[a manilha e o libambo][a África e a escravidão][de 1500 a 1700]

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  • byAlbertoVasconcellosdaCostaeSilvaDireitos de edio da obra em lngua portuguesa adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAES S.A.. Todos os direitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrnico,defotocpia,gravaoetc.,semapermissododetentordocopirraite.EDITORANOVAFRONTEIRAPARTICIPAESS.A.RuaNovaJerusalm,345Bonsucesso21042-235RiodeJaneiroRJBrasilTel.:(21)3882-8200Fax:(21)3882-8212/8313www.novafronteira.com.brTextorevistopelonovoAcordoOrtogrfico.

    CIP-BRASIL.CATALOGAONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

    S578m2.ed.

    Silva,AlbertodaCostae,1931Amanilhaeolibambo:africaeaescravido,de1500a1700/AlbertodaCostaeSilva.-2.ed.-RiodeJaneiro

    :NovaFronteira,2011.1088:23cm

    IncluibibliografiaendiceISBN978-85-209-3949-9

    1.Escravido-frica-Histria.2.Escravos-Trfico-frica-Histria.3.frica-Histria-At1884.I.Ttulo.

    CDD:960CDU:34(6)

  • AJosSarneyaIvanBatalhaaLuizOctvioGallottiamigosaquemmuitodevo

  • Sumrio

    Apresentao(JooJosReis)Prefcio1.OescravonegronaAntiguidade2.NasterrasdoIslame3.Aescravidoentreosafricanos4.OescravonegronaIdadeMdiaeuropeia5.AscaravelasnaSenegmbia6.ACostadoOuro7.Oslanados8.MalieSongai9.OBenimeodeltadoNger10.NoreinodoCongo11.Angola12.Adisputapelocomrciotransatlntico13.BornueaHaualndia14.DoNgerCostadosEscravos15.EntreoChadeeoNilo16.NaEtipia17.ACostadondicoeosseussertes18.NaZambzia19.NaregiodosGrandesLagos20.Madagscar21.AosuldoSave22.OcabodaBoaEsperana23.AfricaAtlntica,aonortedoequador24.AfricaAtlntica,aosuldoequador25.EscravoigualanegroBibliografiandiceremissivo

  • Mapas

  • LApresentao

    ivrosdesntesehistricanosocorriqueirosnoBrasil,salvoosmanuaisdidticos.Muitomenosquando o assunto histria da frica, a que pouca importncia tem sido dada entre ns atrecentemente.EstaobradeAlbertodaCostaeSilvaumestudopioneirodessanatureza:asntesededuzentosanosfundamentaisdahistriaafricana,sculosXVIeXVII.livrocompanheirodeoutroanteriordomesmoautor,Aenxadaealana:africaantesdosportugueses,numasrieplanejadaparatrsvolumes.Comoorganizarcomsucessoumanarrativaparaperodotolongoeatratarderegiotovasta,complexaediversa?Arespostaumacombinaodeconhecimentoaprofundado,mtodoinvestigativoeestilonarrativo.

    Antes de tudo preciso conhecer amatria com a erudio e a experincia de um historiadorcomoodeAmanilhaeo libambo.Suaerudiose revelanousodecopiosabibliografia,daqualdemonstraserleitormeticulosoecrtico.CostaeSilvaacompanhaseuscolegasafricanistasquandoos cr convincentes, compara pontos de vista de diferentes autores, polemiza quando dados eargumentosapresentadosnooconvencem,osdesafiacomfontescontemporneasporelecoligidas.Esseprocedimentoofaziralmdameradescriodeepisdioseprocessos,eleosinterpreta.

    Olivronolidaapenascommaterialbibliogrfico,acabodedizer; tambmresultadepesquisaemfontesprimrias,quesomuitasedenaturezadiversa.Lseencontramdezenasdeviajantesecronistaseuropeus,rabeseafricanosquevisitaramouviveramnafricadaquelesdoissculos,ouumpoucoanteseumpoucoalm.Tambmpresentesosartefatosarqueolgicoseoutros,svezesreproduzidosemcatlogoseobrasespecializadas,ouexpostasemmuseusediretamenteobservadaspelohistoriador.Assim,fazdefonteaiconografiaafricana,europeia,rabe,registradaemcermica,metal,madeira, tela, tecidoeoutros suportes.Aessas fontes se somaprpriaexperinciadoautorcomo viajante e residente no continente que estuda. A pesquisa nasce tambm da arquitetura, daspaisagens e cidades que o historiador admirou, visitou e percorreu, alm da gente com quemconviveueconversou.

    Apesardeseuttuloassimsugerir,estenoumlivroapenassobreaescravidoeotrficodehomens,mulheresecrianas.Oassuntopercorremuitasdesuaspginaseestruturaaobra,masnestaseencontramuitomais:osvariadosmodosdeproduoedecomrcio,tiposdemoedaemaneirasde negociar, formas de organizao social, sistemas de parentesco, estruturas sociais e regimespolticos, devoes religiosas, tudo tecido pelos contatos, relaes e conflitos entre povos ecivilizaes, classes sociais, grupos tnicos, devotos desde ou daqueles deuses. Para cumprir toambiciosoprojeto,onmerodepginasprecisouseraprecivel.Hpor trsdissoumaquestodemtodoeoutradeestilohistoriogrficoeliterrio.CostaeSilvanoapreciagrandestesesepequenaevidncia.Suahistriao tempo todoesclarecidapelas fontese frequentementepelosdetalhes,deonderetiraasubstnciaquefazvermelhoromovimentomaisamplodahistria.

    Alm de farta informao, o leitor vai se deliciar com o jeito narrativo do historiador, queescrevesempedantismoacadmico,evitandoametralhaconceitualeaabstraoterica.Impressionaque consiga sustentar ao longo de centenas de pginas umanarrativa bem concatenada, criativa, qual no falta a tensoprpria daboa literatura.E trabalho escrito comapaixodequemno sconheceoassunto,mascomelesecomprometeeseemociona.umlivropr-frica.Emmuitos

  • trechos o repdio pilhagem europeia, por exemplo, vem tona como se o autor estivesse aacompanhar o desenvolver dos acontecimentos pela tica dos africanos. No se furta, numapassagem,achamardebrbarososbrancosquepreavampessoasaquiparavenderacol.

    Os europeus so protagonistas relevantes do livro, que cobre o perodo de montagem de umsistema econmicomundial, tendo como centro aEuropa, e de cuja periferia africa viria a serpartevital.O trfico transatlnticodeescravos foiumdosprincipaise talvezomais lucrativodosempreendimentoscriadosporessesistemaglobal.Acompanhemnaspginasseguintesachegadadosportugueses Alta Guin, ainda no sculo XV, o estabelecimento de relaes vantajosas commercadoresechefesafricanos,aconstruodefeitoriasefortificaesfacilitadorasdocomrciodegente e de outrasmercadorias (de preferncia, ouro), a penetrao de territrios para estabeleceralianasouguerrearcompotentados locais,oexercciodapolticadedividirparadominar.Essaslancesnoseverificaramdemaneiralinear,umapsooutro,aconteceramsimultaneamentemuitasvezes. De todo modo, o comrcio de gente foi o que se agigantou para marcar para sempre asrelaes entre a Europa, as Amricas e a frica, e transformando com ferocidade as sociedadesafricanas,emboraumasmaisoutrasmenos.SejerafortenasrotascaravaneirasqueatravessavamoSaara,onegciosetornariasinistro,definiu-oCostaeSilva,quandoorganizadoparaabastecerdemodeobraascolniasagrcolasemineradorasdoCaribeedaAmricacontinental.Acompetioentre europeus por cativos africanos emerge no livro como parte integral da histria da frica,mormenteosculoXVII.

    O papel dos brancos nessa histria no narrado para pintar um retrato romntico da fricaanterior ao assdio europeu. O historiador explica as sociedades complexas que os africanos jtinham anteriormente criado, seus sistemas polticos sofisticados, sua organizao em sociedadesestratificadas e muitas vezes opressivas, seus imprios conquistadores, reinos,governos, classes eintelignciacomprometidoscomaescravido.Estanofoi inventadanafricapeloeuropeu.Nemfoi o trfico, que figurava como atividade havia muito estabelecida entre os africanos e rabesquandoosportuguesesseiniciaramnonegcioemmeadosdosculoXV.Comotempo,oleitoraquiver,portugueseseoutroseuropeusterminaramporsugarparaoAtlnticoumapartedamercadoriahumana antes negociada atravs do Saara. No sculo XVI, alis, os portugueses compravam evendiamescravosprincipalmentedentrodoslimitesdaprpriafrica.Escravosqueeramtrocadosporouro,sobretudo.

    A escravido existia antes da chegada dos europeus, embora tivesse e continuaria tendo caractersticasprprias.Nassociedadesescravistasafricanasmulheresecrianasescravizadaserammaisfacilmenteintegradassfamliassenhoriais,esepermitiaumamobilidadesocialdesconhecidanasAmricas.Osescravospodiamserpartedaclassedominanteedirigente,grandescomercianteseproprietrios, ministros de governo, administradores palacianos, generais frente de exrcitoseficientes eficientes, inclusive, na produo de novos cativos. Muitos escravos, verdade,laboravamcamposagrcolaseveiosaurferossobumjugoparecidocomoencontradonoscanaviaise nas jazidas americanos, e escravido dessa ordem, alm de outras, se expandiu no ritmo deintensificaodotrficotransatlntico.

    Muito se aprende neste livro sobre a frica,mas, domesmomodo, sobre o Brasil. O Brasil,afinal, consumiu quase metade dos cerca de doze milhes dos africanos transportados para asdiversas regies dasAmricas nos pores ftidos dos tumbeiros. A histria que se desenrola naspginasseguintes,portanto,tambmanossahistria.

    Aproveitem,ento, essaobraque flui, engaja, entretm,empolga, aomesmo tempoqueensina.Admirvelhistoriador,magnficoescritor,essenossoAlbertodaCostaeSilva.

    JooJosReis

  • Prefcio

    Numadasmaisagudasdennciasdasmisriasdoescravismo,ocontoPaicontrame,MachadodeAssisescreveuoseguinte:Aescravidolevouconsigoofcioseaparelhos,comotersucedidoaoutrasinstituiessociais.Nocitoalgunsaparelhossenoporseligaremacertoofcio.Umdeleseraoferroaopescoo,outrooferroaop;haviatambmamscaradefolhadeFlandres.NingumprecisarialembraraMachadodeAssisqueaescravidonoslevouconsigoofcioseaparelhos,mas tambmmuitas das palavras que a eles se referiam.Assim,manilha, que passou a aplicar-sesobretudoaoutrosobjetos.Assim,libambo,quecaiuemdesuso.

    Manilhaumbraceletedemetal,geralmentedecobreoulato,cujacircunferncianosefechainteiramente, como se fosse um C. Usava-se como adorno nos braos ou nos tornozelos esobretudo, talvezjantesdachegadadosportuguesesaos litoraisafricanos,comomoeda.Variariamuito de tamanho, peso e grossura: em alguns casos tornou-se to pequena, que no servia depulseira sequerparaumacriana, sendo, contudo, suficientementegrandeparano ser confundidacomumanel.

    Jporlibambosetinhaacadeiadeferrocomquesejungiaumafiladeescravospelopescoo.Noerararoqueocolareacorrentedemetalfossemsubstitudospormeiosmaisantigosemaisbaratos,eemmuitascaravanasdecativosoqueseviaeramacorda,a tiradecouroeaforquilha.Punha-senesta,defrente,opescoodeumaflitoesefechavaabifurcaocomumpedaodepaumuito bem amarrado. Num outro infeliz, a forqueta ia apoiar-se na nuca, fechando-se depois nagoela.Amarravam-seoscabosdasforquilhas,demodoqueosdoisescravosnopodiamseparar-se,ecadaduplaeraligadaaduasoutrasporcordasquelhesamarravamasmos.Esseeraumoutrotipodelibambo.

    Noso,comcerteza,essasduaspalavras,manilhae libambo,asquemelhorevocamafrica,nossculosXVIeXVII.Euastrouxe,contudo,paraottulodestelivro,porqueoperodoemquesedesenvolvem os enredos que nele conto est marcado pelo surgimento e a expanso do trficotransatlntico de escravos o trfico que povoou o Brasil e ps africa em nossas veias eporque,notecerdestaspginas,apalavraescravidoserviudelanadeira.Algumobservarquequasenuncalhejunteiadjetivos,porquepensoqueonomejtrazemsi,aindanocicatrizados,oslanhosdainiquidade,daviolncia,dahumilhaoedosadismo.Apalavracarregatambmahistriadolorosssimadevriosmilnios,duranteosquais,emquasetodososcantosdomundo,omaiscrueledesumanizador sistemade recrutar e controlar trabalhopredominou sobre todososdemais.Toampla foisuavigncianoespaoeno tempo,quehoje todos,naEuropa,nasia,nafricaenasAmricas,foradegruposcomoospigmeusouosbosqumanos,somosdescendentesdeescravosedesenhoresemercadoresdeescravos.

