a gestão do tempo e do espaço
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A gestão do tempo e do espaço. Katiene Nogueira da SilvaTRANSCRIPT
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SILVA, Katiene Nogueira da. “A gestão do tempo e do espaço na escola”, texto didático produzido para a disciplina
“A gestão do tempo e do espaço na escola” do Curso Gestão da Escola para Diretores, Programa REDEFOR,
SEE/USP, São Paulo: 2010/2011 (www.redefor.usp.br, acesso em x/x/xx)
“A gestão do tempo e do espaço na escola”
Katiene Nogueira da Silva
Prezados cursistas, nesta disciplina abordaremos a gestão do tempo e do espaço na
escola, a utilização do espaço e as relações com o tempo, tanto do ponto de vista legal, a
partir de documentos que visam a organizar o trabalho na escola, quanto do ponto de
vista teórico, a partir de textos que nos ajudam a compreender a questão.
Temporalidades da nossa vida
O tempo é um dos elementos que constitui o nosso cotidiano e ele adquire
diferentes concepções na sociedade, que podemos chamar de temporalidades. As
temporalidades impõem um ritmo à nossa vida e regulam o nosso cotidiano (PINEAU,
1989). Entendemos por temporalidades as diferentes modalidades de experimentação do
tempo pelas pessoas. Há diferentes marcações do tempo no espaço social como, por
exemplo: o tempo da escola, o tempo do trabalho, o tempo do lazer. As ideias sobre o
tempo não são inatas, elas foram construídas a partir da reflexão sobre a ação. Se hoje
em dia podemos pensar em nossa rotina como algo “natural”, ao olharmos para o
passado é possível compreender que ela foi construída de modo a garantir que diversas
operações sociais pudessem ocorrer com regularidade. Para que a sociedade se
organizasse era necessário que a vida das pessoas também estivesse organizada e
obedecesse a um determinado ritmo, com horários determinados para acordar e para
dormir, para estudar, para comer, para trabalhar, independente da vontade e da
disposição que as pessoas tivessem para acordar, para comer, para trabalhar, etc. Assim,
embora existam diferenças entre o tempo físico – aquele passar do tempo comum a
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todos – e os tempos individuais – aquele sentido de um modo diferente por cada pessoa
– todos são levados a obedecer a um mesmo ritmo estabelecido pelo calendário e pelo
relógio. Mas como experimentamos o tempo?
Às vezes, quando estamos em um momento difícil, não temos a sensação de que
o tempo está demorando a passar?
Se, por acaso, trancamos a chave dentro do carro e temos um compromisso
importante, estamos atrasados e aguardamos a chegada do chaveiro, não parece que o
intervalo entre o aparecimento deste problema e a solução levou uma “eternidade”?
Ou então, quando vivenciamos uma situação que nos dá muito prazer, não é
comum sentirmos que o tempo passa rápido demais?
Depois de dias de trabalho intenso, não é comum sentirmos que o final de
semana “passou voando”?
Portanto, se contarmos no relógio o período de uma hora, de acordo com a
atividade que estivermos realizando somos capazes de sentir o tempo passando de
maneiras muito distintas. Durante a nossa infância, a entrada na escola é um evento que
marca a nossa história de diversas maneiras, afetando diretamente a nossa relação com o
tempo e com o espaço – como veremos adiante. Quanto ao tempo, é na escola que
experimentamos o sentimento da rotina imposta por um espaço público, exterior à nossa
casa: é nela que vivenciamos a nossa primeira experiência em uma rotina imposta pelo
tempo no espaço público. É lá que aprendemos a obedecer a um ritmo diferente
daquele imposto por nossa família. Na escola, todas as atividades são reguladas: há um
tempo para brincar, o recreio, há um tempo para comer, o intervalo, há um tempo para
aprender, a aula. Há um horário específico para chegar e outro para ir embora. Além
desse ritmo que a escola impõe ao nosso cotidiano, quando iniciamos a nossa
escolaridade, os anos das nossas vidas também passam a ser estruturados de outra
maneira a partir deste evento: a nossa disponibilidade para viajar, passear e visitar os
familiares que moram longe passa a existir que acordo que o período no qual não
precisaremos ir à escola - as férias. Na infância e na juventude, no período em que
freqüentamos a escola experimentamos uma relação com o tempo semelhante àquela
que vamos sentir na idade adulta, com relação ao tempo do trabalho: aprendemos a
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obedecer a um ritmo que não é o nosso, que é o da instituição na qual estamos inseridos,
seja a escola, seja o trabalho, mas que passa a estruturar a nossa vida.
O tempo na escola de outros tempos
E a escola brasileira existiu sempre assim? Não, no Brasil, até o início do século
XIX a educação das crianças era realizada principalmente em casa ou na comunidade,
fato conhecido como socialização endógena ou socialização primária. A partir de então,
a educação das crianças passou a ter um lugar próprio para acontecer: as escolas, que
inicialmente eram chamadas como “escolas de primeiras letras” ou “escolas isoladas” e,
posteriormente, surgiram os grupos escolares, que foram os primeiros edifícios
construídos para funcionarem como instituições escolares (FARIA FILHO, 1996;
HILSDORF, 1996; SOUSA, 1996). A socialização realizada nestes casos é conhecida
como exógena ou secundária, por ocorrer fora do ambiente familiar. Até meados do
século XIX, como a sociedade precisava principalmente da cultura oral para a sua
manutenção, a socialização primária, realizada no lar, era suficiente para garantir às
pessoas o aprendizado de que precisavam para sobreviver, conviver umas com as outras,
trabalhar e formar uma família. Com a organização dos Estados modernos e também da
burocracia criada junto com eles, a cultura oral passou dar lugar em importância à
cultura escrita. Assim, a escolarização foi aos poucos se tornando cada vez mais
necessária para a sobrevivência, para o trabalho e para a vida das pessoas. Isso porque
os contratos e os documentos passaram a multiplicar-se e a necessidade de que as
pessoas aprendessem a escrever para produzi-los, obedecê-los e assiná-los também.
Desta forma, a escola passou a ser considerada a instituição que seria capaz de oferecer
às pessoas os elementos de que necessitavam para manutenção da vida em sociedade,
nela as pessoas aprenderiam a ler, a escrever e a contar (FARIA FILHO, 1996).
Se no século XIX os tipos de educação ministrados eram múltiplos e diversos, no
início do século XX começou a existir um sistema de ensino unificado, sistematizado,
gratuito e obrigatório. Nesse momento o Estado encarregou-se da educação formal,
substituindo a Igreja. O poder, nessa época conhecida como “moderna”, tornou-se
exclusividade do Estado, que legitimava a sua autoridade através de regras, da
magnificência da arquitetura dos edifícios, do currículo formal e da organização dos
sistemas e ensino. A legitimação do poder do Estado ocorre através da adoração aos
símbolos pátrios – a bandeira, o hino, fazendo com que a interioridade de cada um seja
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voltada para uma abstração. Enfim, tal legitimidade é construída através de todos os
objetos que possam dar visibilidade a algo passa a ser fundamental, mas que é abstrato: a
palavra, que passa da forma oral para a escrita (FARIA FILHO, 2000). Submeter às
crianças atividades organizadas, de modo a regular o seu tempo, garantindo a sua
ocupação incessante, poderia ajudar a controlar o seu comportamento, mas também
geraria disposições em relação à regularidade. Sujeitar o desenvolvimento da vida dos
indivíduos a uma divisão em seqüências temporais previstas antecipadamente e levá-los
a “fazer as coisas na hora certa” seria o tipo de comportamento propício à aquisição da
noção do dever. As ações organizadas visariam não somente a controlá-los, mas também
a levá-los a adquirir hábitos de vida regular, assiduidade e pontualidade. Segundo Rita
Gallego (2008), a relação do tempo com o conhecimento, que foi instaurada ao longo do
século XIX, em um período no qual houve a difusão mundial da “escola de massas” –
escolas concebidas para atender a população em geral – marcou a tal ponto a concepção
das pessoas em relação às funções que caberiam à escola, que é comum que atribuam a
ela a tarefa de garantir a transmissão de um determinado número de saberes em um
tempo delimitado. A maneira como a escola foi organizada através da distribuição dos
tempos e dos espaços produziu uma representação – um modo tido por muitas pessoas
como o ideal ou mesmo como o único possível - da aquisição dos saberes e da
estruturação das aprendizagens. Assim, o que hoje em dia pode ser considerado como
“natural”, como a relação entre idade e série, ou o estabelecimento de determinado
conteúdo de acordo com o nível de ensino, foi construído socialmente e é fruto de um
processo histórico. Com a organização do sistema de ensino e a criação dos grupos
escolares, cada vez mais o tempo escolar se impôs à sociedade, marcando diferenças em
relação a outros tempos sociais, como o tempo do lar, da família, do lazer e do trabalho,
influenciando também esses outros tempos. Por ordenar o cotidiano das crianças a partir
do momento em que elas ingressavam na escola, o tempo escolar passou a ordenar
também o tempo do lar e da família (GALLEGO, 2008).
O tempo na escola atualmente
Como foi visto no módulo II, na disciplina “O Projeto Pedagógico e Autonomia
da Escola”, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, a Lei nº
9394/96, vinculou pela primeira vez autonomia escolar e projeto pedagógico num texto
legal, oferecendo às escolas a oportunidade construir o seu próprio projeto pedagógico
(AZANHA, 2006). Segundo José Mário Pires Azanha (2006) “o artigo 12 (inciso I)
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estabelece como incumbência primordial da escola a elaboração e execução de seu
projeto pedagógico e os artigos 13 (inciso I) e 14 (incisos I e II) estabelecem que esse
projeto é uma tarefa coletiva, na qual devem colaborar professores, outros profissionais
da educação e as comunidades escolar e local” (op. cit., p. 93). Dentre as referências
com relação ao tempo, na referida Lei, é importante salientarmos o artigo 23, que diz o
seguinte: “a educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais,
ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na
idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização,
sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. Parágrafo 1º:
A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências
entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas
curriculares gerais. Parágrafo 2º: O calendário escolar deverá adequar-se às
peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema
de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta Lei.” O
segundo parágrafo do artigo 23 expressa uma tentativa de conciliação entre o tempo da
escola e os tempos sociais, uma vez que visa a respeitar as particularidades dos
municípios, como as festividades locais e a cultura regional. O artigo 24 também nos
interessa especialmente com relação ao tempo. Ele diz que “a educação básica, nos
níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns:
I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de
duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais,
quando houver; II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do
ensino fundamental, pode ser feita: a) por promoção, para alunos que cursaram, com
aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola; b) por transferência, para
candidatos procedentes de outras escolas; c) independentemente de escolarização
anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e
experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme
regulamentação do respectivo sistema de ensino; III - nos estabelecimentos que adotam
a progressão regular por série, o regimento escolar pode admitir formas de progressão
parcial, desde que preservada a seqüência do currículo, observadas as normas do
respectivo sistema de ensino; IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos
de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino
de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; V - a verificação do
rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) avaliação contínua e cumulativa
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do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os
quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais;
b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c)
possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado;d)
aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) obrigatoriedade de estudos de
recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo
rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus
regimentos; VI - o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no
seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a freqüência
mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação; VII - cabe
a cada instituição de ensino expedir históricos escolares, declarações de conclusão de
série e diplomas ou certificados de conclusão de cursos, com as especificações
cabíveis”. Como é possível observar a partir dos referidos artigos da LDB, há uma
orientação geral acerca da utilização do tempo nas escolas, mas a sua organização fica a
critério das escolas. No artigo 25, é estabelecido que “será objetivo permanente das
autoridades responsáveis alcançar relação adequada entre o número de alunos e o
professor, a carga horária e as condições materiais do estabelecimento”. Nesse sentido,
de acordo com a legislação cabe ao governo oferecer as condições para que a educação
seja realizada, mas cabe à escola pensar na melhor forma de conduzi-la. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997), que foram criados a partir da promulgação da Lei nº
9394/96, visam à orientar o trabalho nas escolas, mas, assim como a LDB, eles também
não tem o objetivo de conduzir rigidamente os processos de ensino e aprendizagem,
nem tampouco de “engessar” as atividades e a organização do cotidiano das escolas, já
que ambos partem da ideia de que é preciso que as instituições educacionais trabalhem
com autonomia. Portanto, cabe a cada escola pensar na melhor maneira de utilizar e
organizar o seu tempo, de modo a atender os objetivos do seu projeto pedagógico
(AZANHA, 2006).
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), “a consideração do tempo
como variável que interfere na construção da autonomia permite ao professor criar
situações em que o aluno possa progressivamente controlar a realização de suas
atividades. Por meio de erros e acertos, o aluno toma consciência de suas possibilidades
e constrói mecanismos de auto-regulação que possibilitam decidir como alocar seu
tempo” (op. cit., p. 102). É por esse motivo que são importantes as atividades nas quais
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o professor é considerado como um orientador do trabalho, deixando com os alunos a
responsabilidade pela execução e pelo planejamento, levando-os a refletir, a ponderar, a
decidir e a vivenciar os resultados de suas escolhas acerca da utilização do tempo. Nesse
sentido, os estudantes passam de participantes a protagonistas das tarefas realizadas na
escola. Mas o documento adverte: “delegar esse controle não quer dizer, de modo algum,
que os alunos devam arbitrar livremente a respeito de como e quando atuar na escola. A
vivência do controle do tempo pelos alunos se insere dentro de limites criteriosamente
estabelecidos pelo professor, que se tornarão menos restritivos à medida que o grupo
desenvolva sua autonomia. Assim, é preciso que o professor defina claramente as
atividades, estabeleça a organização em grupos, disponibilize recursos materiais
adequados e defina o período de execução previsto, dentro do qual os alunos serão livres
para tomar suas decisões. Caso contrário, a prática de sala de aula torna-se insustentável
pela indisciplina que gera” (op. cit., p. 102) Ao permitir que as crianças e os jovens
controlem a utilização do tempo, a escola está fazendo desta tarefa um momento de
aprendizagem, ensinando-os a utilizar o tempo.
Com relação ao horário escolar, os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam
que ele deve obedecer ao tempo mínimo estabelecido pela legislação em vigor para cada
uma das áreas de aprendizagem do currículo: “a partir desse critério, e em função das
opções do projeto educativo da escola, é que se poderá fazer a distribuição horária mais
adequada. No terceiro e no quarto ciclos, nos quais as aulas se organizam por áreas com
professores específicos e tempo previamente estabelecido, é interessante pensar que uma
das maneiras de otimizar o tempo escolar é organizar aulas duplas, pois assim o
professor tem condições de propor atividades em grupo que demandam maior tempo
(aulas curtas tendem a ser expositivas)” (op. cit., p. 102).
