a estereotipização da mulher na publicidade brasileira

27
A ESTEREOTIPIZAÇÃO DA MULHER NA PUBLICIDADE BRASILEIRA DE PRODUTOS DE CASA E LIMPEZA por Leonardo Arroniz (aluno do curso de Comunicação Social) Artigo entregue à Profa. Suzy dos Santos e ao doutorando Daniel Fonsêca, na disciplina Legislação e Ética, em Produção Editorial.

Upload: leoarroniz

Post on 11-Nov-2015

14 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Artigo elaborado para a disciplina Legislação e Ética do curso de Comunicação Social da UFRJ.

TRANSCRIPT

A ESTEREOTIPIZAO DA MULHER NA PUBLICIDADE BRASILEIRA DEPRODUTOS DE CASA E LIMPEZA

por Leonardo Arroniz(aluno do curso de Comunicao Social)

Artigo entregue Profa. Suzy dos Santos e aodoutorando Daniel Fonsca,na disciplina Legislao e tica,em Produo Editorial.

UFRJ/ Escola de Comunicao2 semestre / 2013Introduo

A percepo da publicidade e da propaganda como instrumentos de comunicao que objetivam induzir ao consumo atravs de estratgias de convencimento, seduo e persuaso , embora evidente, nem sempre conscientemente reconhecida ou atentada pela grande massa consumidora. Na realidade, muitos daqueles que acreditam distinguir esse carter manipulatrio acabam se atendo ao elemento mais bvio: o enaltecimento do valor (subjetivo e/ou objetivo) do produto a um patamar de aparentes impecabilidade e incontestvel necessidade. De fato, essa construo idlica sobre as mercadorias de considervel relevncia quanto atuao da publicidade, contudo, ela apenas a ponta do iceberg, o reflexo de uma estrutura muito mais incisiva, discreta e maliciosa. Em diversos momentos, como cita IASBECK (2002, p.29), o consumidor no compra o produto, mas leva para sua casa o discurso do produto. Essa lgica no se aplica somente originalidade dos apelos e da linguagem de alguns anncios conforme referenciados pelo autor, mas tambm a todo um posicionamento ideolgico implcito, que permeia as diversas estratgias narrativas presentes nas propagandas. Estas no se limitam evidente valorizao do produto/servio em questo, pois, intencionalmente ou no, acabam vendendo muito mais que uma mercadoria: promovem um conjunto de ideias que podem estar atrelados tanto abordagem publicitria do produto como subjetividade do nome da marca. Esses preceitos ideolgicos, portanto, so reflexo dos prprios valores do grande capital, personificado, nesse contexto, por meio dos principais agentes da publicidade (anunciantes, veculos e agncias). Infelizmente, os ideais inseridos por esses profissionais durante a elaborao de determinada propaganda, no se limitam j maquiavlica construo de conceitos (ROCHA, 2003) forosamente associados a produtos ou servios, mas carregam consigo um fardo de padres e esteretipos que, apesar de no estarem diretamente relacionados criao de uma aura ao redor do produto, refletem subliminarmente uma gama de valores da sociedade capitalista. Como forma de esclarecimento, tomemos, por exemplo, a propaganda de um produto de limpeza hipottico. O seu possvel potencial de retirar toda e qualquer mancha seria a hiprbole que a maioria das pessoas reconheceria como a tpica falcia da publicidade. Contudo, a associao do uso desse produto uma imagem (veiculada e elaborada intencionalmente) de um ambiente mais limpo, mais alegre e esteticamente impecvel, promovendo uma vida mais prtica e mais feliz, a abstrao que esse produto carrega consigo, pretendendo-se um real fator de compra. Finalmente, a escolha de uma mulher para protagonizar o comercial seria a reafirmao de uma percepo, convencionada pela sociedade, acerca da suposta posio ou conduta familiar tpica do sexo feminino, inevitavelmente contribuindo para a perpetuao desse padro. De fato, um dos melhores exemplos para abordar esse assunto a participao (e a apropriao) da figura da mulher como objeto publicitrio. Mesmo aps anos de esforos feministas, diversos esteretipos continuam a aparecer na mdia brasileira, sobretudo concernente sexualizao do corpo da mulher e ao enaltecimento de padres de moda e beleza considerados atraentes e sofisticados. Felizmente, quanto a essa abordagem, muitas vozes vm se erguendo de forma a delatar esse abuso como no caso da campanha do Dia das Crianas, da Couro Fino, e da campanha de lingerie da Hope, com a modelo Gisele Bndchen. Entretanto, como exemplificado no pargrafo anterior, existem outros arqutipos veiculados diariamente pela grande mdia publicitria, mas que podem passar despercebidos devido a sua aparente despretenciosidade. O presente trabalho, ento, se prope a problematizar a abordagem feminina contempornea pela publicidade no como o recorrente objeto sexual, mas como a igualmente recorrente figura representativa da maternidade, da educao e dos afazeres domsticos, aspectos, ainda hoje, relacionados a obrigaes consideradas femininas. Contudo, ciente de que esse esteretipo se mantm agora ofuscado pela abordagem dos recentes caracteres da mulher moderna como profissional e independente. Para tanto, foi escolhido a realidade das campanhas e comerciais dos principais produtos de casa e limpeza (como as marcas Vanish, Veja, Omo, Ariel, Bombril, SBP, Glade, Brastemp, Consul, Mabe, etc), que incorporam em si grande parte das temticas referentes ao lar e famlia, mantendo um claro direcionamento para um pblico alvo feminino.

