a norma oculta - marcos bagno
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Um livro legal.TRANSCRIPT
Ulll
Por que "norma"? Por que "culta"?
N o que diz respeito às questões lingüísticas, o conceito de rwrma dá ma:rgcm a muit a d. - , · 1 Nr n· . , . H. . d iscussao teonca . o _ 1.cwnano ouau;s a Língua Port..uguesa fica evidente a duplicidade de noções contida na palavra norma quando se trata de língua:
4 Rubrica: lingüística, gramática conjUilto dos preceitos estahelccidos na selcçã.o do que deve ou não ser usado numa certa língua, levando e.m conta fat0rcs lin-
1 Ru.sta ver, por exemp lo, as diversas e diferentes propostas de amílise do conceito de "norma''' que aparecem nos ensaios dos muitos autores (cswmgei:ros e brasileiros} reunidos nos lívros Norma língiii.5tíca (2001} e lingüística da nonna (2002} (ver referências completas 11.11 Bibliografia).
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güísticos e não lingüísticos, como tradição e valores socioculttll'ais (prestígio, elegância, estética etc.)
5 Rubrica: lingüística tudo o que é de uso corrente numa lfogua relativamente estabilizada pelas instituições sociais.
Como é possível, nwn mesmo campo de investigação~ llsar um únko termo para o que é "'preceito estabelecido" e para o que é "uso corrente"? Diversos autores~ realmeute, destacam o fato de que do mesmo substantivo nor·ma derivam dois adjetivos - norma l e normativo - usados com sentidos bem distintos. O normal é o que descreve a acepç,ão 5 do dicionário de Houaiss, enquanto a acepção 4 se refere ao normativo. O antropólogo canadense S. Aléong assim define cada um deles (2001.: 148):
Se se emende por normativo um ideal definido por j ufaos de valor e pela presença de um elemento de. reflexão consciente da parte das pessoas concemidas, o normal pode ser definido no sentido matemático de freqüência real dos comportamentos observados [g.rifos meus].
Descrição semelhante se encontra na-; reflexões do lingüista francês A. Rey (2001: 116):
Antes de toda tentativa de defiuil· a "norma", a consideração lexicológica mínima descobre por t rás do teimo dois conceitos. um atinente à obscrvai,.:ão, o outro à elabo~ raç.ão de um sistema de valores; um correspondeme a uma situação objetiva e estatís~ca, o outro a um feixe de intcnç,ões subjellvas~ A mesma pulavra, utilizada sem prccauçao, corresponde ao mesmo tempo à idéia de médfo: de freqüência, de tendência ueral-
c ~eote e habitualmente realizada. e à de conformidade a uma regra, de juí~o de valor, de finalidade designada.
Essas op~sições ficam muito claras quando aparecem dispostas lado a lado:
n01mal normativo
• uso coneme • real
• preceitos • ide.ai
• comportamento • observação • situação objetiva • média estatística • freqüência • tendêncin getal e habitual
• reflexão consciente • elaboração • intrnçõc,-s subjetivas • conformicladc • juízos de valor • finalidnde designada
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42 Essa duplicidade de sentidos registrada no diciouário, e de"tecr.acla por Aléong e Rey, aparece muito claramente no discurso das pessoas que íalam sobre a língua, seja no campo da iiw cs1 igaç,ão cier~tífica ou na abordagem leiga do tema. Para piorar a situação, a palavra norma quase 111.mca anda soziuha. Dona Norma, na maioria das vezes; é citada com nome e sobrenome, 5sto é, vem seguida de al.gum qua lificativo que tenta defini-la mais cspcciJi camcnte. Dos diversos adjetivos usados para qualificar a norma, o mais commn, certamente, é o adjetivo culta, e a expressão norma culta circula livreruente nos jornais, na televisão, na iuternet, nos livros didáticos, na fa la dos professores, nos rnrumais de redação das grandes empresas jornalísticas, nas gramáticas, nos textos científicos sobre língua etc. Mas o que é, afinal, essa norma culta? Ela se refere ao que é (ao normal, ao freqüente, ao habitual) ou ao que deveria ser (ao 11orrnativo., ao elaborado, à regra imposta)?
A maior difü:,'U ldade em lidar com a norma culta é precisamente o foto dela ter dupla personalidade, o fato de por trás desse rótulo - norma culJ,cJ. - se esconderem dois conceitos opostos no qne diz rcspeiw à língua que falamos e escrevemos. Vamos ver do que se trata.
