a horda zumbi

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Zumbis e política

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  • RaSTROSDesterro, Maio/Junho de 2013 | Editor: Moyss Pinto Neto Editorial: Alexandre Pandolfo, Jos Linck, Manuela Mattos, Marcelo Mayora, Mariana Garcia, Moyss Pinto Neto.

    n.-61. Definio

    Em uma famosa fico inspirada em Darwin, Freud postulou a horda primitiva como forma de organizao pr-histrica da espcie: um grande grupo de canibais regido por um Pai tirano, onipotente e onividente. Hoje em dia, somos diariamente expostos a uma outra hor-da, to imaginria e ficcional quanto a freudia-na, mas que nos mais familiar, e em que at mesmo este princpio poltico-natural de domi-nao est ausente: a horda de zumbis mortos--vivos. Aqueles que esto familiarizados com os filmes de zumbis sabem como essa horda funciona: no possuem chefes, parecem no re-conhecer seus semelhantes (passando por cima dos companheiros de horda se necessrio), e buscam, a todo momento, reduzir o nico Ou-tro que reconhecem, os vivos, a um Mesmo: co-mer a sua carne, e, nesse gesto, transform-los em zumbis. Essa horda no possui autoridade porque nenhum de seus integrantes reconhece os demais como outro: no h diferena de va-lncia, no h hierarquia, axiologia ou mesmo conflito. O nico outro que existe para o zumbi o vivo, que ele quer a todo custo reduzir sua condio. Como demonstrou Jorge Fernndez Gonzalo em Filosofa zombi, o objetivo l-timo da horda zumbi a eliminao da alteri-dade, a mesmificao que acaba com qualquer

    possibilidade de relao. Um zumbi no o outro de outro zumbi justamente porque no h alteridade entre eles, porque no podem se relacionar, porque so o Mesmo. Por isso, os zumbis parecem ignorar a existncia de seus se-melhantes. A alteridade para o zumbi aquilo que deve ser reduzido identidade. O princpio zumbi a acumulao infinita, o crescimento indefinido da horda, a mortificao total: desse modo, no h hordas zumbis, mas uma nica horda zumbi. H ainda outra diferena entre a horda primitiva freudiana e a horda dos fil-mes de zumbi: sua localizao cronolgica na histria da humanidade. Ao contrrio da horda primitiva, a horda de zumbis est no final da histria; ela representa no um estgio natural, mas um estgio altamente humano, plenamen-te humano, que ultrapassou a barreira da vida. O enredo dos filmes quase sempre o mesmo: um vrus ou infeco, geralmente causado por interveno humana direta (uma tentativa de vacina ou outro experimento mdico que deu errado) contamina, em pouco tempo, grande parte da humanidade, que se converte em zum-bis, mortos-vivos que perseguem os poucos no contaminados para contagi-los ou com-los. Por outro lado, os sobreviventes (ainda) huma-nos tornam-se semelhantes aos zumbis, a uma

    A horda zumbiAlexandre Nodari e Flvia Cera

    Primeiras notcias do Apocalipse Zumbi

    O nico mito moderno o dos zumbis

    (Deleuze e Guattari)

  • horda: rapidamente descartam qualquer hu-manidade para sobreviver animalescamente. A histria humana ameaa se acabar devido ao progresso.

    (Isso uma generalizao da horda zumbi, que possui variaes fenomenolgicas, por assim dizer. H fices em que a horda zumbi e a pri-mitiva parecem se indiferenciar, com o apare-cimento nela do princpio de autoridade. Por exemplo, Eu sou a lenda, em que um zumbi parece ter, darwinianamente, se desenvolvido na luta pela sobrevivncia, e se tornado mais poderoso que os demais, aos quais lidera. Outra exceo Resident Evil, em que a infeco con-trolada de um personagem lhe garante maiores poderes e conscincia que os demais zumbis, e em que tambm h um processo de domestica-o, treinamento dos zumbis. Um reincio da histria do Ocidente. A histria depois do fim da histria.)