Anlise

Como aponta SILVA (2003), foi a partir dos movimentos feministas da dcada de 1960 que a categoria de gnero passou a ser utilizada como mecanismo de evidenciao e crtica pretensa naturalizao da posio das mulheres como inferiores e submissas ao homem. Durante anos relegadas esfera domstica e privada aparentemente devido percepo da constituio fsica daquelas como mais delicada e frgil , essas comoes trouxeram as questes referentes mulher conjuntura social e pblica. O reflexo dessa luta no contexto brasileiro, contudo, foi relativamente tardio, pois, como destaca SARTI (1998), os movimentos feministas brasileiros eclodidos no comeo da dcada de 1970 juntamente com outras manifestaes polticas foram consideravelmente refreados devido ao perodo de governo ditatorial, e, somente no incio da dcada de 1980, ganharam novamente fora. Apesar disso, aps anos de esforos, diversas conquistas foram alcanadas: trabalhar fora de casa, ter o prprio dinheiro, possuir igualdade de direitos matrimoniais (importante marco com o fim da tutela masculina sobre o casamento em 1988), atingir um patamar de maior representatividade no cenrio poltico (culminando, finalmente, na recente eleio da primeira mulher presidente). Entretanto, mesmo com todos esses avanos sociais, esteretipos perniciosos e pejorativos quanto percepo da imagem da mulher brasileira no param de reaparecer. Re-aparecer, porque muitos deles so, seno os mesmos moldes de dcadas passadas, desdobramentos destes, reciclados e camuflados na forma, mas no no contedo. A tragicidade dessa realidade est menos na recorrncia desses pensamentos na mentalidade de tantos indivduos comuns do que no fato de que essa perpetuao se deve, em grande parte, utilizao desses modelos e banalizao de diversas questes feministas pelos agentes da grande mdia. Segundo SILVA (2003), as representaes da publicidade televisiva sobre a mulher no esto acompanhando as conquistas realizadas pelos movimentos feministas nas ltimas dcadas (p.12). Ou seja, mesmo com avanos constatveis na esfera jurdica e cotidiana, muitos dos antigos padres agregados mulher permanecem a ser anunciados propagandisticamente, incorporados no perfil subjetivo das personagens figurantes e protagonistas. Como argumentam CAMPOS e CAMPOS (2012), ao veicular repetidamente as performances de gnero, a publicidade fornece aos espectadores modelos masculinos e femininos, respectivamente identificados pela associao desses papis percepo e aos valores de uso de cada produto. Da mesma forma, essa oposio genrica reitera a estrutura hierrquica entre esses dois arqutipos, que se apresentam como construes sociais de poder complementares. A relao entre esses dois polos, portanto, mantm sua ntida desigualdade apoiada em preceitos culturais ao invs da suposta ideia, defendida pela ideologia dominante, de uma diferena pautada em caractersticas biolgicas e inatas. Nesse sentido, a SILVA (2003) prossegue sua anlise apontando a explorao formal e imagtica do corpo feminino nos comerciais de bebidas alcolicas como exemplo contundente da reproduo de mecanismos de poder senhoriais ainda vigentes. Esses mecanismos so, na realidade, a consequncia de uma preponderncia ideolgica, ainda presente em nossa sociedade, de uma heteronormatividade machista, como apontada por ABREU et al. (2011) em sua anlise da campanha da Bombril veiculada em 2011 e intitulada Mulheres Evoludas. Nesse estudo, as autoras desenvolvem como a publicidade participa de forma a reiterar os valores da atual elite capitalista. Aps estudar cada uma das seis vinhetas propostas pela campanha, elas propem observaes relevantes, das quais duas merecem ser destacadas. Primeiro, o fato comumente (e equivocadamente) propagado por iniciativas pseudofeministas (ABREU et al., 2011) que consistiria na simples inverso entre a figura do dominador e do dominado. Ou seja, na campanha da Bombril, as mulheres evoluem para o patamar dos homens, que so, por sua vez, rebaixados, preservando a ordem adequada de papis hierrquicos. Um outro exemplo no mencionado pelas autoras, mas tambm ilustrativo no contexto produtos de limpeza, foi a campanha da Vanish, veiculada em 2012 e intitulada Sim Senhora, que faz um trocadilho com