Intervalos no tempo
Os intervalos no tempo são marcações, como os aniversários, os feriados, as
férias, que impõem um ritmo às nossas atividades. Na escola, o recreio é um intervalo
importante na marcação do tempo: nele, há um espaço para a recreação e para o lazer.
Tanto na vida social, quanto na vida escolar, o lazer é um tempo que cada tem para si
mesmo, após ter cumprido as suas obrigações com relação à família, à casa, ao trabalho e
à escola (PINEAU, 1989). O tempo do lazer representa um momento no qual as pessoas
ocupam-se de si mesmas, voltam-se para si mesmas, o que nem sempre pode ocorrer
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quando estamos envolvidos em atividades profissionais e escolares e utilizamos nosso
tempo em relação ao outro. Seja mediante o descanso, a diversão, as atividades
esportivas, culturais ou intelectuais, o lazer representa um intervalo importante no nosso
tempo porque ele nos leva a buscar a satisfação das nossas próprias necessidades. Não é
por acaso que as pessoas referem-se a esses períodos como momentos no qual “as suas
energias são recarregadas”. Mas a escola também ensina as crianças a utilizarem os seus
intervalos no tempo? Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), as escolas
devem oferecer uma educação que ultrapasse os conteúdos das disciplinas, visando à
formação ética dos alunos. Desta forma, as atividades extraclasse e o recreio – que seria
originalmente um momento de descanso realizado durante as aulas - também podem
representar uma ocasião em que haveria um trabalho voltado ao desenvolvimento e ao
cultivo dos valores morais, de acordo com o projeto político-pedagógico da escola. Um
elemento importante que influencia a condução das atividades no recreio dos alunos é o
espaço que poderá ser utilizado nesse tempo. E o espaço será o tema de que trataremos a
seguir.
Sentidos dos espaços
Vamos retomar o exemplo do recreio e continuemos pensando a propósito dele.
Seja ele dirigido, quando ele é compreendido pelo projeto político-pedagógico, de modo
que ele também consista num momento de aprendizagem para os alunos, seja ele
“livre”, quando os alunos podem descansar e conduzir o seu tempo naquele intervalo, o
espaço que a escola possui para a realização do recreio influencia diretamente o tipo de
atividade que poderá existir ali. Se a escola possui uma área aberta, como um parque,
um pátio ou uma quadra, os dias de chuva irão alterar a rotina dos alunos que precisarão
permanecer na sala de aula para que não se molhem, exigindo muitas vezes que os
próprios professores trabalhem durante esses intervalos, propondo atividades para
ocupar o tempo das crianças na impossibilidade de utilização do espaço destinado ao
lazer. A reflexão sobre o espaço busca compreendê-lo como uma construção não apenas
arquitetônica, mas também cultural. O espaço da escola também pode ser considerado
como uma forma de ensino: ele é um elemento significativo do currículo e uma fonte de
experiência e aprendizagem (ESCOLANO e VINÃO FRAGO, 2001). Segundo Antonio
Vinão Frago (2001), em um momento em que o mundo está globalizado e sofre
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constantes transformações, o espaço não pode ser visto apenas mediante a ótica da
necessidade de uma ordem determinada e pelo ponto de vista fixo. A organização do
espaço deve ter em conta o aleatório e o ponto de vista móvel, permitindo ao espaço ser
uma possibilidade e não uma limitação. Mas como isso seria possível? Nessa
perspectiva, o espaço estaria em constante transformação, adequando-se às necessidades
daqueles que nele habitam e transitam. O espaço não representa apenas um lugar no
qual podemos habitar, como a nossa casa, passear e nos locomover, como a rua,
trabalhar, como uma empresa, uma loja, um oficina, etc, ou aprender, como a escola: o
espaço também educa.
Assim como pensamos no lugar, poderíamos pensar no não-lugar (AUGÉ,
1994). Para Marc Augé (1994), enquanto o lugar seria aquele espaço personalizado que
nos acolhe, como a nossa casa, o não-lugar pode ser entendido como o espaço público
no qual as pessoas estão de passagem, como as estações de metrô, as rodoviárias e os
aeroportos, por exemplo. Enquanto o lugar está relacionado com a identidade das
pessoas, o não-lugar é marcado pelos deslocamentos impessoais. No âmbito da
pesquisas na área educacional, o espaço escolar, a sua transformação em lugar, foi
objeto de atenção tanto daqueles que se preocupavam com questões relativas à
organização, ao currículo e à didática, quanto daqueles que analisavam os tipos de
distribuição espacial que as instituições educacionais oferecem, assemelhando-se muitas
vezes a instituições de outra natureza, como os hospitais e os quartéis, como veremos
mais adiante. Essa forma de olhar para o espaço escolar e investigá-lo interessa
sobretudo à historiografia da educação e à história cultural das instituições escolares. As
investigações historiográficas recentes, que se interrogam acerca das práticas e da
cultura escolar, tentam reconstituir o cotidiano da escola e as suas práticas. José Mário
Pires Azanha (1991), partindo de um questionamento sobre a crise em educação,
defendeu que se processasse um estudo das práticas escolares, de forma a realizar um
mapeamento cultural da escola, privilegiando a sua constituição histórico-social. A
respeito desse tipo de pesquisa, Azanha afirmava: “O que interessa é descrever as
‘práticas escolares’ e os seus correlatos (objetivados em mentalidades, conflitos,
discursos, procedimentos, hábitos, atitudes, regulamentações, ‘resultados escolares’,
etc.). Somente o acúmulo sistemático dessas descrições permitirá compor um quadro
compreensivo da situação escolar, ponto de partida para um esforço de explicação e de
reformulação. (...) Que interesses objetivos (mas nem sempre explicitados) se associam
à formação e persistência dessas práticas?” (op. cit., p. 67) O autor questionava as
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reformas educacionais, defendendo que era no interior do espaço escolar que se definia
o destino das políticas públicas, pela forma como os professores lidavam com as
mudanças e pelas alterações nos padrões de trabalho. No seu entender, somente seria
possível entender as resistências apresentadas nas conexões entre a vida escolar e as
prescrições legais acerca dela mediante uma investigação que partisse de um estudo dos
indícios, para além dos estudos sobre as grandes reformas e os pedagogos ilustres.
Segundo Faria Filho et al. (2004), ao elucidar sobre a importância de um estudo acerca
das práticas escolares, Azanha “demonstrava a proficuidade do conceito na
operacionalização de análises sobre a instituição escolar a partir de diferentes vertentes
do conhecimento pedagógico” (op. cit., p. 141). Na mesma época em que Azanha
(1991) incentivava esse tipo de pesquisa, André Chervel (1990) propunha o estudo
sobre a história das disciplinas escolares e Jean Claude Forquin (1992) defendia a
interação entre as dinâmicas sociais e a cultura escolar. Para Faria Filho et al., no início
dos anos de 1990 dava-se início a uma reflexão que atingiria um grande número de
pesquisas educacionais. A preocupação com a questão da cultura escolar passou a fazer
parte dos trabalhos em história da educação por uma aproximação com a disciplina de
história, pela forma de lidar com as fontes, através de levantamento e sistematização de
documentos, e também “pelo acolhimento de protocolos de legitimidade da narrativa
historiográfica” (op. cit., 142). Os trabalhos que fazem uso da cultura escolar como
categoria de interpretação também partem de outras áreas disciplinares que compõe a
pedagogia, como a sociologia da educação, a psicologia da educação, a filosofia da
educação e a didática. Ao mesmo tempo em que as práticas evidenciavam elementos
que constituíam o cotidiano escolar, elas também consistiam em exercícios para a
formação de hábitos, ensinando não apenas a utilizar o espaço como também a estar no
espaço.
Assim como foi visto no módulo II “O projeto pedagógico e autonomia da
escola”, como discutimos o funcionamento da escola, é preciso que consideremos toda a
sua cultura escolar, os seus pressupostos e a sua história. No âmbito na história da
educação, a antiga história das idéias pedagógicas e das grandes reformas foi substituída
por uma nova forma de se fazer história. Esta antiga história se constituía de um saber
subsidiário, que contemplava uma repartição de conhecimentos sobre educação. Um dos
seus ramos era a história da pedagogia, que fornecia matérias para a reflexão filosófica
sobre os fins da educação, fornecendo ao pedagogo um conjunto de ideais
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corporificados em grandes sistemas pedagógicos (CARVALHO, 1998). Sob a
influência de uma perspectiva distinta, a história cultural, que trouxe novos objetos para
o cerne das questões históricas, como, por exemplo: os sistemas de parentesco e as
relações familiares, a atitudes perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos
religiosos, as formas de sociabilidade, os rituais, as modalidades de funcionamento
escolar, consagrou novos territórios ao historiador, por intermédio da anexação de
espaços antes dominados por outras ciências (CHARTIER, 1990). A mudança resultou
em uma ‘nova história’, que passou a apropriar-se de novos objetos, aplicando a eles um
novo tratamento, uma nova forma de se fazer pesquisa. A história cultural concilia
novos domínios de investigação, tendo em vista os postulados da história social, que
visava a uma nova legitimidade científica, baseando-se em aquisições intelectuais que
haviam fortalecido o seu domínio institucional. O principal objetivo deste tipo de estudo
cultural é identificar a forma como em momentos e lugares distintos uma mesma
realidade social é construída, pensada. Este tipo de trabalho pode apresentar vários
caminhos: o primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que
organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e
apreciação do real. A propósito dessa questão, Roger Chartier (1990) apresenta a
seguinte consideração: “variáveis consoantes às classes sociais ou os meios intelectuais
são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes
esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras às quais o presente pode
adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (op. cit., p. 17)
Com isso, a história da educação teve seu território redesenhado, e seus
interesses agora compreendem uma nova concepção de escola, de seus agentes e de suas
práticas. Segundo Marta Carvalho (1998): “Da História da Educação espera-se, agora,
capacidade de perspectivar o olhar e problematizar o estabelecido, historicizando-o, o
que se traduz na incorporação de procedimentos lastreados em ‘referenciais teóricos
atentos aos processos históricos de constituição de objetos investigados’. Nesse
processo são, sobretudo as perspectivas abertas e as questões lançadas pela chamada
Nova História Cultural que vêm redesenhando as fronteiras e redefinindo os métodos e
objetos da História da Educação” (op. cit., p. 32). Então, o modelo escolar educacional
começou a ser interpretado como uma construção histórica derivada da confluência de
dispositivos políticos, científicos, pedagógicos e religiosos. Novas questões e novas
modalidades de tratamento das fontes tem tornado possível a construção da história da
escola, que conta com a investigação acerca da cultura e das práticas que se constroem
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no interior do espaço escolar. Para o estudo da cultura escolar é preciso efetuar uma
análise das relações pacíficas ou conflituosas que ela mantêm, a cada época, com o
conjunto de culturas que lhe são contemporâneas, como a cultura política, a cultura
religiosa ou a cultura popular. Dominique Julia (2001) definiu a cultura escolar como
um conjunto de normas que definem os conhecimentos que devem ser ensinados e as
condutas que devem ser incorporadas, e um conjunto de práticas que possibilitam a
transmissão de tais conhecimentos e a incorporação de determinados comportamentos,
que sofrem alterações de acordo com a época vivenciada. O autor realizou uma crítica
aos historiadores da educação que, ao trabalharem com textos normativos, tendiam a
superestimar modelos e projetos e a compreender a cultura escolar isolada do mundo
exterior. Ele defendia que a atenção dos historiadores deveria voltar-se para o
funcionamento interno da escola. Julia atentava para que o pesquisador não se deixasse
“enganar” pelas fontes normativas com que trabalha, porque “a história das práticas
culturais é, com efeito, a mais difícil de se reconstruir porque ela não deixa traço: o que
é evidente em um determinado momento tem necessidade de ser dito ou escrito?” (op.
cit., p. 15). As mudanças por que passaram os estudos realizados no âmbito da história
da educação, recusando pesquisas essencialmente externalistas, evidenciaram uma
aproximação entre as análises macropolíticas e as investigações acerca do interior do
espaço escolar, fazendo com que a metáfora aeronáutica da “caixa preta” adquirisse
valor de argumentação (FARIA FILHO et al., 2004). A cultura escolar, esse conjunto de
valores, regras, normas, objetos, é construída através de conflitos e em função de
dinâmicas sociais. Os processos organizacionais que existem no interior na instituição
escolar fazem referência a este jogo educacional e cultural formado pela estruturação do
saber e pela transmissão de conteúdos cognitivos e simbólicos. Através do conceito de
cultura escolar são colocadas em foco as práticas que constroem a sociabilidade escolar
e, de uma forma também escolar, de transmissão cultural. (CARVALHO, 1998) O
estudo sobre a cultura escolar permite desnaturalizar a escola, concebê-la enquanto uma
instituição fundada com o intuito de promover não apenas o ensino da leitura, da escrita
e do cálculo, mas também a socialização das pessoas e a disciplina e sujeição dos corpos
a normas e regras, desvelando, de certa forma, o caráter intencional de suas práticas, da
utilização do seu tempo e da organização do seu espaço.
Exercício 1
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“Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e
muito prendadas.(...) Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da
maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos
a alguém, o portador garantia-lhes: ‘Farei presente’. Outros, ao cruzarem com um
sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: ‘Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo’, ao
que o Reverendíssimo correspondia: ‘Para sempre seja louvado’. E os eruditos, se
alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: ‘Dominus tecum’.
Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao
vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a
tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam,
quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes
os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As
meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias. (...) Mas tudo isso era antigamente, isto
é, outrora”. (“Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade In Quadrante (1962), obra
coletiva reproduzida em Caminhos de João Brandão José Olympio, 1970)
No poema “Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade (1962) brinca com
palavras muitos utilizadas no passado, deixando transparecer o comportamento que era
esperado das crianças e das jovens: as moças deveriam ser “mimosas” e “prendadas”, as
crianças deveriam “cuspir dentro da escarradeira” ao visitar familiares. No tempo
presente, o poeta relembra o tempo de outrora. Construa uma pequena reflexão acerca
da forma como você entende que as pessoas experimentam os diferentes tempos sociais,
especialmente com relação às diferenças que marcam o tempo do lar e o tempo da
escola. Tente recuperar em sua própria história fragmentos das relações com o tempo
nos dois casos citados (de casa e da escola).
