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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL – PUCRS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A ABERTURA DA POSSIBILIDADE COMO POSSIBILIDADE DE
ABERTURA
Sandro Fröhlich
Professor Orientador: Dr. Ernildo J. Stein
Porto Alegre, junho de 2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL – PUCRS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A ABERTURA DA POSSIBILIDADE COMO POSSIBILIDADE DE
ABERTURA
Aluno: Sandro Fröhlich
Dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Professor Doutor Ernildo Stein como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Porto Alegre, junho de 2009
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SANDRO FRÖHLICH
A ABERTURA DA POSSIBILIDADE COMO POSSIBILIDADE DE
ABERTURA
Dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, sob a orientação do Professor Doutor
Ernildo Stein como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
BANCA EXAMINADORA
Dr. Ernildo J. Stein
Dr. Ricardo Timm de Souza
Dr. Jorge A. Machado
Porto Alegre, junho de 2009
4
RESUMO
O trabalho, a partir da filosofia e pensamento de Martin Heidegger, busca
primeiramente repor a questão – que ficou esquecida no decorrer da história - sobre o sentido
do Ser. Interrogação que é posta e proposta a partir do método da fenomenologia
hermenêutica. Neste questionar há um ente privilegiado: o Dasein. A essência do Dasein é a
sua existência e seu ser é também compreensão do Ser. Dasein que é ser-no-mundo e ser-
com-os-outros, sempre em relação de ocupação com os entes e de solicitude com os demais.
Como ser-em o Dasein é disposição afetiva, compreensão e discurso. Lançado na existência
constitui-se numa tríplice estrutura: existência, facticidade e decaída. Sua disposição afetiva
fundamental é a angústia. O ser do Dasein é revelado como cuidado: é um antecipar-se-a-si-
sendo-já-em (no mundo) em-meio-de (o ente que comparece dentro do mundo). Na
antecipação, o Dasein confronta-se com a morte; em sua finitude, a morte se lhe revela como
a possibilidade da impossibilidade da existência. Assumindo o ser-para-a-morte de forma
verdadeira e autêntica, esta se constitui como uma antecipação para uma possibilidade que é
própria, não-respectiva, insuperável, certa e indeterminada. No interrogar-se quanto ao ser
todo e próprio, surge como testemunho a consciência, que o conclama a assumir o seu poder-
ser próprio e lhe revela a culpabilidade. Pela culpabilidade assume ser-fundamento de um ser
que está determinado por um não, sendo fundamento de uma niilidade. O calado projetar-se
em disposição de angústia para o mais próprio ser-culpável denomina-se então como a
resolução. Resolução que é sempre antecipadora, uma compreensão original do seu ser-para-
o-fim, ou seja, um antecipar-se para a morte.
5
ABSTRACT
This work from philosophy and Martin Heidegger’s thoughts, seeks firstly to restore
the question – that stayed forgotten in the course of history - about the sense of being.
Question that is proposal and put from hermeneutic phenomenology method. In this question
there is a privileged being: Dasein. Dasein’s essence is your existence and your being is too
the comprehension of being. Dasein is being in world and being with others, ever in relation
of occupation between beings and in concern with the others. With being-in Dasein is
affective favorable spirit state, comprehension and discourse. Launched in the existence,
constitute itself in the triple structure: existence, weigh up and fall-off. Your affective
favorable spirit state is anguish. Being of Dasein is show to care: it’s a anticipating itself-
being-in (in the world) in-between-of (Being appear in the world). In the anticipation, Dasein
confronts with Death, in your end; Death is the possibility of its own impossibility. Takes
being-able-to be –there, so true and authentic, this constitute itself with a anticipation for a
possibility that is typical, non-related, insurmountable, and some undetermined. In question
itself as all being and typical, appears with testimony the conscience, that calls to take their
own-being-power and show itself blame. By the blame takes to be ground of being that is
determinated by no-one. It being ground of something which was reduced to nothing. The
quite project itself in anguish position to own more being-guilty is called and then the
resolution. Resolution that is ever advancing, a original comprehension of its being-to-the
end, in the other words, a anticipate itself to Death.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 07
1 – ANÁLISE FUNDAMENTAL PRELIMINAR DO DASEIN .......................... 13
1.1 – A questão fundamental e a fenomenologia .................................................... 13
1.1 – Dasein e Mundo ................................................................................................ 29
1.3 - Ser-em com tal ................................................................................................... 41
1.3.1 - O Dasein como disposição afetiva ................................................................... 42
1.3.2 - O Dasein como compreensão ........................................................................... 46
1.3.3 - Dasein como discurso – a linguagem ............................................................... 52
1.3.4 - A decaída do Dasein ........................................................................................ 54
1.4 - Dasein e angústia ............................................................................................... 58
1.5 – Dasein como cuidado ........................................................................................ 65
2 - POSSIBILIDADE DE SER-TODO E SER-PARA-A-MORTE ...................... 70
2.1 – Apresentação e delimitação do conceito de morte ......................................... 71
2.2 - Morte como possibilidade / Ser-para-a-morte e cotidianidade / Morte como
certeza ......................................................................................................................... 80
2.3 – Antecipação e liberdade ................................................................................... 88
3 - TESTEMUNHO DO PODER-SER PRÓPRIO E RESOLUÇÃO .................. 96
3.1 – Consciência ....................................................................................................... 97
3.2 – Culpabilidade .................................................................................................. 106
3.2.1 - Interpretação cotidiana da consciência e culpabilidade ................................. 113
3.3 - Resolução ......................................................................................................... 115
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 127
7
INTRODUÇÃO
Desde os gregos afirma-se e é consenso que a filosofia nasce a partir do espanto e/ou
da admiração. Talvez ou provavelmente este trabalho é um pouco disto também. Não que o
trabalho seja exatamente uma exímia obra filosófica ou que seu autor seja um filósofo no
sentido mais acadêmico do termo. Mas, certamente este trabalho foi impulsionado e é um
fruto deste espanto e admiração, que foi experimentado e pelo qual o autor foi também
tomado, talvez numa esforçada e suada tentativa de estabelecer e reconhecer a amizade com a
sabedoria.
Espanto quando dos primeiros contatos com os escritos de Heidegger ou os
comentários sobre este. Como consegue este pensador afirmar as coisas com tanta
naturalidade, profundidade, e ao mesmo tempo seriedade? Admiração pela facilidade e
clareza com que consegue transmitir seus pensamentos e idéias. Espanto e admiração ao ver
que as coisas centrais da existência e do saber podem ser tratadas próximas ao leitor,
próximos à vida. Sem construir castelos teóricos e enredados, conduz o leitor, acompanhando-
o para uma tentativa ou efetiva aproximação ‘às coisas como elas realmente são’.
Heidegger é com certeza um dos maiores filósofos do século XX e talvez de toda
história da filosofia ocidental. Foi ele o instaurador de um novo paradigma e um novo modelo
de filosofar. Caminhando, abriu um novo caminho; sua filosofia está sempre num caminhar...
Um caminho foi trilhado não como um memorizar e repetir idéias consagradas, mas no
sentido de aprender a pensar.
E sobre a vida de Heidegger, o que se poderia dizer? Talvez o mais apropriado seja
afirmar como ele o fez, quando numa preleção sobre Aristóteles; ao invés de fazer longas
digressões biográficas, apenas afirmou: ‘Aristóteles nasceu, pensou e morreu’. Heidegger
nasceu (1899), pensou e morreu (1976). Parte de seu caminhar pode talvez ser também
comparado a alguns passos de Platão; as incursões na vida política não foram as mais
louváveis e continuam a gerar polêmicas. Mas o que é certo, que Heidegger por meio de um
pensamento apaixonado nos deixou e deixa grandes legados.
Em relação a Heidegger também são levantadas acusações e comentários de que este
expôs diversos questionamentos, mas, apresentou poucas respostas. Oxalá pudesse ser capaz
de interrogar tanto, com tanta profundidade e caminhar constante e incessantemente em busca
de respostas. Heidegger foi como que acometido pelo pathos do pensar. Pensar o já pensado,
8
não para repetir ou transmitir a idéia, mas para pensar e repensar o que já foi pensado. Pensar
para aprofundar, para recolocar a questão, para intensificar o questionar, desconstruindo o que
já foi pensado e construir um novo pensar.
Para este trabalho é muito válido a metáfora outrora apresentada por Hannah Arendt,
quando afirmava sobre a importância de pensar sem limitações. O pensamento não poderia
ficar preso às tradições e/ou às verdades estabelecidas. Ela apresenta a idéia do corrimão, do
‘pensar sem corrimão’. Ao subir ou descer escadarias, há sempre a possibilidade de se agarrar
ou segurar ao corrimão para não cair. Assim foi certamente para Heidegger e tantos outros,
para que pudessem construir uma filosofia própria, foi necessário em diversos momentos estar
amparados em outros pensadores, idéias e filosofias. O presente trabalho é um exemplo desta
bela metáfora. É um caminhar, construir um texto amparado e orientado pela filosofia de
Heidegger, mas com o intuito de trilhar pessoal e propriamente este caminho.
No decorrer da construção do presente trabalho acompanhou uma pertinente questão e
um grande desafio; horizonte e desafio que permanecem ad aeternum. Como pensar o que já
foi pensado, como recolocar as questões fundamentais, sem imitar ou simplesmente repetir a
tradição, os grandes pensadores e neste caso, Heidegger? Uma mera imitação do indagar
filosófico simboliza ou representa que o questionar foi mal interpretado. Imitar ou repetir
simplesmente a filosofia de Heidegger tampouco seria muito original e autêntico, de acordo
com as idéias do mesmo autor e com certeza esta atitude seria reprovada por ele. O desafio de
pensar e estar no caminho e não simplesmente afirmar que este foi o caminho percorrido por
Heidegger foi norteador para a construção deste texto. Se houve desvios em demasia ou o
quanto foi alcançado o propósito de amparado pelo corrimão filosófico de Heidegger,
conseguir apresentar uma perspectiva autêntica de questões profundas e existenciais, a
questão está ainda aberta e cabe o julgamento do leitor.
O trabalho busca demonstrar que a obra heideggeriana se assenta e parte de uma
questão central que confere unidade: a questão do ser. Se a partir de Aristóteles afirma-se que
o ser se diz em vários sentidos, qual então a determinação unitária que rege todos estes
sentidos? A resposta que Heidegger se propõe a construir é que o ser compreende-se dentro
do horizonte do tempo. No decorrer da história o ser foi sempre tomado e interpretado como
presença, o ser é constantemente presente. A noção tradicional elabora o ser como substância,
aquilo que persiste e subsiste à multiplicidade de determinações. Heidegger não quer
simplesmente terminar com o pensamento metafísico tradicional, mas instaurar uma nova
forma de pensar, abrindo o pensamento à escuta do que ficou encoberto durante muito tempo:
o ser.
9
A obra-mor de Heidegger, Ser e Tempo, uma das mais importantes do século XX, vai
tratar da elaboração concreta da questão do sentido do ser, buscando fornecer uma
interpretação do tempo como horizonte de toda compreensão do ser. A questão do sentido do
ser caiu no esquecimento no decorrer da história; é considerado como o conceito mais geral,
considera-se que sua definição é o que há de mais geral e que é praticamente evidente e,
portanto não é mais necessário questionar sobre. Heidegger repõe novamente a importância e
a centralidade da questão do sentido do ser.
Neste questionar está contida uma estrutura: o que é perguntado – o que orienta e
motiva a investigação; há aquilo sobre o que se investiga e por fim o que constitui o ponto de
partida da investigação e fornece uma via de acesso, que neste caso é o ente. O ser se revela a
partir do ente, mas por meio do ente que põe a questão do ser, que como ele afirma ‘o ente
que nós próprios somos’, o Dasein. O Dasein possui a característica de já sempre estar em
relação com o ser, já se encontra e se constitui no seio da compreensão do ser; a compreensão
do ser é uma determinação do Dasein.
A esta análise do Dasein, Heidegger denomina analítica existencial, pois o ente,
também chamado ser-aí, se diferencia de todos os demais entes. Ao ser-aí está sempre em
jogo o seu próprio ser, desta forma não sendo simplesmente um ente subsistente, mas um ente
que tem como sua essência a existência. Com isto surge uma diferenciação conceitual
importante: para Heidegger ôntico designa tudo o que se refere ao ‘ente’ e ontológico, designa
o que se refere ao ‘ser’. A analítica existencial quer apresentar todos os diferentes modos de
ser do ser-aí, que são existenciais e não categorias.
Para uma verdadeira análise Heidegger propõe o método fenomenológico;
fenomenologia que assume um porte de ontologia. Método que vai se constituir como
fenomenologia hermenêutica, uma descrição fenomenológica da interpretação do ente Dasein.
Não uma fenomenologia que parte da consciência, mas sim da interpretação e compreensão
do ser-aí. Método que conduz o Dasein a compreender o ser, compreendendo sua existência e
interpretando-a como uma possibilidade de ser; o Dasein é o ente cujo ser já está sempre em
jogo. Heidegger retorna aos gregos e instaura uma interpretação e incorpora em sua
metodologia e investigação as idéias essenciais de logos, phainomenon e aletheia.
O primeiro modo de ser do Dasein que é explicitado é o ser-no-mundo. Fenômeno
unitário que engloba uma pluralidade de momentos estruturais: o ente, o mundo, a relação de
ser-em... O ser-no-mundo se caracteriza como um existencial e não como um ser em meio aos
entes como meras categorias. O Dasein somente se constitui enquanto tal porque é ser-no-
mundo; daí a afirmação de que a pedra não possui mundo, o animal é pobre de mundo e o ser-
10
aí constitui mundo. O ser-no-mundo não se constitui como mera relação espacial, como um
objeto estar dentro de outro.
A relação do Dasein com os entes no mundo é primeiramente no sentido de uma coisa
que assume o caráter de utensílio. A relação no sentido grego de pragmata, enquanto o
utensílio é útil em relação a algo e está disponível para uso determinado. O utensílio não se
constitui isoladamente, mas encontra-se em meio a uma multiplicidade de ferramentas, que
remetem a outras. A esta relação com os entes, no mundo denomina-se como ocupação. O
mundo como um horizonte de significação em meio ao qual o Dasein encontra o utensílio
com o qual se ocupa.
A relação não se constitui somente com os utensílios, mas também sempre com o
outro ser-aí. O mundo é sempre em comum com o outro; mesmo que em algum momento
esteja isolado, o Dasein só se constitui enquanto tal porque é ‘co-estar’. Nesta relação
intrínseca de já sempre ser-com-o-outro, continuamente o Dasein é como que subtraído pela
relação impessoal, que ele denomina como ‘a gente’ (das Man). O ser-aí é tomado pela
ditadura do ‘a gente’, que determina como deve viver, o que deve optar, fazer... É a decaída
do Dasein, não uma ‘menoridade’ moral, mas um modo constitutivo do Dasein ser na
cotidianidade.
Outro momento estrutural do Dasein é denominado como ser-em, como abertura ao e
no próprio mundo. Constitui-se então com três existenciais: a disposição afetiva, a
compreensão e o discurso. A disposição afetiva que revela o ‘aí’ no mundo, o modo como o
Dasein já sempre se encontra lançado no mundo, na existência; tonalidade afetiva,
determinação constitutiva do ser-aí que faz parecer o mundo ‘desta’ ou ‘daquela’ maneira.
Revela ao Dasein sua facticidade, do seu já sempre estar jogado e ter que assumir a
existência. Pela compreensão o Dasein descobre-se sempre ‘consigo mesmo’, como
existência; existência que se constitui como projeto, como poder-ser. Compreensão como
existencial que funciona como condição de possibilidade para toda e qualquer compreensão e
interpretação no mundo. O Dasein já é sempre discursivo; discurso como a condição de
possibilidade para a linguagem. A linguagem, as palavras repousam sobre a discursividade
existenciária do Dasein.
A disposição afetiva fundamental é chamada de angústia. Angústia que não se
confunde com o temor. No temor, o que se teme é sempre algo dentro do mundo,
intramundano; o porquê do temor é o Dasein entregue a si mesmo ou às outras espécies de
entes. Já na angústia, o que ameaça não se encontra em parte alguma, não é intramundano. O
que ameaça é o mundo como mundo, que se abre ao Dasein na estranheza de ser-no-mundo. É
11
o ser-no-mundo desabrigado que angustia, mostrando o ‘não-mais-estar-em-casa’; condição
da qual o ser-aí geralmente tenta escapar. É pela angústia que o Dasein percebe o afloramento
do Nada.
A estrutura fundamental do Dasein é o cuidado (Sorge). O cuidado unifica os três
caracteres ontológicos: a existência, a facticidade e a decaída. Cuidado que é conceituado por
Heidegger como um antecipar-se-a-si-sendo-já-em (no mundo) em-meio-de (o ente que
comparece dentro do mundo). Cuidado que não pode ser confundido com o zelo (ôntico), mas
que expõe e revela ao Dasein o seu ser-aí-face-a-si-mesmo, o ser-já-no-mundo e o ser-junto-
do-ente encontrado no mundo.
O Dasein se descobre como poder-ser e pergunta-se pelo poder-ser todo, pela
totalidade de seu ser. Pelo cuidado percebeu que está sempre como que inacabado, face-a-si-
mesmo; como também percebe o seu estar voltado para frente, deparando-se com a morte,
com o seu fim. Como ser de possibilidade, percebe também que a morte é uma possibilidade,
mas seria esta uma possibilidade sempre recuperável, que conduziria à infinitude da
existência? A morte se constitui como a possibilidade da impossibilidade de existência, a
possibilidade extrema do Dasein. A morte não significa um evento que surge ao Dasein desde
o exterior, não se constitui como um falecer. Desde o princípio, o Dasein é determinado pelo
fim, bastando viver para estar velho o suficiente para morrer. O Dasein é ser-para-a-morte. Na
cotidianidade o Dasein não cessa de fugir da morte, esquivando-se e assumindo-a ao modo do
‘a gente’. Assim quem morre é ‘a gente’ em algum momento, mas ainda não; o Dasein foge
da morte como uma possibilidade própria de seu poder-ser.
Heidegger identifica a relação autêntica com a morte como antecipação; a relação
originária do Dasein em seu ser-para-o-fim ocorre na forma de antecipação (Vorlaufen). Desta
forma a morte se constitui para ele como possibilidade que é própria, não-respectiva,
insuperável, certa e indeterminada. Na possibilitação da possibilidade da morte o Dasein
existe autenticamente, assumindo seu mais próprio poder-ser-todo. Pela antecipação, força a
assumir a morte a partir dele próprio, sendo o seu ser-mais-próprio; a antecipação da morte
faz do ser-aí um todo, assumindo sua existência finita a partir do seu ser-para-o-fim.
Heidegger busca e apresenta um testemunho do ser-todo; o testemunho da consciência.
Estando regularmente perdido na impessoalidade, em alguns momentos privilegiados o
Dasein ouve a voz da consciência, que não é a consciência moral da tradição. O interpelado é
o Dasein perdido na impessoalidade, no ‘a gente’. Quem clama pela voz da consciência, é o
Dasein em seu original ser-lançado-na-existência. O estranhamento do chamado, a silenciosa
12
invocação e aquilo que conclama ao Dasein se convergem, conclamando a si mesmo da
impropriedade para seu mais próprio poder-ser.
A voz da consciência está relacionada com a culpabilidade. O ser-culpável originário
do Dasein não lhe vem por ter cometido ações más ou por omissões, mas estas são possíveis
devido ao um original ser-culpado. Como cuidado o Dasein é já sempre ser-lançado na
existência e é neste ser-lançado que se fundamenta a ‘culpa original’. O Dasein precisa
assumir, tomar sobre si o seu ser, sem, contudo ter escolhido este ser; é o fundamento do seu
poder-ser, de suas possibilidades, mas ele mesmo não institui esse fundamento. Pela
culpabilidade assume ser-fundamento de um ser que está determinado por um não, sendo
fundamento de uma niilidade.
O sentido do chamado da consciência se torna claro pela compreensão da própria
culpabilidade, como um ‘querer-ter-consciência’; compreendendo o chamado, ouve sua mais
peculiar possibilidade de existência. A resposta ao clamor da consciência é reconhecer a
culpabilidade, aceitando e assumindo seu poder-ser próprio, o que o Dasein realiza por meio
da resolução ou decisão. Livre, realiza a decisão, num estado de resolução, a aceitação da
possibilidade de existência mais própria; o Dasein elege-se a si mesmo em seu poder-ser
próprio.
13
1 – ANÁLISE FUNDAMENTAL PRELIMINAR DO DASEIN
1.1 – A questão fundamental e a fenomenologia
Heidegger com certeza figura entre os maiores pensadores do século XX, bem como
sua obra mestra – Ser e Tempo1 - pode ser considerada uma das mais importantes do citado
século. O filósofo da Floresta Negra foi um profundo estudioso e conhecedor de distintas
épocas do saber filosófico, tendo grande conhecimento e em diálogo com o primórdio
pensamento filosófico grego – pré e pós socrático -, da Escolástica, da filosofia moderna, de
Kant2 e dos idealistas, bem como dos filósofos e correntes de pensamento de seu tempo.
Sendo sua filosofia bastante original torna-se um tanto complexo ou ao menos não é
uma tarefa simples indicar quais as correntes do pensamento ou os filósofos que mais
operaram como influenciadores diretos de seu pensamento e filosofia. O que sim, pode ser
afirmado com bastante tranqüilidade e clareza é a questão que orienta praticamente todo o
pensamento e desenvolvimento de sua filosofia: qual o sentido do ser? Qual a determinação
simples e unitária do ser que prevalece entre as múltiplas significações do ente? O problema
do ser e a questão em torno do ser é o que vai orientar e nortear toda a filosofia heideggeriana;
é a pergunta central, em torno da qual Heidegger vai buscar respostas em toda a sua vida e no
desenvolvimento de sua filosofia.
Heidegger inicia ST afirmando da necessidade de uma repetição explícita em torno da
questão do ser. Embora praticamente todos tenham ou imaginam ter clareza quando se
questiona sobre o ser ou as diversas formas de manifestação do ente, o filósofo insiste que
esta não é uma pergunta simples ou qualquer. Esta é também a pergunta que deu fôlego às
investigações de filósofos como Platão e Aristóteles. Embora possa ser considerada a
pergunta mestra da filosofia, o conceito de ser, foi ‘considerado o mais universal e vazio,
portanto sendo resistente à tentativa de definição’3. Não estando em pleno acordo com esta
postura e este fio de pensamento, Heidegger propõe, estimula e realiza um verdadeiro retorno
à questão do ser.
1 A partir daqui considerada como ST. 2 Ernildo Stein insiste que Kant é um filósofo mais importante para Heidegger, do que a maioria quer reconhecer, como afirma em seu livro: Antropologia filosófica; questões epistemológicas. Ijuí: Unijuí, 2009. p. 85. 3 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. § 1.
14
Preliminarmente torna-se necessário realizar uma pequena, embora importante
distinção. O ser pode ser usado sob dois modos fundamentais: o uso predicativo, em virtude
do qual afirmamos ‘Sócrates é homem’ ou ‘o céu é azul’; e o uso existencial, em virtude do
qual as afirmações são do tipo: ‘Sócrates é (existe) ou ‘a rosa é (existe)’. Conforme
Abbagnano4, esta distinção é assumida e pressuposta quase que universalmente, sendo que
permanece constante e presente em toda tradição filosófica pós Aristóteles.
É notório afirmar que certos fatos/acontecimentos foram um tanto determinantes para
o trilhar do caminho filosófico de Heidegger e acabaram influenciando consideravelmente o
desenvolvimento deste tema e de toda sua filosofia. Um dos primeiro e mais impactantes
encontros, foi com a obra de Franz Brentano, que Heidegger recebeu em 1907, de Conrad
Gröber, seu protetor e amigo; é inegável a parte determinante que teve na filosofia
heideggeriana a obra ‘Do significado múltiplo do ente segundo Aristóteles’5, pois conforme
Dastur6, esta ‘foi a primeira leitura filosófica de Heidegger e foi ela que decidiu a orientação
do seu pensamento para a questão do sentido do ser’. Por meio desta ocorreu seu primeiro
vínculo com a Metafísica do Estagirita, caminho pelo qual penetrou no pensamento grego e
que de certa forma também o conduziu a Husserl. É o conteúdo das primeiras páginas da
Metafísica de Aristóteles que acabam determinando em grande parte o pensamento do jovem
Heidegger.
Aristóteles denominou quatro diferentes acepções para o ente: 1- por essência e
acidente; 2- segundo as categorias; 3- sob o aspecto do verdadeiro e do falso e; 4- segundo a
potência e o ato (para o Estagirita, a atualidade tem primazia lógica sobre a potencialidade). É
no livro da Metafísica que Aristóteles estabelece a ciência dos primeiros princípios e das
primeiras causas, ou ainda ‘uma ciência que estuda o ente enquanto ente (to ón eh ón) e os
atributos que lhe pertencem essencialmente’7. Fica exposto assim que o ser pode ser tomado
sob diversas acepções, mas sempre em relação a um único termo, a uma única natureza – a
realidade a que pertencem as primeiras causas e primeiros princípios, que é o objeto da
Metafísica.
O ser – não concebido sob o aspecto de acidente – recebe todas as acepções por meio
das categorias8. São as categorias que distinguem os atributos essenciais do ser e de todas
4 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 5 Publicada em 1862 e dedicada a seu professor Trendelenburg, de Berlim. 6 DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990p. 35. 7 ARISTÓTELES, apud. NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 35. 8 Conforme o Organon de Aristóteles, as categorias são: substância (ousía), quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, situação, estado, ação, paixão.
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elas, somente a substância não é um predicamento, ela é em si mesma e de coisa alguma se
predica. A substância é o que subjaz à coisa, como essência, como fundamento – o subjectum
(sujeito). Tudo o que é se enquadra em alguma destas categorias, sendo elas gêneros de
entidades, mas as substâncias são os gêneros mais elevados que existem. O ser mesmo não
constitui um gênero, sendo que cada categoria se ‘refere’ ao ser como o seu princípio,
independente do qual não pode ser considerado como ente. Sem esta natureza determinada e
individual, nenhuma outra categoria poderia ser denominada ou predicada ao ente. Desta
forma, a substância (ousía) corresponde ao ser primeiro, independentemente dos acidentes,
não estando contida em nenhum dos outros modos. Conforme Aristóteles, ‘é por meio dessa
categoria que cada uma das outras categorias existem. Por conseguinte, o ser fundamental
[...], não poderia ser senão a ousía’9.
Aristóteles ainda fixa a distinção entre substância primeira (no sentido fundamental,
primeiro – aquilo que não é nem afirmado de nem afirmado num sujeito) e a substância
segunda (espécie – o ser destas depende do ser da substância primeira, à qual pertence). Esta
distinção coloca o individual e o universal numa relação entre forma e matéria. Nada pode
existir independente da substância e por sua vez ela ‘pertence’ à forma que determina a
matéria, no qual reside o princípio da individuação. E na quarta forma de acepção do ente, é
apresentada a potência, podendo o ente expressar tanto a atualidade como a possibilidade.
Conforme a teoria aristotélica, o ato é anterior à potência, tanto na essência como em relação
ao tempo.
O caráter próprio da substância é que ela permanece idêntica e numericamente uma –
permanente e imutável. Conforme a expressão usada por Nunes10 é uma natureza
determinada ‘em razão da qual, [...] se pode afirmar de uma coisa o que ela é. Dizer-se de
uma coisa o que ela, em sua identidade de ente, é afirmá-la verdadeira’; tem-se assim
elucidada a terceira forma de acepção do ente – como verdadeiro ou falso. O que há de mais
verdadeiro é a ousía, a qual se pode afirmar que é em si mesma; quanto mais uma coisa tem
ser, mais tem ela também a verdade. Desta forma, pode-se deduzir que qualquer acepção que
receba o ente, está sempre revertida à substância, que é o ser primeiro, o sujeito idêntico, que
existe independente de qualquer outro.
No decorrer da história da filosofia, o ser recebeu acréscimos e acepções adicionais,
porém de modo geral, assimilou e seguiu a lição aristotélica. No período medieval, recebeu
9 ARISTÓTELES, apud. NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 36. 10 NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 39.
16
uma distinção, que não emergia com tanta força em Aristóteles: a distinção do ser como
essência e ser como existência. De acordo com a interpretação geral, o ser é o termo mais
amplo, sendo considerado o mais compreensível; embora muitas vezes ocorra a experiência
narrada por Santo Agostinho em relação à pergunta ‘o que é o tempo’: ‘se ninguém mo
perguntar, eu sei; mas se eu quiser explicar a quem me fizer esta pergunta, já não sei’. Hegel,
ao determinar o ser como imediato indeterminado, toma como base de interpretação a
ontologia antiga.
Com facilidade divaga-se sobre ser, até alcançando relativa compreensão no uso da
palavra, mas permanecendo distante de uma compreensão clara quando buscada uma
apreensão do seu significado, permanecendo desta forma indeterminado, indefinido, vago,
impreciso... Usa-se o ser no cotidiano, mas quando levantada a questão em torno do sentido
ou do significado do ser, obriga-se ao reconhecimento do não conhecimento. A questão em
torno do ser praticamente ficou encerrada, na afirmação de que o conceito de ser é o mais
universal e vazio, ao ponto de que ‘se alguém insiste em perguntar ainda por ele, é acusado de
erro metodológico’11. O fato de o conceito de ser permanecer numa espécie de névoa ou
envolto numa escuridão – não alcançando a clareza ou a compreensão que se imagina ter em
torno desta questão – demonstra a necessidade de repetir a pergunta pelo sentido do ‘ser’.
É este o ponto em torno do qual Heidegger parte e busca estruturar boa parte de seu
itinerário filosófico: a pergunta pelo sentido do ser. Esta é a pergunta que novamente precisa
ser formulada e profundamente inquirida, devidamente e de forma transparente. Não é uma
mera e simples tentativa de recompor doutrinariamente a questão, mas de reconstituir o
pressuposto que possibilitou sua formulação. Nunes afirma que esta é uma questão contínua
(esta interrogação não cessa depois de haver conduzido ao seu objeto), reflexiva (problematiza
o campo inteiro da Metafísica) e autoproblematizante (interroga sobre o que possibilita esta
compreensão, sobre aquilo que ela mesma se apóia), ‘sobre a qual assentam os prolegômenos
do pensamento de Heidegger’12. Ainda dentro deste sentido, vale apontar que, embora esta
tenha sido uma questão condutora de pensamento grego desde Parmênides, Platão, bem como
grande parte de todo caminhar filosófico ocidental, esta questão merece ser levantada de
forma ainda mais radical. Para Heidegger e sua filosofia o mais importante não é trazer algo
de novo – alguma novidade filosófica -, pois em filosofia o que interessa é compreender o que
11 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. §1. 12 NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 44-45.
17
é antigo de maneira radical e tentar apropriar-se compreensiva e verdadeiramente sobre esta
questão.
Embora esta tenha sido uma pergunta já formulada pelo jovem Heidegger, de acordo
com Stein13, foram decisivas três intuições básicas para que mais tarde as perguntas em torno
do ser, de seu sentido e suas determinações, atingissem maior clareza, mas ainda inicial. Uma
das intuições girou em torno do conceito grego logos (tornar manifesto), que junto aos
estudos e diálogos com Husserl, acabariam por determinar o conceito de fenomenologia de
Heidegger. Outra intuição importante foi em torno da Aletheia, no sentido de desocultar,
vinculando a verdade como um desvelamento, ao qual pertence todo mostrar-se do ente. E
uma terceira intuição fundamental, quando Heidegger reconhece o traço fundamental da
ousía, do ser do ente como presença.
Um dos grandes erros da metafísica, na visão de Heidegger é tomar o pensar como um
‘ver’ e o ser como um contínuo estar-diante-do-olhar. Quando a metafísica pensa o ser como
presencialidade constante, o pensa a partir de um modo temporal determinado: o presente.
Considerando isto um caminho errôneo da metafísica, Heidegger vai tornar sua interrogação
pelo sentido do ser, como uma pergunta pelo ser e o tempo. A indagação pelas múltiplas
formas de enunciar o ser, torna-se cada vez mais transparente como a interrogação pelo
sentido do próprio ser. De acordo com Pöggeler, é a obra que surge em 192714 que vai tratar
desta questão, em ST se construirá o ‘desenvolvimento da questão de saber como é que o
tempo pertence ao sentido do ser. ST é a tentativa de recuperar pensativamente o que ficou
impensado, o fundamento esquecido da metafísica’15.
Um testemunho importante de que no decorrer da história o ser foi sempre tomado –
inconscientemente talvez - a partir da presença, do presente, ocorre quando analisa-se melhor
o conceito de ousia ou parousia, a partir dos antigos gregos bem como de Platão e Aristóteles.
Heidegger analisou melhor esta questão num curso posterior a ST, no semestre de verão de
1930, intitulado ‘A essência da liberdade humana’16. O significado comum de ousia na
Grécia é a ‘capacidade, o patrimônio – aquilo que se dispõe, a propriedade presente, aquilo
que o camponês constrói e cultiva como seu, aquilo de que ele vive e onde ele mora’17;
portanto, ousia, como aquilo que está constantemente disponível, presente. A partir deste
13 STEIN, E. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 31-32. 14 A escrita real de Ser e Tempo (Sein und Zeit) deve ter ocorrido entre fevereiro e dezembro de 1926. Sua publicação aconteceu na primavera – abril – de 1927. 15 PÖGGELER. O. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 50. 16 Informação contida em: DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 35. 17 GADAMER, H.G. Hermenêutica em Retrospectiva. Vol. 1 – Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 33.
18
significado geral, que foi possível o uso ‘técnico’ do termo ousia como presença constante.
Gadamer apresenta um detalhe importante sobre este aspecto: Heidegger tem muito presente a
língua alemã quando faz a análise mais detalhada desta questão; ousia significa propriedade
presente (Anwesen) – essência. Ser é presença (Anwesenheit)18. O ser é compreendido em
relação com um modo determinado do tempo, o presente. A compreensão a partir da
metafísica tradicional que se faz então é que a verdade do ser é a essência; nas palavras de
Gadamer: ‘Ser significa aqui achar-se diante de nós no sentido do ter-sido-representado.
Verdade seria auto-asseguramento, ou seja, certitudo’19. Para a tradição metafísica, desde os
gregos o lugar da origem da verdade e o acesso a ela é a pura apreensão do que está presente.
O ente que aparece à luz do logos é a presença, a ousia.
Partindo desta significação temporal do ser – como presença constante – para
Heidegger surge concomitantemente uma questão e missão importante – e que por alguns foi
mal compreendida, mas que permeia em grande medida seu caminhar filosófico: a
Destruktion ou destruição. Quando Heidegger, principalmente no § 6 de ST propõe uma
destruição da tradição ontológica e metafísica, para que o ser possa adquirir uma ‘verdadeira
concreção’, não está propondo uma simples negação da tradição metafísica. A idéia de ‘des-
construção’ da metafísica não conduz a uma ‘dizimação’ ou um aniquilar. O que estava sendo
proposto pelo filósofo da Floresta Negra é o de novamente trazer à luz esta questão do sentido
do ser, repetir a interrogação – levantar de novo – agora e sempre de maneira mais radical esta
mesma questão que ficou um tanto esquecida pela história. É um apropriar novamente,
desconstruindo a linguagem conceitual que orienta e conduz o pensamento metafísico em
torno do ser, desde os gregos até o pensamento moderno. Heidegger insiste que é mister
recolocar radicalmente esta questão pelo sentido do ser, mas ela também deverá despertar
uma compreensão para esta mesma indagação.
Conforme Stein20 a idéia de desconstrução num sentido mais amplo e profundo situa-
se na problemática da metafísica como um todo. A filosofia de Heidegger representa todo um
paradigma para repensar as categorias metafísicas. Não será realizado o trabalho de
conceituar/explicitar ou entrar na discussão aqui do que se compreende por paradigma;
contudo, pode-se afirmar que a mudança paradigmática empreendida pelo filósofo de 18 Inwood apresenta que Wesen é a ‘essência, natureza interna ou princípio’ de uma coisa; substantivação do verbo desaparecido wesen, ‘ser, ficar, durar, acontecer’ que originalmente significava ‘morada, vida, modo de ser, vigor’... ‘A palavra grega ousia pode significar ‘essência’, mas Heidegger associa Wesen à expressão de Aristóteles to ti en einai, ‘essência, lit. o que [ele] era ser’, que como Wesen, tem a ver com o passado’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 19 GADAMER, H.G. Hermenêutica em Retrospectiva. Vol. 1 – Heidegger em retrospectiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 34. 20 STEIN, E. Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
19
Freiburg a partir dos anos, foi uma das mais importantes da história da filosofia e veio para
durar/permanecer. Uma das principais mudanças foi o deslocamento do lugar fundamental do
sujeito e da consciência para a idéia de mundo ou ser-no-mundo. Esta não foi apenas uma
mudança puramente teórica ou meramente semântica, mas foi fruto de longos e aprofundados
estudos e confrontações com a filosofia e com o seu próprio pensamento. Enfim, Heidegger
com a proposta da desconstrução da metafísica, propõe a superação do esquema sujeito-
objeto.
Kant, Descartes e Aristóteles são os autores escolhidos por Heidegger, para a partir
deles realizar a desconstrução da metafísica. A idéia de desconstrução não é algo que se
realiza ou empreende desde uma perspectiva de fora, do exterior; a metafísica não é um objeto
abordado por Heidegger desde fora. A desconstrução realiza-se desde dentro da metafísica,
pois é da ‘missão’ da filosofia compreender o todo, explicitando os conceitos a partir e em
função de um todo. É uma superação da metafísica, adentrando-se nela para ‘refazer a
construção com que a metafísica trabalhava ao se auto-expor nos textos da história da
filosofia’21. Nesta auto-exposição torna-se fundamental descobrir ou descortinar aquilo que
permaneceu ocultado; aquilo que esteve encoberto precisa se tornar manifesto e nisto que se
precisa aprofundar.
A destruição da metafísica é uma desconstrução, não uma mera eliminação. Um ponto
importante para amparar esta perspectiva que Heidegger afirma é que o próprio ser humano é
metafísico – metafísico não no sentido de transfísico ou que esteja relacionado ou que
pertença a outro mundo. Mas no sentido de que o homem é radicalmente finitude; o homem se
move num universo limitado entre dois espaços que eram tradicionalmente da metafísica: o
espaço da teologia e da cosmologia. Heidegger suprime a teologia e cosmologia de seus
espaços sagrados na metafísica e transforma a metafísica no âmbito do ser humano. Pode-se
afirmar sob esta ótica que o campo da filosofia se torna reduzido a partir desta desconstrução
empreendida por Heidegger, pois realiza-se o que vem a ser chamado como um
‘encurtamento hermenêutico’22.
Isto não impede que questões cosmológicas ou teológicas sejam colocadas, mas que
estas são postas desde fora; o ponto de partida será a facticidade humana. Heidegger não
postula uma eliminação da metafísica, nem deixa ele mesmo de ser metafísico, mas abandona
21 Id. Ibid., p. 50. 22 STEIN, E. Seis estudos sobre ‘Ser e Tempo’. Petrópolis: Vozes, 1998. ‘O que denomino de encurtamento hermenêutico: a rejeição de Deus e das verdades eternas e a forclusão (rejeição) do mundo e da rejeição das leis naturais (o que Heidegger chamará de superação da metafísica) e a proposta de superação da relação sujeito-objeto, base das teorias da consciência, preparam, portanto, em Heidegger, a mudança do paradigma tradicional e a proposta de uma nova questão do método’. p. 28.
20
a metafísica no sentido objetivista, no sentido da entificação do ser; a questão do ser deixa de
ser uma questão de objeto. Nas palavras de Stein, Heidegger propõe um novo paradigma ‘ que
contém a idéia de que podemos olhar a metafísica como ligada a nosso modo de ser-no-
mundo como um todo no qual devemos superar o esquema da relação sujeito-objeto’23.
Outra intuição fundamental para o pensamento e a filosofia de Heidegger é a intuição
da aletheia24. Esta intuição ‘está no impulso inicial de seu pensamento e dela nasce seu
próprio modo de dizer aquilo que essencialmente persegue com sua meditação’25. Esta não é
apenas uma intuição a mais ou uma idéia a mais que esteja presente na filosofia de Heidegger,
mas é sim uma idéia/sentido que permeia toda filosofia dele e que surgiu por meio de um
trabalho rigoroso e metódico; a aletheia somente se revelou ao interrogar insistentemente e na
direção acertada. Chega-se inclusive a afirmar que a aletheia resume o trabalho e filosofia de
Heidegger, pois nela eclode toda história da filosofia, retornando aquilo que estava
impensado26.
Heidegger traduz aletheia como ‘desvelamento’; alguns contemporâneos ou
comentadores preferem a tradução a partir do grego como ‘desocultamento’. Aletheia vem
geralmente conectada ou relacionada com o dizer: o dizer da verdade ou o iludir; e sob esta
perspectiva outro termo poderia ser mais apropriado para a tradução: ‘desencobrimento’. É
pela linguagem que é arrancado o véu, aquilo que velava e a apresenta para o pensamento,
traz para o desvelamento. Contudo, aquilo que é desvelado, que é descoberto (que estava
velado) se mantém preservado e este é o aspecto ontológico de fundamental importância para
a compreensão da aletheia; como uma espécie de jogo de velamento-desvelamento. Esta
dimensão havia sido totalmente esquecida no pensamento, mais fortemente no pensamento
moderno com a idéia preponderante da consciência, que acaba tomando o ser como um
objeto. Esta perspectiva conduz com facilidade a uma vontade de domínio, um domínio do
objeto, do ente, do ser, do saber...