a palavra tanquinho e mostra diversos homens malhados exibindo seus corpos conforme demonstram a eficcia do produto. Ao invs de eliminar o preconceito de que lugar de mulher no tanque, a propaganda simplesmente ratifica a situao de diferena entre os gneros, transferindo a prtica de objetificao comum mulher para o homem. De fato, ambas as campanhas, ao invs de proporem uma reflexo sobre a preconceituosa percepo social da mulher, acabam por corroborar ainda mais a sua posio como a velha dona de casa, pois, mesmo com todos esses artifcios pseudorevolucionrios, os anncios mantm a concordncia de que, ao final de tudo, a mulher que representa o pblico objetivado pelo produto; ela que, inevitavelmente, deve entender da funcionalidade e utilidade de cada mercadoria anunciada, pois ser ela que, finalmente, dever cuidar dos afazeres domsticos. Ainda hoje, como destaca CARVALHO (2003), a sociedade de consumo identifica e refora o papel feminino como estrutura central do ncleo familiar, desempenhando o papel de protetora da casa. Em consonncia, SILVA (2003) refora que, majoritariamente, as figuras femininas presentes nos comerciais televisivos para a famlia reproduzem papis tradicionais como o de responsvel pelas tarefas domsticas e pela educao das crianas. A autora ainda prossegue, enfatizando que, quando a publicidade dirigida, predominantemente, para o pblico masculino, os aspectos da mulher enquanto sujeito so desvalorizados em privilgio do apelo imagtico e sexual do corpo feminino. Nesse sentido, ainda a mulher a figura representativa do lar, mesmo em uma sociedade cujo nmero de homens que se ocupam com os afazeres domsticos vm crescendo constantemente; solteiros, casados ou divorciados. A respeito disso, recorrendo novamente ABREU et al. (2011), o segundo ponto destacado: em todos os vdeos h somente a meno a casais heterossexuais, o que, segundo as autoras, faz da campanha publicitria ser ainda mais normalizadora de gnero. Na realidade, praticamente na totalidade dos principais comerciais e anncios de produtos de casa e limpeza normalmente veiculados, h basicamente o retrato de mulheres brancas, magras, de cabelo liso, aparentemente jovens e pertencentes classe mdia. Alm disso, para reforar ainda mais o esteretipo, a maioria das protagonistas so retratadas, seno como esposas, como mes. Ou seja, apesar de muitas propagandas atualmente apostarem na ideia de uma mulher evoluda e moderna, possvel perceber atravs do discurso subjetivo dos principais anncios que o lugar social da mulher ainda o privado: a casa e a famlia. Talvez encantada pelo relativo avano que a figura feminina alcanou na publicidade (quando comparada a algumas dcadas atrs), NISHIDA (2007) tenha se expressado de forma to otimista quanto a contempornea abordagem da dona de casa indo alm da exclusividade de sua plena dedicao ao lar, mas tambm tendo tempo para investir em si mesma, viajar, trabalhar etc. Entretanto, mesmo essa corajosa valorizao dos mltiplos papis (NISHIDA, 2007) da mulher, embora no retrate o mesmo perfil pejorativo da antiga dona de casa, apenas reitera que a mulher, diferente do homem, pode fazer tudo o que quiser, contanto que cuide das responsabilidades inerentes a ela. Acerca da campanha de eletrodomsticos da marca Mabe, lanada em 2008 e com o mote Mabe: a marca da multimulher, CAMPOS e CAMPOS (2012) destacam esse acmulo de tarefas da mulher moderna, que embora tenha conquistado seu espao pblico, no se libertou de suas responsabilidades privadas. Nesse sentido, ao invs de a figura feminina ser emancipada de vez dessas supostas obrigaes como exemplificado diariamente pela crescente diviso dos afazeres do lar entre os membros familiares ou pela contratao de profissionais domsticos , a criao publicitria prefere prosseguir com sua aderncia aos esteretipos de identidade e gnero castradores das liberdades individuais. Segundo LIPOVETSKY (2000) o ideal de boa esposa e me no desaparece de modo algum, mas a retrica sacrifical que o acompanhava, at ento, encontra-se mascarada pelas normas individualistas do bem-estar e da seduo (p. 210). Ou seja, a prpria construo pelos grandes agentes publicitrios dos mitos de vida plena e qualidade de vida, os quais