Nomv. CULTA: t:M PHECONCEl'J'O .MILENAH
O primeiro desses conceitos é o que poderíamos chamar de do senso comum, tradicional º.u ideol~gico, e é a.qi1efo que tmn mais ampla c1rculaçao na sociedade. Na verdade, 1.ra1a-se
mu.ito mais de um preconcei/,() do que de um conceito propriamente dilo. E que p reconceilo seria esse? E o preconceito de que existe uma Úl~ca maneira :'certa '1 de falàr a língua, e que sen a a<~ele conjt.mto de regras e preceitos que a~arece estampado nos üvros chamados gramáúcas. Por sua vez1 essas gramó.l.icas se hnsea.riam, supostamente, num rlpo pecufüu· de atividade lingüística - exclusivamenle escrit.a - de um grupo muilo especial e sclcco de cidadãos. os grn.udcs estilistas da língua, que t.amhém cos~1-mam sc1· chan1ados de ''os clássicos'1 • luspirados nos usos que aparecem nas grandes obras lilerárias, sobretudo do passado, os gr'dliláticos tentam preservar esse::; usos rnmpondo com eles wn modelo de língua, um padrão a sc,i· ohscrvado ~or todo e qualq11er folimtc que deseje usar a líagua de maneira "correta ", "civilizaria" "elegante" etc. É esse modelo ql.le recebe. tra~ dicionalmente, o nome de rwrma culta. V~mos ver, por exemplo, como alguus importantes gramáticos definem o seu trabalho e. deutro dele, como usam o adjetivo culta. . 43
44 Os filólogos Celso Cunha (brasileiro) e Lindley Cintra (po1iugnês ) , ao apresentarem sua Nova gramática do português contemporâneo (1985: xiv), assim escrevem:
Trata-se cre uma lentativu de descrição do
português atual na sua forma culta, isto é, da língua c:omo a rfan utilizado os escritores portuguesrs, brasifoiros e africa nos rio Hornaut ismo para. cá.
Já Rocha Lima, cm sua Gramática normativa da Língua portuguesa (1.989: p. 6 \ declara:
FlUldmncmtam-i;e a 1> regra;; da Cl'amát.ic u
Normativa mi.s obrus dos grandes esc:rilores, ern cuja linguagem as classes iluso:adas pÕl'Jn o seu idcaJ de perfeição, porque nela é que ~e espelha o qne o uso idiomáti co c~tabili-
. zou e consagrou .
E vanildo Dechara não usa o adjetivo cuüa -prefr.re 1uu eufemismo: " língua exemplar", que define de modo eonfuso e pouco consisrente - , mas também se refere à .literatura. Assim, na rnab recente eclição de ,;ua :'1/odema gramática da 11.ngua portuguesa (1999: 52), ele explica:
A gramática normativa recomenda como se <leve falar e -t'screvcr segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e cücionaristas esclarncidos.
Mas q ucm é que diz se mu detenuinado escri tor .. é ou não é correto? E, pio r ai oda. quem <lefiue se este ou aq11eJe gramático é ou uão <>scln.rccido? O autor uão explica, o q11e pode Je,~ar ~ g~nte a pensar que é ele próprio quem vai an·ilil.Ul· a si m r,smo autuiidad~ ))asta11te para l\.;ta helecer esses ciitérios de das..'iifkaç.ão ...
Evitando falar de literatura, o c,onhecido compêndfo gramatical de Domin.cros Pasdwal Cegalla, Novíssimo gramática d°a lí.ngua portuguesa (1990: xix), é apresentado <lo seguin-te mudo: ·
Este livro pretende ser wnu Crnmátic:a Normativa da Língua Porluguesa, conforml' A falam e escrevem m; pessoas cultas na. íSpoca atual.
Muito beru. ~fas quem são essas pessoas cul-1 ? () . , . as. ue cn tenos o autor utilizou rara cla.s:;i-ficá-ln.s assim: onde, quando e com que
metodologia científica? Ele não esclarece, e o que vemos, consu ltando o livTo, é <.JUe os exemplos são tirados ou de sua própria irnarrinação
. o . 0 11, ma.is uma vez, de obras literá rias.
Todos esses autores .. porfanto. ao <lefiuir assim u lingua cu/la, ou.forma culta, ou norma r:alta, ocupam o lugar que lhes calH! numa. longuíssima fila de estudiosos da Ifugua que. há
46 quase 2.500 anos, associam üngua culta com escrita Lilerária. Essa é uma tradição que com eçou por vo1te do século 111 a .C., eutrc os filósofos e filólogos gregos, quando f oí criada o. própria disciplina batizada de gramática. Aliás, s.intoma1icamente. a palavra gramática, cm grego, significava , na oiigcm, "a ru:te de escrever~\ . Ao se interessar exclusivamente pelo. língua dos grandes escritores do pus:;ado, ao dcsprcziu- completamente a língua falada
d d " , . ., t.< j] , • ,. '" • (consi era a caotica· , · og1ca ·, estropia-da"), e tam.bém ao classificarem a mudança da lfogua ao longo do t empo de " n.úna'° ou "'deca<lênóa '\ os fm1dadores da disciplina grama tica I cometci·ain um eqlúvoco que poderíamos chamar de '"'pecado original y, dos estudos tradicionais sobre a língua. Foram eles e sem; seguidores, de fato, que plantaram as sementes do preconceito lingüístico, Cflle iam dru· tantos e tão am argos frntos ao longo dos séculos segui.nres. Foram eles que sacralizaram na cultura oc:idcuto.l o mito de que e..-xiste "erro" na língua, principalmente na língua falada . Por isso, at é · hoje~ as pessoas julgam a líng ua fala.da usando corno ÍlJstrumento de m edição a líugua escrita. literáiia mais consagrada: qualquer regra lingüística. que não esteja prese111c na grande literatura (e como são numerosas essas regras!) é imediatamente tachada de
'1en-o". É essa dout rina milenar que orienta as
observações de Dora Kramer! Daniel Piza e muita gente mais: uma crenç,a que teve lauto tempo para se cristalizar, para se petrificai·: que é praticamente in1possível convencer as pessoas do contrário - afinal, é uma crença m ais an1 iga do que os dogmas da própria religião cristã!
