a perspectiva do valor e o valor das perspectivas
TRANSCRIPT
Joatildeo Pereira da Silva Neto
A Perspectiva do Valor e O Valor das Perspectivas
Dissertation
Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissen-schaften
JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO
A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DAS PERSPECTIVAS
FERNUNIVERSITAumlTHAGEN
JOAtildeO PEREIRA DA SILVA NETO
A PERSPECTIVA DO VALOR
E O VALOR DAS PERSPECTIVAS
FORTALEZA
2019
Tese apresentada como requisito parcial agrave
obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia junto
ao programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia
Instituto de Cultura e Arte - ICA
Universidade Federal do Cearaacute ndash UFC
Aacuterea de Concentraccedilatildeo Conhecimento e
Linguagem
A PERSPECTIVA DO VALOR E O VALOR DASPERSPECTIVAS
DISSERTATION
zur Erlangung
des akademischen Grades eines Doktors der Philosophie (Dr phil) im Rahmen des FILORED-Doppelpromotionsprogramms
der Fakultaumlt fuumlr Kultur- und Sozialwissenschaften der FernUniversitaumlt in Hagen sowie der Universidade Federal do Cearaacute Instituto de Cultura e Arte
Programa de Poacutes-graduacatildeo em Filosofiacutea
vorgelegt von
Joatildeo Pereira da Silva Neto
aus Fortaleza
Betreuer Prof Dr Thomas Soumlren Hoffmann (Hagen)Prof Dr Fernando R de Moraes Barros (Fortaleza)
Promotionsfach Philosophie
RESUMO
A presente tese tem por objetivo uma investigaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas acerca da
verdade e do conhecimento tomando como eixos de investigaccedilatildeo o problema dos valores e
a relaccedilatildeo entre a perspectiva e a vida no pensamento nietzschiano Esta investigaccedilatildeo que
partindo dos textos de juventude nietzschianos chega ateacute seus uacuteltimos escritos poacutestumos
acompanha o entrelaccedilamento das conclusotildees nietzschianas acerca da concepccedilatildeo tradicional
de verdade e o niilismo Nesta leitura o conhecimento aparece como uma forma de
atividade humana que passa por uma reavaliaccedilatildeo a partir das conclusotildees nietzschianas
acerca da necessidade de se superar o niilismo Para Nietzsche a concepccedilatildeo de
conhecimento tradicional estaria fundada em valores que satildeo produzidos a partir da
necessidade de conservaccedilatildeo da espeacutecie humana entendidos pelo filoacutesofo como
ineficientes para sobrepujar o processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores Assim a menos que
a ciecircncia e a filosofia se libertassem das amarras de uma concepccedilatildeo de verdade e
conhecimento que culminaria na imobilizaccedilatildeo da vontade todo procedimento filosoacutefico e
cientiacutefico estaria fadado a uma corrupccedilatildeo inevitaacutevel de seus fundamentos e valor O
perspectivismo eacute entendido aqui como a caracteriacutestica fundamental de uma forma de se
fazer filosofia que afastando-se do dogmatismo da filosofia tradicional e da ciecircncia
aproxima-se de uma forma de arte Desta maneira o perspectivismo nietzschiano teria na
criaccedilatildeo dos valores seu objeto fundamental Assim com base na pressuposiccedilatildeo de uma
futura filosofia dos valores que tem seus fundamentos na compreensatildeo da perspectiva
como atitude comprometida com valores de fortalecimento da vida o filoacutesofo procura
contrapor-se agrave hegemonia da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento que tem seus
fundamentos em valores de decadecircncia
Palavras chave Verdade conhecimento perspectiva valor perspectivismo
ABSTRACT
The aim of this thesis is to investigate Nietzschersquos conceptions about truth and knowledge
taking the problem of values and the relation between perspective and life in Nietzschersquos
thinking as research axes This research starting from the Nietzschean texts of youth
reaches its last posthumous writings accompanying the interweaving of the Nietzschean
conclusions about the traditional conception of truth and nihilism In this reading
knowledge appears as a form of human activity that undergoes a reappraisal based on the
Nietzschean conclusions about the need to overcome nihilism For Nietzsche the
conception of traditional knowledge would be based on values that are produced from the
need of conservation of the human species that are understood by the philosopher as
inefficient to overcome the value devaluation process Thus unless science and philosophy
were freed from the bonds of a conception of truth and knowledge that would culminate in
the immobilization of the will every philosophical and scientific procedure would be
doomed to an unavoidable corruption of its foundations and value Perspectivism is
understood here as the fundamental characteristic of a way of making philosophy which
moving away from the dogmatism of traditional philosophy and science approaches itself
of an art form In this way the Nietzschean perspectivism would have in the creation of
values its fundamental object Thus based on the presupposition of a future philosophy of
values which has its foundations in the understanding of perspective as an attitude
committed to life-strengthening values the philosopher seeks to opposite itself to the
hegemony of the traditional conception of knowledge which has its foundations in values
of decadence
Keywords Truth knowledge perspective value perspectivism
Iacutendice
Introduccedilatildeo10
1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia21
11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica28
12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia38
13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica52
14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana68
2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral74
21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira78
22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade92
23 O pathos da verdade ou a verdade como valor108
24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana113