Semelhanças entre os espaços
Ao pensarmos na configuração das nossas escolas, podemos nos interrogar
acerca dos princípios que orientaram a sua construção. Quais semelhanças existem entre
14
o espaço escolar e os outros espaços sociais? Michel Foucault (1994), em Vigiar e
Punir, nos ajuda a pensar mais demoradamente sobre essa questão. Neste livro, o autor
investiga o nascimento da prisão, trata da questão da disciplina e da forma como
ocorreu o processo de sujeição dos corpos às ordens e ao adestramento. No período que
compreende os séculos XVII e XVIII, o corpo foi descoberto como objeto e alvo de
poder. Ao tratar da formação do soldado, o autor afirma que ela dizia respeito a um
treinamento que o deixava eficiente como uma máquina: todos os seus gestos eram
calculados para que ele agisse na hora exata e com precisão. Nesse momento, o corpo
passou a ser visto como algo que precisava ser modelado e treinado. Contudo, este
treinamento era conquistado através de pequenos gestos e não de grandes ordens. No
período anterior a esse citado pelo autor, o controle sobre o comportamento das pessoas
era realizado de maneira bastante distinta: aqueles que não contribuíam com a ordem e
não agiam de acordo com lei, fosse ela ditada pelo Estado, pela monarquia ou pela
Igreja, corria o risco de ser queimado, de ter a sua cabeça decepada por um golpe de
guilhotina ou mesmo de ser surrado. Mas em qual espaço essas ações ocorriam? Em
praça pública. O fato das punições ocorrerem no espaço público – e também este tipo de
utilização do espaço - consistia numa estratégia disciplinar já que visava a dar
visibilidade à punição alheia, demonstrando a todos o que poderia acontecer com
aqueles que não se sujeitassem às normas e às regras estabelecidas. Mediante a
pesquisa realizada, Foucault defende que há um avanço nas “tecnologias do poder”,
uma modificação nas estratégias utilizadas para disciplinar as pessoas, que passam do
espaço público para o espaço privado. O nascimento da prisão altera a lógica disciplinar
anterior, já que a punição passa a ser realizada nos interior das instituições. Aliadas à
prisão, como estratégias de punição e de correção surgiram uma série dispositivos que
tinham por objetivo controlar o comportamento das pessoas. A própria arquitetura dos
edifícios obedecia a essa orientação. Nesta perspectiva, é possível entender que a
disciplina não é algo que sempre existiu da mesma forma, conquistada mediante tantos
detalhes, ela passou a contar com tantas prescrições quando foi dada uma maior ênfase
ao corpo: “o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do
corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o
torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente.” (op. cit., p. 127) Este
treinamento ao qual são submetidos os corpos consiste na disciplina, encontrada não
apenas em quartéis, mas em todas as instituições formadas pelos homens. A disciplina
15
tem o poder de colocar ordem, controlar as pessoas, organizar os espaços: “importa
estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos,
instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o
comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos.
Procedimento, portanto, para reconhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um
espaço analítico.” (op. cit., p. 131) As prisões nascem ocupando uma estrutura
arquitetônica conhecida como “panóptico”. Esse termo foi concebido pelo filósofo
inglês Jeremy Bentham, em 1785, ao pensar um modelo penitenciário que considerou
ideal, por permitir, a um baixo custo, uma vigilância constante daqueles que estivessem
encarcerados. A utilização do espaço, neste caso, foi pensada estrategicamente de modo
que apenas um vigilante, localizado em uma torre de observação construída no pátio
central da prisão, pudesse observar todos os prisioneiros sem que eles pudessem saber
se estavam ou não sendo vigiados, submetendo-os sob seu controle. Essa estrutura de
edifício de modo anelar ou retangular com um pátio interno também pode ser observada
em hospitais, escolas e fábricas. O espaço no interior destes prédios – as celas, os
quartos ou as salas – compreende em sua superfície dois tipos de janela: uma voltada
para o exterior de modo a permitir a entrada da luz e outra voltada para o pátio, de modo
a garantir a vigilância. Nesse sentido, a organização espacial era pensada para promover
a disciplina. Além da estrutura arquitetônica, para que a prática disciplinar se efetivasse
eram utilizadas “micropenalidades”, castigos e sanções que visavam a fazer com que o
indivíduo as incorporasse até que pudesse agir da forma esperada, sem que fosse preciso
verbalizar ou efetuar tal sanção. Tratava-se de processos sutis, como castigos leves,
privações temporárias ou pequenas humilhações que sinalizavam que a postura
assumida estava errada. No espaço escolar, havia ainda a recompensa, que reforçava o
bom comportamento através da oferta de medalhas, elogios e presentes. Mediante as
sanções exercidas, positivas ou negativas, o comportamento daqueles que as sofrem
tornam-se homogeneizados, tornando mais fácil o seu governo. Cada um passa a atuar
de acordo com aquilo que foi interiorizado, com o que foi estabelecido enquanto padrão
esperado de comportamento. A disciplina, seja ela utilizada na escola, no hospital, o
exército ou em qualquer outra instituição, com a finalidade de formar hábitos
adequados, gestos eficientes e impor ordem, pelo poder que ela exerce sobre as pessoas,
ela também humilha, exclui, reprime e censura. Controlando a diversidade, os mais
afetados nesse processo seriam os diferentes, aqueles que se desviassem do padrão
estabelecido. A disciplina controla as pessoas, organiza os espaços e estende-se dos
16
quartéis para as escolas, os hospitais, as igrejas, as famílias, enfim, para todas as
instituições onde há sempre um poder a ser exercido e ordens a serem cumpridas. A
escola, por sua vez, enquanto instituição disciplinadora e formadora é dotada de todas as
características que podem controlar o comportamento dos indivíduos porque um “corpo
disciplinado”, segundo o autor, “é a base de um gesto eficiente”: nela, as crianças são
castigadas ou premiadas, são vigiadas permanentemente, possuem horários fixos para as
atividades, formam filas e usam todas um mesmo tipo de roupa, os uniformes escolares.
Na escola, a organização do tempo e do espaço também submetem os alunos à
disciplina. Segundo Carlos Eduardo Guimarães (1982), a disciplina enquanto submissão
a normas é condição para o domínio de determinada matéria e deve estar presente no
processo de ensino e de aprendizagem. Nas palavras do autor, “a disciplina mostra-se
como condição para que se atinja, cognitivamente, ou para que se modifique alguma
coisa. A ação disciplinada opõe-se à ação desregrada, caótica, que só acidentalmente
pode ser bem sucedida. Com a ação disciplinada pretendemos ser, necessariamente, bem
sucedidos” (op. cit., p. 34). Nesta perspectiva a disciplina seria a condição para
chegarmos ao nosso objetivo, neste caso, ensinarmos a matéria pretendida pelo projeto
pedagógico aos nossos alunos: “não há uma disciplina pela disciplina, mas uma
disciplina para conhecer melhor, uma disciplina para agir melhor, uma disciplina para
fazer melhor” (op. cit., p. 35). É importante ressaltarmos que, de acordo com
Guimarães, a disciplina possibilita ao sujeito que alcance a liberdade. De que forma? À
medida em que ela pode permitir que ele adquira o domínio sobre a matéria, ou seja,
que ela pode fazer com que ele não aprenda história simplesmente, mas que ele aprenda
a pensar historicamente, que ele não aprenda matemática simplesmente, mas que ele
aprenda a pensar matematicamente: à medida em que ela, a disciplina, pode permitir
que o aluno tenha domínio sobre a matéria, de modo a manejá-la em seu próprio
benefício, possibilitando a compreensão, a inserção social e a resolução de problemas. E
não seria esse o objetivo que nós, educadores, temos quando construímos o projeto
pedagógico? Buscando formar os nossos alunos para que sejam “cidadãos críticos e
participativos”? E que, como sugerem os nossos Parâmetros Curriculares Nacionais
(1997) desenvolvam “competências e habilidades”? Assim, a disciplina promovida
também pela organização do tempo e do espaço tem uma finalidade pedagógica
importante, para além do controle do comportamento dos alunos. É preciso levar o
aluno a disciplinar-se, fazendo com que ele se submeta às regras impostas pela escola
em função da aprendizagem pretendida.
17
A arquitetura dos grupos escolares
Segundo Agustín Escolano (2001), nem o tempo, nem o espaço são elementos
neutros do ensino. Para o autor, eles funcionam como uma espécie de discurso que
promove, através da sua materialidade, um conjunto de aprendizagens motoras e
sensoriais e um sistema de valores estéticos, ideológicos e culturais. Se pensarmos na
configuração do espaço escolar no final do século XIX, é possível notarmos
semelhanças entre os edifícios dos grupos escolares e o panóptico investigado por
Foucault. Muitas escolas construídas até as primeiras décadas do século XX conservam
ainda hoje suas características iniciais, como o pátio interno utilizado como espaço de
circulação dos alunos no horário dos intervalos das aulas (SOUSA, 1996). Além de
significarem a constituição de um espaço pensado especialmente para que a educação
fosse realizada, os grupos escolares também simbolizavam o projeto educativo
republicado – que tinha a educação como um dos pilares da organização nacional - e,
por este motivo, precisavam ter visibilidade e destaque nas cidades nas quais eles
fossem construídos, daí a monumentalidade e a magnificência destes edifícios. Desta
forma, a arquitetura escolar pública teve por objetivo propagar a iniciativa que os
governos empreendiam pela educação. Os prédios das escolas deveriam então divulgar a
imagem de prosperidade e de nobreza das administrações. A monumentalidade seria
conseqüência da preocupação em tornar muito evidentes os edifícios das escolas
públicas, mostrando que os mesmos eram espaços mantidos pelo governo (FARIA
FILHO e VIDAL, 2000). Os grupos escolares representavam então uma aposta que o
governo republicado fazia no futuro da nação mediante a ordenação do sistema de
ensino e dos espaços destinados a realização educação escolar. Mas como eles eram
construídos? Os grupos escolares poderiam ter, em geral, 4, 8 ou 10 salas de aula, um
ou dois andares, biblioteca escolar, museu escolar, sala dos professores e sala da
administração. Construídos de forma simétrica ao redor de um pátio central, eles
ofereciam espaços diferentes para o ensino das meninas e dos meninos - neste período
ainda não havia o ensino misto. Esses prédios também possuíam entradas diferentes
para os alunos e para as alunas. Dentro as salas de aula, as carteiras eram fixas e o local
que o professor deveria ocupar era bem demarcado: no centro e à frente. Segundo
Luciano Faria Filho e Diana Vidal (2000), “a rígida divisão dos sexos, a indicação
18
precisa de espaços individuais na sala de aula e o controle dos movimentos do corpo na
hora do recreio conformavam uma economia gestual e motora que distinguia o aluno
escolarizado da criança sem escola” (op. cit., p. 25). A conformação, a adequação das
crianças a um novo espaço, diferente de suas casas ensinava também uma forma de ser,
de estar e de se comportar neste lugar, de maneira distinta daquela que elas estavam
habituadas no ambiente familiar, ocasionando então um elemento de distinção, uma
marca visível na conduta daqueles que haviam freqüentado o espaço escolar. A
escolarização promove a conformação do ser humano como “pessoa-no-mundo”, de
maneira organizada e intencional (VINÃO FRAGO, 2001). Além disso, “o convívio
com a arquitetura monumental, os amplos corredores, a altura do pé-direito, as
dimensões grandiosas de janelas e portas, a racionalização e a higienização dos espaços
e o destaque do prédio escolar com relação à cidade que o cercava visavam incutir nos
alunos o apreço à educação racional e científica, valorizando uma simbologia estética,
cultural e ideológica constituída pelas luzes da República” (op. cit., 25) O ambiente
deveria ser educativo e os princípios que regiam as construções escolares eram pautados
pelas necessidades pedagógicas, de ensino, de aprendizagem, de disciplina e de
recreação; higiênicas, de iluminação e de ventilação adequadas e estéticas, devendo
promover o gosto pelo artístico e pelo belo. Assim, a arquitetura dos grupos escolares
não apenas fazia com que as crianças aprendessem a se comportar e a habitar esse
espaço como também promovia o desenvolvimento do respeito dos pequenos cidadãos à
República que se instaurava, através da grandiosidade de seus edifícios. Se a
imponência dos edifícios públicos pode ser percebida até os dias atuais, imaginem o
destaque que eles possuíam na virada do século XIX para o século XX, ou mesmo nas
décadas posteriores, em 1910, 1920? A sensação das crianças ingressando nos grupos
escolares naquele momento pode talvez assemelhar-se em alguns aspectos com a nossa
entrada em um teatro municipal, em um fórum ou até mesmo em uma catedral. Nós,
adultos, não nos sentimos pequenos diante da monumentalidade destes edifícios e dos
símbolos que eles carregam? Imaginem a sensação que essas escolas produziram nas
crianças naquela época! Além da magnificência destes prédios, outro fator que precisa
ser levado em consideração com relação à sensação, à forma como as crianças percebem
os espaços é que a sua percepção espacial é relativa ao seu tamanho (ESCOLANO,
2001). Por exemplo: vocês já tiveram a oportunidade de voltar, depois de muito tempo,
a um lugar que freqüentaram durante a infância? Quem já passou por essa experiência
deve ter percebido que as lembranças dos lugares que registramos na nossa memória
19
sobre o tempo no qual éramos crianças raramente coincide com a sensação que temos
quando voltamos a esses espaços na idade adulta. Normalmente guardamos na memória
a sensação de que os espaços são muito maiores do que percebemos quando voltamos a
eles quando somos adultos.
