a arte kaigang na produção de objetos, corpos e pessoas

Upload: jose-juvenal-gomes

Post on 15-Oct-2015

45 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • A ARTE KAINGANG DA PRODUO DE OBJETOS, CORPOS E PESSOAS:

    Imagens de relaes nos territrios das Bacias do Lago Guaba e Rio dos Sinos

    Orientador: Prof. Dr. Sergio Baptista da Silva

    Porto AlegreMaro, 2010

    Damiana Bregalda Jaenisch

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

    A ARTE KAINGANG DA PRODUO DE OBJETOS, CORPOS E PESSOAS:

    Imagens de relaes nos territrios das Bacias

    do Lago Guaba e Rio dos Sinos

    DAMIANA BREGALDA JAENISCH

    ORIENTADOR: PROF.DR. SERGIO BAPTISTA DA SILVA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obteno do grau de mestre em Antropologia Social.

    PORTO ALEGRE, MARO DE 2010.

  • 1

    DAMIANA BREGALDA JAENISCH

    A ARTE KAINGANG DA PRODUO DE OBJETOS, CORPOS E PESSOAS: Imagens de relaes nos territrios das Bacias

    do Lago Guaba e Rio dos Sinos

    DDiisssseerrttaaoo aapprreesseennttaaddaa aaoo PPrrooggrraammaa ddee PPss--GGrraadduuaaoo eemm AAnnttrrooppoollooggiiaa SSoocciiaall ddaa UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddoo RRiioo GGrraannddee ddoo SSuull ppaarraa oobbtteennoo ddoo ggrraauu ddee mmeessttrree eemm AAnnttrrooppoollooggiiaa SSoocciiaall..

    AApprroovvaaddaa eemm:: 1122//0044//22001100

    BBAANNCCAA EEXXAAMMIINNAADDOORRAA::

    PPrrooff.. DDrr.. SSeerrggiioo BBaappttiissttaa ddaa SSiillvvaa UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddoo RRiioo GGrraannddee ddoo SSuull

    PPrrooff.. DDrr.. AAnnaa EElliissaa ddee CCaassttrroo FFrreeiittaass UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddoo PPaarraann

    PPrrooff.. DDrr..CCaarrllooss AAllbbeerrttoo SStteeiill UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddoo RRiioo GGrraannddee ddoo SSuull

    PPrrooff.. DDrr.. RRooggrriioo RReeuuss GGoonnaallvveess ddaa RRoossaa UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall ddee PPeelloottaass

  • 2

    AAggrraaddeecciimmeennttooss

    Sem a possibilidade de troca com tantas pessoas, mais ou menos presentes no percurso de minha pesquisa, este trabalho no existiria. As experincias de muitos encontros foram a base desta escrita, por isso, a autoria desta dissertao tambm de cada uma destas pessoas. Meu agradecimento:

    A Sergio Baptista da Silva, que me orientou e incentivou desde a graduao. Os caminhos acertados so prolongamentos dos seus. Minha sincera gratido;

    Aos professores do Programa de Ps Graduao em Antropologia Social, pela formao. A Cludia Fonseca, pelo entuasiasmo com que vive e ensina Antropologia; a Sergio Baptista da Silva, pelo ensino integral em etnologia, por ter acompanhado tambm meu estgio docente; a Carlos Steil pelas aulas motivadoras e por aceitar compor a banca de avaliao de meu trabalho;

    coordenao e secretaria do PPGAS/UFRGS pelo profissionalismo e apoio para lidar com os trmites burocrticos;

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES, pelo suporte concedido durante um ano de bolsa de pesquisa;

    A Ana Freitas, Rogrio Rosa e Miriam Chagas, pela contribuio e acompanhamento de minha trajetria em Antropologia; aos dois primeiros, por aceitarem novamente compor a banca de avaliao de meu trabalho;

    A Ana Cristina, Mnica, Maria Paula e Patricia, tambm etnlogas em formao, com quem compartilhei caminhos ou que me inspiravam pelo modo como trilhavam os seus. Aos demais colegas que integram o Ncleo de Antropologia das Sociedades Indgenas e Tradicionais NIT, que me inspiraram muitas vezes com suas reflexes e atitudes;

    s artistas plsticas Ana e Ceres, por possibilitarem o acompanhamento do projeto e exposio de arte; aos que receberam a mim e aos Kaingang nos museus: Rafael Corteletti, Pedro Igncio Schmitz, Jandir Damo (Museu IAP), Paulo Roberto Alves da Silva (Marsul), Maria Helena SantAna, Arienei de Abreu (Mars), Luiz A.Capra Filho, Andria, Natlia (Museu Julio de Castilhos);

    Aos meus colegas de mestrado, pela partilha de heterognias idias. Ao afeto de Rojane, bom humor de Joo, ateno e cuidado com todos de Denise. A Daiane, por ter compartilhado trabalhos em campo, interlocutores e por ter me recebido em sua casa durante a realizao do campo em Santa Maria.

    A colega e vizinha Mayra, por compartilhar idias, leituras no compreensveis, a escrita inicial da dissertao, e tantos momentos mais. A Jana, que completa o trio danado, pela dedicao e postura exemplar com os

  • 3

    amigos e a Antropologia. Minha admirao e afeto por estas amigas queridas que descobri nos dois anos de curso;

    A Manu e Stephen, pelo auxlio com o resumo em ingls;

    Aos amigos que compartilham dos bastidores a formao de uma antroploga: Manu, Milena, Rafa, Lvia, Junior, Carmem, Ellen...

    Ao Dada e Nala, pelo carinho motivador;

    Ao Samuel, pela dedicao e amor no percurso que decidimos trilhar juntos. Por compartilhar de to perto todos os momentos e escolhas. Pela pacincia e ajuda dispensadas especialmente no final da escrita desta dissertao;

    A meus pais, por apostarem em mim mesmo sem compreender exatamente meu percurso profissional. A minhas irms e tias, pelas trocas, pelo apoio de muitas horas;

    Finalmente, aos Kaingang, em especial a Joo Padilha, R Ga, Kengrimu, Jagtyg, Rkn, Xoar, Xe, Vingr, Refej e suas famlias, que me receberam em suas casas, que me ensinaram tanto sobre tantas coisas. A vocs dedico esta dissertao.

  • 4

    RReessuummoo

    Esta dissertao pautada em trabalho de campo realizado junto aos Kaingang, grupo J Meridional, especialmente os que habitam aldeias localizadas nos territrios das bacias do Lago Guaba e Rio dos Sinos. Trata das relaes estabelecidas entre os Kaingang e os objetos por eles produzidos, sejam estes objetos utilitrios, de comercializao, adornos corporais ou objetos em exposio em instituies de arte e museus. Os objetos de arte so tomados aqui como materializaes das relaes estabelecidas entre humanos e no-humanos. Prope-se uma abordagem da arte que leve em conta a agncia dos objetos sobre o cosmos, os corpos e pessoas kaingang e tambm as imagens imateriais, como sonhos, evocadas a partir de experincias de relaes dos Kaingang com espritos de humanos e no-humanos.

    Palavras-chave: Kaingang, arte indgena, objetos, imagens, exposies de arte, museus.

    AAbbssttrraacctt

    This dissertation is based on fieldwork conducted among a group of indigenous Kaingang peoples, who inhabit the villages located in the regions surrounding Lake Guaba and the Sinos River basins. The following discusses the relationship between the Kaingang and the various objects they produce, like tools, tradable items, body ornaments, and objects for display in art exhibitions or museums. The groups unique art forms are taken as a materialization of the union between human and nonhuman entities. Also it proposes an approach to art that takes into account the agency of objects on the cosmos, the bodies, the Kaingang persons and also immaterial images, like dreams, evoked from experiences of Kaingang relations with humans and nonhuman spirits.

    Key words: Kaingang, indigenous art, objects, images, art expositions, museums.

  • 5

    SSUUMMRRIIOO

    Indce de Figuras 6

    Introduo 9

    Captulo I Objetos de arte como atuantes: Mundos e seres em relao. 41

    1.1 Pessoas, objetos e cosmolgicas em relao 43

    1.2 Objetos de Arte: Trajetrias e contextos diversos 55

    1.3 No h como ser artista se no engajado no mundo 64

    Capitulo II Humanos, no-humanos, seus corpos, seus desenhos: a cosmologia kaingang em questo

    72

    2.1 Cosmos, corpos e objetos pintados, marcados: Os Kgar grafismos Kaingang

    83

    Captulo III Imagens, sonhos e formas: Associaes e relaes entre a ontologia kaingang e a perspectiva mueolgica

    93

    3.1 Quando o esprito puxa: Sonhos e relaes em territrios kaingang

    94

    3.2 Pinheiro, serra, milho e litoral Mais cinzas sobre territrios 107

    3.3 Cosmolgicas de fixao e fluidez: paradoxos que a exposio de restos humanos em museus suscita.

    120

    Captulo IV Corpos e pessoas kaingang constitudos em relao: a agncia dos no humanos e o parentesco enquanto lcus de produo

    128

    4.1 Jnka, jnka-tar, kgr e outros atuantes encorporados 130

    4.2 Fazendo corpos de parentes 146

    4.3 A contribuio feminina na construo dos corpos 156

    Consideraes Finais

    166

    Referncias 172

    Anexo 176

  • 6

    NNDDIICCEE DDEE FFIIGGUURRAASS

    Capa Apresentao do grupo de dana da m Top Pn durante a VII RAM, 2007.

    Capa

    Fig.1 R Ga confecciona uma bolinha de cip. 9

    Fig.2 Mapa Terras Indgenas Kaingang (Fonte: Tommasino, 2003. Extrado de Freitas, 2005:15)

    10

    Fig.3 Mapa com localizao das m situadas na Bacia do Lago Guaba. 13

    Fig.4 Mapa com localizao da m situada na Bacia dos Sinos 14

    Fig.5 Mapa com localizao das m situadas na Bacia Taquari-Antas 14

    Fig.6 Alianas entre primos cruzados das linhas descendentes do pa mg novecentista Gregrio Nonohay, reatualizadas em Porto Alegre (Fonte: Freitas 2005:249).

    16

    Fig.7 Refej pinta o rosto de mulher kaingang com marcas kanhru-kr durante a festa do dia do ndio no antigo acampamento kaingang, em So Leopoldo, 2007.

    17

    Fig.8 Joo Padilha, R Ga e famlia 18

    Fig.9 Jagtyg apresenta-se tocando vyjsi arco de boca no I Encontro dos Kuj na aldeia do Morro do Osso, 2006.

    19

    Fig.10 Kengrimu assa um bolo na cinza durante a VII RAM, 2007. 19

    Fig.11 Xe e Vingr no Brique da Redeno 20

    Fig.12 Xoar modelando panelas com barro. Curso de cermica na Escola Porto Alegre, 2009.

    20

    Fig.13 Rkn frente na apresentao de um dos grupos de dana da m Top Pn na VII RAM

    21

    Fig.14 Mapa com localizao dos museus visitados com os Kaingang 37

    Fig.15 Mapa da Exposio Potica dos Tranados 39

    Fig.16 Tranados kaingang Terra Indgena Ira, 2007. 41

    Fig.17a Familiares do cacique Vilson Moreira que participaram da confeco das peneiras na Terra Indgena de Rio da Vrzea.