    Todahistriatemoseuladodesombraeoseuladodesol.Nestelivro,julgoquemedescuideidaparte clara, dos dias felizes e das horas criativas da vida africana. Censuro-me por no me terdemorado na descrio dos inumerveis estilos de arquitetura, escultura, cermica, pintura etecelagem,quemudamsvezesdistnciademenosdeumdiadecaminhoe tornamocontinenteafricanoriqussimodeformase texturas.Deixeideenumerarosvariadssimostiposde tambor,os

  • modosdenelespercutirearicapolirritmiaquesustentam.Edemencionarasonoridadeeabelezadeoutrosinstrumentosdemsica:dosolifantes,dasflautas,dassanzas,dasmarimbas,dosagus,dospangos,dasharpasedasliras.Tampoucoreferiariquezadaliteraturaoral,dashistriasquepassamdegeraoemgeraoedosracontosquecadaqualinventa,edospoemasquepodemserapenasumepigrama,ouumaexclamaode louvorcomnomaisdeumaouduasmetforas,ouestender-senum ritmo lento e pico. Se disse que beirava o infinito a variedade de formas que tomavam aspequeninaspeasdelatocomqueosacspesavamoouro,nocuideidascaixinhasmetlicasnasquaisopunham,nem tampoucodasoutras, feitas, aqui, ali emais adiante, de couro, palha, barro,madeira, cabaa, marfim e osso: trabalhadas com tempo, cuidado e imaginao, serviam paraguardardetudo.Emdiferentespaisagens,asmosseesmeravamnofabricodebancosnosquaisohomemcomumsesentavaourecostavacomosefosseumrei,edebastesderecado,edefacasemachadinhasrituais,edeescudosdecouro,vimeemadeira,edebraceletesepentesdemarfim,eatmesmodecolheres,cujasconchasemtudosemelhantessustentamcaboscomformasquecustamarepetir-senosdeumpovoparaoutro,masmuitasvezesdentrodamesmaaldeia.

    Disto, da enorme diversidade de maneiras de fazer, pensar e viver, que torna a frica vriasfricas,creioquedeiboanotcia.Noseudiaadia,umabeximpodesertodiferentedeumijex,eestedeumpende,eumpendedeummandinga,eummandingadeumsoto,quantoumalemodeumandaluz e um hngaro de um escocs. bem verdade que h certos gestos, comportamentos,smbolos,crenasevaloresquesocomunsagrandesreasdocontinenteouatodoele.possvelqueestepovotenhaaprendidocomaqueleaternogonguounoagogoinstrumentocomoqualseanunciaapresenadorei,equevenhamdoEgitoislmicoosgrandesguarda-sisque,emboapartedafricasubsaariana,giramsobreascabeasdosquesetmporgrandes.Mas,seahistriadeLatSukaabeguardaparecenacomadoSundiataeadeoutrosreisfundadores,setantosemblemasdepoderefsosemelhanteseseatmesmocertasinstituiespolticasserepisamagrandedistncia,noh esquecer que asmoshumanas, por todaparte, repetemasmesmas formas essenciais pararesponder aos desafios dasmesmas necessidades, comomostram os pouqussimos contornos quepodeteramoringa.Li,fazmuitosanos,jnoseiseemHegel,quenopassariamdetrintaepoucososenredosquenoscabeviver:odeUlisses,odePenlope,odeFedra,odeArgan,odoQuixote,odeSanchoPana,eassimpordiante.Noseriammaisnumerosososentrechosdequesefazemashistrias dos povos. A riqueza da existncia no se deveria apenas mescla dessas intrigas, mastambmsdiferenasdealmaedemomento,eporissoCapitueBentinhonocopiamnemnegamDesdmonaeOtelo.TampoucoahistriadeSongaireproduzoucontradizadoMaliouadeRoma,aindaqueastrssedesenhemcomostraosdoimprio.

    Issodito,noseesperedestelivromaisdoqueelepretendeuser:umesboodehistriadafricasubsaariana, entre 1500 e 1700, com nfase na escravido e no comrcio de escravos. Como Aenxadaealana,aquedsequncia,trazoqueaprendinosoutros,eoresultadodeumdemoradodilogo com alguns autores de meu tempo, mas sobretudo com aqueles que estavam vivos nossculosXVI eXVII e anotaram, de bordo dos navios ou na solido das feitorias e das cubatas demissionrios, o que viam, ouviam dizer, imaginavam e sentiam, ou reproduziram, mais tarde, aslembranasdoqueviram,lhescontaram,imaginaramesentiram.Aindaquandopre-conceituosos,epreconceituosostodoserame,aceitemos,somos,eexcessivamentecrdulosouexcessivamentecpticos,ouaindaquando transbordavamdemvontadeou julgavamcomexcessivorigorhbitosquemomentaneamenteesqueciamseremtambmcomunsemsuaterranatalcomoofrancsqueseindignavaporseverobrigadoadarumpresente,oudash,aorepresentantedoreinumancoradouroafricano, sem se lembrar de que, em seu pas, nada, naquela poca, se resolvia sem a equivalentedouceurouoindispensvelpot-de-vin,osrelatosquenosdeixaramsopreciosos,porquesabiamvere tinhamaprendidocomseusmestres-escolasa registrarcomfrasesecom traosoqueviam.

  • Nodeixodeespantar-mecomaprecisodelinguagemcomquedescrevemobjetosqueconheoepaisagens onde estive, nem de fascinar-me, ao pr a ateno do olhar nas gravuras com que semultiplicaramosseusdesenhos.

    Ficarei feliz se o leitor encontrar este livro claro e til.E ser-lhe-ei grato, se ele chegar sualtimafrasecomumnmerosuficientededvidas,perguntasediscordncias,capazdeanim-loaembrenhar-sepelahistriadafrica,ouseja,pelopassadodoBrasilquenelaficou.Enquantoisso,peo-lhequetenhapacinciaparaestepargrafofinal,emquequaserepitooquepusnoprefcioprimeiraediodeAenxadaealana.AquioleitornoencontrargrafadoNzinga,masJinga,quecomo,desdemenino,escrevoonomedessarainhaque,hsculos,habitao imaginriobrasileiro.Assim como punha em meus cadernos escolares Napoleo e no Napolen, era Jinga quemdesafiava,nosmeusescritosenoterrenobaldioprximominhacasaemFortaleza,oreidoCongo.Do Congo e no do Kongo. No vejo por que grafar, nas formas em que aparecem em ingls,francs,sualiouiorubano,aspalavrasque,desdemuito,foramincorporadasaonossoidioma,ounele tm trnsito. Quimbundo escreve-se Kibundu em quimbundo, mas no em portugus. E, hsculos,dizemosegrafamoszimbabuouzimbau,quandonosreferimosaosamuralhadosdepedraquederamonomeaonovopas,noexistindorazoparaquelhemudemosoacento.NoescrevoDeutsch, sterreich, Firenze, Franais, Marseille e Polska, mas, sim, alemo, ustria, Florena,francs, Marselha e Polnia; por isso me recuso a grafar Mbundu, Peul, Kaabu, Yoruba, Oyo eKilwa,eficocomambundo,fulaoufulo,Gabu,iorubouioruba,OieQuloa,palavrascomantigoeamplousoemportugus.

    RiodeJaneiro,em20demaiode2001.

  • 1OescravonegronaAntiguidade

    Porvoltade2680a.C.conformesecelebranachamadapedradeSalernoofaraEsneferu,daIVDinastia,viusuastropasregressaremdaNbiacomumbutimespantoso:setemilprisioneirose200mil cabeas de gado. Ainda que os nmeros talvez tenham sido, para amaior glria do rei,propositadamente inflados,1 essa campanhamilitar pode ser considerada umamuito bem-sucedidaoperaodepreiadeescravos.

    DeviamdatardemuitoantespelomenosdesdeaIDinastiaasdescidasdeescravosnegrosdaNbiaedoCordofparaoEgito.Emquantidadespequenas,masquetinhampesonapoca,poiseraparcaadensidadepopulacionalaolongodoNiloenososisprximos.Descontadososexagerosbajuladores das estelas comemorativas, talvez no chegasse ameiomilhar por ano o nmero doscativos ento arrancados dos territrios ao sul do Egito. A sangria era, porm, constante e seestendeu por quatro milnios. No correr desse enorme perodo de tempo, a Nbia, de fonte deescravos,transformou-seemprodutoraerevendedoradeumamercadoriaquedevetertidoenormeimportncia na histria da regio, embora, como j se disse,2 permanea quase invisvel para osarquelogos.

    Acapturadeescravosfigurouprovavelmenteentreosobjetivosdasexpediesmilitaresegpcias Nbia. Ainda quando a razo da guerra fosse outra, os cativos dez, vinte, cinquenta, cem,duzentoscompunhama alegria davitria.Entre eles, pormuito tempo, quaseno se contavamhomens adultosmassacrados, geralmente, aps os combates. No s era difcil conduzir Niloabaixoumgrandenmerodehomens,propensosrebelioaomenordescuidodosguardas,comoasmulheres estavammais acostumadas aos trabalhos duros e repetitivos, e as crianasmelhor seadaptavamnovasociedadeemqueiamservir.Posteriormente,passou-seafavoreceracapturadeprisioneirosmasculinos,3semquejamais,contudo,osescravoschegassemasermaisnumerososdoque as escravas. Num baixo-relevo daXVIII Dinastia, por exemplo, so homens todos os cativosnegrosqueseveemdeccoras,comgrandesargolasnasorelhas,vigiadosporguardasdeaoitenamo.4

    Essa mudana foi talvez ditada pelas convenincias ou necessidades militares. Os escravosincorporados aos exrcitos egpcios de incio, em pequenos grupos revelaram-se bonsguerreiros.ElesjsefaziamnotarnastropasdosfarasdaIVDinastia.5Ecomotempo,aumentaramem nmero e importncia. Tanto que figurinhas de madeira, como as de Assiut, e estelascomemorativasdoPrimeiroPerodoIntermedirio(c.2181a.C.c.2040a.C.)revelamaexistnciadecontingentesinteiramentenegros:osfamososarqueirosnbios.6Oquenonosdizemseeramescravos,mercenriosoualiados.Nosdoisltimoscasos,nosedeveexcluirqueoschefesnbiosinchassemassuascoortescomescravosseus.

  • Osprisioneiroshomensseriamtambmdestinados,damesmaformaqueasmulheres,slabutasnos canteiros de pedra e nas minas de ouro. As que ficavam prximas ao udi Alaqui e ao seuafluente,oudiCabagba(ouCabgaba),jeramexploradasem1552a.C.esetornaramfamosaspelorigor do trabalho em pleno deserto. Sabe-se que tanto Seti I quanto seu filho Ramss II, da XIXDinastia, procuraram melhorar as durssimas condies sob as quais ali se extraa o ouro. Osescravosmorriamemgrandenmero, sobretudode sede, a escavar sobo soldodeserto e comaguaracionada.Pararemediaressasituao,SetiImandoucavarumpoonoleitodoudiAlaqui,semconseguir,contudo,umbomresultado.RamssII insistiunaempresae logrouobterumpoocomgua,ameiocaminhoentreasminaseacidadedeKubban.Isso,nametadedosculoXIIIa.C.7

    Pormuitotempo,coubeaofaradividirentreosdeuses,ocleroeanobrezaosmortos-vivos este o nome dado aos escravos8 que no reservava para o seu servio. Era, porm,relativamente pequena a proporo dos cativos que, no ficando disposio do rei nem dostemplos, iam ter a mos privadas.9 Desses, a maioria, formada por mulheres, executava tarefasdomsticasapanhargua,cortarlenha,limparsalaseptios,cozinhar,cuidardogadomidoedacapoeira, atender aos amos, banh-los e vestilos, velar pelas crianas, vigiar a casa, fiar, tecer ecosturar.Asmoasescravaseramtambmobrigadasadeitar-secomosenhoroucomosrapazesdacasa,poisestaumadasregrasmaisantigasdoescravismo:oescravonodonodeseucorponemdesuasexualidade.

    Aindaqueno sedescarteousodaescravarianoscampos, isso sdeve terocorridodemodolimitado ou nos perodos de escassez de mo de obra. Para os suores agrcolas, durante osnumerosossculosdehistriadoEgitofaranico,bastaramosfels.AafirmaovaleatapocadosRamss,quando,aoqueparece,escravosforamempregadosemgrandenmeronostrabalhosdeirrigaoebeneficiamentodasterras.10

    Noseriadeestranhar-sequeosescravos,apsseremrepartidosporordemdosoberano,fossemobjeto de troca entre seus novos donos, nem tampouco que o prprio fara, a partir de um certomomento,considerasseoportunocolocarnomercadoalgunsdoscativosquereceberaemexcessooscapturadosemrecentescampanhasmilitaresnaLbia,naPalestinaounaNbia,porexemplo.Paraexecutaratransao,deveterutilizadointermedirios,corretoresqueagenciavamentreparticularesas trocasdeescravosporoutrosbensequeno tardaramemtransformar-seemcomerciantesporconta prpria.Estes pronto descobriramque entre a compra e a venda do escravo podiam ter umganho lquido e, se assim foi, o escravo talvez tenha sido, conforme aventurou, a pensar nosromanos,GiuseppeSalvioli,11aprimeiramerceasercomercializadacomfinslucrativos.

    OrlandoPatterson12nonosdeixaesquecerqueahistriadocomrcio,sobretudodocomrcioadistncia,confunde-se,emquasetodoomundo,comahistriadotrficodecativos.Nassociedadesmaissimples,oescravoeraamideanicamercadoriaquesepodiapermutarpelosprodutosrarosedeprestgio,osartigosdeluxoqueconstituamarazodeserdointercmbioentregruposhumanosdistantes,umavezquesbensdegrandevaliajustificavamviagensdemoradas,incmodasecheiasdeperigos.H sinais, por exemplo, dequeos escravos se incluamentreosmais antigos itensdeescambo da Europa neoltica.13 Eram eles tambm o principal motivo das trocas intertribais quepraticavamosndiosdoNoroestenorte-americano.Vriosmercadosdeescravosdistribuam-seaolongodacostadoPacficoenelesaprefernciaiaparaoscativosprovenientesdelugaresremotos.OsprisioneirossulistaseramvendidosparaoNorte;eosnortistas,paraoSul.Quantomaislongedacasa do comprador tivesse origemo escravo,maior o seu preo, pois no s seriamais difcil afuga,paradenovojuntar-seaosseusouagruposdamesmalnguaecultura,comotambmsetinhapormaisfciloprocessodedesenraiz-lo.14Numasociedadequepossuimuitosescravos,convmqueelesvenhamdelugaresdistantes,comidiomasecostumesdiferentes,afimdequesereencarnemparaaescravidoemsoloemtudoestrangeiro,comoqualnotenhamomenorvnculoenoqual

  • sejamobrigadosareaprenderafalar,acomer,acomportar-seeatmesmoaoraranovosdeuses.No devia ser muito numerosa a escravaria no Antigo Imprio egpcio. E tinha origem local

    grandeparte,senoamaiorpartedosqueseviamdecabelostosadosecomumrabichopoiseraassimquesemarcavaoescravo.Napoca,escravizava-sesobretudooindigente.15Tinha-seocairnaextremapobrezacomoumsinalderepdiodosdeusesouprovadequeseerainatamenteincapazdeorganizar a prpria vida. A penria absoluta exclua o indivduo da comunidade, exilava-ointernamente,faziadeleumdesonrado,ummorto-vivo,quetinhadeserapropriadoporumaoutrapessoae,decertaforma,domesticado.