O espaço escolar sob influência do movimento da Escola Nova
Voltemos à história do espaço escolar brasileiro. O desejo de impor ordem ao
espaço escolar refletiu a vontade de se ordenar a sociedade como um todo, rumo ao
progresso. No período republicano (1889-1930), supunha-se que a causa de todas as
crises do país vinha da ignorância do povo e do analfabetismo. Com isso, a educação
passou a ser apresentada como o grande pilar da organização social. De acordo com
Marta Carvalho (1997), havia todo um discurso que atribuía o mau desenvolvimento do
país ao povo, considerado mal organizado, sujo, e ignorante, por isso foi dada tanta
ênfase aos cuidados com a higiene e o corpo. Logo, a educação sanitária teve um
enorme valor, e a escola, conseqüentemente, seria o meio propício por excelência para a
manutenção e o revigoramento da saúde, daí a importância também que o discurso
médico-higienista teve para as construções escolares. A disciplina entra em
funcionamento muito cedo na escola, e como ela é considerada como um lugar que
impõe ordem e abriga a juventude, o futuro da nação, é a melhor instituição para se
começar a mudar a mentalidade de um país. Os uniformes escolares também foram
elementos que fizeram parte desta mudança, a legislação vigente prescrevia que eles
deveriam estar sempre limpos e asseados. Além de manter os alunos com um aspecto de
limpeza, os uniformes permitiam que fosse controlado o tipo de roupa que haveria de
ser usada nas escolas. Eles contribuíam para ordenar as crianças no espaço escolar.
Assim como as carteiras, úteis para que os alunos fiquem sentados e quietos durante as
aulas, os uniformes se prestavam a homogeneizá-los, mascarando as diferenças e
condições sociais de cada um, através de um único tipo de roupa, usada o ano todo.
Antes da República a escola não tinha uma função importante junto à economia,
permanecendo como agente de educação para o ócio ou preparando para as carreiras
liberais destinadas especialmente aos jovens vindos das famílias de maior poder
aquisitivo. Por volta da década de quarenta, quando, por ocasião da segunda guerra
mundial, o mercado brasileiro teve a chance de se expandir, sendo que os países que
antes importavam mercadorias para o Brasil já não o faziam, foi preciso que se
formassem pessoas aptas ao trabalho e que fossem também qualificadas. Então, a escola
20
brasileira passou a evoluir em função dos papéis que lhe reconhecia a economia
mundial. A partir daí foi feita uma reforma no ensino, impulsionando o
desenvolvimento de escolas profissionais, para isso uniram-se a elas instituições
auxiliares como, os museus, o escotismo, os pelotões de saúde e as caixas escolares,
promovendo novas configurações no espaço escolar (CARVALHO, 2001).
Nos anos de 1920, o movimento da Escola Nova começou a influenciar muitos
educadores brasileiros, refletindo também nas construções escolares. Nascida na França
em 1899, a partir do projeto do pedagogo francês Edmond Demolins (1852 – 1907), que
pretendia criar uma escola considerada “nova”, capaz de formar as novas elites,
preparando as crianças, que deveriam ser responsáveis pela sua própria educação,
voltada para a vida prática, a “École des Roches” visava à formação de um homem novo
(DUVAL, 2009). Essa experiência inicial faz parte do movimento que ficou conhecido
como Escola Nova e que se espalhou pelo mundo nas décadas seguintes. No Brasil, ele
começou a esboçar-se nos anos de 1920, época marcada pelo crescimento industrial,
pela imigração e pela expansão urbana. Nestas condições históricas e sociais, um grupo
de intelectuais que contava com nomes como o de Anísio Teixeira, o de Fernando de
Azevedo, o de Lourenço Filho, entre outros, difundiu o movimento no país, tomando a
educação como algo que precisaria ser revisto e remodelado para que a sociedade
pudesse estar preparada para acompanhar esse desenvolvimento social e econômico. Os
ideais da Escola Nova, ao defenderem a formação integral, uniforme, obrigatória e
comum para todas as crianças e ao incentivarem tanto o trabalho coletivo quanto o
trabalho individual para garantir o bem-estar do grupo, incutiriam nos alunos a sensação
de dever para com os outros e despertariam sentimentos de solidariedade mediante o
cumprimento de responsabilidades que garantiriam o bom funcionamento da
comunidade. O projeto escolanovista visava a contribuir para a configuração de um
modelo de escola que, ao cuidar da educação, almejava cuidar também da organização
do povo em uma sociedade industrial que estava em expansão. Sob a influência da
biologia e da psicologia, e educação renovada promoveria a adaptação das crianças às
novas condições sociais (CARVALHO, 2001). Concebendo-as como agentes de sua
própria educação, o movimento pretendia ensinar as crianças a fazer o uso racional da
liberdade. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, que
teve como redator Fernando de Azevedo, defendia a universalização de uma escola
pública, laica e gratuita e que esta fosse organizada como uma “comunidade de vida”,
baseada nos princípios da solidariedade, da cooperação, da ação e da liberdade. Sob sua
21
influência, educadores, engenheiros, médicos, arquitetos e psicólogos eram convidados
a opinar sobre as construções escolares. As crianças deveriam ser estimuladas pelos
professores a desenvolver as suas atividades com prazer mas também para trabalhar
pelo bem da comunidade e do espaço escolares. De acordo com o documento citado, a
Escola Nova não seria um aparelho de instrução, mas buscaria desenvolver uma
educação integral, e proveria, de forma articulada, a “educação física, moral e cívica”,
desenvolvendo também nas crianças hábitos higiênicos, despertando o “sentido da
saúde”, a resistência e “vitalidades físicas”, a “alegria de viver” (AZEVEDO, 1932).
Entre os ideais da Escola Nova também estava o ensino misto, pois os defensores deste
movimento acreditavam que os meninos e as meninas deveriam conviver juntos no
espaço escolar. Nesta perspectiva, não deveria mais haver separação nos prédios
escolares entre os espaços nos quais deveriam circular as meninas e naquelas nos quais
deveriam transitar os meninos, já que eles deveriam conviver em um mesmo ambiente.
A entrada que dava acesso à escola também sofreria uma mudança: ao invés de duas
portas, uma para os alunos e outra para as alunas, haveria uma só para ambos os sexos.
A forma de utilização da sala de aula também sofreu alterações.
Afinal, como era possível ensinar as crianças a lidar com a própria liberdade se
nem as suas carteiras poderiam sair do lugar?
Então foram abolidas as carteiras fixas, e as cadeiras e as mesas móveis
permitiram uma nova utilização do espaço da sala de aula no qual os alunos e os
professores pudessem circular. Essa reordenação do espaço estabeleceu uma nova
relação entre os professores e os alunos, alterando tanto o trabalho docente quanto as
atividades realizadas pelas crianças.
Hoje em dia, não é comum orientarmos os alunos para que se organizem em
grupos e realizem atividades coletivamente?
Essa forma de conduzir o trabalho e de utilização do espaço que encontramos
hoje em dia nas escolas é uma construção cultural. Como tal, ela traz consigo a
influência dos mais variados discursos – médico, psicológico, higienista, etc – que
determinaram a sua configuração. No ano de 1971, a Lei de Diretrizes e Bases nº
5.692/71 estabeleceu o ensino fundamental de 8 anos, extinguindo os grupos escolares.
Neste momento, o antigo “ensino primário” e o “ensino ginasial” deram lugar ao ensino
fundamental de “oito séries”.
As primeiras experiências no espaço organizado
22
Um artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 2 de maio de 2011,
intitulado “Construção da escola influencia aprendizado”, chamava a atenção para a
importância que a construção da escola tem para a educação ali realizada e também para
o quanto a arquitetura escolar influencia o aprendizado. Além disso, o texto sugere que
os espaços devem levar em conta as característica da comunidade. Segundo Doris
Kowaltowski, professora da Unicamp que realizou um estudo sobre a arquitetura escolar
e foi ouvida pela reportagem, “cada comunidade tem os seus próprios valores. Uma
escola vai ser mais bem aceita e bem cuidada à medida em que a população é inserida
(...) uma boa estratégia para facilitar esse convívio é apresentar uma maquete do projeto
e ouvir o que os futuros usuários têm a dizer” (op. cit., p. A18). Ao investigar o espaço
escolar enquanto forma de ensino, Agustín Escolano (2001) analisa o relato de um
homem que volta à escola que freqüentou em sua infância após um período de quarenta
anos. Entre as suas impressões, é fértil observarmos a seguinte passagem: “as salas de
aula lhe pareceram sem dúvida menores; os corredores, mais estreitos; a escadaria, pela
qual se subia ao andar superior, onde estavam as salas de aula das meninas, com menos
degraus; o pátio do recreio, reduzido. Como poderíamos – ele pensou – brincar e nos
mover nele, os mais de trezentos meninos e meninas que coabitávamos naquele limitado
território? Mas a memória não lhe era infiel: o espaço que contemplava era, ainda que
menor, o mesmo cenário de sua infância, e os lugares que observava correspondiam aos
seus primeiros esquemas perceptivos” (op. cit., p. 22) Essas primeiras experiências no
espaço organizado, o espaço escolar vivenciado pelas crianças, deixam marcas na
acomodação psicofísica das primeiras pautas do esquema corporal, na forma como as
crianças desenvolvem a consciência do seu corpo e da sua utilização em função do
espaço que habitam. Segundo Escolano (2001), “a arquitetura escolar é também por si
mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um
sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a
aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos
estéticos, culturais e também ideológicos” (op. cit., p. 26). A arquitetura escolar,
definida pelo autor como uma “forma de escritura no espaço”, expressa e institui um
discurso, influenciando no desenvolvimento da educação formal ali realizada.
O espaço escolar reflete e expressa em sua construção as teorias e os discursos
que o legitimaram, que influenciaram a sua constituição. Desta forma, é pertinente
observar que as influências que o movimento da Escola Nova trouxeram à configuração
23
do espaço escolar ainda nos grupos escolas são enunciadas até hoje pelos pedagogos e
pela legislação educacional, como é possível observar nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (1997). Acerca da organização do espaço nas escolas, o referido documento
apresenta a seguinte sugestão: “uma sala de aula com carteiras fixas dificulta o trabalho
em grupo, o diálogo e a cooperação; armários trancados não ajudam a desenvolver a
autonomia do aluno, como também não favorecem o aprendizado da preservação do
bem coletivo. A organização do espaço reflete a concepção metodológica adotada pelo
professor e pela escola. Em um espaço que expresse o trabalho proposto nos Parâmetros
Curriculares Nacionais é preciso que as carteiras sejam móveis, que as crianças tenham
acesso aos materiais de uso freqüente, as paredes sejam utilizadas para exposição de
trabalhos individuais ou coletivos, desenhos, murais. Nessa organização é preciso
considerar a possibilidade de os alunos assumirem a responsabilidade pela decoração,
ordem e limpeza da classe. Quando o espaço é tratado dessa maneira, passa a ser objeto
de aprendizagem e respeito, o que somente ocorrerá por meio de investimentos
sistemáticos ao longo da escolaridade. Como o espaço de aprendizagem não se restringe
à escola, é necessário propor atividades que ocorram fora dela. A programação deve
contar com passeios, excursões, teatro, cinema, visitas a fábricas, marcenarias, padarias,
enfim, com as possibilidades existentes em cada local e as necessidades de realização do
trabalho escolar. No dia-a-dia devem-se aproveitar os espaços externos para realizar
atividades cotidianas, como ler, contar histórias, fazer desenho de observação, buscar
materiais para coleções. Dada a pouca infra-estrutura de muitas escolas, é preciso contar
com a improvisação de espaços para o desenvolvimento de atividades específicas de
laboratório, teatro, artes plásticas, música, esportes, etc.” (p. 103) Seguindo as
orientações da Lei de Diretrizes e Bases em vigor, os PCNs, quando se referem à
organização do espaço escolar, também visam à construção da autonomia, tanto da
escola e de sua equipe, quanto dos alunos.
Como é dito no documento, a organização do espaço reflete a concepção
metodológica adotada pelo professor e pela escola, ou seja, a configuração do espaço
de uma escola deve refletir os ideais e os objetivos que estão em seu projeto
pedagógico. Se este documento expressa a intenções de uma equipe que vise à
construção de uma gestão democrática que valorize a participação dos alunos nas
decisões da instituição, o espaço deverá refletir essa concepção. Permitir que os alunos
assumam responsabilidades pela conservação e pela decoração do espaço escolar, é
oferecer a eles a oportunidade de sentir que o espaço coletivo pertence a todos e que,
24
por este motivo, ele deve refletir a identidade daqueles que nele habitam. Ao estabelecer
uma identificação entre o indivíduo e o espaço, cria-se um vínculo com instituição e um
compromisso com aquele lugar. A idéia, neste caso, é que as crianças e os jovens
percebam que o espaço público não é o “espaço que não é de ninguém” e que por esse
motivo poderia ser sujo e depredado, mas é o “espaço que é de todos”, e que por isso
precisa ser cuidado e conservado. Se as crianças aprendem a se relacionar com a escola
como um espaço público, como um lugar que pertence a elas, elas poderão aprender a
desenvolver também uma outra relação com o espaço da rua, do museu, do parque, do
teatro, da praça, etc.
Como são construídas as relações entre as crianças e os jovens nas escolas hoje
em dia?
Será que as crianças e os jovens sentem que o espaço da escola lhes pertence?
Como fazer da escola um espaço de convivência?
São muitas as questões que requerem uma reflexão mais demorada quando
pensamos no espaço escolar atualmente. Depois da casa onde se mora e de alguns locais
próximos a ela, a escola promove uma experiência crucial na aprendizagem das
primeiras estruturas espaciais e formação do próprio esquema corporal da pessoa, que é
a consciência do corpo como meio de comunicação com o ambiente e consigo mesmo
(ESCOLANO, 2001). O esquema corporal se organiza pela experiência que o corpo da
criança vai realizando gradativamente no espaço que ela habita. O pleno
desenvolvimento do esquema corporal é percebido quando as pessoas apresentam uma
boa evolução da motricidade, das habilidades motoras, das percepções temporais e
espaciais e também da afetividade.
Atualmente, as teorias da percepção concebem o espaço escolar como um
mediador cultural na formação dos primeiros esquemas motores e cognitivos, ou seja,
um elemento importante do currículo, uma forma de ensino e uma fonte de
aprendizagem. De acordo com o mesmo autor, os espaços educativos carregam
significados e transmitem uma quantidade importante de estímulos, valores e conteúdos
do “currículo oculto”, ao mesmo tempo em que impõem uma organização disciplinar,
como a racionalidade panóptica, como vimos anteriormente (ESCOLANO, 2001). O
“currículo oculto” é constituído por todos os aspectos do ambiente escolar que
contribuem de forma implícita para aprendizagens sociais, sem que façam parte do
currículo oficial (SILVA, 2003). A propósito do “currículo oculto”, vale a pena
retomarmos as palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2003): “eram as características
25
estruturais da sala de aula e da situação de ensino, mais do que o seu conteúdo explícito,
que ‘ensinavam’ certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a
distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo. (...) o que se aprende no
currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações
que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às estruturas
e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas e, portanto,
indesejáveis, da sociedade capitalista. Entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em
geral, o conformismo, a obediência, o individualismo. (op. cit., p. 78-79). Com relação à
dimensão do gênero, o “currículo oculto” também ensina como ser homem ou mulher.