    49

    Fig.17b Familiares do cacique Vilson Moreira que participaram da confeco das peneiras na Terra Indgena de Rio da Vrzea.

    49

    Fig.18 A Kaingang Reci visitando a exposio Potica dos Tranados em Santa Maria, 2008.

    54

    Fig.19 Painel na entrada da exposio Potica dos Tranados. 61

  • 7

    Fig.20 O Kaingang Vilson Moreira simula o ato de peneirar gre com a peneira utilizada por sua me para o preparo de alimentos.

    63

    Fig.21 Peneira exposta para comercializao na Feira Solidria em Santa Maria em 2008.

    63

    Fig.22 Vilson Moreira na Terra Indgena de Rio da Vrzea mostra as peneiras que sua me e parentes confeccionaram para serem expostas

    63

    Fig.23 As peneiras na exposio Potica dos Tranados em Santa Maria. 63

    Fig.24 Mulher kaingang destalando taquara. Terra indgena Votouro. 70

    Fig.25 Gohor ta kukr panela de barro produzida pelas mulheres kaingang. 72

    Fig.26 As mulheres carregam seus filhos tal como o fazem para proteg-los quando adentram nas matas. Apresentao dos Kaingang da m Top Pn na VII RAM.

    76

    Fig.27 Vingr modelando uma panela de barro, utilizando a tcnica do rolete. 82

    Fig.28 Vingr modelando uma panela de barro, utilizando a tcnica do rolete. 82

    Fig.29 Vingr utiliza uma semente olho de boi para alisar a superfcie da panela de barro.

    82

    Fig.30 A semente olho de boi. 82

    Fig.31 Peneiras na exposio Potica dos Tranados. 90

    Fig.32 Peneiras na exposio Potica dos Tranados.

    90

    Fig.33 Gohor ta kukr panela de barro produzida por Vingr. 90

    Fig.34 Gohor ta kukr panela de barro produzida por Xoar. 90

    Fig.35 Grafismos tj, compridos e abertos, exposio Potica dos Tranados. 91

    Fig.36 Grafismos ror, fechados, Feira do Brique da Redeno. 91

    Fig.37 Tigrinho de barro produzido por Xoar. 91

    Fig.38 Tigrinho de barro produzido por Xoar. 91

    Fig. 39 Homens kaingang sobre uma pedra na m Top Pn. Trazem consigo arcos e flechas.

    93

    Fig.40 Desenho de pri em camisetas das mulheres kaingang de Pedra Lisa, Terra Indgena Guarita.

    110

    Fig.41 O preparo do m mrj. So Leopoldo, abril de 2007. 116

    Fig.42 O preparo do m mrj. So Leopoldo, abril de 2007. 116

    Fig.43 O preparo do m mrj. So Leopoldo, abril de 2007. 116

    Fig.44 O preparo do m mrj. So Leopoldo, abril de 2007. 116

  • 8

    Fig.45 Confeco da peteca feita com palha de milho. So Leopoldo, 2007. 117

    Fig. 46 Confeco da peteca feita com palha de milho. So Leopoldo, 2007. 117

    Fig.47 Confeco da peteca feita com palha de milho. So Leopoldo, 2007. 117

    Fig.48 Confeco da peteca feita com palha de milho. So Leopoldo, 2007. 117

    Fig.49 Quadro em exposio no Museu Arqueolgico de Taquara. 118

    Fig.50 Mulheres kaingang preparam chs com remdios do mato na VII RAM. 128

    Fig.51 Jagtyg em uma apresentao pblica no Santander Cultural em 2007 137

    Fig.52 Refej coloca o cocar que foi presenteado ao kuj na festa do dia do ndio, So Leopoldo, 2007.

    140

    Fig.53 O Kuj recebe a pintura corporal de seu jamr. 140

    Fig.54 O Kuj recebe a pintura corporal de seu jamr. 140

    Fig.55 Refej, que pertence marca kam, faz pintura em mulheres que pertencem metade kanhru.

    141

    Fig.56 Refej, que pertence marca kam, faz pintura em mulheres que pertencem metade kanhru.

    141

    Fig. 57 Jagtyg toca seu sygsyg em apresentao musical no I Encontro dos Kuj. 147

    Fig.58 Apresentao do vnh-gnh tu vaj canto da guerra e da vitria no plat do Morro do Osso - m Top Pn durante o II Encontro dos Kuj.

    144

    Fig.59 Maria coletando vnh kagta no Morro Santana. 151

    Fig.60 Joo Padilha coletando vnh kagta no Morro Santana. 151

    Fig.61 Plantas empregadas pelos Kaingang para a construo de corpos leves, silenciosos. Usada para mulheres.

    157

    Fig.62 Plantas empregadas pelos Kaingang para a construo de corpos leves, silenciosos. Usada para homens.

    157

    Fig.63 Comercializao de objetos kaingang no Brique da Redeno. 166

    Fig.64 Colares de chefes Kaingang dos sculos XIX e XX integrantes do acervo etnogrfico do Museu Jlio de Castilhos, Porto Alegre. (REF. 1277/ET e REF. 1261/ET). (Fotografias de Sergio Baptista da Silva reproduzidas de Freitas, 2005)

    170

    Fig.65 Colares de chefes Kaingang dos sculos XIX e XX integrantes do acervo etnogrfico do Museu Jlio de Castilhos, Porto Alegre. (REF. 1277/ET e REF. 1261/ET). (Fotografias de Sergio Baptista da Silva reproduzidas de Freitas, 2005)

    170

  • 9

    IInnttrroodduuoo

    Esta dissertao resultado de trabalho de campo realizado entre

    os Kaingang, grupo J Meridional que habita os territrios1 que correspondem

    s florestas de pinhais, nos atuais estados de So Paulo, Paran, Santa

    Catarina, Rio Grande do Sul e a Provncia de Missiones, ao norte da Argentina

    (Freitas, 2005:13). A ocupao kaingang nesses territrios est concentrada

    atualmente em uma srie de Terras Indgenas2 demarcadas pelo estado

    brasileiro, mas tem aumentado o nmero de acampamentos - vre e aldeias -

    m formadas em territrios que extrapolam os limites das reservas oficiais.

    Este caso, por exemplo, do retorno dos Kaingang s regies das bacias

    hidrogrficas3 do Lago Guaba, Rio dos Sinos e Taquari-Antas (ver mapa em

    anexo).

    1 Utilizo aqui o conceito de territrio, tal como proposto por Tommasino (2002), como espao onde so desenvolvidas as atividades econmicas, sociais e culturais, mas tambm, espao cosmolgico. Nas palavras da autora: Territrio, para os kaingang, tambm o espao onde habitam os espritos de seus ancestrais e outros seres sobrenaturais. onde esto enterrados os seus mortos e onde os vivos pretendem enterrar os seus umbigos. (...) territrio onde vivem segundo regras estabelecidas socialmente e de acordo com o sistema de codificao simblica dos elementos naturais e sobrenaturais constitutivos da sociedade kaingang. (Tommasino, 2002:83,84). 2 Conforme Freitas (2005:15) Terra Indgena uma categoria jurdica estabelecida nos marcos da tutela prevendo estas terras como bens da unio. 3 Segundo Tommasino (1995:64, 69) apud Freitas (2005:327,328), as bacias e micro bacias so os elementos que permitem localizar geograficamente os territrios e subterritrios kaingang. Em cada subterritrio kaingang distribuem-se aldeias locais que tm como referncia os rios, serras, florestas e os cemitrios. Utilizo o conceito de bacia hidrogrfica para localizar geograficamente as aldeias onde realizei a maior parte de meu trabalho, sobre os territrios kaingang. Reconheo a importncia da utilizao do conceito para dar conta dos aspectos que envolvem os territrios habitados pelos Kaingang, mas considero que seu uso no impede que a localizao das aldeias seja tambm identificada a partir de determinado cenrio poltico/administrativo (estados, regies, municpios, bairros, etc) em que os kaingang esto implicados. A flexibilidade no emprego dos termos de localizao das aldeias leva em conta

  • 10

    Fig.2 - Mapa Territorialidade kaingang. (Extrado de Freitas, 2005:15)

    inclusive, a apropriao e utilizao das categorias espaciais administrativas pelos prprios Kaingang, especialmente quando estes esto dialogando com os fg, como era o meu caso.

  • 11

    Ao longo dos ltimos anos, alguns dos acampamentos constitudos

    na regio hidrogrfica do Guaba (ver anexo) tm se transformado em aldeias

    fixas - m, sendo que algumas j esto em processo de identificao junto

    Fundao Nacional do ndio - FUNAI, rgo responsvel pelos processos de

    identificao e demarcao das Terras Indgenas. As m Por Fi Bacia Rio

    dos Sinos, Top Pn- Bacia Lago Guaba, e as situadas em Estrela e Lajeado

    Bacia Taquari-Antas so alguns destes casos.

    A constituio de novas aldeias nos territrios das Bacias do Lago

    Guaba, Rio dos Sinos e Taquari-Antas, territrios de ocupao histrica

    kaingang, tem se intensificado desde a dcada de oitenta. As razes que tm

    levado os Kaingang a deixarem suas terras de parentes, especialmente as

    Terras Indgenas de Guarita e Nonoai para se estabelecerem nestes territrios

    so diversas. Destacam-se as que dizem respeito s rupturas polticas entre

    chefes de famlias4 e as lideranas5 polticas das Terras Indgenas, e as

    dificuldades encontradas pelas famlias de sobreviverem nestes locais (onde

    no h mais mata suficiente para coletarem ou caarem seus alimentos e os

    espaos para plantio so limitados a alguns). Valdomiro Xe Vergueiro, cacique

    da aldeia do Morro do Osso, conta que no mede esforos para trazer

    benefcios s pessoas da sua comunidade6, pois durante os anos que morou em

    Nonoai passou por muitas dificuldades, e sabe que o mesmo aconteceu com

    todos os que esto vivendo em Porto Alegre e pelos arredores.

    A vinda a Porto Alegre dos interlocutores Iracema R Ga Nacimento,

    Nilda Kengrimu Nascimento, Zlio Jagtyg Salvador (marido de Kengrimu)

    esteve relacionada sada de um importante pi pai, lder de uma famlia

    4 O modelo ideolgico de socialidade kaingang a famlia. Nesta sociedade J, a famlia centrada no poder paterno, cujo pertencimento deste homem pode ser metade kam ou kanhru, sendo esta herdada por seus filhos e filhas. Este pai o chefe de uma casa onde vivem idealmente sua mulher, filhos e filhas em cuja proximidade vivem filhas casadas, genros e netos. Esta famlia extensa o modelo pelo qual os Kaingang pensam a comunidade poltica, sendo a figura do pai - pi correspondente do cacique - pi mbg pai grande. (Freitas e Rosa, 2003). 5 Segundo Ricardo Cid Fernandes (2003:160) existe hoje nas Terras Indgenas vrias categorias polticas, as quais designam diferentes nveis de autoridade. Dentre as de maior hierarquia esto a de cacique e vice-cacique. Os cargos de capito, cabo, polcia tambm compem a liderana de um cacique. Estas categorias da hierarquia militar remontam ao perodo da histria colonial e atuao indigenista do imprio. Quando os Kaingang referem ao termo liderana, esto, pois se referindo s pessoas que ocupam espaos polticos no interior das aldeias - m. 6 Termo empregado pelos Kaingang para refereir s famlias que habitam uma aldeia - m.