    O volume de escravos, e de escravos capturados no exterior ou adquiridos nos mercadosfronteirios, cresceu no Mdio Imprio, com a conquista da Baixa Nbia, e se multiplicourapidamenteapartirde1550a.C.,graasexpansomilitardoNovoImprioataQuartaCatarata.tambmnoNovo Imprio que osmercadores de almas se tornam para nsmais visveis. E erammuitosapromovercontratosdevendaportodaaeternidade.16

    Sabemosqueosegpcios,mesmosemguerradeclarada,filhavamescravosnaNbia,poisdesuasraziasdeixaramrelatoseimagens.ComoasdotemplodeBeit-el-Wali,nasquaissoldadosarrebatamascrianasdeumaaldeia.OquenosabemoscomofuncionavamacompraeavendadeescravosnosterritriosnbioscontroladosporQuerma,NapataeMroe.17Pode-seimaginar,porm,queossoberanosdoCuxe (nomeque sedeuaoestadoouestadosdequeaquelas cidades foramcapitais)tenham,para evitar as agresses, passado a pagar ao faraum tributo emescravose isto pelomenos desde aXVIIIDinastia.NosAnais deTutemsis III, l-se que do imposto pago pela BaixaNbia e pelo Cuxe constavam cativos e bois. O volume de escravos era, porm, pequeno: sultrapassouacentenanumnicoano.18

    Maisnumerososseriamaquelesqueperiodicamenteosnbiosvendiamaosegpcios.Noincio,seriaumcomrcioentrereis,poisprovavelmenteotrficodeescravosentreoEgitoeaNbiaeraprerrogativadofara,sequedelenoeramonoplio,ebemassimdosreisdeCuxe.Paragarantirosfornecimentos,osnbiospassaramairbuscarpelasarmasamercadoriahumanaNiloacima,enoCordof,enoDarfur.Amudananodeixavadeapresentarvantagenstambmparaosegpcios,poisquasesemprefoimelhornegciocompraroescravodoquecorrerosriscosdecaptur-lo.

    AsterrasdosuldaNbia,doCordofedoDarfurtornaram-separaosegpciosumreservatriodeescravosempotencial.Dalipodiamreceberdemodocmodoesistemticocativosque,almdeviremdeterrasdistantes,tinhamaparnciadistintadadeseusfuturossenhores,sendofcilidentific-loscomoescravospelacormaisescura,ocabelopixaim,onarizlargoeoslbiosgrossos.

    provvel que grande parte dos prisioneiros feitos pelas tropas de Querma ficasse no Cuxe.Seriamelesmultido,caso,comosepensa,fossedeescravosamaioriadosesqueletosachados(400numscaso)nos tmulosdos reisquermianos.Essagente teria sidoenterradaviva, e seus restosprolongamathojeaangstiacomqueencontraramamorte.Algunstmasmosaseapertaremetorcerem; outros, a agarrarem a garganta; estes, a cobrirem o rosto; e aqueles, a puxarem oscabelos.19

    Napata, que sucedeu a Querma, depois que os egpcios, com a derrocada da XX Dinastia, seretiraramdaNbia, foi, aoque tudo indica, um importante centro comercial. SeugrandeparceirodevetersidooEgito.Aelefornecianosescravos,plumasdeavestruz,pelesdeleopardoeoutrosprodutosqueiabuscaraosuldesuasfronteiras,mastambmametistas,berilos,rubiseouro,muitoouro,queretiravadasminasdodeserto.OsmaioresdessesdepsitosaurferosficavamprximosQuartaCatarataenaregioentreAbuHamedeomarVermelho.Neles,cabiaaosescravosaextraodominrio.(VermapaANbia.)

    Quando,talveznofimdosculoVIa.C.,MroesubstituiuNapatacomocapitaldoCuxe,jeraumgrande porto caravaneiro. E talvez recebesse escravos de toda a vasta regio que se estende das

  • montanhasetopesatorioNgerou,pelomenos,olagoChade.ComosPtolomeusadominaremoEgitoeomarVermelhotransformadonumlagocomercialgrego,osmerotastornaram-seosseusprincipais fornecedores de gomas, resinas, peles, plumas, marfim, chifres de rinocerontes ecarapaasdetartarugas.BoapartedessesartigosdesciaoNiloatodelta,masorestoseendereavas feitoriasqueosPtolomeushaviamcriadonaspraiasdomarVermelho,comoArsnoe,Kosseir,Berenice,PtolomaisTheron,SoteriusLimeneAdlis.

    Osmerotasnotinhamdeirbuscarnointeriordafricaosprodutosdeluxoquealimentavamocomrcio, pois esses lhes eram trazidos, de tribo em tribo e demo emmo, dasmais distantesparagens. De muito longe, para onde no pudessem voltar, chegavam tambm, e pelo mesmoprocesso de escambos sucessivos, as fieiras de escravos. Os primeiros a serem vendidos nomarVermelhoeram,contudo,aquelesderivadosdasfrequentesguerrascomospovosvizinhos.

    Daferocidadedessasguerrasedacapturadeescravoshnumerosostestemunhosnasparedesdostemplos.Numa insculturaemJebelQueili,v-seumpunhadodecativos sobopdo rei, enquantooutroscaemousojogadosdoaltodeumpenhasco.NosanturioaoSol,emMroe,vrioscativossentam-senocho,comoscotovelosatadosaostornozelos.Pertinho,mulheres,crianaseboissoconduzidoscomosaque.Maisadiante,soldadosmerotasmassacramoutrosprisioneiros.Aqui,oreirecebedeumdeusumapencadeescravos;ali,elepisaumfrisodeinimigosvencidoseamarradosunsaosoutros.

    Muitos dos prisioneiros de guerra e dos infelizes que se preavam nas razias eram doados aostemplos. Outros endereavam-se construo de pirmides, templos e palcios ou dos canais deregadioedosenormesaudes(ouhafires)dequehrunasemMroe.Vendiam-seosexcedentesnosaoEgito,mastambmpennsulaArbicaeaoMediterrneo,ejantesdoperodoromano.Dequeeraassim,hoclarodepoimentodeumaestatuetagrega,emesteatita,dapocaalexandrina,deumrapazolanegro,deccoras,comostornozelosamarrados.20

    NaGrciaclssica,denumerosaescravariados315.500habitantesquesepresumeteriaatica

    em431a.C.,115milseriamescravos,eestessomariam70milentreas155milpessoasqueviviamento emAtenas e no seu porto de Pireu21, os nbios, etopes e outros cativos pretos seriam,porm,raros,aindaque, talvez,comlongahistria.Lembra-meFrankM.Snowden,Jr.22que,numfresco emMinos, figuram soldados negros, possivelmente escravos adquiridos pelos cretenses noEgitoounoslitoraisdaLbia.Ese,naOdisseia,sepodemacharevidnciasdequebarcosgregosefencios,desdepelomenososchamadostemposhomricos,cruzavamoMediterrneo,aempreenderrazias para capturar escravos e a compr-los, vend-los e revend-los, juntamente com outrasmercadoriasdegrandevalorunitriooprprioUlisses,porduasvezes,foi,nopoema,aoEgito,capturarmulheresecrianas,nohafastarque recolhessemnodeltadoNiloounasenseadaslbiasalgunscativosnegros.

    AtasvsperasdosculoVIa.C.,quandosemultiplicaram,noMediterrneo,astrocascomerciaisa longa distncia, o nmero de escravos embarcados devia ser pequeno. Tinha-se o escravo (ou,melhor,aescrava,poisapredominncia femininadeviasera regra)comoartigodealtopreo.Apartirde600a.C.,ogrossodeumaescravariaemprocessodeconstantecrescimentodeixoudeserobtido pelas armas e passou a ser adquirido no mercado externo. Provinha majoritariamente daperiferiadomundogrego, sobretudodasiaMenor,expandindo-semais tardeareadecaptaoparaomarNegroeosBlcs.

    Aescravidofloresceuprincipalmentenascidadesdegrandeativida-decomercial,comoQuios,Atenas,CorintoeEgina,quecontavamcommercadosdeescravos.23Omaisfamosodetodosviriaaser, no Imprio Romano, o de Delos, no qual os piratas cilicianos e cretenses piratas queprocuravam, segundo Estrabo, disfarar-se em membros da prestigiosa e bem-conceituada

  • profissodecomerciantedeescravos24podiamdespejardiariamente,duranteasegundametadedo sculo II a.C., 10 mil cativos. Nunca saberemos se Estrabo exagerava nos nmeros. Comotampoucotemosindciossobrequantosdessesescravosseriampretos.Doquenotemosdvidadequepoucosseacanhavamdeconfessar-setraficantesdegente:haviaatquemdissosejactasse,comoaqueleAulusKapreiliusTimotheus,emcujomonumentofunerrio,almdeter,apsoseunome,aindicaodequeeracomerciantedeescravos,semostraummercador,possivelmenteeleprprio,aconduzirumafieiradeoitocativosacorrentados.25

    Aindaquefossempouqussimososescravosnegros,elesprovavelmentenocausavamsurpresa.NoSaaraCentral,hsinaisdequejsepraticavaacaaaohomemdesdepelomenosametadedoprimeiromilnioantesdeCristo.Doaltodepequenoscarrospuxadosporcavalososcarrosqueseencontramscentenasdesenhadosnasrochasdodeserto26,homensdetnicadricaeplumasnacabea(osgaramantesdeHerdoto27)perseguiamnegros trogloditas,possivelmenteafimdeescraviz-los,tantoparaaslabutasdomsticas,pastoriseagrcolasnososisdoFezzan,quantoparasuprirosmercadosdoMediterrneo.28Dessecomrcio,stemostestemunhoclaroemalgunsversosdofimdosculoVd.C.29Masdeviasermuitoantigo.

    de crer-se que Cartago contasse com negros adquiridos dos garamantes em sua numerosaescravaria. Graas a ela, puderam os cartagineses construir e manter um complexo sistema deirrigao,bemcomodesenvolvervastosestabelecimentosagrcolas,comtrigaisinterrompidosporolive-dos, figueiras, romzeiras, colmeias de abelhas e pastagens. H quem, no entanto, dissodiscorde e sustente que as plantaes cartaginesas no eram mantidas por escravos, mas portrabalhadores berberes, e que as famosas revoltas da escravaria seriam na realidade levantes dosnativoscontraoscolonizadoresfencios.

    Aps a conquista da frica do Norte, Roma enviou pelo menos duas expedies ao sul doFezzan.30Aprimeira,chefiadaporSeptimusFlaccus,noano20a.C.Asegunda,logodepois,acargode Julius Maternus, avanou alm de Garama (ou Jarma) at as estepes sudanesas, se que nochegou ao lago Chade.31 A partir de ento, os garamantes fizeram-se fornecedores de Roma deprodutos que iam buscar ao sul do Saara. Entre essasmercadorias figuravam seguramente algunsescravos.32Ehquempensequeessesseriammuitos,33oquebempossvel,pois,tendoaprendidoaselarodromedrio,osberberescomearamaorganizar,noinciodenossaera,asgrandescfilascapazesdeatravessarodeserto.Osescravoscaminhariamao ladodoscamelos,quecarregavamacomidaeaguanecessriasdurssimaviagem.

    OutroscativosnegrossairiamparaRomadeportosnomarVermelhoenondico,poisoautorannimodoPriplodomarEritreu,escrevendopossivelmentenofimdoprimeirosculodenossaera, diz que no embarcadouro deMalao se vendiam ocasionalmente escravos,34 mas que os deOpone(aatualRasHafun)eramdemelhorqualidadeeseendereavamsobretudoaoEgito.35Plnio,oVelho,porsuavez,afirmaquedeAdlisseexportavamnegros.36Oprincipalprovedordesseportoe,nossculosseguintes,deDahlakeZeilaseriaoreinodeAxum.37

    Desde a sua entrada na histria, os axumitas reduziam escravido os inimigos derrotados.Poucos, de incio, pois de incio raramente os poupavam da espada. Sacrificavam os cativos aosdeuses, usavam-nos nas fainas domsticas e, como no tinham para eles, ao que parece, outrasocupaeseconmicas,punhamvendaosexcedentesnosseusportosdomar.38Embreve tempo,porm,Axum tornou-se um grande emprio domarfim e de outrasmercadorias africanas e, dosaltosplanaltosdoTigr,adominarosvalesdosriosMarebeTacaz,quedescemparaoNilo,passouacontrolarotrficodointeriorparaomarVermelho.