25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo124
3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor143
31 O niilismo como crise dos valores morais146
32 Os niilismos nietzschianos150
33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade162
34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo177
35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar192
36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo203
4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas215
41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade219
42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores228
43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas238
44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva245
45 Perspectivismo nietzschiano ou o conhecimento como criaccedilatildeo250
5 Conclusatildeo262
6 BIBLIOGRAFIA274
Notas sobre as citaccedilotildees da obra de Nietzsche
Para a citaccedilatildeo das obras de Nietzsche adotamos a convenccedilatildeo proposta pela ediccedilatildeo
criacutetica das obras completas do filoacutesofo em NIETZSCHE Saumlmtliche Werke Kritische
Studienausgabe in 15 Baumlnden editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari BerlimNew
York Walter de Gruyter 1988 doravante referida como KSA Os tiacutetulos das obras do autor
satildeo dados entre parecircnteses por meio de siglas em alematildeo seguidas de siglas em portuguecircs
para facilitar a leitura das referecircncias
GTNT ndash Die Geburt der Tragoumldie O Nascimento da Trageacutedia (1872)
PHGFT ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen A Filosofia na EacutepocaTraacutegica dos Gregos (1873)
WLVM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinne Sobre Verdade eMentira no Sentido Extra-moral (1873)
MAMHDH ndash Menschliches Allzumenschliches Band I Humano Demasiado HumanoVol I (1878)
MA ndash Morgenroumlte Aurora (18801881)
FWGC ndash Die froumlhliche Wissenschaft A Gaia Ciecircncia (188182 e 1886)
ZaZA ndash Also sprach Zarathustra Assim Falou Zaratustra (188385)
JGBABM ndash Jenseits von Gut und Boumlse Para Aleacutem de Bem e Mal (188586)
GMGM ndash Zur Genealogie der Moral Para a Genealogia da Moral (1887)
GDCI ndash Goumltzen-Daumlmmerung Crepuacutesculo dos Iacutedolos (1888)
ACAC ndash Der Antichrist O Anticristo (1888)
EHEH ndash Ecce Homo (1888)
As referecircncias seratildeo as usuais em estudos sobre Nietzsche 1) Na maioria delas o
algarismo araacutebico apoacutes o signo ldquosectrdquo indicaraacute o aforismo ou seccedilatildeo da obra 2) Na maioria
delas o algarismo romano anterior ao araacutebico remeteraacute ao livro podendo indicar um
capiacutetulo ou uma dissertaccedilatildeo a depender da forma escolhida por Nietzsche para a divisatildeo
da obra citada 3) Para as referecircncias aos fragmentos poacutestumos nos casos de citaccedilotildees da
ediccedilatildeo de estudo ColliMontinari o algarismo romano indicaraacute o volume da ediccedilatildeo KSA e
o araacutebico o nuacutemero do fragmento Quando ao inveacutes da ediccedilatildeo KSA for utilizada outra
ediccedilatildeo para a citaccedilatildeo dos fragmentos poacutestumos seraacute utilizada a notaccedilatildeo (NFFP ano do
fragmento grupo [nuacutemero do fragmento]) Exceccedilatildeo feita as citaccedilotildees referentes a partir da
ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas de juventude de Nietzsche organizadas por
METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a sigla BAW seguida do nuacutemero
do volume em algarismos hindu-araacutebicos e da indicaccedilatildeo da paacutegina em algarismos hindu-
araacutebicos Sempre que disponiacutevel seguimos as traduccedilotildees para o portuguecircs das obras de
Nietzsche jaacute publicadas a maioria por Paulo Ceacutesar de Sousa para a Editora Companhia das
Letras agraves quais fazemos referecircncia tambeacutem por meio de siglas Outras traduccedilotildees utilizadas
satildeo as seguintes
Obras incompletas Trad e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho seleccedilatildeo de textos de
Geacuterard Lebrun posfaacutecio de Antocircnio Candido Satildeo Paulo Abril Cultural 2ordf ed 1979 (col
Os Pensadores)
O nascimento da trageacutedia Trad de Jacob Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras
1999
Assim falou Zaratustra Trad de Maacuterio da Silva Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1995
Crepuacutesculo dos Iacutedolos Trad de Marco Antocircnio Casanova Rio de Janeiro Relume-
Dumaraacute 2000
O Anticristo Trad de David Jardim Juacutenior Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016
Para a citaccedilatildeo dos poacutestumos foram utilizadas as traduccedilotildees
Fragmentos poacutestumos 1885-1887 Vol VI Traduccedilatildeo de Marco Antocircnio Casanova editora
Forense Universitaacuteria Rio de Janeiro 2013
Fragmentos do espoacutelio junho de 1882 a inverno de 18831884 Traduccedilatildeo de Flaacutevio R
Kothe Editora UNB Brasiacutelia 2004
Fragmentos poacutestumos 1885-1889 2ordf Edicioacuten Edicioacuten espantildeola dirigida por Diego
Saacutenchez Meca traduccioacuten introduccioacuten y notas de Juan Luis Vermal y Joan B Llinares
editora Editorial Technos Madrid 2008
0
Introduccedilatildeo
O perspectivismo nietzschiano eacute frequentemente relacionado agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute
fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo Esta sentenccedila que apesar de natildeo ocorrer em nenhuma obra
publicada reuacutene concisatildeo e profundidade tiacutepicas da filosofia nietzschiana aparece
recorrentemente entre os poacutestumos de 1885-1886 Uma apariccedilatildeo importante desta
expressatildeo se daacute em (NFFP 1885-1886 2[131]) onde apoacutes refletir acerca da possibilidade
de se comparar a ldquoantiacutetese do mundo que veneramos e do mundo que vivemos que mdash
somosrdquo Nietzsche conclui que apenas restariam duas saiacutedas para o homem ldquoeliminar ou