menciona ROCHA (2003), juntamente com os igualmente inalcanveis padres de beleza, so de tal forma contundentes, que ofuscam os esteretipos to corriqueiramente propagados. ROCHA (2003) incisiva ao destacar a ao dos grandes agentes publicitrios na identificao de valores e na posterior elaborao de conceitos, como os mencionados anteriormente. Esses mitos, segundo a doutora, so consequncias de uma estratgia de legitimao do capital, isto , de respaldo estrutura econmica de consumo e de mercado. Com a iminncia de comodizao das mercadorias devido ao nivelamento das tcnicas de produo e ao aumento da concorrncia , e o provvel esvanecimento da vida til dos bens e servios pela instabilidade dos possveis valores conferidos a eles , a partir da dcada de 1990, os atributos estritamente tcnicos e funcionais de um produto, portanto, cederam lugar a caracteres abstratos e simblicos. Dessa forma, as informaes antes associadas a um enfoque didtico e informativo, que foram transferidas para a aplicao de valores no mais associados diretamente ao produto, mas a elementos abstratizados que representassem pontos de maior estabilidade e menor fugacidade. Os ideais, ento, de qualidade de vida e responsabilidade social, como discorre a autora, so constantemente evidenciadas de diversas formas nos principais anncios, que buscam alcanar a anuncia da opinio pblica e, dialeticamente, fundamentar e fortalecer os preceitos favorveis classe dominante, consequentemente, satisfazendo os interesses da mesma. Portanto, apesar do recente crescimento do potencial de compra de uma nova classe mdia, em um pas cujo processo de miscigenao bastante acentuado (SILVA, 2003, p.5), os modelos de personagens e cenrios veiculados, continua bastante distante da realidade material. Embora considervel parcela social dos consumidores brasileiros sejam negros e pardos, sua presena nos principais comerciais continua relegada, privilegiando as representaes de classes social e economicamente mais privilegiadas. Como a publicidade do grande capital visa preservar a hegemonia da elite, no de se espantar essa disparidade de representaes, uma vez que a classe dominante ocidental continua a ser constituda por homens brancos, heterossexuais, ricos, casados e com filhos. O mesmo se aplica s campanhas de produtos de limpeza, que refletem aquilo que surge de forma a valorizar a mentalidade e os hbitos desse grupo seleto e que, por meio dos agentes de comunicao, se eleva uma utopia de vida perfeita, que passa a ser idealizada pelas classes inferiores. A associao intencional do uso do produto uma imagem de um ambiente mais limpo, mais alegre e esteticamente impecvel, promovendo uma vida mais prtica e mais feliz, a abstrao quimrica que o produto carrega consigo e promete fornecer, metaforicamente, como em uma venda casada. Essas percepes valorativas sobretudo acerca dos parmetros esttico e de lazer considerados bons so, diga-se de passagem, completamente distantes da realidade da maioria dos brasileiros. Esses ideais, fatalmente, s podem ser alcanados por uma elite que no apenas tem condies de pagar por um bom domiclio, um bom arquiteto, um bom designer, um bom paisagista, etc, como tambm podem contratar um ou mais profissionais para cuidar dos servios domsticos e da manuteno da casa. As empregadas domsticas, a propsito, so figuras extremamente comuns no cotidiano brasileiro, mas que jamais so retratadas nos comerciais, que se ocupam em veicular a ideia da super me, que realiza tudo sozinha. Devido inevitvel frustrao de no conseguirem reproduzir a idlica realidade das vinhetas e propagandas, o pblico consumidor se contenta com a aquisio do produto como forma de se aproximar daquele desejado estilo de vida (CORRA, 2011; FONTANELE, 2006; ROCHA, 2003). O grande capital, portanto, se apoia na mquina publicitria para a perpetuao e penetrao das ideologias da elite dominante, atravs de uma criatividade estratgica (ROCHA, 2003). Esta um processo em que os valores identificados e recomendados pelo marketing, pesquisa e planejamento, so posteriormente traduzidos pelos esforos de criao. Aqueles reconhecem as possveis tendncias e resistncias, enquanto elaboram um elemento diferenciador de fcil