a lã e a neve - ferreira de castro

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A E A NEVE: Romance Ferreira de Castro Obras de Ferreira de Castro Reservado para todos os países todos os direitos de tradução reprodução e adaptação. Cópyright by Ferreira de Castro PORTICO  Os primeiros teares criaram-se, em já difusos e incontáveis dias, para a lã que produ ziam os rebanhos dos Herminios. O homem trabalhava, então, no seu tugúrio, erguido n as faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das sole dades alpestres, os lobos desciam também e vinham rondar, famintos, a porta fechad a do homem. A solidão enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa s ombra. A serra, porque só a pé ou a cavalo se podia vencer, parecia incomensurável, mu ito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refe gos brotavam superstições e lendas histórias que os pegureiros contavam, ao lume, a e ncher de terror as noites infindas. O homem viera para ali há muitos séculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda  os que levantavam o seu abrigo de granito nos sítios mais propícios; e, quando o fa ziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circ undante. Os génios da montanha e as fúrias do céu possuíam, assim, quase toda a majestos a extensão da serrania, ermáticos domínios onde podiam transitar com passos de fantasm as ou bramir livremente. No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixava m, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada d epois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a 8 A E A NEVE tec&agem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mão s iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Const ituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a se rra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio. Pouco a pouco, porém, foi sendo tradição no reino que os homens da Covilhã e suas redond ezas eram mestres, como nenhuns outros, em tecer bifas, almafegas e buréis. Então, o s monarcas e seus acólitos acabaram atentando nesses tecelões dispersos pelas abadas  da serra; e com ordenações, pragmáticas, alvarás e regimentos, ora os estimulavam em se u solitário labor, ora os constrangiam sob pesadas sisas. Da Planares vinham panos  concorrentes, que exibiam mais esmerada tessitura; apesar disso, os humildes te ares continuavam a mover-se, alimentados pelos rebanhos da Estrela. Depois, Portugal descobriu longínquas terras e também a rota marítima da índia; e houve que vestir a muitas gentes exóticas, a troco do que elas, forçadas ou voluntariament e, entregavam aos descobridores. E os teares da serra multiplicaram-se. Cada tec elão trabalhava, ainda, no seu casebre, de lume aceso no Inverno e porta escancara da no Estio. A maior casa pertencia, então, ao deus do povoado. Mas um dia, na Cov ilhã, ergueu-se uma casa maior do que a do deus. Era a primeira fábrica de tecidos. Muitos tecelões deixavam a faina individual e iam trabalhar em conjunto. Da Inglat erra e da Irlanda chegavam outros homens para lhes ensinar os últimos progressos d a sua arte. A lã da serra já não bastava; ia-se mercá-la ao Alentejo e a outras terras d o país. E os teares começaram a vestir os exércitos reais. Cada século aportava novos ap erfeiçoamentos à tecelagem e levantava novas fábricas nas margens das duas ribeiras qu e desciam da serra, cantando, a um lado e outro da cidade.

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A L E A NEVE:RomanceFerreira de CastroObras de Ferreira de CastroReservado para todos os pases todos os direitos de traduo reproduo e adaptao.Cpyright by Ferreira de CastroPORTICO Os primeiros teares criaram-se, em j difusos e incontveis dias, para a l que produziam os rebanhos dos Herminios. O homem trabalhava, ento, no seu tugrio, erguido nas faldas ou a meio da serra. No Inverno, quando os zagais se retiravam das soledades alpestres, os lobos desciam tambm e vinham rondar, famintos, a porta fechada do homem. A solido enchia-se dos seus uivos e a neve reflectia a sua temerosa sombra. A serra, porque s a p ou a cavalo se podia vencer, parecia incomensurvel, muito maior do que era, e de todos os seus recantos, de todos os seus picos e refegos brotavam supersties e lendas histrias que os pegureiros contavam, ao lume, a encher de terror as noites infindas.O homem viera para ali h muitos sculos, mas poucos tinham sido e poucos eram ainda os que levantavam o seu abrigo de granito nos stios mais propcios; e, quando o faziam, achegavam-se uns aos outros, como se se quisessem defender da bruteza circundante. Os gnios da montanha e as frias do cu possuam, assim, quase toda a majestosa extenso da serrania, ermticos domnios onde podiam transitar com passos de fantasmas ou bramir livremente.No comeo do Vero, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. Lavada por braos possantes, fiada depois, a l subia, um dia, ao tear. E comeava a8 A L E A NEVEtec&agem. O homem movia, com os ps, a tosca construo de madeira, enquanto as suas mos iam operando o milagre de transformar a grosseira matria em forte tecido. Constitua o acto uma indstria domstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra no dava, nessas recuadas eras, mais do que l e centeio.Pouco a pouco, porm, foi sendo tradio no reino que os homens da Covilh e suas redondezas eram mestres, como nenhuns outros, em tecer bifas, almafegas e buris. Ento, os monarcas e seus aclitos acabaram atentando nesses teceles dispersos pelas abadas da serra; e com ordenaes, pragmticas, alvars e regimentos, ora os estimulavam em seu solitrio labor, ora os constrangiam sob pesadas sisas. Da Planares vinham panos concorrentes, que exibiam mais esmerada tessitura; apesar disso, os humildes teares continuavam a mover-se, alimentados pelos rebanhos da Estrela.Depois, Portugal descobriu longnquas terras e tambm a rota martima da ndia; e houve que vestir a muitas gentes exticas, a troco do que elas, foradas ou voluntariamente, entregavam aos descobridores. E os teares da serra multiplicaram-se. Cada tecelo trabalhava, ainda, no seu casebre, de lume aceso no Inverno e porta escancarada no Estio. A maior casa pertencia, ento, ao deus do povoado. Mas um dia, na Covilh, ergueu-se uma casa maior do que a do deus. Era a primeira fbrica de tecidos. Muitos teceles deixavam a faina individual e iam trabalhar em conjunto. Da Inglaterra e da Irlanda chegavam outros homens para lhes ensinar os ltimos progressos da sua arte. A l da serra j no bastava; ia-se merc-la ao Alentejo e a outras terras do pas. E os teares comearam a vestir os exrcitos reais. Cada sculo aportava novos aperfeioamentos tecelagem e levantava novas fbricas nas margens das duas ribeiras que desciam da serra, cantando, a um lado e outro da cidade.Um dia, tudo se revolucionou. J no se tratava de melhores debuxos, de mais gratas cores, mas de coisa mais profunda da produo automtica. L nas nevoentas terras inglesas o padre Cartwright inventara o tear mecnico. A gua, fazendo girar grandes rodas, comeara aA LA E A NEVE 9produzir o movimento dado, at a, pelos ps do homem. Mas continuavam a ser precisos os homens junto das novas mquinas.Os serranos, que nas solides da Estrela ora pastoreavam as suas ovelhas, ora teciam a l que elas forneciam, tornaram-se cada vez mais raros. A maioria entrara nas fbricas. Eles tinham de pautar, agora, a sua vida por um salrio fixo, chegasse ou no chegasse para as exigncias de cada dia. Isso, porm, carecia de importncia; ningum pensava em aumentar-lhes os ganhos, pois havia de se ter sempre em conta o preo da mo-de-obra para a concorrncia dos tecidos nos mercados.Os homens passavam os dias e as noites dentro das fbricas, s saindo aos domingos, para olvidar o crcere. J no viam as ovelhas, nem ouviam o melanclico tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepsculo; viam apenas a sua l, l que eles desensurravam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, l por toda a parte.A indstria ia crescendo sempre. Agora no eram grandes apenas a casa do deus dos homens e as casas das fbricas; ao lado destas, outras casas grandes tinham surgido as residncias dos industrieis. E todo o pas falava da prosperidade da Covilh.Mais tarde, operou-se nova revoluo. As enormes rodas que giravam nas ribeiras detiveram-se: o poder da gua fora substitudo pelo da electricidade. E fbricas existiam onde j laboravam pais, filhos e netos. Os centos de teceles que, outrora, viviam nos lugarejos da serra, tinham-se multiplicado e constituam, agora, milhares. Ladinas personagens, que, de magros dinheiros dispondo, compravam o fio a uns, mandavam-no tecer a outros e a terceiros vendiam os panos, acabaram desaparecendo tambm, devoradas pelos industriais poderosos. E s ficavam as grandes fbricas, com seus milhares de operrios.A l do pas j no chegava; tinha-se de procur-la em terras estrangeiras. Da Austrlia, da Nova Zelndia, da frica do Sul, passaram a vir grandes carregamentos. Rebanhos distantes alimentavam, atravs dos mares, as fbricas quase escondidas nas ribeiras da Estrela.IOA L E A NEVEA indstria sofria, porm, constantes oscilaes. Ora fabricava sem descanso, ora, por escassez de matria-prima ou parco consumo, diminua os dias de seu trabalho. Ento, homens e mulheres, que l haviam entregue a sua vida, defrontavam-se com uma misria mais descarnada ainda do que a normal. com seu fabrico reduzido, a Covilh, em vez de exportar panos, passara a exportar raparigas para o meretrcio de Lisboa.A sujeio ao destino comum criara, todavia, alguns vnculos entre os descendentes dos primeiros teceles. No sculo XX, mais do que sons de flautas pastoris descendo do alto da serra para os vales, subiam dos vales para o alto da serra queixumes, protestos, rumores dos homens que, s vezes, se uniam e reivindicavam um pouco mais de po.PRIMEIRA PARTEOS REBANHOSJOGO que as cabras e as ovelhas entestaram corte, o "Piloto" deu por findo o seu trabalho. E antes mesmo de o pastor, que lhe aproveitava os servios, se dirigir a casa, ele meteu ao extremo da vila. Rabo entre as pernas, focinho quase raspando a terra, ia triste, cismtico, como perro vadio de estrada, descorooado da vida. Subitamente, porm, sorveu no ar algo que lhe era conhecido. A cauda ergueu-se num pice, formando volta que nem cabo de guarda-chuva; a cabea levantou-se tambm e nela luziram os olhitos at a amortecidos. "Piloto" estugou o passo. O caminho estava cheio de tentaes, de paragens obrigatrias, estabelecidas por todos os ces que passaram ali desde que Manteigas existia, desde h muitos sculos. Forado a deter-se, ele regava, esquerda e direita, rudes pedras, velhos castanheiros, velhos cunhais, mas fazia-o alegremente e com o visvel modo de quem leva pressa. Em seguida, voltava a correr no faro do seu dono. Cada vez o sentia mais perto e cada vez era maior o seu alvoroo. Por fim, lobrigou-o. Horcio estava junto12A L E A NEVEde Idalina, tambm conhecida de "Piloto"; estavam sentados num dorso de rocha que emergia da terra, ao cabo das decrpitas e negrentas casas do Eir, no cimo da vila. E to atarefado parecia Horcio com as palavras que ia dizendo rapariga, que no deu, sequer, pela chegada do co. Vendo-o assim, "Piloto" hesitou um instante, enquanto agitava mais a cauda e tremuras de alegria lhe percorriam o corpo. Logo se decidiu. E, humilde, foi colocar o focinho sobre a coxa do amo, como era seu costume quando este o chamava, hora da comida, nos dias em que os dois andavam pastoreando o gado, l nos picarotos da serra. S ento o amo deu por aquela presena. Ele regressara nessa