No ambiente escolar, há vários elementos que contribuem para essas aprendizagens.
Uma das fontes que constituem este currículo são as relações sociais da escola, as
relações entre a administração e os alunos, entre os alunos e o seus colegas e entre os
professores e os alunos. Além disso, “a organização do espaço escolar é outro dos
componentes estruturais através dos quais as crianças e os jovens aprendem certos
comportamentos sociais: o espaço rigidamente organizado da sala de aula tradicional
ensina certas coisas; o espaço frouxamente estruturado da sala de aula mais aberta
ensina outro tipo de coisas. Algo similar ocorre com o ensino dos aspectos relativos ao
tempo, através do qual se aprende a pontualidade, o controle do tempo, a divisão do
tempo em unidades discretas, um tempo para cada tarefa etc. O currículo oculto ensina,
ainda, através de rituais, regras, regulamentos, normas” (op. cit., p. 79). Desta forma,
dentro do ambiente escolar a aprendizagem não ocorre apenas de maneira intencional,
mas acontece também segundo procedimentos implícitos. Os estudos acerca do tempo e
do espaço escolar são muito férteis, pois nos levam a considerar que os nossos alunos
não aprendem apenas através do que lêem, enxergam ou escutam, mas aprendem
também mediante o que sentem e como se comportam em relação ao outro, em relação
ao espaço e em relação ao tempo.
Exercício 2
Fenômeno comum nas grandes cidades, as escolas pichadas e depredadas
demonstram através da violência a pouca identidade construída entre os alunos e o
26
espaço físico por eles habitado diariamente. De que forma o projeto pedagógico poderia
promover uma relação mais produtiva entre os alunos e o espaço escolar?
O tempo escolar
Conforme vimos anteriormente, nem o tempo e nem o espaço escolar são
elementos neutros das instituições de ensino. Mesmo não sendo alvo de discussões
constantes nas escolas, o tempo e a maneira como ele é organizado, influencia as
atitudes e a forma como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e
ensinam nas instituições de ensino. A escola toma para si grande parte do tempo dos
seus alunos e das suas alunas, pois as crianças e os jovens passam em média cinco horas
diárias dentro desta instituição em um período que compreende cerca de quinze anos.
Para muitos, esse tempo atualmente é ainda maior. Com o fato dos pais trabalharem fora
de casa e não terem com quem deixar os seus filhos é comum que os bebês sejam
deixados nas creches, em seguida nas escolas de educação infantil e depois nas escolas
de ensino fundamental. Nesses casos, as pessoas passariam quase dezoito anos de suas
vidas freqüentando instituições educacionais, especialmente em um período crucial de
seu desenvolvimento físico e emocional: a infância. Ao crescerem, as pessoas aprendem
a interpretar os sinais temporais que são utilizados na sociedade, em casa e na escola, e
a conduzir o seu comportamento em função deles, coordenando o seu tempo fisiológico
no mesmo compasso do tempo social. Embora as pessoas possuam tempos e ritmos
diferentes, no âmbito escolar eles são uniformizados, pois os alunos são levados a
viverem todos da mesma maneira os dias letivos, as provas, os conteúdos do currículo.
Além disso, a temporalidade escolar está entranhada no cotidiano e estrutura a vida das
pessoas através do período letivo, da matrícula, da época da provas, da recuperação e
das férias (GALLEGO, 2008). Assim como o currículo, o tempo e o espaço também
ensinam. Mas o que os alunos aprendem através deles? A disciplina talvez seja o
resultado mais explícito deste ensino, pela forma como a organização temporal e
espacial interferem no comportamento das pessoas, controlando as suas atividades e as
suas ações. Num espaço e num tempo totalmente regulados, cada um submete sua
27
atividade aos princípios e às regras que a regem. As escolas conduzem as atividades e
regulam o comportamento dos alunos, dos funcionários e dos professores mediante o
estabelecimento da disciplina, fixando com rigor e detalhes cada atividade do dia. Mas o
tempo e o espaço também contribuem com a aprendizagem dos conteúdos disciplinares
e, desta forma, podem ser conduzidos de modo a melhorar a qualidade da educação
escolar.
O tempo escolar e a construção do projeto pedagógico
Quando pensamos na construção do projeto pedagógico, consideramos
fundamentalmente a proposição de três elementos: algo (matéria) será ensinada (pelo
professor) a alguém (aluno). Para que haja o ensino e a aprendizagem é necessário que
exista uma adequação entre o conteúdo que será ministrado e o tempo que será
necessário para que o professor o ensine e para que o aluno o aprenda. Desta maneira, a
adequação do tempo ao conteúdo disciplinar pode favorecer ou não a aprendizagem.
Pensemos a propósito da recuperação, por exemplo. O que ela significa? Entre outras
coisas, o momento da recuperação representa um tempo maior que alguns alunos têm
para tentar aprender aquilo que os outros alunos aprenderam no tempo “regular”,
naquele tempo que havia sido planejado para o desenvolvimento de determinado
conteúdo. Quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar dos nossos alunos, há
muitos fatores que precisam ser levados em conta. No entanto, neste momento,
pensemos em um desses fatores: no papel do tempo com relação ao fracasso e ao
sucesso escolar.
Em nosso cotidiano, muitas vezes nos deparamos com representações sobre a
educação e a escola – que acabam fazendo parte do senso comum – que divulgam uma
idéia equivocada acerca da qualidade do ensino, atribuindo muitas vezes a um número
restrito de instituições, em muitos casos particulares, o rótulo de “escolas fortes” nas
quais se acredita que as crianças e os jovens aprenderiam mais. Pensemos mais
demoradamente sobre isso, especialmente em relação ao tempo. É comum, entre essas
instituições consideradas bem sucedidas com relação ao ensino, que haja um
investimento maior em cada aluno realizado pela própria família como, por exemplo, o
auxílio na realização da lição de casa e a possibilidade de aulas particulares. Vamos
conversar mais sobre esses dois eventos.
28
Qual é o papel da lição de casa para uma aprendizagem bem-sucedida? A lição
de casa representa uma extensão do momento no qual determinado conteúdo disciplinar
foi apresentado pelo professor ao aluno. Após a explicação do professor é comum que
haja um diálogo acerca da matéria e que atividades sejam realizadas de modo a
exercitar o conhecimento adquirido e familiarizar os estudantes com os novos
conteúdos. Se para alguns alunos o momento da lição de casa pode significar uma
possibilidade de reforçar o que foi aprendido na sala de aula, para outros este pode ser
também um momento de aprender aquilo que não foi possível naquele tempo
estabelecido pelo horário da aula. Para o aluno cujo ritmo e a dificuldade ultrapassam a
delimitação do horário da aula, o momento da lição de casa representa uma ocasião
importante de aprendizagem. É evidente que para isso é necessário que alguém
acompanhe as crianças na realização destas tarefas, tentando solucionar as suas dúvidas
e orientando as suas buscas pelas respostas. Ainda assim, esse é um tempo que precisa
ser levado em conta quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar. Mas podemos
sempre contar com o momento da lição de casa como uma oportunidade de
aprendizagem? De acordo com a origem sócio-econômica dos estudantes e com as
condições materiais nas quais eles vivem, sabemos que muitos dos nossos alunos, no
período do dia no qual não estão na escola, não têm quem os acompanhe na realização
destas tarefas. Aqueles que têm quem os acompanhe durante a realização da lição de
casa, saem em vantagem com relação aos outros. Este é um fator que precisa ser
levado em conta quando pensamos no papel que a lição de casa pode desempenhar
para contribuir com uma aprendizagem bem-sucedida.
Como as aulas particulares interferem no tempo escolar? Mesmo não sendo
realizadas na escola, as aulas particulares também funcionam como uma espécie de
extensão do tempo escolar, uma vez que se constituem numa oportunidade de
aprendizagem daqueles conteúdos que, na sala de aula, alguns alunos não
compreenderam. Considerando as aulas particulares enquanto momentos que apenas
alguns alunos podem desfrutar por ter ao seu dispor uma atenção individualizada e um
tempo maior para a compreensão de determinados conteúdos disciplinares, é preciso
considerar que essas aulas são privilégio de apenas alguns poucos alunos, cuja família
possui recursos financeiros que possibilitam esse momento de ensino individualizado. O
que tanto as lições de casa quanto as aulas particulares nos mostram é que, por
diferentes motivos, alguns alunos não conseguem aprender naquele tempo determinado
pela escola e precisam de um tempo maior para compreender aquilo que está previsto
29
no projeto pedagógico. E o que isso significa? As pessoas possuem ritmos diferentes e
muitas vezes há um descompasso entre o ritmo do aluno para compreender e o ritmo
planejado pela escola para ensinar. Como sabemos que nem todas as crianças – muitas
vezes apenas uma minoria delas – têm quem as acompanhe durante as lições de casa e
têm a chance de serem submetidas a aulas particulares, é importante pensarmos acerca
da relação entre o tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos curriculares e as
dificuldades de aprendizagem originárias dos diferentes ritmos que os alunos têm para
compreender. Refletir acerca desta relação pode contribuir para que entendamos melhor
como acontece o fracasso e o sucesso escolar, ou seja, como a aprendizagem pode ser
ou não bem-sucedida.
Os diferentes tempos da escola, os ritmos dos alunos e a aprendizagem
O período de planejamento do ano letivo e da construção do projeto pedagógico
é um primeiro momento no qual os professores, o coordenador, o diretor e toda a equipe
pedagógica podem pensar acerca da melhor maneira de organizar o tempo em função do
ensino e da aprendizagem bem-sucedidos, adequando os conteúdos disciplinares aos
ritmos das crianças e dos jovens. Além deste momento inicial, as avaliações que
acontecem durante todo o ano também são oportunidades importantes de identificar
possíveis inadequações entre a matéria proposta e a compreensão dos alunos, gerando
lacunas no processo de ensino e de aprendizagem. O momento da avaliação poderia
então reconduzir os alunos em desvantagem, reorganizando seu tempo, revendo em um
tempo maior o conteúdo não aprendido de modo a auxiliá-los a superar o obstáculo, a
recuperar o que não foi compreendido e a reencontrar o percurso da classe, seguindo o
roteiro comum estabelecido para todos. Tais lacunas no processo de ensino e de
aprendizagem tornam-se dificuldades na aquisição dos conteúdos posteriores, gerando
novas lacunas no percurso da vida escolar dos estudantes. Assim vai sendo obstruído o
acesso aos conteúdos disciplinares, na medida em que o aluno tem dificuldades e não
aprende no seu ritmo. O fracasso escolar originado também pela inadequação entre o
tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos e o tempo que os alunos levam para
aprendê-los promove um distanciamento cada vez maior entre os estudantes e o
30
conhecimento que a escola pretende transmitir a eles (SAMPAIO, 2004). A avaliação
da aprendizagem e a reprovação escolar são questões relacionadas ao tempo. A
reoganização do tempo deve ser realizada em função das necessidades das crianças,
em função do tempo que levam para compreender: em função do seu tempo de
aprendizagem.
A propósito da reprovação como uma retomada do ano escolar perdido, Maria
das Mercês Sampaio (2004) afirma que a simples repetição dos conteúdos disciplinares
aos alunos, a submissão das crianças e dos jovens ao mesmo espaço de tempo e
processo que se mostrou ineficaz anteriormente também não promove a aprendizagem
bem-sucedida. Para a autora, sem que haja um redimensionamento e uma revisão das
condições que geraram o fracasso escolar, é possível que os alunos prossigam
carregando problemas até que o seu acúmulo interrompa o seu prosseguimento de
maneira definitiva: “mesmo quando os alunos ficam retidos logo que os problemas
aparecem, não se encontram indícios de propostas ou tentativas de superação, pois a
única opção é a repetição da série, ou seja, repetição da transmissão e exercitação de
todos os conteúdos, assimilados e não-assimilados, sem que seja promovida uma nova
relação de ensino, voltada às condições de aquisição dos alunos com dificuldades” (op.
cit., p. 89). Sampaio tece uma crítica a um elemento que durante várias décadas fez
parte das nossas práticas escolares e da cultura das nossas escolas: a reprovação
enquanto um dispositivo eficaz para promover a aprendizagem. Submeter os alunos
novamente a uma mesma situação pedagógica que já se mostrou ineficaz, simplesmente
pela possibilidade dos conteúdos serem revistos pelos alunos durante o mesmo período
de tempo anterior, não se traduz em uma aprendizagem significativa e bem-sucedida.
Acerca das possibilidades de recuperação que as escolas normalmente oferecem aos
alunos, a autora ressalta a existência da recuperação paralela feita a cada bimestre e da
recuperação realizada ao final do ano, asseguradas legalmente. No entanto, para
Sampaio, as recuperações bimestrais são normalmente reduzidas à aplicação de novas
provas e a a recuperação ao final do ano letivo compreende alguns exercícios e em
seguidas são aplicadas novas provas. Para ela, “a distribuição e a organização do tempo
letivo permitem apenas, como recuperação, a oferta de momentos para novas cobranças;
não possibilita recuperar o que foi perdido. Mesmo quando o calendário de recuperação
final prevê algumas aulas para cada disciplina, a extensão do que ficou para trás não
permite falar de recuperação realmente – é o tempo para reler e fazer exercícios, tirar
algumas dúvidas e fazer provas. A montagem do currículo, portanto, não se relaciona
31
apenas ao caráter imediatamente classificatório da avaliação. Ao garantir a marcha
ininterrupta do ensino, tais mecanismos permitem não só classificar e selecionar os
menos aptos, mas impedem também a recondução destes alunos ao percurso normal”
(SAMPAIO, 2004, p. 89 -90 – grifos nossos). Quando pensamos na construção do
projeto pedagógico, pensamos também em uma proposta curricular.
O que deve ser ensinado?
Para quem?
Como?
O currículo é o resultado de uma seleção: de um universo de conhecimentos e
saberes são selecionados alguns que devem ser aprendidos pelos alunos. A etimologia
da palavra “currículo”, que é originária do latim “curriculum”, significa “pista de
corrida”. A propósito disso, vale a pena lembrarmos as palavras de Tomaz Tadeu da
Silva (2003), ao afirmar que “podemos dizer que no curso dessa ‘corrida’ que é o
currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando
pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que
constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo
que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade.
Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é
também uma questão de identidade” (op. cit., p. 15-16). O currículo representa uma
trajetória, um caminho que deve ser seguido pelos estudantes e, como todo percurso,
cada um tem um ritmo diferente para percorrê-lo. Contudo, o que importa, quando
pensamos em uma aprendizagem significativa e numa educação de fato formadora, não
é a velocidade com a qual cada um percorre esse caminho, mas sim se todos chegam ao
destino pretendido. E, nesse caso, em alguns momentos a marcha do ensino parece
precisar ser interrompida para sofrer ajustes de modo a beneficiar a aprendizagem dos
nossos alunos, atendendo às suas pausas e aos seus ritmos. A realização do programa
precisa levar em conta interrupções e alterações em função do desenvolvimento e da
compreensão dos alunos.
A série, o ciclo e o curso: o tempo dos professores e o tempo dos alunos
A forma como as diferentes matérias são organizadas no projeto pedagógico
pode obedecer a diferentes lógicas. As mais conhecidas nas nossas escolas são
32
principalmente duas: a organização das disciplinas em cursos divididos em séries e a
organização das disciplinas em cursos divididos em ciclos plurianuais. A organização
das matérias nas séries atende a uma adequação entre o ano letivo e o ano do calendário,
enquanto que a organização das matérias nos ciclos plurianuais obedece a uma tentativa
de ampliar o tempo escolar, de modo que ele ultrapasse o tempo do calendário. Ou seja,
o ano escolar não termina junto com o ano do calendário – como ocorre com o sistema
seriado -, ele é prolongado. Segundo Philippe Perrenoud (2004), os ciclos de
aprendizagens plurianuais têm sido discutidos em sistemas educacionais de vários
países pela sua capacidade de favorecer a aprendizagem escolar. A idéia dos ciclos é
que as etapas anuais de progressão sejam substituídas por período de, ao menos, dois
anos, fixando objetivos de aprendizagem para cada ciclo – proporcionando um tempo
maior para a familiarização dos conteúdos disciplinares pelos alunos – e investindo na
formação dos professores para orientar e facilitar os diferentes percursos de formação
das crianças e dos jovens. A organização do tempo escolar em ciclos rompe com a
lógica da reprovação ao final do ano e altera profundamente a organização do trabalho
escolar.
No estado de São Paulo, podemos inicialmente pensar na experiência realizada
em 1985 para resolver o problema da repetência em massa nas séries iniciais. Intitulado
como “Ciclo Básico”, a união entre as duas primeiras séries eliminava a possibilidade
retenção dos alunos ao final do primeiro ano do ensino fundamental. O Ciclo Básico foi
introduzido com algumas medidas estruturais, assegurando a passagem obrigatória da 1ª
para a 2ª série e oferecendo apoio suplementar aos alunos que manifestassem
dificuldades de rendimento (BARRETO, 1992). Com relação ao tempo dos professores,
a iniciativa garantia horas extraordinárias cumpridas em reuniões que tinham por
objetivo proporcionar a discussão da experiência e a reflexão acerca dos seus resultados.
Além disso, a jornada única de trabalho para esses professores acompanhava a duração
do período escolar para os alunos, que permaneciam seis horas diárias na escola. O
professor deveria permanecer mais tempo na escola, de modo a conhecer melhor os seus
alunos e as suas necessidades. Desta forma, eles passaram a lecionar quarenta horas
semanais na mesma escola, atendendo a uma só turma e destinando o restante do seu
tempo para o preparo das aulas, a correção dos trabalhos e as reuniões. Segundo Elba
Barreto (1992), as medidas tomadas no âmbito da implementação do Ciclo Básico
possibilitaram um salto qualitativo nas condições de trabalho na escola, ao menos no
que concerne às duas séries iniciais.
33
Podemos perceber mediante experiências como a da implantação do Ciclo
Básico, que tentativas de promover melhorias na qualidade do ensino são realizadas
também através da reordenação do tempo e do espaço escolar, alterando profundamente
a organização do trabalho dos professores e dos alunos. A possibilidade dos professores
passarem mais tempo em uma mesma escola lhes permite conhecer mais os seus alunos
e planejar melhor as suas atividades, de acordo com as necessidades de sua turma. No
entanto, ao elaborarmos o projeto pedagógico da nossa escola, precisamos considerar
que muitos dos nossos professores trabalham em várias escolas e, muitas vezes, se não
em dois até em três períodos do dia! Desta forma, pensar na organização do tempo
escolar na construção do projeto pedagógico é trabalhar constantemente entre o ideal e
o real. Ou seja, nosso desafio é tentar articular os pressupostos que consideramos ideais
para realizarmos uma educação de qualidade com as condições materiais com as quais
nos defrontamos cotidianamente.
No Brasil, o debate acerca da organização dos ciclos de aprendizagens
plurianuais está fortemente articulado à tentativa de superação do fracasso escolar, às
questões relativas à repetência e à evasão escolar. A educação escolar organizada em
ciclos procura, de algum modo, resolver esses problemas, trazendo consigo a premissa
da não interrupção da escolaridade durante um período maior de tempo do que ocorre
no sistema seriado. Em relação às condições de funcionamento da escola, essa maneira
de organizar o tempo escolar – em ciclos plurianuais – provoca alterações tanto no
trabalho pedagógico, quanto na administração e na organização escolar. Isto porque este
sistema apresenta uma necessidade maior de revisão constante do projeto pedagógico
mediante reuniões com a equipe da escola, altera o número de membros do corpo
docente, revê a questão da rotatividade dos professores – porque é desejável que,
quando exista, seja reduzido o número de professores que permanecem pouco tempo na
escola. Além disso, a organização em ciclos requer apoio e recursos pedagógicos. Desta
forma, para que esse sistema produza bons resultados, ele envolve toda a comunidade
escolar e mobiliza tanto recursos humanos, contando com a participação dos
professores, dos coordenadores, dos supervisores, dos diretores, dos orientadores, etc,
quanto recursos materiais, relativos à infra-estrutura da escola.
A organização da escola em ciclos de aprendizagem plurianuais representa uma
mudança em toda a estrutura escolar. Segundo Philippe Perrenoud (2004), diversos
aspectos do sistema escolar devem ser revistos e estruturados segundo uma nova lógica
espacial e temporal, modificando a estrutura curricular, a maneira de avaliar e de
34
organizar o trabalho na escola. Para o autor, essas mudanças devem atingir diretamente
as práticas e a cultura escolares. As práticas profissionais também deveriam sofrer
alterações, rompendo com o individualismo e primando pela valorização da cooperação
e do trabalho em equipe. Mudanças estruturais como a da organização do tempo escolar
em ciclos plurianuais não ocorrem sem que existam conflitos e resistências. Cláudia
Fernandes (2007), que estudou o impacto que a organização da escolaridade em ciclos
teve nas escolas brasileiras, afirmou o seguinte: “a escola em ciclos, por ser uma escola
na qual exige-se uma mudança, torna-se mais do que as outras, uma escola em conflito,
inquieta, uma vez que diversos aspectos estão sendo questionados: a forma de avaliar, a
maneira de se entender o conhecimento, a didática utilizada, a organização dos tempos e
dos espaços. A escola em ciclos administra conflitos. Se considerarmos que o cotidiano
escolar é marcado por urgências, por questões que muitas vezes não podem esperar, que
é um espaço marcado por relações humanas e, portanto, por natureza, complexo,
podemos afirmar que as tentativas de alterar práticas já consolidadas e legitimadas pela
comunidade escolar e pela sociedade, fazem com que a escola em ciclos torne-se, mais
ainda, uma escola conflituosa” (op. cit., p. 9). Na prática, o que é possível observar
quando a escola é organizada em ciclos – em muitos casos - é que, de modo geral, os
membros da equipe pedagógica atuam conjugando duas lógicas: tanto a lógica dos
ciclos quanto a lógica da seriação. Mas por que isso acontece? Quando nos tornamos
professores, trazemos conosco toda uma representação – uma idéia acerca daquilo que
consideramos ideal ou mesmo daquilo que consideramos possível – acerca do que seja a
melhor forma de realização do trabalho docente e da educação escolar. Diferentemente
de outras profissões, no caso do trabalho docente isso ocorre porque, antes de desejar
seguir a carreira docente ou qualquer outra carreira, as pessoas passam muito tempo e
grande parte de suas vidas nas instituições escolares, carregando consigo as impressões
e as concepções relativas à organização da instituição escolar e ao papel desempenhado
por cada um de seus membros.
Na época em que somos alunos, durante a nossa infância e a nossa adolescência,
somos capazes de responder, a nosso modo, o que faz o professor, o diretor, o
coordenador, o inspetor, etc, porque convivemos muito tempo com pessoas que
desempenham essas funções de maneira muito próxima a nós. Quando nos tornamos
professores, articulamos essas representações da época na qual freqüentamos a escola
como alunos com a vivência que adquirimos ao longo do exercício da nossa profissão.
As características da escola seriada estão tão arraigadas nas nossas representações
35
quanto na cultura escolar e, por esse motivo, uma mudança em relação ao uso e à
organização tempo na escola não existe sem que haja conflito e resistência. Desta forma
entendemos porque é tão comum que, mesmo trabalhando em ciclos plurianuais, muitos
professores se auto-determinem como “professor da primeira série do primeiro ciclo” e
façam exigências com relação ao cumprimento do conteúdo programático como se,
como o final do ano do calendário, terminasse também o ano escolar – como se o ano
correspondesse a uma série e não como uma parte do tempo do ciclo. De acordo com
Fernandes (2007), as concepções dos professores e de toda a equipe pedagógica são
ilustradas através das “decisões sobre quais ações realizar com seus alunos, seja em
relação à seleção de conteúdos, seja quanto às práticas de avaliação e decisões de
promoção ou retenção. A escola, para operar entre duas lógicas, conforma práticas de
ambas as concepções de ensino, isto é, um ensino ora com ênfase no que se ensina, ou
seja, no programa, e ora com ênfase no que se aprende, portanto nas aprendizagens que
os alunos podem realizar. Mesmo considerando a complexidade da ação educativa e que
nossas práticas conjugam diferentes concepções e lógicas, arrisco dizer que a escola em
ciclos, tal qual está posta hoje, apresenta-se como uma instância intermediária entre a
escola seriada e uma outra escola que ainda está por vir: uma escola mais coerente com
as questões, problemáticas, concepções, tensões, conflitos e verdades provisórias do
século XXI” (op. cit, p. 10). Quando pensamos em mudanças na organização das nossas
escolas precisamos pensar, sobretudo, na possibilidade de mudanças das representações
que os agentes da escola – professores, diretores, coordenadores, supervisores,
funcionários, etc – têm desta instituição. Assim como os nossos alunos, também
precisamos de um tempo para compreender mudanças organizacionais, principalmente
quando elas entram em conflito com as nossas representações e com os nossos ritmos.
Outro marco importante que entrou em conflito com as nossas representações
acerca sobre a escola pública atualmente foi a implantação do ensino fundamental de
nove anos. Nas “Orientações Gerais” produzidas pelo Ministério da Educação acerca do
Ensino Fundamental de Nove Anos (2004), vale a pena lembrarmos o trecho referente
ao tempo escolar, que, ao citar Rubem Alves, diz o seguinte: “os currículos e os
programas têm sido trabalhados em unidades de tempo e com horários definidos, que
são interrompidos pelo toque de uma campainha. Assim, a escola acaba reproduzindo a
organização do tempo advinda da organização fabril da sociedade. Uma situação como
essa remete-nos a Rubem Alves, quando afirma que ‘a criança tem de parar de pensar
o que estava pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado
36
naquele tempo’. Daí que emergem as questões sobre a necessidade de se repensar a
organização do tempo escolar, acompanhando as mesmas inquietações de Rubem
Alves: ‘o pensamento obedece às ordens das campainhas? Por que é necessário que
todas as crianças pensem as mesmas coisas, na mesma hora e no mesmo ritmo? As
crianças são todas iguais? O objetivo da escola é fazer com que as crianças sejam
todas iguais?’ Enfim, o que se tem aprendido com um currículo que fragmenta a
realidade, seus espaços concretos e seus tempos vividos? Trata-se de um modelo
disciplinar direcionado para a transmissão de conteúdos específicos, organizado em
tempos rígidos e centrado no trabalho docente individual, muitas vezes solitário por
falta de espaços que propiciem uma interlocução dialógica entre os professores. É com
esse cenário que as escolas são convidadas a pensar sob uma outra perspectiva, para
provocar mudanças no tradicional modelo curricular predominante em grande parte das
escolas de nosso país. É, assim, imprescindível debater com a sociedade um outro
conceito de currículo e escola, com novos parâmetros de qualidade. Uma escola que
seja um espaço e um tempo de aprendizados de socialização, de vivências culturais, de
investimento na autonomia, de desafios, de prazer e de alegria, enfim, do
desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões. Essa escola deve ser
construída a partir do conhecimento da realidade brasileira. Nesse processo, é preciso
valorizar os avanços e superar as lacunas existentes no projeto político-pedagógico, ou
seja, melhorar aquilo que pode ser melhorado” (op. cit., p. 10). O trecho extraído do
documento produzido pelo governo federal é um convite aos diretores, aos professores,
aos coordenadores e a toda a equipe escolar a pensar sobre a organização do tempo nas
escolas, não em função da ordenação dos conteúdos, mas em função dos diferentes
ritmos de trabalho e de aprendizagem.
Exercício 3
1) Como é possível adequar o tempo escolar aos diferentes ritmos dos alunos?
2) Como a construção do projeto pedagógico pode promover o favorecimento da
aprendizagem pela adequada organização do tempo escolar? Pensar exemplos de
iniciativas capazes de favorecer essa organização.