Tomando a idéia/intuição de aletheia a partir de ST, pode-se observar um dos seus
principais pressupostos, a superação da relação sujeito-objeto, agora vista a partir deste
prisma. A relação sujeito-objeto se estrutura sob a perspectiva da ontologia da coisa;
perspectiva esta que é superada a partir de ST quando o ser humano – Dasein – é analisado
como ser-no-mundo. Como ser-no-mundo a relação sujeito-objeto fica como em segundo
23 STEIN, E. Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 53. 24 Aletheia é o termo grego para ‘verdade, veracidade, honestidade, sinceridade’. Em grego, uma inicial a é em geral privativa. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 25 STEIN, E. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001. p. 78. 26 Id. Ibid., p. 79.
21
plano, derivado ou posterior da relação já sempre existente com o mundo. Com a
compreensão da aletheia torna-se também possível realizar uma distinção entre o
conhecimento como compreensão do ser e o conhecimento como objetivação dos entes numa
relação sujeito-objeto.
Aquilo que se retrai, sendo contudo a abertura, escondendo-se como fundamento da relação sujeito-objeto, é a aletheia pensada em sua verdadeira essência, pois, a aletheia sustenta a presença em que se confrontam o eu e o objeto. Pensado como aletheia o ser adquire sua dimensão ocultante-desocultante que se manifesta ativadora da presença27.
Superando o movimento tradicional da metafísica que está ancorado nos eixos da
substância e da subjetividade, Heidegger explicita o conteúdo da aletheia. O eixo sobre o qual
se movimenta a filosofia de Heidegger passa a ser a possibilidade, mas não a possibilidade no
sentido que Aristóteles ou a tradição a compreendia, mas o sentido de possibilidade que ficou
velado ou impensado na tradição. É a aletheia que vai auxiliar na elucidação do conceito de
possibilidade, mas já nas primeiras páginas de ST podemos ter uma idéia da centralidade que
ela ocupa no pensamento heideggeriano, quando afirma que ‘acima da realidade (atualidade)
situa-se a possibilidade’28. É a partir da possibilidade que Heidegger interpreta e assume o
conceito de aletheia, que servirá de horizonte para o desenvolvimento de sua filosofia e toda
linguagem que se movimente no binômio de velamento-desvelamento; adquire ou assume um
verdadeiro sentido quando assumida dentro do âmbito da possibilidade como aletheia. ‘A
possibilidade é, então, aquilo que ao mesmo tempo vela e desvela. Vela-se na presença que
faz emergir e desvela-se enquanto se esconde nessa presença’29.
Já foi apontado o quanto Heidegger insiste na idéia de repor a questão fundamental,
perguntando pelo sentido do ser, que se havia esquecido. Aletheia vem justamente ao encontro
deste propósito, ao incentivar um adentramento na metafísica, buscando penetrar naquilo que
havia permanecido velado, esquecido, aquilo que não havia sido pensado. A aletheia é a
presença que aponta para aquilo que permaneceu esquecido (lethe), que aponta para o
velamento. Embora simples, faz-se necessário uma distinção ou esclarecimento importante: o
esquecimento do ser de que aqui se trata não é um mero esquecimento psicológico ou fruto de
uma inaptidão intelectual; mas Heidegger está se referindo ao um esquecimento metafísico,
ontológico.
Assumindo um caráter e estatura ontológica, a aletheia de certa forma serve de
elemento para uma tentativa de resumo da filosofia de Heidegger, quando nas primeiras
27 Id. Ibid., p. 82. 28 HEIDEGGER. Apud, Id. Ibid., p. 82. 29 STEIN, E. Compreensão e Finitude: estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2001. p. 86.
22
páginas de ST afirma que esquecemos o ser e mais, que esquecemos este esquecimento. Mas
este esquecimento não é apenas uma via de mão única, pois também ‘o ser é esquecimento à
medida que se retrai, se esconde sob os entes que o velam, é esquecimento para o homem que
se movimenta em meio à familiaridade dos entes’30. Desta forma, o pensamento do ser é
lembrança, ligando desta forma o esquecimento com a lembrança, o que leva Stein a afirmar:
‘pensar o esquecimento como esquecimento é pensar o ser pela lembrança. Desacostumar os
olhos à pura presença e detê-los na ausência é vigiar o ser como esquecimento’31.
A metafísica que se centrou sobre o pensamento do ente, é nomeada como ‘a história
do esquecimento do ser’; não pensando a diferença entre o ser e o ente. A metafísica pensou o
ser como pura presença e não tomou consideração do ser como velamento, por isto a
necessidade reforçada da retomada do pensamento do ser, do pensamento daquilo que
permaneceu esquecido enquanto esquecido; constituindo-se assim o esquecimento mais
profundo, ou seja, não lembrar o ser como esquecimento, como velamento.
A partir da análise da história da metafísica, Heidegger define que há três prejuízos
básicos que justificam a necessidade da repetição da pergunta pelo sentido do ser. 1. O ‘ser’ é
o conceito mais universal: ao afirmar que o ser é o conceito mais universal, não se pode
automaticamente deduzir que seja também o mais claro ou que não necessite de discussões
ulteriores. O ser talvez seja o conceito mais obscuro. 2. O conceito de ‘ser’ é indefinível: o ser
não é derivado definitoriamente desde conceitos mais altos, tampouco pode ser explicado
mediante conceitos inferiores. O fato do ser não se constituir como ente, reforça e convida a
repetição da pergunta. 3. O ‘ser’ é um conceito evidente por si mesmo: ‘o fato de que já
sempre vivamos numa compreensão de ser e que, ao mesmo tempo, o sentido do ser esteja
envolto em obscuridades, demonstra a principal necessidade de repetir a pergunta pelo sentido
do ‘ser’’32.
Trata-se então de expor original e adequadamente a pergunta fundamental que
interroga pelo sentido do ser, pois com ela não se pretende simplesmente inquirir, mas ela
deverá conduzir a uma resposta. Tendo presente que esta é uma pergunta singular entre as
demais perguntas cotidianas, visto sua importância como pergunta ontológica. A estrutura
desta pergunta se conjuga em quatro pontos, que mostram sua singularidade e ao mesmo
tempo, em conjunto sua fundamental radicalidade: 1. Algo de que se pergunta algo; 2. O que
30 Id. Ibid., p. 95. 31 Id. Ibid., p. 95. 32 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 27.
23
se pergunta do anterior ou aquilo pelo que se pergunta; 3. Aquele que faz a pergunta e; 4.
Algo ou alguém a que ou a quem se faz a pergunta.
1. Numa pergunta qualquer, aquilo de que se pergunta é um ente, algo que é em
alguma acepção ou forma. Na pergunta ontológica não se pergunta por nenhum ente, mas é a
única que pergunta algo daquilo que faz com que todos os entes sejam eles mesmos.
Perguntando pelo ser dos entes, deduz-se que o ser necessariamente é e deve ser algo distinto
dos entes. Assim também a compreensão do ser deverá ser distinta da compreensão que se
alcança do ente; também o acesso ao ser deverá ser distinto do acesso comum aos entes.
2. Aquilo pelo que se pergunta num questionar comum/cotidiano é o ente ou o
sentido de um termo do ente, em sua acepção. Já a pergunta ontológica questiona pelo sentido
daquilo que é distinto de todo ente. O ser posto em questão necessita de todo um modo
particular de ser mostrado, diferente do modo de ser mostrado do ente. Para compreender o
sentido do ser que é questionado, será mister o uso de linguagem e de todo um repertório de
conceitos peculiares. O que é próprio ao ente e aos conceitos que os explicitam é ôntico e o
que é próprio ao ser e os conceitos a ele concernentes é ontológico.
3. Quem faz a pergunta é o homem. A pergunta pelo sentido do ‘ser’ já é um
modo de ser daquele que faz a interpelação, do homem, ‘do ente que somos em cada caso nós
mesmos, os que perguntamos’33. Isto significa que o ente que faz a pergunta se torne
transparente em seu ser. O realizar a pergunta pelo sentido do ser – sendo o modo de ser deste
ente – já é determinado essencialmente por aquele por quem se pergunta: o ser. Ao ente que
pergunta e que sempre somos nós mesmos, será denominado de Dasein34.
4. Para revelar o sentido do ser que é questionado pelo Dasein, há um ente
privilegiado que deve ser interrogado: o mesmo ente que faz a pergunta, o homem mesmo.
Sempre já estando e sendo uma compreensão do ser – como seu modo de ser –, esta não é
uma compreensão plena, não se constituindo rigorosamente em uma compreensão ontológica,
mas sim pré-ontológica. Quando aqui é usado o conceito de compreensão, não se trata
meramente de uma compreensão intelectual, mas de uma compreensão num sentido mais
básico e decisivo que toda compreensão intelectual. Como ente em que sua constituição está
sempre em jogo seu ser e a compreensão do ser.
Heidegger ainda insiste que esta pergunta pelo sentido do ser possui um primado
ontológico. Embora as ciências positivas constantemente apresentem diversas e aprofundadas
33 Id. Ibid., p. 30 34 Conforme Inwood, Heidegger, em ST, usa Dasein para: 1. O ser dos humanos e; 2. O ente ou pessoa que possui este ser. ‘Como infinitivo substantivado, Dasein não tem plural. Refere-se a todo e qualquer ser humano...’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
24
respostas sobre o homem e sobre algumas regiões do ser, o perguntar ontológico é mais
originário que o perguntar das ciências. A pergunta pelo ser busca ‘determinar as condições a
priori da possibilidade das ciências que investigam o ente enquanto tal, [...] senão que
apontam também a determinar a condição de possibilidade das ontologias mesmas’35. A
ontologia, que funda e antecede as ciências, é cega e contraria sua real finalidade própria se
não consegue aclarar o sentido do ser e se não assumiu isto como sua tarefa fundamental.
Sem aprofundar ou esgotar a exposição do tema, aqui torna-se importante também
apontar que dentro do ôntico há um ente que possui primazia: o Dasein, na medida que ele é
existência. Ele é distinto de outros entes, pois não ocorre simplesmente entre outros entes,
porque no seu ser se trata sempre deste ser; a existência tem uma relação com o ser e
conseqüentemente uma compreensão do ser. A primazia da existência, como compreensora de
seu próprio ser, pode ser compreendida a partir de três pontos. 1. A existência tem primazia
ôntica (entre todos os entes, ela é caracterizada por possuir uma relação com o ser,
determinada pela existência). 2. Tem primazia ontológica (sendo compreensão do ser, é em si
ontológica). 3. ‘Com fundamento na sua compreensão do ser, ela compreende o seu próprio
ser e o ser do ente não próprio da existência, é assim a condição ôntico-ontologica da
possibilidade de todas as ontologias’36.
Mas, qual é o método que deve seguir e orientar esta investigação fundamental? O
método fenomenológico. Heidegger, na introdução de ST, já alerta para não aproximar esta
análise da tradição, pois o método considerado o mais propício para uma efetiva e
aprofundada compreensão do que é buscado não pode ser ancorado ou fornecido pela
ontologia tradicional. O autor deixa bastante claro e enfatiza que a questão fundamental da
filosofia do sentido do ser, será estudada fenomenologicamente; e não será mais um estudo
dentro das áreas da biologia, psicologia ou outra ciência ôntica ou de alguma outra tendência
ou metodologia dentro da tradição filosófica ou metafísica.
O método fenomenológico não pretende ser apenas mais uma ferramenta importante
para a descoberta de um ente ou para revelar uma região do ente. Não é um elemento técnico,
que visa apontar os conteúdos e elementos a serem observados e analisados para, a partir da
análise experimental alcançar conclusões sobre o investigado. A fenomenologia pensada por
Heidegger não é algo exterior, criada e utilizada para enquadrar um objeto específico de
investigação dentro dos parâmetros pré intuídos ou fixados pelo investigador/filósofo.
35 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p.34 36 PÖGGELER. O. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 52-53.
25
Heidegger herda e assume um pressuposto de Husserl para a sua fenomenologia: ‘às coisas
mesmas’.
Muito mais do que um ‘que’ dos objetos de investigação filosófica, caracteriza-se pelo
‘como’ destes objetos. Pensar e/ou filosofar é também sempre seguir construtivamente um
método; e o método fenomenológico facilita este itinerário que vai desvelando o que se vai
pensando e investigando, bem como o método mesmo vai se explicitando e se tornando cada
vez mais auxiliar e expressivo. Neste sentido pode ser enquadrada a proposta heideggeriana
de apenas, nos passos iniciais de sua obra, expor um conceito provisório da fenomenologia,
não por uma decisão de simples estruturação do texto, mas como uma imposição do caminho
da reflexão.
Heidegger faz a exposição preliminar do que entende pelo conceito de fenomenologia,
interpretando etimologicamente os dois radicais gregos que o compõe: ‘phainómenon’ e
‘logos’. Numa visão um tanto superficial, fenomenologia poderia ser tomada a partir ou em
semelhança da formação de ‘nomes’ como teologia (ciência de Deus) ou biologia (ciência da
vida), podendo assim fenomenologia significar: ciência dos fenômenos. Mas outro é o
caminho seguido.
Primeiramente Heidegger analisa o termo ‘fenômeno’.
‘A palavra grega phainómenon, à qual remete o termo ‘fenômeno’, deriva do verbo phainesthai, que significa: mostrar-se; então phainómenon significa: aquilo que se mostra, o manifesto. Phainesthai é o infinitivo médio de phaino: trazer ao dia, colocar na luz; phaino pertence à raiz pha como phõs, a luz, a claridade, isto é, aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, visível em si mesmo’37.
Fenômeno pode ser interpretado, portanto como aquilo se mostra em si mesmo, o
manifesto. Por fenômenos Heidegger entende o ‘conjunto daquilo que está ou pode ser trazido
à luz’38, que os gregos denominavam ‘entes’; este que se mostra ‘a partir de si mesmo de
diversas maneiras, conforme o modo de acesso a ele’39.
Mas o ente também pode mostrar-se da forma que ele não é, e esta maneira designa-se
por ‘parecer’. E desta forma surge um segundo elemento para o conceito phainómenon, como
aparência; ‘tão somente na medida em que algo, conforme seu sentido mesmo, pretende
mostrar-se, ser fenômeno, pode mostrar-se como algo que ele não é, pode tão somente
parecer’40. O primeiro sentido (como aquilo que se mostra) é o fundamento para o segundo
sentido (como aparência). À palavra fenômeno Heidegger atribui o sentido original e positivo
37 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 51. 38 Id. Ibid., p. 52. 39 Id. Ibid., p. 52. 40 Id. Ibid., p. 52.
26
de seu radical grego, distinguindo-o da aparência, que seria uma modificação privativa de
‘fenômeno’.
Para Heidegger o fenômeno pode assumir quatro conotações. 1. Anúncio daquilo que
não se manifesta. 2. Anúncio enquanto ele próprio é um fenômeno, aquilo que em sua
manifestação, aponta àquilo que não se manifesta. 3. Designação do significado primário de
‘fenômeno’. 4. Sentido de puro fenômeno. Mas para nosso autor o importante é o
esclarecimento fenomenológico de fenômeno. A partir desta conceituação formal, pode-se
auferir o conceito vulgar e o conceito fenomenológico de fenômeno. Neste sentido Heidegger
expressa que ‘no horizonte da problemática kantiana, o que se entende fenomenologicamente
por fenômeno: o que no fenômeno, em sentido vulgar, se manifesta sempre de modo prévio e
implícito, ainda que não tematicamente, pode ser levado a manifestar-se tematicamente’41.
Trata-se ainda de estabelecer o conceito de logos. Costuma-se afirmar que logos
significa discurso, mas o conceito de discurso necessita, portanto ser mais bem conhecido e
explicitado. As diversas interpretações posteriores, muitas delas arbitrárias, interpretam
‘discurso’ como razão, juízo, conceito, definição, razão suficiente ou relação.
Em ST Heidegger define que logos, ‘enquanto discurso, significa deloun, tornar
manifesto aquilo sobre que se discorre no discurso [...] o logos faz ver alguma coisa, a saber,
aquilo sobre o que se discorreu; ele o faz ver àquele que discorre ou àqueles que discorrem
entre si’42. Complementa ainda que no discurso autêntico, a comunicação discursiva deve
tornar manifesto aquilo que é dito, expressado por meio da fala.
Nesta relação de possibilitar ser visto aquilo que é mostrado, Heidegger relaciona o
logos com o verdadeiro e o falso; pois pelo fato de fazer ver, tanto pode ser verdadeiro, como
pode ser falso. Traz à tona também o conceito de aletheia, é um momento em que duas
intuições fundamentais de Heidegger mostram toda riqueza de compreensão; também quando
afirma que o ‘ser-verdadeiro de logos como aletheúein significa que este logos retira do
velamento o ente do qual fala, através do légein como apophainesthai; ele o faz ver, o
descobre como verdadeiro desvelado (alethés)’43.
Tendo determinado cada um dos termos que compõem a palavra fenomenologia, pode-
se estabelecer o conceito provisório. A partir do grego ‘légein ta phainómena’, significa
então: ‘fazer ver a partir de si mesmo aquilo que se manifesta (mostra), tal como a partir de si
41 Id. Ibid., p. 54. 42 Id. Ibid., p. 55. 43 HEIDEGGER. Apud: STEIN, E. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983.
27
mesmo se manifesta (mostra)’44. Note-se aqui a relação direta com a interpretação que
Heidegger faz de aletheia.
O conceito traz implícito não mais a idéia simplesmente de ‘às coisas mesmas’, num
sentido vulgar, mas busca um acesso ou indica um modo de acesso àquilo que deve ser
buscado por meio da pergunta fundamental; interrogando também o modo do próprio ser dar-
se a conhecer, do modo do ser manifestar-se. Por isto a necessidade de ampliar o conceito de
fenomenologia formal para um conceito fenomenológico de fenomenologia, a partir de uma
análise mais aprofundada do que Heidegger entende por fenômeno: aquilo que
‘primeiramente e o mais das vezes, justamente não se manifesta, o que está velado em face do
que primeiramente e o mais das vezes se manifesta, ainda que pertença ao mesmo tempo e
essencialmente àquilo que primeiramente e o mais das vezes se manifesta, e de tal maneira
que constitua seu sentido e fundamento’45. É, portanto a fenomenologia compreendida nestes
moldes que pode dar acesso ao fenômeno no sentido fenomenológico e não apenas no sentido
vulgar de fenômeno.
A fenomenologia é o meio, sendo o caminho que permite acessar aquilo que foi
estabelecido como a questão fundamental, o sentido do ser. É pelo método fenomenológico
que se pretende o desvelamento, daquilo que em sentido próprio está velado ou permanece
dissimulado, que não é um simples ente, mas sim o ‘ser do ente’. Não sendo o ser interpretado
como fenômeno, a fenomenologia ‘procurará transformá-lo em fenômeno no sentido
fenomenológico, como aquilo que se oculta no que se manifesta e, contudo, constitui o
fundamento de tudo o que assim se manifesta’46.
A explicitação do sentido do ser é tarefa da ontologia, entendida no seu sentido lato.
Mas a ontologia não como foi levada à cabo dentro da história, como a que permitiu ou
conduziu o processo de velamento e dissimulação do ser, do sentido do ser do ente. De modo
que Heidegger afirma que a ‘fenomenologia é o modo de acesso e de determinação
evidenciante do que deve constituir o tema da ontologia. A ontologia somente é possível
como fenomenologia’47. Com isto o filósofo não pretende simplesmente desdenhar ou
descartar toda a tradição e ontologia que foi desenvolvida, mas sim lança a propositura de
penetrar mais profundamente no chão que havia sido esquecido pela tradição. Heidegger
percebe que a tradição, principalmente a ontologia ‘ingênua’ de Husserl precisa ser superada,
44 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 57. 45 HEIDEGGER. Apud: STEIN, E. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983. p. 63. 46 STEIN, E. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983. p. 64. 47 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 58.
28
pois havia a necessidade de outro método segundo a exigência do objeto que voltava a ser
questionado. Stein comenta que ‘o ser que se manifesta de múltiplos modos somente podia ser
captado mediante um instrumento adequado às diversas condições de sua eclosão’48.
Entretanto, a questão fundamental - o sentido do ser - não pode ser atingida ou visada
diretamente, pois o ser é sempre o ser de algum ente. Desta forma, a pergunta pelo sentido do
ser deve ser respondida através da análise de um ente, que deve ser questionado propriamente.
A fenomenologia como ontologia necessita da análise fenomenológica de um ente
privilegiado, e a partir de então realizar uma inquirição fenomenológica sobre o ser e o
sentido do ser. A análise deve ser a partir do ente privilegiado, tanto ôntica como
ontologicamente, o ‘ser-aí’, o Dasein. É a partir da analítica das estruturas fundamentais do
Dasein que a fenomenologia assume uma perspectiva hermenêutica, de interpretação e
explicitação.49
É bastante claro que a questão do ser é a mais ampla e universal, mas ao mesmo tempo
nela está contida a questão do ente individual como ‘ser-aí’; por isto que se torna possível a
análise do ser a partir da analítica das estruturas fundamentais do Dasein. É por meio da
interpretação particularizada do Dasein, que Heidegger espera obter um horizonte necessário
para uma compreensão e uma explicitação do ser em geral. A fenomenologia deve ser
hermenêutica; hermenêutica no sentido de uma analítica da existencialidade da existência.
Conforme Heidegger a ‘filosofia é ontologia fenomenológica universal, que parte da
hermenêutica do ser-aí; esta, enquanto analítica existencial, dá o fio condutor de toda a
problemática filosófica, fundamentando-a sobre a existência, de onde brota toda a
problemática e sobre a qual ela repercute’50. É a fenomenologia hermenêutica que ‘funda o
horizonte de abertura no ser-aí concreto, que permite a interrogação pelo sentido, pela verdade
do ser em si mesmo’51.
48 STEIN, E. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983. p. 65. 49 Stein analisa a questão da hermenêutica em A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983. p. 90 e seguintes. Algumas passagens para expor e elucidar melhor esta análise. “A expressão ‘hermenêutico’ se deriva, diz Heidegger, do verbo grego hermeneúein. Este se liga ao substantivo hermeneús. Através de um jogo mental, que mais se impõe que o rigor da ciência, o substantivo pode ser ligado ao nome do deus Hermes. Hermes é o mensageiro dos deuses. Cabe a ele trazer a mensagem do destino; Hermeneúein é aquela exposição que comunica à medida que tem possibilidades de escutar uma mensagem. [...] ‘Através do que foi dito se torna claro que o hermenêutico não é primeiramente a explicação, mas, antes disto, já o trazer uma mensagem e comunicação’. [...] Tratava-se e trata-se ainda de levar o ser do ente a se manifestar; é claro que não ao modo da metafísica , mas de tal maneira que o próprio ser se manifeste como fenômeno. O próprio ser, - significa: presença do que se presenta, isto é, a diferença ontológica de ambos a partir da unidade simples”. 50 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. § 7. p. 61. 51 STEIN, E. A questão do método na filosofia: um estudo do modelo heideggeriano. 3 ed. Porto Alegre: Movimento, 1983. p. 67.
29
Para o presente trabalho não serão explicitadas as conceituações e interpretações de
fenomenologia, hermenêutica do ‘segundo Heidegger’. Serão tomados centralmente os
conceitos que partem de ST, mas não no sentido de excluir as complementações e trabalhos
posteriores sobre estas temáticas. Busca-se acompanhar a perspectiva da obra ST, no sentido
de estabelecer a temporalidade como um horizonte para o questionar e o descobrir o sentido
do ser.
Como já apontado anteriormente neste trabalho, há um ente que possui a primazia no
questionar pelo ser, sendo o ente por meio do qual, analisando sua estrutura fundamental,
pode-se chegar ao sentido do ser; sendo este ente o homem, o Dasein. O Dasein é existência,
sendo distinto dos outros entes, não ocorrendo simplesmente como e entre os outros entes; a
existência de seu ser trata deste próprio ser. A existência tem uma relação de compreensão
com seu ser, uma compreensão ontológica. Esta relação com o ser, desde Kierkegaard pode
ser compreendida como ser determinado pela existência. Nesta relação de compreensão do
seu ser, busca-se a estrutura fundamental da existência, estrutura esta que é caracterizada ou
denominada como existenciária. Os existenciais do Dasein diferenciam-se das categorias, que
são ‘determinações do ser do ente não próprio da existência’52.
É a analítica existencial que procura expor esta estrutura, os existenciais. Esta analítica
não se propõe como uma compreensão de estruturas estanques, estabelecidas idealista ou
artificialmente, mas como uma analítica a partir do concreto, a partir das questões concretas e
centrais da existência. Sabendo da primazia ôntico-ontológica do Dasein, e a partir da
analítica existencial, é possível afirmar que Heidegger constrói uma ontologia fundamental, a
partir da qual são possíveis todas as demais ontologias. Ontologia que deverá ser buscada na
analítica existencial da existência. Por meio desta analítica existenciária, Heidegger se
propunha a explicitar a compreensão do ser como ser.
1.2 – Dasein e Mundo
A fenomenologia hermenêutica assumida em ST não é uma mera interpretação, mas
pretende ser ela própria hermenêutica, ou seja, buscar suas raízes no próprio homem, no ser-
aí; enquanto que a situação deste ente é também hermenêutica, movimentando-se num círculo
hermenêutico, sendo o ente que compreende o ser. A interpretação ocorre somente porque o
52 PÖGGELER. O. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. p. 52.
30
Dasein já sempre compreende de alguma maneira; a vida já sempre se compreende a si
mesma. A análise é uma analítica existencial, pois o ser-aí é analisado a partir de sua
existência fáctica.
O propósito de analisar o Dasein em seu modo de ser, em sua existência como ter-que-
ser tem que partir de algum ponto, partindo-se, portanto da existencialidade da existência.
Não se trata de construir o Dasein e uma realidade concreta e então realizar a investigação,
nem de outra forma, analisar o Dasein e suas estruturas numa perspectiva idealista ou
idealizante. A análise que Heidegger pretende ocorre a partir da ‘indiferente imediatez e
regularidade’53, a cotidianidade ou medianidade. A idéia de cotidianidade não coincide com a
idéia de primitivo, com a analítica de fases primitivas do Dasein ou da humanidade. A
cotidianidade pode ser tomada ou compreendida como um modo de ser deste ente.
Heidegger afirma que o ente cuja análise deve ser empreendida ‘somos sempre nós
mesmos’; ‘o ser deste ente é cada vez o meu’54. No ser deste ente privilegiado sempre está em
jogo, em questão ou está imbricado o seu próprio ser. Disto pode-se afirmar, portanto que a
‘essência’ deste ente é a sua própria existência. O que se concebe como sua essencialidade
deve ser compreendida a partir de sua existência. A essência consiste em que o ente tem-que-
ser (Zu-sein). Existência aqui deve ser diferenciada rigorosamente da compreensão tradicional
de existentia. Para a tradição ontológica existentia quer dizer o mesmo que estar-aí
(Vorhandensein), que é uma forma não compatível com o ser e o modo de ser do Dasein.
É uma ruptura radical com Husserl, pois Heidegger abandona com isto a subjetividade
do sujeito, a centralidade do ‘eu’ e a autoconsciência55. O Dasein representa algo distinto do
ego-cogito cartesiano e moderno. O homem não é mais compreendido a partir de si mesmo,
como nas filosofias do sujeito e da consciência, mas o Dasein compreende-se sempre em
relação ao ser; pois seu ser constitui-se como compreensão do ser, o Dasein se comporta a
respeito de seu ser. É igualmente uma ruptura no sentido de que o Dasein não é mais
interpretado como estar-presente ou estar-a-vista.
53 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 69. 54 Id. Ibid., p. 67. 55 Stein apresenta e ressalta a crítica de Heidegger a Husserl. Heidegger “rejeita o ‘observado imparcial’, ao puro ver teorético, a partir do qual, segundo Husserl, se revelariam as estruturas da subjetividade, que possibilitam a posse do mundo e a experiência, e se revelaria o próprio sentido do ser. Para Heidegger, não é o observador imparcial, mas a realização, o exercício da própria existência concreta que já sempre revela o mundo e as possibilidades da experiência e o próprio ser. [...] O método fenomenológico de Husserl quer ser uma reflexão universal. Esta se realiza a partir do eu transcendental que através do espectador imparcial, permite o acesso a todos os problemas da filosofia. Pondo em dúvida e problematizando o espectador imparcial e o eu, a partir do qual tudo se constitui, Heidegger arrasa a universalidade do método fenomenológico. Pôr em dúvida o eu transcendental, rejeitar a redução fenomenológica, era minar em sua base todas as pretensões de Husserl...’. STEIN. E. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. p. 53-54.
31
O termo Dasein é já utilizado na filosofia, mas com sentidos diferenciados ao que
Heidegger lhe atribui. Kant estabelece a correlação entre existência (Dasein) e realidade. Para
este pensador, existência seria como a segunda categoria de modalidade, opondo-se ao não-
ser, e mediante a qual se postula o conhecimento da realidade. Também Hegel emprega a
expressão Dasein, fazendo uma distinção de Dasein, como simples determinação do ser, e a
existência, que é o ser em relação. Conforme Abbagnano, para Hegel ‘o Dasein é o ser com
determinado caráter ou qualidade, aquilo que se chama em geral de ‘alguma coisa’’56.
Contudo para Heidegger o substantivo Dasein é restringido aos seres humanos, no sentido de
‘ser-aí’; ‘Da’ como ‘aí’ e ‘sein’ como ‘ser’, portanto Da-sein. A compreensão deste ente
também necessariamente deve ‘passar’ por uma compreensão de mundo (não como uma
totalidade de entes, mas relativo ao ser humano).
Heidegger não trata de homens ou pessoas, mas sempre se refere como Dasein. O
homem é o seu ‘Da’, significando também o ‘Da’ como ‘abertura’ (Erschlossenheit) deste
ente. Para Tugendhat57, a palavra e idéia de ‘abertura’ foi uma eleição de Heidegger para
substituir a idéia de ‘consciência’ de Husserl, com o claro intuito de distanciar-se da idéia de
consciência intencional e cunhar um conceito e uma terminologia mais ampla. O mesmo
pensador também comenta que Heidegger faz uso evocativo das palavras, portanto nem
sempre fazendo explicitação analítica ou esclarecedora do sentido que pretende atribuir a cada
termo ou conceito de que faz uso na exposição de sua filosofia. Enquanto que para diversos
comentadores de Heidegger o uso de Dasein seria uma vantagem, abrangendo o âmbito da
compreensão do conceito, Tugendhat tece uma severa crítica ao uso deste termo. Para ele
Dasein é um singulare tantum, não tendo plural, sendo igualmente complicado realizar uma
transposição deste termo para outra gramática, chegando a afirmar: ‘eu não consigo ver o
sentido positivo que possa ter a introdução do termo Dasein. É um maneirismo com
conseqüências negativas...’58.
Para Tugendhat, o filósofo da Floresta Negra se teria feito compreender melhor quanto
à idéia de existência se tivesse realizado uma distinção entre existência no sentido de ‘estar-a-
vista’ (Vorhandenheit) e existência no sentido de ter-que-ser (Zu-sein). A existência do
Dasein é no sentido do ‘ter-que-ser’, é ao modo de viver, que supõe um começo e um fim, um
período de duração da existência. Para o comentador, viver trata-se de um modo especial de
existir, pois é necessário um processo para manter-se na existência, como afirma, ‘um
56 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 888. 57 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. 58 Id. Ibid., p. 135.
32
processo de auto-conservação. E, porque tal ente existe exatamente tanto tempo como dura o
processo, se pode fazer equivalente esse processo – a vida – com seu existir’59. Complementa
ainda mais adiante que é o ‘existir no sentido de viver, no qual o ente que existe ou vive, vive
(é) de tal maneira que ‘em seu ser’ se comporta com este ser (existir, viver), compreendendo-
o’60.
Nesta compreensão de existência, num comportar-se consigo mesmo, compreendendo
seu ser, pois seu ser trata de ter-que-ser, tem um sentido prático-volitivo. Este ente, o Dasein,
comporta-se com seu ser como o que tem-que-ser, querendo ou não. Em certa medida, neste
contexto é factível uma comparação com a famosa interrogação de Hamlet: ‘ser ou não ser?’.
Não é uma simples pergunta teórica, mas uma interrogação prática que requer um
posicionamento de decisão e uma resposta em uma oração intencional, uma decisão. O que
está em jogo, em questão na existência como ter-que-ser é o sentido de que a ‘existência que
em cada momento tenho a minha frente é a que tenho que ser, a que tenho que realizar de uma
ou outra maneira ou decidir-me a não realizá-la’61.
A relação que cada Dasein tem com sua própria existência difere-se totalmente da
relação que qualquer outro Dasein poderia ter com esta existência. O outro, ou até o Dasein
mesmo em algumas ocasiões, pode ter uma relação teórica ou de prognóstico com a ‘minha
existência (Jemeinigkeit)’62. O Dasein comporta-se sempre praticamente com sua própria
existência, não podendo evitar este modo de comportamento, pois tem que realizar sua
existência, tem que decidir-se a um determinado modo de ser, não é jamais substituível nesta
relação com sua existência, com este modo de ser.
Desta forma se tornam bastante explícitos dois aspectos fundamentais do Dasein, o da
‘facticidade’ (Faktizität)63 e da ‘possibilidade’. As duas estão fortemente imbricadas no
campo prático. Por um lado o Dasein já sempre se encontra em determinada situação, em
inevitável facticidade e por outro nenhuma situação prática exclui completamente o jogo de
possibilidades. O Dasein, como ter-que-ser, comporta-se com seu ser em relação a sua
possibilidade mais própria. O Dasein é cada vez sua possibilidade; possibilidade não no
59 Id. Ibid., p. 138. 60 Id. Ibid., p. 139. 61 Id. Ibid., p. 139. 62 ‘O advérbio Je significa ‘sempre, já, alguma vez’. O ser desta entidade é em cada caso sempre meu (je meines). Heidegger então forja Jemeinigkeit, o ‘sempre meu’’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 63 “Heidegger utiliza para a factualidade de Dasein a palavra derivada do latim Faktisität; isto ‘implica que um ente dentro do mundo possui ser-no-mundo de tal forma que pode compreender a si mesmo como dedicado e vinculado ao seu destino com o ser destes entes que ele encontra dentro de seu próprio mundo’”. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
33
sentido de que talvez não pudesse aí estar ou como uma forma imperfeita de realidade
(sentido aristotélico). Este modo de ser, conforme expressa Heidegger no § 9 de ST pode ser
de propriedade ou impropriedade. Propriedade não sendo compreendida, nesta exposição
inicial, como uma forma inferior ou deficiente do modo de ser do Dasein.
Tendo realizado esta exposição, com um caráter preparatório, da estrutura fundamental
do Dasein cotidiana e mediana, empreende-se a partir de agora a compreensão do existencial
constitutivo do ser-no-mundo. O existencial do ser-no-mundo deve ser compreendido em seu
sentido unitário, e não como uma junção de momentos constitutivos do Dasein. O estar-no-
mundo do Dasein diferencia-se da compreensão geral da idéia de estar-em como ‘algo estar
dentro de outro algo’, como por exemplo, a água estaria dentro do copo ou a cadeira dentro da
sala. Estes entes possuem o mesmo modo de ser de estar-aí, como objetos que se encontram
dentro do mundo. Estes modos dos objetos estarem um dentro do outro podem ser
representados por seu modo de ser categoria; já diferente é o modo de ser-no-mundo como
existencial do Dasein.
O ser-no-mundo do Dasein não se constitui como uma relação espacial de estar no
mundo, como mais um corpo (ente) que se encontra em meio aos demais entes. O sentido que
Heidegger atribui é no modo de residir, habitare, permanecer, estar familiarizado com, estar
acostumado... O ser-no (mundo) é no sentido de permanecer no mundo de uma forma
familiar, de estar familiarizado com..., de absorver-se no mundo. Não é uma justaposição do
ente Dasein com o ente mundo, aos moldes que se pode afirmar que a cadeira está próxima ou
afastada da parede. Também os demais entes não podem assumir este caráter de ser, pois
segundo Heidegger os entes simplesmente existentes carecem de mundo – (a pedra carece de
mundo, o animal é pobre de mundo e o Dasein é constituidor de mundo). Mesmo se
considerar o Dasein ao modo de estar-aí, com o seu ter-que-ser como um peso a carregar, esta
facticidade não pode ser considerada ao modo de estar-aí como um mineral ou como uma
árvore está no mundo. Conforme afirma Azúa, sob este aspecto, para Heidegger ‘o mundo não
pode entender-se como a totalidade das coisas reais conhecidas de um modo indeterminado,
senão como a condição ontológica para que os entes intramundanos nos ‘venham-ao-
encontro’ (begegnen)’64. Pelo fato de diferenciar o modo de estar no mundo do simples ente à
vista, do modo de ser-no-mundo do Dasein, não significa que a este lhe foi retirada a sua
64 AZÚA, J. B. R. De Heidegger a Habermas: Hermenéutica y fundamentación última en la filosofía contemporánea. Barcelona: Herder. 1997. p. 49.
34
espacialidade. Representa justamente que esta somente é possível sobre a base do ser-no-
mundo enquanto tal65.
Em virtude de sua facticidade, um dos modos de ser-no-mundo do Dasein é pela
ocupação, ocupar-se de algo; que podem ser maneiras como empreender, cuidar, cultivar ou
modos deficientes como omitir, renunciar... O termo nesta analítica assume um sentido
ontológico, como existencial da estrutura do Dasein, designando ‘o ser de uma determinada
possibilidade de ser-no-mundo’66. Não representam condições ônticas que podem ocorrer na
vida, tais como preocupações, aflições, mas como um caráter de seu ser-no-mundo representa
que o Dasein é sempre essencialmente ocupação.
O ser-no-mundo não é uma característica ou um existencial que é facultativo ao
Dasein, ou seja, não é algo que as vezes ele pode ser e outras vezes não possua este caráter. O
Dasein não é primeiramente uma substância e que posteriormente se corporifica e se torna
presente no mundo, bem como não é um espírito ou alma que em dado momento assume um
corpo e se apresenta ao mundo para conviver com os demais entes presentes. Toda relação do
Dasein no mundo é possível porque o Dasein é ser-no-mundo. O ser-no-mundo não é uma
atitude que pode ser realizada esporadicamente, mas pode ser considerado com um elemento
transcendental da estrutura do Dasein. O Dasein como ser-no-mundo não é um mero
elemento natural que se conecta a outro como liame natural. Heidegger também rompe com a
idéia de sujeito, que acrescentaria à sua essência uma vivência no mundo, em meio aos
objetos.
Nesta linha e ponto de análise, um elemento importante a ser abordado é a questão do
conhecimento. Sendo a questão ou uma das questões centrais na filosofia em todos os tempos,
Heidegger apresenta esta questão dentro deste tópico do Dasein como ser-no-mundo. O
conhecimento ‘é uma parte’ do Dasein – o conhecimento é um modo de ser do ser-no-mundo
-, não sendo uma propriedade que lhe venha do exterior, porém cabe esclarecer como se funda
no ‘interior’ do Dasein esta relação de conhecer. O conhecimento se fundamenta no elemento
estrutural do Dasein de já sempre ser-no-mundo, não no sentido de um simples contemplar,
mas como já apontado, sempre como ocupação. O Dasein já sempre está ocupado, absorvido
em sua lida no mundo e para que o conhecimento contemplativo seja possível é requerida
65 O Dasein é espacial de uma forma que nenhuma outra coisa extensa é. Um aspecto importante da espacialidade do Dasein é a Ent-fernung. Para Heidegger ‘Entfernung pertence à distância entre as coisas e o Dasein; distâncias do Dasein são estimadas não em termos quantitativos, mas cotidianos (longe, perto, o tempo que se leva para fumar um charuto...). Outro aspecto da espacialidade é a ‘orientação’ ou ‘direcionalidade’, ‘direções’ (esquerda, direita, em frente...), que se baseiam na habilidade geral de orientação do Dasein’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 66 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 83.
35
certa deficiência da ocupação com o mundo. Quando se abstém de outros modos como
produzir, manejar, lhe resta o modo de permanecer-junto, o que permite que o ente que então
comparece seja contemplado em seu puro aspecto. Por meio deste modo de ser, que se abstém
de produzir, numa espécie de simples contemplação do objeto em seu aspecto, que se torna
possível a apreensão do que está-aí. ‘A apreensão se realiza na forma de um falar de algo
(Ansprechen) e de um falar que diz algo como algo (Besprechen von etwas als etwas)’67. Esta
apreensão se converte em determinação, de modo que o que foi apreendido e determinado
pode ser expresso em proposições, e como enunciado, pode se reter ou conservar.
A mundanidade é um conceito que se refere à estrutura do Dasein como ser-no-
mundo, e compreendendo o mundo num aspecto ontológico, que este é um caráter do próprio
Dasein. Mundo pode assumir múltiplos sentidos, e entre estes Heidegger aponta quatro
diferentes concepções que o conceito pode assumir. 1. Mundo, no sentido ôntico, como a
totalidade de entes que podem estar-aí dentro do mundo. 2. Mundo, no sentido ontológico, o
ser do ente na concepção de mundo do ponto acima. 3. Mundo como o ente que por essência
não é o Dasein e que pode comparecer ‘intramundanamente’. 4. O conceito ontológico-
existencial da mundanidade. Tradicionalmente a tentativa de descobrir ou expor o conceito de
mundo ocorria a partir da natureza, mas Heidegger aponta que o Dasein somente pode
‘descobrir’ a natureza em um modo determinado de ser-no-mundo e que a natureza não pode
tornar compreensível a mundanidade.