    Todavia, trs aspectos comuns a esse tipo de filme devem ser salientados: 1) a catstrofe (infeco ou algo do gnero) acontece de uma vez, como um evento sbito e arrebatador; 2) sempre existe a esperana ou de bolses de so-breviventes (algum lugar militarmente fortifi-cado, ou uma regio onde o vrus no chegou ou no consegue se espalhar), pessoas imunes e/ou a possibilidade de achar, pelo saber mdi-co (o mesmo causador da infeco), a cura; 3) temporariamente, possvel resistir ao cont-gio militarmente, com um arsenal de armas basta fuzilar todos os zumbis que aparecerem frente. Por isso, os filmes de zumbi, ao mesmo tempo, cristalizam o pavor de que um evento nico ameace a sobrevivncia humana, e nos tranquilizam quanto a ele: o perigo s tem uma face, a guerra se combate em frente nica. Os efeitos malficos da dominao da natureza, ou melhor, de sua destruio, podem ser reverti-dos, pois eles se manifestam de forma evental. Nisto consiste a sua carga ideolgica.

    2. Diferenciao entre horda zumbi, po-vos canibais e indivduos (ou socieda-des) vampirescos

    Desse modo, os filmes de zumbi colocam o ca-nibalismo no como origem da sociedade e da humanidade, mas como seu destino. Todavia, seria prudente pensar uma tipologia dos an-tropfagos (aqui entendidos como humanides comedores de homens) para evitar certas con-fuses que se fazem entre povos canibais, horda zumbi e indivduos vampiros. Em linhas gerais, zumbis e vampiros no so exatamente cani-bais, pois no comem seus semelhantes, mas aqueles que eram seus semelhantes: zumbis e vampiros esto mortos, ou semi-mortos, e se alimentam dos vivos e os vampiros talvez nem sejam antropfagos, pois no comem os ho-

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    mens, mas se alimentam de seu sangue. Contu-do, mesmo que admitamos que sejam canibais, eles se diferenciam dos antropfagos no ima-ginrio ocidental, ou na imaginao pblica ocidental. Procedendo a uma tipologia ideal (que ignora excees como os zumbis que so servos dos vampiros; os canibais que so, tipo-logicamente, mais semelhantes aos vampiros, como o mais famoso canibal do cinema, Han-nibal Lecter; os canibais por fome em situaes de necessidade, etc.), poderamos dizer que:

    a) Como vimos, os zumbis dos filmes e fic-es da segunda metade do sculo XX so uma horda que se cria dentro da prpria civili-zao. Eles no vm de longe, de Fora, mas de dentro (so comuns, nos filmes de zumbi, ce-nas em que os personagens tem de se confron-

    tar com seus (ex-)conhecidos). No visam

    lidar com a alteridade nem incorpor-la, mas acabar com ela, por meio do contgio. So a--sociais, no trocam de roupa, vestem farrapos, e so mortos-vivos, mais mortos do que vivos, situando-se no fim da histria. Talvez sejam sintomas de como contemporaneamente se en-care a alteridade: como catstrofe.

    b) Os antropfagos (isto , os vivos que comem os vivos), em sentido estrito, geralmente so um outro povo, uma outra coletividade, exterior, de fora, que simboliza ou indicia uma diferena poltica, moral, de costumes, de forma de vida: no limite, a alteridade total de um outro modo de vida (ou seja, a alteridade aqui no diz res-peito distino morto-vivo). Isso desde a anti-guidade (os cinecfalos, os citas, etc.), passando pela medievalidade, onde judeus e ciganos (es-ses outros nmades) eram acusados de caniba-lismo, at chegar na modernidade, em que os primitivos americanos se tornam os canibais por excelncia. Os antropfagos so o ndice de uma socialidade outra, so vivos e esto nus no comeo da histria. evidente a carga ideolgi-ca da caracterizao de um povo como canibal (veja-se Robinson Crusoe); todavia, a prtica da Antropofagia ritual por povos canibais tam-bm produziu transformaes na compreenso ocidental do sentido da alteridade, ao menos em certa tradio marginal (de Montaigne a Oswald de Andrade), em que aparece como o princpio de uma alteridade e de uma alterao reivindicadas. Se o princpio zumbi a acumu-lao infinita do Mesmo, o princpio do caniba-lismo ritual amerndio a metamorfose, aquilo que Oswald de Andrade chamou de exogamia. Um canibal no existe sem o outro.