tarde do servio militar e, no entusiasmo de ver pai e me, os vizinhos e, sobretudo, Idalina, no se havia lembrado ainda do seu antigo companheiro. Agora, porm, afagava-lhe a cabea e metia, enternecido, um parntesis na narrativa que estava fazendo:Olha o "Piloto"! O meu "Piloto"!Idalina desviou ligeiramente os olhos para o co e voltou a fix-los na rocha, com aquele mesmo ar preocupado que tinha quando o bicho chegara. Houve um pequeno silncio e Horcio volveu ao torn de voz anterior:Como eu ia a dizer, o quartel de artilharia anti-area prantava-se mesmo beira do mar. Viam-se passar os navios, que iam para Lisboa. s vezes, era cada um, to grandalho, que dentro dele ningum podia ter medo de afundar-se. Ali perto ficava o Estoril. Tu j ouviste falar no Estoril ? Aquilo que uma terra bonita! como um jardim a perder de vista. S te digo que l at os pinheiros parecem rvores mansas! Nalguns, as roseiras trepam por eles arriba at chegar mesmo aos galhos. E todas as estradas so mais limpinhas do que o cho de uma igreja! Nas horas de dispensa, eu nunca me fartava de ver aquilo. H l automveis por toda a parte e pessoas que falam o raio de umas lnguas que a gente no percebe nada...De sbito, Horcio ps freio sua loquacidade.A L E A NEVE13Pela atitude e teimoso silncio de Idalina, compreendeu que ela, desinteressada de quanto ouvia, pensava noutra coisa, aguardando que ele voltasse ao caminho de onde se desviara. com a mo, Horcio afastou da sua perna a cabea do "Piloto" e justificou-se:Eu estava a falar disto s por mor das casas... Tu no podes imaginar! As dos industriais daqui nada so comparadas com as que l se vem! H-as de todos os feitios e lindas a valer! Todas esto no meio de jardins e, mesmo no pino do Inverno, tm flores. Eu passava horas a andar em frente delas e a olhar para dentro. Ento eu ia pensando que ali que se podia viver bem e ter muitos filhos e no aqui, na nossa terra. Depois, eu via que no gostava muito daquelas casas grandes. Parecia-me que, se uma delas fosse minha, me perderia l dentro. Aquilo estava bem para gente com outros costumes, gente rica, que gosta de se deitar em quartos separados e de ter muitas salas. No para mim, que quero dormir sempre agarrado a ti...Horcio riu, contemplando-a e desejando contagi-la com o seu fervor. Mas o sorriso dela foi to melanclico, coisa to a despegar-se dos lbios, tanto de deitar fora, que ele protestou:No ponhas essa cara de enjoo, que at me ds raiva! O que eu pensei no nada contra ti. Vais ver! Tornou a mudar de torn: Um dia, fui alm do Estoril, a um lugar chamado Parede, que fica ali perto. de menos luxo, mas tambm muito limpo. Foi l que eu encontrei uma casa pequenina, mas engraada a valer. Se a viesses! A sua mo indicou o fim da congosta: Olha: pouco mais ou menos do tamanho daquela ali, da tia Luciana, mas, em vez de ser assim negra, era toda branquinha e com as janelas pintadas de verde. E, em volta, muitas plantas. Eu pensei logo que uma casita assim que estava mesmo a calhar para ns, no l, j se v, mas aqui. Podia ter outro feitio, para ficar ainda mais barata. O que eu queria era ter uma casa asseada e alegre e no com burros por baixo, como se vem por a. Foi por isso que eu14A LA E A NEVEte disse que devamos deixar para mais tarde o nosso casamento...Pela primeira vez, depois que ele alvitrara aquilo, Idalina pronunciava-se:Ests muito mudado... Se ainda gostasses de mim, no me dirias isso...Ele olhou-a com olhos sorridentes e glutes:Ora essa! Se estivssemos num lugar em que ningum nos visse, havia de te morder tanto a boca que j no falavas assim! Se tambm por ti, minha tola, e pelos nossos filhos! Pois eu quero que me ds muitos filhos, que se paream contigo. Percebes ? Ainda esta manh eu vinha no comboio a pensar como serei feliz quando tivermos crianas. Mas eu no quero que elas vivam num chiqueiro, como vivem muitas daqui. Se tu visses como l, no Estoril, se tratam as crianas! Aquilo, sim, que saber criar filhos! Eles andam em carrinhos quando tm poucos meses e, depois, quando so mais crescidos e vem o Vero, brincam na praia e nos jardins das casas, que mesmo um regalo v-los. Tu sabes que eu sempre gostei de crianas. E, at por causa disso, uma vez apanhei l um susto. Eu estava a ver uns petizes a brincarem num jardim, quando o dono da casa, que ia a entrar, me disse com maus modos: "Se voc continua aqui a desinquietar a minha criada, eu fao queixa ao seu comandante!" Eu nem vira nenhuma criada, mas no pude explicar-lhe, porque ele voltou-me logo as costas. Parece que o homem tinha adivinhado que eu estava h pouco na tropa e que ainda era lorpa. Durante alguns dias andei com medo de vir a ser castigado... bom! Est bem de ver que os nossos filhos no podem ser criados como os de l, porque ns somos pobres, mas podemos ter uma casinha limpa para eles e para ns. Demais a mais, no foi s no Estoril que eu vi casas assim; em muitas partes as h. Eu, antigamente, que no reparava nelas...Idalina interrompeu:E onde tens tu o dinheiro ?Optimista e confiante naquele poder de adaptaoA LA E A NEVE15e de trabalho que ele sentia, instintivamente, em si prprio, Horcio no vacilou:Arranjo-o! No o tenho, mas arranjo-o! Por quatro ou cinco notas compro ao tio Bernardo um pedao de monte, ali em cima, que lugar soalheiro. E se no for ali, ser noutra parte. Eu no desejo grande coisa. com meia dzia de contos devemos pr a casa em p. Basta que ela tenha dois quartos, um para ns, outro para quando as crianas forem crescidas, uma sala de jantar, a cozinha e uma latrina pegada. Se adregar haver perto uma pedreira, j faremos uma economia. Eu mesmo, aos domingos e em todas as horas que puder, arranjarei a pedra. Mas, claro, sempre so precisos pedreiros e carpinteiros. E, para isso, tenho de arranjar maneira de poder forrar algum dinheiro. J pensei muito no caso, que julgas? A guardar ovelhas que eu no morro! Hei-de arranjar outro trabalho, onde ganhe mais. Baixou a voz, como numa confidncia : Quando me licenciaram e antes de vir para aqui, eu procurei em Lisboa... A ver se me empregava... Enquanto estive no quartel, ensinaram-me alguma coisa de ler e de escrever, pois eu, quando fui para a tropa, era uma desgraa; pouco mais sabia do que as primeiras letras. Assim, sempre posso governar-me melhor. Ainda ontem, de manh, fui a duas casas, a dois armazns de vinhos, no Poo do Bispo. No arranjei emprego porque no tinha ningum de peso que me recomendasse. O pai de um soldado que se tornou meu amigo acompanhou-me, mas como gente pobre, quando ele falava eu percebia que os patres ligavam-lhe pouca importncia. Foi por isso... Mas eu tenho outras pessoas. No garanto que possa forrar num ano ou dois todo o dinheiro preciso para a casa; mas estando a ganhar bem, logo arranjo quem me empreste o resto, para eu pagar, depois, aos poucos. Mas... que tens tu ?Duas lgrimas desciam pelas faces de Idalina. Ele repetiu, surpreendido:O que tens ? Por que choras ? Ela comeou a soluar:i6A LA E A NEVE-g- Se tivesses muito amor por mim, no tinhas querido ficar em Lisboa, depois de sares da vida militar... Quando comeou a guerra, eu nem podia dormir. Como tu eras soldado e muitos diziam que Portugal, mais dia, menos dia, tambm havia de entrar na guerra, at se me partia o corao por tua causa. Bem tola eu era! Eu, aqui, a padecer e tu, agora, sem nenhuma pressa de vires. Porque mentiste h poucp, dizendo que estavas mortinho por me ver ?Horcio exaltou-se:E estava! Deixa-te de tolices, anda! Uma coisa no tem nada com a outra! Eu estava doido por vir, por te ver... Mas era por tua causa que eu ficava se tivesse arranjado alguma coisa de jeito...Cada vez te vejo mais mudado...choramingou ela ainda. Essas terras por onde andaste fizeram-te mal...Horcio tentou sorrir:O que diriam os outros recrutas se te ouvissem falar! Eles que ficaram cheios de inveja quando eu fui mandado para a artilharia anti-area! Todos eles gostavam de ir, porque assim podiam ver Lisboa, que ficava a dois passos... Mas v; deixa-te disso! Limpa-me essa cara! Se eu mudei, foi para melhor. Pegou-lhe numa das mos, apertou-lha e olhou os olhos dela: Compreendes ?com as costas da outra mo, Idalina enxugou o rosto de faces largas, morenas, e boca de lbios grossos lbios que a ele apeteciam veementemente, embora preferisse ver o de cima sem essa penugem que anunciava um futuro bigodito, semelhante ao da me dela...Bem... Por que no nos casamos e, depois, vamos fazendo a casa, pouco a pouco ?Ele acorreu em defesa do seu critrio:No a mesma coisa! Tambm j pensei nisso, mas vi que no era a mesma coisa. Vm os filhos, h mais responsabilidades e no se pode pr vintm de lado. Pensei muito nisso. Ou julgas que s tu tens pressa ? A sua mo apertou mais a mo dela: Se soubesses!...A LA E A NEVE17Alugvamos uma casa, como se tinha combinado... teimou Idalina. o que todos fazem. Poucos so os que tm casa sua. Por que havemos de querer ser mais do que os outros ?Eu no quero ser mais do que os outros. Mas quero ter uma casa que me d alegria. A gente aluga um destes poleiros daqui, acostuma-se, vai-se desmazelando e deixando ficar. Quando menos nos precatamos, a famlia cresceu e pronto! j no se pode fazer nada. No quero isso! Quando fizermos a boda, o quarto e toda a casa ho-de ser novos e s nossos. E quando ficarmos sozinhos, eu hei-de atirar-me a ti, como um lobo... aos beijos. Assim... Ele estendeu os lbios: Assim... Muitas vezes, eu imaginava isto, quando me deitava l no quartel e apagava a luz. Comeava a pensar em ti e era como se j tivssemos acabado de casar. Pensava tanto que no podia dormir e at me vinham dores de cabea...Anoitecia. Nos topes da serra ainda havia rsea claridade, mas, c em baixo, boiavam sombras cada vez mais densas. com suas altivas lombas, as ramificaes da montanha cercavam, de todas as bandas, a vila postada quase no fundo do grande vale, ao p do Zzere, que na paz crepuscular adquiria voz forte, correndo e cantando entre os penedais do seu leito. A luz parecia desprender-se, como um vu, da imensurvel cavidade, deixando ainda vermelhar a telha francesa das casas abastadas, enquanto os negros telhados dos pobres se somavam j escurido que avanava. Nas encostas, os pinheiros formavam mancha compacta e, nos vastos soutos, os castanheiros, de arredondadas frondes, dir-se-iam sem troncos apenas largas copas pousadas nos pendores, como um acampamento aguardando a noite.Idalina procurou soltar a sua mo de entre as mos de Horcio:Vou-me embora. Faz-se o que tu quiseres. pena, porque eu e a minha me j tnhamos arranjado umas coisitas para o enxoval e todo o povo estava espera de que o nosso casamento fosse logoi8A L E A NEVEdepois de tu voltares da vida militar, como tnhamos dito*A sua voz mostrava-se to melanclica, to passiva, que ele comoveu-se:No se faz o que eu quiser, no, senhor! S se faz o que eu quiser, se tu quiseres tambm. Eu acho que uma asneira, pois somos ainda novos e podamos esperar. Tu ainda no fizeste vinte anos e eu poucos mais tenho. Dois ou trs anos levaramos a levantar a casa e podamos comear a nossa vida em melhores condies. Mas se tu no quiseres, pacincia! s vezes, at desejo que tu no queiras... Porque eu estou a dizer-te isto e, ao mesmo tempo, estou mortinho por fazer o contrrio. Compreendes ?Ela no respondeu logo. O "Piloto", que havia desaparecido, voltara a deitar-se junto da rocha, aos ps deles. A sombra da noite ia j meia encosta e l em baixo, na ruela, a tia Joana Pucareira passava com um molho de lenha cabea.No seu silncio, Idalina transigia, lentamente. Depois das ltimas palavras de Horcio, aquela ideia acamava-se, com mais facilidade, no