bem nossas veneraccedilotildees ou bem a noacutes mesmosrdquo
Abdicar da alta estima que dedicamos agrave realidade nessa leitura significa tomar a
realidade como aquilo que ela de fato eacute apenas um resultado de nossa avaliaccedilatildeo Assim o
reconhecimento do processo de avaliaccedilatildeo aparece para Nietzsche como a aceitaccedilatildeo de que
nossa proacutepria realidade depende da avaliaccedilatildeo em um niacutevel fundamental como uma ilusatildeo
que podemos reconhecer como tal mas da qual natildeo poderiacuteamos nos desvencilhar Por outro
lado para o filoacutesofo a compreensatildeo da realidade como dependente de nossa forma de
compreender estaacute diretamente ligada agrave compreensatildeo do valor desta mesma realidade assim
como de nossa capacidade de criar uma realidade a partir de nossas necessidades Ou seja
na leitura do filoacutesofo dado que o mundo eacute o produto de nossa avaliaccedilatildeo nossa veneraccedilatildeo
em nossa consideraccedilatildeo da realidade nos restaria abdicar da alta estima que dedicamos agrave
nossa avaliaccedilatildeo ou abdicar de nossa existecircncia o que seria exatamente o niilismo1 Nesta
leitura a abdicaccedilatildeo de si mesmo como ponto de valoraccedilatildeo de veneraccedilatildeo seria a forma
mais elevada de desvalorizaccedilatildeo dos valores necessaacuterios agrave vida comumente identificados
1 A etimologia nos diz que ldquoniilismordquo (Nihilismus em alematildeo) proveacutem do latim nihil que significaexatamente nada De onde se poderia deduzir que o niilismo diz respeito a afirmaccedilatildeo do nada ou em certosentido a negaccedilatildeo de tudo O significado do termo niilismo na atualidade estaacute ligado de forma irredutiacutevel agravefilosofia nietzschiana No entanto a compreensatildeo nietzschiana mesma do niilismo eacute profundamente marcadapela literatura russa de quem a maioria dos comentadores acredita que o autor teria tomado o termo Sabe-seque Dostoievski a quem Nietzsche leu bastante utilizou o termo e mais do que isso caracterizou muito desua obra pela permanecircncia de uma certa ausecircncia de Deus ausecircncia que em Nietzsche estaraacute ligada de formainextrincaacutevel com o niilismo No entanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que autiliza para caracterizar um de seus personagens em seu romance Pais e Filhos
1
pelo filoacutesofo como o caraacuteter aparente e perspectivo da proacutepria realidade Assim o filoacutesofo
conclui que a ausecircncia de fatos seria decorrecircncia da necessidade de avaliar
A reflexatildeo nietzschiana acerca da inexistecircncia de fatos puros como realidades em
si independentes de uma estrutura de avaliaccedilatildeo se torna uma constante no periacuteodo em que
Nietzsche elabora A Gaia Ciecircncia e Assim Falava Zaratustra2 Nesse sentido podemos
afirmar que a criacutetica aos fatos como consideraccedilatildeo contraacuteria ao caraacuteter interpretativo da
realidade se reconhece como uma ideia fundamental presente na filosofia nietzschiana em
um momento decisivo da evoluccedilatildeo do pensamento desse autor
Natildeo por acaso a apariccedilatildeo mais amplamente reconhecida desta expressatildeo eacute aquela
do fragmento poacutestumo 7[60] de final de 1886 e iniacutecio de 1887 em que Nietzsche diz
ldquoContra o positivismo que permanece no fenocircmeno lsquoapenas haacute fatosrsquo eu diria natildeo precisamente
natildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildeesrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) A compreensatildeo fundamental da
realidade como interpretaccedilatildeo traccedilo comum ao desenvolvimento da concepccedilatildeo nietzschiana
de conhecimento e que como os poacutestumos testemunham estaacute ligada agrave expressatildeo ldquonatildeo haacute
fatosrdquo eacute entendida aqui como a afirmaccedilatildeo de que natildeo haacute verdades fundamentais e que
portanto toda aproximaccedilatildeo do mundo apenas pode ser feita por meio de uma consideraccedilatildeo
perspectivista
A curiosa contraposiccedilatildeo nietzschiana entre fatos e hipoacuteteses contraposiccedilatildeo que estaacute
presente na citaccedilatildeo e que nela anuncia algo de fundamental acerca de seu posicionamento
com relaccedilatildeo ao conhecimento e sua relaccedilatildeo com a realidade revela um traccedilo fundamental
de seu pensamento que aparece jaacute em seus escritos de juventude e que em sua filosofia
madura eacute apresentada na forma da adoccedilatildeo de hipoacuteteses como fundamentos de sua
filosofia3 De maneira geral eacute possiacutevel compreender esta abordagem por meio da adoccedilatildeo
de hipoacuteteses como concepccedilotildees fundamentais em sua filosofia como um traccedilo caracteriacutestico
2 A expressatildeo ldquonatildeo haacute fatosrdquo volta a aparecer com um sentido aproximado do sentido expresso no fragmentocitado anteriormente no fragmento poacutestumo 2[175] em que Nietzsche reflete acerca da superioridade dascausas internas em relaccedilatildeo agraves causas externas para a nossa interpretaccedilatildeo da realidade3 Com isso apenas queremos dizer que diferentemente do que ocorre em uma concepccedilatildeo filosoacuteficaconvencional em que seus conceitos principais devem ser tomados de forma dogmaacutetica os conceitosfundamentais da filosofia nietzschiana seja o conceito de Vontade de Potecircncia seja o conceito de eternoretorno seja ateacute mesmo o proacuteprio perspectivismo assumem uma expressatildeo que se diferencia daapresentaccedilatildeo de uma verdade dogmaacutetica Por exemplo o conceito nietzschiano de Vontade de Potecircncia eacuteapresentado como hipoacutetese no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal o eterno retorno por meio de umavisatildeo em Zaratustra e de uma suposiccedilatildeo no aforismo 341 de A Gaia Ciecircncia o proacuteprio perspectivismo eacuteapresentado no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia como ldquoo perspectivismo como eu o entendordquo