  • 12

    extensa da Terra Indgena de Nonoai. As etnografias de Freitas (2005) e

    Aquino (2008) abordam com mais detalhes a sada do pi Alcindo Peni

    Nascimento daquela Terra Indgena. A trajetria de Peni marcada pela

    disputa de liderana naquela Terra Indgena, pelo posicionamento contrrio

    instalao de madeireiras nas Terras Indgenas e s prticas de arrendamento

    destas terras a posseiros brancos.

    As mobilizaes polticas de Peni contra estas prticas acabaram

    resultando na sua expulso da Terra Indgena de Nonoai em meados dos anos

    oitenta. Peni, juntamente com sua famlia e outros Kaingang que haviam sido

    expulsos, se dirigiram Terra Indgena de Mangueirinha, Paran, onde

    participaram de novas mobilizaes contra posseiros brancos. De

    Mangueirinha, esta famlia se deslocou para o territrio da Bacia do Lago

    Guaba.

    Segundo Jagtyg, quando chegaram nesta regio, nas proximidades

    da cidade de Viamo, ele e sua famlia se instalaram em um colgio que

    pertencia a alguns padres, por quem foram recebidos. Passado um ano

    aproximadamente, em que trabalharam apresentando e vendendo seu

    artesanato, conseguiram juntar dinheiro e comprar um pequeno terreno na

    Vila Jar (limite de Porto Alegre com a cidade de Viamo), onde se juntariam

    mais famlias kaingang que deixavam as Terras Indgenas do Planalto do

    estado, regio hidrogrfica Uruguai. Quando visitei recentemente este local,

    onde hoje vive a famlia de Joo Padilha e R Ga, este Kaingang mostrou-me o

    terreno atrs de sua casa, contando que aquele espao j havia chegado a

    alojar quase cem pessoas acampadas na dcada de noventa.

    Com o aumento constante das famlias que vinham principalmente

    das Terras Indgenas de Nonoai e Guarita, os Kaingang decidiram se organizar

    e demandar espaos onde pudessem viver o modo de vida kaingang, conforme

    declarou Jagtyg. Este Kaingang esteve frente na luta por um espao que foi

    conquistado atravs do Oramento Participativo de Porto Alegre em 2003. A

    conquista do terreno localizado no bairro Lomba do Pinheiro (zona leste de

    Porto Alegre) deu incio constituio da m Fag Nhin Aldeia nova da

    Lomba do Pinheiro.

  • 13

    Cises polticas internas comunidade levaram um grupo familiar e

    simpatizantes a sair da m Fag Nhin e procurar outro espao. Em 2004 eles

    passaram a ocupar um terreno prximo ao Parque Municipal do Morro do Osso

    (zona sul de Porto Alegre). Configurou-se a partir de ento a m Top Pn

    Aldeia do P de Deus, ou Aldeia do Morro do Osso, que hoje est em processo

    de identificao pela FUNAI. Estes processos de constituio de

    acampamentos -vre em territrios que historicamente so de circulao dos

    Kaingang, a posterior configurao destes acampamentos em aldeias fixas -

    m e a demanda por identificao, semelhana do que ocorreu no Morro do

    Osso, vm ocorrendo tambm nos territrios das Bacias do Rio dos Sinos e

    Taquari-Antas.

    Os mapas abaixo situam algumas destas novas aldeias sobre o

    territrio de cada uma das bacias acima mencionadas. Cabe destacar que foi

    nas aldeias situadas nas Bacias do Lago Guaba e Rio dos Sinos que desenvolvi

    a maior parte de meu trabalho.

    Fig.3 - Mapa com localizao das m situadas na Bacia do Lago Guaba

  • 14

    Fig. 4 - Mapa com localizao da m situada na Bacia dos Sinos

    Fig.5 - Mapa com localizao das m situadas na Bacia Taquari-Antas

    A noo de aldeias novas, mencionada acima, no supe a no

    ocupao histrica dos territrios em questo pelos Kaingang, mas busca levar

    em conta a recente reocupao destes espaos e a constituio de aldeias

  • 15

    fixas sobre eles. Conforme Freitas (2005:18), desde o sculo XIX os Kaingang

    circulavam e estabeleciam seus acampamentos pelo territrio do Lago Guaba,

    visando negociaes com as autoridades brancas em funo das polticas de

    aldeamento indgena na bacia do Alto Uruguai. Segundo a autora:

    (...) a criao de tais aldeamentos, pelo governo da provncia, visava liberar da ocupao indgena as terras situadas na regio hidrogrfica do Guaba (bacias dos rios Jacu, Taquari, Ca, dos Sinos e Gravata), valorizadas pela proximidade com a capital, para garantir o estabelecimento das colnias, constantemente atacadas, poca, pelos Kaingang do grupo de Doble, Braga e Joo Grande. (Laroque 2000 apud Freitas, 2005:18).

    Freitas identifica em um diagrama de parentesco que grande parte

    dos Kaingang hoje residentes na Bacia do Lago Guaba so descendentes do

    cacique Nonohay, pai de Joo Grande Nvo que durante o sculo XIX lutou

    contra o movimento de colonizao pela manuteno de suas terras nas bacias

    dos Sinos, Taquari, Ca etc.

  • 16

    CCiinnzzaa:: iinnddiiccaa ooss ppaa mmgg nnoovveecceennttiissttaass;; aa tteerrrriittoorriiaalliiddaaddee ddee JJoooo GGrraannddee rreemmeettee RReeggiioo HHiiddrrooggrrffiiccaa ddoo GGuuaabbaa.. AAzzuull:: iinnddiiccaa ppeessssooaass rreessiiddeenntteess aattuuaallmmeennttee eemm PPoorrttoo AAlleeggrree..

    AAmmaarreelloo:: iinnddiiccaa ooss KKaaiinnggaanngg qquuee aaccaammppaarraamm oouu rreessiiddiirraamm eemm PPoorrttoo AAlleeggrree nnaass ddccaaddaass ddee 11994400--11996600..

    VVeerrddee:: iinnddiiccaa ccrriiaannaass nnaasscciiddaass nnaa VViillaa SSaaffiirraa,, MMoorrrroo SSaannttaannaa..

    RRooxxoo:: iinnddiiccaa ccrriiaannaass nnaasscciiddaass nnaa AAllddeeiiaa kkaaiinnggaanngg ddoo MMoorrrroo ddoo OOssssoo..

    LLaarraannjjaa:: iinnddiiccaa ccrriiaannaass nnaasscciiddaass nnaa AAllddeeiiaa kkaaiinnggaanngg ddaa LLoommbbaa ddoo PPiinnhheeiirroo..

    Fig.6 Diagrama das alianas entre primos cruzados das linhas descendentes do pa mg novecentista Gregrio Nonohay reatualizadas em Porto Alegre. (Extrado de Freitas 2005:249)

    Este diagrama de parentesco permite traar a genealogia de

    interlocutores centrais em meu trabalho. o caso, por exemplo, dos casais

    Joo Carlos Padilha e Iracema R Ga Nascimento, Zlio Jagtyg Salvador e Nilda

    Kengrimu Nascimento, Valdomiro Xe Vergueiro e Erondina Vingr dos Santos,

    entre outros. Alm disso, este diagrama cumpre a importante tarefa de

    ilustrar a continuidade da ocupao territorial kaingang na regio hidrogrfica

    do Guaba pelos descendentes do pi mg Joo Grande Nvo e do cacique

    Nonohay.

    Desde a elaborao do diagrama acima, acompanhei algumas

    alteraes, principalmente com relao a dinmicas que envolvem as pessoas

    com quem tive contato direto. Destaca-se, por exemplo, a ida de Darci Ppo

  • 17

    Rodrigues Fortes7 ao territrio da bacia do Rio dos Sinos, onde este integra a

    liderana da m Por Fi. Jagtyg, juntamente com sua famlia, se deslocou em

    2008 para a Terra Indgena de Serrinha, onde moram algumas cunhadas suas.

    A vida na aldeia da Lomba do Pinheiro vinha se tornando difcil para a famlia

    de Jagtyg, que decidiu buscar outra terra para viver com sua famlia. Em 2008

    este Kaingang passa a demandar o manejo da Floresta Nacional de Canela

    (Bacia do rio Ca), cujo territrio corresponde ao ocupado por Nvo. Jagtyg e

    sua famlia aguardam o andamento do processo corrente no Ministrio Pblico

    Federal na Terra Indgena de Serrinha.

    De 2005 a 2010 pelo menos dez crianas nasceram na aldeia

    kaingang do Morro do Osso, conforme me relatou Janete Xoar Vergueiro. J

    so vrios os herdeiros desta terra, comenta a mulher kaingang ao referir s

    crianas que tiveram seus umbigos plantados na aldeia do Morro do Osso. Um

    deles inclusive seu filho mais novo.

    OOss iinntteerrllooccuuttoorreess kkaaiinnggaanngg

    Fig.7 - Refej pinta o rosto de mulher kaingang com marcas kanhru-kr durante a festa do Dia do ndio no antigo acampamento kaingang, em So Leopoldo, 2007.

    Dorvalino Refej

    Refej professor bilnge e graduando em Pedagogia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Ingressou na primeira turma de cotistas indgenas nesta universidade. professor na m Por Fi Aldeia de So Leopoldo, onde vive com sua mulher e filhos. Compe a liderana daquela aldeia, sendo um dos principais responsveis pela organizao da festa do Dia do ndio, realizada nos ltimos anos naquela aldeia. Refej est sempre mobilizado em realizar pesquisas junto aos velhos kaingang, especialmente os que hoje vivem nas Terras Indgenas. Orientou-me muitas vezes para a compreenso da cosmologia kaingang, das metades cosmolgicas, do pertencimento dos objetos s metades, pelos grafismos neles presentes. Dorvalino e sua famlia foram minha referncia central na aldeia Por Fi, recebendo-me sempre em sua casa.

    7 atualmente vice cacique da m Por Fi. Por vrios anos foi cacique daquela aldeia, tomando frente na luta por um territrio na bacia do Rio dos Sinos.

  • 18

    Fig.8 Joo Padilha, R Ga e famlia expondo seu artesanato durante a VII RAM na UFRGS, em 2007.

    Joo Padilha e Iracema R Ga

    Joo e R Ga vivem com seus filhos mais novos nas proximidades do Morro Santana. Prximo a este morro tambm vive a irm e me de Joo Padilha. Joo uma importante liderana na luta pela retomada da Terra Indgena Borboleta, que h mais de uma dcada est em vias de identificao. Tambm foi este Kaingang quem iniciou de maneira significativa a produo de cestaria em cip na Bacia do Lago Guaba. Muitos dos Kaingang que se deslocaram para esta regio na dcada de 1980 e 1990 aprenderam junto dele a coletar, tranar e vender objetos em cip. Iracema, filha de Rosa Krnr e Alcindo Peni uma grande conhecedora dos saberes e prticas dos Kaingang antigos. Foi iniciada no sistema xamnico kaingang, possui grande conhecimento dos remdios do mato - vnh kagta. R Ga muito carismtica e afetuosa. Por isso, e pelo fato de ser mulher, foi a pessoa com quem mais laos afetivos criei.