O mundo mais próximo ao Dasein do cotidiano é o mundo circundante (Umwelt). O
ser-no-mundo com os entes acontece com o modo de lidar com estes, que não vem a ser um
modo apreensor, como já apontado. O modo de ser do Dasein no cotidiano é sempre ao modo
de lidar, de ocupar-se com as coisas, de utilizá-las para o seu ser cotidiano. O ente que
aparece na ocupação é sempre tomado como útil, instrumento, utensílio (Zeug); a partir do
grego pode ser tomada como pragmata, sendo a relação primeira com as coisas e com o
mundo uma relação pragmática, ou seja, a forma mais original de ocupar-se é a práxis. O útil
aparece ao Dasein de diversas formas e para diversas serventias, sendo que o que torna o útil
um útil para o Dasein é a sua instrumentalidade - pragmaticidade (Zeughaftigkeit).
O utensílio não existe de forma isolada, mas sempre como uma totalidade de
utensílios; é dentro do todo dos utensílios que o utensílio pode se constituir enquanto tal.
Desta forma o utensílio é sempre um ‘para algo’, que faz a remissão do algo para algo.
Portanto, de acordo com sua instrumentalidade, o utensílio é sempre como pertencente ao
67 Id. Ibid., p. 88.
36
todo dos utensílios. A título de exemplo: a casa é sempre vista em seu todo dos utensílios
(cadeiras, mesas, quadros...) e não primeiramente cada um em separado dos demais objetos.
O instrumento mostra-se mais genuinamente em seu ser manejado pelo Dasein; quanto
mais a relação se constituir no uso, mais o objeto se mostra como útil, dentro de seu todo de
úteis e como um ‘para algo’. Ou seja, ‘o modo de ser do útil em que este se manifesta desde
ele mesmo, o chamamos de estar à mão (Zuhandenheit)’68. Por ser constituído por este caráter
de ser à mão, o ente se torna disponível e manejável; de modo que a pura contemplação
teórica ou teorética não seria capaz de explicitar o ente que está à mão. ‘O lidar com o útil
subordina-se ao ‘complexo remissional do para-algo’. A visão que ocorre neste subordinar é a
circunspecção (Umsicht)’69. O comportar-se prático não é a-teorético; segundo Heidegger a
contemplação é originariamente um ocupar-se e que todo agir possui a sua própria visão (de
circunspecção)70.
O ‘central’ da ocupação cotidiana do Dasein não é simplesmente o utensílio, mas a
obra mesma; o que ocupa primeiramente é a obra que em cada caso há de ser produzida. É a
obra que vai infundir o ‘para-que’ em cada utensílio. O que é produzido não é produzido
simplesmente por produzir, mas sempre lhe é inerente um ‘para-que’: o relógio é para marcar
as horas; a caneta é para escrever... Nesta produção da obra há ainda outro elemento
importante, uma remissão dos materiais. Ao produzir um par de sapatos, este sempre remete
ao couro, aos fios, cola; o couro que era de algum animal; o animal que estava no campo,
sendo tratado..., que pode ser chamado de complexo referencial. E por meio destes úteis,
revela-se também a natureza. Na interpretação da natureza, esta não é tomada como um
simples estar presente ou como mera força da natureza, mas ela é descoberta como
‘serventia’: o vento que impulsiona as velas; a árvore que poderá ser transformada em lenha e
posteriormente alimentar a lareira... Mas não pára por aí: a obra também sempre remete ao
portador ou usuário; remete à sua composição. Ainda, a obra não está presente apenas num
‘mundo privado’, mas está num mundo público, pelo qual se torna transparente a ‘natureza do
mundo circundante’71.
68 Id. Ibid., p. 97. Afirma Inwood, que Zeug é zuhanden; seu modo de ser é Zuhandensein, - heit, ‘manualidade. Zuhanden, lit. ‘para, em direção das mãos, à mão’. Zuhandenheit: ‘aquilo com que nós em primeiro lugar e imediatamente nos deparamos são coisas de uso mais do que coisas neutras’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 69 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 97. 70 Inwood traduz Umsicht por circunvisão: o tipo de Sicht – visão – que está envolvida em Umsehen, ‘olhar em volta. [...] Aquilo com que lidamos na ocupação em geral é o instrumento, o manual, e a circunvisão é justamente aquilo de que necessitamos para essa lida. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 71 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 98.
37
Na cotidianidade aparecem também os entes imediatamente à mão, mas que não são
possíveis de serem utilizados. A ferramenta pode estar estragada, o material não mais servir,
porém a situação deste instrumento segue sendo como um ente à mão. Este ‘não servir mais’ é
descoberto não na contemplação, mas na circunspecção do lidar com as coisas. Não sendo
mais empregável, o utensílio chama a atenção, e nesta não-empregabilidade revela seu estar à
mão como tal. Mas não é somente com o não empregável que se defronta, bem como com a
ausência de algo que se imaginava ou supunha estar aí. No seu ‘não estar presente’ quando
necessitado, este ente se revela como ente à mão, ente que somente está aí. Outra forma de
revelar o ente à mão é pela ‘obstaculização’ do ocupar-se, que estorva e desta forma mostra
sua ‘rebeldia’ na ocupação. Por estas formas que o ente mostra-se com um estar-aí. Todas
estas maneiras são formas de impedir a remissão da totalidade dos úteis, no seu ‘para-algo’, ‘é
uma quebra das conexões remissionais descobertas na circunspecção’72. E resume Heidegger
mais adiante em ST, sobre a interpretação que se realizou até este ponto: ‘ser-no-mundo, é
absorver-se atemática e circunspectivamente nas remissões constitutivas do estar à mão da
totalidade dos úteis’73.
Há outro tipo de entes utilizáveis com caráter de referência, no sentido ‘informativo’,
os signos - sinal. A utilidade do signo coincide com a capacidade de referência. Para Vattimo
‘o signo não tem outro uso senão referir-se a algo. [...] No signo revela-se de maneira
particularmente clara o que em geral é próprio de todas as coisas intramundanas, isto é, a
referência, no sentido da conexão com outra coisa’74. O estar-em-relação apresenta-se como
prestabilidade e referibilidade, desta forma manifestando a essência da coisa intramundana; o
signo revela a mundanidade do mundo e o ser das coisas. Um sinal é também a parte especial
de um instrumento, o instrumento-sinalizador; seu ser-em-função-de é indicar.
Sendo ser-no-mundo em meio à utilização dos entes como suas ferramentas ‘para-
algo’ ou tomando-os como entes à mão, o Dasein é também ser-com os outros. O útil refere a
outros úteis, que estão na circunvisão, tornando transparente a mundanidade do mundo; mas
também o ser-com os outros se encontra referido. Ao referir as diversas conexões que a
produção de uma obra pressupõe, inclui-se também a referência ao portador ou a quem é
destinada a obra; no fornecimento dos materiais já sempre estão referidos os fornecedores, os
transportadores que não são instrumentos ou simples entes à mão. Onticamente já sempre
percebe-se a presença e a necessária relação do Dasein com o outro, o que confirma o que
72 Id. Ibid., p. 102. 73 Id. Ibid., p. 103. 74 VATTIMO, G. Introdução a Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 31.
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Heidegger afirma ontologicamente, que o Dasein como ser-no-mundo é sempre também ser-
com os outros.
Grande parte dos pensadores da tradição, que consideram o ser humano a partir da
centralidade da consciência – dos estados mentais – apresenta a relação com os outros
também como um partir da própria consciência. Primeiramente o sujeito toma consciência de
si mesmo e no segundo momento dos entes não-humanos. Toma conhecimento dos processos,
aparência, funcionamento do próprio organismo, bem como das questões interiores,
relacionadas à mente e espírito. E posteriormente então o Dasein perceberia que há no mundo
outros entes que possuem formas, aparências e comportamentos similares aos seus. Então
iniciaria uma relação com os outros, a partir da empatia, das necessidades, por interesses...
Compartilharia o filósofo da Floresta Negra com esta perspectiva?
Heidegger afirma que os outros comparecem ao Dasein, tomando como referência o
Dasein próprio, mas não é necessário a construção de um canal especial para acessar o outro,
ou o outro não é alguém absolutamente alheio ou estranho ao Dasein. O ‘com’ referido neste
existencial tem o modo de ser do Dasein, que também é ser-no-mundo ocupando-se
circunspectivamente com os demais entes; portanto, a compreensão do ser-com o outro é
existencial e não categorial (como um ente qualquer). O ser-no-mundo é também já sempre
determinado pelo ‘com’, de modo que ‘o mundo é desde sempre aquele que eu comparto com
os outros. O mundo do Dasein é um mundo em comum (Mitweld). O ser-em é um coestar
com os outros’75.
O coestar é um existencial do Dasein, de forma que o Dasein é essencialmente ser-
com (Mitsein)76. O coestar determina existencialmente o Dasein, mesmo que a presença do
outro nem sempre seja percebida no plano ôntico e da ocupação no dia-a-dia. Não é a
presença ou a ausência do outro que leva a afirmar e concluir que o Dasein é essencialmente
coestar, mas é justamente por ser ontologicamente coestar que o outro pode comparecer ou
estar ausente na convivência cotidiana. O fato de cada Dasein ter que assumir sua existência,
de tomar cargo do seu viver, ou de muitas vezes encontrar-se sozinho ou solitário no plano
das vivências, não retira jamais o caráter existencial de ser-com os outros. O coestar
constitutivo do Dasein também não é medido ou baseado pela quantidade de amigos ou pela
capacidade de empatia que o mesmo estabelece com os demais.
75 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 144. 76 Mitweld: o mundo-com, as pessoas à nossa volta, convivência. Mitsein: Heidegger também usa Mitdasein (Dasein-com), bem como Miteinandersein (ser-um-com-o-outro). É um erro considerar Selbstsein como originário e derivar Mitsein ou outros a partir dele. Embora Sein-bei, Mitsein e Selbstsein sejam igualmente originários, não são separáveis: cada um deles pressupõe os outros. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
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Se ao modo de ser-no-mundo o caráter de relação é a ocupação, no que tange o ser-
com os outros a relação se estabelece como solicitude (Fürsorge)77. A solicitude se funda na
estrutura do Dasein enquanto ser-com. Desta forma também o cuidado com o próprio Dasein
(cuidados com o corpo, saúde, apresentação...) é uma forma de solicitude e não mera
ocupação. Mesmo quando a atenção ao outro ou o conviver seja indiferente, não representa
que o outro seja tomado como um ente à mão, mas apenas transparece um modo deficiente de
coestar.
Quanto ao modo ‘positivo’ de estabelecimento da relação de ser-com, Heidegger
apresenta duas possibilidades básicas. A primeira forma é uma espécie de substituição, ou
seja, ‘quando a solicitude assume pelo outro aquilo de que há que ocupar-se’78. O outro é
desincumbido de realizar a sua ocupação, com tendência a se tornar dependente ou dominado.
Frente a este modo, Heidegger aponta o modo de ‘antecipação’, não mais para retirar o
‘cuidado’ que cabe ao outro na ocupação, mas justamente para lhe restituir genuinamente.
Auxilia ao outro tornar-se transparente em seu cuidado e livre para ele. ‘O compromisso em
comum com uma mesma causa se decide desde a existência (Dasein) expressamente
assumida. Somente uma autêntica solidariedade torna possível tal sentido das coisas, que
deixe ao outro em liberdade para ser ele mesmo’79.
Na ocupação com os entes à mão, é própria a circunspecção. A solicitude é regida pelo
respeito (consideração) e pela indulgência (tolerância). Estes podem ser conduzidos a modos
deficientes, tais como o desrespeito ou total desconsideração, bem como à indiferença.
A mundanidade é apresentada por Heidegger como uma totalidade remissional de
significatividade, por meio da qual o Dasein deixa comparecer o ente em sua condição
respectiva. Mas também no mundo comparecem os outros, no seu constitutivo como ser-com.
Sendo, para o Dasein está sempre em questão ou seu próprio ser, lhe é constitutivo o ser-com
os outros, de modo que o Dasein é essencialmente ‘em função do outro’, compreendido
existencialmente. Neste sentido, os outros já estão sempre abertos em seu próprio Dasein e
esta abertura ‘constituída previamente pelo coestar, é, pois também parte integrante da
significatividade, isto é, da mundanidade que é o modo como a significatividade se consolida
77 Várias palavras e conceitos heideggerianos são oriundos de Sorge: Sorge pertence ao próprio Dasein, besorgen às suas atividades no mundo e Fürsorge ao seu ser-com-outros. Das Besorgen: ‘ocupação’ no sentido de ‘ocupar-se de ou com’ algo. Lidar do Dasein com as coisas no mundo: ‘tratar e cuidar de alguma coisa, produzir algo’; focaliza o presente e o ser junto às coisas dentro do mundo. Fürsorge: ‘preocupação’, é ‘cuidar ativamente de alguém que precisa de ajuda’. Usado para as outras pessoas e não para o instrumento. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 78 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 147. 79 Id. Ibid., p. 147.
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como tal no existencial ‘ser-em-função-de’’80. Por isto que as coisas já sempre aparecem ao
Dasein enquanto entes à mão e por este meio também já sempre se torna transparente a
coexistência dos outros. Esta abertura significa que na compreensão do ser do Dasein já está
dada também a compreensão dos outros, não como uma interpretação intelectual, mas uma
compreensão originária. No estar com o outro se constrói uma relação de ser de Dasein a
Dasein.
Afirma Heidegger que o ‘caráter de sujeito’ do próprio Dasein e do Dasein dos outros
se determina existencialmente e que os outros comparecem, na ocupação do mundo, na forma
que são e são aquilo que fazem. O conviver é determinado existencialmente pelo caráter de
distancialidade, o cuidado por uma diferença frente aos outros. Esta distancialidade mostra
que o Dasein está submetido ao domínio dos outros no conviver do dia-a-dia. ‘O arbítrio dos
outros dispõe das possibilidades cotidianas do Dasein. Porém estes outros não são
determinados outros’81. O Dasein está inadvertidamente sob o domínio indeterminado dos
outros no seu coestar. São os outros que ‘existem’ imediata e regularmente; o ‘quem’ fica
sempre no plano impessoal, não sendo um determinado ‘este’, ‘aquele’... Heidegger refere-se
a estes outros indeterminados fazendo uso da expressão/conceito Man82, como sujeito
impessoal.
No conviver cotidiano o Dasein ‘se dissolve’ nesta forma de viver, cujo ritmo é ditado
pelos ‘outros’. O filósofo faz uso da expressão ‘estamos sob uma ditadura do ‘outro’’83, para
mostrar como de modo geral vive-se como ‘os outros’ vivem, a forma de diversão é ditada
pelos ‘outros’; enfim, a moda, a literatura, o noticiário, a economia, a cultura... seguem o
padrão estabelecido pelo modo impessoal, ao qual praticamente todo Dasein segue, sem
perceber-se determinado ou empenhado existencialmente neste modo de ser.
O modo de ser que é ‘estabelecido’ pelos outros é o da medianidade, sendo este um
caráter existencial ‘dos outros’. O impessoal movimenta-se nesta medianidade naquilo que
opta realizar, nos seus afazeres e preferências diárias... A medianidade silenciosamente nivela
e estabelece o que pode e o que não pode ser realizado do dia à noite; toda originalidade
80 Id. Ibid., p. 148. 81 Id. Ibid., p. 151. 82 Não há propriamente uma tradução ou um termo adequado em português que possa carregar integralmente o sentido que o termo Man usado por Heidegger apresenta. Um termo usado com sentido muito próximo ao que o autor propõe, talvez seria ‘a gente’, usada geralmente no sentido impessoal. Inwood apresenta algumas exposições. Man: pronome indefinido da terceira pessoa, que se aplica a seres humanos de ambos os sexos. Das Man: impessoal. O fenômeno do impessoal mostra que o Dasein não é um eu ou ego no sentido cartesiano. O impessoal não é nem uma coisa boa nem uma coisa má. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 83 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 151.
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torna-se banal, tudo assume um caráter de trivialidade; de modo que a medianidade revela
uma tendência de ‘nivelação de todas as possibilidades de ser’84.
É a distancialidade, a medianidade e a nivelação que constituem o modo de ser
chamado como ‘publicidade’, sendo esta que regula, de antemão, toda interpretação de mundo
e de Dasein. A publicidade apresenta tudo como conhecido e de acesso simples a todos. O
‘impessoal’, ‘a gente’ está em todas as partes, mas já sempre está ausente ou já escapou no
momento de tomada de decisão. O impessoal tira o encargo, tornando mais ‘leve’ o cotidiano,
permitindo ou favorecendo que a vida seja assumida como mais simples, mas fácil... ‘Todo
mundo é outro e ninguém é si próprio. O impessoal é [...] ninguém a quem todo Dasein já se
entregou sempre em seu estar com os outros’85.
O Dasein próprio se encontra ‘perdido’ neste modo de dependência e impropriedade.
Isto não relega o Dasein a um nada ou o rebaixa a uma categoria moral inferior de
humanidade; isto demonstra um modo de ser do Dasein que é também real. Não é um ‘sujeito
universal’ que paira sobre as singularidades, tampouco é uma espécie de espírito (maligno)
que realiza uma coação com os indivíduos conduzindo-os para o caminho da impessoalidade.
‘O impessoal é um existencial, e pertence como fenômeno originário, à estrutura positiva do
Dasein’86.
1.3 - Ser-em como tal
A análise da filosofia de Heidegger, principalmente no que se refere a analítica
existencial, pode ser comparada a uma tentativa de tirar algas do fundo do mar; nunca é
possível resgatar apenas uma, de forma individual ou isolada, pois elas estão emaranhadas na
coletividade... Ao analisar e expor os existenciais que estruturam o ser do Dasein torna-se
necessário e óbvio, analisá-los em seu conjunto, sendo equivocado se tomados isoladamente,
sem ter presente a totalidade dos existenciais e a totalidade do Dasein. Isto se percebe com
ainda mais clareza quando analisada a estrutura do Dasein como ‘ser-em como tal’, que
pergunta basicamente, afinal, quem é este ente? De que modo é o Dasein como ser-no-
mundo?
84 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 151. 85 Id. Ibid., p. 152. 86 Id. Ibid., p. 153.
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‘Ser-em’ é um modo originário do Dasein, não se constituindo como um fenômeno
que deriva de outro, ou que seja em plano secundário da constituição. Há uma co-
originariedade ou concomitância, que não permite inferir ou imaginar a predominância
valorativa, uma substância primeira da qual derivam os outros existenciais, tampouco há entre
os existenciais uma relação de causalidade, de geração de uma a partir de outra que seria
primeira.
Como já apontado, o Dasein não é no mundo ao modo de estar dentro do mundo ao
modo de um ente dentro do outro. O Dasein é sempre o seu ‘Da’ (aí), fazendo alusão a um
‘aqui’ e um ‘ali’, no sentido de estar voltado para a ocupação, diante e presente às coisas que
comparecem dentro do mundo. O elemento fundamental que constitui esta estrutura
ontológico-existencial do Dasein é o caráter de abertura. Como afirma o próprio autor, ‘o
Dasein sempre traz consigo o seu ‘aí’, e desprovido dele, ele não apenas não seria, como
deixa de ser o ente dessa essência. O Dasein é a sua abertura’87. Heidegger insiste que o
Dasein, na medida que é no mundo, é o seu ‘aí’, o seu ‘Da’. O Dasein como ser-em, como ser
no mundo não se constitui como uma relação de ‘entre’; não é mais, como a tradição
pretendia, um sujeito ‘puro’ que se confronta com os entes que estão espacialmente no
mundo, ocupando um lugar em meio a todos estes. O caráter de abertura , reflete-se no sentido
de não-fechamento, ou seja, não que em algum momento ou instancia o Dasein tenha estado
fechado e agora tenha que se abrir; mas abertura como característica fundamental e original.
Heidegger analisa e expõe este caráter da abertura em quatro pontos: disposição
afetiva (Befindkichkeit); compreensão (Verstehen); discurso (Rede) e da decaída (Verfallen).
1.3.1 - O Dasein como disposição afetiva
O primeiro existencial do ‘aí’ do Dasein é a disposição afetiva (Befindlichkeit)88,
como um elemento ontológico. No plano ôntico compreende-se como estados de ânimo ou
humor (Gestimmung)89. Portanto, a disposição afetiva não é um estado psíquico-afetivo, mas
87 Id. Ibid., p. 157. 88 Para Inwood, Heidegger forja Befindlichkeit, que combina as idéias de ‘estar situado’ e de ‘passar/sentir-se bem ou mal’. Comenta ainda que Befindlichkeit possui três aspectos essenciais: 1. Ela ‘descobre o Dasein em seu ser-lançado, primeiramente e geralmente no modo do desviar-se evasivo’. 2. O humor ‘sempre já descobriu o ser-no-mundo como um todo, tornando-o possível primeiramente para direcionar alguém para algo em particular. 3. Befindlichkeit afina e sintoniza o Dasein para ser afetado pelas coisas e ser afetado de certos modos. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 89 Stimmung: humor (bom humor, mau humor, humor geral, atmosfera...); também significa ‘afinação, entonação’. Vem de Stimme: voz, voto. Gestimmt: de acordo, em certo humor. Gestimmtheit/Gestimmtsein:
43
sim se compreende como condição de possibilidade para que o Dasein, na existência
cotidiana se defronte com estados de humor e/ou experimente afetos, sentimentos, emoções...
Conforme Tugendhat, com este conceito Heidegger propõe basicamente a tese de que a
disposição afetiva não é um simples estado de humor ou estado afetivo, mas é um modo de
abertura ‘e precisamente aquele que põe o ‘Dasein... diante de si mesmo’ como ser-no-
mundo...’90.
O Dasein já sempre se encontra na disposição afetiva ou humor; mesmo a sensação de
falta de humor ou o estado de mau humor expressam esta disposição afetiva e de ter que
assumir o seu ser como um ‘fardo a carregar’... O Dasein já sempre se sente afetado pelo
mundo e pelos entes intramundanos, não como uma percepção corporal ou o notar
intelectivamente a presença de outros entes, mas como uma revelação do seu ‘aí’, como a sua
carga existencial, estando entregue ao ex-sistir, tomando a seu cargo o pertencer ao ser-
mesmo. É neste sentido que o Dasein ‘está sempre afetivamente aberto como aquele ente ao
que a existência lhe há sido confiada em seu ser, um ser que ele tem que ser existindo’91.
Neste ‘ter que ser’ mostra-se o que é, não apresentando o aspecto ‘de onde’ (Woher -
proveniência) e ‘para onde’ (Wohin - destino), elementos estes que permanecem obscuros; o
conhecimento e a ‘segurança’ da fé não são capazes de efetivamente fornecer este amparo
seguro.
Este caráter do Dasein apresenta a condição de estar-lançado (Geworfenheit) no seu
‘Da’, no seu ‘aí’, da forma que ao ser-no-mundo, o Dasein é seu ‘Da’, seu ‘aí’92. Nesta
condição de estar-lançado ou jogado na existência, o Dasein se percebe entregue a si mesmo,
que deve sempre assumir sua existência. Heidegger afirma que ‘na disposição afetiva, o
Dasein já está sempre posto ante si mesmo, já sempre se encontrou, não na forma de auto-
percepção, mas na forma de encontrar-se afetivamente disposto’93. O estar-lançado na
existência indica a idéia da facticidade de ser entregue à responsabilidade de si mesmo, que o
Dasein experimenta como ter-que-ser, abrindo ao Dasein seu ‘o que é e o que tem que ser’.
concordância, ter e estar em um humor, estar em sintonia. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 90 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 158. 91 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 158. 92 O particípio passado de werfen (arremessar girando o braço) é geworfen, ‘lançado’. A partir dele, Heidegger forma um substantivo, Geworfnheit, ‘ser-lançado’. Inwood comenta que ser-lançado não é um fato que já terminou e esgotou-se; é um constante acompanhamento da existência do Dasein, revelado em certos humores, envolvendo diversos aspectos: A. ‘Já que Dasein é simplesmente lançado, e não lança a si mesmo, o ser-lançado, o fato de que o Dasein é, não está sob o controle do Dasein. B. Dasein é um ente ‘em meio aos entes como um todo’. C. ‘Dasein não descansa após o seu ter sido lançado’. D. O ser-lançado também conduz à projeção. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 93 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 160.
44
Nesta situação afetiva o Dasein se descobre; a existência se revela a ele como um estar
entregue a si mesmo na tarefa de ser.
Heidegger insistentemente busca clarear a diferença entre a disposição afetiva e o
conhecimento, o racionalismo (ou irracionalismo) e as diversas formas de crenças. A
disposição afetiva e o que ela mostra e manifesta ao Dasein não é medida com as certezas ou
conhecimentos científicos ou com as crenças religiosas e irracionais. A disposição afetiva
manifesta um originário modo de ser do Dasein, no sentido de ele sempre permanecer aberto
para si mesmo, para sua existência e isto demonstra a primariedade em relação ao conhecer e
querer. A primariedade não significa uma disputa por importância com as demais
modalidades de ser, mas sim uma antecipação, modalidade primeira, ‘antes de qualquer
conhecimento e vontade e para além de seus alcances de abertura’94. O nosso pensador ainda
apresenta que a disposição afetiva, abrindo o Dasein para sua condição de estar lançado ou
jogado na existência, o faz imediata e regularmente na forma de se esquivar, de desvio.
A disposição afetiva não se reduz ao humor ou a estados e condições psicológicas ou
ainda a estados da alma. O humor surge ao Dasein, não como uma instância ou um evento que
lhe venha de um ‘exterior’ ou do ‘interior’ do seu ser, mas sempre se apresenta e manifesta
como uma forma de ser-no-mundo. Mostra-se com isto também o rompimento do esquema
sujeito-objeto, não abarcando para si a idéia de um objeto ou substância pura ou primeira que,
em contato com o ‘objeto’ mundo, não lhe seriam inerentes na sua essência. A disposição
afetiva já sempre abriu o Dasein, como ser-no-mundo em sua totalidade, mas também esta
disposição apresenta um segundo aspecto fundamental, pois ‘é um modo existencial
fundamental da abertura co-originária do mundo, da coexistência e a existência, já que esta
mesma é essencialmente ser-no-mundo’95.
Um terceiro aspecto importante da disposição afetiva trata da compreensão mais
profunda da mundanidade do mundo. Pelo mundo previamente aberto que as coisas, os entes
intramundanos nos aparecem. A possibilidade de ser afetado por aquilo que comparece dentro
do mundo se concretiza, pois o Dasein se encontra sempre na disposição afetiva. Pela abertura
que a disposição afetiva ‘provoca’, o Dasein percebe os entes no seu apresentar nas e das mais
variadas formas, seja como ameaça, como resistência… Por pertencer ontologicamente ao
ente que tem este modo de ser-no-mundo que os sentidos podem ser ‘tocados’ ou afetados. É
pela disposição que o Dasein descobre o ente em suas utilidades ou inutilidades. A disposição
afetiva que efetiva o deixar e fazer vir ao encontro – circunvisão e circunspecção. É também
94 Id. Ibid., p. 160. 95 Id. Ibid., p. 161.
45
pela disposição afetiva que o Dasein realiza uma primária descoberta do mundo, que não é
uma intuição e no sentido de que a pura intuição jamais poderia alcançar ou descobrir.
Ao apresentar o caráter existencial e ontológico da disposição afetiva, Heidegger não
pretende abandonar ou relegar o estudo ôntico dos sentimentos ou a ‘ciência dos sentimentos’
a um estado desvalorizado. Este tema foi intensamente trabalhado em Aristóteles,
principalmente na obra Retórica. Heidegger não estabelece a diferença entre estados de ânimo
e afetos. Embora Heidegger não tenha expressado, Tugendhat afirma que o filósofo de
Freiburg entende que nos estados de ânimo (Stimmungen) a confrontação consigo mesmo
passa a primeiro plano e estes estados poderiam ser tais como: depressão, bom ânimo,
felicidade, angústia... Tugendhat96 afirma que os estados de ânimo se diferenciam dos afetos
por não ter um objeto intencional e não implicam um motivo de ação bem definido. O estado
de ânimo não é um afeto, ainda que seja um estado afetivo.
Tugendhat afirma que pela disposição afetiva e o estado de estar-lançado na
existência, compreendendo a existência como um ter-que-ser, está também sempre contido
uma pergunta prática, que nem sempre se torna explícita ou expressa pelo Dasein. Esta
pergunta seria na ordem do ‘quem ou como quero ser?’, ao que o Dasein, deixando de lado os
critérios materiais, volta-se para a determinação de seu ser. O Dasein faz a eleição de si
mesmo, sabendo que se trata de si mesmo, de sua própria vida. É pelos estados de ânimo que
o Dasein experimenta o ter-que-ser de uma ou outra maneira, como pleno de sentido
(sinnvoll) ou sem sentido (sinnlos)97. Em Heidegger não é encontrada a referência ao conceito
de ‘bom/bem’, mas apresenta a idéia de ‘fim de seu querer’; sendo que para Heidegger trata-
se da própria existência do Dasein. Assevera Tugendhat98 que o Dasein não pergunta
simplesmente pelo bem da sobrevivência, pela mera conservação da vida, mas pergunta-se
sempre pela vida boa, que Heidegger mais tarde expressaria como ‘sentido da vida’.
Para Tugendhat o estado de ânimo consiste em uma disposição volitiva global. O
estado de ânimo se relaciona com o ser, com o ser-no-mundo; abrindo este ser em uma
determinada maneira para a vontade, como bem, como mal... O mesmo filósofo comenta que
é necessário entender a passividade própria desta experiência – o phatico do estado de ânimo;
96 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 162. 97 Para Inwood, Sinn corresponde aproximadamente , mas não exatamente a ‘sentido’. Comenta ainda que o ‘sentido técnico de Sinn é relativo a uma compreensão geral ainda não articulada em palavras, uma compreensão que surge de uma projeção e nos possibilita compreender entes particulares: rigorosamente, Sinn significa a perspectiva do projeto primordial de uma compreensão do ser. [...] Dizer que o ente ‘tem Sinn’ significa que ele se tornou acessível em seu ser’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 98 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 164.
46
que se experimenta nos ‘estados negativos’, expressando com clareza e mais intensidade o
caráter de ‘carga’ do Dasein que Heidegger havia expressado. Por meio destes estados mais
‘depressivos’, aparece com mais vigor este caráter do Dasein estar desnudo diante do seu ter-
que-ser, e seria a ocasião propícia em que o Dasein se questionaria: ‘quem sou e quem quero
ser?’, momento também que surgiria a pergunta se é melhor ser que não ser. Mas, esta tese
também vale para os estados de ânimo ‘positivos’. O fato de Heidegger apresentar a
existência como carga é inevitável no ter-que existir e não demonstra uma filosofia ou
perspectiva negativista diante da existência e diante do mundo. Com isto então, Tugendhat
chega à conclusão que os estados de ânimo são modos de autoconsciência, modos de o Dasein
comportar-se consigo mesmo e afirma ainda que ‘um ente que se comporta consigo mesmo
não pode prescindir de dar um sentido a seu ser’99.
1.3.2 - O Dasein como compreensão
Juntamente com a disposição afetiva, a compreensão (Verstehen)100 é um existencial
co-originário do Dasein. Toda compreensão já está sempre sincronizada com o estado de
humor. É a condição de possibilidade (plano ontológico) para que o Dasein possa
compreender o mundo, os entes intramundanos e a si mesmo (plano ôntico) – não uma
operação intelectual gnosiológica, mas o fundamento de todo conhecimento teórico
sistematizado. É por meio da compreensão que o ser-no-mundo como tal se abre ao Dasein,
também como uma significação de abertura do mundo, no qual o Dasein já sempre tem que
assumir o seu ser. A compreensão é o poder-ser do Dasein, não tomando a possibilidade no
sentido aristotélico ou como uma deficiência da realidade.
Por compreender significa-se ‘poder alguma coisa’, mas no sentido existencial que
Heidegger imprime a este conceito, compreender não é simplesmente ‘poder algo’, mas ‘ser
como existir’. ‘No compreender se dá existencialmente esse modo de ser do Dasein que é o
poder-ser’101. O Dasein é primeiramente possibilidade, poder-ser; não uma possibilidade
lógica, mas existencial, ‘funcionando’ como a última determinação ontológica positiva do
99 Id. Ibid., p. 166. 100 Inwood apresenta que para Heidegger, Verstehen ‘implica a concepção clara de uma coisa como um todo, mas não necessariamente uma referência a algum processo de pensamente precedente. Verstehen é, assim, diferente de begreifen: entender (conceitualmente). Dasein compreende o mundo e suas próprias possibilidades...’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 101 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 167.
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Dasein. Compreensão constitui as possibilidades de uso dos instrumentos (ocupação) e as
possibilidades de encontro com os outros e de realização de si mesmo (preocupação).
Disposto afetivamente, o Dasein já sempre se encontra em determinadas
possibilidades, renunciando algumas e assumindo a outras; descobrindo-se desta ou daquela
maneira. O Dasein é poder-se que está entregue para si mesmo, sendo uma possibilidade
lançada na existência, sendo e tornando-se responsável por seu ser, por sua existência; ‘o
Dasein é a possibilidade de ser livre para o poder-ser mais próprio’102. Cada modo de
atividade e comportamento é um modo de existência e como tal, uma possibilidade, que traz
ao Dasein a compreensão de si e do mundo. O Dasein é o ente que gesta o mundo, existindo
compreende os entes e compreende a si mesmo, não numa perspectiva de percepção, intuição
e representação como na tradição metafísica; mas no sentido de existir e de ser-no-mundo que
se compreende e sempre se assume como tal.
Pelo compreender que pertence ao ser do ‘Da’, e que não é uma auto-percepção
imanente, o Dasein já se compreende e compreende seu ser, aquilo que passa com ele.
Compreendendo, que o Dasein pode extraviar-se ou se desconhecer e no modo de estar-
lançado o Dasein já sempre se encontra extraviado. Mas, está entregue também ao seu poder-
ser e de encontrar-se em suas possibilidades. É pelo compreender como abertura que o mundo
se apresenta em sua significatividade e os entes se apresentam em seu caráter próprio, como
utilizáveis ou como entes à mão...
A compreensão tem em sua estrutura o caráter de projeto (Entwurf)103. Este caráter
constitui a abertura do Dasein, do seu ‘Da’ como um poder-ser, movendo o poder-ser fáctico.
‘O compreender, enquanto projetar é o modo de ser do Dasein no qual este é suas
possibilidades como possibilidades [...] o projeto é a constituição ontológico-existencial do
espaço de articulação do poder-ser de fato’104. Se o Dasein não se projetar, ele não é.
A partir desta perspectiva que se pode afirmar que o Dasein é constantemente ‘mais’
do que efetivamente é, se se quisesse e pudesse registrar como ser estando à vista ou em sua
substancialidade. Mas, não é mais do que facticamente é, pois a esta facticidade pertence o
poder-ser. Esse ‘mais’ que o Dasein é, se deve ao fato de ele sempre se constituir como
projeto – o Dasein é projetado. Mas também não é menos, pois o que efetivamente ainda não-
102 Id. Ibid., p. 168. 103 Entwerfen: esboçar, planejar, delinear…; similarmente Entwurf: rascunho, esboço, desenho, croqui, esquema, projeto… Para Heidegger Entwurf é o que torna possível qualquer plano ou projeto. ‘Um projeto é livre. Não se determina por nosso conhecimento anterior nem por nossos desejos anteriores. [...] Um projeto não é projetado gradativamente, passo a passo, mas de uma só vez, por um salto adiante’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 104 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 169.
48
é, o é existencialmente. Pela compreensão como projeto, que o Dasein é o que chega a ser ou
não chega a ser, pode-se afirmar: ‘se o que tu és’105.
Este compreender pode ser próprio - que surge do próprio si-mesmo - como também
pode ser impróprio. Heidegger insiste que a impropriedade não implica uma ruptura do
Dasein consigo mesmo, e que seja uma simples compreensão do mundo – não há uma
separação de Dasein e mundo. E tanto o compreender próprio como o impróprio podem ser
autêntico ou inautêntico, pois ‘o compreender enquanto poder-ser está inteiramente
impregnado de possibilidades’106.
Em torno do ser próprio (eigen) e impróprio (uneigen) que podem ser autênticos (echt)
e inautênticos (unecht) não há uma uniformidade de interpretação e tampouco Heidegger
apresenta grandes esclarecimentos sobre a compreensão destes conceitos. Tugendhat107
comenta que Heidegger usa 12 vezes o termo ‘echt’, mas em nenhuma parte afirma o que quer
dizer com esta palavra.108 O compreender autêntico (próprio ou impróprio) é aquele pelo qual
as coisas aparecem se dão sem encobrimentos. Já o compreender inautêntico (próprio ou
impróprio) se orienta por preconceitos e elementos pela tradição e que não sofreram críticas
profundas. A autenticidade ou inautenticidade servem como espécies de adjetivos para
caracterizar se a compreensão é obtida genuinamente ou não.
O caráter projetivo da compreensão constitui existencialmente o que se chama de
visão (Sicht) do Dasein109. A esta visão que aponta para a integridade, Heidegger denomina
como transparência, buscando imprimir-lhe um sentido de ‘autoconhecimento’, assumindo
uma posição ‘compreensora’ da abertura do Dasein, do estar-no-mundo, através de suas
estruturas essenciais. Visão que tem uma função de captação compreensiva de toda a abertura
do ser-no-mundo através dos momentos essenciais de sua constituição, que são a circunvisão
na ocupação e a consideração na preocupação (Besorge e Fürsorge). O ver aqui proposto por
Heidegger não tem o caráter de ver com os olhos do corpo ou um ver intuitivo – com os olhos
105 Id. Ibid., p. 169. Este ponto é, segundo a observação de Tugendhat (p.175), melhor tratado quando da análise do Dasein como ‘cuidado’. Conforme o comentador, Heidegger quer expressar algo para o qual lhe faltam as palavras adequadas. No existencial como ‘cuidado’ este elemento aparece na seguinte formulação: ‘o Dasein é em seu ser em cada caso já sempre prévio a si mesmo. O Dasein está sempre mais adiante de si mesmo, não como comportamento com os outros entes que ele não é, senão como ser com respeito ao poder ser que ele mesmo é’. 106 Id. Ibid., p. 170. 107 TUGENDHAT, E. Não somos de arame rígido. Conferências apresentadas no Brasil em 2001. Canoas: Ed. ULBRA, 2002. p. 53. 108 AZÚA (AZÚA, J. B. R. De Heidegger a Habermas: Hermenéutica y fundamentación última en la filosofía contemporánea. Barcelona: Herder. 1997. p. 73) faz uso dos termos próprio/impróprio como autêntico/inautêntico e traduz echt/unecht como genuíno/espúrio. 109 Sicht: vista, visão, visibilidade. Sicht é uma característica fundamental do Dasein que aparece sob várias formas na filosofia de Heidegger. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
49
do espírito – mas, um ver ontológico com o significado de descobrir a clareira na qual o ser se
dá a ver abrindo-se. Heidegger rompe também neste elemento com a metafísica, que toma o
ver como um modo de acesso do ente ao ser; e para o filósofo de Freiburg a compreensão é
anterior ao ver metafísico.
Segundo Tugendhat, que analisa a compreensão do Dasein a partir de uma perspectiva
analítico-lingüística, a tese que Heidegger pretende expor e tornar compreensível com o
conceito de possibilidade existencial é
que o comportar-se com as possibilidades de ação é o que possibilita esse ser prévio a si mesmo [...] somente porque eu me comporto com meu ser como ser possível, posso comportar-me com ele. O que implica que me comporto com ele em forma futura. [...] essa relação ao futuro se dá somente no ‘posso’ deliberativo, no campo de jogo da ação que se faz explícito ao deliberar.110
O Dasein enquanto compreende, projeta seu ser para possibilidades, e este projetar
tem as possibilidades de seu próprio desenvolvimento ou a própria possibilidade de se
elaborar em formas, que Heidegger denomina como interpretação (Auslegung)111. Na
interpretação o compreender do Dasein ‘se apropria compreensoramente do compreendido
por ele [...]. A compreensão se torna ela mesma e não outra coisa [...]. A interpretação se
funda na compreensão e não vice-versa [...]. A interpretação consiste na elaboração das
possibilidades projetadas no compreender’112.
Na cotidianidade um instrumento é interpretado em relação a outros entes de acordo
com as suas possibilidades de manuabilidade; são interpretados como instrumentos que são,
sem a necessidade que se pense ou teorize sobre eles. Também as coisas intramundanas e tudo
o que está à mão é sempre compreendido desde sua totalidade conjuntural, e não necessita de
uma interpretação compreensiva temática. A interpretação sempre se funda numa posição
prévia, de um referencial que se tem (Vorhabe), numa maneira prévia de ver ou visão prévia,
no qual se pode ver antecipadamente o compreendido numa certa perspectiva (Vorsicht) e
numa maneira de entender prévia, concepção prévia ou ainda conceitos prévios (Vorgriff). A
interpretação não é uma apreensão sem suposições ou pré-supostos, mas sempre se funda
sobre estes elementos elencados acima. ‘A interpretação ocorre a partir de uma totalidade de
significados, previamente compreendida, a posição prévia. Esta possibilita a perspectiva a
110 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 176. 111 Auslegen e Auslegung vêm de legen (pousar, deitar), portanto significam: demonstrar, apresentar, pôr à mostra, planejar, explicar, interpretar. Afirma Inwood que ‘Auslegung não se distingue agudamente da compreensão (Versthen), sendo o seu ‘desenvolvimento’’. ‘Na interpretação, a compreensão se apropria do que compreendo. [...] A interpretação se funda existencialmente na compreensão; a compreensão não nasce da interpretação. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 112 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 172.