seu esprito. Agora, ele parecia-lhe sincero.Talvez seja melhor como tu dizes murmurou ela, por fim. Pensando bem, talvez seja melhor. Custa-me muito, mas faz-se assim, como tu queres...J te disse que tambm a mim me custa. Mas quando penso que, ao voltar do trabalho, tu estars minha espera numa casinha nova e que as crianas tero um cho limpo, sinto uma grande alegria. Havemos de ser muito felizes, vers!Num impulso, estendeu os braos, para apert-la. Ela afastou-o:No... No... Podem ver-nos! Vamo-nos embora, que j tarde...O lusco-fusco apardaara toda a terra, desde o vale s cristas das Penhas Douradas. Dir-se-ia que uma poalha escura e flutuante envolvia tudo, as casas dos homens e os fojos dos lobos, nos declives abruptos, e se apossava do prprio cu.A L E A NEVE19Os dois levantaram-se. Depois do longo dilogo, ela voltava a olhar direito para ele. Parecia-lhe, na tnue obscuridade, ainda mais forte, mais msculo do que quando partira dali. Ela, agora, sentia orgulho de vir a t-lo por marido e, ao mesmo tempo, melancolia por no o ter j.Iam caminhando, calados, um ao lado do outro. Por vezes, os seus corpos tocavam-se. Esse roar de ombros, que parecia casual, provocava-o Horcio, obediente a uma ideia fixa. A cada passo, os olhos dele vasculhavam os derredores. No havia ningum. A luz, que saa de frinchas e de postigos, projectava-se sobre as pedras e a lama da ruela e tornava-se cada vez mais viva na noite nascente. Um vulto surgiu, ao longe, mas logo entrou num dos casebres. Ao passarem sob as janelas da tia Luciana, ele ainda olhou para cima. Encontravam-se fechadas. Idalina dera pelas precaues dele, pressentia o seu intento e desejava a mesma coisa, mas fingia-se distrada. "Ali seria melhor pensou do que no penedo, que estava mais vista".Horcio estendeu o brao e atraiu-a a si. Ela ainda simulou reagir, mas logo as suas bocas se colaram. E j uma das mos dele descia para os seios dela, numa carcia, quando se ouviu algo que rangia, timidamente. Horcio levantou os olhos e adivinhou, mais do que viu, a car atua da velha Luciana sua janela acabada de abrir.Idalina ficara perturbadssima. Ele, porm, sorriu, bonacheiro, e falou para cima:Bico calado, tia Luciana, se no quer que lhe caia um raio em casa. Entendeu ?A velha, em vez de responder, fechou estrepitosamente a janela, mas logo voltava a abri-la, curvava-se no peitoril e gritava, furiosa e escandalizada, paraIdalina:Pouca vergonha! Andar a pelos caminhos, como as cadelas! No pode esperar, a princesa! V-se cada coisa nestes tempos!Antes que recebesse troco, tia Luciana cerrou a janela, novamente com violncia.20A L E A NEVEIdalina comeara a andar, apressada. Ele seguia-a com dificuldade, sorrindo ainda, ocultando o seu nervosismo. Percebeu que ela chorava.Deixa l! consolou. feitio da velha, bem sabes. No casou, no teve quem a quisesse. No te rales... Ora esta! Ento o diabo no queria que eu passasse tanto tempo fora daqui e, ao voltar, nem ao menos te beijasse ? O estupor esteve, com certeza, a espreitar-nos por detrs dos vidros toda a tarde...Vai encher tudo, por a... murmurou Idalina.No vai... Mas se for, acabou-se! No vamos ns casar?Tinham comeado a descer a congosta. Era uma rua estreitssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em ptios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avanando para sombrios recantos, numa sugesto de labirinto. As casas, negregosas, velhentas, colavam-se umas s outras, com a parte inferior de granito escurecido pelo tempo e a parte cimeira com folhas de zinco enferrujadas a revestirem as paredes de taipa, mais baratas do que as de pedra. Este e aquele casebre exibiam apodrecidas varandas de madeira e outros, mais raros, umas escadas exteriores, coroadas por um patamarzito quadrado, logradoiro do mulheredo nas horas do paleio com as vizinhas. Algumas das portas e janelas estavam abertas e, atrs delas, pairava a rbida claridade do fogo que, l dentro, cozinhava a ceia. Figuras de homens, mulheres e crianas, as suas caras tocadas pelo fulgor do lume, andavam no acanhado espao domstico, cirandavam numa confuso de movimentos humanos t de trapos dependurados.Calcando as pedras abauladas e irregulares da rua onde, no Inverno, as enxurradas faziam correr todos os detritos, os detritos que, no Vero, secavam, cheios de moscas, ao bom sol da serra, Horcio procurava distrair Idalina:Vs ? isto que eu no quero. Quanto melhor uma casinha como a que eu penso!A L E A NEVE21Ela no respondia, sempre lesta no seu passo curto, zape-zape ladeira abaixo. Por fim, deteve-se. Estavam em frente da sua casa, igual maioria das outras, com duas portas sobre a rua, uma sempre fechada, que eles, de to pobres, no podiam ter nem porco nem onagro na loja escura, e outra dando para a escada interna, estreitos degraus de madeira que ligavam ao primeiro piso.At amanh...At amanh... E no te apoquentes! Aquilo no tem importncia. Mesmo nenhuma!Ele falava assim, mas estava, tambm, enervado, sobretudo pelo mal-estar que sentia em Idalina, ao despedir-se. Decidiu de repente:you dar a salvao aos teus pais.E, com ela adiante, temerosa do que iria acontecer, meteu s escadas. A senhora Januria, que estava para o fundo da habitao, ao pressentir a entrada da filha, admoestou de l, com sua voz roufenha:Boas horas de voltar, no haja dvida!Ao ver, porm, a cabea dele emergir na abertura do soalho, retraiu-se:Ah, tu vens tambm!...Nosso Senhor lhes d boas noites. Como tm passado ?Vem com Deus. C vamos indo... E tu?No h mal que me chegue... Vaso ruim no quebra...A senhora Januria, cinquenta anos bem contados, pele arregoada e to escura que nem a de uma cambojana, avanava para ele:O meu homem ter gosto em ver-te. No queres subir ?O piso em que se encontravam era formado por uma diviso estreita, atravancada com duas arcas de pinho, alfaias agrcolas e roupas velhas dependuradas. Ao fundo estava um quarto simples tapume contornando, rente, a cama, como era costume nas casas pobres. Horcio lanou-lhe um olhar, condutor de voluptuosas ideias, por saber que Idalina dormia ali. Mas j22A L E A NEVEa senhora Januria fazia gesto de lhe franquear a outra escada, como se lhe tivesse aberto uma porta. Ele comeou a subir, por entre os irmos mais novos de Idalina, que, tendo sentido presena estranha, haviam corrido de cima, aglomerando-se nos degraus.Ests muito crescido... E tu tambm... E tu tambm...ia-lhes dizendo.O segundo piso, todo negro de fuligem, era ocupado pela cozinha, sem chamin, e um outro quarto, maior do que o de baixo, pois alm da tarimba conjugal havia nele, a um dos lados, uma enxerga sobre o soalho, para as crianas. E como nas demais casas de operrios, jornaleiros e pastores da vila, os dois andares, com estreitura de corredor, terminavam num meio forro, sob a telha v, para o qual se marinhava por uns escadotes de vindimas. Ali, a uma banda, se espalhavam as batatas que a famlia pudesse cultivar e, na outra, dormiam, sobre palha, os filhos mais velhos.O tio Vicente, fraco de ouvidos, s deu pelo Horcio quando este e a senhora Januria se puseram em frente do seu nariz. Estava deitado no quartelho, de porta aberta, esperando a hora da ceia. Saltou da cama:Viva! J sabia que tinhas vindo. E, ento, como te deste por l ?Os outros irmos de Idalina, o Romo, o Zeca, j uns homens, aproximaram-se tambm. Ele cumprimentou-os, inquiriu da sade de todos, e, medida que ia contando a sua vida na tropa, ia dobrando, dobrando cada vez mais, sob nascente covardia, a ideia que o fizera, de sbito, trepar ali. "No, no diria nada nessa noite. Tinha de pensar primeiro como havia de dizer aquilo. Era conversa para depois, quando tivesse arranjado novo trabalho e se encontrassem sozinhos, sem o Romo e o Zeca".Estavam todos de p e o tio Vicente puxou um banco:No queres sentar-te ?No, muito obrigado. Hoje no posso demorar-me. J tarde. Vim apenas para os ver.A L E A NEVE23Comeou a desandar para a escada, falando ainda. Pareceu-lhe, porm, que Januria farejava na alma dele, pois ao topar os seus olhos vira-os com uma expresso incerta, vagamente pesquisadora, que no lhe conhecia.Idalina esperava-o no primeiro piso. Sussurrou--Ihe:Disseste-lhes algumas coisa ?No. Fica para outro dia. Olha: se tiveres ocasio, diz-lhes tu...A luz do candeeiro projectou na parede, deformando-a, a sombra da mo dele ao afagar, de partida, a face de Idalina.J na rua, de dedos nos bolsos e passo vagaroso, Horcio comeou a assobiar. "No fora grande coisa o dia da sua chegada. Pensara que Idalina acharia logo bem a resoluo dele e, afinal, tivera de gastar um ror de tempo para a convencer. E, ainda assim, parecia que ela no estava l muito convencida..."O "Piloto" continuava a seu lado. Depois, adiantou-se e meteu a cabea a uma porta que se encontrava apenas encostada e que, com a sua passagem, se entreabriu. Horcio entrou tambm e subiu os degrauzitos que davam para o primeiro andar, sobre a loja destinada ao "vivo" aos animais domsticos como nas outras casas.Que fumaceira! protestou, ao chegar acima. Mal via a me acocorada sobre a pedra onde o fogo comeava a pegar. Mais adiante, sentado num cepo de carvalho, o pai cosia as solas de uns velhos sapatos. O senhor Joaquim no era sapateiro, mas sobrava-lhe jeito para aquilo. Remendos, meias-solas, taces, tudo quanto no exigisse mquina, punha-os to bem e com maior pontualidade do que os profissionais de banca e tripea porta, seus inimigos de lngua solta, porque ele, assim sentado em casa, sem pagar contribuies, trabalhava mais barato. Para o tio Joaquim aquilo constitua ocupao apenas de horas vagas, pois nas outras, a menos que fosse semana de pastorear o gadito prprio e o alheio, ele cuidava das24A LA E A NEVEduaj courelas que possua ao p da encosta ou alugava os seus braos para a terra de outrem.Horcio tirou o chapu e, passeando os olhos desde a figura do pai at as negras paredes da cozinha, disse, como se falasse sozinho:Est tudo na mesma...De tarde, ao regressar de Lisboa, nem reparara na casa, comovido como se encontrava. Agora, aquela cena lembrava-lhe todos os comeos de noite que ele passara ali, na infncia, at ser pastor do Valadares, e nos dias que antecederam a sua partida para a vida militar.O velho Joaquim ergueu os olhos da sola que cosia:Est na mesma o c[u ?Isto. Tudo isto. tal-qual como quando eu abalei...Ento tu querias que estivesse diferente ?No, no. Digo isto por dizer...Voltou a olhar a quadra, toda negra e suja, com uma cama de ferro l ao fundo, onde dormiam os pais, uma arca rstica, a cantareira com pratos e tigelas, sobre a lareira o canio para as castanhas e, em frente, a porta do seu quarto. Ao lado da porta, os saies, o alforge, o capote e o seu chapu de pastor, como se ele, durante a sua ausncia, tivesse ficado, sem corpo, dependurado naquele prego.Famlia pequena, a casa era tambm mais acanhada do que a maioria das outras: contava apenas a loja e aquele pisito por cima, onde eles cozinhavam e dormiam, onde se instalara a vida deles. Havia electricidade na vila, mas nenhuma casa pobre a tinha; a luz, noite, dava-a um candeeiro de petrleo ou trmula candeia de azeite.Horcio sentou-se em frente do pai e ficou calado, de braos sobre as coxas, as mos soltas entre as pernas, a cabea vergada. A ideia de se casar e de viver num casebre assim atafegado e sombrio, parecia-lhe, agora, ainda menos aceitvel do que quando, momentos antes, a repelira junto de Idalina.Pois h diferena, h afirmou, lentamente, oA L E A NEVE25tio Joaquim. Tu que no reparaste. Estou mais velho... Quando tu foste, ainda eu via bem e agora mal enxergo o buraco da sovela. Fazem-me falta uns culos, mas no tenho tido dinheiro...Horcio tornou a olhar o pai. Estava, com efeito, mais engelhadito, as costas mais dobradas. S a me, abanando pachorrentamente o lume, que comeava a levantar cristas sob a panela, parecia no ter sofrido alterao alguma. H dez anos que ela dir-se-ia insensvel ao tempo, com sua tez queimada pelo sol, as faces secas, de ossos salientes, os lbios pregueados sob um nariz pequeno. O povo, ao v-la trafegar na vida dura, fosse nas suas territas, fosse a auxiliar os demais, a troco de alguns escudos, dizia que ela, apesar dos seus sessenta anos bem contados, havia de assistir ao enterro de todos os moradores da vila. "Qual! protestava a senhora Gertrudes. Cada vez tenho mais brancas!" Protestava, mas, no fundo, sentia orgulho da sua resistncia. "L feita de manteiga, como essas reparigas de agora, no era ela, isso no, louvado fosse Nosso Senhor!"D-me um tio, me.A senhora Gertrudes passou-lhe um garaveto aarder.Resolvi adiar o casamento... Combinei, agora, com a Idalina... disse Horcio, acendendo o cigarro.Adiaste o casamento ? estranhou a velha. O pai, de sovela na mo e um sapato entre as pernas, olhava tambm para ele, surpreendido. No seria mau, no, porque isso sempre traz despesas e agora no nos fazia jeito volveu a senhora Gertrudes. Mas por queadiaste ?Ele narrou, ento, a sua ambio aquela casita que trazia nos olhos, o seu desejo de comear a vida de casado num lugar airoso e limpo, para eles e para os filhos. O pai, sem o interromper, ia aprovando com a cabea. A senhora Gertrudes, de olhos fixos nele, parecia suspensa no do que ouvia, mas do que ele ainda no dissera. E quando Horcio se calou, perguntou-lhe :26A L E A NEVEOlha l! E como vais arranjar isso?