a cultura material

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Fichamento Textual: MENEZES, Ulpiano Bezerra de. “A cultura material no estudo das sociedades antigas”. In: Revista de História. São Paulo: no. 115, 2º. Sem, 1983. Disponível em: http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/115/A 007N115.pdf Meu propósito aqui, porém, não é montar uma apologia da cultura material, mas lançar algumas pistas para refletir sobre o alcance de um tipo de documento, as coisas físicas, como campo de fenômenos históricos, sem o qual a compreensão de uma sociedade se vê comprometida.” “Na bibliografia recente de História da Grécia e de Roma, por exe cmplo (domínio que tomarei como referência principal), três posturas são marcantes. (...) A primeira é a simples marginalização da cultura material, a supressão, no horizonte histórico, do universo físico. (...)A segunda postura talvez seja a mais freqüente de todas . É caracterizada pelo uso de aspectos da vida material, mais precisamente, da informação arqueológica, de maneira puramente instrumental. (...) A terceira postura se pauta pelo uso "didático" das informações sobre o universo material. Estas se transformam, conseqüentemente, em ilustração daquilo que o texto já estabeleceu e, dessa forma, destinam-se a tornar mais fácil a deglutição do discurso do historiador da Antiguidade.” (pp. 103 á 105) “Essas três posturas partem de algumas poucas alegações equivocadas sobre a natureza da documentação material ou sobre a dificuldade de seu emprego .” “Uma de tais alegações é que as coisas materiais constituiriam uma parcela apenas — e bem reduzida — dos fenômenos históricos. (...) Seria pois o universo material um segmento inexpressivo, incluindo apenas aqueles aspectos da vida social e cultural capazes de se consubstanciarem em coisas físicas, corpóreas.”

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Fichamento Upiano, a cultura material

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FichamentoTextual:MENEZES, Ulpiano Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. In:Revista de Histria.So Paulo: no. 115, 2. Sem, 1983. Disponvel em:http://revhistoria.usp.br/images/stories/revistas/115/A007N115.pdfMeu propsito aqui, porm, no montar uma apologia da cultura material, mas lanar algumas pistas para refletir sobre o alcance de um tipo de documento, as coisas fsicas, como campo de fenmenos histricos, sem o qual a compreenso de uma sociedade se v comprometida.

Na bibliografia recente de Histria da Grcia e de Roma, por exe cmplo (domnio que tomarei como referncia principal), trs posturas so marcantes. (...) A primeira a simples marginalizao da cultura material, a supresso, no horizonte histrico, do universo fsico. (...)A segunda postura talvez seja a mais freqente de todas . caracterizada pelo uso de aspectos da vida material, mais precisamente, da informao arqueolgica, de maneira puramente instrumental. (...) A terceira postura se pauta pelo uso "didtico" das informaes sobre o universo material. Estas se transformam, conseqentemente, em ilustrao daquilo que o texto j estabeleceu e, dessa forma, destinam-se a tornar mais fcil a deglutio do discurso do historiador da Antiguidade. (pp. 103 105)

Essas trs posturas partem de algumas poucas alegaes equivocadas sobre a natureza da documentao material ou sobre a dificuldade de seu emprego .

Uma de tais alegaes que as coisas materiais constituiriam uma parcela apenas e bem reduzida dos fenmenos histricos. (...) Seria pois o universo material um segmento inexpressivo, incluindo apenas aqueles aspectos da vida social e cultural capazes de se consubstanciarem em coisas fsicas, corpreas.

Outra objeo que, alm de parcial, a documentao material seria aleatria, pois chega at ns aps triagens sucessivas e sem controle. Assim, o chamado "depsito arqueolgico" (representado principalmente pelo stio arqueolgico) seria o produto de inmeros filtros culturais e naturais . Culturais, na medida em que o stio arqueolgico composto principalmente de restos das coisas materiais: o que sobrou como resultado de certos padres de rejeito, abondono, perda causal . . . Naturais, na medida em que, sobre essa deposio, h ainda a interferncia de fatores biolgicos, clima, ao de animais e outros organismos, processos geomorfolgicos, etc. (...)Finalmente, costuma-se dizer, tambm, que existiria um fosso intransponvel ou, pelo menos, considervel, entre stio o arqueolgico e o sistema cultural, que o produziu (10) . Nessa tica, o stio arqueolgico expresso espacial do depsito arqueolgico deveria ser entendido segundo um duplo registro, no coincidente. (pp.106).

Todas estas alegaes contm muito de enganoso, ambguo, sofism- tico, mesmo. Assim, por exemplo, ressaltar o carter "parcial" dos fenmenos materiais estabelecer uma distino, carecedora de fundamentos, entre os componentes materiais e no materiais da cultura, dando a estes ltimos uma autonomia que eles no podem ter . (...)Ora, cindir radicalmente cultura material e cultura no material ignorar a ubiqidade das coisas materiais, que penetram todos os poros da ao humana e todas as suas circunstncia (...) Finalmente, no se pode desconhecer que os artefatos parcela relevante da cultura material se fornecem informao quanto sua prpria materialidade (mat- ria prima e seu processamento, tecnologia, morfologia e funes, etc ), fornecem tambm, em grau sempre considervel, informao de natureza relaciona.