comunicao e assimilao por parte do pblico (muitas vezes, apresentando-o como uma novidade). Dessa maneira, a perpetuao do ideal hegemnico dominante no se d tanto mais pela imposio de valores, mas sim pelo convencimento, como destaca BRETON (1999). De acordo com este, o ato de convencer, muitas vezes, utilizado como uma alternativa ao uso da violncia fsica, que, no contexto publicitrio, surge como elaborados mecanismos de violncia simblica que reforam a lgica de dominao existente. Segundo o autor, a publicidade moderna deve sua eficincia utilizao simultnea de todos os registros com o objetivo de convencer, propondo uma comunho entre abordagens racionais e apelos emocionais na produo de anncios. De acordo com FONTANELE (2006), para assegurar e existncia permanente do seu nome, a marca busca na sociedade os objetos fetiche que carregam com eles os valores que ela deseja incorporar para, posteriormente, reformul-los. A prpria construo das imagens est em constante sintonia com os valores da poca, logo, a marca se inspira e se refere realidade social para poder, assim, tornar-se parte integrante desta. A campanha do Veja Multiuso, por exemplo, veiculada primeiramente em 2007 e intitulada Neura da Limpeza, mostra a facilidade de uso do produto a ponto de que a consumidora possa mandar a neura embora. Alm de determinar que a mulher deve se preocupar com a limpeza da casa, insinua que ela invariavelmente adere e concorda com essa ideia, pois se sente incomodada e ansiosa em relao baguna. Ademais, h ainda a sugesto de que, com o tempo livre restante, a consumidora pode se focar mais em cuidar da sua aparncia ou descansar depois do trabalhar, por exemplo, e, claro, cuidar dos filhos. Essa abordagem atualizada busca mais adaptar um discurso/reivindicao social feminino de independncia ao interesse da marca do que desconstruir uma viso de mundo de mulher subserviente. Na realidade, mais uma vez, se refora esta ltima ideia, pois indica a dupla jornada de trabalho qual deve se sujeitar a mulher, que, por esse motivo, deve aspirar por consumir produtos que tragam maior praticidade ao lar. O sucesso da manuteno da hegemonia, portanto, se deve ao fato de que as mensagens veiculadas manipulam situaes da prpria realidade social e, nas palavras de ROCHA (1995), a publicidade retrata, atravs dos smbolos que manipula, uma srie de representaes sociais, sacralizando momentos do cotidiano (p.26). Logo, aspectos do cotidiano banal so transcendidos da vida ordinria e se tornam imbudos de uma necessidade de consumo de um bem imaterial e ilusrio: o estilo de vida. Embora a publicidade incorpore detalhes da realidade simblica de seu pblico e se deixe moldar pelas foras atuantes no mundo social, ela no cria representaes fiis destes. SILVA (2003) destaca que apesar de os consumidores no reproduzirem literalmente as mensagens publicitrias, eles as assimilam simbolicamente, compreendendo-as como essenciais vida. Mais que isso, uma vez expostos aos valores veiculados pela incansvel massa de produtos inseridos em contextos idealizados e carregados de possibilidades tentadoras, os receptores se veem engolfados por vises de mundo que se interligam, se referenciam e se legitimam. Uma vez que a publicidade pretende conquistar seu pblico menos pela razo do que pela seduo, seus abusos sinestsicos e sensoriais invadem a mente da grande massa consumidora sem quase resistncia, no s implantando necessidades de consumo, mas empurrando ainda mais fundo padres constantemente propagados pela dominncia ideolgica da heteronormatividae machista capitalista. Em um estudo sistemtico acerca da representao genrica na publicidade, realizado por PEREIRA e VERSSIMO (2006), foi constatado que figuras masculinas esto mais conotadas com os valores de ambio e alegria, emergindo em contextos mais despreocupados e descontrados. Por outro lado, figuras femininas esto mais conotadas com os valores de auto controle e de responsabilidade, emergindo em situaes mais cotidianas e domsticas. Enquanto o homem aparece claramente associado s dimenses sociais e de status, a mulher representada em contextos de maior sobriedade e associados, quando em sentido hednico, ao mundo da beleza. Da mesma forma, na