>Era a segunda vez que, naquela tarde, ele tinha de defrontar-se com a mesma interrogao a mesma dvida na boca da me e na de Idalina. Mas a sua confiana em si prprio continuava, absoluta. Estendeu os braos com as mos fechadas e sorriu:com estes! Pois como h-de ser ? Tenho c umas ideias... you entrar para as fbricas ou arranjar um emprego...Mas como ?Depois se ver!A senhora Gertrudes esperou, algum tempo, que ele adiantasse mais. Mas como Horcio prosseguisse nos seus modos reservados, ela ergueu-se e caminhou para a pequena mesa. Apertou algumas couves na mo esquerda e, com uma faca, comeou a cort-las.Ento tu pensas deixar o Valadares ?Pois! No guardando o rebanho dele que levantarei cabea...Mas ele contava contigo. Tinha-se combinado que ele no meteria outro moo, para que tu no ficasses boa vida quando voltasses...Est bem... Se eu arranjar outro trabalho, dou-Ihe uma desculpa.O Valadares no vai ficar satisfeito e com razo. Para poder guardar o lugar para ti, ele no tem pastor. So os filhos que tm tomado conta do gado. E como os rapazes lhe faziam falta nas terras, teve de pagar a jornaleiros...Horcio cortou:Eu no gosto do Valadares, me! H muito tempo que no gosto dele. Nunca disse nada, porque vossemec, sempre que eu fazia alguma queixa, no me ligava importncia; dizia que eu era um fedelho e que no sabia o que era a vida. Mas vossemec est enganada. Se ele guardou o lugar para mim, no foi pelos meus bonitos olhos, nem para me fazer favor. Foi no interesse dele. Ele mesmo, s vezes, dizia que no havia ningum como eu para saber fazer queijos e tratar bem o rebanho...A LA E A NEVE27Parece que te estragaram, l na vida militar... Ests com uma vaidade! Se o Valadares dizia isso porque boa pessoa e gostava de ti. Outro, mesmo que fosse verdade, calava-se.... gostava de mim! Duas vezes que lhe pedi aumento de soldada, no me deu nem mais um chavo. Acostumou-se a pagar-me como quando eu era garoto, quando comecei a acompanhar o tio Lus e nada! Vossemec bem sabe o trabalho que teve para ele me dar mais alguma coisa quando eu fiz dezanove anos. Foi preciso vossemec ir l com choradeiras...Eles tambm no so ricos desculpou a senhora Gertrudes. Tm aquelas terras que lhe tomam todos os braos e por isso no podem cuidar do gado. Mas no que a riqueza por l abunde...Vossemec j pensou quanto eles teriam de pagar, agora, por um moo que fosse para o meu lugar ? Pouco, que isto de ser pastor uma desgraa, mas com certeza muito mais do que a mim. Se eu puder deix-lo, deixo-o! Eu j tinha resolvido isso mesmo antes de ir para a tropa. Estava s espera de arranjar outra coisa. Pois como que eu poderia manter uma casa com o que ele me paga ? Mesmo que arrendasse uma courela para a Idalina amanhar, no podamos viver s com isso e a minha soldada. No verdade ?A senhora Gertrudes no disse nada. Ps as couves num alguidar, lavou-as e, por fim, meteu-as na panela. O pai debruara-se mais sobre o sapato, mostrando-se mui atento aos buracos que ia abrindo com a sovela. Horcio estranhava-os. Nunca eles haviam defendido assim o Valadares, que, embora pequeno proprietrio, era um dos trs nicos donos de ovelhas que fruam alguma prosperidade em terras de Manteigas.A senhora Gertrudes tapou a panela, tornou a espevitar o lume e, depois, foi fechar as janelas que abrira pouco antes, para sada do fumo. Quando voltou, colocou-se em frente do filho, as gretadas mos postas sobre as ancas, os braos em forma de asas de cntaro, como era seu costume sempre que se exaltava ou tinha de falar com solenidade a algum.28A L E A NEVE*Pode ser que tu tenhas razo... No digo que no... Mas ns no podamos adivinhar o que tu tinhas resolvido. O teu pai adoeceu, esteve morte. Nunca te mandei dizer toda a verdade, para no te afligir. Mas eu pensei que tu nunca mais o verias. At c veio o doutor, oito vezes. E os remdios custavam uma fortuna. Foi-se tudo o que tnhamos, que bem pouco era. Vendi todas as nossas ovelhas. Ficmos reduzidos s trs cabras. E eu precisava ainda de mais quinhentos mil ris. Um dia, botei-me at a casa desse malandro do Rufino. Pensei que ele ainda tivesse uns restos de corao, mas aquilo pior do que um cigano. Prometi que lhe pagaramos em dois anos. Ele respondeu-me que emprestar, no emprestava; mas que no tinha dvida em comprar, por trs contos, a nossa courela que est pegada s suas terras. Eu vi logo a inteno dele. Como no tnhamos querido vender aquilo das outras vezes, mesmo quando ele oferecera quatro contos, o maroto, ao ver-nos com a corda na garganta, queria aproveitar-se da ocasio. Eu, ento, disse-lhe que guardasse para ele todo o seu dinheiro. Que eu preferia atirar-me, viva, cova onde enterrassem o meu homem, do que ver a nossa courela nas mos dele! E preferia!A senhora Gertrudes fez uma pausa e deu outro torn sua voz:As lgrimas que eu chorei depois, quando vim para casa! Foi, ento, que me lembrei do Valadares. Mais ruim do que o Rufino no podia ser. Fui at l. Ele recebeu-me bem e emprestou-me os quinhentos mil ris, para descontar nas tuas soldadas...O qu ?! Nas minhas soldadas ?Pois foi... Eu no podia adivinhar... Se soubesse que tu no querias voltar para casa dele, eu no tinha aceitado isso...Ento foi o Valadares quem falou em descontar ?Eu prometi-lhe, como ao Rufino, que pagaria em dois anos. Mas ele disse-me: "No vale a pena incomodar-se. Desconta-se nas soldadas do rapaz".Horcio levantou-se e caminhou at o janelo queA L E A NEVE29a me havia fechado. Abriu-o e nele meteu a cabea a receber o ar de fora. Tornou a cerr-lo.Quer dizer que eu tenho, agora, de trabalhar para ele um ror de meses... Se eu j no tivesse resolvido adiar o casamento, tinha agora de o adiar por isto...A me no respondeu. Mas o pai, que at a se conservara em silncio, um silncio humilde, como se ele, por haver estado doente, fosse o culpado de tudo aquilo, disse:No vale a pena ralares-te. Ns tnhamos pensado, em ltimo caso, vender a courela, para tu casares. Se quiseres, vende-se. No ao Rufino, claro, mas a outro qualquer... com tempo, sempre se h-de arranjar quem fique com ela... Assim como assim, essas territas eram para ti...Horcio fez um gesto negativo. Ele sabia que os pais dificilmente poderiam viver sem aqueles dois degraus abertos na anca da montanha, alguns metros de cho onde cultivavam centeio e batatas, seu principal alimento. com isso, os tostes da sovela, alguns jornais que ganhavam e o rendimento das onze ovelhas, se mantinham. Agora, vendidos os bichos, bem teriam de apertar a barriga, pois sem o dinheiro da l e do queijo no poderiam mercar todas as coisas precisas numa casa, mesmo o po, j que o das courelas mal chegava para quatro meses.No quero... Foi para a sua sade, est bem. Mais que fosse!A me olhou-o, inquiridora:Que pensas fazer ?No respondeu. Sentou-se e prolongou a sua mudez, um minuto atrs de outro e outro e outro, com o lume crepitando e a senhora Gertrudes a soltar, de vez em quando, um suspiro. Finalmente, ergueu a cabea:Ainda demora muito a ceia ?Est quase pronta.Vendo-o assim preocupado, o pai, ansioso de desanuvi-lo, meteu-se a contar histria avulsa. Ele mal o ouvia. Consultara o relgio e impacientara-se: "Eram30A L E A NEVEA L E A NEVE31quase nove horas; come e no come, no saa dali antes das nove e meia. Quando chegasse, o vigrio era capaz de j estar deitado". O pai sentia que ele pensava noutra coisa, mas continuava o seu monlogo, com aquela voz dbil e afvel que parecia pedir desculpa de falar.Sentaram-se, por fim, mesa. Ele soprou a sopa, comeu, soprando de novo, e, quando chegou ao po e ao conduto, devorou-os mais rapidamente ainda. com a ltima fula a dilatar-lhe a face esquerda, abalou.Em breve palmilhava a estrada que dividia a vila em duas partes. Meteu a uma ruela que ali desembocava, dobrou a segunda e enfiou noutra ainda. De passagem, reconheceu, ao longe, a voz de Anbal, que falava num grupo; tinha vontade de o ver, de o abraar, seu amigo desde os ninhos, mas no se deteve.A casa do padre Barradas, toda de granito bem cortado, nua de cal como parede de bastio, mas aligeirada na severidade por dois vasos de sardinheiras em cada janela, parecia adormecida na rua sossegada. Uma lmpada de iluminao pblica, que existia em frente, lavava-lhe toda a fachada e no deixava perceber, por frincha de porta ou de ventana, se l dentro havia tambm luz ou se estavam todos deitados. Horcio hesitou e, depois, bateu, timidamente, com a aldrava. Aguardou, aguardou, sempre de ouvido escuta, mas no ouviu rudo algum. Considerou que se j no era muito cedo, muito tarde no era tambm, tanto que o relgio de Santa Maria no dera ainda as dez; pensou que, sem saber a resposta do padre Barradas, no podia buscar outro rumo para a sua vida e, assim impelido, bateu, de novo, com mais fora. Sentiu, ento, l dentro, uns passos que se acercavam lentamente. Pouco depois, a porta abria-se e, na sua frente, recortava-se a senhora Alice, ama do abade, com gestos pesados e fofas carnes nos seus quarenta anos.Ele salvou-a, humildemente, desejoso de colher-lhe a simpatia quela hora que tinha por molesta.Eu precisava de falar ao senhor vigrio... Ele j sabe o que ... Se no fosse muito incmodo...Alice advertiu:O senhor vigrio, com certeza, j no pode falar-Ihe hoje. Mas eu you ver...Desandou e, pouco depois, volveu: o que eu tinha dito. O senhor vigrio diz que venha amanh...A que horas ?bom... Ele no me disse. Mas o melhor ser aparecer por a de tarde...Horcio agradeceu, pediu de novo desculpa de haver incomodado, lanou desejo de boa noite e partiu. Ia calcorreando as pedras, contrariado: "Assim, j no podia aproveitar a camioneta, no dia seguinte, para a Covilh, se aquilo no desse resultado. E outra camioneta s havia dali a trs dias".Ainda no dobrara a esquina, quando ouviu um "pst!", "pst!", "pst!", cada vez mais forte, rasgando o sossego da rua. Voltou-se. A senhora Alice estava outra vez porta e acenava-lhe, para que retrocedesse.Logo que