  • 19

    Fig.9 e 10 - Jagtyg apresenta-se tocando vyjsi arco de boca no I Encontro dos Kuj na aldeia do Morro do Osso, 2006. Kengrimu assa um bolo na cinza durante a VII RAM, 2007.

    Zlio Jagtyg e Nilda Kengrimu

    Minha insero entre os Kaingang se deu em grande medida a partir deste casal, quando moravam na m Fg Nhin. As primeiras rodas de chimarro, as primeiras histrias sobre o tempo dos antigos me foram contadas por eles, quando me recebiam em sua casa. Foi com Kengrimu, que irm de R Ga, que tive as primeiras lies de culinria kaingang e de cuidados com as crianas. Quando a visitava, ela fazia questo de preparar um mi rnh bolo na cinza, que eu tanto apreciava. Jagtyg conhecedor dos vnh kagta e dos rituais kaingang. Foi iniciado no xamanismo kaingang, tendo participado da realizao de diversos rituais na Bacia do Lago Guaba. tambm um exmio msico, conhece cantos, toca sygsyg (instrumento musical feito com porongo e sementes) e vyjsi arco de boca (foto ao lado). Jagtyg e Kengrimu antes de virem a Porto Alegre, residiam na T.I.8 Nonoai. Atualmente esto na T. I. Serrinha, mas retornam Bacia do Lago Guaba especialmente para comercializao de artesanato prximo s datas comemorativas como Natal e Pscoa.

    8 Sigla para Terra Indgena.

  • 20

    Fig.11 - Xe e Vingr no Brique da Redeno.

    Valdomiro Xe e Erondina Vingr

    Este casal tambm veio a Porto Alegre deixando a T. I. Nonoai. Xe atualmente cacique da m Top Pn Aldeia do Morro do Osso e tem se esforado muito para garantir o processo de identificao e demarcao desta terra, onde hoje vivem mais de vinte famlias. Tem buscado tambm dar continuidade realizao dos encontros dos kuj xams kaingang, realizado duas vezes no Morro do Osso, uma sob seu cacicado. Xe costuma dizer que sem sua mulher no conseguiria fazer nada. Quando ele sai para resolver questes diversas da comunidade ela que toma conta da famlia e de tudo o mais dentro da aldeia. Vingr costuma estar rodeada por suas filhas e netos, a quem dedica muitos cuidados. conhecedora dos remdios do mato e j trabalhou muito como parteira, entre as mulheres kaingang. Alm da produo de artesanato, vem confeccionando atualmente peas de cermica para uso e comercializao.

    Fig.12 - Xoar modelando panelas com barro. Curso de cermica na Escola Porto Alegre, 2009.

    Janete Xoar

    Ao contrrio dos outros Kaingang com quem mantive interlocuo, meu contato com Xoar bem recente. Quando realizava minhas sadas de campo iniciais para o mestrado na m Top Pn, Xoar se dispunha a vir at mim e conversar, contando-me sobre sua vida. Destas conversas imprevistas, passei a visit-la especialmente em sua banca, no Brique da Redeno. Aproximamo-nos ainda mais em funo de meu interesse em acompanhar o projeto de resgate da cermica em que Xoar participa. Xoar sobrinha de Xe, que cuida dela como filha desde que sua me falecera. Mas seguidamente Xoar se dirige a Xe e Vingr como seus pais.

  • 21

    Fig.13 - Rkn frente na apresentao de um dos grupos de dana da m Top Pn na VII RAM.

    Francisco Rkn

    Rkn irmo de Vingr, e como ela, tambm vive atualmente na m Top Pn, junto com sua mulher e filhos. membro da liderana desta aldeia e especial conhecedor das prticas antigas. Por isso, tem sido interlocutor chave para muitos antroplogos. ele quem organiza os grupos de dana kaingang do Morro do Osso, que costumam se apresentar em eventos indgenas no interior ou fora das aldeias. Conhece muitos cantos e danas kaingang, apresentando-os tambm sozinho algumas vezes. Rkn foi minha principal referncia para pensar a relao dos kaingang com os objetos que permanecem nos territrios do Lago Guaba, seja em stios arqueolgicos, seja nos museus.

    SScciioo--ccoossmmoollooggiiaa kkaaiinnggaanngg

    As m situadas nos territrios recentemente reapropriados pelos

    Kaingang - onde a maior parte de meu trabalho foi desenvolvida - so em

    grande medida articuladas a partir de grupos de parentes. Dentre outras

    razes, o faccionalismo9, instituio kaingang que marca as rupturas

    intragrupos, tem levado criao de novos acampamentos vre e aldeias -

    m pelo territrio da regio hidrogrfica do Guaba.

    A partir da constituio de uma m por grupos de parentes, os

    Kaingang destacam alguns membros, geralmente do sexo masculino, como

    lideranas polticas. Em verdade, estas lideranas geralmente so as que

    articulam a formao de uma nova m, quando o caso. A estes lderes

    polticos, tambm denominados pi, atribudo o especial papel de

    negociao com as lideranas polticas fg no indgenas, visando atender as

    demandas do grupo. No contexto atual, a demanda por terra, sade,

    educao, mas tambm as que dizem respeito ao acesso a espaos de coleta

    de cips, sementes e espaos de comercializao dos objetos produzidos por

    estas pessoas, destacam-se como prioritrias.

    9 Ver Fernandes, 2003.

  • 22

    Alm das lideranas polticas, os Kaingang apontam para a

    importncia da presena de um kuj xam kaingang que auxilia a garantir o

    bem estar de um coletivo. Alm de esta pessoa ser considerada a grande sbia

    entre boa parte dos kaingang, ela tem o poder de prever, prevenir e curar

    doenas. Destaca-se tambm o cuidado dos kuj para com as crianas, seres

    ainda bastante frgeis e expostos a perigos diversos. Esta autoridade

    espiritual vista muitas vezes como complementar autoridade poltica. As

    aldeias na regio do Guaba que tm em seu interior um kuj ou um kuj

    ainda em formao se destacam com relao s que no tm, seja pela

    realizao de rituais seja pelos cuidados com a sade dos membros da

    comunidade.

    Nas m que no contam com a presena dos kuj observa-se a

    valorizao das pessoas mais velhas e/ou das que possuem conhecimentos

    significativos de fitoterpicos e dos costumes e prticas kaingang de modo

    geral. Os kuj so muitas vezes tomados como os grandes porta-vozes da

    cultura kaingang e na falta destes, este papel atribudo aos professores

    indgenas ou s pessoas mais velhas da aldeia.

    A scio-cosmolgica dual kaingang, que divide todos os seres

    animados e inanimados em duas metades kam e kanhru diviso que

    remete ao mito kaingang de origem do mundo, segue vigente entre os

    Kaingang nas bacias do Lago Guaba e Rio dos Sinos. Com relao sociedade

    kaingang, a patrilinearidade10, exogamia de metades11 e uxorilocalidade12, to

    caractersticas deste coletivo indgena seguem sendo observadas nestes

    territrios.

    As metades cosmolgicas kam e kanhru-kr, alm de orientarem a

    organizao social kaingang, atribuem pertencimento a todos os seres que

    compe o universo, sejam eles celestes, como o sol e a lua, sejam animais,

    vegetais ou objetos. O pertencimento a uma ou outra metade faz com que os

    10 As marcas so herdadas de pai para filhos e filhas. 11 Enfatiza-se a fertilidade da unio entre contrrios, os casamentos so feitos entre membros de metades opostas e complementares. 12 desejvel que aps o casamento os genros passem a morar prximos aos sogros, auxiliando-os nos afazeres. Esta prtica no , porm, to controlada e demandada quanto de exogamia de metades.

  • 23

    seres compartilhem com os seus irmos de marca - jamr caractersticas tanto

    fsicas quanto psicolgicas ou comportamentais. No que diz respeito s marcas

    fsicas ou forma, os seres e objetos que pertencem metade kam tm os

    traos compridos e abertos como caractersticos, enquanto aos kanhru so

    atribudas as formas redondas, fechadas. Os kam costumam ser mais

    persistentes, porm vagarosos em resolues, j os kanhru so mais rpidos,

    apesar de no persistentes, por exemplo (Baptista da Silva 2001:101).

    Os kaingang com quem mantive interlocuo vm enfatizando

    tambm o aspecto anmico da sua cosmologia, isto , o fato de todos os seres,

    humanos e no-humanos possurem esprito. A substncia interna ou esprito

    dos no-humanos denominada pelos kaingang de tn. Em muitas cosmologias

    amerndias, as diferenas entre humanos e no-humanos no so estanques,

    mas so diferenas de grau (Descola 1998). Conforme aponta Descola ao

    referir aos Achuar:

    Diferentemente do dualismo moderno que distribui humanos e no-humanos em dois domnios ontolgicos mais ou menos estanques, as cosmologias amaznicas estabelecem uma diferena de grau, no de natureza, entre os homens, as plantas e os animais. Os Achuar da Amaznia equatoriana, por exemplo, dizem que a maioria das plantas e dos animais possui uma alma (wakan) similar quela dos humanos, uma faculdade que, ao assegurar-lhes a conscincia reflexiva e a intencionalidade, os inclui entre as pessoas (aents), torna-os capazes de experimentar emoes e permite-lhes trocar mensagens com seus pares e com membros de outras espcies, e, assim, com os homens. (Descola, 1986; 1993a apud Descola, 1998:25, 26).

    Mas se por um lado o carter anmico aproxima este coletivo J dos

    amaznicos, por outro, a compartimentao do cosmo kaingang o distingue

    daqueles. peculiar aos Kaingang a partilha de caractersticas entre seres que

    pertencem mesma metade cosmolgica. Neste sentido, se est tratando de

    uma scio-cosmologia anmica que tambm apresenta aspectos totmicos. De

    um cosmos cujos seres que o compe compartilham aspectos e

    caractersticas, mas tambm so compartimentados em duas metades

    complementares.

  • 24

    DDiirreecciioonnaammeennttooss tteerriiccooss

    A preocupao com o lugar que ocupam os objetos de arte kaingang

    na cosmologia deste coletivo me acompanha desde a graduao, quando

    apontei em meu Trabalho de Concluso de Curso para a importncia dos

    adornos e da pintura corporal utilizados pelos kaingang e dos instrumentos

    musicais e outros objetos utilizados pelos kuj, especialmente em rituais.

    Aqui, porm, tomo a arte e no mais o xamanismo como porta de entrada

    para pensar as relaes diversas da vida kaingang.

    Enquanto temtica ou objeto de estudo, a arte produzida por

    coletivos indgenas remete desde os estudos de Boas que tem como referncia

    sua obra A arte Primitiva de 1927 passando por diversas obras de Lvi-

    Strauss, Mauss entre outros. A produo de Lvi-Strauss e posteriormente de

    Geertz teve grande reverberao na produo brasileira acerca da arte

    indgena. Tal influncia diz respeito, porm, mais a aspectos de uma teoria

    relativa Antropologia Simblica que uma Teoria Antropolgica da Arte

    propriamente dita.

    Os estudos etnolgicos acerca da arte indgena no Brasil da dcada

    de 1980 foram marcados pela apropriao de noes caras a outras disciplinas

    como a Lingustica, a Semiologia, a Esttica. A anlise era feita a partir de

    uma abordagem que concebia a arte grfica como linguagem (Berta Ribeiro

    1987), veculo de comunicao e artifcio para entender a cultura e a

    sociedade que a produz. Na definio de Berta Ribeiro:

    Na sua qualidade de cdigo cultural, os sistemas de representao visual so mecanismos de ordenao e de comunicao da experincia, culturalmente determinados. (Berta Ribeiro, 1987:22).