50
partir da qual o instrumento é visto, a visão prévia. O que foi compreendido e visto
previamente, torna-se conceito, concepção prévia’113.
No projeto, o compreender está sempre lançado e o ente se abre em suas
possibilidades, e este caráter de possibilidade corresponde sempre ao modo de ser do ente
compreendido. Por sua vez, o ente à mão está projetado num todo de significação e quando
este se ‘descobre’ por meio do Dasein, quando o Dasein o compreende, afirma-se que ele tem
sentido. ‘Sentido é aquilo no que se move a compreensibilidade de algo [...] É o articulável na
abertura compreensora [...] É o horizonte do projeto estruturado pela posição prévia, a
maneira prévia de ver e a maneira de entender prévia, horizonte desde o qual algo se torna
compreensível enquanto tal’114.
A compreensão, na abertura do ‘Da’, sempre diz respeito ao todo do ser-no-mundo e
toda ‘interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o
que se quer interpretar’115. Depara-se e encontra-se então diante de um círculo; mas não
conforme as regras da lógica, num circulus vitiosus, o que seria um mal-entendido da
compreensão. De acordo com Heidegger não se trata de enquadrar o compreender ontológico-
existencial num modo de conhecimento, tampouco o importante seria buscar sair deste
círculo, mas sim permanecer ou entrar nele de forma correta.
Este círculo é a ‘expressão da estrutura existencial de prioridade do Dasein mesmo’116,
no qual se encontra uma positiva possibilidade de conhecimento originário. E complementa o
autor: ‘o círculo no compreender pertence à estrutura de sentido, fenômeno que está enraizado
na estrutura existencial do Dasein, no compreender interpretante’117. Este círculo
compreensivo é o que se denomina como círculo hermenêutico, ‘permitindo’ que o Dasein e o
mundo coexistam na compreensão. A idéia de círculo já havia sido abordada na história118,
constituído pela leitura do texto, onde as partes não podem ser interpretadas sem o
entendimento do todo, e o todo não pode ser completamente compreendido sem a
113 SILVA, E. G. B. Exposição da questão da linguagem no tratado de Martin Heidegger Ser e Tempo. Dissertação de mestrado - Porto Alegre, PUCRS. 1994. p. 53. 114 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 175. 115 Id. Ibid., p. 176. 116 Id. Ibid., p. 176. 117 Id. Ibid., p. 177. 118 Schleimacher e Dilthey já haviam tratado deste tema e abordado a perspective do círculo hermenêutico, reconhecendo que a hermenêutica envolve um círculo: ‘não podemos compreender uma parte sem ter alguma compreensão do todo e não podemos compreender o todo sem compreender suas partes’. Inwood comenta que em ST aparecem três círculos: A. para apreender o que é o ser, é preciso examinar o ser do Dasein. B. Toda compreensão e interpretação, do Dasein, de um texto..., requer pressuposições, uma estrutura prévia. C. Para compreender a distinção entre existência e realidade, precisa-se compreender o ser em geral como o ‘horizonte’ da distinção. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
51
compreensão de cada uma de suas partes. Heidegger estende esta idéia de compreensão do
círculo a partir da leitura de texto para a compreensão da existência do Dasein.
Heidegger assim propõe uma teoria da significância a priori, que é anterior ao
conhecimento na dicotomia ‘sujeito-objeto’ e ‘teoria-práxis’. Esta proposta gera
necessariamente também uma mudança de paradigma, que com o encurtamento hermenêutico
se produz um espaço circular, em ‘detrimento’ do paradigma da filosofia da consciência onde
‘o ponto de partida é de certo modo absoluto, o que permite a produção de um observador
imparcial dos passos que a consciência realiza através das figuras que se sucedem’119.
Como modo derivado de interpretação, Heidegger apresenta o enunciado. ‘É o sentido
que é articulado na interpretação e o pré-lineado como articulável no compreender’120. O
enunciado se fundamenta na compreensão e é uma forma derivada de interpretação.
Heidegger atribui ao enunciado três significações, que lhe garantem a unidade de estrutura. 1.
Enunciado como demonstração, no sentido de fazer ver ao ente desde si mesmo. 2. Enunciado
como predicação, com o sentido de mostrar o determinado enquanto tal. 3. Enunciado
enquanto comunicação, expressão verbal ou declaração; é um permitir ou fazer ver ao/com o
outro, um compartir com o outro aquilo que foi mostrado em sua determinação. Este terceiro
sentido do enunciado implica o estar expresso e pode ser transmitido de uns para os outros e
neste círculo de partilha da comunicação, o mostrado pode voltar a ocultar-se ou velar-se.
De forma concisa o enunciado pode ser definido como ‘uma demonstração que
determina e comunica’121. O enunciado já sempre se move sobre a base do Dasein como ser-
no-mundo e assim como a interpretação, tem seus fundamentos existenciais numa posição
prévia, numa visão prévia, numa concepção prévia.
A interpretação – enquanto desvela o sentido de algo – sempre ocorre na cotidianidade
como interpretação hermenêutica; acontecendo mesmo que não se pronuncie nenhuma
expressão ou proposição. A partir desta, fundada no mundo hermenêutico, pode ocorrer a
interpretação apofântica. Enquanto se vê e toma o utensílio como algo que serve para fabricar
algo, no seu uso, dentro de um complexo referencial, usa-se de juízos hermenêuticos. No
momento de se tomar o objeto como uma coisa simplesmente subsistente, uma presença sem
vida, o enunciado ou juízo é apofântico. O ‘como’ hermenêutico de uma utilização relacional
do objeto torna-se uma proposição apofântica quando o objeto é tomado como um ser-
simplesmente-dado.
119 STEIN, E. Seis estudos sobre ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 46. 120 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 177. 121 Id. Ibid., p. 180.
52
1.3.3 - Dasein como discurso – a linguagem
O discurso é co-originário com a disposição afetiva e o compreender. O discurso é o
fundamento ontológico-existencial da linguagem122. É o discurso que se encontra na base da
interpretação e do enunciado, sendo a articulação da compreensibilidade. ‘Ao articulado na
articulação do discurso o chamamos o todo da significação’123 ou totalidade significativa. O
todo de significações da compreensibilidade vem à palavra. A partir do plano ontológico-
existencial, o discurso – juntamente com a disposição afetiva e a compreensão – constitui a
abertura do Dasein.
A exteriorização do discurso é a linguagem. É uma articulação do mundo
hermenêutico, ou uma interpretação do próprio mundo, enquanto este sempre representa um
universo de significações. O discurso articula significativamente a compreensão do estar-no-
mundo, do co-estar, da ocupação, sendo um momento estrutural e constitutivo da abertura do
Dasein. Isto demonstra mais uma vez que o Dasein é falante e que a linguagem não é uma
capacidade específica que se agrega à sua existência, mas ele a possui como modo de ser. O
discurso é a condição de possibilidade – existencial - (plano ontológico) para que se dê
linguagem (plano ôntico).
O sentido de algo existente, a partir do qual este pode ser compreendido, está sempre
articulado no discurso, antes mesmo que possa ocorrer alguma interpretação que o tente
explicitar. O sentido das palavras – que não são coisas – se dá a partir de um mundo de
significação, a partir de um mundo hermenêutico que se articula no discurso. É o discurso que
articula a compreensão, o universo de significações, isto também num sentido prévio, antes de
qualquer conhecimento ou perspectiva estritamente teórica. A linguagem, como uma
totalidade de línguas, é uma realização ôntica do discurso, ou seja, uma espécie de
concretização histórica e cultural do existencial discurso.
A convivência é sempre discursiva, no sentido de discorrer sobre algo. ‘Em todo
discurso há algo que o discurso diz [...] O discurso se comunica’124. Heidegger insiste na idéia
de que esta comunicação não se dá do interior de um sujeito para o interior de outro sujeito,
mas que esta coexistência está revelada na disposição e na compreensão comum. Existindo
122 Rede, correspondendo ao latim ratio, significa: fala, discurso, palavras, conversação, etc. Rede é a fala informal em um contexto particular, não precisa de uma sentença gramatical completa. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 123 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 184. 124 Id. Ibid., p. 185.
53
discursivamente o Dasein pode expressar algo de si, das coisas que realiza e utiliza
‘imprimindo’ sentido ao ser-no-mundo.
O discurso também tem o caráter de expressar-se ou de pronunciamento, porque o
Dasein como ser-no-mundo, compreendendo, já sempre se encontra ‘fora’, aberto. O que é
expresso neste pronunciamento corresponde à maneira da disposição afetiva, que sempre afeta
a abertura do estar-em. ‘O discurso é a articulação em significações da compreensibilidade
afetivamente disposta do estar-no-mundo’125. Heidegger esclarece que seus momentos
constitutivos são: o ‘sobre-que’ do discurso (referencial), o discursivamente dito enquanto tal,
a comunicação e a notificação. Estes são caracteres existenciais, que fazem ontologicamente
possível a linguagem (condições de possibilidade) e não, necessariamente, podem ser
observáveis na linguagem empírica.
A conexão do discurso com a compreensão se torna mais explícita a partir de um
componente estrutural do mesmo: a escuta. A escuta é constitutivo do discurso. O escutar é a
primária e autêntica abertura ao mais próprio poder-ser e o Dasein já sempre escuta porque
compreende. Na situação de coexistência, de escutar ao outro o Dasein se faz também
solidário ao outro. Sobre o existencial de escutar se fundamenta o ouvir (sentir sons e
perceber ruídos). O modo de escuta é sempre compreensor, pois nunca o Dasein ouve
simplesmente ruídos, mas sempre algo ‘em significações’: a voz da mulher amada, o vento
norte... O Dasein sempre está em meio ao que compreende e sempre está com o outro junto
àquilo que este discorre. O discorrer (discursar) e o escutar se fundam no compreender e
somente quem já compreende pode escutar.
O mesmo fundamento existencial possui o silenciar. Somente no autêntico discursar
que se dá o verdadeiro silenciar, pois para poder silenciar o Dasein deve ter algo a dizer. O
silêncio articula a compreensibilidade do Dasein, de onde provém o escutar e o
verdadeiramente estar com os outros. Heidegger pensa a linguagem como um dizer que
mostra, tornando transparente ou ocultando o real.
A filosofia ocidental, condicionada pela metafísica, interpretou o discurso, a palavra
como coisa; como uma coisa a mais, em meio aos outros entes encontrados no mundo. Nesta
perspectiva instrumental da linguagem, encobre-se a sua origem ontológico-existencial.
125 Id. Ibid., p.186.
54
1.3.4 - A decaída do Dasein
Heidegger também faz uma análise de como estes existenciais se expressam e de
modo geral ocorrem na cotidianidade, fazendo uma abordagem ontológica – e não
moralizante ou valorativa – sobre como a abertura do Dasein ocorre no modo de ser
cotidiano, que primeiramente e de modo geral acontece como encobrimento. As
características da abertura na cotidianidade são o falatório, a curiosidade e a ambigüidade.
O falatório (Das Gerede)126 representa o modo de ser do compreender e interpretar do
modo cotidiano do Dasein. O discurso expressado é comunicação, no sentido de querer
conduzir ao ouvinte até àquilo que é dito no discurso. Mas na compreensibilidade mediana
muitas vezes mais que compreender o ente do qual se comunica, a atenção se centra sobre o
que é falado enquanto tal. É o falado enquanto tal que ‘fixa’ o escutar e a compreensão. A
compreensão e a interpretação neste sentido estão sob o domínio do comum, do anônimo, e
comunica-se aquilo que já se tornou constante e regular. O discurso se torna redundante e
tornando a linguagem instrumentalizada.
Pelo modo cotidiano do falatório, condicionado pelo impessoal, compreende-se o ente
na forma do público, medianamente, sem um compromisso com o real, ocorrendo uma
espécie de fechamento; ou seja, ao invés de descobrir e desvelar o ser do ente, o falatório
encobre e vela, dirigindo a atenção para as representações. O importante é que se fale e, assim
não se comunica na forma de apropriação originária, mas na difusão e na repetição do que
sempre é dito. O que se fala, neste âmbito, alcança círculos cada vez mais amplos e toma para
si uma autoridade, do modo que se chega a afirmar: ‘é assim, porque assim se disse’. Este é o
falatório, carente de fundamento. Perdem-se as raízes e o fundamento, repetindo quase
mecanicamente o que todos afirmam, sem atenção e compromisso com o que se discursa. Este
caráter não se restringe à oralidade, e também se expressa na forma escrita, naquilo que
Heidegger127 denomina de ‘escritório’ (Geschreibe), fundamentando-se naquilo que se leu. O
estado público chega a ‘prescrever’ a maneira verbal de sentir, de pensar e de agir. A
possibilidade originária de abertura do discurso deixa espaço para a possibilidade inversa de
encobrimento do ser-no-mundo.
O falatório exime de uma compreensão autêntica e desenvolve uma
compreensibilidade indiferente, dando a impressão de que nada escapa da compreensão. Não
126 Gerede (distinto de Rede): falatório, fala indolente, fofoca. É a fala desarraigada da situação particular e da experiência do Dasein particular, transmitindo a interpretação geral, do impessoal. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 127 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 191.
55
é uma postura intencional e consciente que leva o Dasein a tomar esta postura diante de seus
existenciais, mas uma situação que é também de seu ser enquanto tal. Esta condição é um
desarraigamento existencial. No sentido ontológico isto representa que o Dasein tem cortadas
suas relações primárias, originárias e genuínas com o mundo, com a coexistência e com o
próprio estar-em.
Outro modo de ser na cotidianidade é a curiosidade (Neugier). A compreensão, na
abertura do ‘Da’ do Dasein pode ser também chamada de claridade, onde se torna possível a
visão. Esta visão entendida no sentido de uma genuína apropriação do ente. No modo da
cotidianidade esta visão se mostra numa tendência peculiar que é a curiosidade. A curiosidade
não busca compreender o que é visto, mas apenas ver para e/ou por ver e não numa relação de
ser com a coisa ambicionada. Salta de algo novo visto para outra novidade, sem se deter ou
captar o que foi avistado como novo, procurando abandonar-se ao mundo. Heidegger
denomina que esta curiosidade é uma ‘típica incapacidade de permanecer junto ao
imediato’128. Busca sempre novas formas de diversão, buscando renovação constante.
A curiosidade não é uma tentativa de permanecer num ócio (criativo), mas uma
inquietação ou excitação diante da novidade e das mudanças. A curiosidade busca distrair-se e
não se interessa por um saber contemplativo; é uma ‘carência de morada’, ou seja, estar em
todas as partes e também em nenhuma.
O falatório e a curiosidade ‘andam de mãos dadas’, de modo que a curiosidade está
entregue ao falatório, quando este dita o que deve ser visto, o que deve ser lido... Para a
curiosidade nada se encontra fechado e para o falatório nada se encontra incompreendido,
deixando ao Dasein uma impressão de vida plenamente vivida.
Nesta impressão de estar vivendo de forma plena, ao Dasein surge um terceiro
fenômeno: a ambigüidade (Die Zweideutichkeit). As coisas que se apresentam são acessíveis a
qualquer um, algo sobre o qual qualquer um pode opinar e afirmar. Tudo parece que está
muito bem, autêntica e suficientemente compreendido e expressado. Cada um e todos sempre
já sabem e discutem o presente, bem como já pressentem ou suspeitam o que ocorrerá no
futuro. As possibilidades que se abrem ao Dasein nesta ambigüidade acabam se tornando sem
força, necessitando de uma constante substituição.
Quando o que se pressentia na ambigüidade chega a se concretizar, o Dasein no modo
da decaída, já se encontra em nova expectativa. Na condição de decaído, a compreensão do
Dasein sempre se equivoca, pois no seu ser, sempre está na condição pública de viver, onde o
128 Id. Ibid., p. 195.
56
falatório e a curiosidade determinam o que e como se deve viver, como a existência se deve
concretizar. Pela ambigüidade, torna-se ‘inviável’ que o Dasein se encontre consigo mesmo,
pois isto representaria uma renúncia ao compromisso fixado no impessoal público.
Este modo de ser da ambigüidade também condiciona ou impregna com seus
caracteres o modo de conviver com os outros. Toma-se o outro Dasein por aquilo que dele se
ouviu falar, a partir daquilo que dele se comenta ou se sabe. A convivência neste modo torna-
se uma constante espionagem uns aos outros, um estar voltado contra os outros.
O falatório, a curiosidade e a ambigüidade caracterizam a abertura do Dasein como
ser-no-mundo em sua cotidianidade. Enquanto determinações existenciais, contribuem para a
constituição do ser do Dasein; nestes existenciais se revela um modo fundamental do Dasein
ser em sua cotidianidade, a decaída (Verfallen)129. Desta forma o falatório, a curiosidade e a
ambigüidade expressam o modo de ser o ‘aí’, o ‘Da’, do Dasein, a sua abertura. Neste modo o
Dasein, já sempre se distanciou do seu modo de ser-próprio e ‘caiu’ no modo de ser da
mundanidade, determinado pelo falatório, curiosidade e ambigüidade.
A forma de impropriedade que caracteriza a decaída do Dasein é um modo de ser-no-
mundo, na forma de que ele se encontra já sempre ‘imerso’ ou absorvido pela convivência e
pelo modo de ser da mundanidade, da publicidade, ou como Heidegger o denomina: das Man.
O modo de ser nesta condição e situação é o modo imediato do Dasein ser, representa uma
possibilidade positiva de ser, visto que é o modo de ser na cotidianidade. Este modo
impessoal ou ‘impróprio’ de ser do Dasein, ontologicamente, é também um modo original,
pois ele se encontra sempre ocupado em uma situação; o Dasein encontra-se absorvido pelo
mundo, com o qual se ocupa no seu modo de ser. Desta forma, não se pode entender este
‘estado’ como a declinação de um estado mais perfeito para uma condição inferior ou como
um estágio menos desenvolvido de ser.
Na condição de ‘decaído’ o Dasein já sempre caiu no mundo, não no sentido que vá se
deparar ou encontrar ou não, com outros entes que estão no mundo, mas no sentido que ‘caiu’
no mundo que é constitutivo de seu ser; como uma determinação existencial. A decaída não
representa ainda uma ‘questão cultural’ inferior ou menos desenvolvida que em algum
momento da história do Dasein ou da humanidade poderia ser abandonada.
129 Verfallen: decair, declinar... O prefixo ver – dá a verfallen um tom de declínio e deterioração. Comenta Inwood que Heidegger insiste que Verfallen não é um termo de desaprovação moral, nada tendo em comum com a acepção cristã de queda da graça. ‘Heidegger dá três explicações sobre a queda do Dasein: A. Verfallen significa; ‘Dasein está antes de tudo e na maioria das vezes junto ao mundo de sua ocupação’. B. ‘Esta absorção em... geralmente possui o caráter de estar perdido na publicidade do impessoal’. C. ‘Decair no mundo significa ser absorvido no ser-um-com-o-outro, à medida que isto é guiado pelo falatório, pela curiosidade e ambigüidade’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
57
O falatório não é um modo de ser do Dasein que surge de fora, da exterioridade de seu
ser ou de circunstâncias alheias ao seu modo de ser e de sua existência. É o Dasein mesmo
que neste viver da cotidianidade, da publicidade se confere a possibilidade de perder-se, de
cair. Isto expressa o que Heidegger denomina que ‘o ser-no-mundo é em si mesmo
tentador’130. O Dasein se entrega a este modo de convivência, entrega esta que é ‘tentação’.
Esta tentação mantém o Dasein em seu estado de decaída, criando a impressão ou presunção
de que tudo está visto, compreendido plenamente; permitindo uma sensação de segurança e
tranqüilidade e de que tudo está em perfeita harmonia e como efetivamente deveria estar.
Esta impressão de tranqüilidade não conduz o Dasein a uma ‘quietude’, mas
contrariamente o agita ou o leva a uma inquietação constante. Tranqüilidade que é um
envolvimento constante com novos elementos, sempre despertando a curiosidade, mantendo o
Dasein ocupado. Este estar ansiosamente buscando compreender, sem exatamente saber o que
compreender (compreender o poder-ser mais próprio).
Desta forma afirma Heidegger que esta tentação tranqüilizante é também alienante,
pois oculta ao Dasein o seu mais próprio poder-ser. Esta alienação é uma forma de
fragmentação de si mesmo, possibilitando que as mais variadas formas de interpretação e
compreensão se vislumbrem como tentadoras. Mas esta alienação - ao mesmo tempo em que
fecha ao Dasein sua propriedade e possibilidade – não o entrega a um ente que não seja ele
mesmo, mas o força a uma impropriedade que é um modo de ser si mesmo. Desta forma
afirma o filósofo: ‘os fenômenos da tentação, tranqüilidade, alienação e do enredar-se em si
mesmo caracterizam o modo de ser específico da decaída’131.
Esta condição de decaída não quer significar algo consumado ou concluído, mas
percebemos que a condição de estar jogado na existência se dá numa mobilidade, em
movimento. Existindo facticamente, esta condição de estar jogado pertence sempre ao Dasein,
que em seu modo de ser sempre tem que ser. A decaída não é um modo diminuído de ser
Dasein, mas é uma estrutura ontológica do Dasein mesmo, que conforma sua cotidianidade,
como nas palavras do autor: ‘a existência própria não é nada que flutue por cima da
cotidianidade decaída, senão que existencialmente é uma maneira modificada de assumir esta
cotidianidade’132. Tampouco esta interpretação ontológico-existencial quer expor uma
‘corrupção da natureza humana’, pois sua questão é anterior a esta ‘problemática’.
130 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 199. 131 Id. Ibid., p. 200. 132 Id. Ibid., p. 201.
58
1.4 - Dasein e angústia
O ser-no-mundo do Dasein revela-se como uma estrutura ‘trinitária’ e ao mesmo
tempo unitária. Três elementos são fundamentais na constituição do Dasein em sua estrutura
existencial: o mundo, quem é no mundo e o ‘ser em’ no mundo. Aspectos estes que já foram
analisados neste trabalho; cabe agora iluminar e expor o aspecto de unidade da estrutura e
existência do Dasein.
Existindo facticamente o Dasein possui, em virtude da disposição afetiva, um modo de
ser pelo qual é levado diante de si mesmo, estando aberto na sua condição de lançado na
existência. Como ente lançado na existência, ele já sempre é também suas possibilidades,
compreendendo-se nelas e a partir destas. Igualmente o Dasein já está sempre ‘decaído’.
Resta uma pergunta fundamental: compreendendo a cooriginariedade dos existenciais, existe
algum existencial ou alguma forma de compreender o Dasein na sua totalidade ou unidade?
Heidegger mostra que a unidade não pode ser alcançada com uma tentativa de unificação
somatória dos existenciais do Dasein - já analisados. Tampouco a unidade dos existenciais
pode ser apreendida a partir das vivências cotidianas ou de alguma visão específica de
homem. Como à estrutura ontológica do Dasein pertence sua compreensão de ser, à analítica
existencial cabe a função de descobrir uma das mais amplas e originárias possibilidades de
abertura do Dasein. Um modo de abertura, pela qual o Dasein se coloque diante de si mesmo
de uma forma ‘simplificada, que Heidegger denomina de angústia (Angst).
A angústia se confunde com o medo (Furcht) na maior parte das vezes e no modo de
compreensão de grande parte das pessoas, mas ambos diferem em certas relações. Ambos
entranham uma fuga de algo, coincidindo desta forma com a decaída – pela qual o Dasein
empreende uma fuga ante si mesmo como poder-ser si mesmo propriamente. O medo e a
angústia possuem certo parentesco fenomenal, o que se pode perceber, pois ambos
permanecem, na maior parte das vezes, inseparáveis um do outro a tal ponto que se chama
angústia o que é o medo e denomina-se medo o que fenomenalmente se deveria compreender
como angústia133. Heidegger distingue estes dois modos de disposição, ao passo que a
tradição – cristã principalmente – teve a tendência de confundi-los. É preciso também apontar
133 Algumas afirmações de Inwood (INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002) auxiliam na compreensão e diferenciação destes conceitos. ‘O temor descobre o mundo de uma maneira especial e está próximo, ainda que distinto, de Angst (angústia, ansiedade, desconforto): o temor é a angústia decaída no mundo, inautêntico e encoberto para si mesmo como angústia’. ‘Angst despe o mundo de sua totalidade de envolvimento, sua significação... Dasein perde suas ocupações usuais e é reduzido ao seu ser-próprio nu e cru...’. ‘Angst é calma e serena, enquanto o temor nos faz ‘perder a cabeça’’.
59
a influência – reconhecida – que Heidegger sofre de Kierkegaard, não deixando contudo de
apontar os limites da compreensão do filósofo dinamarquês134.
A conexão que vincula o medo e a angústia é a situação de fuga. A fuga remete a uma
situação de fuga de ‘algo para algo’, de ‘um lugar para outro’. Ocorre uma espécie de
deslocamento espacial ou situacional. A fuga remete para a situação de decaída (Verfallen) – a
fuga de si mesmo para o mundo aberto por ele mesmo. Pela fuga o Dasein cai na
cotidianidade, é jogado na impropriedade. A fuga fundamenta-se naquilo que é ameaçador; o
Dasein foge de algo pelo qual se sente ameaçado. A fuga do Dasein não é uma mera fuga de
algo intramundano, mas caracteriza-se como uma fuga diante de si mesmo. Necessita-se,
portanto uma diferenciação esclarecedora entre o medo (temor) e a angústia.
Heidegger analisa em ST o temor como um determinado modo de disposição afetiva,
não pretendendo fazer neste ponto uma análise detalhada dos afetos, mas apresentar o caráter
de abertura deste. Heidegger encontra no segundo livro da Retórica de Aristóteles a
caracterização dos afetos, especificamente do temor. O estagirita define o medo como o
‘desagrado ou confusão originada pela representação de um ‘mal futuro’ que para o afetado é
prejudicial ou doloroso’135; um sofrimento que nasce da imaginação de um mal que se
aproxima, sendo este capaz de provocar destruição ou sofrimento ao afetado. Para Aristóteles
sofre-se pelos males que podem produzir grandes sofrimentos e perdas, sendo temível aquilo
que possui grande possibilidade de destruição.
Heidegger faz a análise do temor como uma disposição afetiva a partir e sob três
perspectivas: 1. O que se teme; 2. O temor; 3. Pelo que se teme. O filósofo alemão apresenta
em alguns aspectos uma compreensão diferenciada da teoria de Aristóteles sobre o temor136.
Heidegger não faz uma análise no sentido de descobrir ou estabelecer princípios causais, mas
fazer uma elucidação fenomenológica desta disposição.
O que se teme é sempre um ente dentro do mundo, podendo este ente possuir o caráter
de ser do manual ou ente simplesmente à mão, bem como o co-Dasein. O que se teme possui
o caráter de ameaça, que compreende seis coisas: 1. O que vem ao encontro possui o modo
conjuntural do dano; 2. O dano visa a um âmbito determinado daquilo que pode encontrar; 3.
A própria região e o ‘estranho’ que dela provêm são conhecidos; 4. O danoso enquanto 134 Kierkegaard por ser um autor cristão permanece na questão da fé, não atingindo propriamente a forma – problemática – Existencial. Afirma Dastur que sua obra O conceito da angústia, situa-se no contexto teológico do problema do pecado original, enquanto que para Heidegger a angústia refere-se exclusivamente ao ser-no-mundo enquanto tal. DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p.70. 135 ARISTÓTELES, Apud: TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 159. 136 O presente trabalho não irá realizar uma analítica mais aprofundada destas diferenciações, apenas apontando que há esta diferenciação e alguns elementos centrais.
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ameaça não se acha ainda numa proximidade dominável, mas se aproxima; 5. O aproximar se
aproxima dentro da proximidade – pode se aproximar, mas nem sempre chegar; 6. Ao
aproximar-se na proximidade, o dano traz consigo a possibilidade desvelada de se ausentar e
passar ao largo – não diminuindo o temor, mas o constituindo137.
A segunda perspectiva sobre o fenômeno do temor que Heidegger analisa, debruça-se
sobre o próprio temor. ‘o sentir temor, enquanto tal, é o deixar-se afetar que libera o
ameaçador tal como foi caracterizado’138. Pela circunvisão, o que é temível já é percebido,
sendo parte da disposição afetiva. O temor, sendo temerosidade, já abriu o mundo para que o
temível se aproxime. O temor descobre, constata o que se aproxima e o que este ente tem de
assustador; sentido o temor que o temor percebe o que é temeroso. Somente o ente, que sendo,
está em questão ou em jogo o seu próprio ser, pode temer. O Dasein receia, teme, tem medo
por si; e o temor abre o Dasein ao abandono de si mesmo no conjunto dos perigos. O temor,
como disposição afetiva, revela o ‘aí’, o ‘Da’ do Dasein, sua condição de abertura na
existência como ser-no-mundo, bem como a precariedade deste ser-aí. O temor, como
disposição afetiva, abre tanto o ente intramundano – o ameaçador -, como também abre o
Dasein como ser-em – ameaçado.
O terceiro elemento que Heidegger analisa sobre o temor é pelo que se teme,
afirmando que pelo que o Dasein teme é o próprio Dasein. ‘Somente um ente a quem em seu
ser está em questão seu próprio ser, pode ter medo. O medo abre a este ente em seu estar em
perigo, em seu estar entregue a si mesmo’139. O temor revela o caráter de abertura, revela o
Dasein em seu ser ‘aí’. Quando o Dasein teme por sua propriedade, por sua casa, demonstra
também o ‘pelo que’ do temor, pois o Dasein é sempre ocupado, sendo ‘em função’ daquilo
que se ocupa no mundo. O perigo é a ameaça de seu ser-em-meio-a...
O temor também pode ser em relação a outro Dasein, temendo pelo outro, pela
coexistência. Isto não representa que o Dasein que teme pelo outro na convivência retira deste
o caráter ou a disposição de temer. O temer pelo outro é uma forma da disposição afetiva
solidária com os outros, não representando isto um temer-juntos... O temer por alguém é, na
verdade também, um temer o Dasein mesmo; temendo pelo coestar com o outro, temendo que
o outro lhe seja arrebatado da convivência. Não se trata de graus de intensidade emotiva ou
valorativa da disposição afetiva do temor, quando alguém teme no seu coestar, mas o temer
pelo outro guarda seu caráter de autenticidade.
137 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 164. 138 Id. Ibid., p. 165. 139 Id. Ibid., p. 165.
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O temor pode apresentar diversas variações e facetas no seu modo de manifestação e
apresentação no cotidiano conviver do Dasein. A aproximação dentro da proximidade do
Dasein, forma parte decisiva no caráter de ameaça do ameaçante. O temor pode se
transformar em susto (pavor – Erschrecken): quando a ameaça em si ‘na verdade ainda não,
mas a qualquer momento sim’, subitamente se abate sobre o Dasein na ocupação; é o modo
repentino com que se aproxima o ameaçante que caracteriza este elemento, pois o referente do
pavor é de início, algo familiar. Quando alguém ameaça e não possui o caráter de ser
familiar, algo absolutamente desconhecido, o medo converte-se então em horror (Grauen).
Quando o que vem ao encontro possui ao mesmo tempo o caráter de pavor e horror, o temor
transforma-se em terror (Entsetzen). Há ainda outras variações do temor, tais como: timidez,
acanhamento, receio, esturpor...140
Tendo exposto diversos elementos relacionados ao temor, abre-se necessariamente
espaço para o questionamento e apresentação da angústia. Seria a angústia mais uma forma de
modificação do temor ao estilo do terror, horror...? Ou seria a angústia um fenômeno original,
e de unidade, de abertura do Dasein diante de si mesmo, no seu ter-que ser? A questão refere-
se também à totalidade, à possibilidade de abarcamento do todo do ser do Dasein, qual
poderia ser, portanto a disposição afetiva, compreensiva pela qual o Dasein estaria aberto a si
mesmo, de modo privilegiado?
Heidegger apresenta então a angústia como o fenômeno privilegiado, como disposição
fundamental de abertura do Dasein. Retirando seu ponto de partida da decaída, o pensador
diferencia e delimita a angústia diante do fenômeno do temor, afirmando que a angústia
‘apresenta o solo fenomenal para a apreensão explícita da totalidade originária do Dasein’141.
É pela angústia o abrir originário, que expõe a unidade dos existenciais – existencialidade,
facticidade, decaída – e o fenômeno do cuidado em sua tríplice estrutura. A angústia ocupa
um lugar e função especial na analítica do Dasein, invertendo todas as concepções modernas e
tradicionais da centralidade da consciência (Descartes, Kant, Husserl). Para Heidegger é na
angústia que o Dasein se encontra de modo único diante de si mesmo.
De modo geral a angústia é mal compreendida; em vista do Dasein estar envolvido na
cotidianidade, na publicidade, a compreensão da angústia propriamente é um ‘fenômeno
raro’. Neste âmbito, a angústia é poucas vezes tomada na seriedade que merece e lhe é
inerente ou também é analisada como um fenômeno isolado, fora da perspectiva da analítica
140 Tugendhat apresenta objeções a esta compreensão do temor segundo Heidegger, chegando a afirmar que ‘o temor é para a tese de Heidegger um exemplo especialmente desfavorável’; ou seja, o temor não possuiria todo poder de alcance que se propõe Heidegger. 141 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 205.
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da ontologia fundamental; o que encaminha para uma compreensão da angústia como um
sentimento a mais, sobre o qual fica difícil discorrer verdadeiramente – perdendo seu caráter
ontológico. Outro fator de empecilho para uma original apresentação metodológica da
angústia é que esta é algumas vezes tomada como um sentimento negativo ou ‘depressivo’;
objeção esta que pode conduzir à compreensão equívoca e afastada da angústia como
existencial fundamental do Dasein.
Heidegger parte da decaída para analisar a angústia. Na decaída o Dasein foge de si
mesmo propriamente, não se colocando diante de si; desvio para fora do Dasein. Mas, o
Dasein foge daquilo de que ‘corre atrás’, ou seja, somente na medida em que o Dasein se
coloca diante de si mesmo, ele pode fugir de si. É este caráter de fuga que relaciona o temor e
a angústia – o temor é a angústia inautêntica e este se fundamenta na angústia. Pelo temor, o
que se teme é sempre um ente intramundano, que se aproxima, tomando a forma de ameaça e
na decaída o Dasein foge de si mesmo. Na decaída, a ameaça tem o modo de ser do ente que
se retira, ou seja, o próprio Dasein. A fuga já não é de um ente intramundano, mas o ‘desvio
da decaída se funda na angústia que, por sua vez, torna possível o temor’142.
Como a angústia fundamenta o desvio da decaída, o Dasein se angustia com o próprio
ser-no-mundo. No temor o ‘com que’ (wovor) o Dasein temia é sempre um ente
intramundano, na angústia não é, de modo algum, um ente deste caráter, mas o ‘com que’ da
angústia é sempre indeterminado. O ente como utensílio ou o ente simplesmente à mão, perde
totalmente o seu sentido, sua importância na angústia. O mundo adquire um caráter de total
insignificância. O que assume o caráter de ameaçador na angústia não está em lugar algum,
nada de determinado aparece como ameaçador. Não se aproxima de alguma ‘exterioridade’ ou
de alguma direção, mas já está sempre presente. Tão próximo que sufoca a respiração, mas
não está em lugar algum143.
A angústia manifesta o nada. Ao modo da cotidianidade e da decaída, as disposições
afetivas sempre conduzem o Dasein para o encontro em meio aos entes. Esta decaída impede
ou impõe empecilhos para o verdadeiro enfrentamento do Dasein com o nada. Na situação da
angústia o Dasein se sente absolutamente estranho, mas não consegue afirmar de onde lhe
aparece ou provém este aspecto de estranheza. Esta estranheza retira do Dasein todo apoio
142 Id. Ibid., p. 208. 143 Dastur (DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p.70-71) apresenta uma explicitação interessante sobre este aspecto: ‘o que angustia não pode ser referido a nenhum ente intramundano e não se consegue abordar a partir de nenhuma região determinada do mundo, pois ‘isso’ que angustia já está aí, simultaneamente em lado nenhum e tão perto que nos corta a respiração, nos aperta literalmente a garganta (Angst tem a mesma raiz que o latim angustus que significa estreito)’.
63
que sentia, manifestando-lhe o nada. A angústia corta a palavra ao Dasein, revelando o caráter
do nada, que muitas vezes se tenta preencher com palavras desconexas...
Que a angústia revela ou manifesta ao Dasein o nada pode ser percebido ou
testemunhado quando a angústia já se afastou, de modo que o Dasein chega a afirmar, quando
questionado sobre o que se havia passado: ‘não foi nada’. O nada não se revela como um ente
ou um objeto. O nada se torna manifesto pela angústia, ao lado do ente, em sua totalidade; o
Dasein se depara com o nada juntamente com o ente em sua totalidade. O nada não significa
uma aniquilação ou destruição do ente, para que então reste o nada144.
Ao ente intramundano perder seu sentido para o Dasein na angústia, representa então
que na angústia o Dasein se angustia com o mundo como tal. O ente intramundano se torna
insignificante e somente o mundo se impõe na sua mundanidade. Se o Dasein se angustia com
o nada - o mundo como tal -, significa, portanto que a angústia se angustia com o próprio ser-
no-mundo. Pela angústia ocorre uma união do ‘com que’ (wovor) e ‘pelo que’ (worum) o
Dasein se angustia. Na angústia com o ser-no-mundo nada de intramundano consegue
oferecer algum significado para o Dasein. A angústia retira a ‘possibilidade’ do Dasein de se
compreender, na decaída, a partir da cotidianidade do mundo. ‘A angústia singulariza o
Dasein em seu próprio ser-no-mundo, que pela compreensão, se projeta para as
possibilidades’145. O ‘pelo que’ da angústia abre o Dasein como ser de possibilidades, como
aquilo que ele pode ser desde si mesmo e enquanto singularizado na ‘singularização’.
Pela angústia o utensílio e o ente simplesmente à mão já não possuem significância
para o Dasein. Desta forma também a decaída já não é mais o ‘espaço’ de significação do ser
do Dasein, pois o mundo, a cotidianidade já não tem mais nada a oferecer ao Dasein. A
angústia não abre o Dasein para a cotidianidade, mas remete o Dasein para o seu próprio ser-
no-mundo. Pela angústia o Dasein se encara como um solus ipse, no sentido de estar
singularizado para as questões intramundanas que agora já não mais lhe impactam.
Solipsismo que não ‘instala’ no Dasein o conceito de sujeito ‘transcendental’, puro, mas que
conduz o Dasein diante de seu mundo como mundo, e diante de si mesmo como ser-no-
mundo.
144 NUNES, B. Passagem para o poético: Filosofia e poesia em Heidegger. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 114-115. ‘A angústia revela o Nada, ao mesmo tempo que o recuo do ente em sua totalidade. Não se dá que o ente seja suprimido e o Nada apreendido, separadamente, por um ato de negação das coisas que permitisse alcançá-lo. [...] O Nada sobrevém como acontecimento ao próprio Dasein, na rejeição do ente, que, nem suprimido, nem negado, assedia o Dasein refugindo’. 145 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 210.
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A angústia revela ao Dasein o ser para o poder-ser mais próprio, ‘revela seu ser livre
para a liberdade de escolher-se e tomar-se a si mesmo nas mãos’146. A angústia conduz ou
leva o Dasein diante de seu ser livre (propensio in...), arrasta para a propriedade de seu ser
enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é. Nesta possibilidade, como ser-no-
mundo, o Dasein também assume e se entrega à responsabilidade de ser. Estando na situação
de angústia o Dasein encontra-se livre para escolher a si mesmo; escolha esta – do ser
possível - que caracteriza a liberdade. Portanto, pela angústia, o Dasein encontra-se livre para
escolher a possibilidade de viver a sua propriedade. No ser-livre está também imbricada a
responsabilidade, o assumir. O Dasein, pela angústia, escolhe e assume a possibilidade de
viver a propriedade de seu ser.
Outro caráter importante da angústia é que ela revela ao Dasein como ele está,
desvelando-lhe sua situação de ‘estranho’ (unheimlich). Na angústia, o Dasein descobre-se ou
torna-se estranho a si mesmo. A situação de ‘estranheza’ mostra ao Dasein a peculiar situação
de ‘em lugar algum’ quando se encontra na angústia, bem como significa o não-estar-em-casa
(Nicht-zuhause-sein). Pela angústia é rompida a sensação cotidiana de já sempre estar
familiarizado com o mundo e com as coisas, ‘a angústia traz o Dasein de volta de seu cadente
absorver-ser no ‘mundo’147. O Dasein se singulariza enquanto ser-no-mundo, revelando-lhe o
não-estar-em-casa (Un-zuhause)148.