ele se aproximou, ela disse-lhe:O senhor vigrio esteve a pensar que, amanh, tem o dia todo tomado. Depois da missa, tem de ir s suas terras do Sameiro. , noite, h a novena. Que voc entre agora...Ele sentiu alma nova, embora turbada pela emoo que lhe dava o entrar, pela primeira vez, na casa do proco. Alice ia frente, no corredor, com as suas grandes ndegas estremecendo, direita e esquerda, conforme o movimento das pernas. porta que estava iluminada, ela deteve-se:Entre.Ele avanou e logo viu o padre Barradas, que procurava adaptar-se, comodamente, ao cadeiro de braos onde acabava de se sentar, com um palito nos dentes. Era homem mais forte, mais entroncado ainda do que a sua ama. Tinha na cara redonda, de faces e nariz avermelhados, uns olhitos pequenos e vivos, que contrastavam com os seus lbios grossos, descados e levemente austeros. Contava cinquenta e quatro anos, mas Horcio, que dele recebera a comunho em32A L E A NEVEcriana, e a ele se confessara vrias vezes, sempre o tivera por um homem velho.Agora, o padre Barradas, ouvidos os cumprimentos, perguntava, tirando o palito de boca:Quando chegaste ?Saiba o senhor vigrio que cheguei hoje mesmo. O padre considerou-o de alto a baixo e afirmou,amvel:Fez-te bem a tropa. At parece que cresceste mais! E aprendeste a ler e a escrever bem, dizes-mo na tua carta...O senhor vigrio desculpe o meu atrevimento. Se calhar ela est cheia de erros...Hesitou, ps-se a rodar a aba do chapu entre os dedos e, como o padre fizesse um gesto de absolvio e dissesse "no, erros no dei por eles", animou-se: Eu peo muita desculpa. Mas estive a pensar e vi que no tinha mais ningum a quem fazer um pedido assim. Ainda andei vai e no vai para escrever directamente ao senhor Martins, a ver se ele me metia l na sua fbrica... Mas depois disse, c de mim para mim, que, sem um empenho, o senhor Martins decerto no faria nada. Por isso escrevi ao senhor vigrio, que o amigo dos pobres...Sentia-se perturbado. Desde pequeno habituara-se a respeitar o padre, que lidava com as coisas divinas, fizera estudos, pertencia a outra classe e exercia vasta influncia na sua freguesia metade da vila que era como um condado. Quando ele se encontrava no quartel, esse prestgio do abade esmorecera com a distncia, tanto mais que outro recruta, o Jangada, anti-clerical, no passava dia sem lhe contar histrias mariolas de frades e de curas. Agora, porm, de p em frente do padre Barradas, que continuava sentado e com as suas mos gordas e macias pousadas nos braos da poltrona, o antigo respeito volvia a renascer, tolhendo-lhe os gestos e dificultando-lhe as palavras. O proco escutava-o, atentamente, mas, medida que ele tartamudeava, ia pondo uma cara de desconsolo. Por fim, comunicou-lhe:A LA E A NEVE33Eu tratei de fazer-te a vontade, logo que recebi a tua carta. Falei ao senhor Martins, como me pedias. Tambm falei ao senhor Fragoso e, ainda ontem, toquei no caso ao senhor Cabral. Mas todos eles me disseram mais ou menos a mesma coisa. Tm os quadros cheios e no precisam de mais pessoal. Antigamente, eles metiam quantos aprendizes quisessem, mas agora no podem meter mais de vinte por cento em relao ao nmero de operrios. Tu compreendes ? Se uma fbrica tem cem operrios e empregados, no pode ter mais de vinte aprendizes... Percebeste?Horcio fez um gesto afirmativo. O padre Barradas continuou, com expresso desolada:Eu tenho muita pena de no poder ser-te til. Ainda pensei em falar com mais alguns industriais, mas o senhor Cabral disse-me que era tempo perdido. Como os patres tm de pagar quatro dias de salrio por semana, mesmo que no haja trabalho para os operrios, ningum quer ter gente que no seja absolutamente indispensvel. Alm disso, os outros industriais pertencem outra freguesia e os da outra freguesia, como sabes, no gostam de fazer nada em favor da nossa...O padre calou-se. Em frente dele, sempre de p, Horcio ficou silencioso, de olhos postos no cho. To imvel estava que a prpria aba do seu chapu deixara de lhe rodar entre os dedos, com aquele movimento inconsciente que ele lhe dera at ali.Olha l! volveu Barradas, como se houvesse tido um sbito pensamento. Por que queres deixar a vida de pastor? Uma vida to bonita, que at os santos gostavam dela e os poetas antigos a cantavam! A voz do padre tornara-se mais doce, evocativa, como se ele prprio sonhasse: O cu por cima, o ar livre, o nascer do sol visto l do alto... noite, as estrelas... No tens visto figuras de pastorinhos, com suas flautas, nos altares e nos prespios ? No h dvida que os poetas antigos tinham razo!Eu queria casar-me disse Horcio e, por Jsso, que pensei mudar de vida. A guardar gado2 Vol. Ill34A L E A NEVEno" ganho o suficiente. Ainda se as ovelhas fossem minhas ou os meus pais tivessem alguma coisa de seu... Mas, como o senhor vigrio sabe, o que temos e nada a mesma coisa... Vejo-me um homem, quero trabalhar e no sei o que hei-de fazer. Os meus pais no puderam dar-me estudos, mas, agora, que aprendi alguma coisa, tinha pensado...O padre Barradas, depois de um ligeiro bocejo, interrompeu:Bem. Tu l tens as tuas razes. No quero contrariar-te. Desta vez no tiveste sorte, mas podes ir descansado que, se aparecer alguma coisa, eu no me esquecerei de ti. No queres um copo de vinho ? Alice! Alice!No, muito obrigado, no quero!Toma! Toma! Eu you deitar-me, que amanh tenho de me levantar cedo.Padre Barradas bocejou de novo e levantou-se. Horcio repetiu:Eu agradeo muito ao senhor vigrio. Se eu tivesse aqui outra pessoa, no o teria incomodado. Mas assim...No incomodaste nada. Vai com Deus! E para Alice, que aparecia porta: D aqui um copo de vinho...Ele saiu da sala, humilde, modesto, cabea baixa, com a sensao de se encontrar no fundo de um poo, respirando mal. No corredor, disse:Eu no quero vinho, senhora Alice. Muito obrigado, mas no tenho vontade.A ama insistia, empurrando-o para a cozinha:Ande l! Ande l! Uma pinga no faz mal a ningum.J com o copo na mo e enquanto Alice punha uma fatia de queijo sobre a fatia de po que cortara, ele pensou: "Talvez aquilo fosse desejo de Nosso Senhor, para bem dele. Sempre ouvira dizer que a indstria da Covilh era muito mais importante do que a de Manteigas. L os teares eram de ferro e muitos teciam fio de estambre; ali eram de pau e s havia fio cardado.A LA E A NEVE35Por mor disso, os teceles da Covilh ganhavam mais do que os de Manteigas. E talvez o Manuel Peixoto ou o padrinho lhe conseguissem alguma coisa, pois a Covilh j era uma cidade grande".Mais aliviado do pesadume e com a esperana de novo a bulir-lhe na alma, olhou, enquanto bebia, as prateleiras pintadas de branco, os grandes tachos de cobre areado, para o dia do sarrabulho, as panelas e caarolas esmaltadas, dzias de pratos, vrias malgas e, ao fundo, o grande fogo, tudo muito em ordem, tudo muito limpo, a bem dizer dos cuidados da senhora Alice. Os olhos fugiam-lhe para aquilo. "Assim que ele gostaria de ter uma cozinha. No precisava de ser to grande, nem com tantas coisas, nem com tanto luxo, mas assim asseada como a do senhor vigrio, que era mesmo um gosto v-la".IIQUANDO desceu da camioneta, na Covilh, voltou a olhar o seu fato. Durante o servio militar, como andava de farda, poupara-o; apesar disso, j estava lustroso e ficava-lhe, agora, apertado. As calas, especialmente, despraziam-lhe. Formavam joelheiras e mostravam-se mais estreitas em baixo do que as usadas nas cidades. "Era pena que ele no pudesse ir bem-posto, pois quem sabia se o padrinho no lhe arranjaria um emprego no comrcio?" Abotoou o casaco e ajeitou o chapu. No obstante o descontentamento que o fato lhe produzia, sentia-se muito mais senhor de si do que das duas outras vezes que viera Covilh. A cidadezita serrana, de ruas tortuosas e ngremes, no lhe impunha, agora, aquele acanhamento de homem do mato que ele tinha, perante ela, antes de conhecer Lisboa e o Estoril. A Covilh parecia-lhe, desta feita, muito mais pequena do que antigamente.Ao chegar s Portas do Sol, deteve-se, um instante,36A LA E A NEVEA LA E A NEVE37a vei as obras do mercado novo. Pensara tanto, durante a noite e enquanto vinha na camioneta, sobre o que diria ao padrinho Marques e o que dele poderia ouvir, que a sua vontade, agora, era no pensar no resultado pela incmoda incerteza que este lhe dava. Novamente a andar, lembrava-se do mercado que havia ao ar livre, no dia em que ele, ainda garoto, viera ali, com o pai, trazer umas trutas que o Dr. Couto, de Manteigas, enviara ao Dr. Caetano, da Covilh. Mas logo a outra ideia se sobreps. Por muito que se esforasse, ele no conseguia dominar aquela preocupao. Ora desejava falar imediatamente com o padrinho, ora surdia-lhe o desejo de demorar um pouco mais esse momento. Por fim, decidiu-se e estugou o passo, encosta abaixo.O estabelecimento do Marques ficava perto, na rua afogada entre duas filas de velhas casas. Era uma mercearia de bairro pobre. Ao fundo, no centro da prateleira que cobria totalmente a parede, havia uma porta em arco, dando para soturna diviso que, de fora, mal se enxergava. Foi de l que, chamado pelo marano, surgiu o padrinho.Ol, rapaz! H que tempos no te vejo! Por pouco no te conhecia! E estendeu-lhe a mo.O Marques era um homem baixo e gordo. Comeara a vida com uma taberna em Manteigas e fora nessa poca que o tio Joaquim o convidara para seu compadre. Mais tarde, tomara de trespasse aquela mercearia da Covilh e, por sua vez, trespassara a taberna a um irmo. Nos primeiros anos, ainda voltara a Manteigas, no Estio, para tomar banhos nas caldas. Depois, deixara de o fazer. Desde ento, Horcio s o vira uma vez. Mas, pelo Natal, Marques enviava-lhe sempre vinte escudos e uma carta desejando felicidades a toda a famlia. Ao receb-la, a senhora Gertrudes dizia: "Tem de se pedir Romana que lhe escreva em teu nome, a agradecer. Ele nunca se esquece de ti e tu tambm nunca te deves esquecer dele. O compadre no tem filhos e hoje conta muito dinheiro; hora da morte deixa-te, com certeza, alguma coisa". A senhora Ger-trudes s renunciara a falar assim quando se soubera que o Marques, alm da mulher, tinha por sua conta uma amante de pouco mais de vinte anos. Contudo, porque o padrinho era estabelecido numa cidade, Horcio creditava-lhe larga importncia social.Agora, Marques interrogava-o sobre a sade dos pais e de outras pessoas de Manteigas e, como Horcio lhe dissesse que havia regressado na vspera de Lisboa, ps-se a elogiar a capital, que ele tinha visitado tempos antes:Aquilo que uma cidade!Por fim, mudou o torn de voz e lanou:Ento o que te traz por c ?Queria cumprimentar o padrinho e, ao mesmo tempo, ver se me fazia um favor...Marques ficou em inquieta expectativa, no fosse sair dali pedido de dinheiro.Dize l... murmurou.Ele, ento, falou, atabalhoadamente, da sua vontade de deixar a vida de pastor e de conseguir um emprego na Covilh.Pelas expresses e movimentos da cabea que o padrinho comeara a fazer, mal ele desvelara a sua ambio, Horcio compreendeu que teria fraca resposta. E ia continuar a insistir naquilo em que podia e no podia trabalhar, quando entrou uma mulher. Marques abandonou-o prestemente, feliz por essa apario, que lhe dava tempo de raciocinar. E, adiantando-se ao marano, ps-se em frente da freguesa, com as mos apoiadas no balco:bom dia, senhora Ana. Como tem passado ? Ento que deseja ?Do seu canto, Horcio viu-o pesar acar e arroz e, depois, embrulhar uma vela de estearina.Por fim, a mulher saiu e Marques voltou para junto dele: muito difcil o que tu queres, meu rapaz... Muito difcil! Vontade de te ajudar no me falta, j se v; mas no vejo ponta por onde lhe pegue. Quem tem um emprego no