2
de sua filosofia perspectivista Ou seja ao compreender e interpretar a realidade a seu
modo e ao estar ciente desta determinaccedilatildeo fundamental de suas ideias o filoacutesofo teria
adotado certas suposiccedilotildees como fundamento de suas concepccedilotildees mais iacutentimas posto que
percebe natildeo poder ir aleacutem de uma apresentaccedilatildeo de verdades com caraacuteter bastante limitado
na medida em que seu pensamento se fundamenta apenas em avaliaccedilotildees especiacuteficas
Nesse sentido quando o filoacutesofo afirma na continuaccedilatildeo do fragmento citado ldquona
medida em que a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute cognosciacutevel mas ele eacute
interpretaacutevel de outro modo natildeo tem um sentido por traacutes de si senatildeo inumeraacuteveis
sentidosrdquo (NFFP 1886-1887 7[60]) e finaliza com a palavra ldquoperspectivismordquo indicaria
que esta interpretaccedilatildeo deveria ser entendida como sendo uma espeacutecie de abordagem
perspectiva do conhecimento Com isso um problema fundamental se apresenta Seria
possiacutevel para Nietzsche efetuar a criacutetica das concepccedilotildees que rejeita sendo que sua filosofia
natildeo se entende como uma descriccedilatildeo de fatos mas apenas como mais uma interpretaccedilatildeo
Compreendemos o perspectivismo4 nietzschiano5 como um tema privilegiado da
obra deste filoacutesofo Apesar desta concepccedilatildeo natildeo haver recebido em sua obra o
desenvolvimento e acabamento que se esperaria de uma concepccedilatildeo fundamental Ateacute
mesmo por conta desta falta de um acabamento da compreensatildeo nietzschiana do
perspectivismo esta concepccedilatildeo conta em sua investigaccedilatildeo com dificuldades interpretativas
bastante especiacuteficas Entre estas dificuldades o problema de sua validade enquanto uma
teoria do conhecimento6 segundo a qual a tese perspectivista seria povoada de problemas
4 Por perspectivismo nietzschiano compreendemos uma noccedilatildeo vinculada agrave compreensatildeo do filoacutesofo de quenatildeo haacute fatos apenas interpretaccedilotildees Esta compreensatildeo relaciona-se a uma reflexatildeo acerca do caraacuteterperspectivo determinado de todo pretenso conhecimento sendo por isso mesmo frequentemente referidoentre os comentaacuterios da filosofia nietzschiana como uma espeacutecie de teoria do conhecimento Assim segundoCox por exemplo ldquo(hellip) o termo foi usado jaacute em 1906 pelos editores da Vontade de poder para descrever ateoria do conhecimento de Nietzsche e posteriormente foi retomado por Vaihinger em 1911 por Heideggerem 1930 por Morgan em 1940 por Danto na deacutecada de 1960 e em quase todos os comentaristas europeus eanglo-americano desde entatildeordquo (COX 1999 paacuteg 110) 5 Concepccedilatildeo inacabada que pertence de maneira necessaacuteria ao pensamento de maturidade de Nietzsche masque tem suas raiacutezes em suas primeiras incursotildees sobre o problema da verdade e do conhecimento6 O aparente paradoxo do perspectivismo se coloca na forma de sua autorreferecircncia que eacute expresso assim emA Companion to Epistemology no verbete Perspectivism ldquoEacute Frequentemente afirmado que o perspectivismose autorrefuta Se a tese de que todos os pontos de vista satildeo interpretaccedilotildees eacute verdadeira entatildeo argumenta-sehaacute ao menos um ponto de vista que natildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Se por outro lado a tese eacute ela mesma umainterpretaccedilatildeo entatildeo natildeo haacute razatildeo para acreditar que ela eacute verdadeira e se segue novamente que nem todoponto de vista eacute uma interpretaccedilatildeordquo O conjunto de questotildees que se extrai da anaacutelise deste problemafundamental tem sido o tema de extensos trabalhos de autores como Maudemarie Clark Heidegger Derrida eKaufmann soacute para citar alguns comentadores da filosofia nietzschiana Mais ainda Reginster em Theparadox of Perspectivism assinala que os uacuteltimos vinte anos da pesquisa nietzschiana realizados em liacutengua
3
teoacutericos com base nos quais se costuma considerar agrave posiccedilatildeo nietzschiana acerca do
conhecimento como inescusavelmente paradoxal
Este problema pode ser resumido por meio da consideraccedilatildeo do modo como a
negaccedilatildeo da verdade proacutepria do perspectivismo nietzschiano parece condenar a proacutepria
consideraccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano como verdadeiro Neste sentido o
perspectivismo nietzschiano apareceria como uma versatildeo atualizada do paradoxo do
mentiroso Pois parece decorrer dos proacuteprios princiacutepios do perspectivismo nietzschiano
segundo os quais todas as formulaccedilotildees teoacutericas devem ser tomadas como meras
interpretaccedilotildees desprovidas de validade que o proacuteprio perspectivismo natildeo pode ter
validade Partindo desse tipo de princiacutepio como seria possiacutevel para Nietzsche validar suas
proacuteprias afirmaccedilotildees acerca da moral assim como da natureza constitutiva do mundo e da
proacutepria verdade se o filoacutesofo a partir de seu proacuteprio julgamento em relaccedilatildeo agraves teorias
filosoacuteficas e cientiacuteficas atribui a esse gecircnero de afirmaccedilotildees o caraacuteter meramente
interpretativo
Ao confrontar este problema Nehamas defende a reivindicaccedilatildeo nietzschiana pela
superioridade de suas posiccedilotildees com base em sua interpretaccedilatildeo do perspectivismo
nietzschiano como a negaccedilatildeo de que todas as afirmaccedilotildees seriam iguais Nesse sentido na
medida em que uma interpretaccedilatildeo se mostre mais afirmativa da vida em um determinado
contexto segundo a interpretaccedilatildeo de Nehamas esta interpretaccedilatildeo se tornaria uma
interpretaccedilatildeo superior Pois para o comentador o perspectivismo nietzschiano natildeo requer