O uso da linguagem literá ria como material de investigação para a <lescriçõ,o/pres<.:riçõ.o de uma norma (de um conjumo de regras) podia se justificai·, na Autiguidade e na ldade Média, pelo fato da literatura ser praticrunentc a única forma de expressão da lfr1g11a escrita mais monitorada d1Lrante aqueles peiíodos hist<)ricos. Naquela época não tinha jomal nem revista, niio existiam m eios de cormmicaç,ão de massa, nem telefone, nem rádio: nem fax, nem inten1el.. ..
TamMm não tinha J'eito de re!ristrar a límma 17 17
falada para que fosse usada como material de estudo {isso só aconteceu depois da invenção do gravador, no século~"'<). O único modo de es-1 udnr a língua era por meio da cscri~ e a única escrita à qual se tinha acesso era a literária, que incluía não só as obras de ficçã.o, mas tamb ém as de filosofia e teologia. Mesmo as earrns pessoais eram escrito.:; sob a iníluência das regras da retórica cláss.i.ca, que exigiam floreios sintáticos e vocabulário ,:equimado.
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Hoje, no séc1Llo XXl, a opção pela literatura como "'m odelo"' de língua a ser ··imitado;' é, no míuirno, absurda. O impacto da liuguagern literária sobre uma sociedaJe como a brasile ira, por excrn1)lo, . é úllimo. Tradicionalmente. somos tun povo que lê pouco: nossas práticas sod.ais, mesmo entre as classe.s abastadas, sempre foram muito mais guiadas pelf.I o ralidade do que pela cultura livresca. Por outro lado, a literatura que, de fato, exerce poderosa inflnênda sobre a maioria dos brasileiros é a poesia da nossa rica música popular. ou seja, uma poesia oralizada. Somos muito mais influenciados p elas ':modas y. lingiüsticas da televisão e do rárlio e: em mcuor escala, da imprensa escrita do que pelo trabalho estilístico dos autores de ficção. Estes, por s ua vez, nos últimos cem auos, vêm se esforçando por incorporar em suas obras traços característicos da língua falaua no dia-a-dia da sociedade - é a arte iuuta11do a vida, e não o contrário, corno sempre se postulou cm questões de língua durante o lougo predomÍllio da teutativa de «Unitação dos clássicos:•. Além disso, diante da inegável evidência de que o pom1guês brasileiro e o portugu~s europeu j tt são d 11as lí uguas marcadnrncute distintas, não tem justificativa nenhuma, como fazem os clicionái·io;; e as gramáticas, dar exemplos de autores portugueses
(na maioria antigos! ) como modelos para a atividade Jjngüística dos Lrasilciros de hoje2 •
Também foi a parrir do traball10 dos gramáticos da Ar1ti€,ruidade que surgiu aquele conceito de "'língua"' com a definição que: no Prólogo, chamei de sobrena.lllral e quase esotérica. Ao longo dos séculos: os defensores dessa concepção tradicional isolaram a língua, retira ram cl.a da vida social, colocarnm numa redoma, onde deveria ser mantida intacta, "'pura" e preservada da "'contamü1ação" dos :•ignorm.1tct1 :' . Por causa de;:;;:;a atitude é que, até hoje, o professor de português ou: mais e:;pccialmente, o gramático é visto como uma esp écie de criatura iJ.1commn, um misto de sábio e mágico, q ue detém o conhecimento dos ruis-
~ Embora eu ren1111 e.scri ro que se rruta de um n "inegável evidência '', é bom salicmar que d a só é inegável para os ÜUgiiisras q ue, corno eu , acn:Ji tam que o portus uês brasileiro e o vor t11g11ês ew·opeu são de fato duas lmguas diferentes . Ex"i.~teIU autor1·s true não Sfüteutam essa opinião. No fonrlo, tudo depende do que cada pessoa entende por '"líugi111". Coúlo miuha concepção de língua vai a lérn <lo exclnsivwneme lingüístico e <lefine n língua como uma a[ivida<lc socia l, incorporando conceitos ligado~ U. identidade individuul e coletiv11., fica dHícil pa ra mim (e para muitos es111diosos brasileiros e estraugei~·os) mi o co11sider1u o por tuguês b rasilcil'O e o porrugucs europeu como duas línguas <listiuras - muico aparmradai;, é verdade, mas distintas.
... ' E " ,-
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50 térios dessa ''língua'", que existe fora do tempo e do espaç-0 - e é ei:;se ''saber misterioso'~ que gosto de chamar de '-norma ocultar-3
...
Esse é, então, o- primeiro conjnnt.o de idéias que se esco11de debaixo do rótulo norma culta: uma língua ideal, baseada (snpostamentc) no uso dos grandes escritores (do passado, de preferênda), um modelo abstrato (que não corresponde a nenhum conjunto real das regras que govem am a ati vidade lingiH~tica por pa rte dos falantes de Garnc e osso). Esse modelo de Jínrua ideal acaba criando uma grade o de c1itérios dicotômicos empregada para qua-lificar as varianf·cs liogi.üslicas: certo vs. errado, bonito vs. feio, elegante vs. grosseiro, civilizado os. selvagem e, é claro, culto vs. ignorante. Assi.at , o que não es tá nas gramáticas nã.o é 11onna culla: é '·'erro crasso·", é '·'língua de índjo", "português estropiado" ou, simplesmente, "não é por tuguês" . O próprio nome do idioma - português-, então, deixa de designar toda e qualquer mani fostação falada e escrita da língua por parte de todo e qualquer falante nativo, e passa a designar exclusivamente esse ideal abstra lo de língua certa .. essa
3 Tomo aqu i emprestada a P,xpressii.o ·· nonna oculta'' que. rue foi apri-,se.ntad11 pelo profi>~;;sor Ataliba de Casnlhu em convi-rsa iníonnal.