o larga, mesmo que ganhe muito38A L E A NEVEpouo; e ningum quer meter mais gente. Andam por a muitos homens ao alto. E aqui ainda pouca coisa, porque em Lisboa e no Porto parece que muito pior. No estrangeiro, no se fala! Todos os dias vejo coisas nos jornais que de se ficar pasmado. Terras ricas como a Amrica, onde parece que havia de haver trabalho a rodos, tinham milhes de desempregados... O que lhes est a valer a guerra, que mata uns e d que fazer a outros... Se no fosse isso, no sei o que havia de ser. C no nosso Portugal, que vive em paz, o que se v...Marques ficou um momento em atitude pensativa e, depois, acrescentou:Eu compreendo a tua situao... Compreendo muito bem... Tu o que querias era ganhar mais alguma coisa. Vs-te sem futuro, no assim ? Mas os tempos esto maus, rapaz. Estendeu o queixo, indicando o empregadito: Olha: vs aquele ali ? Quando se soube que eu precisava de um marano, porque o outro tinha morrido de tifo, apareceram-me mais de vinte. E com cada recomendao! At o presidente da Cmara me recomendou um! E a alguns deles as famlias ofereciam-nos mesmo sem ordenado: s pela comida e pela roupa. Eu que no gosto de explorar ningum. Olhou para o marano com ar superior: Fiquei com aquele e pago-lhe vinte e cinco escudos por ms. As coisas so assim. So sempre mil ces a um osso. Tu s pastor e tens o teu emprego. Queres um conselho ? Deixa-te estar! Ganhas pouco e um moo de pastor nunca levanta cabea, certo. Mas tem pacincia! Espera melhores dias!O humilde sorriso de Horcio desaparecera completamente. Ao ver-lhe o rosto, Marques procurou tornar mais afectuosa a sua voz:Eu queria ser-te agradvel, l isso queria. Mas que posso eu fazer ? Calou-se, como se estivesse a investigar na memria. No, no vejo nada... disse, depois. Antigamente, ainda os armazenistas, quando lhes fazamos urn pedido, procuravam atender-nos. Mas, hoje, no nos ligam nenhuma. Foi o queA LA E A NEVE39nos trouxe esta guerra. Toda a gente ficou malcriada. Se se vai comprar alguma coisa, parece que nos fazem um favor em vend-la. Os empregados j no do ateno, como antigamente. Quem quer, quer; quem no quer, que v a outra parte! Marques voltou a olhar, com sobranaria, o seu caixeiro: Outro dia, at aquele bisbrrias, que ainda no largou os cueiros, estava aqui a tratar uma freguesa com duas pedras na mo. Imagina, uma freguesa que gasta muito e paga sempre a pronto! Claro, obriguei-o a pedir-lhe desculpa e se ele no pedisse, eu punha-o no olho da rua! Que os outros sejam como quiserem, mas no em minha casa. Em minha casa no admito ms-criaes!Preocupado consigo mesmo, Horcio mal o ouvia. Marques continuou a falar e, depois, mudou de torn:Se eu souber de alguma coisa, mando prevenir-te. Mas j te digo que no deves guardar muitas esperanas. No calculas a pena que tenho, pois sou muito teu amigo e dos teus pais. Aquilo gente de cara direita!Horcio saiu confrangido. Tanto como a negativa, desorientavam-no as palavras que ao Marques ouvira. Parecia-lhe que todos se haviam combinado, pois em Lisboa tinham-lhe dito quase a mesma coisa. E agora ele lembrava-se de que, desde pequeno, ouvira sempre falar de pessoas que queriam trabalho e no o tinham, dos muitos passos que davam, dos pedidos que faziam, muitas vezes passando fome e sem arranjar nada. No era, portanto, coisa s de agora; era coisa j antiga. Ele que no dava, nesse tempo, ateno ao caso, por ser ainda garoto.To aborrido ia, que, em vez de subir a rua, como lhe convinha, descera-a. Metendo a outra, passara em frente do quartel da Covilh, depois ladeara vrias fbricas, sempre a caminhar ao acaso; sempre a magicar naquilo. "At o padrinho vira que ele estava sem futuro!" Reagiu: "No; em moo de pastor no acabaria ele! Iria falar j ao Manuel Peixoto. Decerto, o Manuel Peixoto no lhe diria que no. Era melhor, l isso era, um emprego no comrcio, do que entrar para as40A L E A NEVEfbricas. No comrcio, se ele estudasse de noite, podia vir a ser algum. Mesmo um homem importante, como se tinha visto com outros. Mas j que no tinha lugar, pacincia!"Esgueirou-se entre a parede e um camio que, parado na rua estreita, lhe dificultava a passagem; voltou na primeira travessa e, pouco depois, cruzava, de novo, o centro da Covilh. Ao chegar ao jardim da Praa da Repblica, examinou o seu relgio. Eram onze horas e vinte e cinco. Da Aldeia do Carvalho mediam-se sete quilmetros e ele tinha de voltar a tempo de tomar a camioneta. Comeou a descer apressadamente a estrada, com os olhos a correrem sobre as fbricas de fiao e tecelagem que se estendiam l em baixo, nas margens da Ribeira da Carpinteira o maior conjunto industrial da Covilh. Ele olhava para aquilo de maneira muito diferente do que o fizera da outra vez que passara ali. Descobrira o casaro da firma Azevedo de Sousa, Lda., de que Manuel Peixoto tambm lhe havia falado, por nele trabalhar, como mestre, o seu irmo e diminuiu o passo para melhor o contemplar. "Se Manuel Peixoto conseguisse met-lo na indstria, decerto seria para aquela fbrica que ele viria" pensou. E demorava-se a fixar o longo e comprido edifcio, de dois pisos e muitas janelas, erguido entre outros, tambm compridos, mas mais velhos. Em seu redor no se via ningum. S um vago rumor de mquinas atestava o labor humano dentro das paredes.A- estrada salvava a ribeira e, voltejando, subia. Agora, Horcio enxergava vrios homens estendendo tecidos nas rmulas, por detrs das fbricas. Ele voltou a dar pressa s suas pernas. A estrada continuava deserta. O rudo fabril ficara para trs e ali havia silncio um silncio de sol em terra abandonada. Logo, porm, que ele ultrapassou a Borralheira, que espairecia, com suas casitas, na encosta, a expresso da estrada modificou-se. O que era mudez e solido enchera-se de gentes e de falas. O meio-dia estava a cair e numerosas mulheres e crianas, com cestos na cabea ou nas mos, corriam a levar o almoo aosA LA E A NEVE41operrios. Essa revoada feminina em breve, porm, desapareceu. Aos grupos foram-se sucedendo figuras isoladas e, em seguida, a estrada mostrou-se novamente solitria.Pouco depois, Horcio entrava na Aldeia do Carvalho. O lugar, de ruelas sinuosas, becos soturnos, casas a derrurem de velhice e de pobreza, assemelhava-se, no seu aspecto fsico, carregado de negrume, a quase todos os povoados beires. A Aldeia do Carvalho distinguia-se de muitas outras apenas porque, em vez de se entregar somente vida pastoril e agrcola, a maioria dos seus habitantes trabalhava nas fbricas da Covilh.Horcio viera ali s uma vez; apesar disso, lembrava-se bem da casa de Manuel Peixoto, companheiro de pastoreio nos altos da serra. Justamente porque Maio ia no fim, ele temia que o amigo houvesse j abalado para as pastagens dos cimos. Mas, mal bateu porta, a mulher, que veio abrir, tranquilizou-o:Ele anda a para riba a tratar das chaves duns borregos que esto mal armados.Aonde ?A mulher saiu rua, estendeu o brao e indicou-Ihe, com bastas explicaes, o caminho que ele devia seguir. Horcio agradeceu e ps-se a atravessar a aldeia, enquanto mastigava o po e o pedao de queijo que havia trazido consigo.Foi encontrar Peixoto num campo sobranceiro ao povoado. Dois dos seus filhos sopravam o lume que ele acendera debaixo duma panela, fincada sobre trs pedras e na qual se coziam batatas destinadas a amolecer os chifres dos carneiritos. Perto dali, o rebanho aguardava o incio da operao, metido dentro do bardo uma cerca de rede de corda, segura por estacas.Reconhecendo Horcio, Peixoto caminhou ao seu encontro:Que novidade! Tu, por aqui ? Quando chegaste ? O convvio na serra, durante vrios Estios, nashoras em que os seus rebanhos confluam aos limites das reas concedidas a Manteigas e Aldeia do Car-42A L E A NEVEvafho, criara, entre os dois, grande intimidade, apesar de Peixoto ser mais velho do que Horacio quase trinta anos. Este tratava-o sempre por "senhor" ou por "vossemec"; o outro dirigia-se-lhe, muitas vezes, com um torn paternal, mas essa diferena de tratamento no influa nos seus longos dilogos, travados nos ermos alpestres, onde Peixoto confidenciava at as volpias que tivera com mulheres, como se ambos fossem da mesma idade.Agora, Peixoto abraava-o:Que alegria! Que alegria! Deixa-me ver-te bem! Pusera-lhe as mos sobre os ombros, afastara-seligeiramente e examinava-o de alto a baixo:Como te deste l na tropa ? Anda! Conta! Senta-te aqui.Os dois sentaram-se no cho. E Horacio ps-se a responder pergunta do amigo. Os filhos de Peixoto tinham-se esquecido do lume que ardia sob a panela e seguiam todos os seus gestos. Horacio falou da vida militar e de Lisboa, do que vira e do que passara. Por fim, o palreio transitou para a vida na serra. Peixoto queixou-se do Inverno:Um tempo medonho! J no sabia que dar de comer ao gado. Cheguei a arrendar, por quatro notas, um lameiro que no valia um pataco.Sempre espera de momento azado para expor a razo que o trouxera ali, Horacio aproveitou o primeiro silncio que lhe pareceu propcio:Pois verdade... Eu queria falar a vossemec... Pelo seu torn de voz, Peixoto julgou ser caso paraficarem sozinhos. E fez um gesto aos filhos.No assim coisa de segredo...interveio Horacio.Os garotos afastaram-se. Ao Marques, no quisera ele falar do seu casamento. Agora, a Manuel Peixoto, contava tudo, a ideia que tivera, o motivo por que adiava a boda.Eu queria ver se vossemec pedia ao seu irmo para me meter numa fbrica... Naquela onde ele mestre ou noutra qualquer...A L E A NEVE43Numa fbrica ? Na tua idade ? perguntou Peixoto, admirado. Logo, ao reparar na expresso dele, consertou: bom! L falar, falo. E podes ter a certeza de que se ele no o fizer a mim, no o far a mais ningum. Mas isso no coisa que se possa arranjar assim de p para a mo. Se dependesse s do Mateus, estava bem; mas no depende. H sempre muitos pedidos feitos ao patro. Depois, com os anos que j tens... O que que tu querias ser ?Eu queria ser tecelo...Peixoto meditou um momento e logo volveu sua:Tu j pensaste que tinhas de entrar como aprendiz?