    De rival de Mroe, Axum fez-se sucessor. E os escravos devem ter aumentado entre os seusprodutosdeexportao.Muitosdessesescravos,acrer-seemCosmasIndicopleustes(ummercadordeAlexandriaqueandoupelaEtipianosculoVIeescreveuumrelatodeviagemfamoso39)eram

  • trazidosdeSasueBarbaria,isto,dolestedaatualRepblicadoSudoedaSomliaoudosudestedaEtipia.40EmAxum,osescravos jno trabalhavamapenasnos serviosdecasa,mas tambmnoscamposenasconstruesdosgrandespalciosedasaltasestelas.41

    RomaadquirianegrosdosportosaxumitasdomarVermelho,comooscompraradeMroenodelta doNilo.Mas os obteve, aomenos uma vez, pela fora das armas. Em 23 a.C., desatou-se aguerraentreMroeeRoma.42Petrnio,prefeitodoEgito, invadiuaNbiacomdezmil infantese800cavaleirosechegouaNapata,quedestruiu,aprisionandoamaiorpartedeseushabitantes.EnviouummilhardelesaAugustoevendeuosdemaiscomoescravos,provavelmenteaosmercadoresquecostumavamacompanharosexrcitosromanos.

    Muitos desses mercadores comearam provavelmente suas carreiras a recolher nas ruas das

    cidades romanas as crianas enjeitadas, para cri-las e, depois, vend-las. NaGrcia e emRoma,abandonavam-senasportasdascasasouemlogradourospblicososrecm-nascidosindesejados,osrebentosdeescravasoudecasaispobres,osfrutosdeuniesilegtimaseatmesmoacrianaqueopai decidia no aceitar, ou porque do sexo feminino, ou porque seria um peso adicional nooramentofamiliar,ouporquelhediluiriaolegado.Parafirmarorepdio,opaisprecisavadeixardeergu-ladochoondeapunhaaparteira.43Osenjeitadosdestinavam-semorteehaviapaisque, em vez de exp-los, os lanavam no Tibre. Ao recolh-los, os mercadores substituam pelaescravidoamortefsicadequemnoforaacolhidopelacomunidadeeficara,porisso,semlaosdefamlia e semhistria.Omesmodestino podiam ter criminosos, devedores, homens livres que sevendiamasiprprioseosfilhosalienadospelospais.44

    EmRoma,aescravizaodosexpostos, sobretudodemeninas, tornou-se rotineirano inciodoimprio.45Aprticanofoiabrandadapelograndenmerodecativosqueasguerrasdeconquistacontinuaramaderramaremseusmercados,emboraemproporomenordoqueduranteossculosIIIeIIa.C.46DeJlioCsardiz-sequesemsuascampanhasnaGlia,entre58e51a.C.,fezcercadeummilho de cativos.47 O volume de escravos que se produziam no decorrer de uma expediomilitarpodiaser,alis,togrande,quesetransformavaemproblemaparaocomandantedoExrcito.As dificuldades em conduzir, alimentar e abrigar milhares de prisioneiros eram frequentementeresolvidas pelos traficantes de escravos que acompanhavam as tropas, espera de fazer bonsnegcios.48

    Jseestimouque,nosprimeiros50anosdosculoIIa.C.,250milprisioneirosforamtrazidoscomo escravos para Roma e vrios outros milhares ali chegaram por via do comrcio.49 Osmercados de Delos tinham-se por to bem sortidos pela pirataria, que eram capazes de oferecerescravos treinados em vrios ofcios msicos, escribas, malabaristas, cozinheiros, ferreiros,carpinteiros,atores,ourivesoumdicos.50Entreessesescravosespecializadosnofaltariamalgunsafricanos, tidos em alta conta como gladiadores, boxeurs, saltimbancos, danarinos, cantores,atendentesdebanhospblicos,cavalariosecriadospessoais.Comtaisocupaes,figuramnegrosemesculturasdebronze,mrmoreouterracota,emmosaicoseemvasosdecermica.51

    Os escravos negros no seriam, em Roma, numerosos como os gregos, eslavos, iberos,

    germanosougauleses.Bemmaior, aindaquedeixandomenos rastros, seria aquantidadedosque,nosprimeirossculosdenossaera(ou,possivelmente,desdeantes),atravessaramomarVermelhoouforamlevadosforadascostasafricanasdondicoparaapennsulaArbica.NoPriplodomarEritreu52menciona-se,para ficarnumexemplo,quenasmontanhasprximasbaadeSakhalites,escravos reais edegredados recolhiamagomado incenso.Talvez fossemnegros algunsdaquelesquealilabutavamemcondiesdurssimastodurasquequasetodosmorriamdepoisdepoucotempo, de fome, fadiga e pestilncia. muito provvel que tivessem melhor destino os poucos

  • negrosmandadosparaoIr,andia,oCeiloeaIndonsia.Eaqueles,curiosidadedascuriosidades,quechegavamChina.

    Otrficoampliou-se,apartirdofimdosculoVI,quandoosiranianosseapoderaramdaArbiadoSuledoestreitodoBab-el-Mandeb.OssassnidaspassaramaimportarsistematicamenteescravosdaEtipiaedafricandica,para lhesserviremdesoldadose trabalhadoresbraais. (NoIr,era,alis, antiga a presena de negros nos exrcitos. Relata Herdoto53 que nas tropas de Xerxes,integrando os contingentes rabes, havia pelotes nbios. De aparncia feroz, esses guerreirospintavamocorpodevermelhoebrancoesecobriamcompelesdeleopardooudeleo.Tinhamporarmasgrandesarcos,flechascompontadepedra,porretesguarnecidosdepregosdeferroelanasrematadasporchifredegazela.Quealiestivessemnodeveespantar-nos,poisonortedaNbiaforaconquistadopelospersas,nofinaldosculoVIa.C.,e,provnciadoimprio,fornecia-lhessoldadosepagava-lhestributoemouro,marfim,banoeescravos.)

    Hsinaisdequebarcos indianos frequentavamos litoraisdafricaOrientale suspeitasdequenavios de Axum levavam mercadorias at a ndia.54 Entre elas, tendo em vista que os axumitascomerciavam cativos nas costas do mar Vermelho, deviam figurar pelo menos alguns escravos.Tambmosindonsios,quejhaviaminstaladocolniasemMadagscareentrepostosnaspraiasdocontinente,55 nele deviam prear negros, para povoar a grande ilha, levando esse e aquele para osudestedasia.Umsinaldissoque,em614,embaixadoresdeJavapresentearamoimperadordaChinacomdoisescravossengchizenjouzanjes,comolheschamavamosrabes.56

    Esseantigocomrciodeescravosafricanostinhadimensesreduzidas.Emgeral,osembarquescifravam-seempoucasdezenasdecativos.Eestes,decertomodo,eramartigosdeluxo.Catavam-seospretosentreaescravariadoMediterrneoedondico.SeramelesmaiscomunsnoEgitoenaArbia. E daArbia, o entusiasmo de uma nova religio, que transbordou num veloz e triunfanteexpansionismo militar, viria a transformar a frica subsaariana, de fornecedora marginal deescravos,numafontecopiosa,constanteeduradourademercadoriahumana.

  • 2NasterrasdoIslame

    Em632morriaMaom.Nasdcadasseguintes,osrabes,poreleunificados,abalaramBizncioeconquistaramoIraque,aSria,aPalestina,aPrsia,aArmnia,asiaMenor,oEgitoeoslitoraisdafrica doNorte at aTunsia.Antes de findar o sculo, eles acrescentariam oAfeganisto a seusdomnios,caminhariamparaandiaesefariamsenhoresdequasetodoonortedafrica.

    Umhistoriadormilitar,paraquemessasconquistasssecomparam,emextensoerapidez,sdeAlexandreMagno, relembraqueos rabesno trouxeramparaos camposdebatalhanovasarmasnemnovastticas,mastransformaraminteiramenteomododefazeraguerra,aomoverosexrcitoscomoentusiasmoeaforadeumaideia.1Maomeraummercador,masjforaumguerreiro.Eafquepregaraeramilitanteeseafirmavatantopelapalavraquantopelasarmas.

    PensoqueoAlcoroclaro: impunha-sedarcombateevencerquemnoseconvertesse,quemno aceitasse haver um s Deus, que tinha Maom por seu profeta.2 O jihad ou guerra santa,destinadoaampliarosterritriossobaleidivinaeogovernodosfiis,eraumadasobrigaesdocrente.Nasbatalhas,ganhavam-seoparasoeosbensdaterra.

    Aompio,cumpriabater-lhenanucaatchacin-lo.3Secassevivonasmosdodevoto,haviaqueapertarcomforaascordasqueoamarravam,embora,terminadaacampanha,pudessevirareceberofavordaliberdadeouserobjetoderesgate.4NasprimeirasdcadasdoIslame,omaisprovvelqueficasseempaz,detodosubordinadoaosconquistadoresrabeseatrabalharemseuscamposeemsuasvilasparasustentaroqueaspiravaaserumacastamilitardirigente,qualestavavedadaaposseeotrabalhodaterraequalqueroutroofcioquenoodasarmas.5Muitosdosaprisionadosnasbatalhasforam,noentanto,escravizados.Eestaviriaaseraregra,muitomaistarde,nafrica.Poisno figura nas respostas deAl-Maghili, o grande jurista do fim do sculoXV, ao squia (ou rei)Muhamed,deSongai(ouSonrai),serdeverdomuulmanofervorosofazeraguerrasantacontraosinfiis, matar-lhes os homens, escravizar-lhes as mulheres e as crianas e tirar-lhes todas asriquezas?6

    OAlcoronojustificanemcondenaaescravido.Tem-nacomonatural.Sedelafalaemalgumaspassagens, para recomendar, como obra pia, reparadora ou expiatria, a manumisso dosescravos,7preceituarquedevemsertratadoscombondade8eestabelecerregrasdecomportamentoentreosescravoseentreeleseseussenhores.9Emoutrostextosqueobrigamofielcomoasunaou prtica do Profeta, seus atos e palavras conforme incorporados nos hadiths ou tradies, assentenasdosprimeiroscalifaseaxari(sharia)oudireitoislmico,preceitua-sequeosenhorabrigue,vistaealimentedeformacorretaoescravoeopoupedetrabalhosexcessivos.Maom,eleprpriodonodeescravos, teriaadvertido:Segostasdeumescravo,mantm-noem tuaposse; seno, vende-o.Mas no causes sofrimento a uma criatura deDeus.Assim como o Todo-Poderoso

  • dispsquefossesdonodoescravo,poderiaterfeitodesteoteusenhor.10Parao islame, a condionormal dohomem a liberdade.Foi a partir desse princpio que as

    vrias escolas jurdicasmuulmanas, fossem sunitas, xiitas ou carijitas, compuseram as doutrinas,leisejurisprudnciassobreaescravido.11Nenhumapessoalivrepodiaserescravizadaporcrime,dvida ou indigncia.No era lcito, comonaGrcia ou emRoma, fazer escrava, por exemplo, acrianaabandonada.Escravoeraquemnascianessacondiooueraaelareduzidoemguerrasanta.Ou, ainda, quem era importado de terras de infiis. Pois o mundo divide-se em metadesinconciliveis: de um lado, a comunidade dos crentes (umma), a casa da paz, da submisso e daobedincia(oDaral-Islam),e,dooutro,acasada infidelidadeedaguerra (oDaral-Harb).Quempertenceaestaspodeestarnaquelacomodhimmaouprotegido,sezoroastriano,judeuoucristo(os dois ltimos, povos doLivro e adeptos de uma religio revelada, ainda que imperfeita), oucomoescravo,casoidlatraoupago.

    Scomoescravoe,porisso,oatodeescravizareraumatopio,quaseobrigaodohomemdeverdadeirafpodiaenderear-sesalvaoaquelequenoseconverteuaoprimeirochamado.Ojihadcontribua,assim,parapurificaromundo,eliminandofisicamenteoinfiel,oulhearrancando,pela escravizao, a existncia legal e moral. A essncia humana do escravizado no lhe seriadevolvidasenocomaalforria,paraoqueeraindispensvelqueantessehouvesseconvertido.Poissomaometanoetambm,paraamaioriadossunitas,odhimmapodiasermanumisso.12

    Era como se a escravido isto li em John RalphWillis13 extinguisse a culpa do mpio.Comose,pormeiodela,seexpiasseosanguederramadonojihadpelosfiis.Comoseodonofossecredordoescravoeestedevessequeleaprpriavida,poisdeviatersidomorto,umavezquenoseconverteranodevidotempo.Escravo,tornava-seumaespciedediya(oureparaoaserpagaporumofensorparteofendida),umadiyadestinadaacompensarasvidasqueoIslameperdeuduranteaguerra santa. Ainda assim, devia ser o escravo tratado com compaixo e boa vontade, porque oestado servil lhe estava, de certomodo, desde sempre predestinado. E, embora fosse ele definidocomoabsolutapropriedadedodono,axaridavanfasesuacapacidadehumana.14

    Oislamemelhorou,semdvida,oestadodoescravonaArbia,ondesempreforatidocomoumbemsemovente,comogado,recebendododonorepitooquejsedisse15amesmaproteoqueumcamelo.Comoquasesempresucede,havia,noentanto,grandediferenaentreaprticaeapregaoemnomedoProfeta.Essadiferenaalargou-semedidaqueosrabesforamacumulandoxitosemsuaempresadeconquista,seconvencendodequeeramopovoeleito,seenriquecendocomobutimeotributo,seurbanizandoe,concomitantemente,arabizandoaspopulaessubmetidas.Nocessoudeaumentarentreelesonmerodeescravoseescravas.Paraconcubinas,cantorasemsicas.Paraocuidadodosjardinsedashortas.Paraotratodoscavalosedoscamelos.Paratrabalharemobarro,asfibras,ocouro,osmetaiseamadeira.Paraasminas.Paraosserviosdomsticosdeumaaristocracia em formao, que abandonava as tendas e os acampamentos militares e construaalcceres,palacetesemanses,enquantoaumentavaotamanhodeseusserralhos.Paraacompanharossenhoresnasbatalhase,maistarde,combatercomosoldados.