que todas as perspectivas sejam igualmente vaacutelidas mas apenas que cada perspectiva
mereccedila consideraccedilatildeo
A posiccedilatildeo de Nehamas oferece uma forte resistecircncia agrave afirmaccedilatildeo da
autorreferencialidade7 na medida em que em sua leitura a proacutepria consideraccedilatildeo do
perspectivismo como sendo uma releitura do paradoxo do mentiroso seria errocircnea Dado
que esta identificaccedilatildeo decorreria de uma interpretaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo nietzschiana de que
todas as afirmaccedilotildees satildeo interpretaccedilotildees com a afirmaccedilatildeo de que toda interpretaccedilatildeo eacute falsa o
que nunca foi a intenccedilatildeo de Nietzsche De fato a tese nietzschiana implica apenas a
negaccedilatildeo de que qualquer afirmaccedilatildeo seja verdadeira e natildeo de que alguma interpretaccedilatildeo seja
inglesa foram dominados pelo paradoxo do perspectivismo7 A ideia de que o perspectivismo refutar-se-ia a si mesmo quando aplicado ao perspectivismo sua proacutepriaproibiccedilatildeo de que hajam verdades
4
falsa Assim em sua exposiccedilatildeo do problema do perspectivismo como sendo autorreferente
o autor oferece a seguinte exposiccedilatildeo
Suponhamos que caracterizemos o perspectivismo nietzschiano como a tese (P)de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo Agora nos parece que se (P) eacuteverdadeira e se toda afirmaccedilatildeo eacute de fato uma interpretaccedilatildeo isto se aplicaria agraveproacutepria (P) Neste caso (P) tambeacutem torna-se uma interpretaccedilatildeo Mas se isto eacuteassim entatildeo nem toda afirmaccedilatildeo precisa ser uma interpretaccedilatildeo e (P) parecehaver se refutado (NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)
Esta exposiccedilatildeo do problema da autorreferencialidade natildeo ofereceria no entender de
Nehamas um problema especial para a posiccedilatildeo nietzschiana Isto porque o comentador
consegue oferecer uma distinccedilatildeo fundamental entre ser uma interpretaccedilatildeo e ser uma
afirmaccedilatildeo falsa Apenas com base em uma concepccedilatildeo de verdade que entende toda
afirmaccedilatildeo como possuindo um valor determinado se poderia pensar que admitir que uma
posiccedilatildeo natildeo eacute verdadeira significa afirmar sua falsidade Por outro lado a exposiccedilatildeo de
Nehamas do problema que acreditamos refletir fielmente a concepccedilatildeo nietzschiana nos
potildee diante da possibilidade de considerar uma afirmaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo
mantendo indeterminado seu valor de verdade
Ainda assim nosso argumento pode mostrar que (P) eacute verdadeiramente falsaapenas se assumirmos que sendo uma interpretaccedilatildeo (P) pode ser falsa e queportanto ela eacute de fato falsa Esta uacuteltima conclusatildeo verdadeiramente refutaria (P)pois se a tese de que toda afirmaccedilatildeo eacute uma interpretaccedilatildeo eacute de fato falsa entatildeo defato algumas afirmaccedilotildees verdadeiramente natildeo satildeo interpretaccedilotildees Mas aconclusatildeo de que (P) eacute de fato falsa natildeo se segue do fato de que (P) eacute ela mesmauma interpretaccedilatildeo Isto eacute alcanccedilado apenas por meio de uma inferecircncia invaacutelidaatraveacutes da equalizaccedilatildeo como acima do fato de que (P) eacute uma interpretaccedilatildeo eportanto possivelmente falsa com o fato de ela eacute verdadeiramente falsa(NEHAMAS 1999 Paacuteg 66)
Por outro lado a afirmaccedilatildeo nietzschiana de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade
decorre de uma falsificaccedilatildeo da realidade comporta outras dificuldades Segundo
Maudemarie Clark a defesa de Nehamas da posiccedilatildeo nietzschiana pretende mais do que o
autor admite Para a autora a posiccedilatildeo que Nehamas defende de que Nietzsche faz de sua
filosofia uma obra literaacuteria e que portanto ldquocomo todo outro escritor Nietzsche queria
5
que sua audiecircncia aceitasse suas afirmaccedilotildeesrdquo (NEHAMAS 1999 Paacuteg 33) compromete a
defesa da filosofia nietzschiana com a tese da falsificaccedilatildeo
Segundo Clark se Nietzsche tem motivos para querer que sua audiecircncia aceite suas
posiccedilotildees isso apenas seria possiacutevel porque o autor acredita que sua interpretaccedilatildeo seria a
verdadeira e que todas as outras interpretaccedilotildees seriam uma versatildeo falsificada de uma
ldquorealidade verdadeirardquo Assim a aceitaccedilatildeo da posiccedilatildeo de Nehamas para Clark nos
compromete com uma versatildeo do perspectivismo que o torna vulneraacutevel agraves proacuteprias
objeccedilotildees contra as quais o autor queria defendecirc-lo (CLARK 1990 Paacuteg 158) Ao assumir
que haacute um todo que incorpora todas as interpretaccedilotildees Nehamas assumiria que existe uma
verdade completa da qual as perspectivas seriam apenas uma imagem necessariamente
falsa Se este eacute o caso no entanto ele estaacute assumindo a posiccedilatildeo fundamentalista com a
qual ele discordou de que existem algumas visotildees que natildeo satildeo interpretaccedilotildees natildeo apenas
aquelas que podem existir
Em sua leitura do perspectivismo Clark acredita achar uma soluccedilatildeo para o
problema do conflito entre a negaccedilatildeo da existecircncia de uma posiccedilatildeo verdadeira e o valor de
verdade dessa negaccedilatildeo ela mesma Sua soluccedilatildeo consistiria na interpretaccedilatildeo da posiccedilatildeo
nietzschiana como sendo a defesa de que eacute possiacutevel afirmar verdadeiramente sem que com
isso se pretenda afirmar algo que seja verdadeiro para todos Segundo essa interpretaccedilatildeo a
tese da falsificaccedilatildeo ou seja a ideia de que o conhecimento eacute limitado e falsificado pela
perspectiva de onde ele parte eacute uma caracteriacutestica da filosofia nietzschiana de juventude