    Em dilogo com outras produes em etnologia e apoiados em

    densas etnografias, trabalhos como os de Gallois (1992) entre os Waipi, de

    Vidal e Muller (1987) entre os Kayap-Xikrin, Xavante e Asurin, de Vidal e

    Lopes da Silva (1995), de Van Velthem (1994) entre os Wayana, de Seeger

    entre os Suy, apenas para citar alguns nomes, marcaram as dcadas de 1980

    e 1990 no estudo da etnologia e arte. Questes como a corporalidade e noo

  • 25

    de pessoa, centrais em meu trabalho, so refletidas por estes autores ao

    abordarem, por exemplo, a relao com a pintura e os adornos corporais.

    A partir do final da dcada de 1990 comeam a aparecer estudos

    direcionados consolidao de teorias em Antropologia da Arte. Contudo, no

    so abandonadas nem temticas correlacionadas aos estudos de objetos, como

    corporalidade, pessoa, nem influncias tericas como a Semiologia, que

    embasavam os estudos anteriores em antropologia e arte. O que surge de

    inovador neste contexto so as nfases dadas s questes colocadas acerca da

    antropologia e da arte.

    A retomada de clssicos como Mauss e de sua abordagem dos

    objetos no enquanto seres inertes, mas enquanto portadores de alma, com

    poder de fazer os outros agirem, teve importante papel neste movimento. A

    obra contempornea de Alfred Gell (1998) Art and Agency resgata as

    contribuies maussianas e sugere o conceito de agncia para pensar atributos

    como o de intencionalidade dos objetos de arte em suas redes de relaes.

    Preocupado em alargar o conceito de arte, de modo que este no se limitasse

    aos preceitos ocidentais do belo e da valorao esttica, Gell prope

    enfatizar as qualidades de agncia e intencionalidade dos objetos sob uma

    abordagem que considere os objetos de arte como pessoas (Gell, 1998:9).

    A propsito deste movimento de ruptura nos estudos de

    Antropologia da Arte Demarchi (2009), abordando pelo menos trs autores de

    referncia nestes novos estudos, Gell, Severi e Lagrou, esclarece:

    (...) se para a antropologia simblica a arte no s representa, mas significa, para quelas abordagens que proponho apresentar neste trabalho, a arte e suas imagens presentificam, ou seja, no representam uma realidade, uma natureza ou determinado aspecto da sociedade5. Assim, tanto para Gell, quanto para Severi e tambm para Lagrou, o que interessar no estudo da arte a sua capacidade de ao cognitiva pela condensao de relaes, intencionalidades e identidades complexas, contraditrias e paradoxais. (Demarchi 2009:181).

    A teoria da agncia proposta por Gell, apesar de proposta para o

    contexto da Melansia, ressou muito bem com a realidade amerndia,

  • 26

    norteando uma srie de etnografias sobre arte indgena, como as de Els

    Lagrou (2007) e Joana Miller (2007), por exemplo. A noo de agncia

    proposta por aquele autor tem se somado, no contexto dos estudos

    etnolgicos brasileiros, a alguns aspectos da teoria do perspectivismo

    amerndio, proposta inicialmente por Viveiros de Castro, bem como pode ser

    ampliada luz do que Descola props enquanto cosmologias anmicas. Ou

    seja, o status de gente ou sujeito, atribudo aos animais e plantas no

    pensamento amaznico nos leva a questionar sobre o estatuto dos objetos

    confeccionados a partir destas plantas e animais.

    Etnografias como as acima mencionadas tm demonstrado que,

    mais que simbolizar, objetos como adornos corporais presentificam a relao

    com a alteridade. Neste sentido, objetos de arte recebem o estatuto

    semelhante ao de pessoa, pois so providos de intencionalidade e contribuem

    para a constituio de pessoas humanas. o que prope Miller em seu estudo

    entre os Mamaind:

    Os enfeites usados pelos Mamaind so ndices de agncias estrangeiras e, ao serem transmitidas aos vivos pelo xam, so concebidos como materializaes da alteridade necessria para a constituio de pessoas humanas. (Miller, 2007:9)

    Mas se por um lado a teoria da arte elaborada por Gell a partir de

    coletivos melansios pode ser revisitada para pensar os coletivos amerndios,

    por outro, h diferenas importantes entre a relao das pessoas com os

    objetos na Melansia e Amaznia. Lagrou sugere que a importncia dada

    corporalidade entre os amerndios o principal aspecto de distino entre a

    relao dos melansios e dos amerndios com os objetos. Nas palavras da

    autora:

    O pensamento amerndio parece valorizar o acmulo do conhecimento encorporado, uma forma corporal-subjetiva de acumulao, ao invs de uma acumulao de relaes atravs de artefatos. Este saber do corpo estabelece relaes ancoradas numa subjetividade que se constri a partir do estar e se saber relacionado. (Lagrou, 2007:81)

  • 27

    no corpo amerndio, pois que so materializados os

    conhecimentos gerados nas relaes dos humanos entre si e destes com os

    no-humanos. importncia dos corpos para os processos de saber e conhecer

    entre os amerndios soma-se a centralidade que a corporalidade assume na

    construo da pessoa amerndia. O vnculo entre corpo e pessoa vem sendo

    trabalhado no contexto da etnologia indgena das Terras Baixas desde o artigo

    clssico de Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979). A propsito destes

    conceitos, ou autores propem:

    (...) este privilgio da corporalidade se d dentro de uma preocupao mais ampla: a definio e construo da pessoa pela sociedade. A produo fsica de indivduos se insere em um contexto voltado para a produo social das pessoas, i.e., membros de uma sociedade especfica. O corpo, tal como ns ocidentais o definimos, no o nico objeto (e instrumento) de incidncia da sociedade sobre os indivduos: os complexos de nominao, os grupos e identidades cerimoniais, as teorias sobre a alma, associam-se na construo do ser humano tal como entendido pelos diferentes grupos tribais. Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posio central na viso que as sociedades indgenas tm da natureza do ser humano. Perguntar-se assim, sobre o lugar do corpo iniciar uma indagao sobre as formas de construo da pessoa. (Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro, 1979:3,4).

    Foi na esteira destes percursos disciplinares que abrangem teorias,

    conceitos e nfases especficas que busquei amparar minhas contribuies

    sobre as relaes dos Kaingang com seus objetos, as plantas e animais a partir

    dos quais eles confeccionam seus objetos. Partindo das produes que tm

    apontado para os atributos de intencionalidade de objetos, animais, plantas

    etc, procurei enfatizar em que momentos e de que formas os no-humanos,

    como chama Latour, agem nas relaes e no mundo Kaingang, fazem estes

    agirem, constroem seus corpos e tambm contituem os Kaingang enquanto

    pessoas.

  • 28

    AA ccoonnssttrruuoo ddoo ffooccoo ddee ppeessqquuiissaa

    Eu estava participando da festa do Dia do ndio, em abril de 2007,

    no acampamento kaingang em So Leopoldo, quando encontro alm das

    pessoas que trabalham junto aos Kaingang13 (cuja presena nestes eventos

    sempre esperada) duas artistas plsticas interessadas em realizar uma

    exposio de arte em parceria com os Kaingang. Eu j havia cogitado a

    hiptese de estudar a arte kaingang, e havia iniciado algumas leituras sobre a

    temtica da arte entre os amerndios. Mas este e outros contatos que se

    sucederam com as artistas plsticas me desafiaram a pensar a produo e

    circulao de objetos kaingang a partir da relao dos Kaingang com artistas

    plsticas, muselogos, com as instituies museolgicas e de arte. Motivava-

    me a busca de compreender que cosmolgicas orientavam a relao ente

    aquelas diferentes pessoas (Kaingang, artistas, muselogos) e os objetos

    kaingang que saam das aldeias.

    Em meus trabalhos de campo passei a observar que a forma como

    os Kaingang tratavam os objetos que eles ou seus antepassados haviam

    confeccionado e que se encontravam em exposio em alguma instituio,

    no podia ser tomada como separada das formas como aqueles objetos eram

    tratados no interior das m. Pelo contrrio, o esforo dos Kaingang era o de

    trazer estes objetos, atravs de imagens e narrativas, para o seu universo de

    sentidos, em que a arte no tomada enquanto esfera separada das outras.

    Os objetos arqueolgicos e de arte propiciaram a gerao de um

    grande nmero de imagens imateriais pelos Kaingang. Estas imagens

    ressituavam os objetos no contexto das relaes kaingang nas m, de modo a

    atribuir sentido, vida e relaes aos objetos. A esta altura de meu trabalho,

    no havia mais como deixar para segundo plano as imagens imateriais que as

    relaes dos Kaingang com os objetos suscitavam. Sonhos, lembranas,

    narrativas de tempos passados ou mesmo mticos eclodem como importante

    material etnogrfico. Nesta direo, o conceito de imagem e de produo de

    13 Funcionrios de rgos indigenistas como FUNAI, CIMI, COMIM, assim como professores de escolas que costumam visitar as aldeias com seus alunos no ms de abril em funo da data comemorativa do dia do ndio.

  • 29

    imagens proposto por Lagrou surge enquanto chave, uma vez que possibilita

    levar em conta imagens imateriais e experincias que nem sempre so

    materializadas em objetos. Conforme definio da autora:

    Falo aqui de imagens (tanto verbais e visuais, quanto virtuais) e no de artefatos porque estou to interessada em imagens veladas e imateriais e com a importncia de experincias s quais apenas se alude, mantendo-as essencialmente secretas, quanto em objetos interagindo uns com os outros num mundo imediatamente observvel. (...) Quando falo em produo de imagens (image-making) quero incluir estas imagens mentais, expressas por meios, s vezes, muito indiretos, aludidas em cantos, por exemplo, mas nunca pintados ou rabiscados de forma representacional em lugar nenhum. (Lagrou, 2007:57, 58).

    Os objetos e imagens que os Kaingang passaram a acionar

    mobilizavam noes diversas acerca da constituio do cosmos, da pessoa e

    das possibilidades de comunicao entre os seres. A partir disso, o trabalho

    alarga seu foco, buscando dar conta de ver os objetos de arte kaingang

    enquanto formas materializadas de relaes entre humanos e no-humanos14

    que habitam o cosmos deste coletivo, enfatizando os atributos de

    intencionalidade e agncia destes objetos sobre os kaingang, especialmente

    sobre seus corpos e sua contribuio na constituio da pessoa. Mas tambm

    destaca o poder dos objetos e das imagens de afetar as pessoas

    emocionalmente (Lagrou 2007:58), assim como a capacidade de os objetos

    viabilizarem a produo de imagens como sonhos e vises que esto

    manifestando experincias significativas de encontros e relaes entre

    humanos e no-humanos.