    demanda de mo de obra cativa, as guerras santas deram, de incio, resposta. Das tribosberberes dafrica doNorte, por exemplo, arrancaram-se, s centenas, escravos emais escravos,sobretudo mulheres jovens, to requisitadas pelos harns, e meninos e rapazolas para seremtreinadosparaoexrcitoeserviremdeghulam,oupajem,e,comotal,seenderearemsvezessprticasdapederastia.16Como,porm,aexpansorabedeu-se,emseuprimeirosculo,sobretudosexpensasdeBizncioedaPrsia,e,portanto,sobreterritrioshabitadosporpovosdeconvicocrist, mosaica ou zoroastriana, o nmero de escravos obtidos quase nunca correspondia sexpectativasdocalifaedosquemandavamemseunome.ComaestabilizaodasfronteirasentreoDaral-IslameoDaral-HarbjnametadedosculoVIIIelassesituavamnaEspanhaenandia

  • ,atendnciaeradiminuironmerodepessoasreduzidasdiretamentepelasarmas.Eosislamitaspassaramaabastecer-sedeescravosoriundosdeterrasaindamaisdistantes,deterrasdeidlatrasquese podiam licitamente comprar, porque, pertencendo ao Dar al-Harb, contra eles cabia fazer-se aguerrasanta.Eram,porisso,escravosempotencial.17

    Havia,alis,umtipodeescravoqueosmoslinstinhamforosamentedereceberporcompraoutributo: o eunuco, indispensvel administrao do harm.ComoMaom condenara o fabrico deeunucos,mas no o seu uso e posse, pois ele prprio fora dono de um capado,18 no restava aomuulmanosenoobt-losforados territriosdoIslame.TalqualemRoma,ondeacastraoeraproibida e os eunucos tinhamde ser adquiridos almdos lindesdo imprio.19A fimde atender demanda,desenvolveram-secentrosprodutoresdecastradosnaperiferiadomundomuulmano.Emmosteiroscristos.NosBlcs.EmPraga.EmVerdun.NomarCspio.NaArmnia.NaNbia.NaEtipia.NoDarfur.EmBagirmi.EmNupe.

    Ascidadesrabesacolhiamescravosdetodaparte,atmesmodandia,daChinaedosudestedasia.Ogrossovinha,noentanto,daEuropa,dasestepesasiticasedafrica.

    Era antiqussimo o comrcio de negros, sobretudo de mulheres etopes, apreciadssimas

    concubinas, com a pennsula Arbica. Os escravos mais comuns, os abexins e os somalis,atravessavamomarVermelho.possvelqueosoutrospassassempeloEgito,trazidosdaNbia,doDarfur,doCordofedoFezzan,eatmesmoqueunspoucosembarcassemnaspraiasdondico,nosdhows e outros barcos rabes. Emdeterminadosmomentos histricos, os escravos negros seriamnumerosos.Emoutros,desecontarempelasmos.

    NosabemosqualasituaonaArbiadapocadeMaom,masprovavelmenteosnegroseram,entre os escravos, minoria. Pelo menos isso o que se deduz da lista de escravos e libertos doProfetaedeseuscamaradas.20Umalistacomalgunsnomesilustres.ComoodeBilalibnRabah,oprimeiroalmuademachamarosfiisorao.Bilal,deorigemabissnia,nasceuescravo.EscravotambmetambmetopefoiAbuBakre,alforriadopeloprprioProfeta.21

    ComaocupaodoEgitoedonortedafrica,multiplicaram-seosescravospretos.Empoucotempo,os rabes e seus correligionriosorganizaramedesenvolveramo comrcio a distnciadenegros, dando-lhe uma dimenso que jamais tivera. Partiram para isso dos pequenosmercados jexistentes no Egito e noMagrebe, de rotas milenrias, como as da Nbia, ou de itinerrios quedatavamdosprimeirossculosdenossaera,dequandoaadoodocamelopermitiuaosberberesqueatravessassemregularmenteoSaaraefossempilharasestepeseassavanasaosuldodesertoealiprearnegros,parap-losnososis,acultivarcereaisetmaras,etalvezparavend-losnafricadoNorte. Talvez e uso o advrbio, porque h quem julgue que s aps a conquista rabe, ou,melhor,entreofimdosculoVIIeametadedoVIII,osberberesrecm-convertidosaoislamismovincularam comercialmente o norte dafrica ao Sudo e passaram a traficar em cativos negros,transformando-sedeescravizadosemescravizadores.Paraquemassimpensa,escravosprovenientesdo sul do Saara s teriam comeado a aparecer em nmeros expressivos nos mercados norte-africanosnofimdosculoVII.22

    Em641,malseremataraaocupaodoEgito,acavalariarabeatacou,semxito,oreinocristonbio da Macria.23 Dez anos depois, os rabes voltaram carga e sitiaram Dongola, a capitalmacurra.Talvezporqueda lutano tivessesadoumvencedorclaro, firmou-seumtratadoentreoEgitomuulmano e o reino nbio, o famoso baqt,24 vigente durante cerca de 600 anos. Por esseacordo,osnbiosforneceriamanualmente360escravosaoimamedosmoslinse40aogovernador(ouwali) deAssu. Em troca, receberiam trigo, cevada, vinhos e tecidos, alm de duas guas degranderaa.25

    O enredo repetiu-se mais adiante. To pronto se instalaram na Tripolitnia, os rabes, que

  • certamente no ignoravam que os garamantes forneciam escravos costa, avanaram com seusexrcitosparaosul.Em669(oudoisanosantes),apsvencerGarama,UqbaibnNafiimpssuagenteumtributode360cativos,26quenosabemosseseriamberberesounegros.EoutrostantosaWadan,aoFezzaneaKawar,seacreditarmosnaveracidadedoqueescreveu,nosculoIX,IbnAbdal-Hakam.27Nessaspartes,comonaNbia,oprincipalinteressedosconquistadoresparecetersidoode obter regularmente escravos.Mas, num e noutro caso, no se pode descartar que procurassemsobretudoouro.

    DesdeametadedosculoXVIa.C.,explorava-seouronasproximidadesdedoisudis(ourios,geralmentesecos,dodeserto),oAlaquieseuafluente,oCabagba,naNbia.EtalvezentreossculosIIIeVdenossaera,osberberesjfossembuscaraosuldoSaaraometalamarelo.Assenhoreando-sedo deserto, graas ao camelo, eles estabeleceram vrias rotas entre, de um lado, o Marrocos, aArglia,aTunsia,aLbiaeoEgitoe,dooutro,orioSenegal,osuldaMauritnia,acurvadoNgereolagoChade.28

    Aprincipalmercadoriaquetrocavamporouroeraosal.Osalencontradoemestadoslidoemvrios pontos do deserto. Talvez nos mesmos lugares que mais tarde se tornariam produtoresfamosos: Idjil, Taoudeni, Tagaza. Para cort-lo em blocos e transport-lo para o dorso dosdromedrios,suspeita-sequeseempregassem,desdeoincio,escravos.EscravospreadosnoSaelenasavanaouadquiridostambmcomsal.SemuitosdelesficavamnasminasenososisdoSaara,outroscontinuavamacaminharaoladodoscamelosatosmercadosdonortedafrica.

    Tm-seoouroeosalcomoosresponsveis,apartir talvezdosculoIV,pelaconsolidaodoreinodeGana.29Adicionoumterceiroelemento:oescravo.Tantoossaracols,quecriaramGana,quantomuitosdosgruposqueestiveramnabasedosnumerosos reinosecidades-estadodasavanasudanesa e dos imprios doMali e de Songai, organizaram-semilitarmente para defender-se dosnmadesdodeserto,queatacavamsuasaldeias,saqueando-lhesosceleiros,roubando-lhesogadoelhes arrancando as mulheres e as crianas. Quando se sentiram fortes nas armas, os sudanesespassaram a empreender razias contra os vizinhosmais dbeis e a oferec-los como escravos aosantigosagressores,jconciliadospelasvantagensdocomrcio.

    OsrabeslogosouberamdaexistnciadeGana.TantoqueGanaaparececomoopasdoouronosescritosdeumautordasegundametadedosculoVIII,Al-Fazari.30DevetersidosuaprocuraqueHabibibnAbiUbaidaal-Fihri,netodeUqbaibnNafi,comandou,em736,umaexpedioaoSuz,no sul doMarrocos, e aopas dosnegros.Conta IbnAbdal-Hakamque ele regressou cobertodeouroecomumbutimemquehaviaescravos.31Seufilho,Abdal-Rahman,marcaria,parausodosrabes, por volta de 745, uma pista caravaneira que ligava o Suz outra praia do deserto,recuperandopoosantigosefurandocacimbasnovas.32

    Essahistrianosdizmaisdoqueliteralmentenosconta.ElanosdizqueosculoVIIIaindanohaviachegadoaomeioejosrabesprocuravamcontrolaremelhoraroscaminhosquelevavamaoBiladal-Sudan,oPasdosNegrosedoouro,afimdevincul-loaoenormemercadoque,tendoporncleoaArbia,oEgitoeoCrescenteFrtil,seestendiadaEspanhaaoSind,eseenlaavacomBizncio, a EuropaOcidental, a ndia hindusta e budista, o sudeste dasia, aChina e os litoraisafricanosdondico.Nesseimensoespao,circulavam,deumapontaoutra,asedaeasporcelanaschinesas, o estanho espanhol, os algodesda ndia, o incensodo Imen, os brocadosdaPrsia, otrigodoEgito,oscavalosdaArbia,eoazeite,easpimentas,eastmaras,eostapetes,eocobre,eoanil,eovidro,eocoral,eosperfumes,easlouas,easplumasdeavestruz,eaprata,eoouro,eomarfim,eosescravos.

    Depastoresnmadesecomerciantesurbanos,Maomfizeraaaristocraciaricaepoderosadeum

    grandeimprio.bemverdadequeosrabes,apartirdofinaldosculoVIII,tiveramdepartilhar

  • cadavezmaisasposiesdeelite,primeiro,comospersase,depois,comasdemaisnaesqueseislamizavam.certotambmqueaunidadereligiosaepolticalegadaporMaomemantidapelosquatro primeiros califas se foi danificando, ao longo do tempo. Divergncias sobre a conduoespiritual e temporal do Islame tomaram forma no sunismo, no xiismo, no carijismo. Modosdistintosdeinterpretarassuasleissepararamoshanafitasdoshambalitas,eestesdosmaliquitasedosxafitas. Proliferaram centros autnomos de poder, que apenas prestavam vassalagem nominal esimblicaaocalifa(ousucessordeMaom),eoprpriocalifadodividiu-se,nosculoX,emtrs:oabssida,oomadaeofatmida.Essascisesedesavenasnoafetavam,contudo,ainteirezabsicado islamismo.Qualquerquefosseanaturezadasdissenses,oAlcoroerasempreomesmo,easmesmas as cinco principais obrigaes do crente.Ohajj, ou peregrinao aMeca, fortalecia essesentimento de intensa comunho numa s f. Em todo o mundo muulmano, teceram-se hbitoscomunsdevida,gostoscompartilhados,modosdepensarsemelhantes.Deumextremoaooutrodesua ampla geografia, liam-se os mesmos livros, discutiam-se as mesmas ideias filosficas ecientficas e predominavam, com pequenas variantes, os mesmos estilos de arquitetura, artesdecorativas, msica e poesia. Para um maometano de ento, o mundo civilizado estendia-se daEspanhandiaislamita,passandopeloMagrebe,oEgito,aArbia,oIraqueeaPrsia.Respeitavam-se a China, Bizncio e a ndia hindusta e budista, ainda que suas culturas fossem mancas, porapartadasdaverdade.Orestoosgruposhumanosqueviviamaonorte,comofrancos,germanoseeslavos, ou ao sul, comoos negros dafricapertencia barbrie, sem cultura, arte, cincia ediscernimento.

    QuetenhamidoaoSuzeaoFezzan,mostra-nosqueosrabesnoignoravamquedalisaamdoiscaminhosquelevavamoutrapraiadoSaaracaminhoscujaimportnciaopassardossculossconfirmaria.Nolograram,contudo,osrabescontrolarocomrciotransaariano.Continuoueleemgrandepartenasmosdosberberesislamizados,bemverdade,e,emltimaanlise,aserviodoecmenomuulmano.

    Na sua converso, amaioria dos norte-africanos preferiu, ortodoxia sunita ou ao xiismo, asconvices e as prticas dos carijitas, tanto em sua verso sufrita,mais radical, quanto na ibadita,maisacomodadora.Oscarijitassustentavamaabsolutaigualdadeentreosmaometanoseodireitodequalquerdevotoasereleitoimame,ochefesupremodacomunidadedosfiis.Advogavam,porisso,comoumdever,arejeiodeumcalifadoilegtimo,comooabssida.

    OsprimeirospregadoresdessaheterodoxiavieramprovavelmentedoIraqueedoIretrouxeramcom eles no s as suas interpretaes teolgicas, morais e polticas do islame, mas tambmcopiososcapitaiseumalongaprticadocomrcioadistncia,umaexperinciaquetransmitiramaseusconversosberberes, fossemcitadinosounmadesdodeserto.Os sufritas, fundadores, aoqueconsta, em 757, de Sijilmessa,33 no Tafilelte, predominariam no Marrocos. Os ibaditas, naTripolitnia, Tunsia e Arglia, onde estabeleceram um sultanato em Tahert e se impuseram emTremecm(ouTlemcen).AquelesdominariamoscaminhosnoSaaraOcidental.Osibaditas,asrotasquepassavampeloFezzanepeloKawar.

    Ositinerriosnodesertotraavam-seemfunodospontosdeguaedaresistnciadoscamelos.