~norma oculta" que só tulS pouoos ilwninados conseguem apreender e dominar integralmente. Não é à to~ portanto, que tanta gente <liga que " não sabe portug uês"' ou que "português é (muito) difícil " .
Mas eu disse que havia um outro conjunto de noções contido no rótulo norma culta. E qual é ele? A outra definição que se dá ao rótulo norma culta se refere à linguagem concretamente empregada pelos cidadãos que per1 encem aos segmentos mais favorecidos da nossa população. Esta é a noção de norma culta que ve.rn sendo empregada cm dívcrsos empreendimentos científicos como, por exemplo, o Projeto NURC (Norma Urbana Culta), que desde o início dos anos 1970 vem docmnentando e analisando a linguagem efetivamente usa.eia pelos falantes cultos de cinco grandes cidades brasileiras (Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), sendo estes f alantes cnltos definidos por dois cri térios de base: esc:olaridade superior completa e antecedentes biográfico-culwra is urbnnos. Tra.ra-sc, portanto, de um conceito de norma culta, uru termo técnico estabelecido com. critérios rela tivamen te mais objetivos e de base empúi ca.
... .. ·
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O que as pesquisas cientfficas feitas no Brasil um; últimos trin ta anos têrn revelado é o seguinte: e.xis1e mna diforcnça IDuiro grande entre o que as pessoas em geral chamam de! norma culta, inspiradas ,na longa tradição gramatical norma.tivo-prescritiva, e o que os pesquisadores profissionais chamam de norrna culta, um termo técnico para designar formas lingüísticas que ex istem na realidade sodal. Essa diferença se reflete também na posnua que a pessoa assume diante dos fatos lingiüsticos. As pessoas que usam a expressão norma cuüa como um pré-conceito tentam encontrar em todas as manifestações lingliísticas, faladas e escritas, esse id<',al de língu~ esse pach-ão preestfil>elecido que, como urna espécie de lf'<i, todos teriam obrigaç.ão de conhecer e de respeitar. Como é virtuahnent.c impossível encontrar esse modelo abstrato na realicladr: tia vida social, os defensores dessa noção de norma cult:a consideram que praticamente todo.s as p essoas, de todas as classe!! sociais, falam ""errado.,,.
As pessoas ciuc, por outro lado, usam a expressão norma culta corno um conceito, como um termo t6cnico, agem exatrunente ao conà:ário: elas primeiro investigam a atividade lingüística dos falantes em suas interações sociais, para depois dizer o que é essa ativj<Jo.-
de, por meio de instrumental teórico consistente. Com base nessa investigação e nessa análise é que os lingüistas podem afumar, por exempJo, que o pronome cujo praticamente desapareceu da lfogua fo lada no Brasil , íncJusive da língua falada pelos brasileiros classificados de cultos; que o I uturo simples do indicativo (eu cantarei) também sohrevive apenas na escrita mais formal; que as regras tradicionajs de colocação pronominal são de uma tolice sem tamauho, e assim por diante.
Q UEM VAI FICAR OOM A "'AIXA?
Portanto, como é fácil perceber, estamos diante de um problema. Temos um único nome para designa!' coisas completamente diferentes. Se qu isermos resumir bem claramente essas diferenças conflitantes, podemos montar a seguinte tabela:
"' . i l ·
:5
i NORvlA CL1LfA?
• pii.·.i;critiva (normativa)
• "IÍJlgun" prescrita•nas gramáLicas nonuativas, iniipín1das ua literatura "clássíc.11 ~
• preconceito (baseia-se em mito.1 sem .fimdamerll.ação na realidade da língua cit'<l, ü1.1pirodos em mlJ<Íe/os fllY:aico.~ de organização sorialj
• doutrinária (compiic-se de cnur1dados cc.tegón'co.s, dogmá11'cos, 11ue mio admitem cor1testnção)
• pretensamente Lomogênt,.a
• elitista
• prc:;a à escrita liteníria, sepnríl rigith1mc11te a Ma da e.~rit11
• vene.rarla cumo urna vc,rdulle ete.n1n e in111táYcl (cultuada}
i NORMA CUUA ?