    Neste sentido, a noo de produo, acionada tanto para referir

    produo de imagens imateriais, mas tambm de novos seres e a processos de

    sociabiliade e socialidade central neste trabalho. Aliada noo de 14 A leitura desta dissertao com um olhar j distanciado fez perceber alguns limites no emprego de terminologias que embasam a construo de argumentos centrais neste trabalho. Destacam-se, por exemplo, os termos objetos e no-humanos. Na medida em que so lidos em seu sentido estrito estes termos no apenas no do conta, mas obscurecem o argumento de que animais, plantas entre outros existentes que habitam o cosmo Kaingang so providos de agncia e intencionalidade. Por isso, apesar de atentar para a leitura destes termos j no primeiro captulo, importante registrar a necessidade de, em futuros trabalhos, acessar conceitos que se adquem melhor abordagem das relaes e do estatuto dos seres diversos que habitam um cosmo amerndio.

  • 30

    produo, entra em jogo a de destruio de imagens e seres enquanto

    condio continuidade da vida.

    AApprreesseennttaaoo ddooss ccaappttuullooss

    No primeiro captulo, Objetos de arte como atuantes: mundos e

    seres em relao abordei, a partir da exposio de arte Potica dos

    Tranados, alguns aspectos que historicamente marcaram a relao entre

    coletivos indgenas, africanos ou melansios e viajantes, pesquisadores ou

    colonizadores europeus, mediada pelos objetos daqueles nativos. A inteno

    foi a de refletir sobre as cosmolgicas que atravessam estas relaes, mas

    tambm a de refletir sobre os diferentes sentidos que os objetos kaingang

    assumem quando mudam radicalmente os contextos em que esto inseridos.

    No segundo captulo, Humanos, no-humanos, seus corpos, seus

    desenhos: a cosmologia kaingang em questo, abordo a cosmologia kaingang

    evocando agentes, prticas e conhecimentos que envolvem tanto a produo

    de objetos como as formas de ordenao destes objetos, de outros seres e das

    pessoas no cosmos kaingang. A abordagem da produo dos objetos leva em

    conta, neste captulo, as semelhanas na produo de corpos, pessoas e

    objetos, o ato de fazer imagem dos demiurgos, as formas e grafismos destes

    objetos, que reforam o pertencimento de todos os seres do cosmo kaingang

    s metades cosmolgicas kam e kanhru-kr.

    O captulo 3, Imagens, sonhos e formas: associaes e relaes

    entre a ontologia kaingang e a perspectiva museolgica aborda o vnculo

    estabelecido contemporaneamente entre os Kaingang e os objetos produzidos

    por seus antepassados, sejam os que se encontram em lugares sagrados, como

    o Morro do Osso, sejam os que compem acervos e exposies em museus de

    arqueologia e antropologia. A partir destes objetos uma grande quantidade de

    imagens imateriais produzida pelos Kaingang, (re)constituindo vnculos com

    territrios especficos e histrias de relaes dos Kaingang com seus mortos,

    com os Guarani e com os brancos fg-kupri. As lgicas de congelamento das

    imagens e objetos indgenas em museus so questionadas pelos Kaingang, que

  • 31

    apontam para os aspectos fluidos e necessrios de produo e destruio de

    objetos e corpos.

    No quarto e ltimo captulo: Corpos e pessoas kaingang

    constitudos em relao: a agncia dos no humanos e o parentesco

    enquanto lcus de produo enfatizo a agncia de objetos como colares -

    jnka, mas tambm dos remdios do mato - vnh kagta, entre outros no-

    humanos, na produo dos corpos e pessoas kaingang. A contribuio do

    parentesco, da comensalidade e consanginidade, assim como do papel

    especfico das mulheres para estes processos de construo da pessoa tambm

    so abordados neste captulo.

    EEmm ccaammppoo ee oo uunniivveerrssoo ddee ppeessqquuiissaa

    Os objetos de arte kaingang, especialmente os vgfy tranados,

    so muitas vezes os intermedirios nos primeiros contatos com as pessoas que

    os produzem e os fg-kupri brancos. Os primeiros olhares e as primeiras

    motivaes para a pesquisa junto aos Kaingang partiram dos passeios pelo

    Brique da Redeno15, onde os Kaingang comercializam cestos, brincos,

    colares... H aproximadamente quatro anos fui inserida no universo familiar

    kaingang, quando participei, durante quatro meses, da execuo do Projeto

    de Sustentabiliade Kaingang16 na m Fag Nhin Aldeia da Lomba do

    Pinheiro.

    Desde l os meus interlocutores privilegiados se constituam

    majoritariamente pelos kaingang-p. Explicitar quem so estes Kaingang

    importante aqui, pois a relao estabelecida com estes e no com os ndios

    civilizados tem implicaes no desenvolvimento de minha pesquisa, inclusive

    porque, para alm das prticas e concepes sobre o que ser kaingang, os

    prprios objetos comercializados por um e outro grupo, so diferentes. 15 Feira realizada aos sbados e domingos junto ao Parque da Redeno, organizada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. 16 O Projeto de Sustentabilidade Kaingang foi fruto de convnio entre a Prefeitura de Porto Alegre e a ONG basca Paz y Solidariedad. O projeto foi realizado na Comunidade Kaingang da Lomba do Pinheiro e integrou diversas aes, dentre as quais se destacam a construo de uma escola indgena bilnge, a construo de um centro cultural, de casas, um espao fitoterpico, um posto de sade local e a realizao de seminrios e oficinas junto comunidade. O projeto teve incio em 2003 e foi concludo no final de 2006.

  • 32

    Kaingang-p e ndios civilizados so dois conceitos nativos

    utilizados para definir duas principais formas de se conceber, de pensar e agir

    como Kaingang. Segundo Freitas (2005:30), os ndios civilizados se identificam

    com os modelos acionados no processo civilizador, almejando se apossar do

    controle dos meios de produo adotados neste modelo. Porm, o fato de se

    denominarem civilizados no quer dizer que tenham deixado de ser ndios ou

    que perderam sua cultura, trata-se antes de um contraste entre o modo de

    vida de seus pais e avs com o modo que levam hoje (Tommasino, 1995:283

    apud Freitas, 2005:30). J os kaingang-p buscam estratgias para subverter o

    processo civilizador, empenhando-se na recuperao e revigoramento de

    florestas, rios e campos; na restaurao dos modos tradicionais de produo

    da caa, pesca, coleta, roas familiares, e, alternativamente, do artesanato

    baseado no manejo florestal (Freitas, 2005:27).

    Neste sentido, tanto a produo de tranados - vgfy quanto a

    valorizao dos saberes, prticas e objetos dos antigos Kaingang,

    constantemente abordadas neste trabalho, so fatores que definem o estar no

    mundo de um Kaingang-p. Dar conta do universo dos ndios civilizados

    implicaria adentrar em outra srie questes, como por exemplo, as que dizem

    respeito ao questionamento dos fg, mas tambm dos prprios Kaingang-p a

    propsito da conduta destes indgenas, assim como dos objetos que eles

    produzem.

    As crticas e questionamentos por parte dos artesos fg que

    dividem o espao de comercializao no Brique da Redeno com os Kaingang

    seguidamente so trazidos tona. O argumento de que os indgenas no

    poderiam estar comercializando produtos industrializados (como brincos,

    colares, pulseiras de metais, plstico, vidro, etc) trazido pelos artesos, que

    tomam como base as normas daquele espao de venda17 tambm utilizado

    por muitos fg, para reforar seus questionamentos acerca da identidade

    indgena daquelas pessoas e prezar por uma imagem romntica e idealizada

    do indgena. Tratar de questes como estas to delicado quanto importante.

    17 Para comercializar produtos na feira do Brique da Redeno os expositores precisam ter uma carteira de arteso, cuja condio para adquiri-la ser o produtor dos objetos que est comercializando. No permitida a revenda de produtos industrializados ou confeccionados por outros.

  • 33

    Mas este trabalho no d conta de um universo to grande de questes e

    tenses que perpassam a produo de objetos e pessoas nos territrios em

    questo.

    As relaes e vnculos que estabeleci com meus interlocutores

    procederam de trs diferentes formas, cujos desdobramentos tambm

    diferem entre si. A primeira diz respeito a minha escolha dos interlocutores.

    Havia alguns Kaingang com quem eu j tinha algum contato, mesmo que no

    to prximo, que eu os vislumbrava como interlocutores ideais. Conhecendo-

    os, sabia das capacidades destas pessoas e de seu entendimento acerca dos

    objetos e da cosmologia kaingang. Refletindo muitas vezes sobre meu projeto

    de pesquisa, eram estas pessoas que me vinham mente.

    Com estas pessoas aprendi muito em meu percurso de campo.

    Tanto pelo grande conhecimento que elas tm acerca dos objetos e da

    cosmologia kaingang, quanto pelo que me ensinaram sobre os processos de

    realizao de uma pesquisa de campo, de construo de uma relao com

    pessoas, para alm de serem elas interlocutoras. Era preciso aceitar e

    respeitar os receios e dvidas pessoais destes Kaingang para com os fg que

    esto se inserindo em sua aldeia e em suas vidas.

    Muitos dos receios que alguns interlocutores expunham acerca da

    importncia das pesquisas antropolgicas aos grupos nativos, do retorno, no

    apenas do trabalho escrito, mas especialmente do comprometimento e

    atitude dos antroplogos para com as demandas e dificuldades destes

    coletivos eram compartilhados por mim. As questes trazidas por meus

    interlocutores em campo me fizeram refletir muitas vezes sobre minha

    atuao enquanto profissional em formao, mas tambm enquanto pessoa,

    ser humano em relao com pessoas e seres diversos, inserida em um mundo

    que reage conforme agimos.

    Em um dos momentos em que estava na aldeia espera dos

    interlocutores com quem eu havia combinado encontro, me deparei com

    outras possibilidades de iniciar uma relao em campo: quando o pesquisador

    escolhido pelos nativos. Era agosto de 2009 quando me dirigi aldeia do

    Morro do Osso para encontrar Rkn, com quem eu havia combinado

  • 34

    encontro. Ao conversar com as crianas que brincavam no ptio estas me

    informam que nem Rkn nem o cacique Xe e sua mulher Vingr se

    encontravam na m Top Pn.

    Decidi aguardar o retorno de alguma destas pessoas. As crianas

    me trouxeram uma cadeira e a colocaram na sombra de uma rvore, bem ao

    centro da aldeia. Imaginei que todos poderiam estar me olhando se

    quisessem. Eu podia ser vista de quase todas as casas, enquanto no

    conseguia ver nada do que acontecia dentro delas. Por aproximadamente

    vinte minutos fiquei observando as crianas brincarem, algumas mulheres

    varrendo o ptio das casas, outras tranando artesanato. Resolvi ento sair da

    cadeira e conversar com algumas daquelas mulheres.

    Os dilogos no se estenderam muito. Pensei em tirar algumas

    fotografias da aldeia com a concesso daquelas mulheres, quando um homem

    que eu conhecia mas ele no a mim sai de sua casa e me diz que no era

    permitido fotografar ali, principalmente na ausncia do cacique. Queria ter

    explicado o porqu das fotos e falado que h alguns anos eu j venho

    trabalhando com os kaingang, ter dito que as mulheres me tinham permitido

    fotograf-las... Mas conclui que nada disso mudaria o clima tenso que se

    criou. Desculpei-me e retornei ao lugar de espera que me fora designado.

    De volta cadeira coloco-me a escrever, quando avisto uma mulher

    se aproximando e trazendo consigo um banquinho. Ela me faz algumas

    perguntas: Quem sou eu, onde trabalho, se sou casada, se tenho filhos.