    Estes socapazesde ficar sembeberdedeza15diasepodemmarchar, comumacargade120a150kg,uns30a45kmpor jornada.34Umcaminho comummnimode seguranadeveria ter, porisso,aomenosumacacimbaacada200epoucosquilmetros.Convinhaademaisqueospoosseamiudassem nos trechos a serem percorridos na ltima semana da travessia, quando os homensestariammaisfatigadosefartosdaguachocaquetraziamnosodres.

    Alguns desses itinerrios talvez fossem anteriores islamizao dos berberes. Fariam parte,assim,dosprimeirosepisdiosdaquiloaquejsechamouarevoluodocamelo35equefezdo

  • Saara ummar interior. Outros desenvolveram-se no avanar dos sculos, substituindo rotas maisantigascadasemdesuso.Eoutros,ainda,sbemmaistardeforam,porassimdizer,descobertos.

    Um dos roteiros menos rigorosos, porque abrandado na maior parte de seu trajeto pelaproximidadedooceano,saadososisdosuldoMarro-cos,acompanhavaemarcoolitoralafricanoatocaboBranco,daliinfletindo,numacurvaparaooriente,atoSael,ondesedividiaemvrioscaminhosparaoTacrur,paraAudagosteeGana,paraSilaeparaGa,nocotovelodorioNger.Compoosdistantesentresidoisoutrsdiasdeviagem,percorr-lodemoravademsemeioadoismeses,nocasodenoseracaravanamuitograndenemlevardemasiadacarga.

    MaisantigodoqueessetalvezfosseoroteiroquepartiadaTripolitniaeatravessavaoFezzan,deonde um de seus ramos se dirigia, pelo Adrar dos Iforas, para Ga, e o outro, pelo Air, at aHaualndiaou,numesgalharparasudeste,atolagoChade.

    De Tlemcen ou de Tahert, ia-se porWargla at Tadmekka e dali a Ga. E um outro caminhocomeavanaTunsia,cortavaGadams,chegavaaoGateealisedividia:umasendalevavaaoCanemeoutraaGa.DoGateedoFezzanpodia-seatingirSiu(ouSiwa),nonoroestedoEgito.

    Haviaoutromododealcanar-seoEgito,apartirdoAdrarmauritano:seguirparaGa,depoisparaoAireoTibestie,emseguida,paraososisdeKhargaeDakhla.QuandoIbnHawkalescreveuoseu tratadodegeografia,nasegundametadedosculoX,esse roteiro j tinhasidoabandonado,porcausadastempestadesdeareia.36(VeromapaRotascaravaneiras.)

    Na poca de IbnHawkal, uma rotamuito frequentada seria recente: a que saa deTahert ou deSijilmessa,passavaporTamdult,cruzavaoDara(ouDra),ganhavaoAdrarmauritano,seguiaparaAudagosteedali,jnoSael,paraoTacrurouparaGana.MaisnovoaindaetalvezmaisimportanteeraocaminhoquaseemlinharetadeSijilmessaaAudagoste,sportasdeGana,atravessandoumavastareadecompletodeserto.

    Outros havia, igualmente difceis, a passar junto s bases de enormes dunas de areia ou apercorrer extensssimos trechos de pedra. Em certas partes do deserto, podia-se ter de suportarquatro,cinco,seisouatmesmo14jornadassemumpontodegua.Enoseestavajamaislivredesersurpreendidoporumatempestadedeareia.Emcompensao,podia-sechegaraumosis.Outero alvio de alguns espinheiros, de uma estepe rala e de algumas accias no leito de um udi.Ou,ainda,commuitasorte,presenciarachuvaever,poralgunsdias,dasareiassurgirumapastagem.

    Partia-se altamadrugada.E caminhava-se, enquantoo sol e o calor da terra opermitissem.Ao

    tornar-seoarinsuportvel,descarregavam-seoscamelos,abriam-seastendaseserepousava,atoanncio do crepsculo. Voltava-se a carregar os animais uma trabalheira! e retomava-se amarchaatoescurecer.Eraassimqueseviajavanodeserto.37

    Desde o princpio, as cfilas seriam empreendimentos coletivos, nos quais tomariam partenumerosos mercadores. Eram organizadas com cuidado e postas sob uma chefia enrgica econhecedoradodeserto.Ajustadaadatadepartida, reuniam-seosanimaiseacarga.Onmerodecameloseraenorme:muitascentenaseatmilhares,nocausandosurpresacaravanascommaisdecincomildromedrios.Provavelmente,jentorefiro-meaosmeadosdosculoIXlevavam-sedonortedafricaparaassavanassudanesascavalos,espadas, tecidos,cobre,contasdevidroepedra, conchas, perfumes, coral de Ceuta e outros artigos sunturios. Alm de dois produtos dodeserto,osalpeabsicadessecomrcioeastmaras.Ascaravanasprocuravamparar,paraabastecer-sedamercadoriaparaaqualhaviaprocurasemprecerta,juntosminasdesal-gema.EmTrarza,narotaqueacompanhavaacostaatlntica.EmIdjil.EmTaoudeni.EmTagaza.EmAulil.Eraessa provavelmente a norma, sempre que as cfilas no partissem desses lugares e de portosmercantis em cujas proximidades tambm havia sal, ainda que emmenor volume, como Tuate eSijilmessa.

  • Antesdapartida,encharcavam-seosestmagosdosdromedrios.Boaparte(talvezumtero)dacapacidade de carga dos animais ficava por conta dos odres de gua, dos sacos e amarrados dealimentosedomaterialnecessrioparaarmarastendaseacenderasfogueirasoque,somadolentido com que avanava e aos perigos que corria, fazia da caravana, como j se disse ecomprovou,ummeiobastanteineficientedetransporte.38Aoscamelosdecargaedeselanesteseem cavalos finos montavam os mercadores ricos39 havia que acrescentar as camelas queforneciamleiteemarchavamsemfardo,comumpequenopesoouumviajantescostas,osequinosderaaberberequese iamvenderdooutro ladododeserto,algumasmulas,alguns jumentoseosdromedriosesbeltosevelozesdosnmadesembuadosesenhoresdossegredosdodeserto,pagosparaguiareprotegerascaravanas,eimprescindveisaoxitodaviagem.Poisbastavaumenganoderota e nadamarcava os caminhos, a no ser as estrelas para o extravio transformar-se emmorte.Tinha,almdisso,acaravanademarcharpermanentementeemarmas,sempresoboriscodeser atacada por nmades, se no lhes comprasse proteo e direito de passagem. Algumas tribosberberescontrolavamospontosdeparagem,aguadaerepouso,etambmvendiamaoscaravaneiroscamelos,parasubstituirosabatidosoumortosnopercurso.

    Eratodaumacidadequecaminhava.Aacordaraosomdastrombetaseamarcharmuitasvezesaorufardostambores.Podia-se,nodecursodajornada,interromp-laouno,paraasprecescoletivas,na direo deMeca. E em todos os momentos, ningum ignorava o que lhe cabia fazer. Algunsmorriamduranteo trajeto.Outrosdetinham-seacomerciarnumpontodeparagemeali ficavamesperadacaravanadevolta.Cadavezquearribavamaumacidadeouaumosis,eraumafestaparaagentedaterraeparaoscaravaneiros.

    Chegada a cfila ao Sael, espalhavam-se pelo pasto os dromedrios.Os condutores berberes ealgunsmercadoresarmavam tendasao ladodacidadeoudaaldeia sudanesa.Outrosabrigavam-senascabanasdebarroepalhadagenteda terra,quecedoaprendeuaservirscaravanasea lucrarcomelas.Nessesportossaelianoscobravam-setributos,prestavam-seserviosdecargaerecargadeanimais,construam-secolmadosparaaguardademercadorias,armazenavam-seescravosecereaisparaexportao,consertavam-secabrestos,selaseodres,comprava-seevendia-se.Nodeixavadeprosperar uma s das atividades ligadas ao recebimento, hospedagem e partida das caravanas.Almdisso, cada porto doSael e da savana transformava-se numa grande feira para os povos davizinhanaeatmesmodeterrasdistantes.Delessaam,cabeadasmulheresetambmnolombodeboisejumentos,osal,ocobreeosoutrosprodutosqueseiamtrocar,maisaosul,peloourodeBambuk,Bur,Gebaeoutrosstiosmineiros,pelasgomas,pelosorgo,pelosmilhetes,pelombar,pelo almscar, pelas peles e pelo marfim. E de tudo isso se carregavam, de torna-viagem, ascaravanas,alm,cadavezmais,deescravos.Poisademandaporelesaumentara.

    NametadedosculoIX,oscativoshomens,fossemmeninos,rapazolasouadultos,comearama

    termercadocertonoMagrebe.Nomaissedestinavamapenasslabutasagrcolas,aosserviosdecarrego, aos trabalhos nas minas e abertura de poos e canais de irrigao; passaram a serincorporadosemnmerocrescenteaosexrcitos.Comorompimentodaunidadepolticadomundomuulmano, a muitos dos novos detentores regionais de poder faltava o apoio da maioria dosgovernados, quenoos reconhecia como legtimospara conduzir os crentes.Umemir sunita queexercesseomandosobreumapopulaoxiitatinha,porisso,deescorar-seemtropasquelhefossempessoalmentefiisequenotivessemmaioresligaescomagentedaterra.Ningummelhorqueoescravoparacomp-las.

    NaIfrquia(aatualTunsia,acrescidadeumaporodonordestedaArgliaeoutradonoroestedaLbia),impusera-se,noinciodosculoIX,adinastiadosAglbidas.Sunitas,osseussucessivosemires,emboraprotestassemfidelidadeaocalifaabssida,construramumverdadeirosultanato.Sem

  • a sustentao dos sditos, que eram predominantemente carijitas, e descrente da fidelidade dosmilitaresrabes,comcujadisciplinanopodiatampoucocontar,oprimeirodessesemires,Ibrahimibn al-Aghlab, formou uma guarda pessoal com escravos adquiridos ainda jovens e enquadradosnum regimentoghulam, do qual saam os seus homens de confiana.H quem julgue que seriamnegros40 todosou, aomenos, boaparte deles.Ehquem issoponha emdvida e sustente queeramsakalibas,oueuropeus,provavelmenteeslavos.Paraquemassimpensa,snoltimoquarteldosculo,otetranetodeIbrahimibnal-Aghlab,IbrahimII,seapoiariaemcorposdetropasdeescravosindubitavelmentepretos.41

    TantoocalifaemBagdcomoumoutrocontemporneodeIbrahimII,AhmedibnTulun,owaliougovernador doEgito, contavamcom regimentosde infantaria compostos por escravosnegros.Eram to numerosos esses soldados, que somavam, por ocasio da morte de Ahmed, 45 mil.42MuitosforamadquiridosnaNbia.MastalvezumgrandenmeroviessedoSudoCentral,passandopelosmercadosdeZawila,noFezzan.43

    Poressapoca,Al-Yacube,44 referindo-se ao comrciode escravosnoFezzan, escreviaqueos

    berberesostraziamdoSudo,ondeeramvendidospelosreis,sempretextodeguerra.Quemsabeseno tinha emvista a regio do lagoChade, origemdo grosso damercadoria humana vendida noFezzan?Quasecemanosmaistarde,Al-Muhallabi45descreveriaosoberanodoszagauas,aosquaisalguns atribuema fundaodo reinodeCanem, comoumchefedivinoediriaque sua autoridadesobreossditoseratogrande,quepodiafazerescravoquemdentreelesquisesse.Oqueessestextospoderiamindicarqueosnmadesdodesertoeosmoradoresdososis tinhamdeixadodeternoataque de surpresa s populaes negras a principal fonte de cativos. Transferiram o nus deproduzirescravosaristocraciaguerreirasudanesa.

    Ao redordo lagoChade,nohaviaouronemmarfimemquantidadeexpressiva.Seo reinode

    Canem,46quealitomavacorpo,exportavaparaonortedafricaalmscar,pedra-ume,peles,ceraseplumasdeavestruz,bemcomosalenatroparaasterrasquelheficavamaosul,tinhanoescravoaprincipal mercadoria. Seus eunucos conseguiam alto preo. E suas mulheres eram famosas, nomundomuulmano, pela doura e pela beleza.Os escravos no serviam, entretanto, apenas comoartigodeexportao.AmaiorpartedoscapturadosficavaemCanem.47Eracomelesquesepagavamostributosesealcanavamaliados.Numaregiopoucopovoada,comoaqueseestendealestedolago Chade, a escravaria era indispensvel montagem dos exrcitos, ao cuidado dos cavalos,camelos,cabrasebois,aoamanhodaterraeaostrabalhosmaishumildes.

    Emboraoescravo,sobretudoovendidoparalonge,pudesseseruminfratorsocial,uminimigointernodorei(ouma)oupartedotributopagopelaspopulaesvassalas,eraquasesemprefrutodosequestro,daemboscada,doataquedesurpresaapequenosvilarejosedaguerra.Tantoparaadquirirtrabalhadoresesoldados,quantoparalograrmercadoriadetroca,dependiamosnobresdeCanemdaviolnciaarmada.Eali,comoemoutraspartesdafricaedomundo,aguerratornou-seummododeproduo.

    A sede de cativos favoreceu a expanso de Canem para o sul. Regularmente, as suas tropasatacavam os povoados agrcolas. Os mais prximos tiveram seus habitantes incorporados populaodoreino.Outros,maisapartados,acomodaram-sevassalagem,afimdeseprotegerdasgzuas. E produziam escravos, para no serem escravizados. Contra os quemoravam aindamaislonge,muitas vezes a centenas de quilmetros do centro de poder deCanem, que se desatava aatividadepredatriadasuacavalaria.