que o autor posteriormente abandona com o amadurecimento de sua concepccedilatildeo
perspectivista
Minha soluccedilatildeo para estes problemas tecircm sido remover a tese dafalsificaccedilatildeo para as obras nietzschianas de juventude e interpretar ametaacutefora da perspectiva como um instrumento retoacuterico desenvolvidopara ajudar-nos a superar a desvalorizaccedilatildeo do conhecimento humanoenvolvida na tese da falsificaccedilatildeo De acordo com minha interpretaccedilatildeo ocaraacuteter perspectivo do conhecimento eacute perfeitamente compatiacutevel comalgumas interpretaccedilotildees sendo verdadeiras e ela natildeo introduz nenhumparadoxo ou autorreferecircncia O Perspectivismo eacute obviamente umaverdade perspectiva mas isso natildeo implica que qualquer afirmaccedilatildeoconcorrente seja tambeacutem verdadeira (CLARK 1990 Paacuteg 158)
6
Com isso a autora acredita oferecer uma interpretaccedilatildeo do perspectivismo que natildeo
seria suscetiacutevel de nenhuma das criacuteticas que Nehamas aponta nem das criacuteticas que ela
mesma aponta na interpretaccedilatildeo de Nehamas Sua interpretaccedilatildeo da filosofia nietzschiana
pressupotildee que seu perspectivismo em sua apariccedilatildeo na obra de maturidade do filoacutesofo natildeo
recai na acusaccedilatildeo do conhecimento como falsificaccedilatildeo da realidade Em outras palavras
Clark sustenta que Nietzsche natildeo tem nenhum problema em fazer afirmaccedilotildees verdadeiras
e ao mesmo tempo natildeo dogmaacuteticas mas que se espera que sejam verdadeiras para todos
No entanto esta posiccedilatildeo parece colidir frontalmente com uma extensa quantidade de
testemunho textual8 Na medida em que passagens da obra de maturidade nietzschiana
refletem as mesmas ideias de sua filosofia de juventude a suposiccedilatildeo de Clark de que em
sua filosofia perspectivista Nietzsche rejeita a tese da falsificaccedilatildeo enfrenta seacuterias
dificuldades
O perspectivismo nietzschiano se ergue como uma estrateacutegia de combate contra
todo antropomorfismo da ciecircncia e nesse sentido ele reduz o que nos distancia das outras
espeacutecies e que permanece na tradiccedilatildeo como nosso elemento identificador agrave condiccedilatildeo de
mero oacutergatildeo natural Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela
exposiccedilatildeo do caraacuteter perspectivo de nossas verdades universais Nietzsche opotildee-se agrave
pretensatildeo de atingir a verdade absoluta por meio de um instrumento necessariamente
relativo Pretensatildeo que o filoacutesofo pensa representada pelas filosofias racionalistas que lhe
antecedem
Segundo esta compreensatildeo o caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da
realidade repousaria sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o
filoacutesofo realiza pensando opor assim a toda a tradiccedilatildeo racionalista que segundo
Nietzsche teria preferido voltar-se contra os oacutergatildeos dos sentidos na constataccedilatildeo dos
limites da consciecircncia Sua anaacutelise de tudo que ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro
submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo desdobramento do mundo em substacircncia
inteligiacutevel a anaacutelise de sua origem e desenvolvimento Atraveacutes de uma anaacutelise naturalista
da consciecircncia ele expotildee o processo de formaccedilatildeo da linguagem como a forma de
8 Leia-se sobretudo o aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal e oaforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral que seratildeo comentados mais a frente
7
apreender uma realidade sempre em mudanccedila atraveacutes de metaacuteforas que lhe confiram um
caraacuteter fixo e comunicaacutevel
A soluccedilatildeo do problema da autorreferencialidade apresentado por Nehamas nos
parece maios adequado aos objetivos deste trabalho Assim natildeo voltaremos a discutir este
problema nos capiacutetulos a seguir No entanto reconhecemos que o problema envolvido na
autorreferencialidade do perspectivismo nietzschiano tem rendido diversos comentaacuterios
importantes tornando-se assim um panorama privilegiado na investigaccedilatildeo da filosofia
nietzschiana Maudemarie Clark parece concordar com esta interpretaccedilatildeo quando afirma
que o perspectivismo nietzschiano seria sua doutrina mais amplamente aceita aleacutem de ser
a contribuiccedilatildeo mais oacutebvia do pensamento nietzschiano para o cenaacuterio intelectual da
atualidade
ldquoperspectivismordquo eacute a afirmaccedilatildeo de que todo conhecimento eacute perspectivoNietzsche tambeacutem caracteriza valores como perspectivos mas eu devoestar preocupada aqui apenas com seu perspectivismo concernente aoconhecimento O uacuteltimo constitui sua contribuiccedilatildeo mais oacutebvia ao cenaacuteriointelectual da atualidade a doutrina nietzschiana mais amplamente aceita9
(CLARK 1995 Paacuteg 127)
Poreacutem seria necessaacuterio acrescentar que o perspectivismo nietzschiano natildeo se limita
a uma compreensatildeo do conhecimento como algo perspectivo mas diz respeito mais
propriamente ao problema dos valores A negaccedilatildeo nietzschiana da concepccedilatildeo tradicional de
verdade parte do pressuposto de que esta teria se tornado algo intimamente relacionado
aos valores e que com estes ela perde seu sentido na tradiccedilatildeo filosoacutefica ocidental Uma
investigaccedilatildeo do perspectivismo que ignora este aspecto partindo de uma interpretaccedilatildeo do
perspectivismo nietzschiano apenas do ponto de vista de sua validade enquanto teoria
epistemoloacutegica perde de vista uma interpretaccedilatildeo fundamental do pensamento nietzschiano
e torna tambeacutem menos rica de sentido essa importante contribuiccedilatildeo nietzschiana para o
cenaacuterio filosoacutefico contemporacircneo