    Geralmente estas so as primeiras dvidas tiradas pelas mulheres kaingang

    quando se deparam com as fg-kupri. Eu retribuo algumas questes: Qual seu

    nome, h quanto tempo est no Morro do Osso, onde morava antes (de qual

    Terra Indgena viera), quantos filhos tm, quais so seus parentes na aldeia.

    As primeiras perguntas que dirijo s mulheres kaingang quando as conheo.

    A partir deste contato, em que Xoar me descreveu muitos

    episdios desde o nascimento de seu ltimo filho, pedindo-me inclusive

    algumas dicas de como poderia buscar os direitos de penso para ele,

    descrevendo sua relao com o pequeno e dele com suas outras filhas e com a

    av, nossa relao foi ficando mais prxima. Quando passava pelo Brique da

  • 35

    Redeno no deixava de visit-la em sua banca. Passei tambm a

    acompanhar sua participao no curso de cermica realizado para os Kaingang

    do Morro do Osso, sob organizao do Ncleo de Polticas Pblicas para os

    Povos Indgenas da Prefeitura de Porto Alegre em parceria com a Escola Porto

    Alegre.

    Ainda me deparei em campo com a situao em que interlocutor e

    pesquisadora se escolhem mutuamente. Estas relaes foram de grande

    motivao para mim, e na relao com algumas famlias pude perceber que os

    vnculos estabelecidos a partir da pesquisa poderiam se tornar duradouros, de

    amizade e ajuda mtua.

    Para que estas relaes mais prximas pudessem ser estabelecidas,

    foi fundamental minha aproximao com as mulheres kaingang. bastante

    comum que, ao entrar nas aldeias kaingang, os fg sejam recebidos pelas

    lideranas polticas, quase exclusivamente composta por homens. Na medida

    em que passei a conversar com as mulheres e a compartilhar com elas da

    condio feminina de estar no mundo, o trabalho de campo se mostrou muito

    mais fluido e prazeroso. Ficou mais fcil tambm para as Kaingang

    compreenderem meu lugar e condio, de modo que elas pudessem me inserir

    no mundo das prticas e saberes kaingang.

    Durante a realizao do trabalho de campo a flexibilidade era

    condio imprescindvel. Tanto nas relaes com as pessoas quanto com o

    objeto ou universo de pesquisa. Eu estava dedicando os primeiros campos

    desta pesquisa acompanhando a exposio Potica dos Tranados, mas

    tambm selecionando, contatando e conhecendo alguns museus para visit-los

    posteriormente com os Kaingang. Visitei por duas ou trs vezes o Museu

    Antropolgico do Rio Grande do Sul e o Museu Julio de Castilhos, negociando a

    minha entrada para pesquisa e a posterior visita acompanhada pelos

    Kaingang.

    Tudo parecia estar pronto para estas visitas com os Kaingang,

    quando meus interlocutores manifestaram que no tinham interesse em visitar

    os museus que eu estava propondo. Os Kaingang da m Por Fi queriam visitar

    os museus localizados na cidade de So Leopoldo, mobilizados pelo interesse

  • 36

    de encontrar algum objeto que pudesse revelar a presena histrica kaingang

    na bacia do Rio dos Sinos. Alguns interlocutores da m Top Pn j

    conheciam os museus que eu havia proposto visitar e estavam mesmo

    interessados em conhecer o Museu Arqueolgico do Rio Grande do Sul -

    MARSUL, localizado na cidade de Taquara. Segundo eles, devia ter muito

    material kaingang naquele museu.

    Aps algumas visitas e conversas com pesquisadores do Instituto

    Anchietano de Pesquisas IAP/UNISINOS18, localizado no centro de So

    Leopoldo, agendei uma visita ao museu deste instituto, em que me

    acompanharam cinco lideranas kaingang da m Por Fi. O diretor do

    Instituto, arquelogo Dr. Pedro Igncio Schmitz, ao saber da presena dos

    Kaingang no museu, se disps a conversar com eles neste local a propsito da

    territorialidade e formas de ocupao espacial kaingang, assim como dos

    obejetos l expostos, que tanto os estava interessando. Tambm

    disponibilizou a estas pessoas o acesso biblioteca do Instituto, onde

    poderiam pesquisar mais sobre a presena kaingang na bacia do Rio dos Sinos

    e doou s lideranas alguns livros publicados pela UNISINOS sobre os Kaingang.

    Os outros museus que me propus a visitar, o MARSUL, o MARS

    Museu Antropolgico do Rio Grande do Sul e o Museu Julio de Castilhos so

    mantidos pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Com exceo deste

    ltimo, que recebe verbas de colaboradores da Associao dos Amigos do

    Museu Julio de Castilhos, os outros dois esto fechados para visitao e se

    encontram em pssimas condies. O acervo est guardado em condies

    indevidas, correndo risco se deteriorar ou sem identificao do material (caso

    do Marsul). Assim mesmo, consegui marcar com um membro do Departamento

    de Museus de Taquara - Paulo R. Alves da Silva, uma visita ao Marsul,

    acompanhada dos Kaingang. A visita fora em outubro de 2009 e a

    administrao do museu havia sido transferida do governo do Estado para a

    Prefeitura Municipal de Taquara no incio daquele ano. As reformas e

    reorganizao dos prdios e acervo do museu estavam sendo iniciadas. Paulo

    nos recebeu e acompanhou pessoalmente at o museu, mediando a visita.

    Rkn, sua mulher e filha e Vingr me acompanharam nesta visita. 18 Universidade do Vale dos Sinos.

  • 37

    Fig.14 - Mapa com localizao dos museus visitados com os Kaingang

    A pesquisa de campo nas aldeias, mas tambm em outros locais

    onde esto inseridos os objetos produzidos pelos Kaingang trouxe a esta

    etnografia a caracterstica de ser multi-situada, conforme conceitua George

    Marcus (1998). Seguir os objetos-sujeitos produzidos pelos Kaingang pelas

    aldeias, mas tambm em museus e exposies de arte possibilitou que

    diferentes contextos, tempos e espaos fossem justapostos nesta etnografia.

    A experincia de acompanhar a exposio Potica dos Tranados foi

    especialmente rica no sentido de possibilitar a observao do percurso dos

    objetos do espao e das relaes no interior das aldeias ao contexto e

    sentidos de uma exposio de arte.

    A propsito desta exposio, cabe destacar que seu projeto foi

    elaborado por duas artistas plsticas, Ana Norogrando e Ceres Zago, que

    contaram com a atuao de outros artistas para a execuo. As artistas

    tambm receberam apoio de antroplogos para a realizao do projeto da

    exposio junto aos Kaingang, inclusive do Ncleo de Antropologia das

    Sociedades Indgenas e Tradicionais NIT/UFRGS. Isto facilitou meu

    acompanhamento do projeto e especialmente a viagem que realizei com as

  • 38

    artistas pelas Terras Indgenas Rio da Vrzea, Votouro, Ira e o acampamento

    em Estrela.

    A execuo do projeto iniciou em 2007, quando as artistas

    passaram a visitar as aldeias kaingang situadas no estado do Rio Grande do

    Sul. Das aldeias visitadas, onze delas se interessaram e dispuseram em

    participar do projeto. Este consistiu em propor aos Kaingang a confeco de

    peneiras19 de diferentes tamanhos, aplicando nelas tranados e grafismos da

    cestaria Kaingang. As artistas realizaram diversas visitas aos Kaingang que

    confeccionaram as peneiras, para expor as idias de seu projeto, acompanhar

    a produo e, finalmente, buscar o material j pronto e efetuar o pagamento

    pelo trabalho, tal como havia sido previamente acordado.

    Em agosto daquele mesmo ano, englobada por um projeto maior de

    produo na rea das artes plsticas, denominado Essa poa boa, a

    exposio Potica dos Tranados inaugurada no Shopping DC Navegantes em

    Porto Alegre. Encerrado este evento, a exposio adquire um carter

    itinerante, transitando para o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider no

    municpio de Passo Fundo de 11 de abril a 11 de maio de 2008; para a Sala de

    Exposies da Universidade Fransciscana de Santa Maria (UNIFRA) de 5 de

    junho a 11 de julho de 2008; e para a Sala de Exposies Java Bonamigo da

    Universidade de Iju, de 21 a 23 de setembro de 2008.

    Em junho de 2007 foi realizada apresentao do projeto Potica dos

    Tranados na Livraria Cultura em Porto Alegre e no dia 21 de setembro de

    2008 na Universidade de Iju. No evento realizado em Porto Alegre alguns

    Kaingang que participaram do projeto se fizeram presentes. A inteno de

    que um maior nmero de Kaingang pudesse ter acesso exposio, fez com

    que as artistas propusessem a exposio em Iju, cidade que fica prxima s

    Terras Indgenas.

    19 Objeto que carrega significados prprios ao Kaingang, mas que tambm insere-se na trajetria de uma das artistas plsticas.

  • 39

    Fig.15 - Mapa da Exposio Potica dos Tranados

    Alm de acompanhar a produo de algumas peneiras durante a

    viagem de alguns dias pelas Terras Indgenas na companhia das artistas, pude

    participar da apresentao do projeto na Livraria Cultura, em que alguns

    Kaingang estavam presentes. Tambm fiz algumas visitas exposio em

    Santa Maria, acompanhada pelas artistas e por algumas pessoas Kaingang.

    Pude tambm conversar com alguns Kaingang que participaram da produo

    das peneiras e que residem na m Por Fi.

    VViivveennddoo aass hhiissttrriiaass

    As histrias no adianta estar s contando. Os nossos filhos tm que viver essas histrias. (Rkn, 21/10/2009).

    Reservo este espao, como um prlogo para o desenvolvimento

    deste trabalho, para ressaltar a importncia que os territrios assumem na

    vida das pessoas com quem compartilhei vivncias durante estes ltimos anos.

  • 40

    Como declarou Rkn, de nada valem as histrias de como viviam os Kaingang

    ou o conhecimento de teorias e prticas de ser Kaingang se no h espao

    para vivenciar estas histrias, para conhec-las atravs da experincia e

    engajamento no mundo.

    Os Kaingang manifestam seguidamente a preocupao com o

    aprendizado de suas crianas, ressaltando que este se d na relao que elas

    estabelecem com os seres diversos que compem o cosmo kaingang. esta

    preocupao que os move na luta diria pela busca de espaos onde seus

    filhos possam viver experincias como as que os antigos ou eles mesmos

    quando crianas viveram.

    Por isso, ao mesmo tempo em que busquei trazer algumas destas

    experincias vivenciadas, tambm gostaria de expor que uma grande

    motivao deste trabalho que o conhecimento destas histrias e relaes,

    entre humanos e no-humanos, de alguma maneira contribua na

    argumentao da imprescindibilidade dos territrios demandados por estes

    coletivos. Coletivos, porque no somente as pessoas kaingang esto

    demandando, mas a terra, os passarinhos e tantos outros seres esto

    precisando de cuidados e alimentos encontrados na mata, ressaltam meus

    interlocutores. Uma grande rede de seres, humanos e no humanos

    demandam a possibilidade de experienciar um mundo em que a mata de

    suma importncia.

    * * *

    Todas as imagens fotogrficas apresentadas neste trabalho so de

    minha autoria, exceto aquelas cuja autoria est identificada abaixo da foto.