    A dependncia do escravo tornou ferozes as relaes de Canem com os vizinhos. Suas tropastinhamdeserengrossadasporescravos,earenovaodesuascavalariasbasedopoderdoreie

  • dos aristocratas processava-se conforme o nmero de cativos que fosse capaz de trocar porequinosnoEgitoenonortedafrica.Compravam-secavalosparaproduzirmaisescravos,eunseoutrosatravessavamodeserto.

    Porvoltade850,Zawila,noFezzan,tornou-seacapitaldeumadinastiaberbereibadita,aBanuKhittab,umafamliademercadoresquefizerafortunacomascaravanasdoSudoe,portanto,comotrfico negreiro. Zawila aprovisionava-se sobretudo no Canem e obtinha tamanhos lucros nessecomrcio,quecunhavamoedadeouropuro.

    Pelo Fezzan transitavam escravos para todos os quadrantes do mundo muulmano. Vindos doSudo,muitos seriam certamente vendidos ao Iraque, o centro do poder abssida.Domercado deescravosdeSamarra(cidadequesubstituiuporalgumtempoBagdcomoresidnciadocalifa),ficouumadescrioemAl-Yacube:umvastoquadrilterocortadoporvielas,nasquaissealinhavamcasastrreascommuitoscmodose lojas.48Poreledeve terpassadoboapartedosnegrosdestinadosregio de Baor (ou Basra), onde, nos sculos VII, VIII e IX, por vrias vezes se ergueram emarmasosescravoszanjes.

    A palavra rabe zanj aplica-se, no sentido estrito, aos nativos da frica ndica, da Somlia a

    Moambique. Desde muito (pelo menos, desde o incio de nossa era) eram eles embarcados, empequenosnmeros,nascostasdondicoelevadosparaaArbiaeparaaPrsia.OvolumedotrficodeveteraumentadonosculoVI,depoisqueossassnidasseapoderaramdoImenedoestreitodeBab-el-Mandeb. Cem anos depois, ao conquistar a Prsia, os rabes herdaram e ampliaram essecomrcio.

    Empregavam-seescravos,nahinterlndiadeBaor,paradrenarospntanossalinos,cobertosdevegetao alta, e transform-los em terras agricultveis. Numa rea particularmente insalubre, otrabalhodeviaserduro,repetitivoepenoso,envolvendogruposnumerososdeescravos,queviviamemcondiesmiserveis,tratadoscomogado.49Comoamaioriadosproprietriosdessasgrandesextensesdeterraeraabsentesta,50somavamquasenadaoscuidadoscomaescravariae,deresto,tambmcomoscamponeseslivresqueali trabalhavamecujasituaoempoucoeramelhorqueadosescravos.Nosesabecomprecisooqueunseoutrosnelasplantavam,apsrecuperarasterrasalagadas. Provavelmente arroz, cevada, sorgo, milhetes, cebola, meles. E provavelmente aquelagramneaque,vindadandia,por todaapartesevinculouescravido:acana,51pois,desdepelomenosofimdosculoVII,escravosnegrosacultivavamedelatiravamacaralibemperto,alestedobaixoTigre,naplanciedoKhuzistan,naPrsiaocidental.52

    Labutavam na BaixaMesopotmia dezenas e dezenas de milhares de escravos.Mal-abrigados,malvestidosemal-alimentados,adietarestringindo-seapunhadosdefarinha,semolinaetmaras.53Al-Tabarimencionagruposde500acincomilcativosatrabalharemnasterrasdeBatihaecolocal5milnoscamposdeAl-Ahwaz.54Tamanhaconcentraodeescravarianoseviraantesnahistria.Seboaparte delaprovinhadafrica ndica, daEtipia, daNbia e daSomlia, outraprovavelmentepercorreraoscaminhosdoSaara.

    Emboraporzanj seentendesseumbantodafricaOriental,o termopassoua ter sentidomaisamplo e depreciativo.55 A impreciso e a vaguidade com que os gegrafos rabes desenhavam africa e nela punham os grupos humanos fez com que a palavra se deslocasse para oeste e seconfundisseeamalgamassecomzagauaeSongai.56Tantoeraassim,queAl-Masudi,escrevendonosculoX,incluiuoszanjesentreospovosdoSudo.57Zanjetornou-sesinnimodenegro,viessedondeviesse.

    QualquerquefosseacomposiodamassaescravaquepenavanasproximidadesdeBaor,aspssimascondiesemqueeramantidaemcompletadiscordnciacomospreceitosdoIslameestimulavamarevoltaeabriamosouvidosspregaesmilenaristas.

  • Data de 689 (ou 690) a primeira rebelio de escravos zanjes na Baixa Mesopotmia. Foi ummovimento de reduzida importncia, facilmente debelado pelas tropas do califa. Uns cinco anosdepois, a revolta se reacenderia commais fora, os insurgentes s sendo dominados aps vriasbatalhas.Jem749(ou750),seriamnecessriosquatromilsoldadosparadobrarumanovarebelio,destafeitaemMossul,nonortedaMesopotmia.Cercadeumlustromaistarde,em765,umaoutrainsurreiofoiaindamaisviolenta.Masagrandeguerradoszanjessseverificariaumsculomaistarde, apartirde869.Eestendeu-seporquase15anos.58Essaguerra dos zanjes foimais queumlevantamentodeescravos.Foiumafitna,umaguerracivilentremoslins,umarevoluoantiabssida,tendopormetasubstituiracabeadoIslame,prnocomandodosfiisumnovocalifa.

    Tudo comeou com um certo Ali ibnMuhamed, um rabe que se dizia descendente direto deFtima,afilhadeMaom,edeseugenro,Ali.Noconsta,contudo,queelesetivessecomoumxiitaetalveztampoucofosseumcarijita,comoqueremalguns.59Poetaeprofessor,ps-seapregarcontrao sculo e contra os Abssidas, que qualificava de usurpadores. Tentou primeiro catequizar osbedunosparaa suadoutrina.Diantedomalogro,voltou-separaoszanjesdaBaixaMesopotmia.Afiou-lhes as mgoas e os ressentimentos, prometeu-lhes virar o mundo s avessas e advogou adecapitao dos senhores, por sistematicamente violarem as regras do islame que regiam aescravatura. Os escravos o seguiram com violento entusiasmo. E suas tropas incharam-se decamponeses pobres, bedunos irrequietos, deserdados de toda a sorte e soldados negros queabandonavamosexrcitosdocalifa.

    Durantedezanos,oszanjesacumularamvitrias.Deseusrefgiosnomeiodospntanoscobertosdecanios,elessaamparafustigarastropas,ascidadeseosportosdaBaixaMesopotmiaedosulda Prsia. Em 871, tomaram e saquearam Baor, queimando os navios ali fundeados, matandomilhares de rabes e reduzindo escravido as mulheres e as crianas. Tendo ocupado, alm deBaor,osportosdeUbullaeAbadan,osrevoltososcortaramoacessodeBagdeSamarraaomar.E desorganizaram por muito tempo o comrcio martimo naquela parte do golfo Prsico. Osmercadores estabelecidos nos portos, ou conheceram amorte nasmos dos insurretos, ou foramobrigadosafugir.60Eosquefugiramnoretornaram.

    Porvoltade879,mudouafortunadaguerra.Astropaszanjes,que,deincio,somavamuns50milhomens61 e deviam superar em nmero e entusiasmo as de seus adversrios, foram obrigadas apassar defensiva, quando se viram inferiorizadas em volume de soldados e em abundncia equalidadede armas.Esconderam-senos caniais dospntanos.Recorrerams tticas deguerrilha.Resistiramcomopuderam.Masforamperdendo,umapsoutro,osseusredutos.Em883,apsumcercodetrsanos,rendeu-seacapitalrebelde,Mukhtara.EacabeadeAliibnMuhamed,espetadanumpau,desfilouporBagd.

    DavidBrionDavis62adverte-noscontraatentaoromnticadefazerdessaguerradoszanjesummovimentoigualitrio,libertrioouantiescravagista.Oszanjessublevaram-secontraseussenhores,certo,mas,aofaz-lo,buscavamacimadetudoendireitarogovernodoDaral-Islam,devolv-lopureza dos quatro primeiros califas, colocar de novo sua frente um homem de Deus que eratambm descendente do Profeta. Como os xiitas e como os carijitas. Ao aderir guerra santa,deixaram de ser escravos, mas, caso vitoriosos, no aboliriam a escravatura. Mostraram issoclaramente, ao fazer e ter escravos.Numa sociedade quase semmquinas e com uma experinciamultissecular e solidificada de trabalho forado, s rarssimas pessoas seriam, alis, capazes deimaginarummundosemescravido.Estaera tidacomoumfatonatural,comopartedaordemdomundotalcomoconcebidaporDeus.Oqueosrebeldesqueriameramudardeestado,deixardeserescravosoureduzirsuasmisrias.Bonsislamitas,reclamavamocomportamentoqueoprprioDeusconsignaranoAlcorocomodevidoaosescravosesobreoqualMaomdeixaratantaspalavrasemseushadiths.Essamudanademododeprocedernomaisseaplicariaaeles,que tinhampassado,

  • graas fora das armas, para o grupo dos senhores,mas aos escravos que certamente viriam apossuirequelhesprometera,emsuapregao,IbnMuhamed.63

    Findaaguerra,mortosoureescravizadososrevoltosos,restouotrauma.Nasterrasmuulmanas,onegrodafricaOrientalficoucomfamadeinsubmisso,rebeldeetraioeiro.Suaimportao,poralgumtempo,foirestringidaecontrolada.Emcontrapartida,cresceuconsideravelmenteonmerodecativosdaoutramargemdoSaara.AtalpontoqueAl-Istakhri64afirmava,nasprimeirasdcadasdosculoX,queprovinhamdoSudoosescravosnegrosvendidosnospasesislmicos,acrescentandoqueamaioriapassavapelosmercadosdeZawila,noFezzan.

    Ao comear aquele sculo, alterou-se novamente o mapa poltico do Magrebe. Surgiu ali, a

    contrapor-se ao omada deCrdova e ao abssida deBagd, um novo califa,UbaydAllah, outrodescendente de Ftima eAli e tido como o esperadoMahdi, oMessias que livraria omundo dosopressores e do pecado. Em pouco tempo, esse imame xiita derrotou os Aglbidas, destruiu osultanatodeTaherteoutrospequenosestadosibaditaseconquistouosredutossufritas,entreosquaisSijilmessa. No conseguiu, porm, impor-se aos berberes zanatas, de confisso ibadita, quedominavamafranjaestepriaaonortedodesertoecontrolavamosportosdepartidadascaravanaspara Ga e o lago Chade. A preocupao de Ubayd Allah e da dinastia a que deu origem, osFatmidas, parecia concentrar-se na rota que ia de Sijilmessa a Audagoste e dali a Gana noitinerrio do ouro, do metal amarelo de que dependia a consecuo de seu projeto de domniouniversaldoIslame.65

    OsFatmidastambmtiveramtropasnegrasnafricadoNorte.Masapoiaram-sesobretudoemcontingentes eslavos. Era entre eles que recrutavam seus soldados de maior confiana. E, seadquiriamescravosnoSudoenosBlcs,capturavam-nostambmemgrandesnmeros,duranteasagressesdesuaaguerridaepoderosamarinhacontraascidadescosteirasdaItliaedaCatalunha.Smaistarde,depoisqueocalifaAl-Muizzli-DinAllahabandonouaIfrquia,parainstalar,em973,o governo no Egito, foi que os Fatmidas imitaram os Aglbidas. Para proteger-se de sditosmajoritaria-mentesunitas,fizeramdoabdsudan,oescravonegro,edomameluk,oex-escravodasestepes asiticas, os seus soldados de elite, os seus combatentes de confiana e membros de suaguardapessoal.

    OprepostoqueAl-MuizzdeixouaregeroMagrebe,oazenegueBulukkinibnZiriiniciadordeumanovadinastia,aprimeiradeorigemberbere,aZirada,nodeixariaigualmentedeprocurarapoioemtropasdeescravosnegros,afimdeproteger-sedaexcessivainflunciaedavolubilidadedas cabildas berberes emelhor podermediar suas constantes disputas. Esse escravo negro, eles oiriambuscarsobretudonoFezzan.

    OcomrciodeescravostrouxeaprosperidadeaZawila,Tadmekka,AnkalaseBilma(noKawar).Mais rica ainda, graas ao constante ir e vir das caravanas, tornou-se Sijilmessa, conforme otestemunhode IbnHawkal,66 que avisitou em951ou52.Suas trocas eram,no entanto, sobretudocomGana,SilaeoTacrur.E,semdesprezaroescravo,giravamemtornodoouro.