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O espaço escolar
Com vimos anteriormente, assim como o tempo escolar, o espaço também
ensina, permitindo a interiorização de comportamentos sociais. Assim como acontece
com o tempo escolar, forma como o espaço é construído e organizado influencia as
atitudes e a maneira como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e
ensinam nas escolas. Além disso, a construção do espaço escolar reflete - e refletiu ao
longo da história da educação brasileira - as teorias educacionais e as necessidades
sociais e econômicas do momento. A construção dos espaços adequados para o ensino
está associada não apenas à possibilidade da escola cumprir as funções sociais que lhe
são delegadas, mas também à produção da singularidade da instituição escolar e de sua
cultura (FARIA FILHO e VIDAL, 2000). A exemplo disso, podemos pensar na
construção dos grupos escolares no período republicano como espaços
arquitetonicamente planejados para ensinar que marcam profundamente as diferenças
entre a instituição escolar e o ambiente doméstico, ensinando às crianças as distinções
entre o comportamento adequado ao espaço público e aquele adequado ao espaço
privado. Tanto semelhanças com relação à organização panóptica que projeta o espaço
visando à promoção da disciplina e do controle acerca do comportamento das pessoas
quanto a concepção taylorista que visa à racionalização das tarefas de modo a promover
a maior eficiência podem ser encontradas na constituição daquelas escolas
(ESCOLANO, 2001). Aproximações entre a condução dos alunos no espaço escolar e
dos operários nas fábricas também são evidenciadas por elementos comuns aos dois
espaços, como a utilização do sinal de marca o horário de entrada e de saída, a formação
de filas, a utilização de uniformes, etc. Acerca do poder disciplinar que é gerado pelo
espaço escolar, vale a pena recorrermos novamente às palavras de Agustín Escolano
(2001), ao afirmar que “a ‘espacialização’ disciplinar é parte integrante da arquitetura
escolar e se observa tanto na separação das salas de aulas (graus, sexos, características
dos alunos) como na disposição regular das carteiras (com corredores), coisas que
facilitam além disso a rotina das tarefas e a economia do tempo. Essa ‘espacialização’
organiza minuciosamente os movimentos e os gestos e faz com que a escola seja um
‘continente de poder’” (op. cit., p. 27-28). A espacialização referida pelo autor pode
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promover a disciplina dos alunos sem que seja necessário um ato explícito por parte dos
professores. Por exemplo, a maneira como as carteiras são organizadas na sala de aula
pressupõe determinado comportamento das crianças: se são fixadas no chão e alinhadas
umas atrás da outras, imobilizam os alunos e dificultam o contato com os colegas, se
são móveis e leves, favorecem o relacionamento com os colegas durante o período da
aula e flexibilizam a postura das crianças, oferecendo a elas uma maior liberdade. A
localização da escola também é uma variável do programa pedagógico comportado pelo
espaço e pela arquitetura da escola. A proximidade com a natureza e com áreas verdes e
livres favorece estímulos, ações, brincadeiras e jogos ao ar livre, promovendo tanto a
utilização didática do entorno quanto a contemplação estética da paisagem
(ESCOLANO, 2001). As escolas que possuem jardins e hortas possibilitam uma relação
mais próxima entre as crianças e a natureza – especialmente no caso daquelas crianças
que vivem em grandes áreas urbanas - favorecendo o contato dos alunos com a terra e
com as plantas. No caso do ensino de ciências e de biologia, os professores podem se
beneficiar desses espaços para a realização de atividades práticas, favorecendo o ensino
ativo e estimulando os diferentes sentidos dos alunos, para além dos exercícios
realizados dentro do espaço da sala de aula. Além disso, cuidar do espaço da escola
representa também um aprendizado do cuidado com o mundo, e este é um objetivo
educacional.
O espaço escolar e os símbolos na escola
Com relação à arquitetura escolar, também precisamos considerar que ela é um
elemento cultural e pedagógico não apenas pelos condicionamentos induzidos pelas
suas estruturas, mas também pela simbolização que ela desempenha na vida social
através da magnificência e imponência que os edifícios impõem ao espaço público. O
edifício da escola costumava ser, e alguns ainda são, construídos de forma diferente dos
outros prédios, que visam a uma maior praticidade. Da mesma maneira que os templos,
os palácios, as câmaras, os teatros e os quartéis foram construídos, o edifício escolar, no
dizer de Agustín Escolano (2001) “é uma forma que comporta determinada força
semântica através dos signos e símbolos que exibe, como variante que é da chamada
arquitetura institucional. O viajante que toma contato pela primeira vez com uma
população, pode observar e nela diferenciar, ainda sem conhecê-la, a singularidade de
certas construções. Sua localização, o volume, o traço geométrico, os sinais que o seu
39
desenho mostra, os símbolos que incorpora... tornam inconfundível seu objetivo e
permitem sua fácil identificação” (op. cit., p. 34) Cabe ressaltar que essa característica
marcante e imponente dos edifícios escolares não era assim antes que fosse configurada
a arquitetura escolar como um gênero específico da ordem espacial, ou seja, antes que
existisse uma intencionalidade na construção de espaços destinados especificamente
para promover o ensino e a aprendizagem, para receber os alunos, os professores e toda
a equipe pedagógica, e nada mais. Assim, o esforço investido pelos políticos e pelos
técnicos na construção de escolas exuberantes visava a demonstrar a valorização e a
atenção dispensada à educação, mas também tinha por objetivo demonstrar através da
magnitude desses edifícios o valor e o poder do Estado, fazendo das escolas símbolos de
ostentação deste poder, influenciando a consciência coletiva da população e também a
construção da sua identidade. Além disso, historicamente, “essa dignificação da
arquitetura escolar acrescentaria, também, o prestígio do professor e elevaria a estima
que os alunos têm para com a educação. O prestígio da escola dependerá, pois, de como
essa esteja instalada, de seu tamanho, limpeza, orientação. E esse modelo influirá,
depois, na casa que a criança buscará no futuro, para melhorar as condições de vida de
seus pais” (BALBÁS apud ESCOLANO, 2001, p. 37). Neste caso, o autor refere-se a
um momento no qual a escola primária foi difundida mundialmente – como vimos
anteriormente, no caso brasileiro podemos pensar na construção dos nossos grupos
escolares da virada do século XIX para o século XX que tinham por objetivo oferecer o
ensino primário para todas as crianças em idade apta à escolarização – e que contou
com a arquitetura de seus edifícios como um dos elementos de contribuiria com a
valorização dos professores e dos alunos. O autor ainda ressalta que o ambiente escolar
habituaria as crianças e os jovens a certas atitudes – como a organização, a limpeza e até
mesmo a valorização estética - e que, ao sair da escola, eles buscariam mantê-los em sua
vida, organização as suas casas sob essa inspiração. Quando pensamos em crianças e
jovens que foram os primeiros membros da família a freqüentar a escola, já que seus
pais não tiveram essa oportunidade naquele momento - como era comum no início do
século XX – podemos entender o quanto era forte a influência que esta instituição
poderia exercer sobre os hábitos de seus alunos e, inclusive, o quanto muitas vezes as
maneiras e as atitudes que a escola desenvolvia nas crianças entravam em choque com
aquelas às quais elas estavam habituadas com as famílias e em seus lares. Desta forma,
a escola cumpriria também através da sua arquitetura uma função higienizadora e
modernizadora dos hábitos familiares e através da criança era atingida a sua família.
40
Além da influência que a arquitetura pode exercer sobre os sujeitos que habitam
determinados espaços, ela também é capaz de influenciar a sociedade como um todo,
favorecendo o seu desenvolvimento: “ao transcender o funcionalismo banal que só daria
cobertura às necessidades físicas, dá origem a uma nova forma de comunicação cultural,
que também é pedagógica no sentido mais amplo e generoso” (op. cit., p. 38). Desta
forma, a função prática da arquitetura adquire uma dimensão simbólica: ao mesmo
tempo em que é funcional (os espaços precisam ser arejados, iluminados, adequados às
atividades que neles serão desenvolvidas) ela carrega símbolos que deixam traços que
guiam e marcam a conduta das pessoas (se os espaços são lúdicos e informais, se são
sóbrios e frios, etc). Para além da construção de seus prédios, a arquitetura escolar
também contempla outros símbolos, cívicos, morais e religiosos. Neste caso, podemos
ressaltar, por exemplo, cores diferenciadas que marcam os espaços destinados ao uso
dos meninos e das meninas, a bandeira nacional, o relógio, os retratos de homens
ilustres e os crucifixos que expressam dispositivos em uso no espaço escolar a serviço
da propagação e da manutenção de ideais nacionais, religiosos e sócio-morais.
Pensemos agora a propósito das nossas escolas, dos espaços que freqüentamos
diariamente, no qual trabalhamos.
Quantos símbolos elas carregam?
Quantas delas não possuem, ainda hoje, ao menos um crucifixo pregado em uma
parede?
Todos estes símbolos educam e marcam a trajetória escolar dos nossos alunos.
Portanto, ao pensarmos na configuração do espaço das nossas escolas e nos símbolos
que elas carregam, é importante atentarmos para isso: assim como o currículo, o espaço
escolar não é neutro, ele é impregnado de valores e carregado de intencionalidades.
Ainda de acordo com Agustín Escolano (2001), o espaço e a arquitetura escolar,
ao serem planejados, oferecem as condições para que sejam alcançados os objetivos
educativos de cada instituição de ensino, fazendo parte do programa pedagógico. Ao ser
elaborado pela equipe da escola, o projeto pedagógico deve levar em conta não apenas
as condições espaciais concretas daquela instituição como também a melhor utilização
que poderá ser feita dela, de modo a beneficiar o ensino e a aprendizagem. A
constituição de um espaço construído especialmente para promover o ensino e a
aprendizagem também é um dos elementos que está associado ao surgimento da forma
escolar. De acordo com Bernard Lahire, Daniel Thin e Guy Vincent (2001), a forma
escolar corresponde a uma forma inédita de relação social, entre um “mestre” e um
41
“aluno”, relação que hoje chamamos de “pedagógica”. Antes disso, aprender se fazia
por ver fazer e ouvir dizer, aprender não era diferente de fazer. Isso ocorria com as
próprias famílias e dentro das próprias casas. A autonomia da relação pedagógica
instaura um lugar específico – independente do espaço doméstico - onde se realizam as
atividades sociais: a escola. A constituição da forma escolar acompanhou a instauração
de uma nova ordem urbana, uma redefinição dos poderes civis e religiosos: “colocar
todas as crianças, até mesmo as pobres, nas escolas é um empreendimento de ordem
pública. Trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição”
(op. cit., 14). Mediante as relações estabelecidas neste espaço, as crianças aprendem a
obedecer a determinadas regras de convívio social e de comportamento no espaço
público, como a maneira considerada correta de comer, de assoar o nariz, de escrever,
etc, através de normas que fazem parte da ordem escolar e que se impõem a todos que
pertencem à instituição escolar, atingindo tanto os alunos quanto os seus professores. A
ordem escolar existe a partir do momento em que as crianças precisam aprender a se
comportar dentro do espaço escolar, o que torna possível ensinar muitos alunos ao
mesmo tempo. Diferente das escolas confessionais, esses professores que não pregam –
já que não são padres - mostram o que é a relação pedagógica: uma submissão do
mestre e dos alunos a regras impessoais. A emergência da forma escolar, que
acompanha a constituição do tempo e do espaço escolar, se dá a partir de um conjunto
coerente de traços: a constituição de um universo separado da infância, a importância de
regras de aprendizagem, a organização racional do tempo, a multiplicação e a repetição
de exercícios, cuja função consiste em aprender conforme as regras. Assim, para além
de ensinar a ler, a escrever e a contar, a sociabilidade exercitada na escola ensinaria
também civilidade e visaria à formação do cidadão respeitoso e obediente, conhecedor
de seus direitos e, sobretudo, de seus deveres. Ligações profundas unem a escola e a
cultura escrita num todo sócio-histórico: a constituição do Estado moderno, instituição
de viria a se impor a todos; a generalização da alfabetização. A escola e a constituição
das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à imposição da cultura escrita e à
formação de saberes escriturais formalizados, relacionados tanto ao que é ensinado
quanto à maneira de ensinar, tanto à prática dos alunos quanto à prática dos professores.
Trata-se de fazer com que os alunos interiorizem determinados saberes que
conquistaram coerência pela escrita e de fazer reviver, por um trabalho específico, a
prática pedagógica, os resultados do trabalho passado e da cultura acumulada pelos
homens historicamente. Portanto, quando nos referimos ao espaço escolar estamos nos
42
referindo a um espaço de ensino e de aprendizagem no qual é estabelecida a relação
pedagógica, ou seja, um espaço no qual há uma intencionalidade educativa.
Escolas para quem?
Conforme vimos anteriormente, a arquitetura escolar é impregnada de
significados e, assim como o currículo, ela não é neutra. Ela educa e é capaz de
condicionar o comportamento dos alunos. Portanto, no espaço escolar há uma
intencionalidade educativa. Desta forma, quando pensamos da utilização do espaço da
escola e sabemos que ele próprio é formativo, devemos nos interrogar acerca dos nossos
propósitos educativos. Conforme vocês estudaram no módulo II, na disciplina “O
Projeto Pedagógico e Autonomia da Escola”, quando trabalhamos na construção do
projeto pedagógico da nossa escola devemos ter clareza acerca dos objetivos que
visamos alcançar a partir da sua implementação, ou seja, devemos ensinar o quê?
Como?
Para quem?
Quem iremos formar? Quando pensamos na organização do espaço escolar,
devemos ter mente essas mesmas perguntas.
Quem pretendemos formar?
O que queremos que nossos alunos aprendam?
Todos os espaços escolares possuem potencialidades educativas e devem ser
considerados em função do projeto pedagógico e da intencionalidade educativa de cada
instituição. Portanto, os elaboramos o projeto é preciso refletir sobre esses espaços:
1- Salas de aula
2- Corredores
3- Pátio
4- Banheiros
5- Jardim
6- Quadras
7- Limites: muros, portões
8- O prédio
Quando construímos o projeto pedagógico, trabalhamos para projetar o futuro.
O projeto pedagógico representa a nossa carta de intenções acerca do trabalho de
queremos desenvolver em função da formação que almejamos realizar com os nossos
43
alunos. O espaço escolar, além carregar toda uma simbologia que atua junto à formação
das crianças e dos jovens, também é o suporte que sustenta a realização do projeto
pedagógico. Por exemplo: como podemos construir um projeto que vise à realização de
experiências se a escola não possui laboratório? Como podemos pensar em construir
hortas sem a escola é inteiramente pavimentada? Para além das limitações físicas dos
espaços também é fundamental que façamos a seguinte pergunta: essa escola é
destinada a quem? Quem receberemos e formaremos nela? A acessibilidade do espaço
escolar também deve ser considerada. O artigo 3º da LDB em vigor, a Lei nº 9.394/96,
define que o ensino será ministrado com base nos princípios de “igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola”. A educação pública é um direito de todos,
garantido por lei, e o seu acesso a ela também é. Para que todas as crianças tenham
acesso à educação não basta simplesmente que existam vagas nas escolas para elas, é
preciso que o acesso físico às escolas também exista.