• descritiva (no~mal}
• atividade lini,oiiística dos "fal:mtt:$ cultos", com esoolruid11de superior completa e "i vêut:ia urh11m1
• 1:oac.ci lo {ten110 fHmico u.1ndo em invc.itigações empúicas sobre a líng11nl, co-relacio11ad(1.1 rom fatores sociai.1)
• científir.a (bru eia-.fc em hipóteses e teorias que de1.-em ser /estudas pa m, em seguidn, ser calidadas 011 iml(L/idada.s)
• C3~encia.lmcnH\ hcterogêuea
• ~f>l'ia.lrnentc vnri~vel
• :s.f': maniíest11 tanto na fo!11 quanto 11f1 escrit.a
• onjcit:a a tre11sfom1aç~ oo longo dv tempo
No meio desse t iroteio, como é que a gente fica? A quem vamos atribuir a faixa de J\.fiss Non na Culta? A situação é tão complicada, o terreno é tão movediço que, muitas vezes, até mesmo os próprios lingüistas, que geraJmente procuram ser o mais criteriosos possível, escorregrun no chão pantanoso e se deixam levar pelas ambigüidades contidas na expressão norma culta (ou por seus próprios preconceitos inconscientes) e passam sem perceber de um conjunto de idéias para o outro, do normal para o normativo e vice-versa, deixando o leitor cm dúvida sobr~ qual é, de fato, o fenômen o que está sendo tratado ali. Isso ocorre ainda mais freqüentemente quando estudiosos de outras áreas de conhecimento (história, sociologia, antropologia, educação, comunicação, filosofia etc.) escrevem sobre questões relacionadas à língua.
Exemplos dessa confusão generalizada podem ser encontrados nos materiais que o Ministério da Educação di.stribui para os candidatos do EN'EM (Exarne Nacional do Ensino Médio) e do Provão (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior).
Na "Cartilha" do ENEM 2003, que dá informações práticas às pessoas que vão se subme- 55
56 ter ao exame, aparece a seguinte pergm1ta: "O que o ENEM ava]ia?" Segundo a resposta. oferecida, o ENEM avalia "'cinco competências'\ e a primeira delas é: "Domin~tr a norma culta da Língua Portuguesa" - sem que seja dada nenlnuna. definição do que se entende por "no1n1a cult.a" . Esse modo de enw1ciar os objetivos do exame me parece particularmente desastroso, porque contradiz frontalmente as propostas mais progressistas da educação lingü.ística: estimular o trabalho com a multiplicidade de gêneros cliscursivos, conscientizar o aluno da rityueza da variação lingüística inerente a qualquer língua viva, fazê-lo recorihecer as instâncias adequadas de uso desta ou daquela variedade, mostrar que as formas '"certas" são o produto de uma seleção-exdusã.o que corresponde às seleções-exclusões que vigoram na orgaiúzação da sociedade etc. - propostas que o mesmo Ministério estampa nos seus Parâmetros Cu:LTiculares Nacionais ... Lll.11.itar o ENEM à avaUaçJio do "domínio da nmma culta'~ é recair no preconceito milenar de que só existe uma forma º'certa" de folar e de escrever4•
No caso do Provão~ o candidato à avaliação do ctrrso de Letras deve responder um ques-
• Acerca do EN°EM, ver a discmsão feíta por C. A. Faraco (2002: 55-58).
tionário que servirá ao Ministério de material para a elaboração de estatísticas e perfis socioeconómicos. Ora, a p ergunta de número 60 está assim redigida: ':O seu desempenho oral foi avaliado do ponto de vista do dí.aleto culto padrào?" Desastre dos desastres! Aparece aqui a falsa sinonímia culto = padrão e, para. piorar tudo, o uso da palavTa dialeto ... Como vou tentar mostrar mais adiante, pode até existir mn dialeto culto (na verdade, existem vários), mas nunca um "dialeto padrão'~.
Será que tem algum jeito da gente resolver isso? Felizmente, me parece que sim. Mas antes de propor mna solução, vamos discutir ainda um pouco mais o adjetivo culla ...
Cu 1,To t o Al\'fôN1Mo DE POPULAR?
Por mais que seja difícil para os estudiosos sérios das questões liugüísticas, é preciso reconhecer que, mesmo como termo técnico, como ferramenta de investigação cien1ifica, a expressão norrna culta revela mn longo processo de impregnação ideoJógica que t.em de ser criticado.
Para começar~ quando alguém diz que uma determinada "·norma", que uma determinada maneira de falar e de escrever é culta, automaticamente está deixando entender que to- - ;,7
•
das as demais maneiras de falar e de escrever não se1iam cultas - seriam, portanto, incultas. Essa postu~ra é asswnida sem rodeios por C. P. Luft em sua A1oderna grârnática brasileira, ao dj..zer que a língua apresenla dois "'níveis", o culto e o inculto, vinculando o adjetivo cuüo à presença da "leitura" muna comunidade (2002: 19). Esse par de antônimos acaba provocando a inevitável associação com todos os sentidos possíveis capazes de se abrigru·, no senso comwn, por trás da palavra inculto: ".rude", "tosco", "grosscil'o", "bronco", "selvage1n '\ '1i.nd vilizado", ""c1u", "ignaro", "ignorante" e por aí vai, e vai longe ...
Ora, do ponto de vista sociológico e antropológico. simplesmente não cxist.e nenhum ser lw.rnano que não esteja vinculado a uma cultura, q ue não tenha nascido dentro de um grupo social com seus valores, suas crnnças, seus hábitos, seus preconceitos, seus costumes, sua arte, suas técnicas, sua lúigua .. . A questão, como bem sabemos, é que no senso comum só se considera culto aquilo que vem de detemrinadas classes sociais1 as classes sociais privilegiadas. Quando dizemos que lUlla pessoa é m uito "culta'\ que tem muita ''cultura", estamos dizendo que ela acumulou conhecimentos de uma determinada modalidade de
cultura, wna en1J:c inuitas: no caso, a cultw·a baseada numa escrita canonizada, a cultura livresca., a cultura que é fruto da produção intelectual e artística valorizada pelas classes sociais favorecidas, detentoras do poder político e econôrnico5
.