Desta forma fica explicitado e visível de que o Dasein realmente foge na decaída. Não
é uma fuga do ente intramundano, mas é justamente uma fuga para os entes para se sentir
familiarizado em meio a estes. ‘A fuga na decaída para o estar-em-casa na publicidade é uma
fuga ante o não-estar-em-casa, ou seja, ante o estranhamento que se encontra o Dasein
enquanto ser-no-mundo lançado e entregue a si mesmo em seu ser’149. O estranhamento
acompanha o Dasein, ameaçando o seu estar perdido na publicidade. A angústia pode surgir a
qualquer momento, inesperado; não necessitando de um momento ‘obscuro’ ou especial para
se tornar presente, se manifestar. Alerta Heidegger que de modo geral, quando a angústia
surge, ela não é interpretada como tal, mas a compreensão cotidiana ocorre numa forma de
‘dar as costas’, reforçando a sensação de familiarizado com o mundo. Isto demonstra então
que o estar familiarizado é uma forma de estranhamento e não o contrário, pois o ‘não-estar- 146 Id. Ibid., p. 210. 147 Id. Ibid., p. 211. 148 Unheimlich: não pertencente ao lar – na angústia sentimo-nos ‘unheimlich’, ela nos dá arrepios. Haus: casa, lar; zu hause sein ou zuhause sein: estar em casa. Nicht-zuhause-sein: não estar em casa. ‘Na cotidianidade dominada pelo impessoal, o Dasein sente-se em casa. A angústia rompe a familiaridade e o ‘ser-em’ assume o modo existencial do não estar em casa (Un-zuhause)’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002 149 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 211.
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em-casa deve ser concebido ontológico-existencialmente como o fenômeno mais
originário’150.
1.5 – Dasein como cuidado
Heidegger abre o sexto capítulo da primeira seção de ST, com o título ‘A questão da
totalidade originária do todo estrutural do Dasein’, ressaltando e colocando em evidência o
fenômeno unitário que está na origem da pluralidade dos momentos estruturais, os
existenciais, que a análise até este ponto vinha expondo. A analítica do Dasein deve ser
compreendida como a articulação de uma unidade estrutural.
O filósofo da Floresta Negra assim apresenta um resumo formal em relação à angústia:
‘o angustiar-se, enquanto disposição afetiva é uma maneira de ser-no-mundo; o ‘ante que’ da
angústia é o ser-no-mundo em condição de lançado; o ‘pelo que’ a angústia se angustia é o
poder-ser-no-mundo’151. A angústia revelou o Dasein como um ser-no-mundo facticamente
existente, cujos caracteres fundamentais são a existencialidade, a facticidade e a decaída.
Heidegger alerta que estas determinações existenciais não formam uma espécie de
compositum que poderiam em algum momento existir e/ou em outro faltar, mas sim formam
uma unidade que constitui uma totalidade estrutural.
A idéia de totalidade não pode ser caracterizada ou conceituada ao modo tradicional de
tomar a totalidade de um ente à mão. O conceito de totalidade composta ou totum
syntheticum, pressupondo a independência dos elementos em relação ao todo, concebe o
processo de totalização como um reunir construtivamente as partes – modo que não serve para
caracterizar a unidade do Dasein. A totalidade do Dasein não é uma recapitulação das partes,
mas é necessário um olhar, que atravessando completamente o todo, alcance com
originalidade um fenômeno unitário que possa fundamentar ontologicamente a possibilidade
estrutural de cada momento estrutural. Este fenômeno, portanto não é uma arkhé, ‘uma
origem que teria a simplicidade e a unidade de um elemento derradeiro de construção, um
fundamento no qual o múltiplo se aboliria’152. A multiplicidade dos momentos não pode ser
abolida, mas pelo contrário, é requerida e deve necessariamente ser mantida, para a
‘construção’ de uma totalidade ‘infragmentável’. A integralidade do Dasein não é uma
150 Id. Ibid., p. 211. 151 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 213. 152 DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 61.
66
formação a partir de partes, mas por existenciais, por ‘momentos’ que perduram no tempo.
Desta forma, a unidade do Dasein não pode ser compreendida a partir do modelo ôntico,
como uma reunião de partes dentro de um determinado espaço.
A unidade não é, portanto uma simples composição de elementos, mas o que
Heidegger quer enfatizar é o caráter relacional, e não substancial, e a interdependência
recíproca dos existenciais constitutivos do Dasein. Sendo existencialidade, facticidade e
decaída, não se pode afirmar que uma destas características constitutivas do Dasein seja
básica ou primordial, no sentido de que outras sejam derivadas dela ou se constituam como
secundárias em relação à primeira. Todos os existenciais do Dasein são originais e
‘equiprimordiais’.
O Dasein é o ente a quem já sempre está em questão o seu próprio poder-ser, que
como compreensão se projeta para o poder-ser mais próprio. O Dasein é também por meio
deste poder-ser, confrontando-se com a possibilidade de ser, própria ou impropriamente. O
estar voltado para o seu poder-ser significa uma antecipação de si mesmo, sendo ‘além de si
mesmo’, como um poder-ser que ele mesmo é. A este caráter Heidegger denomina o
antecipar-se do Dasein. Este elemento concerne ao todo do Dasein e o caracteriza como ser-
no-mundo. Mas também o Dasein já sempre é lançado no mundo, o que faz compreender o
antecipar-se como ‘antecipar-se-a-si como já-ser-no-mundo’153. O existir é sempre fáctico, a
existencialidade é determinada pela facticidade.
Heidegger define a totalidade estrutural do Dasein formalmente da seguinte forma: ‘o
ser do Dasein é um antecipar-se-a-si-sendo-já-em (no mundo) em-meio-de (o ente que
comparece dentro do mundo)’154. A este ser denomina como cuidado (Sorge)155, que é
compreendido no sentido existencial-ontológico. Pelo fato do Dasein ser essencialmente
cuidado que é possível o Dasein ser e comportar-se na forma de ocupação (Besorgen) em
meio aos entes à mão, bem como solicitude (Fürsorge) na coexistência. A ocupação e a
solicitude fundamentam-se no elemento ontológico do cuidado. O cuidado não é
primeiramente e um especial comportar-se do Dasein consigo mesmo – o que segundo
Heidegger seria uma tautologia – pois todo comportar-se já está ontologicamente designado
no antecipar-se a si.
153 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 214. 154 Id. Ibid., p. 214. 155 Sorge: cura, cuidado. Inwood afirma que em ST, Sorge ‘parece dizer respeito à direção do Dasein de sua própria vida ou ‘ser’. [...] A cura, mais do que a persistência e a percepção de um eu ou ego, ou a continuidade e coerência das experiências, faz do Dasein um si mesmo unificado e autônomo. Na cura, Dasein readquire o domínio de si mesmo: enquanto cura, o Dasein é o ‘Entre’ (nascimento e morte)’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. p. 27-28.
67
No antecipar-se como poder-ser está radicada a possibilidade ontológico-existencial
do ser livre para as possibilidades próprias. É por meio do poder-ser que o Dasein é em cada
caso como facticamente é. Determinado pela liberdade o Dasein pode ser ao modo próprio ou
impróprio; modo este que involuntariamente o Dasein é geral e regularmente. Desta forma o
assumir a si mesmo fica delegado ao modo e da disposição do impessoal.
O cuidado como totalidade da estrutura do Dasein já está sempre ‘antes’ de todo
comportamento fáctico. Isto não representa para Heidegger uma primordialidade do
comportamento prático sobre o teórico, pois tanto teoria como práxis são possibilidades de
ser do Dasein como cuidado. Heidegger também insiste na diferenciação ou a atenção para
não confundir o fenômeno do cuidado com desejos, vontades, impulsos. A vontade, o desejo,
os impulsos, a inclinação se fundam no cuidado; o cuidado como fenômeno ontológico é
‘anterior’ a estes elementos. Heidegger não pretende realizar uma ontologia completa, mas
realiza algumas referências a estes fenômenos, demonstrando como estes se fundamentam no
cuidado.
O Dasein é sempre ocupação e solicitude e o querer a um ente, projetado em suas
possibilidades, é tomado como um ente com o qual há que ocupar-se ou ‘levar a seu ser por
meio da solicitude’156. Ao querer sempre pertence algo querido (algo que se quer). No querer
estão contidos os seguintes momentos: a abertura prévia do em-função-de que (antecipar-se);
abertura do âmbito do que pode ser objeto de ocupação (mundo como o ‘onde’ do já-ser); e o
projetar-se compreensor para um poder-ser relativo a uma possibilidade do ente que se quer.
Na cotidianidade o querer se aquieta e se contenta em querer o que é ‘real’. Isto não
exclui o caráter de estar sempre voltado para o poder-ser, mas este estar voltado para as
possibilidades revela-se neste modo então como um mero desejar. Heidegger afirma que no
desejo o Dasein se projeta ‘para possibilidades que não somente ficam sem ser assumidas na
ocupação, senão que nem sequer se pensa, nem espera que se cumpram’157. O desejo é uma
modificação existencial do projetar-se como compreensão, que na sua condição de lançado
adere às possibilidades. Adesão esta que fecha as possibilidades.
A adesão ressalta o fenômeno do já-sempre-ser-em-meio-a, modificando o antecipar-
se, que revela a inclinação ou tendência; inclinação que leva a se ‘deixar viver’ pelo mundo
no qual se encontra. É uma saída em busca de algo, que faz com que toda estrutura do cuidado
se modifique. A inclinação, ‘cega’ o Dasein, levando a colocar a serviço desta inclinação
todas as suas possibilidades. Já o impulso tem o caráter de força propulsora, uma inclinação ‘a
156 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p.. 216. 157 Id. Ibid., p. 216.
68
qualquer custo’. O impulso busca reprimir outras possibilidades, chegando a atropelar a
disposição afetiva e a compreensão; modo pelo qual o antecipar-se se manifesta como
impróprio.
O fenômeno existencial do cuidado não é um fenômeno simples em sua estrutura, não
podendo ser exposto ou explicado como um elemento ôntico ‘primordial’ ou reduzido a um
ente específico. ‘A explicação do ser do Dasein como cuidado não força o Dasein a entrar
numa idéia previamente pensada, senão conceitualiza existencialmente algo que já se abriu de
modo ôntico-existenciário’158.
Heidegger faz uma análise ontológica do cuidado, apresentando os fundamentos
ontológicos para a compreensão do ‘homem’, afastando-se das interpretações tradicionais da
metafísica e da antropologia. O filósofo apresenta também um testemunho pré-ontológico,
pelo qual o Dasein se expressa sobre si mesmo de forma originária. Apresenta este
testemunho para deixar claro que a analítica do Dasein não é uma invenção, mas sim uma
‘construção’ ontológica, com seus devidos fundamentos. Como testemunho, é apresentada a
fábula 220 de Higino, que Goethe havia também reelaborado para a segunda parte de ‘seu’
Fausto; a fábula da Cura:159
Ao atravessar Cura um rio, viu um argiloso barro, e tomando-o meditabundo o começou a modelar. Enquanto refletia sobre o que criara, Júpiter se apresenta. Pede-lhe Cura lhe dê espírito e facilmente o consegue. Como Cura quisesse dar-lhe seu próprio nome, Júpiter não aceitou e exige que se ponha o seu nome. Enquanto eles discutem, intervém também a Terra pedindo que seu nome seja dado a quem ela o corpo dera. Tomaram por juiz a Saturno, e este, equitativo, julga: ‘Tu, Júpiter, porque o espírito lhe deste, na morte o espírito e tu, Terra, pois lhe deste o corpo, o corpo receberás, retenha-lo Cura enquanto viva, porque foi a primeira em modelá-lo. E quanto à disputa entre vocês sobre o nome, chamar-se-á homem, já que de humus foi feito160.
Este testemunho pré-ontológico apresenta uma especial significação que vê o
‘cuidado’ como aquilo a que o Dasein pertence ‘durante toda sua vida’, como também se
apresenta em conexão com a tradicional visão de homem composto por corpo e espírito. ‘Este
ente tem a ‘origem’ de seu ser no cuidado [...] não fica abandonado por sua origem, senão
retido e submetido ao seu domínio enquanto ‘está no mundo’’161. O nome – homem - é em
158 Id. Ibid., p. 218. 159 Heidegger encontrou este testemunho pré-ontológico em um artigo de K. Burdach. Este mostra que Goethe tomou de Herder e o reelaborou para a segunda parte de seu Fausto; fábula da Cura, transmitida como fábula 220 de Higino. - Caio Julio Higino (Espanha, cerca de 64 a.C. – Roma, 17 d. C.). Chamado em muitas fontes ‘o liberto de Augusto’, por seu humilde passado como escravo, escalou com seu talento e saber altos postos e o respeito da intelectualidade de sua época, chegando a encarregado da biblioteca do Templo de Apolo, no monte Palatino, em cujas aulas exerceu o ensino da Filosofia. É atribuído a Higino um livro de Fábulas (Fabulae), que contém relatos sobre mitologia e outro sobre astronomia. (Fonte: HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Higino) 160 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 219. 161 Id. Ibid., p. 220
69
função daquilo de que foi feito – humus - o ser originário que o configura é decidido por
Saturno, o ‘tempo’. O ‘chegar a ser isso que ele pode ser em seu ser livre para suas mais
próprias possibilidades (no projeto)’162 é obra do cuidado. O termo ‘cura’ tem basicamente
dois sentidos: ‘esforço (afã) angustiado’ e também ‘cuidado; dedicação’, pelo qual também se
interpreta que o Dasein já sempre também é um ente entregue ao mundo com o qual se ocupa.
Heidegger não pretende uma interpretação ontológica a partir de generalizações
ontológicas, ou apresentar estruturas ônticas que estejam sempre presentes na manifestação e
investigação sobre este ente, mas apresentar uma estrutura que esteja sempre presente. As
‘preocupações da vida’ e as ‘ocupações’ com o mundo fundamentam-se no fenômeno
ontológico do cuidado. Embora possa proporcionar o terreno em que se movem diversas
interpretações ônticas do Dasein, a analítica do Dasein não quer primeiramente servir como
uma fundamentação ontológica da antropologia; seu objetivo é a ontologia fundamental.
Por meio desta fábula e de sua interpretação pode-se perceber mais claramente que a
definição tradicional de homem como animal racional (animal rationale), surge como não
originária. Esta o apresenta como um composto entre sensível e inteligível e não como um
‘todo’. Heidegger mostra justamente que o cuidado é ontologicamente anterior ao querer, ao
desejo... a todas as pulsões que são características de todo ser vivo. Rompe com a ‘filosofia da
vida’, mostrando que não é com base na consideração do que é próprio da vida que se
conseguirá compreender originalmente o Dasein. Não se trata de uma mera tentativa de
compreensão mais original, de pensar o Dasein como uma nova forma composta. A unidade
apresentada não é simples, mas compreende uma triplicidade de estruturas – existencialidade,
facticidade e decaída – ‘que não se deixam reduzir a unidade de um elemento primeiro’163.
162 Id. Ibid., p. 220. 163 DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990 p. 77.
70
2 - POSSIBILIDADE DE SER-TODO E SER-PARA-A-MORTE
O trabalho mostrou até o momento o ente privilegiado da investigação e do propósito
de Heidegger – a questão do sentido do ser -, o Dasein como ser-no-mundo, que é abertura.
Sendo existência, pela qual está sempre em questão, em jogo o ser de seu próprio ser, ou seja,
o ser compreensor ao que como tal está em questão o ser como o seu próprio, foi possível
esclarecer que o ser do Dasein, em sua totalidade é configurado como cuidado. A
interrogação pelo sentido do ser não está concluída ou abandonada, e de acordo com
Heidegger somente poderá ser aclarada quando o ente a quem pertence este contínuo
compreender for originariamente interpretado em si mesmo quanto ao seu ser.
Como exposto anteriormente neste trabalho toda interpretação supõe sempre um ter
prévio, uma maneira prévia de ver e um entender prévio. Sendo uma interpretação
hermenêutica, ontológica, os fenômenos existenciais constitutivos do ente em questão não são
expostos já sempre conclusivamente ou como totais. Requer-se sempre, também por meio de
um aprimoramento metodológico, uma apresentação mais original dos existenciais, por meio
da qual se intenta alcançar a unidade dos momentos estruturais do Dasein. A maneira prévia
de ver, que foi guia da interpretação mostrou a existência como um poder-ser que pode ser
‘assumida’ própria ou impropriamente; que ao modo da cotidianidade é primeiramente
sempre no modo indiferente ou impróprio.
Pelo cuidado foi explicitado que o Dasein é sempre adiante-de-si-mesmo, sendo algo
que ainda efetivamente não é. Seria possível uma apreensão do ente inteiro? Coisa que a
interpretação prévia ainda não mostrou. Torna-se fundamental questionar e buscar pela
propriedade e integralidade (Ganzheit) do Dasein, desde seu nascimento até sua morte164.
Caberia então a missão de apresentar o ser inteiro do Dasein, ao qual sempre permanece algo
pendente, que ele pode ser e será. A este ‘resto pendente’ pertence o ‘fim’ do Dasein, ‘fim’
164 Rivera numa nota de tradução apresenta uma observação importante. A palavra Ganzheit foi traduzida e apresentada como ‘totalidade’ (cuidado é a totalidade do todo estrutural que é o Dasein). Cuidado é a totalidade obtida por uma visão ‘sincrônica’, como um corte transversal das estruturas do Dasein. Já a idéia de integralidade, trataria de uma visão ‘diacrônica’, um corte longitudinal, no estender do nascimento à morte. Isto expressa melhor o sentido da palavra neste uso e contexto, considerando o Dasein como integrum, que assume em si a morte, até seu último momento. HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 486.
71
que é a morte. ‘Este fim, pertencente ao poder-ser, ou seja, à existência, limita e determina a
integralidade cada vez possível do Dasein’165.
A situação hermenêutica provisória precisa então ser complementada ou superada,
surgindo então uma pergunta fundamental: o Dasein, enquanto existente, pode tornar-se
acessível em seu ser-inteiro? A idéia de ser acessível como inteiro contradiz o existencial do
cuidado, que possui sempre o elemento de ‘antecipar-se’ a si mesmo. Isto significa que o
Dasein sempre se comporta em relação ao seu poder-ser, encontra-se sempre voltado para
suas possibilidades. Possibilidade num sentido existencial/ontológico. Neste sentido a falta de
esperança ou o descrédito em relação a algumas coisas não representa ausência ou a nulidade
de possibilidades, mas um modo peculiar de se comportar em relação ao seu poder-ser.
Tampouco o ‘estar disposto ao que der e vier’ ou a vontade extrema (ilusão) representa que
tenha mais possibilidades. O Dasein é constituído essencialmente como uma permanente
inconclusão, como um pendente poder-ser.
E quando não há mais nada pendente? Neste momento o Dasein já se converteu em
um não-mais-existir. A eliminação do pendente equivale à aniquilação de seu ser. ‘Enquanto o
Dasein, como ente, é, jamais haverá alcançado sua integralidade’166. Se alcançar sua
integralidade, perdeu seu ser-no-mundo e, portanto, não será mais experimentado como ente.
É mister também apontar que a impossibilidade de ‘captar’ o Dasein como integralidade não é
um mero problema teorético ou de insuficiência ou imperfeição de capacidade de conhecer. O
impedimento se encontra na estrutura do ser deste ente, como uma questão ontológica.
Este impasse conduziu a Heidegger formular diversas questões em torno das temáticas
da morte, integralidade, totalidade, fim, ser-inteiro, possibilidade... Perguntas que conduziram
a uma investigação profunda e a apresentação de um conceito ontológico-existencial da morte
e a explicitação de diversas nuanças que se constituem e/ou se coadunam com este elemento.
2.1 – Apresentação e delimitação do conceito de morte
O tema da morte é com bastante probabilidade um dos mais inquietantes assuntos da
humanidade, bem como também da filosofia. Muitas reações podem ou são despertadas
quando o assunto está em voga: medo de morrer, silêncio diante do tema ‘tabu’,
desconhecimento, múltiplas explicações, busca de soluções religiosas ou além mundo... O
165 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 254. 166 Id. Ibid., p. 257.
72
homem sabe que vai morrer, sendo esta uma certeza em meio a outras que constituem a
humanidade. Também muito já se discutiu ou escreveu sobre esta questão, nas mais diversas
áreas do saber, nos âmbitos acadêmicos ou outros. A morte é motivo de espanto e a tendência
quase natural é querer sobre ela estabelecer uma relação de domínio, tarefa empreendida tanto
pela religião quanto pelas ciências. É um tema, um feito ou fato do qual cada um e todos não
podem escapar ou se esconder.
A morte suscita emoção, tristeza, choro, lamentações... Conduz diante do perguntar:
finito ou infinito? Em primeiro plano mostra a finitude, mas seria esta finitude uma ausência
de alguma coisa ou uma capacidade? A morte conduz a perguntar pelo depois, pelo divino.
Morte como certeza; certeza incomparável com qualquer outro tipo de saber cotidiano...
Morte que envolve a todos e envolve o todo do homem; seria também pela morte que foi
inventada ou que se almeja a imortalidade? Como já Heráclito afirmava: ‘Imortais: mortais,
mortais: imortais; vivendo os imortais da morte dos mortais, morrendo os mortais da vida dos
imortais’167.
Os diversos estudos históricos e antropológicos mostram as múltiplas formas de
relação do homem com a morte; como os povos primitivos absorviam e se relacionavam com
a morte e o morrer. Apontam para as diversas manifestações e comportamentos dos vivos
‘com os mortos’, os rituais de, as memórias, as crenças nos espíritos dos mortos que sempre
ainda influenciam a vida dos vivos... Para a maioria dos povos a morte é assumida (aceita e
negada); a morte não poderia ser uma destruição definitiva e os mortos acompanham os vivos
no curso de sua existência. Desta forma a morte é tomada como uma integrante da vivência,
como um elemento do ciclo vital.
Para outros a morte constitui-se como uma passagem – passagem de uma vida
corruptível para uma instância plena e de gozo permanente; entre os que crêem desta forma
podem ser incluídos os gregos, como pode ser percebido nas diversas narrativas mitológicas.
Esta é também a visão que surge e se mantém com as religiões ‘abraâmicas’, que é bastante
aprimorada e expandida pelo cristianismo e que em grande parte ainda arrebanha a maioria
dos ocidentais.
Na tragédia grega podem ser encontradas as primeiras representações da condição
mortal do homem. Por meio desta percebe-se a relação dos vivos com o mundo dos mortos.
Um exemplo pode ser percebido na Antígona de Sófocles168, no esforço obstinado em dar uma
167 HERÁCLITO, fragmento 62. Apud: DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. 168 SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2006.
73
sepultura ao irmão, mesmo que para isto tenha que renunciar à sua própria vida. A morte é o
começo da vida do espírito e a continuidade da tradição grega. Contra a morte não há remédio
e a mortalidade marca também a diferença com os demais mortais e que prepara o caminho
para a filosofia. O discurso filosófico é um discurso sobre a mortalidade.
A filosofia recebeu, provavelmente, um dos seus maiores impulsos com - e está ligada
a - uma morte, a de Sócrates, narrada por seu discípulo Platão no Fédon. Embora uma
preocupação central da filosofia socrática tenha sido o ‘bem viver’, o ‘como deve viver’ o
homem, neste diálogo, Platão realiza uma análise de como deve o homem morrer. A alma não
admite a morte, portanto ela é imortal; deve o homem esforçar-se para separar a alma
incorruptível do corpo, exercitando-se para morrer. Filosofar é aprender a morrer, ‘aqueles
que filosofam, no sentido exato da palavra, se exercitam para morrer e não há no mundo
homem que tenha, menos que eles, medo de estar morto’169. Por meio desta preparação o
filósofo vai tendo acesso à imortalidade, sendo que a vida vai triunfando sobre a morte a partir
deste olhar determinado em relação ao morrer.
Sêneca é outro que aborda centralmente a questão da morte em sua filosofia, por meio
da obra ‘La brevitá della Vita’. Afirma que o homem tem medo do mortal, e, portanto aspira
sempre ao que é imortal. Diante do perigo da morte, a vida sempre se apresenta com muita
pressa e como breve. Sugere então que se dedique tempo a refletir sobre a brevidade da vida e
sobre a finitude, estando atentos ao destino e tentando salvar a vida.
A morte vem sendo tema recorrente na história da filosofia, surgindo nas discussões
do período clássico e medievo. O tema é fortemente abordado no período renascentista,
principalmente em Montaigne, para quem a filosofia também deve ensinar a morrer, pois
morrer faz parte do viver; vivendo o presente. Mais tarde Hegel, Schopenhauer e outros
filósofos renomados também abordam a questão da morte como parte de suas filosofias. O
presente trabalho, porém, centra-se na análise da morte a partir da filosofia e pensamento de
Heidegger.
Para Heidegger o fundamental é desvelar um conceito originário ontológico-
existencial de morte. Para tal trilha um caminhar que vai apontando diversos elementos
relacionados ao tema, mas não necessariamente condizentes ou coerentes com a interpretação
que ele busca estabelecer. A pergunta para o filósofo da Floresta Negra neste aspecto gira em
torno da integralidade; ao alcançá-la o Dasein perde seu ser-no-mundo. O não mais existir
representa a impossibilidade do Dasein experimentar o passo de alcançar a integralidade de
169 PLATÃO. Fédon. Apud: DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
74
seu ser. A respeito de si mesmo a experiência da integralidade de seu ser está vedada. Com
isto surge e formula-se então uma pergunta importante: como coestar com os demais, seria
possível experimentar a integralidade do ser do Dasein por meio da morte de outro que
chegou ao fim?
Com a morte do outro Dasein, este também se ‘transforma’ em não-mais-ser-no-
mundo. Passa a ser como um corpo que comparece no mundo, passando do modo de ser do
Dasein ao modo de não-mais-existir; ou como afirma Heidegger: ‘o fim do ente qua Dasein é
o começo deste ente qua mero estar-aí’170. Mas o ente que permanece como um estar-aí não é
reduzido a uma mera coisa corpórea, como alguma coisa qualquer. O cadáver permanece
orientado pela idéia que foi um ente ao modo de Dasein, ou seja, algo mais que uma coisa
material sem vida, mas sim um vivente – Dasein – que perdeu a vida. O defunto não fica
abandonado ao mundo, mas é, de modo geral e na maioria das culturas e tradições, objeto de
uma particular e reverencial ocupação, seja por meio de ritos especiais, cultos de exéquias,
procissão de corpo presente... O corpo do Dasein que ‘perdeu a vida’ é algo mais que um
utensílio ou um mero objeto à mão. A relação com os defuntos não pode ser comparada com
uma relação com os entes à mão.
A coexistência que Heidegger conceitua ocorre sempre porque o Dasein é ser-no-
mundo e o coestar ocorre com o outro que está no – mesmo – mundo. O Dasein morto
‘abandonou’ o seu ser-no-mundo como existência, no caráter de Dasein, mas os que
permanecem podem relacionar-se com o defunto a partir do mundo. A morte sempre se
configura ao Dasein como perda, mas muito mais no sentido de perda para os que
permanecem no mundo. O Dasein não pode ‘sentir’ ou experimentar a morte ou a perda do
caráter de ser-no-mundo do outro; o máximo que o Dasein pode fazer é acompanhar ou
assistir o outro Dasein nos seus instantes de morte. O morrer como chegar-ao-fim também
não é verdadeiramente experimentado quando ocorre ou ocorreria uma representação
psicológica da morte quando o Dasein assiste ao outro no seu morrer.
Quando o outro morre, torna-se uma perda para os que ficam, testemunhos deste partir
do outro. Há duas formas de entender o conceito de testemunho que aqui se tornam
relevantes: testemunho que se posiciona como um terceiro e percebe ‘à distância’; e
testemunho que viveu determinada realidade, passou por um processo até o final e por isto
está em condições de testemunhar. O Dasein pode testemunhar sobre a morte do outro no
primeiro sentido; mas jamais pode testemunhar no segundo sentido. Se isto possível fosse
170 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 259.
75
seria como dar o passo da morte e posteriormente retornar para relatar como foi. Seria como
contradizer o ditado popular que reza no sentido: ‘ninguém que morreu até hoje, voltou para
contar como foi, ou como é do outro lado’.
Com a morte do outro o que o Dasein que continua vivo experimenta e pode
experimentar é o luto. Pelo luto o Dasein experimenta certa melancolia, um abandono e uma
insignificância do próprio ser, uma perda de horizonte, mas não é experimentado um chegar-
ao-fim do outro Dasein. O luto é um relembrar, uma espécie de ‘substituição’ do outro que
faleceu. ‘Na experiência do relembrar, faço, com efeito, ao mesmo tempo, a experiência de
minha morte como o eu passado e de minha sobrevivência como o eu que se recorda; sou, ao
mesmo tempo, morto e sobrevivente de minha própria morte’171. No luto há dois movimentos,
um que tenta conservar em vida o falecido – incorporando-o à interioridade – e outro
movimento para efetivamente considerá-lo como desaparecido – aceitando sobreviver no
mundo a ele. No luto surge a cruel pergunta se o Dasein está disposto a seguir o mesmo
destino que o morto, ou se renuncia a seus impulsos narcísicos e então aceita e assume viver
sem a presença do outro, renunciando ao seu ‘objeto’ de amor que desapareceu e permanecer
vivo. Embora estes elementos todos estejam presentes na vida de cada Dasein, estes são
elementos ônticos, psicológicos e que não retiram o caráter da morte ser sempre de cada
Dasein.
No conviver da coexistência é possível a substituição de um Dasein pelo outro. Na
ocupação com o mundo é comum e possível a substituição de diversas maneiras e formas;
podem ocorrer substituições no âmbito profissional, de círculos de convivências... A
substituição que costuma ocorrer na cotidianidade é sempre ‘em’ e ‘em relação com’ algo, na
ocupação, tendo presente que o Dasein é sempre visto e tomado a partir daquilo com que se
ocupa, ‘sendo o que faz’, como pragmata. Mas a idéia de substituição não alcança tal êxito
quando se trata de uma suposta substituição da possibilidade do chegar-ao-fim do Dasein, que
permite ao Dasein alcançar sua integralidade. ‘Ninguém pode tomar ao outro o seu morrer’172.
O que poderia ocorrer, e a história inclusive está repleta de relatos desta natureza, é o
sacrifício de um pelo outro em uma causa determinada. Ao se sacrificar pelo outro, àquele que
é substituído no momento determinado não se lhe retira a sua morte. ‘O morrer, o deve
assumir cada Dasein por si mesmo. A morte, na medida em que ‘é’, é por essência cada vez
minha’173. A morte é uma possibilidade peculiar pela qual sempre está em questão o próprio
171 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 69. 172 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 261. 173 Id. Ibid., p. 261.
76
ser do Dasein; a morte desta forma não se constitui como um incidente, mas como um
fenômeno ontológico-existencial que deve ser assumido por cada Dasein.
Lèvinas não concorda com esta perspectiva do sentido da morte que Heidegger
apresenta. Para o pensador da Lituânia, a morte é sempre um sem-sentido, rompe com o
sentido ou convoca a estar numa não-comodidade em relação ao sentido da morte; algo que
envia para fora do que as palavras buscariam conceituar sobre o sentido da morte. Para
Lèvinas a morte não é nunca a própria morte, não é a ‘minha morte’, mas é sempre a morte do
outro, a morte do outro homem. A morte do outro é um acontecimento sem lugar e ‘eu’ sou
responsável pelo outro, ‘sou’ responsável pelo outro, pela morte do outro. A morte não é
nunca em primeiro lugar a ‘minha’ morte, porque a morte é sempre já a morte do outro na
medida em que sou responsável por ele, na medida em que ‘sou’ por ele.174 Enfim, Lèvinas
considera ‘o ‘Inteiramente Outro’ que, na sua infinidade, é ‘anterior’ à finitude e à
passividade de uma ipséité ‘refém’’175.
A preocupação é buscar e encontrar uma compreensão existencial que forneça uma
interpretação ontológica da morte. Por isto a necessidade de delimitação e a ‘eliminação’ dos
conceitos que se tornam inadequados para uma compreensão existencial da integralidade e do
chegar-ao-fim. Três pontos são importantes destacar até o momento: 1. Ao Dasein, enquanto
está sendo, lhe pertence um ainda-não que terá que ser – um resto pendente; 2. O chegar-ao-
fim do ente que é ao modo de não-ter-chegado-ao-fim possui o caráter de um não-mais-
existir; 3. O chegar-ao-fim implica ao Dasein um modo de ser absolutamente insubstituível176.
O Dasein possui o caráter de não-integralidade; mas cabe uma pergunta sobre este
aspecto: poderia esta não-integralidade ser nomeada como resto pendente? O estar pendente
aponta para algo que ‘lhe pertence’ ou pertenceria, mas que não está presente, como está
pendente saldar uma dívida – o pertencer uma coisa à outra ou o não estar presente/junto o
que efetivamente deveria estar. Desta forma a não-totalidade deste ente se suprime com a
reunião acumuladora das partes faltantes. ‘O ente em que há ainda algo pendente tem o modo
de ser do à mão’177, e, portanto não pode se constituir uma modalidade de interpretação da
morte do Dasein. A existência do Dasein não se constitui como uma acumulação de entes ou
partes que eventualmente o levariam a uma plenitude ou totalidade; o Dasein é já sempre
constituído como um ainda-não.
174 O presente trabalho não pretende apresentar detalhadamente a idéia levinasiana de morte e de sua filosofia; tampouco quer aprofundar a discussão em torno da discordância de idéias, apenas fazer uma pequena apresentação de uma perspectiva diferenciada, acenando para outra forma ou ótica de analisar o assunto. 175 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 73. 176 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 263. 177 Id. Ibid., p. 263.
77
Heidegger apresenta diversos exemplos para melhor expor e interpretar com mais
precisão o conceito de pendente e morte. Poderia se comparar o pendente do Dasein com o
pendente da lua que se nos mostra incompleta? O pendente da lua não significa um não-estar-
junto, mas impossibilidade de percepção. A incompletude do Dasein não é uma questão de
apreensão perceptiva, mas é uma questão de ser ou não-ser; ‘o Dasein tem que devir, ou seja,
ser, ele mesmo, o que ainda não é’178.
Seria então possível uma comparação originária da morte do Dasein com a maturação
de um fruto? O fruto se encaminha para sua maturação a partir de si mesmo; a maturação não
lhe vem do exterior. Enquanto é, o fruto já é o seu ‘ainda-não’; este elemento é constitutivo do
ser do fruto. Também o Dasein é um ‘ainda-não’, que ele assume enquanto é. Embora haja
possibilidade de algumas comparações com os dois modos, há aspectos ontológicos que
necessitam ser diferenciados e expostos. Ao chegar a ser maduro o fruto se consuma, chegou
ao seu ápice como ente, atingiu as suas possibilidades. Diferente é o modo de ser do Dasein,
pois também o Dasein ‘inacabado’ termina; o Dasein não necessariamente alcança sua
consumação como ente ao morrer e na maior parte das vezes termina no ‘inacabamento’.
O terminar assume também o sentido de acabar. A chuva acaba, o caminho acaba,
acaba-se a escrita ou leitura de um livro, a pintura de um quadro... Acabar no sentido de
passar ao não-mais-estar-aí, ou estar-aí tendo alcançado seu devido fim. Assume também o
sentido de inconcluso – não necessariamente consumação. Ou ainda, o sentido de desaparecer,
de não mais estar disponível à mão. Mas a morte do Dasein não pode ser interpretada nestes
sentidos, pois seria tomado com um ente à mão – pela morte o Dasein não se consumou, não
simplesmente desaparece ou se conclui.
A morte do Dasein assume outro caráter de interpretação, pois enquanto o Dasein é,
também já é o seu ainda-não e é o seu ‘fim’. De modo que Heidegger afirma que o terminar a
que se refere ‘a morte não significa um ter-chegado-ao-fim do Dasein (Zu-Ende-sein), senão
um estar voltado para o fim (Sein zum Ende). A morte é uma maneira de ser da qual o Dasein
toma cargo no momento que é’179. Neste sentido pode ser usada e melhor compreendida a
expressão que ‘para morrer basta estar vivo’ ou em outra formulação ‘tendo nascido, o
homem já é velho suficiente para morrer’.
A analítica da morte vem se apresentando de forma ‘negativa’, ou seja, expondo-se as
formas como a morte não deve ser interpretada para que se alcance uma compreensão
178 Id. Ibid., p. 264. 179 Id. Ibid., p. 266.
78
ontológica. Isto aponta para a necessidade do seguir e aprofundar a investigação para que se
alcance um resultado ‘positivo’ de conceituação do fenômeno da morte do Dasein.
Num sentido amplo e vasto, a morte é um fenômeno que faz parte da vida – vida
compreendida como uma forma de ser-no-mundo. Desta forma o Dasein pode ser tomado
como um elemento biológico, sendo considerado como pura vida, facultando as pesquisas e
interrogações das ciências em torno da sua vida e da morte, incluindo-o ‘no mundo dos
animais e vegetais’. Efetivamente são realizadas diversas pesquisas em torno da morte: tipos
mais freqüentes, causas, idades... Todas estas pesquisas ônticas são possíveis sob uma base
ontológica, ou seja, pois já há conceitos ou pré-conceitos ontológicos da morte que estão
presentes ao Dasein quando realiza as investigações bio-fisiológicas. A morte não pode
‘apresentar-se como um dado biológico e tomar a forma de um acontecimento objetivo tendo
lugar no mundo senão a partir do se-saber mortal do Dasein’180. Em caso do Dasein não
sempre já possuir uma relação com a sua morte, nenhuma informação ou acontecimento do
mundo poderia colocá-lo em relação com ela. Portanto, ‘o que caracteriza essencialmente o
Dasein é a relação com sua própria morte, a qual não pode nunca tornar-se um
‘acontecimento do mundo’ já que constitui justamente o fim deste’181.
É notória a importância de fazer uma distinção do sentido do morrer do Dasein com os
demais viventes. Ao terminar de um ser vivo se expressa como fenecer (Verenden) – tornar-se
extinto, terminar, acabar. Fenecer porque assume o sentido de chegar ao seu fim, de atingir o
seu exitus, de alcançar seu limite físico e vital. O fim do ente que fenece não determina
intrinsecamente seu existir. Como o Dasein sempre se interpreta como existência, a vida não
pode ser representada com um simples elemento biológico, a não ser por uma forma de
abstração.
Como o Dasein também ‘tem’ a sua morte fisiológica - porém não tomada de forma
isolada, mas a partir da interpretação ontológica – mas não como um simples fenecer ou
perecer, Heidegger denomina este fenômeno como o deixar de viver (Ableben). Neste sentido
também se usa a terminologia do falecer, falecimento, quando, por exemplo, sabemos da saída
da vida do outro. O deixar de viver humano não é um fato ‘cego’, absolutamente imprevisto,
mas é uma espécie de cumprimento daquilo que de certa forma já se esperava ou temia.
O termo morrer é usado e reservado para a idéia da morte do Dasein, no sentido de
estar voltado para sua morte. Com isto se pode afirmar que o Dasein nunca fenece e só pode
deixar de viver (falecer) na medida em que morre. Comparar ou tomar a morte ao modo de
180 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 74. 181 Id. Ibid., p. 74.
79
fenecer ou falecer simplesmente seria um modo artificial, puramente externo. O Dasein ‘não
pode sair da vida, a não ser enquanto tem intrinsecamente relação com sua própria morte e
que ele seja, desse modo, suscetível de morrer’182.
Com isto Heidegger não pretende puramente reservar um lugar especial para o Dasein,
para a humanidade. Com esta diferenciação não há intenção de garantir um privilégio, maior
dignidade ou superioridade do homem em relação ao animal, ao modo que a tradição
filosófica e histórica levou a cabo. O intento é evidenciar e esclarecer o caráter existencial e
ontológico do conceito de morte do Dasein. Assim como a existência do Dasein não pode ser
caracterizada por elementos que lhe são exteriores, também o fenômeno existencial de sua
morte não é um mero fato que lhe surge de uma exterioridade e lhe abate o viver.
Obviamente não há intenção ou pretensão de negar, desqualificar o desmerecer toda
investigação em torno da morte que é realizada pelas diversas áreas da ciência. O fato de, por
exemplo, a psicologia do morrer, mostrar muito mais sobre o ‘viver’ de quem morre que sobre
o morrer mesmo, é ‘um reflexo do fato de que o Dasein não morre em primeiro lugar ou
inclusive não morre propriamente com e na vivência do deixar de viver fáctico’183. É por meio
de sua própria mortalidade que o Dasein tem acesso à ‘morte em geral’. Dastur afirma que
isto ‘é menos o sinal de uma ‘superioridade’ do homem que de sua fundamental impotência,
já que lhe é assim impossível ter acesso direto a uma outra morte além da própria’184.
É igualmente importante destacar que a análise fenomenológica da morte que é
pretendida não implica uma tomada de posição ôntica em relação à morte. A analítica
existencial e ontológica da morte do Dasein não pressupõe ou quer tornar presente ou
participante uma visão ou idéia do ‘depois da morte’. A análise da morte ‘restringe-se’ ao
‘lado de cá’, não se submetendo a suposições sobre a existência ou não de vida em outro
plano. Também não faz admoestações sobre o comportamento ou a postura que cada Dasein
deveria assumir diante do morrer. ‘A interpretação ontológica da morte desde o lado de cá
(deste mundo) precede toda especulação ôntica sobre o lado de lá (outro mundo)’185.
182 Id. Ibid., p. 74. 183 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 268. 184 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 75. 185 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 268.
80
2.2 - Morte como possibilidade / Ser-para-a-morte e cotidianidade / Morte
como certeza
As delimitações realizadas na análise da morte a partir de uma perspectiva ‘negativa’ –
como ela não deve ser interpretada – como o resto pendente, o fim e a integralidade se
mostraram insuficientes e deficitárias. Para alcançar um conceito existencial/ontológico da
morte torna-se necessário uma analítica do morrer a partir da constituição fundamental do
Dasein, a partir do cuidado como ser do Dasein.