anlise sociolgica feita por CORRA (2011), ela destaca que a publicidade refora a instituio da maternidade como sendo fundamental para a definio do feminino associado ao cuidado e falta de autonomia e de realizao pessoal das mulheres em oposio paternidade, vista como basicamente ligada autonomia masculina conotada pela realizao pessoal e profissional dos homens. Toda essa maquinao, sem dvida, remete-se a presena e liberdade de ao quase incontestveis desses agentes comunicacionais. ROCHA (2003) mesmo menciona a relao dessa influncia com a ascenso do neoliberalismo, aps a dcada de 1980, mas, para tanto, recorreremos BEZERRA (2012). Em seu texto, a autora enfatiza como o prprio CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentao Publicitria) surge com o mpeto de combater uma possvel regulamentao externa por parte do Estado, um reflexo neoliberal de substituio do papel do governo pelos interesses privados (da elite). O que se percebe, portanto, uma atuao que, de forma alguma, desinteressada; muito pelo contrrio, extremamente consciente, uma vez que o possvel papel punitivo exercido pelo Estado amenizado quando realizado por organizaes no governamentais (nas quais se inclui o CONAR), pois estas no detm o mesmo respaldo legal para repreenso, fundamentando-se, sobretudo, em recomendaes. BEZERRA (2012) ressalta a perversidade dessa estrutura, j que a prpria cpula do CONAR formada pelos principais empresrios do setor comunicacional, que no medem esforos para defender o discurso da autorregulamentao, afastando qualquer influncia estatal que possa comprometer seus rendimentos. A prpria tica de trabalho torna-se comprometida com pensamentos que reforam o individualismo, a privatizao, a competitividade e a proibio de conflitos, ideias que, na realidade, so a manifestao dos interesses do grande capital neoliberal para a anulao do poder pblico. Por um lado, como destaca ROCHA (2003), a nova modalidade discursiva de legitimao do capital busca promover o ideal daquilo que utopicamente seria uma vida feliz; tempo, espao e relaes afetivas completamente plenas, ou seja, livres de tudo aquilo que representa as obrigaes cotidianas. A esse pensamento a autora se refere como sendo uma tica romntica, na qual os agentes da classe dominante se inspiram para a conceptualizao de suas mercadorias. Alm disso, a lgica de vida plena de grande interesse para o grande capital, pois, sabendo-se inalcanvel, apenas estimula a insaciabilidade do consumidor por mais e mais novas aquisies, da qual as empresas se aproveitam para a obteno maior de lucros. Em outra vertente, a retrica desses mesmos agentes busca produzir a aquiescncia por parte da opinio pblica com base na ideia de responsabilidade social, ou seja, no ideal de uma suposta preocupao com a comunidade por parte da marca. Essa necessidade, por sua vez, promoveu uma novo exerccio publicitrio: o investimento na construo da marca fundamental na atualidade no que diz respeito ao posicionamento favorvel de uma empresa em relao outra. Ao invs da maior parte dos esforos se voltaram para a valorizao direta do produto, a identidade da marca (seu nome, sua imagem) passa a ser a grande agregadora de valores e, dessa forma, passa a irradiar para toda sua cadeia produtiva a percepo que o pblico tem sobre ela. O derradeiro malicioso mrito das estratgias narrativas dos principais agentes comunicacionais, portanto, est no fato de que, ao atingirem as principais crenas de seu pblico, auxiliam no processo de manuteno das estruturas de poder senhoriais ainda presentes em nossa sociedade (SILVA, 2003, p.4). Se aproveitando do deslumbramento ocasionado pela identificao e representao dos sonhos, ideais e preferncias de seus consumidores, os anncios promovem a reproduo de esteretipos de identidade e gnero, mas disfarados com uma abordagens aparentemente despretensiosa, ofuscada pelas outras hiprboles e conceitos de vida propagandsticos. Entretanto, a verdadeira falcia das grandes maquinaes publicitrias reside no fato de que elas se inspiram na realidade material de seu pblico e, em seguida, a pervertem conforme os valores da ideologia dominante, criando uma utopia que ao mesmo tempo irresistvel e inalcanvel.