    EscreveIbnHawkal,semsurpresa,queviviaecomerciavaemSijilmessagentedeBaor,KufaeBagd.Carijitas,semdvida.Nosali,comoemoutrosentrepostosdasduasmargensdodeserto,estabeleceram-se, em busca do alto lucro que davam o ouro e o escravo, mercadores das maisdiversasorigenseconvicesibaditas, sobretudo,mas tambmjudeus, sufritas, sunitasexiitas,berberes,egpcios,andaluzes,rabesepersas,pessoasvindasdesdeasfronteirasdaEspanhaatoslimites da ndia muulmana e do Imen. Muitos deles instalaram-se, por conta prpria ou comoagentes deoutros, nosportos sudaneses.Algumas famlias dividiram-se, paramelhor controlar asduaspontasdotrfico:umaparteficavanascidadesdosuldoMagrebe,abastecendoeformandoascfilasdestinadasaoSudo;aoutra,noSaelenasavanasudanesa,adquiriaoouroeosescravose

  • organizavaasfieirasdedromedriosqueseguiamparaonorte.Osqueseestabeleceramporcontaprpria ao sul dodeserto eram, em suamaioria, negociantes compouco capital ou representandofirmas do tipo familiar. Gente que procurava seguir um aforisma atribudo ao profeta Maom:Assimcomoopicheoremdioparaasarnadoscamelos,oSudooremdioparaapobrezadoshomens.67Dequebuscavamenriquecerrapidamente,apartirdefundoslimitados,enoinspiravamgrandeconfianaentre seusparceiros,ho forte indciodequeno seencontrouumas letradecrditoaplicvelaumdessesmercadoresdooutroladodoSaara,emborafossemcorriqueirasnasuamargemsetentrional,emSijilmessaouGadams.68

    Esses comerciantes no se assentaram somente nos ns caravaneiros do sul do deserto, comoAudagosteeTadmekka.Fixaram-setambmnascidadesdoSudo.Tantoeraassim,queAl-Bakrieoconfirmamoutrosautoresmuulmanos,aodescreverSila,GaeacapitaldeGana,ressaltaquecadaumadelassedividiaemduaspartes,empraticamenteduascidades.Numaviviamosnaturaisdaterra,comseurei;naoutra,osislamitasisto,osnegociantesestrangeiros.69

    Nodeserto,eramsenhoresosnmadesberberes.Comaparte inferiordorostocobertaporumvu o litham dos rabes, os azenegues ou sanhajas controlavam, do alto dos camelos, oscaminhosdascfilas,ososiseospoosdaparteocidentaldoSaara.Cobravamdoscaravaneirosdireitosdepassagem,proteo,descansoeaguada,bemcomoosserviosquelhesprestavamcomoguiaseguardas.Ecomerciavamcomeles,poiseramdonosdasminasdeTagazaeAuliledeoutrosdepsitosdesal-gema.Comose issonobastasse,passaram,apartirdasegundametadedosculoIX,aregerAudagoste,umadasprincipaisportasdocomrciocomoSudo.Cemanosmaistarde,emborasobumsoberanoazenegue,boaparceladapopulaodacidadeprovinhadeumafaixaquecorresponderia atualmente Arglia oriental, Tunsia e ao oeste da Lbia, e nela se contavampessoasdevriasregiesdomundoislmico.Al-Bakri,dequemrecolhemosainformao,aenfeitae humaniza comesta nota: uma exmia cozinheira negra, especialista emdoces e guloseimasedessasescravashaviamuitas,alcanavaoaltopreode472gdeouroouatmais.70

    NosculoXI,osazenegues,unificadospelomovimentoalmorvida,71expandiram-separa fora

    do deserto. Armados de um sunismo maliquita severo, rigoroso, intransigente e militante, osberberesembuadosderrotarammilitarmenteoszanatas,quecontrolavamosportoscaravaneirosdafranja setentrionaldoSaara,ocuparamoMarrocos, conquistaramSijilmessa,voltarama submeterAudagoste(quehaviamperdidoparaos ibaditas), tomaramseusvriosoutrosentrepostosdoSael,ocuparamereunificaramaEspanhamuulmanaeacabaramporconstruirumimprio,doEbroaoSael,quetevecomoumadesuasmolasoourodoSudo.

    Sob os almorvidas, aumentaram a frequncia e o tamanho das caravanas. Novos roteirossomaram-se aos antigos e se fizeram preferidos. Ia-se direto de Gana serra Bafor, de onde secontinuava at oDara, com a escala principal emAzogui.Ou se calcava, durante doismeses, umcaminhoemlinharetadeGanaaSijilmessa,atravessandodesertosabsolutos,comatquatorzediasdemarchasemumspoodgua.Dessasnovasrotas,ademaiorfortunateriasidoaquepassavaporTagaza,ondesetrocavammercadoriastrazidasdoMagrebepelosalqueseiavenderaoSudo.Enosseexpandiuocomrciodoouro,mastambmodoescravoparaafricadoNorte.

    De escravos negros iriam povoar-se os canaviais e as plantaes de algodo do Suz e dosarredores de Ceuta eMarraquexe.72 Escravas negras compunham os harns e faziam os serviosdomsticosnospalcios egrandes casasdoMagrebeedaEspanha.Eescravosnegros combatiamnosexrcitosdoalmorvidaYusufeibnTashfin.

    EnquantoosalmorvidasempreendiamaguerrasantanoMarrocosenoSaaraOcidental,outrosguerreirosnmades,vindosdosdesertosdosuldoEgito,osbedunosdeBanuHilaleBanuSulaym,derramavam-sepelaLbia,comseusrebanhos.Nosreduziriamelesaquasenadaopoderzirada,

  • mastambmdesmontariamboapartedaredemercantilibadita.Nodesceram,porm,nomapaatoFezzan, que continuou a vender escravos ao Egito, por um roteiro que ligava Zawila ao Cairo,passandoporAwdjila.OsibaditassviriamaperderasupremacianoFezzandepoisqueoescravodeumirmodeSaladino,chamadoCaracuxe(ouQaraqush),invadiuarea,em1174,ederrocouadinastiadeBanuKhittab.

    Durante todosesses sculos, empouco sealteraram,e emgeralparapior, as relaesentreos

    senhores, os escravos negros e as sociedades para as quais eram levados.Mudaramas normasdealguns de seus ofcios e certos instrumentos com que trabalhavam. A maioria das situaescontinuou, entretanto, a mesma. Os anos, as dcadas e os sculos no modificavam o ritmo, afrequnciaeomododeracharlenha,debuscargua,deceifarmilhete,decolherazeitonas,delavarcavaloselimparcocheiras,deabrircanais,deremarbarcos,decortarsal-gemaecavarnasminas,paranosairdealgunsexemplos.

    O escravo vinha cada vez demais longe, pois o processo de transferncia do nus da capturareproduzia-se,emsequncia,degrupoemgrupo:paradeixardeservtima,passava-se,primeiro,apagar ao predador um tributo em cativos e, depois, a vender-lhe aqueles que, por seu turno, sepreavamaosvizinhos.Debaraoaopescoo,osescravos iam,namaioriadasvezes,mudandodedono,ao longodaviagem,eno raroestaduravameseseatanos,poispodiamficara trabalharpelocaminho.NoportodoSael,eram,parausarapalavrajusta,estabulados,esperadascaravanas,uma espera que podia ser longa, pois parece que apenas uma, como regra, saa por ano de cadacentrocomercialdosuldoMagrebe.

    Aps a chegada, uma caravana demoravameses a aparelhar-se.Muitos eram osmercadores, ecadaumdelesnecessitavadetempoparaconcluirosseusnegcios,juntaramercadoriaedispor-seapartir. Certamadrugada, tudo ajustado, saa a cfila. Commenos camelos do que viera, porque acarga que conduziam para o Magrebe ou o Egito era menor em volume. O ouro, por natureza,ocupava pouco espao. E os escravos caminhavam a p, ao lado dos dromedrios. Estes levavamguaemantimentosparaosmercadores,oscameleiroseoscativos.EoquetinhamobtidonoBiladal-Sudan:almen,gomas,cera,madeiras,couros,peles,plumasdeavestruz.Al-Sharishi,umescritorrabefalecidoem1222,afirmaqueumcomerciantequelevassetrintacamelosdeSijilmessaaGana,retornaria comapenas trsoudois.Num levaria gua enooutro iriamontado.Amercadoriaquetrouxeraemtrsdezenasdedromedriostransformara-se,portroca,emalgoquecabianumsacodeviagem.73

    Aosescravos,atravessiadodeserto,queduravaentredoisetrsmeses,74pareceriainterminvel.Exaustiva.Durssima.Maisquesofrida,dolorosa.Decomoseria,sficaramalgunspoucosrelatoscoxos.Masimaginoqueosescravos,amarradosunsaosoutrosporumacordaaopescoo,iriamap,provavelmentedescalos,de sandliasoucomospsprotegidosporesteirasouenroladosempanos,amarcharsobreaareiaeaspedrasquentes,anudezinterrompidaporumatangadiminuta,acabea talvez coberta por chapu ou gorro. Se faltava gua, eles seriam os primeiros a deixar debeber.Eosonhodafuga,que,nasterrasaosuldodeserto,sempreacalentaram,transformava-seempesadelo.Escapardacfilaequivaliamorte.

    Penso que boa parte dos donos procurava, durante a travessia, proteger a sua propriedade eabrandar,emconsequncia,osofrimentodosescravos.Humtestemunhodissoisolado,certo.Ummercador ibadita deWargla queixava-se, no sculoXI, domau negcio que era traficar comescravos. Estes o consumiam, antes, durante e aps a viagem, de trabalho e preocupao. Umaescravaemagrecerademais.Outraadoecera.Aquelefugira.Esteestavaatacadodeverme-da-guin.E,quandoacampavam,omercadornotinharepouso,acuidardeunseoutros.75Eramnaturaisessescuidados.Afinal,oescravo,almdeserobtidodooutro ladodoSaara,apsmuitasdificuldadese

  • repetidosperigos,erauminvestimentoarriscado,porquepodiafugiroumorreraqualquermomentoe deixar o investidor de mos abanando. E os escravos morriam em grande nmero. No Sael, espera da partida das caravanas. Durante o trajeto no deserto, de sede, fome, cansao, insolao,desidratao,doenasquejtraziamdentrodesiouacabavamporcontrair.

    H quem julgue que no eram muito elevadas, nos sculos IX e X, as margens de lucro docomrcionegreiro.76Tenhominhasdvidas.Sabemosque,numdeterminadomomento,umescravocustava,nosmercadosdoMagrebe,entre30e60dinaresouseja,entre141e283gdeouro.NoEgito,umarapariganegravaliauns40dinares,eumeunuco,maisde65.77Creioqueessespreosdeviam serbons edarumexcelenteou, aomenos, umbomganho, pois, caso contrrio, ningumenfrentariatantascanseiraseriscosparairbuscaretrazerescravos.Aindaquehouvessemercadoresdispostosainclu-losnascaravanas,comoumitemamais,desdequeporelespudessemobtermaisdoquecustavamant-losduranteatravessiadodeserto.78

    RalphA.Austen calculou emummilho,740mil os escravosnegrosque chegaramaomundoislmicopelasrotastransaarianas,entre650e1100.Eestimouemtrsmilamdiaanual,nosculoIX,eem8.700,nossculosXeXI.79Estamosdiantedenmeroshipotticosou,quandomuito,deaproximaes, a partir de dados escassos e imperfeitos.Talvez tenha sidomais.Talvez tenha sidomenos.Decadaportotransaarianoejsepropsquefossem,noSudo,somentemeiadzia80sairia,emcondiesnormais,apenasumagrandecaravanaporano.

    Quantosescravos,nossculosIXaXI,acomporiam?Nosabemos.Algumasoumuitascentenas.Em1353,IbnBatutajuntou-seaumacaravanadeTakeddaparaonorte,comcercade600escravas.81O nmero talvez fosse fora do comum, do contrrio no teria merecido a anotao do grandeviajante.Oqueelenodizquantosescravoshomens,sequeoshavia,completavamacarga.Osmercadosmaometanos tinham preferncia pormulheres para os serralhos e para os trabalhosdomsticos e agrcolas,masoshomens, sobretudoos castrados eosmeninos e rapazolasparaserem treinados no ofcio das armas, no deixariam de figurar nas cfilas. Se os homens notivessem certa expresso numrica em cada caravana, como explicar os regimentos inteiros desoldadosnegrosmantidospelosAglbidas,Tulunidas,Fatmidas eZiradas?Edeondevinhamosmagotesdeeunucosnegrosnascortesdossoberanosrabesenosharnsdospotentados?Sacortedo califa abssida, em Bagd, tinha, no comeo do sculo X, setemil castrados negros, alm dequatromilbrancos.82

    Osantigosautoresrabespassamporcimadotrficonegreirotransaarianoedacompraevenda

    deescravosnosmercados,porseremcoisastocorriqueirasetonaturais,quenolhesmereciamcuidado.Ainstituiodaescravaturasaparecenosescritosdosgegrafos,historiadores,viajantesecronistasislmicoscomoumaespciedevinheta,pararessaltaraimpropriedadedecertosprocessosde reduo ao cativeiro, descrever alguns usos pouco comuns dados aos escravos, enumerardistinesdeaptidoentreelesedestacarumaespecialqualidadequeesteouaquelepessoalmentetinha. Em compensao, desde cedomanifestou-se o interesse em transmitir conhecimentos sobrecomoconseguirmelhoresresultadoscomosescravos.BernardLewislembraque,jnosculoX,seproduziamtextoscomconselhosprticossobrecomoavaliar,nahoradacompra,oestadodesade,aresistnciaeotemperamentodocativo.EmencionaummdicocristodeBagd,IbnButlan,autordeumaespciedevademecumdomercadordeescravos.Paraguardas,elerecomendavaosnbioseosindianos;paraeunucos,domsticoseosserviosbrutos,oszanjesounegros;parasoldados,osturcos e os eslavos. Das mulheres zanjes, diz que no serviam para a cama, porm davam boasdanarinaseaguentavamostrabalhosmaispesados.83

    Via-segentedasmaisvariadasorigensnosmercadosdeescravosdomundomuulmano.Haviaum deles em cada cidade de alguma importncia. A escravaria permeava a vida urbana e a rural.

  • Escravospodiamservriosdosmaisimportantesfuncionriosdoestado,atmesmooprpriovizir.E escravos recolhiam os dejetos das casas. Nasmoradas dos poderosos e dos ricos, os escravosestavamemtodaparte,desdeoharm,comasconcubinas,asserviais,asamasdeleiteeoseunucos,ataentrada,comoporteiro.Assimcomoseadquiriamrapazes,comoobjetivodetrein-losparaosexrcitos, e eunucos, para instru-los nas tarefas de administrao do palcio e do estado,compravam-semoas,paraensin-lasatocarinstrumentosdemsica,acantareadanar.Nasruas,os escravos misturavam-se, nas mais diferentes tarefas, aos homens livres e aos libertos.