O cuidado fora antes definido como ‘antecipar-se-a-si-mesmo-já-em (no mundo) em-
meio ao ente que comparece (dentro do mundo)’186. Por meio desta conceituação ficaram
transparentes os caracteres fundamentais do ser do Dasein: no antecipar-se, a existência; no
já-estar-em, a facticidade e; no estar em meio a..., a decaída. Para que se possa obter uma
conceituação existencial da morte, esta deverá se deixar determinar e interpretar a partir
destes elementos.
A morte para o Dasein não assume o sentido de chegar ao fim de um ente à mão que
está no mundo, pois assim também este estaria reduzido ao caráter de ser à mão. O ‘chegar-
ao-fim’ do Dasein tem o sentido de estar voltado para o fim de forma existencial. ‘O extremo
‘ainda-não’ tem o caráter de algo a respeito do qual o Dasein se comporta. O fim ameaça o
Dasein. A morte não é algo que ainda não esteja aí, não é o último resto pendente reduzido a
um mínimo, senão mais bem uma iminência (Bevorstand)’187. Iminência a partir de
Bevorstand tem o sentido de que algo está por vir, devir, diante do Dasein. Já nos idiomas
espanhol e português assume um sentido de algo que ameaça se concretizar, que está prestes a
acontecer. Ambos os sentidos da palavra expressam o sentido que o conceito quer exprimir,
como a morte possível a cada momento, sempre diante do Dasein, uma ameaça a respeito de
todas as possibilidades do Dasein, às quais poderia reduzir a nada. A morte não tem o caráter
de iminência como, por exemplo, a iminência de uma tempestade, de um evento que está em
vias de acontecer; ou de iminência no caráter de seu coestar, como exemplo uma discussão
com um amigo, uma viagem...
O caráter de iminência da morte do Dasein é a possibilidade de poder-ser ele mesmo,
poder-ser mais próprio. A morte é uma possibilidade que o Dasein assume já sempre como
ente que é, tornando-se iminente para si mesmo. Por meio desta possibilidade efetivamente
186 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 270. Ver também análise existencial do Dasein como cuidado no ponto 1.5 deste trabalho. 187 Id. Ibid., p. 270.
81
está em jogo o seu ser-no-mundo e se desata toda relação com os demais. Sendo a
possibilidade mais própria e não-respectiva, é também a mais extrema; possibilidade esta que
o Dasein é incapaz de superar. ‘A morte é a possibilidade da radical impossibilidade de
existir. A morte se revela assim como a possibilidade mais própria, não-respectiva e
insuperável’188. Esta possibilidade se fundamenta no ‘antecipar-se’, momento estrutural do
cuidado que neste estar voltado para a morte recebe sua mais clara e originária concretização.
Dastur afirma que
a morte não é nada que possa ser efetivamente experimentado, essa iminência não pode ser senão a do poder-ser o mais próprio do Dasein, ele mesmo na condição de ser mortal, o que implica que essa possibilidade que é a morte o remeta a totalidade de seu próprio ser, enquanto este não mantém mais nenhuma relação com os outros. Essa possibilidade que é a morte não é, contudo, uma possibilidade entre as outras, mas se revela a mais própria tanto quanto a possibilidade não ultrapassável e não relativa do Dasein189.
A idéia de possibilidade é um dos elementos centrais da filosofia de Heidegger e neste
elemento da analítica assume novamente um papel preponderante. Na filosofia,
principalmente no período moderno o ‘possível’ sempre fora tomado como inferior ou ‘menos
válido’ que o real e o efetivo. O possível é uma categoria que se opõe à realidade e
necessidade, designando o que não é real e necessário, ou o que ainda não é real ou nem
sempre é necessário. Para Heidegger a possibilidade, o poder-ser assume um caráter
existencial, sendo uma determinação ontológica positiva, originária do Dasein, que sempre se
constitui como poder-ser. A existência do Dasein como possibilidade não é inferior à
realidade. O Dasein é um poder-ser, é primariamente um ser-possível; na existência, na qual
se encontra lançado e que deve ser assumida, o Dasein é seu próprio ser-possível.
Sartre discorda frontalmente com a idéia de que a morte se constitua como uma
possibilidade para o Dasein. O pensador francês afirma que ‘a morte não é minha
possibilidade de não mais tornar concreta a presença no mundo, mas uma anulação sempre
possível de meus possíveis, a qual está fora de minhas possibilidades’190. Sartre não atribui
nenhum sentido para a morte, afirmando que esta jamais dá algum sentido para a vida, mas ao
contrário, rouba-lhe todo significado. Para Sartre a morte é um fato contingente, afirmando
que ‘a morte é um simples fato, como o nascimento; vem do exterior e nos transforma do
exterior. No fundo, ela não se distingue de forma alguma do nascimento e é à identidade do
nascimento e da morte que chamamos irrealidade’191.
188 Id. Ibid., p. 271. 189 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 80. 190 SARTRE. Apud: DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 88. 191 Id. Ibid., p. 89.
82
Buscando analisar a morte a partir do existencial do cuidado é necessário ‘remeter’
também para o elemento estrutural do já sempre estar-lançado na existência. Para Heidegger,
o Dasein já sempre está entregue à morte, já sempre está jogado nesta possibilidade. O estar
‘lançado na morte’ mostra-se pelo existencial da angústia. ‘A angústia ante a morte é angústia
‘ante’ o mais próprio, não-respectivo e insuperável poder-ser. O ‘ante que’ desta angústia é o
ser-no-mundo mesmo. O ‘porque’ da angústia é o poder-ser radical do Dasein’192. Como uma
disposição fundamental do Dasein, esta angústia não pode ser confundida como um medo
diante da morte, forma como diversos pensadores ao longo da história abordaram esta
questão. Assim torna-se mais explícita a conceituação existencial da morte, que pela abertura
do Dasein é um ente voltado para sua morte, voltado para seu mais próprio, não-respectivo e
insuperável poder-ser.
Esta é uma condição na qual o Dasein já sempre se encontra e não um fenômeno que
ocorre ou não ocorre ocasionalmente na vida do Dasein. Não é uma possibilidade que se
constitui no decorrer da existência e/ou por adoção temporária de ou por meio de uma atitude
ou opção particular. Se fosse o caso de ocorrer ou assumir ou não esta possibilidade,
possivelmente encontraríamos entes humanos que fossem despossuídos desta possibilidade da
mortalidade; o que se sabe que é impossível. O fato de perceber, de ‘saber’ ou ‘não saber’
que sempre é um ente jogado e voltado para o seu fim, não retira do Dasein este caráter,
apenas revela as formas distintas pelas quais este fenômeno pode ser encarado pelo Dasein.
Efetivamente no dia-a-dia a grande maioria das pessoas não quer tomar conhecimento destes
elementos e estão como ‘de costas’ para a morte. Na cotidianidade, pela decaída o Dasein
foge do caráter de estar voltado para a morte, para o fim, ‘preferindo’ absorver-se nas
ocupações. Pela fuga na situação de decaída, o Dasein não se confronta com o estranhamento
que é a existência do Dasein no mundo; fuga do mais próprio estar voltado para a morte.
Heidegger torna claro que a existência, a facticidade e a decaída caracterizam o estar
voltado para o fim do Dasein, fazendo parte da constituição do conceito existencial de morte.
‘O morrer se funda, enquanto sua possibilidade ontológica, no cuidado’193.
Trata-se então de analisar como o Dasein na cotidianidade assume a possibilidade da
morte, do seu estar voltado para a morte. Como já sempre voltado para a morte o Dasein
comporta-se em relação a si mesmo como um iminente poder-ser. E como já apontado em
elementos anteriores deste trabalho, ao modo da cotidianidade o Dasein assume sua
existência, o seu ser-no-mundo como o ‘impessoal’, na condição de ‘Man’, ‘a gente’...
192 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 272. 193 Id. Ibid., p. 272.
83
Regularmente e geralmente estando na condição de decaída, do impessoal, como assume o
Dasein o seu ser voltado para a morte na cotidianidade?
Pela convivência na publicidade, na cotidianidade o Dasein entra em contato e
conhece a morte como ‘casos de morte’. O Dasein assimila e interioriza a informação de que
há casos de morte: os jornais estão repletos – e anseiam por este tipo de notícia/informação –
de casos constantes e variados de morte; ouvem-se relatos de mortes de conhecidos, pessoas
próximas à convivência... embora em muitas pessoas gere pânico ou medo, a morte acaba por
se tornar algo habitual, como um dado a mais com o qual há que se conviver. Mesmo que no
dia-a-dia os casos de morte estejam habitualmente presentes nas conversações e nos
‘falatórios’ dos círculos de convivência, gira em torno do tema certo receio ou tabu. A postura
caracteriza-se de modo geral como ‘sabe-se que todos um dia vão morrer, mas não se sabe
quando’; portanto não vamos tocar neste assunto e conversaremos sobre algo mais alegre;
enquanto a gente está viva, vamos aproveitar’.
Ao assumir a morte como algo que um dia irá acontecer, mas que no momento o deixa
incólume, está implícita e formalizada a convicção de que a morte é algo exterior ao Dasein e
que um dia, em alguma ocasião o vai atingir. Como já mencionado ao expor a idéia de
decaída, o estado do impessoal, do ‘a gente’ não é o próprio Dasein, mas é qualquer um ou
mesmo ‘ninguém’ que se ‘enfrenta’ com sua existência. Assim também ocorre em relação à
morte, pois é no modo impessoal que ela é fitada, como ‘a gente’, fenômeno existencial que
propriamente não pertence a ninguém. A morte que é em cada caso do Dasein próprio é
assumida como ‘a gente’ a assume, como um acontecimento público, que ocorre diariamente
e um dia abaterá a cada um. Afirma Heidegger que por meio desta forma o Dasein impessoal
assume a morte como ‘algo real’, ‘ocultando seu caráter de possibilidade e, com isto, os
correspondentes momentos da não-respectividade e insuperabilidade’194.
Tanto se tenta esquivar da morte como uma possibilidade própria, que é muito comum
na cotidianidade perceber uma tentativa de também ‘persuadir’ o moribundo. Ao que está
prestes a morrer, o Dasein na publicidade tenta convencer de que se livrará da morte e que
dentro em breve estará voltando para sua habitual situação de convivência, para suas
ocupações diárias e cotidianas. Ocorre um esforço para ‘consolar’ o moribundo,
tranqüilizando-o diante de sua morte, o que ao mesmo tempo é um encobrimento de sua
possibilidade mais própria e não-respectiva de ser. Um exemplo da literatura mundial
194 Id. Ibid., p. 273.
84
expressa bastante bem esta situação e pode auxiliar na compreensão do que Heidegger
apresenta sobre este aspecto: o livro ‘A morte de Ivan Illtich’ de Leon Tolstoi195.
O autor narra a vida de Ivan Illitch, principalmente os momentos posteriores à
descoberta de uma doença incurável. Ivan sofre terrivelmente, uma dor física e moral;
sofrimento que não é compreendido por aqueles que lhe são próximos. É uma constante
tentativa de ‘negar’ o que está visível para todos, mas que a todos também deixa perplexos.
Os que convivem com Illitch estão mais preocupados em descobrir e discutir quem ocupará
seu posto no judiciário, do que uma verdadeira preocupação com o moribundo. Enfim, a
morte é ‘enfrentada’ em forma de fuga, como um evento exterior desagradável e
desestabilizador da tranqüilidade, das convivências e das conveniências sociais.
O fenômeno da angústia revela ao Dasein a sensação e situação de estranhamento
como ser-no-mundo. A maneira como o Dasein na decaída, na cotidianidade se comporta em
relação à morte, mostra um ‘afastamento’ desta situação, pois busca constantemente a
tranqüilizacão. Heidegger afirma que ‘o impessoal (‘a gente’) não tolera a coragem para a
angústia diante da morte [...] Na angústia ante a morte o Dasein é levado ante si mesmo como
estando entregue à possibilidade insuperável. O ‘impessoal’ procura converter esta angústia
em medo ante a chegada de um acontecimento’196. O pensar na morte, tocar neste assunto nas
conversações é interpretado como uma fraqueza; quem toca neste assunto já é rotulado como
alguém depressivo, ‘angustiado’, que encara a vida com negativismo... O impessoal também,
desta forma, determina uma forma ‘apropriada’ de portar-se diante deste melindroso assunto,
conduzindo a um afastamento ou estar alheio.
A fuga diante da morte que é vivenciada pelo Dasein na decaída tem o caráter de se
esquivar do fim, como possibilidade mais própria. É uma forma de encobrimento do poder-ser
que lhe é próprio. O Dasein na decaída imprime ao morrer que lhe é próprio como um factum,
um caráter de evento que ocorre no dia-a-dia, aos outros, mas que, porém ainda não o atingiu
e o mantém vivo. Importante ressaltar que o encobrimento do estar voltado para a morte, para
o fim, pelo qual a decaída ‘conduz’ o Dasein, não lhe retira o existencial que o constitui como
tal; ou seja, o feito de olhar para a morte de forma ‘inautêntica’ não lhe anula o caráter de ser-
para-a-morte, do existencial estar voltado para o fim. ‘Também na cotidianidade média, o
Dasein se movimenta constantemente neste poder-ser mais próprio, não-respectivo e
195 TOLSTOI, L. A morte de Ivan Illitch. Rio de Janeiro: L&PM, 1997. 196 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 274.
85
insuperável, ainda que somente na modalidade que consiste em procurar uma impassível
indiferença frente a mais extrema possibilidade de sua existência’197.
Dastur afirma que é uma forma de ‘impotência’ o fato de o Dasein somente ter acesso
à ‘morte em geral’ através de sua própria mortalidade. Impotência esta que sempre tenta
encobrir ou da qual tenta escapar, interpretando a morte como um acontecimento, um
‘acidente’ que lhe vem do exterior, um acontecer a partir do mundo. O Dasein busca uma
segurança contra a morte e pelo fato de estar vivo e a morte não se aproximar lhe sobreviria
uma sensação de que é imortal.
É desta imortalidade provisória que vivemos a princípio e o mais das vezes, o que implica que a vida humana não pode se estender largamente a não ser na medida em que ela se esquiva da morte e em que é capaz de transformar em acontecimento futuro aquilo que é o próprio fundamento da existência [...] Não há vida humana durável a não ser na medida em que esta mantém o respeito pela morte, o que exige sua ‘banalização’, e eis aí, sem dúvida, o que distingue fundamentalmente, no final das contas, o homem do animal, pois este não tem necessidade de domar a morte nem de ajustar-se a ela, precisamente porque vive uma vida absolutamente vivente...198.
A morte é interpretada como a possibilidade mais própria, não-respectiva e
insuperável. A morte como estar voltado para o fim, que se confronta à total impossibilidade
de existência. Na cotidianidade o Dasein a interpreta como um acontecimento exterior, como
um afastamento encobridor do verdadeiro sentido da morte. A morte é assumida pelo modo
impessoal do Dasein na cotidianidade como um ‘evento’ que em algum momento atinge a
todos indefinidamente; pelo fato de assumir o dito ‘de que em algum momento, mas ainda
não, cada um vai morrer’, a morte é assumida como uma certeza. No que e como se
fundamenta esta certeza da morte? A cotidianidade não toma a morte como certa numa forma
própria.
Para Heidegger o ‘estar certo’ significa ter por verdadeiro enquanto que é verdadeiro;
verdade significa o estar-descoberto do ente, que se fundamenta na abertura do Dasein, como
a verdade mais originária. O Dasein por seu caráter de abertura já sempre se encontra na
verdade, por isto ‘a certeza se fundamenta na verdade ou pertence cooriginariamente a ela’199.
A verdade e a certeza assumem dois sentidos: em seu sentido mais originário verdade refere-
se à atitude descobridora do Dasein e na significação derivada refere-se ao estar descoberto
do ente. Assim também a certeza no sentido originário refere-se ao estar-certo como modo de
ser do Dasein e no sentido derivado o ‘certo’ é o ente sobre o qual o Dasein pode estar certo.
197 Id. Ibid., p. 274 – 275. 198 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 76. Dastur cita a oitava elegia de Duíno. Torna-se realmente interessante a apreciação desta elegia, principalmente relacionada a este aspecto da discussão em relação à morte. RILKE, R. M. Elegias de Duíno. São Paulo: Globo, 2001. 199 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 276.
86
Para o filósofo da Floresta Negra um dos modos derivados da certeza é a convicção,
pela qual o Dasein no estar voltado compreensivamente para a coisa, se deixa determinar pelo
testemunho da coisa descoberta. ‘O ter-por-verdadeiro, enquanto manter-se na verdade, só é
suficiente se se funda no ente descoberto mesmo e se, em seu estar voltado para o ente
descoberto, se tornou transparente a respeito de sua adequação a este’200. A suficiência do ter
por verdadeiro se mede pela pretensão de verdade à qual pertence; pretensão que se legitima
do modo de ser do ente a se abrir e da direção da abertura. Com a diversidade dos entes e as
formas diversas de abertura e de alcance desta, há diversos tipos de verdades e certezas. Neste
ponto o que interessa é a certeza da morte, o estar-certo a respeito da morte, que é também
uma certeza iminente do ser do Dasein.
O fato de o Dasein na cotidianidade de modo geral estar no encobrimento e na ‘não-
verdade’ representa antes uma ‘forma inadequada de ter-por-verdadeiro e não uma incerteza
no sentido da dúvida. A certeza inadequada mantém no encobrimento aquilo do que está
certo’201. A morte compreendida como um evento que aparece ao Dasein do exterior não
alcança verdadeiramente o estar voltado para o fim. Na cotidianidade, ao afirmar que a morte
é certa, o modo impessoal faz uso de uma certeza empírica para posicionar-se nesta certeza da
morte, certeza esta que está aquém do grau de certeza apodíctica202.
A certeza original da morte não se obtém da observação dos casos e acontecimentos de
morte no mundo. Este é um saber que se mantém ‘desconectado’ de seu próprio ser como
possibilidade e ser voltado para a morte, pois interpreta a morte como um acontecimento que
sobrevém ao Dasein ‘certa ou provavelmente, mas ainda não’. Esconde-se a iminência da
morte, com uma tendência de adiamento contínuo, confundindo a morte como acontecimento
que geralmente ocorre para os outros. Ao tomar a morte como um acontecimento, está
presente também a tendência a determinar o momento do falecimento, desta forma calculando
o que é originalmente indeterminável – a morte.
A observação do deixar de viver que ocorre no mundo pode ser uma forma de atenção
que o Dasein dá à morte, mas não pode constituir a certeza pretendida pela cotidianidade. O
deixar de viver observado empiricamente não fundamenta o estar-certo da morte do Dasein,
não é decisivo para a certeza da morte. A certeza original da morte não surge a partir de um
silogismo do tipo: todo homem é mortal; Sócrates é homem; logo Sócrates é mortal. Não é
este o modo da verdade que revela a certeza da morte do Dasein, embora seja por este meio,
200 Id. Ibid., p. 276. 201 Id. Ibid., p. 276. 202 Apodíctico: exprime uma necessidade lógica, apresentando uma natureza evidente e indubitável.
87
esquivador, pelo qual o Dasein na publicidade se esconde no anonimato ‘da gente’. Heidegger
afirma que ao falar da certeza empírica da morte, ao Dasein já está presente uma certeza mais
original da morte, mas que, no entanto permanece encoberta pela cotidianidade. ‘A
cotidianidade admite uma certeza superior à meramente empírica. Se sabe da morte certa, e,
contudo não se ‘está’ propriamente certo dela’203. A cotidianidade se esquiva deste verdadeiro
estar certo; esquivar que demonstra e atesta fenomenalmente que a morte deve ser
compreendida como a possibilidade mais própria, não-respectiva, insuperável e certa.
Estando e procurando sempre estar ocupado, o Dasein na cotidianidade estende a
morte ou mesmo a interpretação original da morte para um momento seguinte, uma
postergação da morte. O estar-certo da morte como fenômeno existencial é ‘jogado’ a uma
interpretação comum, do modo ‘geral’ de interpretar a morte, encobrindo ‘o que é peculiar da
certeza da morte: que é possível a qualquer momento’204. Há um impulso de querer
determinar o indeterminável; encobrindo esta indeterminação e também a certeza da morte.
Heidegger determina ontológico-fenomenalmente a morte nos seguintes termos: ‘a morte,
como fim do Dasein, é a possibilidade mais própria, não-respectiva, certa e como tal
indeterminada, e insuperável do Dasein. A morte, como fim do Dasein, é no estar voltado
deste para o seu fim’205.
A elaboração do conceito ontológico-fenomenal de morte é em vista de tomar o
Dasein como um poder-ser inteiro. O fato de o Dasein estar sempre voltado para o fim,
mesmo que no modo da impessoalidade, aponta que este fim que determina o ser-inteiro não é
alcançado apenas quando o Dasein deixa de viver. Enquanto o Dasein é, já tem incorporado
em sua constituição o ‘ainda-não de si mesmo’. O ‘ainda-não’ que sempre faz parte da
constituição estrutural do Dasein e que não é compreendido ao modo de algo pendente como
de um ente à mão, não é interpretado originalmente como uma falta para a integralidade do
Dasein. O antecipar-se a si mesmo e o ainda-não do Dasein não representam uma
incapacidade, tampouco são instâncias limitadoras da possibilidade do existir como ser-
inteiro, pelo contrário ‘é justamente o antecipar-se-a-si o que faz por primeira vez possível
semelhante estar voltado para o fim. [...] O problema da possibilidade do ser-inteiro do ente
que somos ... mantém sua legitimidade se o cuidado, ‘está em conexão’ com a morte enquanto
extrema possibilidade deste ente ’206.
203 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 277. 204 Id. Ibid., p. 278. 205 Id. Ibid., p. 278. 206 Id. Ibid., p. 279.
88
O ser-para-a-morte, o estar voltado para o fim do Dasein fundamenta-se no existencial
do cuidado e enquanto o Dasein já é sempre lançado na existência está entregue à sua morte.
Enquanto não deixa de viver, o Dasein morre constantemente facticamente, ou seja, já sempre
‘decidiu’ como vai se posicionar ou sua maneira diante de seu próprio estar voltado para o
fim, para a morte. Como já foi apontado, cotidianamente o ser-para-a-morte é assumido
impropriamente, ou seja, encara a morte como um acontecimento; impropriedade que
geralmente leva o Dasein a se extraviar. Mas, esta impropriedade tem por fundamento a
propriedade, porque o Dasein ‘existe, se determina cada vez – por ser como é – desde uma
possibilidade que ele mesmo é e compreende’207. Ou como afirma o pensador em GA 20:
‘aquilo de que foge o Dasein em sua fuga cotidiana abandonando-se, ainda quando não pense
na morte, não é senão o próprio Dasein, porquanto a morte é para ele constituinte’208.
2.3 – Antecipação e liberdade
O trabalho tem mostrado como o Dasein se mantém facticamente no seu ser-para-a-
morte, no modo impróprio. Seria ou será possível alcançar fenomenicamente um modo
próprio de o Dasein estar voltado para a morte, sem que seja uma construção arbitrária,
idealista ou fictícia? Foram já apresentadas as interpretações originárias do estar voltado para
a morte do Dasein (num modo positivo) e também como o Dasein posiciona-se
cotidianamente diante da morte (apresentação ‘negativa’). Será possível uma interpretação
ontológica e um assumir próprio da morte do Dasein?
Por sua constituição o Dasein é sempre abertura, compreensão afetivamente disposta
na existência, no mundo. Heidegger insiste de que o estar voltado originária e propriamente
para a morte não pode ser ao modo de encobrimento ou de fuga, interpretando-a como um
fenômeno impessoal ou como um acontecimento em meio aos demais que ocorrem dia-a-dia
no mundo dos fatos. A insistência do autor é em caracterizar e compreender a morte como
uma possibilidade; estar voltado para a morte como um estar voltado para uma possibilidade,
uma eminente possibilidade do Dasein mesmo.
No curso de 1925 – Prolegomena – faz uma relação – analogia - do ser-para-a-morte
do Dasein com o cogito sum de Descartes. Afirma o autor que a morte é sempre uma certeza
207 Id. Ibid., p. 279. 208 HEIDEGGER, M. Prolegómenos para una historia del concepto de tiempo. Madri: Alianza Editorial, 2007. p. 394.
89
inabalável – certeza básica -, que é sempre e em cada caso o Dasein que deve morrer e
assumir sua morte; a certeza do morrer do Dasein é um enunciado autêntico, enquanto o
cogito sum de Descartes seria uma espécie de ‘enunciado aparente’. O enunciado para o
Dasein seria então o sum moribundus; ‘e não moribundus por estar gravemente enfermo ou
ferido, senão que, pelo fato de ser, sou já moribundus – o moribundus é o que antes que nada
dá seu sentido ao sum’209. Sum muribundus como ‘eu sou devendo morrer’, onde o dever-
morrer precede o sum e lhe atribui sentido absoluta e inicialmente. A morte é uma certeza
mais certa e antiga que o ‘eu’; somente pela morte, morrendo (im Sterben) que o Dasein pode
afirmar de modo absoluto ‘eu sou’. O Dasein não é um ente subsistente ao modo do sum
cartesiano ou da substância, e somente deixando de ser, no momento fatídico do seu deixar de
existir poderia o Dasein proferir ‘eu sou’. A morte individualiza o Dasein e até morrer de fato
preserva os seus possíveis, pois a morte é possibilidade.
A possibilidade não pode ser compreendida no sentido de um trabalho que se busca
realizar, com algo que se quer alcançar. Tradicionalmente na filosofia a possibilidade sempre
foi tomada e compreendida como uma categoria em oposição ao real; como uma instância
‘secundária’, que ainda não se efetivou, que precisa de mais alguns ‘passos’ para tornar-se
real e efetiva e então assumir seu verdadeiro valor e significado. A possibilidade então pode
ser compreendida, como um ente à mão, numa constante ocupação para torná-la realizada.
Desta forma a possibilidade se veria como acabada, concluída, ou seja, terminar com a
possibilidade do possível, colocando-a a disposição. Heidegger não apresenta e compreende o
Dasein como um ente de possibilidades neste sentido, tampouco a morte como possibilidade é
compreendida no sentido de realizá-la. O autor centra-se na questão de ver não num sentido
puramente teorético, mas o ‘para-que é possível’210.
O estar voltado para a morte numa compreensão própria e ontológica, portanto, não
pode ser no sentido de tentar com afã realizá-la ou ocupar-se em concretizá-la. Isto
representaria um decesso, um esforço para deixar de viver, pelo qual o Dasein já não mais
seria, deixaria de existir. Também o próprio estar voltado para a morte não é no sentido de um
constante pensamento ou meditação sobre a morte, não é um constante estar junto à morte.
Desta forma o Dasein estaria numa espécie de cálculo diante da morte, prevendo ou afastando
o momento de sua concretização. Embora sabendo teoricamente que a morte pode ser possível
a cada instante, o Dasein não se sente objetivamente ‘ameaçado’ pela morte em todos os
momentos. Afirma Haar que ‘a proximidade da morte possível só pode resultar de um esforço
209 Id. Ibid., p. 395. 210 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 280.
90
para imaginar o que é abstratamente possível, mas inverossímil na maior parte do tempo’211.
O suicídio, por exemplo, não é uma realização do ser-para-a-morte do Dasein, mas uma
provocação do falecimento; afastando a possibilidade da morte, que somente pode ser
assumida como possibilidade enquanto o Dasein existir.
A possibilidade pode também ser tomada ao modo do ‘esperar’. A espera tem presente
o que espera, um objeto ou elemento definido, permanecendo na expectativa do como,
quando, talvez sim, talvez não... A espera como possibilidade caracteriza-se em voltar a
atenção na concretização ou realização do possível e afasta-se da idéia da possibilidade; torna-
se uma espera pela realização, partindo e tomando como horizonte o real, no sentido de
efetivar ou realizar o possível da espera; o que se seria uma espécie de relativização da
possibilidade enquanto tal. Assevera Heidegger sobre a morte como possibilidade que
‘enquanto possível, ela deve mostrar o menos possível de sua possibilidade [...] esta deve ser
compreendida em toda sua força como possibilidade, interpretada como possibilidade e, no
comportamento frente a ela, suportada (sobrelevada) como possibilidade’212.
O ser como possibilidade do Dasein, no seu ser-para-a-morte deve estar voltado para
estas possibilidades de modo que a morte se revele como possibilidade no e para o seu ser.
Heidegger denomina este estar voltado para a possibilidade como ‘antecipar-se para a
possibilidade (Vorlaufen in die Möglichkeit)’213. O antecipar-se, não na tentativa de
realização, mas uma aproximação da possibilidade; ‘a máxima proximidade do estar voltado
para a morte enquanto possibilidade é a máxima distância a respeito do real [...] possibilidade
da impossibilidade da existência em geral’214. Pela aproximação trata-se de ‘penetrar na e de
se penetrar da pura possibilidade, por meio de um esforço para compreender o que comporta
esta possibilidade, em particular quanto à certeza da morte’215. É uma compreensão melhor da
morte como possibilidade que não conhece medidas, porque é extrema, situada para além de
qualquer outra e que não oferece nenhum ‘apoio’ para assentar qualquer projeto.
A morte, como possibilidade, não apresenta ao Dasein nada a ser realizado, nada que
se torne real, possibilidade da ausência de todo possível, possibilidade de não-mais-poder-ser;
211 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 32. 212 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 281. 213 Id. Ibid., p. 281. Vorläufer: precursor. Ver a possibilidade a frente, como possibilidade mesma; correr a frente para defrontar com a possibilidade enquanto possibilidade. Inwood traduz Vorlaufen como adiantar-se, acrescentando que ‘ Vorlaufen liberta não apenas para a morte, mas também para as possibilidades antes da morte, minhas próprias possibilidades, não as trivialidades cotidianas ou a seleção que o impessoal me oferece. Ele nos torna uma pessoa completa e auto-suficiente’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 214 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 282. 215 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 37.
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constituindo-se como a possibilidade da impossibilidade de existir. É pela antecipação que
esta possibilidade se mostra e manifesta em todo seu significado, como a possibilidade da
incomensurável possibilidade de existência do Dasein. O ‘ir à frente’ da morte como
aproximação da inultrapassável possibilidade, pois além desta não haverá outras. A
possibilidade de deixar de existir não é compreendida como uma parte que falta ao Dasein
para que ele se complete, não é um ‘êxtase do itinerário da vida’ ou um tornar pleno dos seus
existenciais.
Concebendo a morte como antecipação pode-se perceber com maior claridade a
‘implicação’ de um existencial com o outro e/ou com os demais. Quando analisado o cuidado
em seus três êxtases – existência, facticidade e decaída – foi visto também seu caráter de
antecipar-se-a si mesmo; o cuidado possibilita o ser-para-a-morte. O ser-para-a-morte contém
a integralidade do Dasein, integralidade a fazer-se, antecipando-se a si mesmo. A morte como
antecipação perde o seu caráter ou sua ‘face malévola’ que a tradição lhe atribuía, diante da
qual se escapava ou se temia (degradação física, perda de entes queridos, dor, destruição da
vida...).
A morte assume um caráter ‘positivo’, como princípio e fonte do tempo próprio, da
temporalidade conforme Heidegger a compreendeu. A antecipação que revela ao Dasein a
possibilidade da impossibilidade, ao mesmo tempo também lhe desvela o poder-ser, ou seja, a
possibilidade do Dasein poder-ser ele mesmo até os seus limites, poder-ser ‘a tempo inteiro’.
É importante apresentar que a Vorlaufen não é uma Vorstellen216, no sentido de que a morte
não é uma representação ou imaginação de seus momentos derradeiros, mas um movimento
existencial do Dasein em direção de sua possibilidade mais própria. O ser-para-a-morte é uma
intensificação das possibilidades que se mantém distante da concretização.
O antecipar-se como ser-para-a-morte do Dasein para um poder-ser é constitutivo do
Dasein que sempre é ao modo de antecipar-se-a-si-mesmo. O Dasein se projeta para o ser
mais próprio, compreendendo a si como existência e como possibilidade. Esta antecipação
revela também o seu caráter de compreender o poder-ser mais próprio do Dasein, como a
possibilidade da existência própria do Dasein. Heidegger afirma que ‘a constituição
ontológica desta possibilidade deve tornar-se visível por meio da elaboração da natureza
concreta do antecipar-se para a morte’217. Esta estrutura se torna manifesta quando
216 Vorstellen: trazer, mover adiante; pôr algo em frente a algo. Representar, querer dizer, significar. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 217 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 282.
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determinados os caracteres da abertura antecipadora que conduz a uma compreensão da morte
como a possibilidade mais própria, não-respectiva, insuperável, certa e indeterminada.
A morte é a possibilidade mais própria do Dasein. O estar voltado para a morte abre
ao Dasein o seu poder-ser mais próprio; o poder-ser mais próprio no e pelo qual sua
existência está sempre ‘colocada em jogo’, sua existência se torna a questão central. Abrindo
o Dasein em sua possibilidade de poder-ser próprio, o Dasein ‘contorna’ o ser ao modo
impessoal ou impróprio, não se deixando levar pela impropriedade. Compreendendo original
e radicalmente esta possibilidade, este poder-ser, que o Dasein consegue se perceber na
impropriedade. A compreensão do poder-ser como próprio revela ao Dasein que geralmente
ele se encontra na cotidianidade, ao modo impessoal.
A possibilidade mais própria é não-respectiva. A antecipação leva o Dasein a
compreender que deve assumir sua existência a partir e desde si mesmo; o poder-ser do
Dasein é assumido exclusivamente pelo Dasein próprio. A morte não pertence a outro e
também não é para o Dasein como algo indiferente, mas ‘reivindica a este em sua
singularidade’218. A morte singulariza o Dasein em si mesmo; singularidade pela qual ocorre
a abertura do ‘Da’ para a existência. A singularizacão no sentido de retirar o Dasein da
dependência do modo impessoal, fazendo com que se volte sobre si mesmo. O Dasein
experimenta e assume o seu ser como ‘propriedade exclusivamente sua’, cada vez o seu
próprio ser que está em questão, e se assume desde si mesmo e não desde os demais ou desde
o modo impessoal, da cotidianidade. O Dasein somente pode ser ele mesmo quando se
possibilita para tal, por si mesmo. Assumindo a morte como não-respectiva, a ocupação em
meio aos entes e a solicitude com os demais se mostram como um fracasso, o que não
significa uma desvinculação destes modos estruturais de ser do Dasein. Revelam que
enquanto ocupado e solícito, o Dasein é ele mesmo de maneira própria quando se ‘projeta
primariamente para seu mais próprio poder-ser e não para as possibilidades do próprio-
impessoal’219. A singularização não isola o Dasein num puro sentido de solus ipse, num
solipsismo sem mundo e sem os demais. A singularidade no sentido de que a abertura ao
mundo e aos outros é assumida e experimentada como algo que acontece desde o mais próprio
de si mesmo.
A possibilidade mais própria, não-respectiva é insuperável. O ser-para-a-morte, o estar
voltado para o fim como possibilidade torna compreensível ao Dasein que como extrema
possibilidade encontra-se a possibilidade de renunciar a si mesmo. O antecipar-se não retira
218 Id. Ibid., p. 283. 219 Id. Ibid., p. 283.
93
ao Dasein a insuperabilidade da possibilidade da morte, mas permite um ‘distanciamento’,
uma não-vivência da impropriedade da morte como possibilidade insuperável. O antecipar
põe o Dasein em liberdade para a morte; o estar livre para a própria morte libera do estar
perdido entre as possibilidades fortuitas do cotidiano e ‘faz compreender e eleger por primeira
vez em forma própria as possibilidades fáticas que estão antepostas à possibilidade
insuperável’220. A antecipação abre ao Dasein a possibilidade extrema, não permitindo um
enrijecimento na existência já alcançada, evitando recuar para trás de si mesmo e de seu
poder-ser. Por meio da antecipação, abrindo suas possibilidades, abre também ao Dasein a
possibilidade de existir como um poder-ser inteiro.
A morte como possibilidade mais própria, não-respectiva, insuperável é certa. Já foi
visto que o estar certo da morte como possibilidade está ancorada ou em função da verdade
como abertura. ‘O Dasein abre como possibilidade a possibilidade certa da morte apenas no
sentido que, antecipando-se para ela, a torna possível para si como poder-ser mais próprio. A
abertura da possibilidade se fundamenta na ‘possibilitação’ que se antecipa’221. O manter-se
na verdade, o estar-certo da abertura requer a antecipação. A certeza da morte como
possibilidade não se fundamenta como uma certeza apodíctica ou como um dado estatístico de
mortes registradas e prováveis. Para que o Dasein seja tomado e interpretado como um dado
de certeza apodíctica, é necessário tomá-lo como um ente despossuído de seu caráter de
Dasein e como um ente a mais em meio aos demais. O estar-certo da morte fundamentado na
verdade como abertura do Dasein não é um grau inferior às certezas apodícticas que se pode
obter sobre os enunciados e elementos em meio ao mundo, ou seja, não pertence ou se
submete a um esquema hierárquico de certezas que se obtém sobre o ente que está-aí.
A possibilidade mais própria, não-respectiva, insuperável, certa é indeterminada em
sua certeza. Na abertura que a antecipação proporciona ao Dasein se lhe torna claro também o
caráter de ameaça que brota de seu ‘Da’, de seu ‘aí’ como ser-no-mundo. Pela disposição
afetiva o Dasein encontra-se já sempre lançado na existência, jogado como ter-que existir e
assumir por si a sua existência. Foi mostrado neste trabalho que a disposição afetiva que abre
o Dasein em sua radical ameaça de existir e de seu ser mais próprio é a angústia.
Encontrando-se na angústia ‘o Dasein se encontra ante o nada da possível impossibilidade de
sua existência. A angústia se angustia pelo poder-ser do ente assim determinado, abrindo
desta maneira a possibilidade extrema’222. No antecipar-se pelo qual o Dasein se singulariza,
220 Id. Ibid., p. 283. 221 Id. Ibid., p. 284. 222 Id. Ibid., p. 285.
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compreende também o estar certo da integralidade de seu poder-ser; a este compreender
pertence a disposição da angústia. O ser-para-a-morte, o estar voltado para o fim é
essencialmente angústia, não somente angústia e não interpretando a angústia como uma
emoção (medo, temor...).
Heidegger assim resume o projeto existencial do modo próprio do ser-para-a-morte do
Dasein:
o antecipar-se revela ao Dasein seu estar perdido no impessoal (a gente) e o conduz ante a possibilidade de ser si mesmo sem o apoio primário da solicitude ocupada, e de o ser em uma liberdade apaixonada, livre das ilusões do impessoal, liberdade fática, certa de si mesmo e acossada pela angústia: a liberdade para a morte.
223 A antecipação da morte do Dasein torna-se a possibilitação do poder morrer. A
antecipação pela primeira vez abre e possibilita a possibilidade como tal e torna o Dasein livre
para ela. Antes desta antecipação do Dasein a morte não é um verdadeiro possível, mas com
este movimento de antecipar-se o Dasein se torna livre para a morte e para si mesmo. É pela
antecipação da morte que o Dasein descobre a verdade do ser-para-a-morte, a verdade de seu
ser. Torna-se livre para as possibilidades e não se mantém fixado na existência já assumida;
entrega-se apaixonadamente às suas tarefas, assumindo o risco de morrer, não se prendendo
arraigadamente ao um ‘eu’ que subsistiria ao moribundus que determina sua condição de
Dasein. Também não ignora as possibilidades dos outros, mas percebe-as livremente e não
pretende erroneamente submetê-las às suas possibilidades ou sua condição.
A antecipação é um regresso a si do Dasein, pelo qual o Dasein pode dar-se o seu
próprio ser possível, no sentido que Heidegger afirma que o Dasein somente pode ‘ser
autenticamente ele mesmo se se dispuser a partir de si mesmo’224. As marcas da morte como
própria, não-respectiva, insuperável, certa e indeterminada, funcionam como uma conquista
do movimento da antecipação que o Dasein realiza. A morte se torna e desvela como
possibilidade por meio de movimentos de antecipação. A possibilidade própria é arrancada do
impessoal, do impróprio, que pela antecipação livra-se do modo ‘da gente’ do ‘nós’. Pela
característica da não-respectividade da morte o Dasein força a se colocar na singularidade
própria, assumir seu próprio ser a partir de si mesmo. Na marca insuperável da morte, o
Dasein se torna livre para a possibilidade extrema, posterior à qual não haverá outra
possibilidade e não haverá mais existência para o Dasein; projeta-se na integralidade de seu
existir, como ser inteiro. A possibilidade como certeza somente ocorre pela antecipação do
Dasein a si mesmo.
223 Id. Ibid., p. 285. 224 HEIDEGGER. Apud: HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 39.
95
Para Haar a única marca ou característica que não surge da antecipação é o caráter da
indeterminação da morte como possibilidade. Só não resulta da antecipação ‘o caráter
indeterminado da possibilidade. Contudo, a antecipação assume esta indeterminação ao ponto
de parecer poder (coisa, todavia impossível) acordar ela própria a angústia que está ligada à
ameaça da morte’225. Não se trata de permanecer constantemente em condição de angústia,
experimentar ou sentir-se sempre em ameaça diante da morte, tampouco de querer ou buscar a
morte. Trata-se de uma abertura até o limite extremo, ter a morte como verdadeira, ‘aceitá-la
em seu próprio jogo, fazer-lhe frente, batê-la no seu próprio terreno’226. A possibilidade da
morte, como a possibilidade extrema e ‘mais alta’ necessita de uma mediação entre ela mesma
e a cotidianidade ou a mediania na qual o Dasein já sempre se encontra: esta experiência
mediadora é a angústia. A angústia revela concretamente ao Dasein o seu-poder-morrer; pela
angústia o ser-para-a-morte do Dasein se mostra e transparece como possibilidade concreta. A
ação do Dasein é autêntica quando age sob a esta disposição da angústia, assumindo a
precariedade, a provisoriedade da existência, do ser-no-mundo.