Concluso

Segundo o Conar, toda propaganda deve respeitar a dignidade da pessoa humana, a intimidade, o interesse social, as instituies e os smbolos nacionais, as autoridades constitudas e a famlia. Nenhuma propaganda deve apresentar ofensa ou discriminao racial, social, poltica, religiosa ou de nacionalidade (CDIGO BRASILEIRO DE AUTO-REGULAMENTAO PUBLICITRIA, 2006). Contudo, como foi possvel perceber ao longo do trabalho, nem sempre so de fcil identificao os elementos que podem comprometer esses preceitos morais, uma vez que a publicidade se apoia largamente na propagao de moldes e padres preconizados pelo senso comum. Como coloca CORRA (2011), as campanhas publicitrias oferecem constantemente modelos normativos que concorrem para a institucionalizao de papis sociais. Esses discursos oferecem tambm maneiras de se formar um sujeito generificado que, juntamente com o discurso de venda do produto, igualmente vendido com a ideologia que se prope e que, discretamente, se impe. Nesse sentido, o que mais se consume num anncio no o produto, mas o estilo de vida, os ideias e as vises de mundo. No caso do objeto de estudo do presente trabalho, o que as propagandas induzem ao consumo no so os produtos, mas, primeiramente, a ideia daquilo que significa ser mulher, pois uma vez alcanado isso, a venda dos produtos surge como uma consequncia almejada. A publicidade da elite social capaz de prescrever no apenas padres de consumo, como tambm normas de comportamento e regras de condutas socialmente aceitas. [...] Ela um novo tentculo do capitalismo na esfera da cultura (CAMPOS e CAMPOS, 2012). Por isso inevitvel concluir a participao dos artifcios publicitrios na propagao e legitimao ideolgica, propondo campanhas que promovam valores como juventude, beleza e sucesso, aos moldes do perfil dominante praticamente inacessveis pela maioria da populao. No caso das mulheres, nunca demais reforar como muitos dos argumentos narrativos veiculados constroem uma identidade contrria s principais conquistas feministas nos ltimos anos (como a objetificao do corpo e a obrigatoriedade do matrimonio e da maternidade).Na realidade, o principal desservio dessas campanhas reside na capacidade de naturalizao acerca desses pensamentos, contribuindo subliminarmente para a permanncia de preconceitos seculares e, simultaneamente, refreando as iniciativas de minorias politizadas contra os padres opressores. Como resume CHAU (1984), a ideologia inverte a percepo do real; logo, as divises e hierarquias construdas histrica e culturalmente, so apresentadas como ideias universais aceitas como verdadeiras, pois so vistas como guias/definidoras das aes humanas, e no resultado delas. Essa inverso da realidade faz da ideologia uma iluso pela qual os homens reproduzem o aparecer social como realidade, permitindo que a explorao ocorra naturalmente sem ser percebida. A ideologia fabrica uma histria imaginria com base em sujeitos supostamente autnomos (Estado, Nao, Razo, Homem/Mulher...), e que sustentam o pensamento dominante, mantendo sua hegemonia atravs de uma falsa memria. Portanto, preciso se enxergar alm das iluses de forma (FONTANELE, 2006) que so construdas e incorporadas no produto ou na marca atravs de ideais abstratos como vida feliz e padres de gnero. Afinal, os principais esteretipos perpetuados pelas estratgias dos agentes publicitrios, cargo do grande capital, no so vlidos per si, mas resultam de uma construo normativa proposital de uma subjetividade especfica. Nesse sentido, necessrio compreender que ser homem ou ser mulher , antes de tudo, o fruto de uma construo social e coletiva, e no propriamente uma realidade inexorvel e natural.

