais dos Exércitos do Brasil e do
Chile, ver as figuras 01 e 02 ao final do texto.
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Brasil. O Chile trabalha com a perspectiva de cooperação internacional em
matéria de segurança e defesa, por isso adotou o modelo da OTAN como
referência para pensar suas relações com as outras Forças Armadas. Já o
Brasil pensa a cooperação primeiramente em nível regional. O Exército,
particularmente, atua mais no âmbito das relações bilaterais e toma como
referência o entorno geoestratégico brasileiro (América do Sul e Atlântico Sul)
para definir suas prioridades.
Na relação com os vizinhos, os dois exércitos enfrentam situações
diferentes, mas adotam posturas estratégicas iguais: a dissuasão. O Chile
avançou muito na cooperação militar com a Argentina tendo inaugurado este
ano uma brigada bi-nacional no padrão OTAN e tenta estabelecer relações
amistosas com o Peru e a Bolívia, ainda que persistam as disputas territoriais.
O Brasil não tem problemas fronteiriços com nenhum de seus vizinhos e adota
o discurso da dissuasão extra-regional. No plano internacional, os dois
exércitos identificam as mesmas ameaças difusas (terrorismo, “novas
ameaças”) e, apesar das diferenças apontadas, os dois exércitos têm como
meta o planejamento por capacidades e não mais baseado em hipóteses de
guerra (ver o quadro 02).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PRERROGATIVAS OU EFICÁCIA, COMO
ANALISAR OS NOVOS EXÉRCITOS SUL-AMERICANOS?
Por fim, podemos constatar que se o exército chileno de fato está
migrando para um modelo funcional, ou ocupacional como quer Charles
Moskos (1977), o exército brasileiro ainda apresenta fortes traços de uma
instituição total. O que nos leva a refletir sobre quais modelos analíticos podem
nos ajudar a compreender melhor o processo de transformação pelos quais os
exércitos sul-americanos estão passando tendo em conta o atual panorama de
segurança e defesa na região com a criação do Conselho de Defesa Sul-
americano.
Há algum tempo, autores como Feaver (1999) e Nielsen (2005)
trouxeram para o debate acadêmico uma questão basilar para o estudo das
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relações entre os civis e os militares: se as Forças Armadas norte-americanas
e europeias estariam migrando de um modelo institucional para um modelo
ocupacional, cada vez mais parecido com uma organização empresarial como
havia previsto Charles Moskos no final dos anos 70, por que os cientistas
políticos ainda estão baseando suas análises num modelo teórico construído
para explicar o comportamento de Forças Amadas que se veem e atuam como
uma instituição total? Para os autores citados, o modelo analítico baseado no
estudo das prerrogativas militares seria inadequado para estudar as atuais
organizações armadas que estariam perfeitamente adaptadas à democracia e
subordinadas ao poder civil. Este paradigma, portanto, deveria ser revisto. O
foco mais adequado para se compreender o comportamento das Forças
Armadas contemporâneas seria sua eficácia como organização e não suas
prerrogativas políticas.
Trazendo esta discussão para terras sul-americanas, identificamos dois
casos de exércitos que estão transformando suas estruturas organizacionais
para se adequar a uma nova realidade nacional, regional e internacional.
Nenhum dos dois exércitos estudados, nem o chileno nem o brasileiro,
contestam a autoridade civil e se adaptaram a contento ao regime democrático.
Mas nem por isso, eles podem ser estudados levando em conta apenas sua
eficácia como organização, pois mesmo que o exército chileno se identifique e
se organize cada vez mais como “empresa” é preciso reconhecer que os
militares chilenos ainda desempenham funções típicas de uma instituição
estatal que busca legitimidade junto à sociedade. O exército brasileiro, por sua
vez, ainda que comporte como uma típica instituição estatal, e muitas vezes a
única presente em algumas partes do território brasileiro também não deve ser
estudado considerando-se apenas as prerrogativas que possui. A “eficácia”
com que a Força vem procurando se adaptar aos novos tempos e
principalmente ao novo papel do Brasil no cenário internacional também
merece nossa atenção.
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REFERÊNCIAS
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FIGURAS E QUADROS
Figura 01 - Mapa Estratégico do Exército brasileiro
Fonte: EXÉRCITO Brasileiro. Boletim do Exército, no. 51, de 22 de dezembro de 2006.