No ano de 1994, uma reunião que contou com representantes de vários países do
mundo todo, organizada pelas Nações Unidas em Salamanca, na Espanha, discutiu os
procedimentos que deveriam ser adotados para oferecer a cidadania plena às pessoas
portadoras de deficiências, equalizando as suas oportunidades de acesso a todas as
instituições sociais. Esse encontro faz parte de uma tendência mundial de promoção e de
consolidação da educação inclusiva. Essa reunião deu origem ao documento intitulado
“Declaração de Salamanca”, que trata dos princípios, das políticas e das práticas que
devem orientar a inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais nas escolas
e em toda a sociedade. Para que a escola promova uma educação inclusiva, além dos
recursos humanos (professores habilitados em linguagem de sinais, em braile,
psicólogos, etc) também é fundamental que a instituição disponha de recursos físicos,
como o material especializado, a sala de recursos, os banheiros projetados para receber
pessoas que se locomovem mediante o uso de cadeiras de rodas, rampas de acesso ao
edifício, elevadores, etc. Promover a acessibilidade de todos à escola requer uma
organização específica do espaço escolar. No momento em que construímos o nosso
projeto pedagógico, se não levamos em conta as nossas condições concretas e as nossas
possibilidades de mudanças – de reformas e alterações do espaço - ao longo do ano,
corremos o risco de elaborar algo que não será transformado de intenção em prática. E,
nesse caso, o nosso projeto pedagógico, a nossa carta de intenções não servirá a
ninguém, nem aos nossos propósitos, nem aos nossos alunos, nem a nós mesmos.
44
Espaço escolar: um espaço em transformação
Sabemos que a escola é uma construção histórica e social e, como tal, está
constantemente em transformação. Da mesma forma como ela continua a sofrer
influências externas que a modificam, ela pode ser transformada também a partir de seu
interior: mediante ações daquelas pessoas que habitam este espaço e o gerem. Se a
escola deve refletir e representar a identidade da comunidade escolar, cabe aos gestores
o desafio de transformá-la. Quando fazemos o projeto pedagógico da nossa escola,
planejamos aquilo que pretendemos realizar: projetamos o futuro modificando o
presente. Segundo Moacir Gadotti (1994), “todo projeto supõe rupturas com o presente
e promessas para o futuro. Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para
arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em
função da promessa que cada projeto contém de estado melhor do que o presente. Um
projeto educativo pode ser transformado como promessa frente a determinadas rupturas.
As promessas tornam visíveis os campos de ação possível, comprometendo seus atores
e autores” (GADOTTI apud VEIGA, 2002, p. 12) O projeto pedagógico orienta a
organização do trabalho pedagógico de duas formas: como a organização da escola em
geral e como a organização da sala de aula. Desta forma, o projeto busca promover a
organização do trabalho na escola em sua totalidade, incluindo a gestão do tempo e do
espaço. De acordo com Ilma Passos Veiga (2002), “a escola, de forma geral, dispõe de
dois tipos básicos de estruturas: administrativas e pedagógicas. As primeiras asseguram,
praticamente, a locação e a gestão de recursos humanos, físicos e financeiros. Fazem
parte, ainda, das estruturas administrativas todos os elementos que têm uma forma
material como, por exemplo, a arquitetura do edifício escolar e a maneira como ele se
apresenta do ponto de vista de sua imagem: equipamentos e materiais didáticos,
mobiliário, distribuição das dependências escolares e espaços livres, cores, limpeza e
saneamento básico (água, esgoto, lixo e energia elétrica)” (op. cit., p. 24-25). A
estrutura pedagógica determina a ação da estrutura administrativa, ou seja, esta organiza
a escola – e o seu espaço - de modo a alcançar as suas finalidades educativas. Mas o
espaço escolar tem sido levado em conta quando construímos o nosso projeto
pedagógico? Muitas vezes observamos escolas que possuem projetos bastante
45
dinâmicos e inovadores, mas possuem espaços que mantém um modelo estrutural e
arquitetônico bastante conservador. Quando uma comunidade se apropria da escola,
também tem o direito de participar de eventuais mudanças neste espaço físico de modo
a atender os seus objetivos pedagógicos. Contudo, é possível observar que existem
muitas escolas nas quais várias pessoas passam por ela, mas poucas dela se apropriam,
o que nos leva a acreditar que há pouca reflexão acerca da função pedagógica do espaço
físico da escola e de sua transformação por seus protagonistas, por aqueles que a
ocupam e a constroem.
O espaço da sala de aula
Enxergar a si próprio como protagonista, como alguém que é capaz de modificar
o seu espaço em função de um propósito educativo pode repercutir positivamente em
uma mudança de mentalidade que influenciará o nosso trabalho e forma como gerimos a
escola. Desta forma, em alguns casos, para que possamos tentar modificar o espaço da
escola que ajudamos a organizar é preciso que pensemos primeiro em modificar a nós
mesmos e as nossas representações acerca desta instituição. Carlos Rodrigues Brandão
(1994), ao refletir acerca do espaço da sala de aula em um texto no qual relembra as
suas experiências escolares enquanto membro da “turma de trás” ou da “turma do
fundão”, como é popularmente conhecido o local da sala da aula habitado mais ao fundo
e mais distante dos olhos dos professores, apresenta a seguinte consideração: “na cabeça
de quase todo mundo a sala de aula admite espacialmente uma única oposição: a mesa
do professor versus o lugar coletivo dos alunos. Necessária ou perversa, esta divisão
ancestral dos lugares de ofício que ocupam esses cúmplices e rivais na sala de aula tem
sido ultimamente posta em questão, seja para criticar o verticalismo autoritário que ela
enuncia, seja simplesmente para lembrar que chegou afinal o tempo de inovações
arquitetônicas e pedagógicas quanto ao assunto. Creio que a sala de aula é um espaço
múltiplo que sempre comportou outras relações e oposições importantes e, no entanto,
esquecidas por não serem possivelmente tão visíveis, do ponto de vista da ortodoxia
pedagógica” (op. cit., p. 105). O autor discute a organização tradicional da sala de aula,
como era aquela que ele freqüentou na época em que foi aluno. As nossas experiências
escolares produzem representações que influenciam a nossa prática educativa. Se não
fizermos o exercício, como faz Brandão, de refletir sobre elas, corremos o risco de
reproduzir e proporcionar as mesmas experiências – já que agora estamos na posição
46
inversa, como educadores – com os nossos alunos. No caso da disposição dos móveis
dentro da classe, por exemplo, é natural mantermos a ordenação tal qual nos habituamos
no tempo em que éramos alunos. É nesse sentido que chamamos a atenção para a
importância da reflexão acerca da própria história de vida escolar e da própria formação.
Quais marcas elas produziram em nós mesmos e nas nossas práticas como
educadores?
Em que medida as nossas atitudes reproduzem as atitudes dos professores que
nos ensinaram?
Como cada um de nós se relaciona com os espaços da escola em nosso processo
de formação?
Pensar acerca destas questões pode nos sinalizar alguns caminhos possíveis que
levariam à transformação do espaço da escola a partir da nossa própria transformação:
se não somos capazes de imaginar que o ensino e a aprendizagem aconteçam em um
espaço organizado de maneira distinta daquele no qual aprendemos e fomos
escolarizados, dificilmente seremos capazes de sermos protagonistas em alguma
mudança.
Voltemos ao Brandão (1994), enquanto aluno que fazia parte da “turma de trás”
da classe, ao refletir sobre a sala de aula que freqüentou ele percebeu que “as antigas
(atuais?) repartições formais e espontâneas dos usos da sala de aula refletem
internalizações de papéis escolares ou culturais trazidos para dentro da escola. Para nós,
os da ‘fila de trás’, a oposição fundamental do lugar sagrado do estudo não era aquela
entre o professor e os alunos, em geral, mas uma outra. Era uma divisão entre o lado da
norma versus o lado da transgressão. Situados à frente (o professor de frente para nós
todos, os alunos ‘aplicados’ de costas) da sala, os ocupantes do espaço reservado ao
cumprimento das tarefas previstas. Após uma zona neutra de dos estudantes do ‘meio da
sala’, o lugar social da transgressão pedagógica” (op. cit., p. 120). O autor chama a
atenção em suas memórias para a maneira como os seus professores o avaliavam de
acordo com a posição que ele ocupava na sala de aula. Na ordenação tradicional da
classe, o lugar do professor fica à frente e as crianças posicionam-se em filas no restante
do espaço. Desta forma, a “turma de trás” é aquela que está mais distante dos olhos do
mestre. Os alunos que se posicionam nas primeiras fileiras seriam aqueles considerados
“bons alunos”, que estariam sempre atentos à aula e ao professor.
Ao refletirmos sobre essa configuração espacial, podemos notar que ao mesmo
tempo em que ela oferece abrigo àqueles considerados “transgressores”, ela também
47
favorece a “transgressão” pela forma rígida como dispõe as pessoas no espaço.
“Divididos os espaços” conclui Brandão “internalizados os papéis, culturalmente
estabelecidas e consagradas as identidades, constituídos os grupos e subgrupos entre
colegas de ofício por um ano ou mais, a ‘classe’ funcionava não como o corpo simples
de alunos-e-professor, regidos por princípios igualmente simples que regram a chatice
necessária das atividades pedagógicas. Ela organizava a sua vida a partir de uma
complexa trama de relações de aliança e conflito, de imposição de normas e estratégias
individuais ou coletivas de transgressão, de acordos (entre categorias de colegas, entre
alunos e professores, entre professores ‘chapas’ e a direção do colégio). A própria
‘atividade escolar’, como o ‘dar aula’, ‘ensinar’, ‘fazer a prova’, era apenas um breve
corte, no entanto poderoso e impositivo, que interagia, determinava relações e era
determinada por relações sociais, ao mesmo tempo internas e externas aos limites da
norma pedagógica” (op. cit., p. 121). O autor considera que o que se fazia no interior
das salas de aulas na época em que ele estudou, entre os anos de 1950 e 1960,
conspirava contra o desejo das crianças e dos jovens e, desta forma, fazia com que os
mesmos produzissem “estratégias” que tornavam a sua permanência naquele espaço e
durante aquele tempo suportável. Para ele, o esforço e as tentativas de inovação
promovidas pelas pedagogias ditas “modernas” consistem em aprender as estratégias de
relações entre as pessoas utilizadas por aqueles ditos “transgressores” das normas
rígidas de conduta no espaço escolar que tornariam a submissão às regras escolares ao
menos suportável.
É preciso ponderar que as “transgressões” às normas escolares que ocorriam nos
anos de 1960 não eram as mesmas que ocorrem hoje em dia, chegando a casos extremos
de atos de vandalismo e de depredação do espaço escolar até violência e agressões
contra professores e alunos. Contudo, a reflexão do autor nos faz pensar que, assim
como o projeto pedagógico que, para que de fato atenda às necessidades da clientela
escolar de determinada instituição, precisa ser fruto de uma construção coletiva, o
mesmo acontece com o uso do espaço da escola. Se as decisões são partilhadas e
resolvidas democraticamente, há pouco espaço para a transgressão, pois as regras não
são vistas como imposições e sim como acordos. É evidente que as decisões coletivas
não são tomadas de forma simples, normalmente são o resultado de um longo processo
de negociação. Agir dessa forma constitui um desafio que acena para resultados
promissores.
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Exercício 4
No livro Maldito profe!, Nicolas Revol (2000) relata aspectos do seu cotidiano
como professor de uma escola considerada “problemática e violenta”, localizada na
periferia de Paris. Acompanhemos alguns trechos da história deste professor ao assumir
as aulas nesta escola:
“(...) à primeira vista, [a escola] Eugène-Sue não se parece nada com um
estabelecimento degradado. Foi renovado recentemente, com materiais contemporâneos,
os espaços são bem luminosos e os revestimentos muito limpos. As oficinas são amplas
e bem equipadas. Fico a saber que tenho a sorte de ter uma sala de aulas única para o
ano inteiro: assim não tenho que andar a arrastar o meu material pelos quatro cantos do
liceu, os alunos é que terão de se deslocar para assistirem às minhas aulas. Faço parte
dos privilegiados. É verdade que não vou ter espaço suficiente para guardar os trabalhos
dos alunos, mas apesar de tudo a sala é espaçosa e bem orientada para o sul. Até tenho
um pequeno anexo que posso fechar à chave para guardar os trabalhos volumosos. Só
uma coisa me preocupa: estou muito isolado. A minha sala fica no terceiro e último
andar. As aulas aqui são raras. Estarei freqüentemente sozinho” (p. 28-29)
“Primeiras horas: tempo de deixar entrar os alunos, instalá-los atrás de uma carteira,
baixar o volume sonoro especialmente elevado no início do ano, e já passaram dez
minutos. Primeira surpresa: a porta abre-se e fecha-se vinte vezes até eu poder pensar
em apresentar-me. Há os alunos lá de fora que vão e vêm. Os retardatários, antes de se
sentarem, dão um aperto de mãos a cada um. Depois, exatamente como no ano passado,
o mínimo incidente perturba-os. Um aluno dá um tranque e toda a turma se afasta do
culpado, deixando sozinho no canto da sala” (p. 31-32).
“Quando o volume sonoro atinge de novo um nível insuportável e alguns objetos
começam a voar pela sala, peço aos alunos que pousem as canetas. Faço questão que a
ficha seja corrigida em conjunto. Este exercício tão lúdico quanto instrutivo permite-me
captar melhor a personalidade de cada um: os mais ‘destravados da língua’ fazem tudo
para atrair as atenções, os tímidos enfiam-se nas suas tocas atrás das carteiras, os
‘Picassos’ fazem o seu brilharete. E como sempre, os mais calões passam o tempo a
mandar abaixo os que se dignam participar no exercício” (p. 35-36).
Nestes trechos do seu relato, Revol (2000) apresenta alguns aspectos do espaço escolar
e conta algumas das situações de indisciplina que enfrentava. Sabemos que a
49
indisciplina tem várias causas, mas especialmente considerando possibilidades do
espaço escolar, construa uma reflexão acerca da maneira como ele poderia ser utilizado
de modo a atenuá-la e a favorecer o ensino e a aprendizagem.
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