225 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 40. 226 Id. Ibid., p. 40.
96
3 - TESTEMUNHO DO PODER-SER PRÓPRIO E RESOLUÇÃO
O estar voltado para a morte apontou para a extrema possibilidade do Dasein,
revelando a antecipação como a possibilitacão desta possibilidade. Com a antecipação do
verdadeiro ser-para-a-morte do Dasein surge a possibilidade de um modo próprio do poder-
ser-inteiro do Dasein, como uma possibilidade ontológica. Como poderá ser alcançado para o
Dasein um modo próprio de poder-ser? Ou seja, poderá – ou como poderá - esta possibilidade
existencial/ontológica do poder-ser-inteiro ser demonstrada, ‘vivenciada’ ou percebida pelo
Dasein na sua existência fáctica?
O testemunho de um poder-ser próprio do Dasein deve ser demonstrado a partir do
Dasein mesmo. Este testemunho deve levar o Dasein a se compreender ele mesmo como em
possibilidade de ser próprio, de uma existência própria. Percepção esta que surge desde si
mesmo; demonstração fenomenológica que deve mostrar que o poder-ser próprio brota ‘no
seu ventre’, que se encontra em sua constituição ontológica de poder-ser do Dasein.
Testemunho que conduza o Dasein a compreender o modo próprio de poder-ser-si-mesmo.
Heidegger demonstra em ST que o si-mesmo, o ‘quem’ do Dasein é ser-no-mundo e não um
ente em meio aos outros, não é uma substância com o atributo da racionalidade ou da
humanidade. No presente trabalho também foi explicitado que o ‘eu mesmo’ do Dasein ao
modo da cotidianidade é regido pelo modo impessoal, pelo Man, ‘a gente’227.
Estando na condição do estar perdido em meio ao impessoal, já sempre fica
determinado quem estabelece o poder-ser do Dasein, ou seja, sua conduta e seu agir
cotidianos são sempre decididos e condicionados a partir da ocupação e da solicitude do ser-
no-mundo. O impessoal, ‘a gente’ já determinou o modo de ser do Dasein, obnubilando as
possibilidades de ser, bem como as escolhas destas possibilidades de ser. A escolha ou eleição
de ser do Dasein fica indeterminada, uma escolha de ninguém. Esta falta de eleição poderá ser
revertida com o retorno a si mesmo do Dasein, ‘retornando’ do estar perdido no impessoal,
trazendo-se de volta para o modo de ser cuja omissão (negligência) havia ‘permitido’ o
Dasein se perder na impropriedade. A passagem do próprio-impessoal para o ser-si-mesmo
próprio do Dasein será realizada com um reparar a falta de eleição. ‘Reparar a falta de eleição
227 Márcia Cavalcante usa neste sentido o termo próprio-impessoal; termo que também expressa o sentido atribuído por Heidegger a este conceito.
97
significa fazer essa eleição, decidir-se por um poder-ser desde o próprio si-mesmo. Ao fazer a
eleição, o Dasein possibilita a si mesmo por primeira vez seu poder-ser próprio’228.
Como se encontra geralmente perdido no impessoal, deve o Dasein encontrar-ser e
para isto necessita de um testemunho do poder-ser-si-mesmo – que ele já sempre é como
possibilidade. Este testemunho Heidegger denomina de a voz da consciência – fenômeno
constitutivo originário do Dasein. Fenômeno da constituição existencial do Dasein, que junto
com os demais existenciais já analisados, permite uma análise e demonstração da totalidade
do Dasein – não como uma junção de partes que se complementam a uma substância primeira
ou primordial, ou uma soma de elementos que forma um todo. Heidegger propõe e realiza
uma análise ontológica da consciência, que antecede qualquer explicação psicológica,
teológica ou de outra ordem qualquer.
A consciência é um factum do Dasein e não um fenômeno que ocorre ocasionalmente.
A consciência é um e no modo de ser do Dasein, que não necessita de comprovações
empíricas ou programações para que ‘apareça’ como constitutivo do Dasein. A consciência é
um fenômeno da abertura do Dasein; consciência que se revela como uma chamada (Ruf)229,
um modo de discurso que ‘tem o caráter de uma apelação (Anruf) ao Dasein assumir o seu
mais próprio poder-ser-si-mesmo, e isto ao modo de uma intimação (Aufruf) a despertar o seu
mais próprio ser culpável (Schuldigsein)’230. Esta chamada revela-se como um querer-ter-
consciencia, o ato existencial de fazer a eleição de si mesmo, que Heidegger denomina como
resolução (Entschlossenheit)231.
O propósito deste capítulo é, portanto apresentar três grandes temas: a consciência, a
culpabilidade e a resolução.
3.1 – Consciência
É bastante provável que a idéia de consciência seja também um dos conceitos mais
abordados na história do conhecimento e da filosofia ocidental. Muito já se discorreu sobre
esta temática, e se inquirida, praticamente cada pessoa tem uma opinião ou uma conceituação
sobre este tema. A consciência é assunto nos debates do dia-a-dia e sobre ela fala-se com
228 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 288. 229 Algumas traduções apresentam o termo ‘clamor’ e daí seus derivados conclamar, conclamação… 230 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 289. 231 Também traduzida, utilizada e explicitada como decisão enérgica.
98
bastante naturalidade e convicção, dando a entender uma uniformidade ou concordância em
torno do significado e da ‘utilização’ deste conceito.
Abbagnano atribui basicamente dois sentidos para o conceito de consciência. O
primeiro é no sentido geral a ‘possibilidade de dar atenção aos próprios modos de ser e as
próprias ações, bem como de exprimi-los com a linguagem’232. No sentido de estar ciente do
próprio estado em que cada indivíduo se encontra, de suas percepções, idéias, sensações...
Que está ou mantém o controle sobre si, sobre suas faculdades físicas e psíquicas.
O segundo sentido, utilizado pela e a partir da filosofia ‘é o de uma relação da alma
consigo mesma, de uma relação intrínseca ao homem, ‘interior’ ou ‘espiritual’, pela qual ele
pode conhecer-se de modo imediato e privilegiado e por isso julgar-se de forma segura e
infalível’233. O aspecto moral está em estreita conexão com o elemento intelectual teórico. Ao
se fazer um recorrido histórico do conceito de consciência dentro do pensamento de diversos
filósofos, percebe-se uma correlação no sentido da esfera da interioridade. O uso do conceito
de consciência na filosofia supõe o reconhecimento desta esfera como real, bem como de sua
natureza privilegiada.
Na filosofia de Platão a idéia da relação da alma consigo mesma se aproxima quando
este trata da ‘opinião’, no sentido de um diálogo interior da alma consigo mesma. Em sentido
aproximado também utiliza a idéia de consciência como lembrança, opinião e raciocínio; o
conjunto das atividades cognitivas em geral. Para Aristóteles a consciência é tomada no
sentido de estar ciente das próprias percepções sensíveis, aos sentidos. Para o Estoicismo a
idéia de consciência já está carregada de um sentido moral, tema que também se torna
dominante na filosofia neoplatônica. Esta filosofia acentua a separação entre o homem e o
mundo, elaborando e defendendo a noção de um testemunho interior privilegiado; noção que
é proximamente compartilhada pelo Cristianismo. Santo Agostinho aborda este tema,
traduzindo para o cristianismo a idéia de auto-auscultação interior, privilégio do sábio na
filosofia pagã. Sendo destinado a ser um dos temas mais abordados nas filosofias posteriores,
Abbagnano assim resume o conceito tomado neste período: ‘a certeza de sua própria
existência que a alma, o pensamento, a razão haurem na consciência de si, dada a estrutura da
consciência como relação intrínseca, direta e privilegiada que não pode ser perturbada,
destruída ou falsificada por nada’234.
232 ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 233 Id. Ibid. 234 Id. ibid.
99
Na Idade Média o tema aparece principalmente em Scotus Erigena, Santo Anselmo,
bem como em São Tomás, para quem consciência pode ser resumida na idéia de ‘estar
cônscio’. Já nos primórdios da Idade Moderna a idéia de consciência é tomada no sentido da
relação da alma consigo mesma como condição da relação da alma com as coisas, a
consciência imediata de si como condição da consciência das coisas. É em Descartes que
toma um grande alcance. ‘O cogito ergo sum é a auto-evidência existencial do pensamento,
isto é, a garantia que o pensamento (como consciência) tem de sua própria existência’235. A
importância do conceito de consciência para Descartes é tão importante que esta acaba
influenciando diretamente a conceituação de filósofos posteriores. Isto pode ser percebido em
Locke que coincide a idéia de experiência com consciência em certo sentido; estabelece ele a
consciência como a certeza absoluta que o homem tem de sua própria existência. Leibniz faz
a distinção da consciência (apercepção) com a percepção.
Kant faz a distinção entre consciência discursiva e consciência intuitiva; a apercepção
pura e a apercepção empírica. Para este filósofo a consciência discursiva é o ‘eu da reflexão’,
que ‘não contém em si nenhum múltiplo e é sempre o mesmo em todos os juízos porque
implica só o lado formal da consciência. A consciência intuitiva é, ao contrário, experiência
interior, que inclui o material múltiplo da intuição empírica interior’236. Para Hegel a
consciência pode ser constituída como o ponto de partida da filosofia, que lhe fornece o
conteúdo; cabe à filosofia elaborar conceitualmente este conteúdo. Por meio desta elaboração
este conteúdo assume verdade e realidade e torna-se ‘Espírito’ ou ‘Conceito’.
No século XIX a consciência e a autoconsciência são relacionadas e tornam-se carro-
chefe da filosofia. Destaca-se Bérgson para quem a consciência é uma atitude de introspecção
ou auscultação interior; é também a realidade, a única realidade. Já no século XX Husserl
destaca-se na abordagem deste assunto. Este parte do cogito cartesiano, a consideração das
vivências, a consciência como unidade vivencial. Vale-se da noção de intencionalidade:
referir-se ou reportar-se do ato da consciência a outra coisa, que não é o próprio ato da
consciência; a consciência é, portanto, uma relação com o objeto, relação na qual o objeto se
dá como tal. Também no século XX é importante apresentar a idéia de Freud, para quem a
consciência é um ‘estado em que um ser tem ou pode ter um saber imediato de seus
235 Id. ibid. 236 Id. Ibid
100
estados’237; ou seja, um estado psíquico é consciente se a pessoa que se encontra em tal estado
tem um saber imediato do mesmo.
Da fenomenologia de Husserl brotam duas correntes: a espiritualista e a objetivista.
Estão vinculados à corrente espiritualista Jaspers e Sartre. Para Jaspers a análise existencial é
a análise da consciência. Para Sartre consciência é primeiro, consciência de alguma coisa, que
não é a consciência, que ele denomina de em si; diante do em si, a consciência é o para si, a
presença para si mesma. Para a compreensão de Abbagnano à corrente objetivista estariam
vinculados Hartmann e Heidegger.
Tugendhat realiza um longo e notável estudo sobre a consciência/autoconsciência,
realizando uma análise histórica e crítico-lingüística deste conceito em diversos autores e
períodos históricos. O pensador estuda a relação ou o comportar-se consigo mesmo
(Sichzusichverhalten), da relação reflexiva consigo mesmo, fazendo uso e partindo da
sentença délfica ‘conhece-te a ti mesmo’ (gnothi seauton), no sentido das perguntas práticas:
‘quem sou eu mesmo’? ‘Que tipo de pessoa eu sou, ou quero ser’?
Apresenta que no decorrer da história três modelos orientaram a teoria em torno da
consciência/autoconsciência. Modelo ontológico da substância e de seus estados. Modelo que
foi determinado historicamente a partir de Aristóteles e que estaria ainda enraizado na cultura
e linguagem contemporânea, na estrutura do sujeito-predicado. O segundo modelo é a relação
sujeito-objeto: estar consciente é ter diante de si ou ‘representar’ um objeto; a autoconsciência
é tomada como uma relação entre o sujeito e ele mesmo como objeto. Este modelo ainda
permanece presente, mais fortemente na tradição alemã. O terceiro modelo é o ‘teórico-
metodológico de que todo saber empírico imediato tem que basear-se na percepção [...]
compreender o saber de si, e em geral todo comportar-se consigo mesmo, como um ‘dar-se
conta’ interior’238. Para Tugendhat estes modelos, pelos quais se orientou a teoria tradicional
da autoconsciência, são insustentáveis, por isto realiza um estudo aprofundado e apresenta
autores que romperam ou destruíram este aparato categorial tradicional, destacando
Wittgenstein, Mead e Heidegger.
Conforme Tugendhat, o filósofo da Floresta Negra rompe, destrói os três modelos
tradicionais considerados. De acordo com a interpretação de Tugendhat, mesmo Heidegger
rompendo com estes modelos tradicionais, ele continua orientando-se por uma estrutura da
tradição, a que distingue um ente e seu ser, sua existência; desta forma não contradizendo o
237 TUGENDHAT, E. Autoconsciencia y autodeterminación: una interpretación lingüistico-analítica. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 13. 238 Id. Ibid., p. 28.
101
modelo da substância, como Heidegger o previa ou intentava. O modelo exposto por
Heidegger, de um comportar-se do Dasein com sua própria existência, com o próprio ser
contradiz o terceiro modelo tradicional e rompe radicalmente com o modelo sujeito-objeto.
Para Heidegger a consciência dá algo a entender ao Dasein, ela abre. É um existencial
da abertura, assim como a disposição afetiva, a compreensão, o discurso e a decaída. A
consciência não assume um papel de exclusividade, também não pode ser tomada ao modelo
dialético em que assumiria os demais existenciais e estando num estágio ‘elevado’. Com a
análise e interpretação da consciência é possível apreender melhor e mais originariamente o
poder-ser do Dasein.
Pela abertura o Dasein já se encontra e pode ser o seu ‘aí’. Ele já sempre está presente,
aberto em seu mundo com e a partir do qual se ‘ocupa’. O Dasein já sempre optou ou está
entregue a algumas possibilidades. Pela condição de lançado na existência, por meio da
disposição afetiva ele já sempre se encontra aberto para a existência e para seu poder-ser. Por
meio da compreensão o Dasein já sabe como e onde se encontra, pois já se projetou nas
possibilidades mesmas ou se deixou conduzir pelo modo impessoal, interpretando seu ser e
suas possibilidades ao modo da publicidade, ‘da gente’. O Dasein escuta aos outros,
perdendo-se na publicidade, no falatório do impessoal; escutando o próprio-impessoal não dá
ouvidos ao próprio si-mesmo. Se o Dasein pode resgatar-se do ouvir o impessoal, não
ouvindo o si-mesmo próprio, resgatando-se por si mesmo, deverá antes encontrar-se;
‘encontrar a si mesmo que não foi ouvido precisamente pela escuta do impessoal’239. A escuta
do impessoal deve ser estancada, recebendo do Dasein mesmo a possibilidade de romper esta
escuta impessoal. O Dasein necessita de uma chamada que rompa com a escuta do impessoal,
do encontrar-se perdido na publicidade, chamada esta que ‘há de chamar silenciosa e
inequivocamente, sem dar lugar à curiosidade. Aquilo que dá a entender chamando desta
maneira é a consciência’240.
O chamar ou clamor da consciência é um modo de discurso, que de alguma forma
articula a compreensibilidade do Dasein. Este discurso do clamor da consciência não
necessariamente ou essencialmente quer representar uma locução verbal, não necessita ser
escutado como um ruído que é percebido pelos órgãos dos sentidos. A voz da consciência é
apresentada por Heidegger como a ‘que dá algo a entender’, uma abertura do Dasein. ‘Nesta
tendência a abrir que tem a chamada da consciência há um momento de choque, de repentina
239 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 290. 240 Id. Ibid., p. 291.
102
sacudida. Chama-se desde a distância para a distância. A chamada alcançará aquele que
queira ser trazido de volta’241, aquele que se distanciou de seu próprio ser si-mesmo.
Ao discurso pertence aquilo sobre o que se discorre e o discurso retira o que ele diz
daquilo sobre o que discorre como tal. A chamada da consciência ‘fala’ sobre o Dasein e não
sobre um conteúdo distante ou do exterior. O clamor da consciência alcança o Dasein na
compreensão cotidiana e mediana que ele tem de si mesmo enquanto ocupado e solícito ser-
no-mundo; o próprio-impessoal é alcançado com a chamada da consciência. O Dasein
cotidiano disperso ‘na gente’ é chamado.
A chamada clama para o si-mesmo próprio do Dasein. O clamor não interpela o
Dasein em suas representações e ocupações com as coisas no mundo, o impessoal do próprio-
impessoal constitutivo do Dasein é deixado de lado no clamor da consciência. O clamor é
para o si-mesmo, o pessoal, este é interpelado e induzido a ouvir o clamor da consciência. Ao
não ‘interpelar’ o impessoal na chamada, não representa que o chamado não alcançaria a
publicidade na qual o Dasein continuamente se encontra, mas revela que reduz o impessoal da
publicidade à coisa sem importância. O impessoal é chamado a si-mesmo, mas Heidegger não
quer representar com isto que o si-mesmo se caracterizaria como uma instância que de modo
geral permaneceria fechada ao ‘mundo exterior’ e que então seria invocada em sua
‘interioridade’. O si-mesmo interpelado é na forma do Dasein como ser-no-mundo. O
chamado pode parecer estranho porque é escutado numa situação banal, corriqueira, na qual o
Dasein deixou de ser ele mesmo, porque é escutado por um Dasein que na situação não é si-
mesmo.
‘A chamada não diz nada, não dá nenhuma informação acerca dos sucessos do mundo,
não tem nada que contar’242. A chamada não pretende iniciar uma espécie de diálogo com o
Dasein, não se quer transmitir ou mostrar algo, não há um comportamento específico a
indicar. A voz da consciência não indica o que seria necessário fazer em tal ou tal caso, não
enuncia nenhuma ordem, nenhuma máxima moral, nenhum imperativo categórico ou
hipotético. A chamada da consciência chama o Dasein a si-mesmo, para o seu poder-ser mais
próprio, conclama o Dasein para suas possibilidades mais próprias.
Como apontado anteriormente, a chamada não necessita ser expressa em forma de
uma locução verbal, o clamor não necessita de uma expressão oral, não se manifesta por meio
de palavras. O clamor da consciência não é manifestado por meio de determinada quantidade
ou determinado uso de palavras no falatório, mas ‘a consciência fala única e constantemente
241 Id. Ibid., p. 291. 242 Id. Ibid., p. 293.
103
na modalidade do silêncio’243. O fato de clamar por meio do silêncio não representa que não
tenha existido o clamor ou que este não seja perceptível, mas induz ao Dasein a guardar
silêncio sobre si mesmo. O silêncio pelo qual a chamada ocorre ao Dasein não é tampouco em
forma de um ente ou uma voz misteriosa.
O que a chamada manifesta é inequívoco, mas todo Dasein a interpreta e assume para
si mesmo de forma diferenciada. Se uma chamada da consciência porventura é mal
interpretada pelo Dasein, isto não representa um equívoco da consciência, mas a forma
distorcida como a chamada é escutada. A interpretação enganada do clamor da consciência
pode conduzir a uma compreensão imprópria deste chamado, levando o Dasein que se
encontra na publicidade do impessoal a tentar um ‘monólogo negociador’. Enfim, Heidegger
entende e apresenta a consciência como uma chamada ‘que interpela o próprio-impessoal em
sua ‘mesmidade’; enquanto tal, é uma intimação do si-mesmo a seu poder-ser-si-mesmo e, por
meio deste, um chamar ao Dasein para frente, para suas possibilidades’244.
A consciência chama o Dasein perdido na publicidade e o modo de ser na
cotidianidade do Dasein interpelado é deixado de lado, alcançando-se inequívoca e
inconfundivelmente o si-mesmo. O interpelado e o que chama permanecem indeterminados,
não se tornando ‘familiar’ ao Dasein que se encontra na cotidianidade. A voz que chama pela
chamada mantém afastada a manifestação de si, no sentido de não se tornar tema de discussão
ou assunto para debate ou contemplação no falatório da cotidianidade. O que chama somente
quer ser escutado enquanto tal, sem que haja comentários e noticiários paralelos sobre o
chamado, o que é típico da publicidade.
Na consciência o Dasein chama a si mesmo e esta chamada não pode jamais ser
programada ou planificada por cada Dasein para que aconteça ou não aconteça em
determinada data ou horário. Afirma Heidegger que ‘algo chama (‘es’ ruft), inesperadamente
e inclusive contra a vontade’245. O clamor não surge de um ente que esteja junto ao Dasein no
mundo, como também não surge de Deus. A voz da consciência não é medida pela
intensidade dos decibéis, ou seja, a voz não chama alguns com uma voz mais alta ou mais
baixa ou de modo que alguns que tenham o sono mais pesado não seriam conclamados pela
voz da consciência. Pode-se perceber uma semelhança do que ocorre no fenômeno da
angústia, que pelo fenômeno da voz da consciência o apelo ou clamor venha do Dasein e de
‘algo superior do Dasein’, algo além; trata-se do mesmo Dasein, mas segundo dois modos
243 Id. Ibid., p. 293. 244 Id. Ibid., p. 294. 245 Id. Ibid., p. 295.
104
diferentes – da cotidianidade e o si-mesmo. Contudo, esta ‘estranheza’ não permite interpretar
a voz da consciência como um diálogo do Dasein consigo mesmo, com sua interioridade; a
consciência como uma voz estranha porque o Dasein chama desde e na sua ‘estranheza’, o
não-estar-em-casa que experimenta na angústia.
Esta constatação fenomênica conduz a interpretação da voz da consciência que
Heidegger empreende. A voz da consciência não é uma manifestação divina e não é uma
força ‘biológica’, mas sim um fenômeno do Dasein; a chamada procede do Dasein, de ‘mais
além’ do Dasein e se dirige ao Dasein. Dasein que existe lançado na existência, sua existência
é fáctica; ‘existe como um ente que há de ser tal como é e como pode ser’246. A condição de
estar-lançado na existência ‘pertence’ à abertura do Dasein como ‘Da’, ‘aí’. Abertura que é
revelada pela disposição afetiva na qual o Dasein sempre se encontra, que leva o Dasein
diante de seu ser e de seu poder-ser. Regularmente esta disposição afetiva fecha o Dasein em
sua condição de ser-lançado, fugindo de sua condição. Foge de seu estranhamento que o
caracteriza como ser-no-mundo, e que é revelado pela disposição afetiva fundamental da
angústia. A angústia, como abertura essencial do Dasein ‘leva seu ser-no-mundo diante do
nada do mundo, frente ao qual o Dasein se angustia na angústia pelo poder-ser mais
próprio’247.
O que chama é o Dasein na sua estranheza, o ‘originário e lançado ser-no-mundo
experimentado como um estar fora de casa (als Un-zuhause), o ‘fato cru’ no nada do
mundo’248. Aquele que lança o clamor não é familiar ao Dasein lançado na cotidianidade,
uma ‘voz desconhecida’ chama e não lança nenhum conteúdo ou tarefa determinada a
realizar. Chamada no modo estranho do silêncio, não ao modo do falatório, mas justamente
conclamando a sair da publicidade, do falatório, chama ao silêncio do poder-ser existente. O
estranhamento é o modo fundamental do Dasein, embora na cotidianidade este modo esteja
geralmente encoberto, mas é desde o fundo deste estranhamento não encoberto que a
consciência chama. Este clamor do estranho, da angústia torna possível ao Dasein projetar-se
no poder-ser mais próprio, saindo do estar perdido na condição de impessoalidade. Agamben
ao fazer uma análise da Voz ressalta um aspecto importante. Na angústia o Dasein encontra-
se como sem voz, há uma ausência de voz do Dasein, um ‘silêncio vazio’ que a disposição da
angústia lhe havia revelado. Esta ausência de voz transmuta-se agora em uma Voz. ‘Mais
originário do que ser lançado sem voz na linguagem é a possibilidade de compreender o
246 Id. Ibid., p. 295. 247 Id. Ibid., p. 296. 248 Id. Ibid., p. 296.
105
chamado da voz da consciência, mais originária do que a experiência da Stimmung (angústia)
é a experiência da Stimme’249 (voz).
Tendo presente a totalidade do Dasein, percebe-se agora que a consciência se revela
também como uma chamada do cuidado:
quem clama é o Dasein, que na condição de lançado (ser-já-em...) se angustia por seu poder-ser. O interpelado é este mesmo Dasein, enquanto chamado a seu mais próprio poder-ser (antecipar-se-a-si...). E o Dasein é chamado pela chamada para que saia da decaída do impessoal (já-ser-em-meio-ao-mundo do qual se ocupa)250.
A chamada da consciência se torna possibilidade ontológica porque o Dasein é
cuidado: quem é apelado é o Dasein na decaída, preso no mundo, que é no presente; quem
apela é o Dasein na sua facticidade de ser-no-mundo, enquanto estar-lançado, que é no modo
do ter-sido; chamado para o Dasein ‘autêntico’, que se projeta a si mesmo como estar
lançado, no futuro. Isto demonstra que não é necessário recorrer a outros entes ou poderes
estranhos para explicar a voz da consciência. A consciência manifesta-se como um fenômeno
constitutivo do Dasein, sendo um elemento que auxilie na compreensão do testemunho do
poder-ser mais próprio do Dasein.
Nunes traça um paralelo interessante e bastante elucidativo entre a voz da consciência
como esta é abordada por Heidegger e Sócrates, no século V a.C. Este teria justificado sua
fidelidade ao bem e o apreço à virtude e à justiça – perante os juízes que o condenavam – pois
era intimado por um daimon, uma voz que lhe falaria interiormente e que o convocaria para
auxiliar a tornar os homens justos e equilibrados. Foi ouvindo esta voz que Sócrates se
absteve de participar da vida política e dos negócios públicos. Afirma Nunes que a voz
‘intimava-o a certo procedimento que ele adotaria ao ouvi-la, atendendo a um chamamento –
a uma vocação que dela vinha [...], muito embora nada expressasse mediante palavras, e se
fizesse ouvir em silêncio e como silêncio, convocava-o para outra espécie de tarefa’251. No
silêncio da voz, era o seu daimon que lhe falava. Compreendia esta voz estranha, ouvindo-a
em silêncio; chamado que parecia um diferente de si mesmo, uma voz (Ruf) que o convocava
para uma tarefa, retirando-o do círculo ‘da gente’.
249 AGAMBEN, G. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p.81. 250 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 297. 251 NUNES, B. Passagem para o poético. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 125.
106
3.2 - Culpabilidade
Ao analisar a chamada da consciência foi possível perceber que a chamada se dirige ao
próprio-impessoal, conclamando o si-mesmo mais próprio a despertar para seu poder-ser
enquanto ser-no-mundo ocupado e solícito. A interpretação existencial mostra que aquilo que
é manifestado na chamada não é uma pretensão de indicar ou delimitar um determinado
comportamento ou exigir uma peculiar forma de existência. A chamada da consciência
pertence à condição existencial do Dasein, na sua possibilidade de poder-ser fáctico. A voz da
consciência é propriamente ouvida pelo Dasein não quando sobre ela levanta comentários ou
transmite informações variadas, mas quando compreende sua interpelação para o seu poder-
ser mais próprio.
A chamada não ‘diz’ nada ao Dasein, mas o remete para o seu poder-ser, chamando
desde o estranhamento de seu ser como Dasein. O estranhamento, desde onde o Dasein da
impessoalidade é conclamado, permanece como uma forma de abertura do Dasein. A
chamada não estabelece um valor universal ou um comportamento ideal a ser seguido, mas
abre o poder-ser como possibilidade de cada Dasein.
Pela experiência da cotidianidade o Dasein experimenta a voz da consciência como
uma voz ou palavra admoestadora, que lhe aponta a culpa. Diante disto Heidegger indaga: de
onde se alcançará o conceito fenomenal de culpa, senão da interpretação do Dasein? Quem
afirma a culpa ou culpabilidade do Dasein e qual o sentido ou significado desta culpa? A
culpa não pode ser uma invenção arbitrária ou uma artimanha criada para tentar dar conta de
algum comportamento ou dimensão humana. A explicação e compreensão dos fenômenos
existenciais do Dasein – como os já analisados neste trabalho: mundanidade, angústia,
cuidado..., e agora o da culpabilidade – estão esboçados no próprio Dasein e devem ser
analisados, numa analítica a partir da cotidianidade, da condição da medianidade do Dasein.
Mesmo que na condição da medianidade a interpretação não seja a mais própria do Dasein, aí
é possível encontrar uma reminiscência ou uma ‘semente’ da compreensão originária do
Dasein.
Para fornecer uma conceituação e compreensão ontológica e originária do conceito de
culpabilidade e de como ela se constitui um verdadeiro existencial do Dasein, Heidegger parte
da compreensão comum, cotidiana da idéia de culpa, culpável, culpabilidade... A análise parte
da expressão alemã Schuldigsein. Esta palavra é comumente tomada no sentido de ‘estar em
dívida’, ‘ter conta pendente com alguém’, ‘ter dívidas’. O ter dívidas pendentes é uma forma
de coestar com os demais na ocupação com o mundo; nesta ocupação com os demais é
107
factível de ocorrer também o modo de subtrair algo de alguém, privando-o de um bem,
negando-lhe o seu direito sobre este bem que lhe pertencia. Outro sentido para a expressão
enquadra-se na direção do ‘ser responsável de’, ou seja, ser a causa, o motivo, o ‘provocador’
de algo. Desta forma o Dasein pode sentir-se culpável sem necessariamente dever algo a
outro, sem ser seu efetivo devedor.
Os significados da expressão Schuldigsein relacionam-se com a idéia que Heidegger
denomina como ‘fazer-se culpado’, no sentido de ferir um direito ou bem e ser merecedor de
pena por ter a culpa estando em dívida. A idéia de ser culpável não necessariamente é por
lesar um direito ou bem de outro, mas também no sentido de ser responsável de a existência
de outrem se encontrar sob risco, ameaçada, arruinada. Para se perceber como culpável ou
culpado não é necessário ferir um bem jurídico de outro ou ofender a lei vigente, mas
Heidegger define o ‘fazer-se culpável’ como ‘ser fundamento de uma deficiência na
existência do outro, e o ser de tal maneira que este mesmo ser-fundamento se determine como
‘deficiente’ em razão daquilo do qual é fundamento’252.
Todos estes comportamentos e estas formas do Dasein de se sentir culpado, como uma
culpa moral, como uma dívida, como um ser responsável ou causante de algo ao outro, ainda
não caracterizam ou são suficientes para uma interpretação ontológica do fenômeno da
culpabilidade do Dasein. No caminho que é empreendido para alcançar uma compreensão
ontológica e original da culpabilidade é necessário, portanto abandonar estas formas de
interpretação que são do cotidiano coestar no mundo. A interpretação original – ontológica –
da culpa não pode estar vinculada a um dever, a uma lei que em caso de descumprimento
tornariam o Dasein culpável ou culpado. Tampouco a idéia de ‘deficiência’ é uma maneira
apropriada de interpretação do fenômeno da culpabilidade. A deficiência é percebida quando
falta algo a um objeto, a um ente à mão para que este se complete, se torne inteiro; algo que
deveria estar aí. Este caráter não se aplica ao Dasein, não porque ele seja completo, mas
porque este não assume o modo de ser de um ente à mão; nada pode faltar factualmente à
existência sem que ela tenha nela a possibilidade ontológica dessa deficiência.
Contudo, na idéia de culpável, culpabilidade está contido o caráter do ‘não’; o caráter
ontológico deste ‘não’ precisa ser examinado e esclarecido. Heidegger define a idéia de
culpável como ‘ser-fundamento de um ser que está determinado por um não – ou seja, ser-
fundamento de uma niilidade’253. Niilidade não como uma simples negação ou negatividade.
252 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 301. 253 Id. Ibid., p. 302.
108
O ‘não’ não revela uma falta que se situa num ente subsistente ou ao lado da existência de
outro, mas situa-se no coração do próprio Dasein. Partindo de um comportamento deficiente
ou faltoso do Dasein não é possível alcançar uma deficiência do fundamento; o fundamento
não necessita receber seu caráter de niilidade daquilo que é por ele fundado. Com palavras
mais simples e diretas pode-se afirmar com Heidegger que o ‘ser-culpável não é o resultado
do ter-se tornado culpável, senão ao contrário: este somente é possível ‘sobre a base’ de um
originário ser-culpável’254.
Como cuidado o Dasein é constituído pela facticidade (lançado na existência),
existência e decaída. Como lançado na existência, o Dasein não foi levado por si mesmo a
esta condição. Constitui-se como um poder-ser, propriedade esta que não foi ele mesmo que
se concedeu. Existindo de tal forma não pode retroceder de modo que pudesse dar a si mesmo
ou produzir ou seu ser-si-mesmo. O Dasein não foi lançado uma única vez na existência e
depois foi abandonado nesta condição, mas constantemente, enquanto é, ao Dasein lhe é
inerente e característico a condição de lançado na existência. A falta original do Dasein
resulta de seu ser-lançado. Desta forma, o Dasein é o fundamento de si mesmo, mesmo que
não tenha se colocado nesta condição; condição esta que se lhe revela pela disposição afetiva.
O Dasein é este fundamento de si mesmo, projetando-se em suas possibilidades. ‘O si-mesmo
que , como tal, tem que colocar o fundamento de si mesmo, jamais pode apoderar-se deste,
entretanto, tem que assumir, existindo, o ser-fundamento’255.
O Dasein não existe antes de seu fundamento, mas sempre e somente desde e como
fundamento. Ser-fundamento ‘significa não ser jamais radicalmente dono do ser mais próprio
[...]. Sendo fundamento, é, ele mesmo, uma niilidade de si mesmo’256. Niilidade não
representa ‘não existir’, mas o ‘não’ que lhe é constitutivo em sua existência. O ‘não’ que é
constitutivo do ser do Dasein é por Heidegger caracterizado como ‘sendo si-mesmo, o Dasein
é o ente lançado enquanto si-mesmo. Deixado em liberdade não por si mesmo, senão em si
mesmo, desde o fundamento, para ser este fundamento’257. Sendo si-mesmo o Dasein é o ser
deste fundamento; é o fundamento de um ente que tem que assumir o ser-fundamento. O
Dasein é seu fundamento existindo, compreendendo suas possibilidades. ‘O Dasein deve
Niilidade, do alemão Nichtigkeit. Sandra Cavalcante traduz esta expressão por nada. Alguns outros comentadores a traduzem também como negatividade ou nulidade. Neste trabalho a opção foi pela tradução de Jorge E. Rivera, entendendo que esta expressão niilidade – do latim nihil (nada) -, embora pouco utilizada ou não sendo de uma compreensão comum, é mais fiel ao sentido que Heidegger quer transmitir com esta idéia e é mais expressiva que os demais termos. 254 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 302. 255 Id. Ibid., p. 303. 256 Id. Ibid., p. 303. 257 Id. Ibid., p. 303.
109
assumir o papel de causa, de princípio e de fundamento ainda que não se tenha dado como
fundamento, ele não é fundamento, mas ser-fundamento, aquele que assume ser-
fundamento’258. Desta situação de assumir o ser-fundamento também ‘surge’ a sensação ou
sentimento de peso, tonalidade de carga que o Dasein ressente ou pode sentir em
determinados momentos.
A dívida considerada cotidianamente como o resultado de uma relação ou falta
advinda com outrem ou em relação a alguma situação, é tomada como uma ‘falta’ do Dasein.
O estar-em-dívida é constitutivo do Dasein; a ‘intersubjetividade’ da dívida perde seu caráter
de centralidade. O ‘não’ que é introduzido pelo Dasein no mundo e no coestar é encontrado
previamente no próprio Dasein; no Dasein encontra-se uma dívida originária e esta primeira
dívida é o ser-fundamento. ‘O Dasein ‘deve’ ao seu abandono, à sua facticidade, a própria
possibilidade de se projetar livremente’259.
Como ser-fundamento o Dasein é este fundamento existindo, compreendendo suas
possibilidades. Isto implica necessariamente que ele, como ente lançado na existência, se
encontre em alguma possibilidade e que estando nesta, não é alguma outra ou outras, à ou às
quais renunciou. Como existência o Dasein já sempre é em forma de projeto e assumindo
determinada possibilidade na qual se projetou, renuncia a outras. Desta forma, ele não é
determinado apenas pela niilidade do ser-fundamento, mas também pelo caráter de ‘projeto
negativo’. Heidegger não analisa isto sob um prisma da ética, de optar por uma possibilidade
mais ou menos verdadeira eticamente e renunciar a outras, mas num caráter ontológico, de
projeto existencial. Sendo um constitutivo existencial, o estar numa possibilidade e renunciar
a outras possibilidades de ser, não representa um fracasso ou uma menoridade ôntica. Esta
niilidade ‘pertence à liberdade do Dasein para suas possibilidades existentivas. Porém, a
liberdade somente é na eleição de uma destas possibilidades, ou seja, assumindo o não ter
elegido e não poder eleger também as outras’260.
O Dasein não é um princípio abstrato, mas como sendo na facticidade, encontra-se em
possibilidades. Devendo escolher entre as possibilidades, ele não está em dívida em relação às
possibilidades e em relação ao fato de escolher. O Dasein só é livre ao escolher, mas nesta
escolha ‘expõe à vingança’ do não escolhido. O Dasein tem a responsabilidade sobre as
escolhas feitas, bem como lhe são acarretadas as conseqüências daquilo que não escolheu, das
suas não escolhas. Esta dívida para o Dasein é uma via de ‘mão dupla’: assumir a
258 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 50. 259 Id. Ibid., p. 51. 260 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 304.
110
responsabilidade das escolhas feitas; e carregar com o peso das não-escolhas, do que já não
pode mais escolher.
Tanto na estrutura do ser-lançado como do projeto, essencialmente é revelada a
niilidade, que é o fundamento da possibilidade da ‘niilidade’ da decaída, na facticidade
cotidiana onde o Dasein se encontra regularmente. Ressalta Heidegger que o cuidado está na
essência desta niilidade, quando afirma que ‘o cuidado – o ser do Dasein – consiste, por
conseguinte, enquanto projeto lançado, em ser-fundamento (negativo) de uma niilidade. E isto
significa que o Dasein como tal é culpável...’261. A niilidade existencial não representa o não
alcançar algum ideal de vida estipulado ou definido como meta. O ser do Dasein é
‘previamente negativo’ no seu projeto, é ‘negativo enquanto projetar’ e não é uma niilidade
que possa ser abandonada mediante um progresso existencial ou à medida que vai alcançado
metas e patamares existenciais idealizados...
O fenômeno da culpa original não se origina e sua interpretação não se orienta por
uma idéia de mal, como uma privação do bem. O ‘bem’ e sua privação dependem de uma
ontologia do ente subsistente, ontologia que não se compatibiliza com a analítica ontológica
do Dasein. Claro que o Dasein pode ‘carregar’ um culpa, ele é culpável; mas isto ocorre e é
possível porque o ser-culpável é uma condição ontológica para que o Dasein possa assumir
uma culpa fáctica. O ser-culpável originário é a condição de possibilidade para toda e
qualquer moralidade, do que é considerado moralmente ‘bem’ ou ‘mal’. A culpabilidade mais
original do Dasein não é fruto dos princípios morais e não é determinada pela moralidade,
mas sim a moralidade pressupõe a existência do ser-culpável ontológico do Dasein, para
assumir culpas fácticas; a moralidade pressupõe o estar-em-dívida originário.
Como então se manifesta esta culpa original? Na facticidade, na cotidianidade do
Dasein ela não se encontra de modo geral em estado de ‘sonolência’ ou como encoberta?
Heidegger contesta a estas questões afirmando que pelo fato de imediata e regularmente este
ser-culpável permanecer sem se abrir, ‘que o ser cadente do Dasein o mantenha em clausura,
não faz mais que revelar a já mencionada niilidade. O ser-culpável é mais originário que todo
saber dele’262. Qualquer Dasein, quer ele esteja em falta fáctica ou não, quer ele tenha
conhecimento ou esteja ciente de sua culpabilidade originária ou não, ‘está antes de mais
endividado face ao seu próprio ser-no-mundo, ou no processo de tornar-próprio o seu ser-no-
mundo’263.
261 Id. Ibid., p. 304. 262 Id. Ibid., p. 305. 263 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 52.
111
A chamada é a chamada do cuidado. O ser-culpável constitui o cuidado. O
estranhamento coloca o Dasein diante de si mesmo e lhe expõe sua ‘crua’ niilidade, que é
constitutiva de seu mais próprio poder-ser. Desde este estranhamento o Dasein chama a si
mesmo, desde sua decaída, para despertar para seu poder-ser. É um clamor provocante e
reclamante – pré-vocante chamada para trás. Pré no sentido de, existindo, assumir em e por si
mesmo, lançado na facticidade; para trás, para a condição de lançado, para se compreender
como fundamento negativo que ele tem que assumir na existência. O apelo apela para o
Dasein não se esquivar à culpabilidade, a assumi-la e reconhecê-la. Heidegger afirma que
‘estando na possibilidade de seu ser como fundamento negativo de seu projeto negativo –
deve recuperar-se de seu estar perdido no impessoal e retornar a si mesmo, ou seja, lhe dá a
entender que é culpável’264.