Referncias Bibliogrficas

ABREU, A. L. N.; AZERDO, S. M. da M.; CAMPOS, S. de S. Mulheres Evoludas: A Publicidade na Reiterao da Heteronormatividade. Sociais E Humanas, Santa Maria, v. 24, n. 02, jul/dez 2011, p. 192-197.

BEZERRA, Glcia Maria Pontes. Regulamentao da comunicao publicitria no Brasil: disputas entre mercado, estado e sociedade civil. Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, 2012.

BRETON, Philippe. A argumentao na comunicao. Bauru: EDUSC, 1999.

CAMPOS, Dbora Mendes; CAMPOS, Fernando de. Homens Sujeitos, Mulheres Objetos: o papel da publicidade na reproduo da ideologia de gnero. Revista do Laboratrio de Estudos da Violncia da UNESP/Marlia. Ed. 9, 2012.

CARVALHO, N. de. Publicidade A linguagem da seduo. So Paulo: editora tica, 2003.

CORRA, Laura Guimares. Mes cuidam, pais brincam: normas, valores e papis na publicidade de homenagem. Tese de Doutorado em Comunicao Social Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

CHAU, Marilena. O que ideologia?. Editora Brasiliense. So Paulo, 1984.

FONTENELE, Isleide. O nome da marca. Boitempo: So Paulo, 2006, pp. 280-297.

IASBECK, Luis Carlos A arte dos slogans: as tcnicas de construo das frases de efeito no texto publicitrio. So Paulo: Editora Annablume, 2002.

LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher. Traduo de Maria Lcia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, 2000.

NISHIDA, Neusa Fumie. A tica deontolgica na publicidade dirigida mulher. Comunicao & Inovao; v. 8. So Caetano do Sul, 2007, pp.39-47.

PEREIRA, Francisco Jos Costa; VERSSIMO, Jorge. (2006). Women in Portuguese advertising. ICORIA, 2006.

ROCHA, Everardo P. Guimares. Magia e Capitalismo: um estudo antropolgico da publicidade. So Paulo: Brasilense, 1995.

ROCHA, Maria Eduarda da Mota. A nova retrica do grande capital: a publicidade em tempos neoliberais. Tese de Doutorado. Universidade de So Paulo (USP), Programa de Ps-graduao em Sociologia, 2003.

SARTI, Cynthia A. O incio do feminismo sob a ditadura no Brasil: o que ficou escondido. In: XXI Congresso Internacional da Latin American Studies Association (LASA), 1998.

SILVA, Renata Maldonado da. Gnero, Argumentos e Discursos na Publicidade Televisiva Brasileira. Trabalho apresentado no Ncleo de Comunicao e Cultura das Minorias, XXVI Congresso Anual em Cincia da Comunicao, Belo Horizonte/MG, 02 a 06 de setembro de 2003.

CDIGO BRASILEIRO DE AUTO-REGULAMENTAO PUBLICITRIA. Disponvel em: . Acesso em 5 de dezembro de 2013.