-J...Eu digo-te isto, porque um aprendiz ganha muito pouco. E, s vezes, passa muito tempo antes de chegar a operrio. So coisas boas para os garotos. Em vez de andar por a na brincadeira, vo pegar fios e aprender um ofcio. Sempre recebem alguma coisa e ajudam os pais. Mas tu s um homem, que at j foste s sortes. No sei se pensaste bem...Pensei. Fiz as contas. Dinheiro, ganharei mais do que me d o Valadares. claro que l no pago comida e aqui terei de a pagar. Mas uma coisa de mais futuro. Se chego a tecelo, j serei compensado. Que isto de ser pastor, no vida! Para vossemec, est bem, porque o gado seu. Mas ganhando noventa escudos, que quanto me pagam, no se resolve nada.Calou-se. De cara magra e negra de barba, um casaco remendado em cima da camisa suja e sem colarinho, Peixoto deixou, tambm, correr o silncio.Tu l sabes...disse, por fim, o velho pastor. Mas talvez pudesses arranjar outra coisa...Qual o qu! Julga que tambm no pensei nisso ? Em Lisboa bati vrias casas e, agora mesmo, antes de vir falar consigo, estive com o meu padrinho, na Covilh. com o Marques, aquele que tem uma mercearia abaixo do mercado novo. Todos me dizem o mesmo. No basta um homem querer trabalhar; preciso arranjar trabalho e a que est a coisa. Eu nunca44A LA E A NEVEimginei que fosse to difcil! Depois, no tenho quem me proteja. Amigo verdadeiro, s vossemec... No tenho outro.E em Manteigas ? Nas fbricas de ]? Sempre ficavas com a famlia...Pois isso era o que eu queria! At por causa da rapariga. Se eu vier para aqui, fico muito longe dela... Mas no arranjei nada. Escrevi ao vigrio, ainda eu estava em Lisboa, e ontem fui saber a resposta. Ele pediu por mini a vrios industriais e todos lhe disseram que no. Tambm no me admirei muito. L todas as fbricas so pequenas e muita gente a querer entrar.Veio novo silncio. Peixoto fixara os olhos no bardo e deixou-os assim fixos, como se estivessem mortos. Foi Horcio quem voltou a falar, perguntando com ansiedade:Diga-me, senhor Manuel: no lhe parece que melhor ser operrio do que pastor ?Peixoto respondeu:O meu pai entregou o gado a mini e mandou o meu irmo para as fbricas. Eu tambm you mandar dois filhos para l, assim que eles tiverem idade. Mas eu te digo: o meu pai teve bom olho. Para o meu feitio no h como a liberdade. L passar os'dias metido entre as quatro paredes de uma fbrica no comigo! Claro que se eu estivesse no teu lugar j seria outra coisa...Peixoto levantou-se e destapou a panela. O vapor da gua fervente subiu at o seu rosto, mal lhe deixando ver as batatas que l dentro se encontravam.Olha l: ests com muita pressa ?Eu tenh(r) de tomar a camioneta s cinco menos um quarto, na Covilh. Porqu ? que talvez pudesses dar-me uma ajuda, pois com os garotos no se pode contar. S servem para atrapalhar.Ainda tenho tempo disse Horcio, levantando-se tambm. E, apanhando os trapos e o gadanho que ali estavam, caminhou, com Peixoto, que levavaA LA E A NEVE45a panela, para dentro do bardo. Junto do rebanho,notou:Vossemec, agora, tem mais cabras do que ovelhas...No me fales nisso! No sabes a minha arrelia... H pouco, no te disse nem metade do que foi o Inverno. Pasto, nenhum! Depois de arrendar dois lameiros, fiquei sem dinheiro para arrendar mais. Fiquei depenado de todo e o gado sem ter onde comer! Foi ento que me resolvi... Fiz como tinham feito os outros. Vendi umas ovelhitas e comprei cabras... As cabras roem tudo, tudo lhes serve. As ovelhas querem bons pastos, como sabes... Que havia eu de fazer? O que tem acontecido em Cortes, vai acontecer tambm aqui. Agora, na Aldeia, s h trs rebanhos de ovelhas. O resto tudo cabras. Os pobres no podem manter ovelhas. O rendimento das cabras mais pequeno, mas sempre lhes vai dando o leitito, at colherem o centeio e as batatas. Mas eu que no posso com cabras! A sua voz entristeceu: No imaginas a ralao que tenho tido! Nunca pensei que tivesse de findar em cabreiro... Quando vi levarem as ovelhas que eu tinha vendido, parecia que me separava de pessoas de famlia, Deus me perdoe...Peixoto moveu a cabea e ergueu os ombros, como se quisesse sacudir o seu desgosto. Depois saiu atrs de feltroso carneirito que se escapava por entre as ovelhas, fura aqui, fura ali, fugindo sempre.Horcio seguia a cena, sem a ver. Havia pensado pedir a Manuel Peixoto o dinheiro que os pais deviam ao Valadares e libertar-se do patro, logo que disso carecesse. Agora, as dificuldades que o amigo lhe revelara aumentavam as suas prprias dificuldades. "Se, de um dia para o outro, o irmo de Peixoto lhe arranjasse um lugar nas fbricas, como poderia ele deixar o Valadares sem, antes, lhe pagar?"Eh, Horcio! Anda! gritou Manuel Peixoto.Havia filado o bicho e metera-o sob os seus joelhos. Horcio aproximou-se. De gadanho em punho, tirou da panela uma grande batata e passou-a para46A LA E A NEVEo ifapo. O carneirito mostrava dois chifres mui petulantes, a atestar a sua juventude. com um gesto rpido de Horcio, um desses rebentos sumiu-se, enterrado na batata escaldante. O animal teve um estremecimento e a haste amoleceu rapidamente. Horcio ps-se, ento, a retorc-la, para que ela, ao crescer, no fosse tapar a vista do bicho ou mesmo penetrar-lhe no pescoo, como sucedia muitas vezes, quando os pastores se descuidavam de intervir.Trouxe outra batata e repetiu o acto na ponta que ainda se arrebitava sobre a cabea do borrego. Em breve os dois chifres pendiam, retorcidos, para o cho, como convinha a um carneiro que se prezasse, a um bom futuro padreador que quisesse bonitas e avantajadas armas, sem ser, ele prprio, ferido por elas.Amarrados os comos a um pedao de pau, que assim esfriariam mantendo a forma recebida, Peixoto lanou-se a pegar segundo borrego.Ia em meio a tarde quando Horcio se despediu, j longe da aldeia, para onde o amigo tinha vindo a caminhar com o seu rebanho. Peixoto tornava a repetir:you tratar do que me pediste. O pior a tua idade... Mas vamos a ver o que se arranja... Eu abalo l para cima, com o gado, depois de amanh. Tu tambm vais qualquer dia destes, no verdade ? E como visse Horcio fazer um gesto incerto: bom! De qualquer maneira, o que eu souber mando dizer-te...De regresso, a camioneta entrou em Manteigas ao fim do dia. No meio do vale, beira do Zzere, a vila, com as alvas torres das duas igrejas e o punhado de casas em derredor, parecia uma construo infantil, um burgo de Liliput, no fundo de grande concha verde. Da terra linda dir-se-ia terem sado ciclpicas figuras, ptreos vultos que haviam ficado esculca, protegendo e vigiando o povoado, de sobre as altssimas lombas que corriam das Penhas Douradas at os Cntaros.A L E A NEVE47Horcio desceu da camioneta e dirigiu-se a casa de Valadares, no fundo da vila.O patro acolheu-o afavelmente. Era um homem alto, seco, cara rstica, toda queimada pelo sol nos trabalhos dos campos. Fora tambm pastor de seu gadito antes de ser dono de copioso rebanho e daquelas terras que comprara com o dinheiro que, por indirectas vias, a mulher recebera do pai, um cura de Gouveia em transes de conscincia beira da morte.Ento como tens passado ? Como te deste por l ? Perante a resposta e a expresso de Horcio, elequedou-se a contempl-lo, sorridente, mas inquiridor:Pensei que estivesses zangado comigo...Nada, no... Porqu?Como chegaste h dois dias e ainda no tinhas aparecido... Sorriu mais: Estiveste a matar saudades da rapariga ?Horcio tomou por til aquela justificao e fez um gesto vago.Eu virei amanh. Valadares mostrou-se generoso:No, no venhas. Disseram-me que te queres casar e eu sei o que isso . Necessitas de uns dias de folga. Prepara as tuas coisas e vem no fim do ms. O meu filho, o Tnio, anda com o gado e pode andar mais um tempo.Eu resolvi adiar o casamento... Posso vir amanh.Adiaste ? Porqu ? Perante o silncio do seu pastor, Valadares no insistiu. Bem; tu l sabes da tua vida... Queres comear, ento, amanh?Sim, senhor. Amanh irei ter com o Tnio. Tudo aquilo fora rpido. Valadares murmurou:Como queiras...Horcio ainda perguntou pela sade da senhora Ludovina, que ele sentia andar l por dentro, na trafega domstica e saiu. Atravessou a vila a passos largos, a caminho de casa. Desde que comunicara ao Valadares que voltaria a pastorear-lhe as ovelhas, aumentara a sua ternura por Idalina, o desejo de se encontrar ao seu lado. Parecia-lhe que, junto dela,48A LA E A NEVEag"ra que o casamento se tornara mais difcil, ele teria maior coragem e seria menos infeliz. "O que ele precisava era de convenc-la a esperar, mas convenc-la a valer. Porque, agora, no se tratava s da casa; tratava-se mesmo do dinheiro para eles viverem. Se casassem j, com que iam passar os primeiros meses, se a soldada fora recebida adiantadamente ? E o pior que a sua me no queria, decerto, que ele dissesse aquilo..."Ao empurrar a porta da sua casa, viu, l dentro, os pais de Idalina. Estavam sentados em frente dos pais dele e tinham uma cara severa.Horcio soltou uma "boa-noite" cordial, mas a senhora Januria e o marido responderam friamente.Foi a me dele quem procurou romper o mal-estar que envolvia os seres e as prprias coisas:Vieste to tarde! Que aconteceu ?To tarde ? estranhou ele. A camioneta chegou ainda no h meia hora...A senhora Gertrudes olhou-o, ansiosamente, aguardando outro esclarecimento, mas ele desviou os seus olhos e no disse mais coisa alguma. Ento, a me preveniu-o:Aqui o senhor Vicente e a tia Januria h j um bocado que esto tua espera. Querem falar contigo...Como no havia mais bancos, ele encostou-se parede, para ouvir. Mas os pais da Idalina continuavam calados. A senhora Januria, o tronco envolvido num xaile preto, tinha os braos cruzados no peito e os olhos postos nos joelhos. Sobre o seu lbio inferior, repuxado para dentro, desciam, nos cantos, os cabelos negros do lbio superior, retorcidos como miniaturas de chifres de carneiro. E na terra onde, naqueles apuros, os homens cediam sempre a iniciativa s mulheres, o senhor Vicente, alm de tudo desconfiando de seus ouvidos, no desejava tambm antecipar-se. Foi ainda a me de Horcio quem tornou a afastar o silncio:Eles no querem que se adie o casamento. Eu j estive a explicar-lhes, mas eles...A LA E A NEVE49S ento, ao ouvir aquilo, a senhora Januria irrompeu, com a sua voz fanhosa:Est bem de ver que isso no tem jeito nenhum! A rapariga estava comprometida contigo, toda a gente o sabe, e, agora, se o casamento no se faz, o povo comea por a com murmuraes...Mas que murmuraes podem fazer, se eu no falto ao prometido ? Se s uma questo de deixar para mais tarde e toda a gente pode saber porqu... Demais a mais, eu no devo nada sua filha. Hei-de casar, porque gosto dela. Que que podem dizer?A senhora Januria exaltou-se:Muita coisa! Honra, creio que no lhe deves! Mas tambm te digo que se lha devesses e no pagasses, quando no houvesse mais ningum que te tirasse a vida ela olhou, assanhada, para o marido estava eu aqui! Mas que tu andas a desacreditar-me a rapariga, no h dvida! A tia Luciana j encheu os-ouvidos do povo com as poucas-vergonhas que viu ontem. A minha primeira teno foi partir-lhe a cara, mas, depois, pensei se no seria verdade o que ela andava a espalhar. E, afinal, era. L a rapariga j apanhou duas bofetadas, para no ser desavergonhada como tu. Mas nisto so sempre os homens que se adiantam e tu j ficas prevenido...Os nervos da senhora Gertrudes comearam tambm a excitar-se, no por encontrar falta de razo nas palavras de Januria, mas porque a irritava a forma como a outra se dirigia ao seu filho. Alm disso, ela j assentara que, para os seus interesses, o melhor era, efectivamente, adiar o casamento. A senhora Gertrudes conteve-se, porm, durante o pequeno silncio que Januria fez. To-pouco os outros falaram. O tio Joaquim continuava, como na vspera, debruado sobre a sola de um sapatorro, como se no ouvisse coisa alguma; e o pai de Idalina no passara de uma expresso carregada, para mostrar que apoiava a clera da mulher.Encontrando o campo livre, a senhora Januria voltou:5oA LA E A NEVE, Isso da casa estaria muito bem, se a pudesses fazer j. Mas podes?Horcio hesitou. A sua prpria me tornava a contempl-lo, ansiosamente, como h pouco.J, j, no posso disse, por fim. Tem de correr algum tempo, at ver se arranjo outro modo de vida. o que eu pensava! exclamou Januria. o que eu pensava! Quem sabe l quando ser isso! Pode ser daqui a muitos anos, pode no ser nunca. E a rapariga que fique a espera, como se fosse um traste usado.Antes mesmo de Horcio responder, a senhora Gertrudes gritou, nervosa:No posso ouvir uma coisa dessas, tia Januria! Se voc e a sua filha esto assim com tanta pressa, ela que case com outro. L favores desses no queremos, nem precisamos...Horcio acenou me, pedindo-lhe que se calasse. Januria recuou:Agora no se cuida disso. Isto falar por falar.E voltando-se para Horcio: Vocs podiam casar agora e, depois, com tempo, tratar l da tua ideia...Eu j expliquei tudo Idalina defendeu-se ele.Ela no lhe disse ?A tia Januria fez um gesto que nem afirmava nem negava. Horcio continuou:Vossemec no tem mais gosto de v-la casada do que eu de casar com ela. Acredite nisto que lhe digo! Mas mesmo sem pensar na casa, eu no poderia fazer agora a boda... Perante o olhar da me, acrescentou:Ganho muito pouco...Ora essa! Mas quando tu resolveste casar j