    c) Os vampiros so, ao contrrio dos dois an-teriores, no coletividades, mas indivduos, geralmente poderosos (condes, nobres), que, no mximo, formam sociedades entre si para controlar os demais. Ao contrrio dos zumbis e antropfagos, no comem carne humana, mas sugam o sangue dos homens para manterem-

    Desterro, Maio/Junho de 2013 [ www.culturaebarbarie.org/rastros ]

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  • -se (mortos-)vivos, em sobre-vida. So o pi-ce da sociabilidade, a sociabilidade mxima: possuem bons modos, se vestem bem, e so mais vivos do que mortos esto dentro da civilizao, que controlam, e situam-se num estado mais avanado que os outros. Os vam-piros parasitam a alteridade, no transformam qualquer outro em vampiro, mas mantm a diferena ontolgica para conservar seu po-der sobre a alteridade. Esse carter parasit-rio do vampiro explica porque ele a imagem perfeita para representar os capitalistas ou os tiranos: uma elite que vive sugando o sangue da grande massa. O capitalismo no canibal, pois no pode simplesmente devorar os sujei-tos, precisando deix-los vivos e minimamente alimentados para sugar seu sangue. O mesmo vale para os tiranos, que, se podem ser cruis e brbaros com seus adversrios, no podem eli-minar toda a populao, sob o risco de no ter sobre quem governar.

    3. Modo de produo

    Se por um lado os zumbis se apresentam no ho-rizonte de um futuro distpico, por outro pa-recem ser exatamente o efeito que a sociedade contempornea aventa para o mundo. Por uma habilidade tcnica, por um evento de mercado, pelo medo do incontrolvel, do desconhecido ou do Fora, cria-se como norma comportamen-tal mtodos de dominao e disciplina que tm como objetivo controlar uma totalidade inven-tada dentro de uma multiplicidade incontest-vel: o mundo, os humanos, a natureza, etc.

    A faanha para reduzir o diferente ao Mesmo, o princpio da identidade como j dito, institui uma normalizao e, portanto, um corte en-tre normal e anormal que justifica um poder mdi(c)o atuante ali onde a diferena, ou mais ainda, a insatisfao com o dado, irrompe. Por a poderamos ler os sintomas mais diversos como o pnico, e a depresso, por exemplo. Maria Rita Kehl, atenta incidncia constante da depresso no discurso contemporneo, pro-pe uma leitura desta como um sintoma social

    que atua como um sinalizador do mal-estar na civilizao. Ora, se na sociedade do consumo possvel ter tudo que falta, no possvel que haja angstia. Ledo engano. Lacan definia a an-gstia justamente como a falta da falta, quando o objeto este tambm que pode ser encontra-do na prateleira mais prxima est to pre-sente que no existe espao para a falta, isto , para o desejo. Mas o desejo insiste. E onde ele se apresenta, se apresenta a diferena, e onde esta emerge, emerge tambm a imposio do normal, do progresso, do mundo suficiente-mente bom para todos.

    Ao invs dos Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. oswal-dianos, que poderamos ler como um convite ficcionalizao, experincia, e tambm ao fracasso, temos os Testes. Testes. Testes. Tes-tes. Testes. Testes. Testes. sem alteridade, mas repletos de uma idealizao de normalidade e xito nos quais os ndices estatsticos aponta-ro os fatores do fracasso (insuportvel hoje, vide o controle do que se entende por dficit de ateno), a evitao da experincia (atravs do medo do desvio e da contingncia) e uma pai-xo em controlar o real.

    No ser, portanto, mero acaso que a Ritalina, medicamento fartamente usado para o conser-to (e Concerta o nome de outro medicamento para o mesmo fim) e a adequao de milhares de pessoas que preferem ou se sentem impos-sibilitadas de experimentar e ficcionalizar a prpria vida, tenha como efeito teraputico o efeito zumbi e seja chamada de droga da obe-dincia. Esses zumbis criados pela aliana da cincia e do mercado realizam um futuro ima-ginado como catstrofe, fruto de uma ideia de progresso que se propaga como normalidade. Cabe ento perguntarmos quais sero os efeitos colaterais a que se est submetendo o mundo e suas formas de vida. Do que temos notcias at agora, da devastao da natureza, da reduo da alteridade no Mesmo, da rotulao e enqua-dramento dos testes, s podemos vislumbrar o pior.

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