Nesse campo, tem havido avano muito grande das disciplinas interessadas nos objetos . (...)Cumpre lembrar que no basta dispor de uma organizao cognitiva do universo, de uma taxonomia precisa e adequada, de um cdigo, para ordenar a realidade; preciso que esse cdigo seja eficiente e, para tanto, so indispensveis sinais fsicos que estabeleam, nas diversas situaes concretas, a leitura do jogo de direitos e obrigaes, valores, expectativas, e assim por diante . (pp.107 e 108)

(...)Tome-se como referncia o caso da Gr- cia antiga, aparentemente to rica em documentao textual: basta lembrar que, se dela tirarmos o material epigrfico, sobra-nos pouco mais que antologias selecionadas pelos eruditos alexandrinos, que, a partir do sculo IV a. C. , coletaram e recopilaram textos antigos, naturalmente segundo seus critrios de valor e interesses, historicamente definveis . (...) A prpria Biblioteca de Alexandria, que se acredita ter possudo cerca de 700.000 volumes (17), atingida por incndio, legou-nos nfima parcela desse acervo (...) as coisas fsicas no so documentos, so, isto sim, fenmenos da natureza e a operao do historiador que cria o campo documental (o mesmo poderia ser dito dos textos, no obstante a existncia de certas categorias especficas de documentos "de nascena"). (pp.109)

Por fim, o argumento de que h soluo de continuidade, com conseqncias irreparveis, entre objeto e documento, tambm merece ser reposto. Antes de mais nada, fique claro referir-se tal vis tambm ao documento textual, embora se manifeste mais agudamente em nosso caso . possvel, porm e necessria a operao de "desdocumentalizao", que recupera as diversas trajetrias do artefato.

Invertendo a posio at agora assumida, possvel apontar, no uso da documentao textual, dificuldades a que escapa a documentao material.

A primeira destas dificuldades a coincidncia, to freqentemente pressuposta, entre fato real e fato de conhecimento, na manipulao da informao verbal. (...)No caso da documentao arquivstica, esta iluso se desdobra e agrava na medida em que se estabelece coincidncia entre fato real e relato verbal (eu diria, quase, fato verbal).(...) Naturalmente, o documento material tambm pode ter carga representantiva (figura, imagem, iconografia), mas menor o risco de confundi-lo com o nvel verbal. (pp. 110 e 111)

Ao contrrio, vrias vantagens fornecidas pelo documento material podem ser listadas (25) . J se mencionou sua ubiqidade, que no encontra paralelo na documentao textual. Acrescente-se sua menor permeabilidade ideolgica, as facilidades para tratamento quantitativo e comparativista, o carter preponderante de anonimato.

Por cultura material poderamos entender aquele segmento do meio fsico que socialmente apropriado pelo homem . Por apropriao social convm pressupor que o homem intervm, modela, d forma a elementos do meio fsico, segundo propsitos e normas culturais . Essa ao, portanto, no aleatria, casual, individual, mas se alinha conforme padres, entre os quais se incluem os objetivos e projetos.

Para analisar, portanto, a cultura material, preciso situ-la como suporte material, fsico, imediatamente concreto, da produo e reprodu- o da vida social. (...)m, como j foi afirmado, o principal contingente da cultura material tm que ser considerados sob duplo aspecto: como produtos e como vetores de relaes sociais (...)a Arqueologia no precisa mais ser definida como a disciplina que se ocupa dos artefatos, das coisas materiais e seu contexto (isto , das manufaturas e das relaes espaciais nas quais elas se apresentam), mas poderia ser recebida no convvio das demais cincias sociais . (pp. 112 e 113)

Outro tipo de estudo que tem merecido particular ateno o que diz respeito s anlises espaciais. Comefeito, o espao um suporte fundamental para entender atividades, relaes, organizao. (...) O espao, nestes casos, nunca tratado como cenrio da ao cultural, mas como ingrediente seu, fsico. (...) Como exemplo tambm das tentativas de estudar aspectos da organizao social a partir da anlise da cultura material, vale a pena mencionar as pesquisas demogrficas. (pp. 114 e 115)

Para finalizar, recorde-se o campo mais antigo de estudos desta natureza: os contextos funerrios, terreno propcio para entender status, hierarquias, diferenciao social e econmica e questes semelhantes . Deve-se observar, porm, que os problemas so hoje vistos como muito mais complexos e que os contextos funerrios so examinados como parte de configuraes sociais totais (39).

Os exemplos expostos no do um panorama sistemtico e abrangente das questes nem mesmo dizem respeito Histria da Antiguidade, sobretudo porque neste campo a contribuio terica e metodolgica te msido praticamente inexistente . Todavia, deixam claro o potencial da cultura material na explorao de informao que ultrapassa o domnio usual da cronologia, tecnologia e organizao econmica (subsistncia) . Deixam claro, igualmente, que a cultura material constitui um cdigo prprio, a ser descriptado segundo sua natureza e no por reduo aos cdigos verbais. Demonstram, finalmente, que na integrao dos aspectos materiais e no materiais da cultura e na correlao dos padres de organizao material e de comportamento ainda h muito caminho a ser percorrido (pp. 116 e 117)