  • 41

    CCaappttuulloo II

    OObbjjeettooss ddee aarrttee ccoommoo aattuuaanntteess2200:: mmuunnddooss ee sseerreess eemm rreellaaoo

    A motivao para a escrita deste captulo esteve em grande medida

    vinculada a uma experincia de imerso em mundos diferentes, mas que por

    momentos e em espaos especficos se cruzaram sob a mediao de objetos

    de arte kaingang. A noo de mediao, emprestada de Latour, vem definir

    aqui o estatuto dos objetos enquanto atores ou atuantes.

    Latour diferencia os termos mediao e intermedirio para dar

    conta dos atributos distintos conferidos a cada um. Se um intermedirio

    plenamente definido por aquilo que o provoca, uma mediao sempre

    ultrapassa sua condio (2001:351). A mediao supe, ao contrrio do

    intermedirio, atuao nas interaes, incidncia no curso da ao de outros

    agentes. E este estatuto, de agente, ator, mediador pode ser estendido,

    segundo o autor, aos no-humanos. A importncia destes conceitos que eles

    possibilitam complexificar relaes que, por muito tempo, foram entendidas

    como estabelecidas entre objetos-inertes e sujeito-ativos. A propsito do

    conceito de no-humano e da distino sujeito-objeto, Latour define:

    Este conceito [no-humano] s significa alguma coisa na diferena entre o par humano - no-humano e a dicotomia sujeito-objeto. Associaes de humanos e no-humanos aludem a um regime poltico diferente da guerra movida contra ns pela distino entre

    20 Latour (2001:346) prope a utilizao do termo atuante para designar o estatuto de agncia dos no-humanos como equivalente ao termo ator empregado aos humanos.

  • 42

    sujeito e objeto. Um no-humano , portanto, a verso de tempo de paz do objeto: aquilo que este pareceria se no estivesse metido na guerra para atalhar o devido processo poltico. O par humano - no-humano no constitui uma forma de superar a distino sujeito-objeto, mas uma forma de ultrapass-la completamente (Latour, 2001:352).

    A noo de no-humano se far presente no decorrer deste

    trabalho, buscando enfatizar quais agentes ou atuantes esto ajudando a

    tecer a rede produtiva de relaes kaingang. Optei tambm por seguir

    utilizando o termo objeto para fazer meno s formas no-humanas diversas

    que esto em questo nesta dissertao. A inteno que a noo de objeto

    no seja lida enquanto ser inerte, mas como um objeto-sujeito, um atuante.

    A arte se vislumbrou em meu trabalho enquanto uma possibilidade

    de estar no mundo, de estabelecer e materializar relaes, entre humanos e

    no-humanos, que agem e sofrem aes. Eu estava participando de uma festa

    em comemorao ao dia do ndio em So Leopoldo Por Fi quando conheci

    Ana e Ceres, artistas plsticas que estavam em perodo de execuo de um

    projeto junto aos Kaingang. Um ms depois deste encontro eu viajava na

    companhia destas mulheres pelas Terras Indgenas kaingang, acompanhando a

    produo das peneiras que estavam sendo feitas pelos indgenas para uma

    exposio de arte que elas estavam organizando.

    O que me movia era a curiosidade acerca de que mundos e

    cosmologias os objetos de arte que estavam sendo produzidos mobilizavam.

    Que sentidos um mesmo objeto poderia assumir quando inserido em redes de

    relaes diversas, quais suas possibilidades de ao em um contexto e em

    outro e de que maneira ele se transformava enquanto interferia tambm nas

    aes dos outros.

    A exposio Potica dos Tranados tambm foi tomada como

    recurso reflexo e reviso de como tm se dado as relaes entre as formas

    de vivenciar a arte dos coletivos amerndios, africanos etc e a forma como a

    cosmolgica europia tem abordado a sua arte e a destes outros. Trago as

    reflexes de Latour e de Sally Price para pensar este campo de relaes.

  • 43

    Com relao aos Kaingang, importante considerar que a maioria

    das famlias que vivem nos territrios das bacias dos rios Taquari, Sinos e Lago

    Guaba garantem seu sustento a partir da produo e venda de objetos feitos

    em taquara e principalmente cip, alm de estarem retomando a produo de

    cermica. Estes dados so fundamentais para compreender e definir a arte

    enquanto uma importante forma de engajamento no mundo e de

    materializao das relaes dos humanos entre si e destes com os no-

    humanos.

    A partir da etnografia que o objeto peneira alimentou, so

    anunciadas algumas formas especficas de agncia dos objetos no mundo

    Kaingang. So ressaltados os atributos de intencionalidade e agncia dos no-

    humanos sobre outros agentes, mas tambm ser abordada a ao dos

    humanos quando esto em relao com os seres que compe o cosmo

    kaingang.

    11..11 PPeessssooaass,, oobbjjeettooss ee ccoossmmoollggiiccaass eemm rreellaaoo

    Novas proposies acerca da definio do estatuto de arte tm sido

    propostas por autores como Alfred Gell (1998). Estas tm possibilitado alargar

    a aplicao do conceito de arte aos coletivos no-europeus, bem como tm

    apontado para a atribuio de um estatuto similar ao de pessoa aos objetos

    de arte. Entretando, a distino entre arte e artesanato, artista e arteso21

    est longe de ser disseminada nas relaes entre estas pessoas. Sob

    determinadas circunstncias, porm, o que era designado artesanato pode vir

    a se transformar em arte, bastando apenas determinado objeto passar pelas

    mos ou julgamentos de especialistas, que a partir de critrios que

    denominam universais, definem o que pode ou no entrar no mundo dos

    objetos de arte. Esta transformao visvel, por exemplo, com objetos

    21 Se, ao longo deste trabalho, parecer faltar rigor na utilizao dos termos arte e artesanato, entenda-se que minha abordagem da produo de objetos kaingang busca ir ao encontro das proposies atuais no campo da antropologia da arte, que procura no distinguir arte de artesanato, mas que tambm est atenta em no igualar os critrios estticos da arte em mundos diferentes. Quando trouxer a noo de artesanato, estarei referindo s concepes j apropriadas pelos Kaingang para definir e traduzir suas prticas de produo de objetos aos fg-kupri brancos.

  • 44

    etnogrficos que deixam seus contextos de origem e so inseridos em museus

    e exposies de arte, onde recebero o estatuto de objetos de arte.

    A fim de iniciar a reflexo sobre a relao entre pessoas, mas

    tambm entre cosmologias distintas trago a contribuio de Sally Price (2000),

    que indica dois principais aspectos que vm marcando a relao entre os

    grupos indgenas, africanos ou aborgenes australianos e as arenas ou

    instituies legitimadoras da arte no ocidente: o anonimato e a

    atemporalidade. Segundo a autora, quando as obras daqueles coletivos foram

    transportadas a instituies de arte ocidentais, os artistas da frica, da

    Oceania e da Amrica Indgena foram muitas vezes colocados como servos da

    tradio coletiva, fabricando objetos de acordo com regras consagradas,

    herdadas das geraes anteriores (Price, 2000:89). Tanto a criatividade

    individual quanto os processos de mudana e inovao so muitas vezes

    negados queles coletivos na relao com os que vivem num cosmo

    eurocentrado.

    Bruno Latour (1994), refletindo acerca da cosmologia moderna,

    indica pelo menos duas grandes rupturas, uma interna e outra externa que

    marcam nossas formas de conhecer e se inserir no mundo e nossa relao com

    o outro. A primeira ciso diz respeito diviso interna entre natureza e

    cultura. A segunda, externa, entre ns e eles. Nas palavras do autor:

    A Grande Diviso interior explica, portanto, a Grande Diviso exterior: apenas ns diferenciamos de forma absoluta entre a natureza e a cultura, entre a cincia e a sociedade, enquanto todos os outros, sejam eles chineses ou amerndios, zands ou barouyas, no podem separar de fato aquilo que conhecimento do que sociedade, o que signo do que coisa, o que vem da natureza como ela realmente daquilo que suas culturas requerem. (...) Em Nossa cultura, ningum mais deve poder misturar as preocupaes sociais e os acesso s coisas em si. (Latour, 1994:99).

    Neste pargrafo, Latour explicita os pontos chaves pelos quais se

    estabelece uma relao assimtrica entre ns, modernos, e ou outros, presos

    para sempre em um domnio inferior, em que o conhecimento no fruto de

  • 45

    regras universais, puras, cientficas, mas antes, produto de construes. Nesta

    dinmica, interessa a ns a manuteno do dualismo entre natureza e cultura,

    de modo a distinguir o que verdadeiro do que falso (construdo). Ao tratar

    do modo como lidamos com noes como feito e fetiche, o autor traz um

    exemplo emblemtico de encontro colonial, que permite por em xeque a

    cosmologia moderna, que segundo ele, um projeto que no se sustenta. Eis

    a descrio de Latour:

    A acusao, pelos portugueses, cobertos de amuletos da Virgem e dos Santos, comea na costa da frica Ocidental, em algum lugar na Guin: os negros adoravam fetiches. Intimados pelos portugueses a responder primeira questo: Vocs fabricaram com suas prprias mos os dolos de pedra, de argila, e de madeira que vocs referenciam?, os guineenses responderam sem hesitar que sim. Intimados a responder segunda questo: Esses dolos de pedra, de argila e de madeira so verdadeiras divindades?, os negros responderam com a maior inocncia que sim, claro, sem o que, eles no os teriam fabricado com as prprias mos! Os portugueses, escandalizados mas escrupulosos, no querendo condenar sem provas, oferecem uma ltima chance aos africanos: Vocs no podem dizer que fabricaram seus fetiches, e que estes so, ao mesmo tempo, verdadeiras divindades, vocs tm que escolher, ou bem um, ou bem outro; a menos que, diriam indignados, vocs no tenham miolos, e que sejam insensveis ao princpio de contradio como ao pecado da idolatria. (...) Pena que os africanos no tenham devolvido o elogio. Teria sido interessante que eles perguntassem aos traficantes portugueses se eles haviam fabricado seus amuletos da Virgem ou se estes caam diretamente do cu. _ Cinzelados com arte por nossos ourives, teriam respondido orgulhosamente. _ E por isso eles so sagrados?, teriam ento perguntado os negros. Mas claro, benzidos solenemente na igreja Nossa Senhora dos Remdios, pelo arcebispo, na presena do rei. _ Se vocs reconhecem ento, ao mesmo tempo, a transformao do ouro e da prata no cadinho do ourives, e o carter sagrado de seus cones, por que nos acusam de contradio, ns que no dizemos outra coisa? Para feitio, feitio e meio. (Latour, 2002:15 -18).

    Ao pensar a relao do que feito e da relao dos homens com

    seus objetos-fetiches, Latour aponta elementos importantes para pensarmos a

    arte em coletivos diversos. O autor prope o conceito de fe(i)tiches para dar

    conta destes objetos que so tanto feitos pelas mos dos homens quanto

    providos de agncia e intencionalidade. Uma coisa e outra. Retribuindo aos

  • 46

    portugueses as questes que eles puseram aos negros, evidenciando o carter

    contraditrio possvel dos fe(i)tiches europeus, vislumbrou-se a possibilidade

    de simetrizao.

    A arte europia tenta sustentar sua modernidade a partir de

    critrios estticos que pretendem analisar e julgar o que arte e o que no ,

    o que uma boa arte ou m arte, estendendo tais critrios, pretensamente

    universais, ou seja, menos construdos e mais dados arte de outros

    col