E aqueles pesquisadores que têm utilizado o termo culto para qualificar um determinado grupo de falantes se deixaram levar por esses mesmos deslizamentos que nos fazem passar, ciclicarnente, de mn sentido v.nonnativo" de culto ( = cultuado por um determinado segmento social) pro·a um sentido "normal" de cultu ( = inserido numa dada cultura).
Por oul:ro lado, para Lentar designar as variedades lingüísticas relacionadas a folantes sem escolaridade superior <.;Ompleta, com pouca ou nenhuma escolarização, moradores da zona rur al ou das periferias empobrecidas das grandes cidades, aparece freqüentemente im liternttrra lingüística a classificação língua popula1; norma popular, variedades populares etc. Criase com isso uma distioção nítida entre norma culta e norma popular"'.
;; Ver a propósiro a discussíi.o feita por C. A. F'aroco
(2002: 3~). . ' ' " E o caso, por exemplo, de Luccbcs1 (2002).
... • ;:; ,, .. . -
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60 Novamente, podemos perguntar: culto e popular são antônimos? Ou, mais grave a:U1da, popular e inculto são sinônimos? Do ponto de vista da teoria lingüística, não - são apenas domínios de s~~r diferentes. Mas, do ponto de vista do seiiso comum, sim - são vistos como antônimos. Na definição de povo só entram as pessoas que não pertencem às classes sociais prhilegiadas? O p ovo brasileiro são todos os 175 milhões de pessoas que vivem aqui, ou "somente:1 os 1a5 milhões que têm pouco ou nenhum acesso aos bens sociais, à educa~:ão , à moradia, ao luzer, ao consumo, a uma alimentação digna etc. ?7 Ex:iste cultura sem povo? Existe povo inculto? .Tá vimos que não. Mas numa sociedade extremamente (e desiguaiment:e) dividida como a nossa, o adje-
7 Segundo dados do JllCE (www.ibge.net) , 78.4% dos hrnsile:irn,o; recebiam, e1n 1 'J99, menos de 10 salários mínimos. Isso perfazia um tornl de mais de 133 milhões de pessoas. Como a populaçiio restante, de aproxi.mE.da.mentc :l5 milhões, já constitui um mercado interno capaz dü altos fodices de consumo, nõo parece necessário, pela lúgica do c~'lpitalismo neoliberal aqui implantado a partir de 1994 (e que leva adiante as estruturas de exclusão implanta.da• desde a época colonial), ampliar esse mercado interno, pois o jií. existente, maior que a popula\:iiO lollli do Canadá, por c.'\'.emplo, dava cont.a de absorver a oform da indústria, do comércio e dos serviços. Ess11 polílic11 só tem servido parn aumcnta:r os índices de co1wentraçifo de renda no país.
tivo popular é muitas vezes u.sad.o com conotações pejorativas: depreciativas, para indicar algo de menor importância, de menor valor na escala de prestígio social. Tanto é assim que muitas palavras, quando vêm sozinhas, já indicam, au.tomaticameutc, alguma coisa que não tem a ver com o "povo": arte. Literatura, música ... Assim, sem qualifkativos, elas já dizem o que são: "'alta cultura" . O mes mo não acontc .. cc com art..c popalcu; lit..eratura popular; música popular, que precis1:1rn do qualificativo popular.
Essa visão extremamente preconceituosa de povo aparece belll estampada na reportagem de capa da rcvh;ta Veja (nº 172.), de 7/11/ 2001 ), assinacln por João Gabriel de Lima. Ali,. depoic; de elogiar os atuais defensores do dógmaü.smo gro.rnati.ca] que invadiram a mídia bra,sileira contemporânea, o autor passa a atacar as novas concepções de ensino de língua propostas por lingiüst.as e educadores profissionais e baseadas no reconhecimento da varia
ção lingüística como lLm dos eixos das práticas
pedagógicas:
Trata-se de 1w1 raciocínio t0rto, baseado nwn esquerdismo de meia-pataca.., que idealiza tudo o que é popular - inclusive a ignorância, como se ela. fosRe atributo, e não probleniu, do ''povo".
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Uru pouco antes, no mesmo parágrafo. o repói1er menciona as críti<.:as fei tas pelos lingüistas e educadores ao trabalho dos hoje bem conhecidos "cousultores gramaticais» {que cu chamo de comqnrlos paragramaticais) e escreve:
Elas ecoam o pensaillento de urna certa corrente relativista, que acha que os gramáticos preocupndu8 com t\8 regras da norma culta prestam um dc.sscr viço à lír1t,aua.
Temos assim, num só parágrafo , o uso preconceituoso, não-cicnt.ífico e dogmó.f ico de "1nor:ma culto.º", .iunto com a atrib1úçiio reado
nária de 41iguorância,, ao povo, ou seja~ o nãoreconbecimcnlo de wna cultura do povo, que se expressa também na língua. Mais wna vez, temos ele louvar a coragem de uma pessoa que não tem o meuor pudor de exibir muna revista de graudc Liragem sua absoluta desinformação acerca do assWlto 1 ratado, apoiando-se na suposta «autoridade" de pessoas totalmente dcsvi.rn .. ·u lo.das da pesqtúsa científica e da rcílexão pedagógica criteriosa .