9 No original ldquorsquoPerspectivismrsquo is the claim that all knowledge is perspectival Nietzsche also characterizesvalues as perspectival but I shall be concerned here only with his Perspectivism regarding knowledge Thelatter constitutes his most obvious contribution to the current intellectual scene the most widely acceptedNietzschean doctrinerdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) As traduccedilotildees de obras de comentadores seratildeo todas denossa responsabilidade exceto menccedilatildeo em contraacuterio
8
Ao se colocar em jogo o valor das perspetivas portanto natildeo se pode reduzir esta
questatildeo a uma investigaccedilatildeo da validade do perspectivismo como tese acerca do
conhecimento Como se o que estivesse em jogo fosse apenas a avaliaccedilatildeo do valor de
nossas formulaccedilotildees acerca da realidade Pelo contraacuterio desde que se compreende que estas
formulaccedilotildees natildeo se relacionam com algo como a verdade em sentido absoluto o valor das
perspectivas em relaccedilatildeo a uma suposta realidade em si estaacute desde sempre posto por
Nietzsche como sendo nenhum Assim considerada a questatildeo do ponto de vista de nossa
estimaccedilatildeo de nossa valoraccedilatildeo mesma de uma suposta realidade verdadeira como algo
superior entatildeo temos que o valor das perspectivas natildeo se potildee de forma independente
daquele que avalia
O perspectivismo nietzschiano neste sentido natildeo se reduz a uma anaacutelise do valor
de verdade das perspectivas Mais do que isso o que se potildee em questatildeo eacute o valor que
atribuiacutemos agraves nossas estimaccedilotildees em certo sentido ao valor que atribuiacutemos agrave proacutepria
verdade quando nos recusamos a compreender o proacuteprio homem como ponto de vista da
avaliaccedilatildeo Desta maneira se o filoacutesofo compreende que a realidade eacute um produto de nossa
avaliaccedilatildeo e que apenas seria possiacutevel para noacutes abdicar da avaliaccedilatildeo ou de noacutes mesmos de
nossa existecircncia10 entatildeo o processo de percepccedilatildeo da realidade que eacute inerente agrave sua
consideraccedilatildeo perspectiva do conhecimento estaacute estreitamente ligada com o papel do
homem enquanto criador de valor
Nesta leitura os problemas na investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano
notadamente a questatildeo de sua autorreferecircncia podem ser entendidos como decorrentes de
se tratar este tema meramente do ponto de vista de uma anaacutelise do conhecimento e da
verdade sobretudo por se tratar de um autor reconhecido por sua atitude criacutetica em relaccedilatildeo
a ambos Mais do que pensarmos se o perspectivismo nietzschiano pode ser verdadeiro
sem se contradizer eacute preciso pensar que o tipo de ldquovalor de verdaderdquo que o filoacutesofo parece
assumir no interior de sua concepccedilatildeo perspectivista se potildee em um niacutevel superior de
reflexatildeo ao proacuteprio valor que a tradiccedilatildeo atribui agrave verdade
Com isso a afirmaccedilatildeo de Clark de que ldquoNietzsche tambeacutem caracteriza valores
como perspectivosrdquo (CLARK 1995 paacuteg 127) ganha uma nova dimensatildeo e importacircncia
Pois a partir dessa reflexatildeo podemos pensar que sua menccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o
10 O que para Nietzsche seria exatamente niilismo conforme (NFFP 1885-1886 2[131])
9
perspectivismo e o valor pode apontar para a compreensatildeo de que Nietzsche caracteriza os
valores como perspectivos e que assim o faz porque parte de uma consideraccedilatildeo perspectiva
do conhecimento Ou seja se Nietzsche pensa os valores como perspectivos natildeo eacute absurdo
pensar que sua consideraccedilatildeo da moral seja forjada em meio a uma consideraccedilatildeo do
conhecimento como algo dependente da perspectividade Do mesmo modo natildeo seria
absurdo pensar que a fundamentaccedilatildeo de sua criacutetica agrave moral e ao niilismo natildeo dependeria de
um esclarecimento acerca da ldquoveracidaderdquo de suas proacuteprias concepccedilotildees mas de seu ldquovalorrdquo
em um sentido que jaacute entende a perspectividade de todo ldquovalorarrdquo
A criacutetica nietzschiana a uma certa compreensatildeo do conhecimento e da verdade esta
relacionada agrave compreensatildeo de que tais concepccedilotildees partem de uma consideraccedilatildeo moral
decadente Eacute neste sentido que em um fragmento poacutestumo de finais de 1885 e iniacutecio de
1886 o filoacutesofo compreende todo erro das ciecircncias como estando relacionados a um
pressuposto fundamental ldquoO pressuposto de que tudo ocorre tatildeo moralmente no fundo das
coisas que a razatildeo humana continua em seu direitordquo (NFFP 1885-1886 2[132]) Ou seja
para Nietzsche a crenccedila na ciecircncia como instrumento revelador da realidade estaria
relacionada a uma compreensatildeo da realidade como produto de uma razatildeo divina e que
portanto a razatildeo humana estaria ldquoem seu direitordquo quando tenta se aprofundar nessa
realidade Mas para o filoacutesofo esta seria apenas ldquouma ingenuidade e uma pressuposiccedilatildeo
pequeno-burguesa a ressonacircncia do efeito da crenccedila na veracidade divinardquo (NFFP 1885-
1886 2[132])
Partindo dessa compreensatildeo inicial nossa tese consiste na tentativa de oferecer uma
investigaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano sob a oacutetica de uma investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo
entre verdade conhecimento e valor A investigaccedilatildeo do valor das perspectivas que
entendemos como uma questatildeo que se sobrepotildee ao problema da verdade na filosofia
nietzschiana constitui-se por isso mesmo como ponto de originalidade do pensamento
nietzschiano em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo das investigaccedilotildees acerca da verdade ao estabelecer na
proacutepria perspectividade o valor das nossas aproximaccedilotildees da realidade
Neste sentido a tese passa por trecircs momentos Em um primeiro momento