sabias isso... Ganhavas a mesma coisa.Pois , mas...A senhora Gertrudes interveio, apressadamente, no fosse vir ainda baila que ela tinha recebido, adiantado, o salrio do filho:Est tudo cada vez mais caro...disse.A mim tambm me parece melhor esperar mais algum tempo.A L E A NEVE51A senhora pode ter a certeza de que eu caso com a Idalina. E no h-de demorar muito. Mas deixe-me arranjar as coisas. Estou farto de dizer que isto de ser moo de pastor no ofcio! No s se ganha uma misria, como se vive longe da mulher. Quando eu penso que tinha de deixar a Idalina aqui e ir passar meses seguidos na serra ou l para a Idanha, sinto logo vontade de largar aquilo. No; quando eu casar, para estar junto dela e dos filhos que vierem.Tanto amor sua filha no bastava para convencer a senhora Januria. Ela comeou a pressentir que, alm da casa, havia ali algo mais, que contrariava no s os desejos dela, mas os do prprio Horcio e da famlia.Bem; eu no quero nada fora. O que eu tenho medo da lngua do povo. Mas se tu continuas com tenes de casar...Foi o pai de Horcio quem respondeu:J se v que continua, mulher! Se ele no casasse, tambm ns ficvamos desgostosos...Era a primeira vez que o tio Joaquim, interrompendo o seu trabalho, intervinha na discusso. O senhor Vicente, perante aquele exemplo, decidiu tambm dizer alguma coisa:Pois era isso que ns queramos saber. E voltando-se para a mulher: No verdade ?Pouco depois, os dois saam. E a senhora Gertrudes, de nervos j apaziguados, comentava:Pressa assim nunca vi! Porem-nos a faca ao peito!...Coitados! desculpou-os o tio Joaquim. Tm uma data de filhos e esto mortos por ficar com uma boca a menos.A senhora Gertrudes colocou um prato na mesa, para Horcio:com certeza a ceia j est fria. Olha l: sempre vais para o Valadares ?Perante o gesto do filho ela ficou tranquila.52A L E A NEVEinZ\ serra corre de Nordeste a Sudoeste, como imensurvel raiz de outra cordilheira que rompesse longe do seu tronco. Belo monstro de xisto e de granito com terra a encher-lhe os ocos do esqueleto, ondula sempre: contorce-se aqui, alteia-se acol, abaixa-se mais adiante, para se altear de novo, num bote de serpente que quisesse morder o sol. Ao distender-se, forma altivos promontrios, dos quais se pode interrogar o infinito, e logo se ramifica que nem centopeia de pesadelo, criando, entre as suas pernas, trgicos despenhadeiros e tortuosas ravinas, onde nascem rios e as guas rumorejam eternamente.Vista de alto, sugere um fabuloso rptil, anfbio e descomunal, cortando em dois o grande vale que teria surgido aps haver secado o lago que aquele habitava. Examinada de banda, vem-se-lhe inmeras patas estendidas e, a trechos, o lombo serrilhado. Esse gume com muitas mossas , porm, ilusrio. Contemplado de perto, o dorso da serra, como o dos cetceos, mostra largas superfcies, ora chatas, ora abauladas, umas limpas de acidentes, outras cercadas de frages, que, com estranhos perfis e enigmticas atitudes, parecem defender as terras solitrias. O ser humano tem volume mais mesquinho do que uma velha giesta, do que uma velha urze, nesses planaltos que se alargam entre altas vagas de terreno, entre montanhas que cresceram no cimo da montanha. E uma luz de mistrio, ao clarear as chapadas e pendores, enche de temveis sombras os silentes penedais, os rochedos majestosos, todos esses gigantescos vultos de granito que povoam a serra, como seus feros senhores.O homem instalou-se, primeiro, nos vales, depois foi acendendo a sua lareira a quinhentos, a oitocentos, a mil metros; daqui, porm, no passou o tecto do seu abrigo permanente. Mas, mais para cima, desde que as neves se derretiam at que outras viessem,A L E A NEVE53expunha-se ao sol uma efmera riqueza nos vastos piainos. E, para aproveit-la, o homem subiu ainda, j sem casa e acompanhado apenas do seu gado. Assim, a grande serra e seus mistrios foram conquistados mais do que com fundas, lanas ou arcabuzes, com homens pastoreando ovelhas e cabras.Desde ento, em Abril, se o gelo j se sumiu, ou em Maio, se a invernia se prolongou, ouve-se tilintar, encostas arriba, as campainhas e os chocalhos dos rebanhos. essa msica matinal que anuncia a Primavera na serra. Seria grato ouvi-la distanciar-se lentamente e continuar deitado, embrulhando-se mais na roupa, nessas manhs ainda frgidas da montanha. Mas no pode ser. Cada pastor leva ovelhas ou cabras de trs, quatro, cinco donos e cada um destes se reveza uma semana no pastoreio. Os que ficam, saltam, tambm, da cama, trocando o cajado de pegureiro pela enxada de cavador, que nas rampas da serra todos eles criam gado, duas ou trs dzias de cabeas, e cuidam do seu agro duas ou trs pobres courelas. E se algum raro, por ter prdios maiores, pe um moo ao seu servio, que zagal assalariado, que lhe substitua o filho no pascigo alpestre, fica mais barato do que jornaleiro pago ao dia para substituir o segundo nos amanhos da terra.Os rebanhos partem e s volvem em Junho, para a tosquia; partem de novo e a sua msica de regresso s se torna a ouvir quando o Outono comea a acobrear as folhas dos castanheiros.Desta feita, porm, e pela primeira vez na sua vida de pastor, Horcio no carece de levantar-se com a alba. O gado de Valadares h trs semanas j que anda na serra e ele encontr-lo- quando, meio-dia passante, o rebanho surja na Nave de Santo Antnio. Horcio ouve o velho relgio do pai dar seis horas; ouve, depois, dar as sete; sente a me lidar na cozinha e o tio Joaquim sair e continua deitado. J no dorme, que as preocupaes da vspera voltaram e de manh ele v sempre tudo mais difcil, mais triste; mas ao corpo continua a agradar a cama. S s nove54A LA E A NEVEse,levanta, bocejante. Roupa de pastor no se gasta com lavagens, mas a me teve tempo de lavar a do filho durante o ano e meio em que ele esteve no quartel. Horcio esvazia os bolsos do fato futriqueiro, veste as calas e o casaco de surrobeco, mete os ps nos sapatorros ferrados de brochas e pega nos rsticos saies, feitos, por ele, de uma pele de ovelha que morreu de parto. Ao amarr-los s pernas, parece-lhe, confusamente, que se amarra, ele prprio, no l ensuj alhada e ainda com manchas de sangue que mudou de cor, mas a algo mais forte do que aquilo, a algo que o escraviza. A me tem o caldo quente e d-lhe uma malga cheia. Ele toma-o, pe, em seguida, o chapu de abas anchas, acomoda, sobre o ombro, o alforge e a manta, agarra no cajado e assobia ao co.Bem; adeus. At vista diz me.Vai com Deus, meu filho.Ela fica, um momento, a v-lo afastar-se e ele, j porta, assobia de novoum assobio autoritrio, mal-humorado.O "Piloto" rompe, que nem flecha, de um negro boqueiro do bairro e, ao v-lo assim vestido, festeja-o, lana-lhe aos joelhos as patas dianteiras, enquanto o seu rabo se agita nervosamente e o seu focinho parece querer chegar at boca dele. Tomba, impelido pelo andamento das pernas do amo, e logo corre para a esquerda e para a direita, cheira aqui, cheira ali, tudo pressa e sem ateno, s por fazer alguma coisa, doido de contente, como se a ruela se houvesse tornado para ele a via da felicidade. O dia est enevoado, cinzento, triste; mas "Piloto" dir-se- haver descoberto um sol individual para sua completa volpia.Em casa de Valadares, a mulher veio porta, tornou a desaparecer no corredor e tornou a voltar. E Horcio comeou a encher os alforges com o po de centeio, o pedao de queijo e o pedao de toucinho que ela lhe entregou.Batatas ainda o Tnio tem que bonde disse a senhora Ludovina, depois de o haver abastecido.Ele partiu, com o "Piloto" sempre frente e sem-A L E A NEVE55pr com aquela cauda erguida, aqueles passos midos e aquele ar de co feliz. Quando atentava nele, Horcio odiava-o, por essa alegria. Mas o "Piloto" continuava, como se a vida tivesse comeado, para ele, nesse dia e perene de novidades e de encantos. Horcio vergou-se, ergueu-se e assentou-lhe uma pedrada. O co ganiu, voltou-se e olhou-o surpreendido, percebendo que fora ele quem o agredira. Depois, a gemer de novo, deixou-se cair de lado, dobrou-se e comeou a lamber a perna atingida.Horcio volveu sua perplexidade. Desde a vspera ele estava ansioso de tornar a falar a Idalina, de ouvi-la, de lhe dizer no sabia bem o qu, de convenc-la de tranquilizar-se a si prprio. A ideia de que encontraria a senhora Januria fazia-o, porm, hesitar. Por fim, decidiu-se: "no podia partir assim, sem a ver".Foi um dos garotos, irmo de Idalina, que veio porta, quando ele bateu:Ela est para o prdio do senhor Vasco.Qual?O da beira da estrada...Ele abalou rapidamente, satisfeito por no ter visto a senhora Januria. O "Piloto" ia, agora, atrs dele, focinho baixo e triste, rabo entre as pernas e coxeando. Horcio meteu estrada. A propriedade do senhor Vasco ficava entre a humilde capelita da Senhora dos Verdes e as Caldas. Descia, em degraus, desde a beira da via at margem do Zzere e continuava para alm da margem oposta. Industrial de lanifcios, Vasco da Gama Sotomayor, de ascendentes fidalgos, havia adquirido, pouco a pouco, por herana de famlia e por compra em momentos aflitos dos pequenos pastores e agricultores, muitas das melhores terras do vale. Ele explorava umas directamente, outras arrendava-as aos operrios, aos pobres, algumas vezes at queles ou aos filhos daqueles que haviam sido donos delas. Entre os vrios industriais, Sotomayor era um dos mais respeitados do povo, pelo muito trabalho que dava na sua fbrica e nos seus campos. Havia numerosas fam-56A L E A NEVElias que viviam apenas para ele. Enquanto alguns dos sfus membros criavam o gado cuja l ele comprava, outros, na fbrica, transformavam a l em tecidos e outros, ainda, amanhavam as terras que Sotomayor adquiria com o lucro obtido nos lanifcios. Todos os industriais tinham muitos afilhados, que os pobres, ao pedirem-lhes o apadrinhamento dos seus filhos, j futuravam um lugar nas fbricas para estes, logo que chegassem a rapazes; Vasco da Gama Sotomayor contava, todavia, mais afilhados do que qualquer outro. A princpio, ainda se escusava, se no por si, pela mulher, que considerava aquilo repetida maada; um dia, porm, j bem longnquo, tendo os operrios de Manteigas esboado um protesto contra os baixos salrios, Sotomayor verificara que, na sua fbrica, os afilhados no haviam acompanhado os camaradas, no por ganharem mais, mas, decerto, com a esperana de que ele lhes deixasse alguma coisa em testamento. E, desde ento, nunca se negava a apadrinhar qualquer recm-nascido. Agora, contemplando aquele vasto prdio em socalcos, um dos muitos que Sotomayor tinha dispersos no vale, Horcio lamentava-se novamente: "At naquilo tivera pouca sorte. Se em vez de os seus pais haverem pedido ao Marques, houvessem pedido ao senhor Vasco para ser seu padrinho, outro galo lhe cantaria. Estaria, agora, a trabalhar na fbrica e no ali, de alforge s costas, a servir o Valadares, como um criado".Avistou Idalina l no fundo, entre outras mulheres e homens, cuidando de terra de milho, beira do rio. Foi descendo lentamente. O co seguia-o, procurando a extrema dos botarus, para evitar saltos, pois, agora, andava apenas com trs patas a quarta encolhida junto do ventre.Idalina s os viu quando ambos estavam perto. Largou a enxada e avanou para Horcio, os olhos postos na sua andaina de pastor. Ele sentia-se surpreendido e s soube dizer: you para o gado...Ela continuava a contempl-lo, intrigada, e ele, com a garganta a apertar-se-lhe, s pde repetir:A L E A NEVE57you para o gado...Mas, ento, no podias ficar mais uns dias ? Pensei...Ele sentia uma emoo cada vez maior. para acabar mais depressa...murmurou. Queria poder dizer-lhe que era por ela que partiaj, para mais rapidamen