Chamar a língua dos fa.Jantes plenamente escolaüau.los de norma r:ulta é tão problemático quanto usar esse rótulo para designar aquele ideal de língua abstrato, inspirado na literatura do passado e nas prescrições da
gramátic.a normativa. O que fazer então para evitar que esses problemas de termiJ1ologia passem do senso comum para as pesqu isa.5 científicas?
P ,rn1üo, PRESTfGIO E ESTIGMA: QUf: T..\L ASSIM?
Mesmo usando tcmiinologias que nprcscutam algumas diferenças entre si, as pessoas 'luc se dedicam a es tudar a n ossa r eali dade sociolingüística concordam cm identificar, nas relações entre língua e sociedade 110 Brasil , 11·ês '"coisas" bem distintas. Vamos ver que '"coisas" serão essa.:;:
1. A primeira é a "norma culta" dos prescririvistas, ligada à tTadiç.ão grnullltical normativa, que" tenta. preserv<u- um modelo de H11-gua ideal, inspirado na grande literatura do
passado.
2. A seovunda é a "norma culta" dos pP..squisadores, a língua re.alment e empregada uo dia-a-dia J>elus falantes que têm escoJm·idadc superior .completa, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urhano.
3. A terceira é a "norma popular", expressão usada tanto pelos tradidonalistas qunn
to pelos pesquisadores para designar um conjunto de variedades Lingüística.<> que apre-
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sentam dclen ninadas ctu-aclerísticas fonéticas, morfológicas, si aráticas, semânticas, lexicais elC. que uunca ou rouit0 raram ente apaL•ecem nu fala (e na escrita ) dos falautes "cultos". E;;m "'norma popular'\ como já vimos, p rx!domi uu nos umbicutes run us, oude o g ruu de escolarização é nulo 0 11 muito ba ixo. Predomina também nas periferias das cidades, para onde acorrem os moradores do campo expulsos pela crim inosa lradiç.ão latifundiúria deste país, responsável pelo su1·gimem o das favelas e dos cinn1rõt>,s de truséria que envolvern todas as zonas urbanas brasileiras (onde se concentra hoje a maior µarte tia nossa população!).
A primeira e a segm1da "coisa"', já sabemos, receb em um mesmo nom e mas são, essencialmeu1e, in1riusccamente, diferentes uma da outra. Se <juiscrmos levar adiante nossa discussõo, teremos de dar a cada tuna delas tun nome dif erentc.
Assim, para designar o m odelo ideal de língua "cena", muitos lingüistas têm proposto o termo norma-padrão. Ele serve muito bem, me parece, para designar algo que está fora e acima da atividade lingüística dos falantes. Embora algumas pessoas também usem as expressões lfrtgua-padrão, dialeto-padrão e variedade-prldrão, eu prefiro ficar com norma-
padrão, porque, se é ideal, se não corresponde integralmente a nenhum conjunto concreto de manifestações lingüísticas regulru.·es e freqüentes, não pode ser chamada de "língua", nem de "'dialeto'\ nem de "variedade.,, . É nma norma, no sentido mais jurí:dico do termo: "lei'\ v. ditame'' , "regra compulsória'' 'imposta c:le cima para baixo, decretada por pessoas e instituições q ue tenta1n regrar, regular e regula mentar o uso da língua. E é também um padrão: um modelo artificial, a rbitrário, constnúdo segundo critérios de bom-gosto vinculados a uma determina da classe social, a um determinado período histórico e mun determinado lugar.
Quanto à segunda "coisa '", que os pesquisadores chamam de "norma culta", também já discutimos o problema da contaminação de senti.do a partir do senso comtLm. Se quisermos evitar a intervenção dessa noção estereotipada e excludente de "cultura~, precisamos encontrar um modo alternativo de designa r as variedades lingüístícas faladas pelos cida dãos c·om alta escolarização e vivênda urbana. Eu proponho a qui a palavra prestígio, muito c•mpregada na literatura sociológica. Afinal, como nessa problemática toda o que está reulmente em jogo não é a líugua, propriamente
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66 dita, mas sim o prestigio social dos folantes, <leixo aqui a sugestão para que a gente passe a tratar de variedade.ç de prestígio ou .variedades presligiadas. É bom ressaltar, desde logo, que o prestígio ~ocial das variedades lingüístic.as das dassr,s favorecidas, dominantes, não tem nada a ver com qualidades intrínsecas, com algum tipo de o:be)eza'' , ':lógica" Oll "elegâucia." inerente e na.t:w·al a essas maneiras de falar a língua. Esse presrígio social é uma co.ns1J:ução ideológica: por razões históricas, políticas, oconômicas é que determinadas classes sociais - e não outras - assumiram o poder, grulharam prestigio ou, 1;nelhor, atribuírnm prestígio a si mesmas. E aquilo que o sociólogo francr.s Pierre Bourdicu chama de "ato de magia social". Num passe de mágica, as oiigens históricas desse prestígio são esquecidas (Ilourdicu chama isso de "amnésia da gênese") e aquilo que vem do alto, das classes dominautes, é considerado indiscutivelmente bom, bonito, digno de ser imitado, e passa a er cousiderado como um valor natural, in
contestável, como se suas qualidades brotassem da própria natureza das coisas desde o início das eras ... No mesmo movimento, tudo o que não se encaixa nesse modelo é co.nsiderndo "feio", "indigno", "c01rompido'', :•jnculto" . Aliás, a. palavra prestigio, em lat.Un, sig-
nificava exatamente isso: "ilusão atribuída a causas sobrenaturais ou a sortilégios; rnagia; artifício usado para seduzir, para encantar; fascinação, atraç.ão, encanto, magia".