A chamada compreendida ontologicamente expressa que o clamor desta chamada da
consciência surge do Dasein mesmo, dirige-se a este ente mesmo, clamando ao poder-ser que
o Dasein já é enquanto existe. O Dasein é chamado a ser propriamente ‘culpável’, que ele já
sempre é. Compreender esta chamada é compreender o seu mais próprio poder-ser, projetar-
ser no mais próprio e autêntico poder-chegar-a-ser-culpável. Esta compreensão Heidegger
caracteriza como fazer-se livre do Dasein para a chamada; ‘ao compreender a chamada, o
Dasein é obediente (ist hörig) à sua mais própria possibilidade de existência. Elegeu-se a si
mesmo’265. Com esta eleição o Dasein torna possível o seu mais próprio ser-culpável; ser-
culpável que geralmente permanece encoberto para a cotidianidade. O próprio-impessoal, na
chamada, é convocado a despertar para o mais próprio ser-culpável. Compreender a chamada
é eleger e ‘o que se elege é ter-consciência, enquanto ser-livre para o mais próprio ser-
culpável. Compreender a chamada quer dizer: querer-ter-consciência’266.
Querer-ter-consciência é no sentido de disponibilidade para ser-interpelado, não no
sentido de buscar ou se afastar de culpas fácticas, mas no sentido de liberação da culpa. Ou
seja, o querer-ter-consciência ‘é a pressuposição existenciária mais originária para a
possibilidade de chegar a ser facticamente culpável [...] o Dasein deixa que o si-mesmo mais
próprio atue nele desde o poder-ser que ele elegeu para si’267. Ouvir verdadeiramente o apelo
da consciência é uma escolha de si mesmo; estar pronto para ouvir o apelo de ser si mesmo;
264 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 305. 265 Id. Ibid., p. 306. 266 Id. Ibid., p. 306. 267 Id. Ibid., p. 306.
112
querer-ter-consciência é passar do estar em dívida com outrem para estar em dívida perante
si-mesmo268.
Ao analisar o existencial da consciência, Inwood alerta que Heidegger usa a mesma
palavra Gewissen tanto para a consciência no sentido tradicional como para a consciência em
seu sentido fundamental. Para diferenciá-las denomina a consciência tradicional como
‘consciência’ e a consciência na conceituação de Heidegger como ‘Consciência’, com ‘C’
maiúsculo; afirmando que nem todos têm uma consciência tradicional, mas todos têm uma
Consciência. Também em relação à culpa, o comentador usa deste artifício de explicitação,
expondo a idéia heideggeriana de culpa primordial, inerradicável com ‘C’ maiúsculo, como
‘Culpa’; afirma que ‘todo Dasein é Culpado, mas só o Dasein autêntico percebe sua Culpa e
age com plena consciência dela’269.
A culpabilidade abordada por Heidegger é no sentido existencial e não ético,
constituindo como a condição de possibilidade de toda culpa ôntica. Também não é correto
confundir a culpabilidade existencial original com o tema cristão do pecado, do pecado
original judaico-cristão. O fato de Heidegger interpretar e explicitar estes temas em sua
filosofia não quer representar que ele esteja repetindo num plano ontológico um tema cristão.
Significa muito antes que o cristianismo ‘teologizou’ temáticas que tem como base um
fenômeno existencial. Heidegger mostra que toda culpa ôntica tem como ‘pano de fundo’ uma
culpabilidade original, ontológica e não pretende afirmar que o ser-culpável existencial do
Dasein seja oriundo ou derivado da culpa ou ‘pecado original’ como entendida pelo
cristianismo.
O Dasein não se pôs a si mesmo na existência, ele não se encontra na origem de seu
próprio existir, feito pelo qual ele se torna responsável pelo que ele já é; ele tem que assumir
seu próprio existir. Existe como um ‘culpado’ ou ‘devedor’, mas uma dívida que ele próprio
não contraiu e uma ‘falta culposa’ que ele próprio não cometeu. Dastur afirma que a idéia
judaico-cristã do ‘pecado original’ somente pôde ser formada porque ‘o ser humano, ao
nascer, vê se estender, atrás de si, um passado absoluto do qual jamais poderá se apropriar
inteiramente e pelo qual é, portanto, ‘originalmente’ culpado’270. Comenta ainda que esta
experiência do mal inerente na existência está presente no sentimento trágico grego, quando
Sileno contesta a pergunta do rei Midas, sobre a melhor coisa do mundo: ‘a melhor coisa do 268 Ao analisar este aspecto da consciência e culpabilidade, autores e comentadores, tal como Haar acusam ou alertam sobre o perigo ou ameaça de um ‘solipsismo existencial’ da filosofia de Heidegger. 269 INWOOD, M. Heidegger. Sao Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 97-98. O comentador afirma ainda quanto a esta idéia de Culpa primordial, Heidegger as vezes a atribuiria a Goethe; embora não forneça maiores detalhes sobre esta sua idéia. 270 DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 101.
113
mundo está fora de teu alcance: não ter nascido, não existir, não ser nada. Em segundo lugar,
o que te valeria mais seria morrer cedo’271.
O estar-lançado na existência constitui-se como um estar sempre atrasado em relação a
si próprio, em relação a sua abertura, encontra-se sempre já aberto como ser-no-mundo. Esta
facticidade não é um fato ou acontecimento passado uma vez por todas. Tal como a morte, o
nascimento não pode ser tomado como um acontecimento ‘datável’; ‘enquanto o Dasein
existe, ele não cessa, tal como a morte, de ‘se produzir’; é verdade que o homem só vem ao
mundo uma vez, no dia de seu nascimento, mas vem constantemente ao Dasein enquanto
vive’272. O estar-lançado que Heidegger expõe é no sentido de que algo irrecuperável no
existir, o Dasein não efetua uma posição do seu próprio fundamento, mas como existente
retoma sua facticidade como um ser aberto a si mesmo e existente para si mesmo.
3.2.1 - Interpretação cotidiana da consciência e culpabilidade
A consciência é a chamada do cuidado desde o estranhamento de ser-no-mundo,
conclamando o Dasein para o seu mais próprio poder-ser-culpável. A compreensão desta
chamada é o querer-ter-consciência. Esta é a compreensão e interpretação
ontológico/existencial que Heidegger apresenta, mas não representa que na cotidianidade ou
que a interpretação vulgar venham ao encontro destas. Torna-se relevante apresentar como
regularmente a consciência, a chamada da consciência e a culpabilidade são interpretadas no
modo da decaída e da cotidianidade.
A tendência da cotidianidade é interpretar a consciência e o ser do Dasein a partir do
modo da decaída, à maneira das ocupações do dia-a-dia, do ‘que fazer’ cotidiano, muitas
vezes encobrindo ou não tomando à atenção a compreensão ontológica e existencial dos
fenômenos do Dasein. Tomando o Dasein como um ente a mão, como objeto a vida é também
interpretada como um negócio, como um comércio. A interpretação cotidiana destes
fenômenos, portanto não pode servir de critérios ‘últimos’ e ‘objetivos’ para a interpretação
ontológica; mas também não pode ser rechaçada a interpretação pré-ontológica – cotidiana -
destes fenômenos.
271 NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia. In: DASTUR, F. A Morte: Ensaio sobre a finitude. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. p. 101 272 DASTUR, F. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 85.
114
A interpretação vulgar, a explicação corrente da consciência comum apresenta quatro
pontos característicos que à analítica existencial cabe esclarecer e tornar inteligíveis. 1. A
consciência tem essencialmente uma função crítica. 2. A consciência só se faz escutar ou
apenas se pronuncia relativamente a fatos precisos. 3. A experiência mostraria que a voz da
consciência não está radicalmente vinculada ao ser do Dasein. 4. A interpretação existencial
não tem em conta os fenômenos da ‘má’ e ‘boa’ consciência – a consciência ‘repressora’ e
‘admoestadora’.
Seguindo a exposição de Heidegger, será inicialmente analisado o quarto aspecto
elencado. Na interpretação vulgar a ‘má’ consciência tem primazia, a consciência é
experimentada como ‘má’ consciência, consciência como certa ‘culpa’. Consciência que se
manifesta ou é vivenciada como um ato posterior àquilo que foi cometido ou omitido. A voz
da consciência aponta para a transgressão e para a culpa contraída e a carregar. Esta
interpretação da consciência como um movimento consecutivo, a interpreta como seqüência
de vivências que estão-aí. Mas a chamada originária, ontológica tem o caráter de cuidado.
Com isto fica esclarecido que a voz chama ‘para trás’, mas não para um ato específico que
queira repreender; chama para o ser-lançado culpável que é anterior à decaída e culpa fátcica.
A chamada chama para trás e chama ‘ao mesmo tempo ‘para frente’, para o ser-culpável
enquanto tem que ser assumido na existência própria’273. A ‘má’ consciência da interpretação
vulgar não alcança o fenômeno originário.
Tampouco a ‘boa’ consciência alcança o fenômeno originário. Esta que pode ser
considerada consciência autônoma ou fundada na ‘má’ consciência. Heidegger afirma que
esta maneira de consciência se torna escrava do farisaísmo274, pois teria que levar o Dasein a
afirmar sobre si mesmo: ‘eu sou bom’. Para evitar esta proclamação, a ‘boa’ consciência foi
interpretada regularmente com a ausência da ‘má’ consciência, no sentido de que não há nada
para ser reprovado nas atitudes passadas, proclamando a inocência do Dasein. ‘A
interpretação cotidiana se movimenta na dimensão do ocupar-se que calcula ‘culpas’ e
‘inocências’, e busca saldar as dívidas pendentes’275.
A terceira objeção da compreensão vulgar apela que a experiência da consciência não
conhece o clamor como o despertar do ser-culpável. A consciência cotidiana comparece para
273 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 309. 274 Doutrina e prática dos fariseus, que no sentido figurado ou popular é tomada como qualidade de hipócrita, de fingido. Pasqua comenta que neste aspecto Heidegger roça o maniqueísmo. Mais adiante expressa da seguinte forma: ‘salientamos de passagem o pessimismo quase maniqueísta que aflora no pensamento de Heidegger. Este está próximo dum certo pelagionismo do desespero...’ PASQUA, H. Introdução à leitura de Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 275 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 310.
115
a experiência como um juiz que admoesta e com quem o Dasein trata e negocia. Que a
compreensão da publicidade assim interprete e experimente a consciência, não representa que
seja um interpretação original e ontológica. Também cai por terra a segunda maneira, que
interpreta a consciência sempre referida a um ato ‘realizado’, voluntário. Assim como a ‘boa’
consciência não é serviçal do farisaísmo, a ‘má’ consciência não pode ser degradadamente
tomada como ‘denunciadora’ ou ‘inocentadora’ de culpabilidades que estão-aí; como ‘se o
Dasein fosse uma ‘questão administrativa’ cujas dívidas só necessitariam ser saldadas em
devida forma para que o si-mesmo pudesse estar ‘junto’ ao fluir das vivências, a maneira de
um expectador imparcial’276.
Assim também perde seu poder e base de objeção a primeira contestação da
cotidianidade, segundo a qual a interpretação existencial desconheceria a função crítica da
consciência. Regularmente da consciência é aguardada uma indicação de possibilidades de
ação, que sejam seguras e calculáveis. A voz da consciência não fornece este tipo de
instruções ‘práticas’, pois intima o Dasein à existência, ao seu mais próprio poder-ser-si-
mesmo. A chamada não aponta para modos de ocupação ‘positivos’ ou ‘negativos’.
3.3 - Resolução
Com a interpretação existencial que foi realizada, há condições de apresentar um
testemunho do poder-ser mais próprio do Dasein. A compreensão própria da chamada da
consciência já foi conceituada como ‘querer-ter-consciência’, que Heidegger define como o
‘deixar-atuar-em-si ao si-mesmo mais próprio desde ele mesmo em seu ser-culpável, é o
fenômeno do testemunho no Dasein mesmo de seu poder-ser próprio’277. O querer-ter-
consciência como compreensão do poder-ser mais próprio é uma forma de abertura do
Dasein. A compreensão existenciária que significa, segundo o filósofo da Floresta Negra o
‘projetar-se na mais própria possibilidade fáctica do poder-ser-no-mundo’.278 Abertura esta
que também se constitui pela disposição afetiva e discurso.
A compreensão da chamada da consciência chama ao Dasein na estranheza de sua
singularidade. O estranhamento desvelado no compreender se abre genuinamente por meio da
disposição afetiva da angústia. Pela compreensão da chamada o Dasein é conduzido diante da
276 Id. Ibid., p. 311. 277 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 313. 278 Id. Ibid., p. 313.
116
estranheza de si mesmo. ‘O querer-ter-consciência se converte em disponibilidade para a
angústia’279.
O terceiro momento essencial da abertura é o discurso. A chamada, como discurso
originário, não ‘admite’ réplicas ou ‘contra discursos’, pois este se apropria do conteúdo da
chamada, sem encubrimentos. O clamor apresenta o contínuo ser-culpável, trazendo de volta
o si-mesmo do Dasein que regularmente se encontra ‘perdido’ ou encoberto no falatório.
Afirma Heidegger que o ‘modo de articulação do discurso que corresponde ao querer-ter-
consciência é o silêncio (Verschwiegenheit)’280. O silêncio, o calar é parte essencial do
discurso e somente pode calar quem tem algo a dizer. A chamada que explicita o poder-ser
mais próprio surge como silêncio; o clamor clama desde a silenciosidade do estranhamento,
conclamando o Dasein a retornar à quietude de seu ser. Pelo silêncio que silencia, cala o
falatório da publicidade. É na silenciosidade que o querer-ter-consciência compreende
adequadamente o discurso silencioso. Pelo fato de no falatório a voz da consciência não ser
percebida, não representa que a chamada silenciosa da consciência não seja efetiva ou
inexistente, mas demonstra apenas que o impessoal encobre a sua possibilidade de dar
ouvidos ao clamor silencioso da consciência.
O querer-ter-consciência é constituído, portanto pela compreensão – como projeto no
mais próprio ser-culpável -, pela disposição afetiva da angústia e pelo discurso silencioso. ‘O
calado projetar-se em disposição de angústia para o mais próprio ser-culpável’281 é chamado
por Heidegger como resolução (Entschlossenheit). Resolução como um modo privilegiado de
abertura do Dasein; é a ‘incumbência específica de Dasein de abrir a si mesmo para o
aberto’282. Entschlossenheit que se relaciona com Erschlossenheit – abertura, a diferença da
partícula - ent em vez de er – que marca a passagem do estado de abertura ao tomar a cargo
esse estado. Abertura que para Heidegger representa a ‘verdade originária’, como uma forma
constitutiva do ser-no-mundo do Dasein; a verdade é um existencial fundamental do Dasein.
279 Id. Ibid., p. 314. 280 Id. Ibid., p. 314. Schweigen: estar em silêncio. Verschweigen: manter silêncio sobre algo, omiti-lo. Verschwiegenheit: reticência, discrição. ‘Somente quem pode falar pode manter-se em silêncio. Se alguma pessoa nunca diz nada, ela não pode manter-se em silêncio. [...] O silêncio brota da ‘reticência’. [...] O silêncio é um dos modos de ser da fala e enquanto tal ele é um modo definido de expressar-se sobre algo para os outros. Assim, o silêncio está envolvido no silencioso chamado da consciência e na ‘reticente decisão que arranca a ansiedade de si mesma’’. INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. p.174. 281 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 314. Márcia Cavalcante traduz este termo – Entschlossenheit – como de-cisão, outros ainda traduzem como decisão ou decisão enérgica. Rivera traduz como resolución, de onde para este trabalho foi utilizado como resolução. 282 INWOOD, M. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
117
Pela resolução se há alcançado esta verdade originária do Dasein, que abre o ser-no-
mundo em sua totalidade. Pela abertura do mundo também se descobrem o ente à mão e o
ente que está-aí. Como existente fáctico o Dasein já sempre se encontra lançado no mundo, a
um determinado ‘mundo’ que ele passa a assumir como seu. Pela facticidade o Dasein
regularmente se encontra perdido na impessoalidade das ocupações. O estar-perdido do
Dasein é interpelado pelo ser-próprio do Dasein, e esta interpelação pode ser compreendida
pela resolução. Esta abertura própria modifica o estar-descoberto do mundo e da coexistência,
não transformando ou transmutando o mundo efetivo em outro conteúdo ou realidade, mas
significa que ‘o compreensor estar voltado na ocupação para o à mão e o coestar solícito com
os outros ficam determinados agora desde o mais próprio poder-ser-si-mesmo’283. A resolução
não corta o vínculo do Dasein com o seu mundo, como tampouco transforma o Dasein em
espécie de ‘anjo’ que pairaria elevado sobre o mundo e a existência comum; o Dasein resoluto
não se subtrai ao mundo para flutuar acima dele.
A resolução conduz o si-mesmo do Dasein a estar em ocupação com os entes à mão,
como também impele à convivência solícita com os outros. Por meio deste poder-ser eleito
pelo próprio Dasein, que ele se libera para o mundo, ‘deixando’ os outros também em seu
poder-ser mais próprio, ‘incluindo este poder-ser na abertura da solicitude antecipante e
libertadora’284. Desta forma, conforme concebe Heidegger, podem surgir os modos próprios
de convivência e não os acordos mesquinhos, compromissos ambíguos e invejosos ou
alianças tagarelas. O Dasein na resolução não invade as possibilidades dos outros, tornando-
se capaz de relações autênticas com os demais. Declara Haar que ‘resolvido no silêncio do Si,
o Dasein pode ir autenticamente ao encontro do outro e falar-lhe verdadeiramente, porque ele
se recolheu em si mesmo e não está meio fundido com o outro’285.
A resolução é sempre de um Dasein fáctico, existindo como e enquanto ato
resolutório (Entschluss). Ato resolutório que se projetou a si mesmo em resolução. ‘O ato
resolutório é precisamente o primeiro projetar-se e determinar que, cada vez, abre as
possibilidades fácticas’. A que a resolução abre somente poderá ser esclarecido e respondido
por cada Dasein mesmo, de modo que não há um ideal universal ao qual a resolução abre. À
resolução pertence uma indeterminação existenciária que caracteriza o ser-lançado, que tem
como contrapartida uma determinação existencial.
283 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 315. 284 Id. Ibid., p. 316. 285 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 58.
118
Enquanto aberto em seu ‘aí’ o Dasein já sempre se encontra na verdade e na não-
verdade. A resolução se apropria propriamente da não-verdade. O Dasein facticamente se
encontra geralmente na irresolução, entregue ao domínio do impessoal. Nesta situação da
interpretação da publicidade a sensação vivida pelo Dasein é de que tudo já sempre se
encontra ‘resolvido’, mas na verdade, ninguém ‘se resolve’. ‘A resolução significa deixar-se
despertar desde o estar perdido no impessoal [...] somente a resolução dá ao Dasein sua
autêntica transparência’286.
Na resolução está em jogo o mais próprio poder-ser, que enquanto lançado na
existência, se projeta para determinadas possibilidades fácticas. O ato resolutório descobre o
que é facticamente possível, assumindo-o como o poder-ser mais próprio, possível no
impessoal. De acordo com as palavras de Pasqua, ‘a existência resoluta reduz tudo a si
mesma, ela ousa ser si mesma a fundo [...] não se separa, contudo, do mundo, nem se isola
dos outros. Ela permanece existencialmente ser-no-mundo e ser-em-comum’287. A esta
determinação existencial do Dasein, que abarca os momentos constitutivos do fenômeno
existencial, Heidegger denomina como situação.
A situação remete a uma significação espacial. Como ser-no-mundo ao Dasein
pertence uma particular espacialidade, caracterizada pelos fenômenos do distanciamento e
direcionalidade. Como ser-no-mundo o Dasein determina o seu ‘lugar’ específico, que é
constituído pela abertura. ‘Assim como a espacialidade do ‘aí’ se funda na abertura, assim
também a situação tem seus fundamentos na resolução. A situação é o ‘aí’ que cada vez se
abre na resolução, e é enquanto ‘aí’ como o ente existente ex-siste (ist da)’288. A situação
designa, sobretudo a determinação pela qual a existência decide acerca de seu próprio ‘lugar’.
A situação é por e na resolução, abrindo a conjuntura dos fatos, das circunstâncias. Para Haar
a situação é o ‘aí’, ‘simultaneamente espacial e temporal onde os acontecimentos ganham
sentido [...] a situação não é o conteúdo dos acontecimentos, mas a maneira como eles podem
ser compreendidos. Ela pertence ao possível’289. Estando no modo impessoal, na publicidade
a situação encontra-se fechada, pois ‘a gente’ somente conhece ‘situações em geral’.
A resolução conduz o ser do ‘aí’ à existência de sua situação. Pelo testemunho da
consciência, como querer-ter-consciência, a resolução delimita a estrutura existencial do ser-
próprio do Dasein. Compreendendo originalmente a chamada da consciência, que intima ao
286 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 316-317. 287 PASQUA, H. Introdução à leitura do Ser e Tempo de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. 288 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 317. 289 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 58.
119
poder-ser, ‘não propõe um ideal vazio de existência, senão que chama a entrar na situação’290.
Compreendendo corretamente o clamor da consciência, numa interpretação existencial,
permite perceber a consciência como o modo de ser no qual o Dasein, ‘testemunhando o
poder-ser mais próprio, torna possível para si mesmo sua existência fáctica’291.
A resolução não é um mero representar cognoscitivo da situação, mas primordialmente
se encontrar na situação. O Dasein enquanto resoluto atua; este atuar do Dasein não significa
uma forma oposicional ao lado teórico. Haar interpreta que ‘compreender uma situação não é
para o Dasein colocá-la perante si (Vorstellen) ou colocar-se perante ela, mas é, pelo
contrário, colocar-se nela’292. O cuidado abarca o Dasein de modo originário e total, já
pressuposto sempre como todo, antes de qualquer diferenciação ou divisão entre prático e
teórico. ‘A resolução não é senão o modo próprio do cuidado pelo qual o cuidado se cuida e
que somente é possível como cuidado’293.
Tendo analisado o ser-para-a-morte do Dasein ficou claro que o modo próprio de estar
voltado para a morte é a antecipação. E o testemunho do modo próprio de poder-ser do
Dasein ficou agora esclarecido como resolução. Podem ou como podem estes fenômenos se
unir? Respostas sobre a conexão destes dois fenômenos poderão ser alcançadas e
estabelecidas, mantendo presente na interpretação que o ente investigado é o Dasein, que
essencialmente é existência, que não possui o modo de um ente à mão que pode ser
completado por partes. A compreensão e interpretação do nexo destes fenômenos, como uma
resolução precursora, deve ser projetada nos fenômenos existências. Daí que a resolução
antecipadora não pode ser uma construção arbitrária ou idealista, mas se constitui para o
Dasein como uma extrema possibilidade de existência.
A resolução é definida, portanto como o ‘projetar-se, silencioso e disposto à angústia,
para o mais próprio ser-culpável’294. Ser-culpável que pertence ao ser do Dasein e é definido
como o ‘ser fundamento negativo de uma niilidade’, fundamento que o Dasein mesmo não
colocou, mas no qual foi colocado e que deve assumir. Culpabilidade que é anterior a
qualquer quantificação; ser-culpável que é constitutivo do Dasein e não algo que ele possa
optar ou que ele é e em outros momentos não é. A resolução que se estrutura também ao se
projetar no ser-culpável, e a resolução somente se torna própria quando compreende o ser-
culpável como constante. Esta compreensão é possível quando o Dasein se abre ‘até o fim’,
290 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 318. 291 Id. Ibid., p. 318. 292 HAAR, M. Heidegger e a essência do homem. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. p. 59. 293 HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2 ed. Santiago de Chile: Editorial Universitária, 1998. p. 318. 294 Id. Ibid., p. 324.
120
como estar voltado para o fim. Para Heidegger a resolução chega a ser propriamente o que ela
pode ser ‘quando é um compreensor ser-para-o-fim, ou seja, um antecipar-se para a morte’; a
resolução ‘implica o estar voltado de um modo próprio para a morte como a possível
modalidade existenciária de sua propriedade’295.
Neste avanço fenomenológico da exposição e interpretação dos fenômenos
existenciais do Dasein, a resolução pode significar também como o ‘deixar-se chamar para
adiante, para o mais próprio ser-culpável’296. A culpabilidade constante do Dasein constitui-se
como uma possibilidade existencial de estar em débito própria ou impropriamente. A
culpabilidade originária é concebida como um poder-ser-culpável do Dasein, na qual a
resolução se projeta, se compreendendo. A compreensão é própria quando a resolução é
originariamente o que ela tende a ser. O ser originário do Dasein para o seu poder-ser foi
identificado como o ser-para-a-morte e a antecipação abre esta possibilidade como
possibilidade. Desta forma, conforme afirma Heidegger ‘a resolução somente enquanto
precursora chega a ser um originário estar voltado para o mais próprio poder-ser do Dasein. A
resolução somente compreende o ‘poder’ do poder-ser-culpável quando se ‘qualifica’ como
um ser-para-a-morte’297.
O Dasein resoluto assume propriamente o fato existencial de que é o fundamento
negativo de sua niilidade. A morte sendo a possibilidade da impossibilidade de existência,
figura como uma absoluta niilidade do Dasein. O Dasein enquanto cuidado é fundamento
lançado de sua morte. A antecipação da morte manifesta o ser-culpável do Dasein a partir do
ser todo ou da integralidade do Dasein. Segundo escreve Heidegger ‘o cuidado leva consigo
com igual originariedade morte e culpa. Somente a resolução precursora – antecipadora –
compreende em forma própria e íntegra, ou seja, originária, o poder-ser-culpável’298.
O constante estar perdido na impessoalidade é revelado pelo clamor da consciência. A
resolução traz de volta o Dasein para o seu mais próprio poder-ser-si-mesmo.
Compreendendo o ser-para-a-morte como a possibilidade mais própria que o poder-ser se
torna transparente como propriedade para o Dasein. O clamor da consciência não se atém ao
‘mundano’ no qual o Dasein regularmente se encontra, mas singulariza o Dasein no seu ser-
culpável, para que seja assumido propriamente. A singularização no mais próprio poder-ser
abre a antecipação para a morte como a possibilidade não-respectiva. É então a resolução
295 Id. Ibid., p. 324. 296 Id. Ibid., p. 325. 297 Id. Ibid., p. 325. 298 Id. Ibid., p. 325.
121
antecipadora que ‘faz ressoar inteiramente na consciência o poder-ser-culpável com o caráter
maximamente mais próprio e não-respectivo’299.
O fenômeno da resolução conduz também diante da verdade originária da existência.
Como resoluto o Dasein se desvela para o poder-ser fáctico. À verdade pertence sempre uma
respectiva certeza; estar-certo como apropriação do que se abriu e descobriu. A verdade da
existência exige um estar-certo como um manter-se ou ater-se ao que a resolução abre. A
situação não pode ser prevista ou calculada, mas se abre previamente indeterminada, aberta a
determinações. A certeza então deve ater-se ao que foi aberto na resolução, compreendendo
que a resolução deve se manter aberta para as possibilidades factuais. ‘A certeza do ato
resolutório significa: manter-se livre para uma retomada possível e de fato necessária’300. O
ter-por-verdadeiro não deixa recair para a irresolução, pelo contrário, ‘ter-por-verdadeiro é
decidir com propriedade pela repetição de si mesmo [...] tende a manter-se permanentemente
livre, ou seja, livre para o poder-ser todo do Dasein’301. Na sua morte o Dasein deve retomar a
si mesmo e ‘estando constantemente certo dela, antecipando-a, a resolução logra sua própria e
cabal certeza’302.
Como o Dasein encontra-se cooriginariamente também na não-verdade, a resolução
antecipadora mostra também a certeza originária do estar fechado, mantendo-se aberto para
uma possível perda no impessoal. A irresolução é concomitante certa para o Dasein. A
indeterminação do poder-ser é compreendida em cada ato resolutório na situação. Esta
indeterminação que se manifesta integralmente no ser-para-a-morte. A antecipação conduz o
Dasein diante de uma possibilidade, que constantemente certa é em cada momento
indeterminado quando esta possibilidade se transformará em impossibilidade. A antecipação
revela que o Dasein se encontra ‘lançado’ na indeterminação da situação limite e que na
resolução, por ela alcançaria o seu modo próprio de poder-ser-todo. ‘A indeterminação da
morte se abre originariamente na angústia [...], a resolução se esforça para fazer-se capaz
desta angústia originária’303. A angústia remove todo encobrimento do estar entregue a si
mesmo do Dasein, levando diante do nada, desvelando a niilidade que determina o Dasein
como seu fundamento; fundamento que o Dasein é enquanto ser-lançado na morte.
Somente como resolução antecipadora é que a resolução é inteira e o que ela
propriamente pode ser. Isto permite esclarecer a interpretação de que a antecipação não é uma
299 Id. Ibid., p. 326. 300 Id. Ibid., p. 326. 301 Id. Ibid., p. 327. 302 Id. Ibid., p. 327. 303 Id. Ibid., p. 327.
122
criação idealista no ser do Dasein, mas uma modalidade de poder-ser testemunhado no
próprio Dasein. Conforme Heidegger a antecipação deve ser concebida como a ‘possibilidade,
escondida na resolução existenciariamente testemunhada, do modo próprio desta resolução,
possibilidade que desta maneira se torna co-testemunhada também ela mesma’304. Afirma
ainda o autor que a pergunta pelo ser-inteiro do Dasein é respondida na resolução, segundo as
palavras do parágrafo 62 de ST, onde conceitua quase que conclusivamente sua concepção e
compreensão sobre a resolução precursora.
Se a resolução enquanto própria tende à modalidade definida pelo antecipar-se, e se o antecipar-se constitui o modo próprio do poder-ser-todo do Dasein, então na resolução existenciariamente testemunhada está co-testemunhado também um modo próprio do poder-ser-todo do Dasein. [...] A resolução precursora é uma compreensão obediente à chamada da consciência, a qual libera a possibilidade de a morte apoderar-se da existência do Dasein [...] A resolução antecipadora brota da sóbria compreensão das fundamentais possibilidades fácticas do Dasein. 305
304 Id. Ibid., p. 328. 305 Id. Ibid., p. 328.
123
CONCLUSÃO
Estas linhas finais não possuem um caráter estrito de conclusão no sentido de ato eu
efeito de levar a termo ou a uma completude. Tem muito mais o intuito de apresentar com
brevidade algumas considerações em sentido de síntese daquilo que no decorrer do trabalho
foi exposto. As considerações finais não vêm a ser um coroamento, mas uma espécie de limite
ou de parada obrigatória. Assim, este trabalho, talvez como a filosofia de Heidegger, foi
muito mais um caminho, uma constante busca, do que a tentativa de estabelecimento de
verdades incondicionais ou arbitrárias.
Embora o trabalho tenha se constituído como um acompanhar da filosofia de
Heidegger, o foi no sentido de adentrar-se nesta filosofia. Não se constituiu como uma mera
repetição transcrita de idéias do ‘pensador-mor’ que orientou o trabalho, mas foi no intuito de
colocar-se no caminho, de também assumir as questões e interrogações que o orientaram; de
também experimentar o espanto e encanto que as questões filosóficas provocam e invocam;
de também se apropriar e deixar ser apropriado pelas interrogações e pelas diversas respostas
apresentadas pelo autor. A filosofia e o filosofar são de certa forma uma opção de vida; este
trabalho foi envolvido como um trecho deste caminhar em que o viver filosófico se constitui.
Portanto, caminho que está sempre em constante construção, a ser trilhado...
Pressupondo a importância e centralidade do filósofo em referência, bem com da obra
que foi tomada como base principal para o desenvolvimento deste trabalho, foi primeiramente
necessário questionar o propósito que se propunha. A filosofia de Heidegger mantém como
questão central e fundamental a questão e interrogação pelo ‘sentido do ser’. A questão do
sentido do ser que foi esquecida durante grande parte da história da filosofia, e ainda,
esqueceu-se deste esquecimento; questão que agora merece e necessita ser novamente
inquerida. Sob certo aspecto, assim como a obra Ser e Tempo primeiramente projetada por
Heidegger, permaneceu incompleta, neste trabalho não foi dada uma resposta definitiva e
completa sobre a questão do sentido do ser. Foi apontado um caminho preparatório para uma
efetiva análise, que pode conduzir a respostas mais completas e satisfatórias; o que não
representa um abandono da questão ou do propósito.
Heidegger propôs um método que ficou reconhecido como fenomenológico
hermenêutico. Fenomenologia que ficou conceituada como ‘fazer ver a partir de si mesmo
aquilo que se manifesta, tal como a partir de si mesmo se manifesta’. A questão do sentido do
124
ser questiona-se a partir de um ente privilegiado ôntica e ontologicamente: o Dasein. Por meio
da interpretação, compreensão e explicitação hermenêutica do ente Dasein, que Heidegger
elabora a pergunta fundamental do sentido do ser.
Rompendo com a tradição filosófica de Aristóteles de ver o Dasein – homem – como
uma substância, bem como também se contrapondo ao paradigma do sujeito/objeto,
Heidegger apresenta o Dasein como ser-no-mundo – a essência do Dasein é a sua existência.
O Dasein e o mundo não são substâncias isoladas que em algum momento eventual ‘se
encontram’. O mundo não se resume aos entes dispostos num determinado espaço físico, mas
se constitui a partir da mundanidade. O Dasein é sempre abertura para o mundo. Como ser-
no-mundo o Dasein já sempre e ‘incondicionalmente’ é ser-com-os-outros. Sendo-no-mundo
relaciona-se na forma de ocupação com os instrumentos e em solicitude com o outro Dasein.
O Dasein se constitui como ser-em, pelos existenciais da disposição afetiva,
compreensão e discurso. O Dasein é ser-no-mundo ao modo de estar lançado na existência. O
estar-lançado na existência revela uma tríplice estrutura. O Dasein já sempre está jogado na
existência, não tendo notícias de suas raízes, de seu fundamento. Capta-se como um ente de
possibilidades e estrutura o seu estar lançado como projeto. Mas é também decaída. Estar
lançado é facticidade (disposição afetiva), projeto é existência (compreensão) e decaída é
articulação (discurso). Existência que pode ser autêntica ou inautêntica, assumida própria ou
impropriamente.
A angústia é a disposição afetiva básica – angústia que se diferencia do medo ôntico.
Angústia que revela a estranheza de ser-no-mundo, que desvela a dimensão vazia dos entes,
pelo qual os entes ‘caem no nada’. O Dasein se angustia diante do seu ser-no-mundo como
lançado na existência, angustia-se pelo seu poder-ser-no-mundo. Dasein que é também
cuidado, que Heidegger define como ‘o ser do Dasein é um antecipar-se-a-si-sendo-já-em (no
mundo) em-meio-de (o ente que comparece dentro do mundo). Cuidado que é denominado
como o ser do Dasein.
Constituindo-se como possibilidade e já sempre sendo adiante de si mesmo, confronta-
se o Dasein com a questão do poder-ser-todo. O Dasein é sempre uma totalidade por meio
dos existenciais, a pergunta do ser total é mais no sentido da integralidade (Ganzheit), bem
como pelo ser próprio. O Dasein ‘depara-se’ então com o seu ser-para-a-morte. Tema este que
foi largamente – e sob vários aspectos - analisado no decorrer deste trabalho. Morte que para
o Dasein não se constitui como um evento que lhe surge do exterior, não sendo um falecer,
pois o Dasein já sempre é voltado para o fim, como ser-para-o-fim. O Dasein é sempre
possibilidade, e neste sentido Heidegger caracteriza a morte como a possibilidade da
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impossibilidade da existência do Dasein. A morte que é sempre assumida pelo próprio
Dasein, que não pode ser relegada ou delegada, bem como o Dasein não pode assumir o ser-
para-a-morte de outro. O estar voltado para a possibilidade denomina-se como um antecipar-
se para a possibilidade. Assim considera Heidegger também deve ser assumido o ser-para-a-
morte de forma verdadeira e autêntica; como uma antecipação para uma possibilidade que é
própria, não-respectiva, insuperável, certa e indeterminada. Como ser-para-a-morte, em sua
finitude, na antecipação abre a possibilidade como tal e torna o Dasein livre para ela.
Com a antecipação do verdadeiro ser-para-a-morte surge a possibilidade de um modo
próprio do poder-ser-inteiro ou poder-ser total do Dasein. Este poder-ser inteiro requer um
testemunho, que é constituído pela consciência. Consciência como um chamado que rompe a
escuta do impessoal e silenciosamente chama a assumir o mais próprio poder-ser do Dasein.
Chamada que não revela ao Dasein nenhum conteúdo específico, como não revela nenhum
mandamento ou admoestação moral; chamada esta que se torna possível por meio do cuidado,
conclamando o seu mais próprio poder-ser.
A chamada da consciência revela ao Dasein a sua culpabilidade (Schuldigsein).
Culpabilidade que funciona com a condição de possibilidade para toda e qualquer culpa
ôntica. Culpabilidade que Heidegger ‘identifica’ em duas idéias. A primeira idéia de
culpável: ‘ser-fundamento de um ser que está determinado por um não, sendo fundamento de
uma niilidade’. O Dasein não é o seu fundamento, mas assume-se como ser-fundamento, daí a
culpabilidade originária. Nada pode o Dasein com sua origem, mas tem que assumir este nada
poder. A segunda idéia da culpabilidade: como existência o Dasein é projeto, assumindo
determinadas possibilidades e necessariamente renunciando a outras. O Dasein só é livre ao
escolher, e escolhendo ele é responsável pelas escolhas feitas, bem como lhe pesam as ‘não
escolhas’, que ele carrega como culpa.
O querer-ter-consciência, constituído pela compreensão, como projeto do mais próprio
ser-culpável, constitui-se também pela angústia e pelo discurso silencioso. Chega-se com isto
ao que Heidegger denomina como resolução (Entschlossenheit): ‘o calado projetar-se em
disposição de angústia para o mais próprio ser-culpável’. Resolução que é um modo
privilegiado de abertura, como deixar-se chamar para adiante, para o mais próprio ser-
culpável. Resolução que é sempre antecipadora, constituindo-se como originária quando é um
compreensor ser-para-o-fim, ou seja, um antecipar-se para a morte. Desta forma é injusta a
brincadeira relatada por Karl Löwith: alguns alunos de Heidegger, teriam se manifestado
afirmando ‘estamos resolvidos, só não sabemos a que’. O Dasein resoluto já sempre sabe o
que tem que fazer, ao escutar e estar aberto para o seu mais próprio poder-ser total. Pelo ato
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resolutório o Dasein descobre as possibilidades fácticas a partir da revelação do poder-ser
mais próprio, e as assume como possibilidades a partir do viver cotidiano.
Por meio da resolução antecipadora se tornou visível a totalidade e a autenticidade do
Dasein. Com isto chega-se praticamente ao término extensivo deste trabalho, tornando
possível a passagem de uma analítica existencial, fazendo a passagem para a análise da e a
partir da temporalidade. Foi traçado um caminho preparatório da discussão da temporalidade.
Junto a isto vale destacar um ponto importante da obra de Heidegger, presente neste trabalho:
a circularidade ou círculo hermenêutico. Compreendendo a ontologia fundamental proposta
por Heidegger como uma circularidade – não como círculo vicioso, mas como em forma de
espiral – é possível compreender o Dasein como ek-sistência.
Como o cuidado é o ser do Dasein, a temporalidade é o sentido do ser do Dasein.
Sendo este trabalho um caminho preparatório para uma análise do Dasein e do Ser a partir da
temporalidade, vale destacar alguns aspectos, pelos quais se torna possível vislumbrar a
imbricação de todos os elementos apontados neste texto, conduzindo a uma compreensão da
temporalidade autêntica e da temporalidade como sentido do cuidado. O Dasein resoluto vai
antecipadamente ao encontro de sua morte e remonta ao passado antes de decidir o que vai
empreender no presente. O Dasein possui um futuro que se encerra com sua morte, um
passado que remonta para seu nascimento ou além dele, bem como um presente. A estes
momentos Heidegger denomina ekstases – êxtases.
O futuro é o êxtase primário do Dasein, indo antecipadamente em direção à sua morte;
vai em direção a si mesmo a partir do futuro. A partir de sua morte, de seu futuro ele retroage
numa volta ao passado; passado que permanece no presente e conforma a situação presente do
Dasein. O passado que é relevante para a situação presente, emerge do futuro. O Dasein então
retroage a partir do passado, entrando no presente, onde decide sobre seu agir. Esta estrutura
triádica da temporalidade corresponde também à estrutura triádica do cuidado. O primeiro
elemento – ser-adiante-de-si-mesmo – envolve o futuro; todo Dasein é adiante de si mesmo,
que na resolução toma a forma de ir antecipadamente ao encontro de sua morte. O futuro
pertence à compreensão e ao futuro pertence a existência, que em sua forma autêntica é o
saber como viver. O segundo elemento – já-ser-no-mundo – pertence ao passado; o Dasein
lançado na existência – a facticidade. Ao Dasein se lhe é revelado seu estranhamento como
ser-no-mundo e assume a culpa de não ser suas raízes. O terceiro elemento – ser-em-meio-a –
envolve o presente, o deixar-se encontrar; o estar presente em suas ocupações e na solicitude
aos outros.
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