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Figura 02 – Mapa Estratégico do Exército chileno
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1.INTRODUÇÃO
2. POLÍTICAS DEFESA
3. MISSÃO E VISÃO
3. TRANSFORMAÇÃO
4.1FUNDAMENTOS
4.2ORGANIZAÇÃO
4.3DOUTRINA
4.4PROJETOS
5. CONCLUSÃO
RESPONSABILIDAD SOCIAL INSTITUCIONALDESARROLLO DE LA CAPACIDAD MILITAR
GESTIÓN DE LA ORGANIZACIÓNTEMAS ESTRATÉGICOS
PERSPECTIVA
DE
RESULTADOS
PERSPECTIVA
DE
PROCESOS
PERSPECTIVA
DE
CRECIMIENTO
PERSPECTIVA
DE
RECURSOS
GESTIONAR EL FUNCIONAMIENTO DE LA INSTITUCIÓN EN FORMA MODERNA, REGLAMENTADA Y EFICIENTE
CONTRIBUIR AL ESFUERZO CONJUNTO DE LAS FUERZAS ARMADAS Y DEL PAÍS, EN LOS ESCENARIOS PREVISTOS O REQUERIDOS
DISPONER DE UNA FUERZA TERRESTRE CON CAPACIDAD DE COMBATE Y DE PROYECCIÓN
EJECUTAR OPERACIONES INTERNACIONALES
INCREMENTAR EL RECONOCIMIENTO CIUDADANO AL EJÉRCITO Y LA VALORACIÓN DE LA FUNCIÓN MILITAR POR LA SOCIEDAD
1. ASIGNAR ESTRATÉGICAMENTE LOS RECURSOS FINANCIEROS EN FUNCIÓN DE LOS OBJETIVOS INSTITUCIONALES
2. REFORZAR LA CONDUCTA MILITAR
11. COOPERAR AL DESARROLLO Y UNIDAD NACIONAL MEDIANTE EL EMPLEO DE CAPACIDADES INSTITUCIONALES, SIN DESNATURALIZAR LA FUNCIÓN MILITAR
8. IMPLEMENTAR EL SISTEMA DE GESTIÓN ESTRATÉGICA DEL EJÉRCITO
3. DESARROLLAR UN SISTEMA DE INFORMACIÓN INSTITUCIONAL INTEGRADO
13. IMPLEMENTAR CAPACIDADES PARAPARTICIPAR EN LA COOPERACIÓN MILITARINTERNACIONAL
10. IMPLEMENTAR UN EQUIPAMIENTO Y APOYO SUSTENTABLE A LA FUERZA TERRESTRE DURANTE SU PREPARACIÓN, ALISTAMIENTO Y EMPLEO
12. IMPLEMENTAR FUERZAS CON UNA ADECUADA CAPACIDADOPERACIONAL, PARA SER EMPLEADAS EN LOS ESCENARIOSREQUERIDOS
9. IMPLEMENTAR UNA INSTRUCCIÓN Y ENTRENAMIENTO QUE AUMENTE LA CAPACIDAD DE COMBATE DE LA FUERZA TERRESTRE
5. CONTAR CON PERSONAL CON LAS COMPETENCIAS PARA EMPLEAR Y APOYAR LA FUERZA TERRESTRE
6. MEJORAR LA CALIDAD DE VIDA DEL PERSONAL
7. DISEÑAR UN EQUIPAMIENTO Y APOYO SUSTENTABLE A LA FUERZA TERRESTRE
4. DESARROLLAR LA DOCTRINA DE OPERACIONES Y DE FUNCIONAMIENTO INSTITUCIONAL
VISIÓN: Un ejército para el combate; eficaz y eficiente en la disuasión, la cooperación internacionaly el conflicto; polivalente, interoperativo, actualizado y sustentable; con una adecuadacapacidad de gestión, con un actuar funcional y valorado por la sociedad a la cual sirve.
Fonte: EJÉRCITO DE CHILE. Memorial del Ejército de Chile, n. 476, diciembre, 2005.
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Quadro 01 – Processo de transformação do Exército no Brasil e no Chile:
mudanças organizacionais
BRASIL CHILE
Exército territorial Exército funcional
Presença – Amazônia Mobilidade
Mobilidade
Aumento do investimento Redução dos gastos
Criação de novas unidades militares Fechamento de unidades militares
Sistema operacional – Brigada Sistema operacional – Brigada
Aumento do efetivo Redução do efetivo
Exército de conscritos Exército profissional
Maior dependência da mobilização Menor dependência da mobilização
Interoperabilidade Interoperabilidade
Preparo por capacidades Preparo por capacidades
Quadro 02 - Processo de transformação do Exército no Brasil e no Chile: visão
geoestratégica
BRASIL CHILE
Atlântico Pacífico
Cooperação regional em segurança e defesa (América do Sul/Atlântico Sul)
Cooperação internacional em segurança e defesa (protocolo da OTAN)
Acordos militares bilaterais Acordos internacionais
Fronteiras consolidadas Disputas fronteiriças com Bolívia e Peru
Postura estratégica dissuasiva Postura estratégica dissuasiva