Por· fim, como designar a "norma popular", sem incorrer no perigo de identificar popular com inculto, errado, estropiado ... ? Na literatura sociolingüística, é comum opor prestigio a estigma. O estigma, cm termos sociológicos, é urn julgamento extremrunente negativo lançado pelos grupos sociais dominantes sobre os grupos subalternos e oprimidos ~, por extensão, sobre tudo o <fUe caracteriza seu modo de ser. sua cu.ltm·a e, obviamente; sua língua ... Assim; para designar as vaiiedades lingüisticas que caracterizam os grupos sociais dcspres1jgiados do Brasil (ou seja, a maioria da nossa população), sugiro que a. gente passe a empregar a expressão variedades estigmatizada..ç.
Acredito, sinceramente, que com esta nova terminologia podemos designar com mais precisão os três fenômenos lingüísticos que queremos estudar; sem perigo de confusãoª:
ij E" ºd . ~v1 entemente, trata-se de uma proposta t1mrunol6gwa, sempre sujeita. a crítica e reformulação. Pode ser que alguém veja nos adjetivos ''presti•dudas" e .. . . l " !:' osogmat1z11c as· os mesmos problernns de imprcgnnçilo
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(º'7 ),
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1. norma-padrão 2. variedades prestigiadas 3. variedades estigmatizadas
VA.RlEUADES l'HESTIGL.\DAS
VARJEOADRS ESTlGMATIZADAS
Como é possível notar pelo desenho, o ~restí-. 0 e-u· "'"'ª atribuídos a uma variedade gio ou .:i o,.._. .
lio,.,füstica é uma questão de mais e de men?s. En~e as variedades mais prestigiadas e as vanedadcs mais estigmatizadas, há toda wna zona
d " ·ul · ,. e "poidcoló!ric;a que t ento denunciar no uso e e ta . . ,
l "~ Nu mumeotu, porém, não me ocorr~lll ad1e~v~s pu u.r d . · " tt · ·' a opo!D'"'º e possam dcsib'lJaI de mo u mws o cu o : :;:trt: estes dois conjuntos de variedades. As sugestoes
seríi.o muito bem-vindas!
intermediária, onde as iufluêocias de wnas sobre as outras são intensas e constantes. Isso é mais do que natural muna sociedade complexa como a brasileira contemporânea.
Quanto à norma-padrão, e]a fica lá no alto, na estratosfera. É verdade que ela exerce uma influência simbólica mui1o forte sohre o Ílna ginário de todos os brasileiros, mas é uma influência que vai dinúnuindo progressivamente, quanto mais a gente se afasta das camadas sociais privilegiadas. A nonna-padrão está estreitamente ligada à escola, ao ensino formal, e como no Brasil o acesso à educação é mais um elemento que contril)lú para a nossa triste posição de campeões da desigualdade social, é fácil imaginar que a norma-padrão tradicional tem poder de influência. praticamente nu lo sobre os falantes das variedades mais estigmatizadas. Assim, mais wna vez, somos obrigados a reconhecer o caráter esotérico da norma-padrão: só se aproximam dela (mas nem por isso a usam integralmente) os brasileiros que con-11eguiram passar pelo funil da educação formal e conseguiram percorrer até o fim todo o trajeto de sua formação escolar.
l~mbora a classificação das vnriedndcs seja in1-portante para a análise e o entendimento da 1·omple.xidade sociolingi.üstica do Brasil, nw1-
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ca é demais repetir que nas relações entre língua e poder o que realmente pesa é o prestígio ou a falta de prestígio sociaJ do fal11nte, e que esse critério muitas vezes prepondera sobre os elementos csttitamente lingiüsticos presentes em seu modo de falar. Assim é que as formas t.u fàlasltu falaste, tal como preconizadas pela uor:ma-paclrão, ocorrem na atividade lingiüstica de falantes socialmente desprestigiados, gente pobre e sem muita escolai·ização, da região Norte, por exemplo. Já as formas tu
fala/tu f alou. , se;m as marcas morfológicas p1·escritas pela gramática norma1j vil., ocorrem fartamente na atividade lingilíst ica ele falantes de clac;se média e alta da região Sul, com cscola-1idade superior completa e plenamente inseridos na cultm·a letrada. Isso mostra que as relações entre língua e sociedade são muito mais complexas do que a maioria das pessoas
. pensa e que é e1'.-tremamcnte redutor (além de inútil e injusto) tentar compreendê-las usando como critérios únicos os rótulos tradicionais de ""cerLO'' e ~errado" ou os conceitos pouco consistentes de «culto" e "'popular "' .