pretendemos efetuar uma interpretaccedilatildeo criacutetica de duas obras nietzschianas de juventude as
notas preparatoacuterias Zur Teleologie e O Ensaio Sobre Verdade e Mentira em sentido Extra
10
Moral11 a fim de descortinar os elementos fundamentais da consideraccedilatildeo criacutetica
nietzschiana para com as concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento Em um
segundo momento o niilismo eacute analisado como ponto de ruptura na filosofia nietzschiana
que fornece o estiacutemulo para uma abordagem do conhecimento que torna mais expliacutecita a
relaccedilatildeo entre este e o valor Na medida em que a dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores
constrange a uma reavaliaccedilatildeo da verdade mesma como valor o niilismo conduz a uma
forma de avaliaccedilatildeo da realidade que se distingue da avaliaccedilatildeo tradicional por conta de sua
ecircnfase no caraacuteter criativo do conhecimento em contraposiccedilatildeo ao caraacuteter descritivo do
conhecimento na concepccedilatildeo tradicional Em um terceiro momento o perspectivismo eacute
avaliado como contraproposta agrave forma de conhecimento tradicional associada por
Nietzsche a uma tendecircncia niilista de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a
uma consideraccedilatildeo negativa da realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a
proacutepria perspectividade
11 Daqui para frente nomeado simplesmente ldquoEnsaio sobre Verdade e Mentirardquo
11
1 Primeiro capiacutetulo As notas preparatoacuterias sobre teleologia
Em uma carta de 03 de abril de 1868 dirigida a Erwin Rohde Nietzsche faz uma
declaraccedilatildeo a seu amigo acerca da possibilidade de doutorar-se em filosofia possibilidade
que embora natildeo levada a termo pelo autor legou agrave posteridade uma seacuterie de notas
preparatoacuterias cuja interpretaccedilatildeo traz importantes consequecircncias para o estudo do
perspectivismo nietzschiano como veremos a seguir Na carta em questatildeo nos deparamos
com a seguinte afirmaccedilatildeo do jovem Nietzsche ldquoAdemais tenho pensado que poderia
doutorar-me tambeacutem um dia em filosofia e assim justificar posteriormente minha carteira
de estudante em Bonn e Leipzig onde sempre perambulava como stud philosrdquo (KSB II p
265)12 Na carta em questatildeo observa-se o interesse do jovem estudante de filologia claacutessica
de Bonn em vir a doutorar-se futuramente em filosofia disciplina que haacute muito lhe
interessava profundamente especialmente apoacutes seu contato com a obra de Schopenhauer
A indicaccedilatildeo de que o jovem estudante realmente se interessava pelo tema e de que
jaacute realizara alguns preparativos em adiantamento volta a aparecer em uma menccedilatildeo a este
trabalho em outra correspondecircncia dessa vez em uma carta endereccedilada a Paul Deussen
(KSB II p 269) escrita alguns dias apoacutes a carta acima mencionada Com isso pode-se
deduzir que o que era apenas uma ideia vaga viera a tornar-se um projeto melhor
elaborado Nietzsche que desde haacute muito se achava interessado em questotildees filosoacuteficas e
que com a leitura de Schopenhauer e Lange se torna especialmente interessado na filosofia
de Kant anuncia seu interesse em questotildees especiacuteficas que relaciona com a filosofia
kantiana por forccedila das interpretaccedilotildees daqueles autores
Quando vocecirc a propoacutesito receber ao final deste ano minha tese dedoutorado perceberaacute que o problema dos limites do conhecimento seexplica em diversos pontos Meu tema eacute ldquoo conceito de orgacircnico desde
12 No original ldquoUumlbrigens hat mich dies auf den Einfall gebracht auch einmal philosophisch zu promovierenund so meiner Studentenkarte in Bonn und Leipzig noch nachtraumlglich zu ihrem Rechte zu verhelfen ich binnaumlmlich immer als stud philos spazieren gegangenrdquo (KSB II p 265) Curt Paul Janz naquela que eacutepossivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche comenta que nesta eacutepoca este cogitara abandonar osestudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzsche biographie Enfance JeunesseLes Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208
12
Kantrdquo metade filosoacutefico metade ciecircncia da natureza (halbphilosophisch halb naturwissenschaftlich) Meus preparativos(Vorarbeiten) jaacute estatildeo quase concluiacutedos (KSB II p 269)13
Na carta a Deussen Nietzsche deixa entrever em seus planos para a dissertaccedilatildeo
elementos fundamentais de uma abordagem do problema do conhecimento Entre estes
elementos destaca-se o fato de que tal dissertaccedilatildeo partiria do ponto de vista de um estudo
dos limites dos oacutergatildeos da sensibilidade humana Com isso aleacutem de esclarecer o sentido de
sua interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana este trabalho tambeacutem possibilita uma compreensatildeo
precisa acerca de suas preocupaccedilotildees filosoacuteficas naquele periacuteodo de seu pensamento
Motivo pelo qual alguns comentadores concordam que as notas preparatoacuterias para Zur
Teleologie14 ajudam a situar a filosofia do jovem Nietzsche no horizonte de uma ampla
discussatildeo filosoacutefica Marques por exemplo assevera que a discussatildeo sobre a teleologia
coloca Nietzsche em consonacircncia com o programa teoacuterico da modernidade por acercar-se
do grande embate entre as concepccedilotildees leibniziana e cartesiana ou seja do antagonismo
entre teleologia de proveniecircncia aristoteacutelica e o mecanicismo15
Para Marques a filosofia de Nietzsche sobretudo no que diz respeito a sua ldquoteoria
do conhecimentordquo estaria relacionada a um processo de radicalizaccedilatildeo da autoafirmaccedilatildeo do
sujeito moderno Neste sentido enquanto autor que leva ao aacutepice esse processo de
radicalizaccedilatildeo processo que teria se iniciado na modernidade sobretudo com Descartes
13 Apesar de declarar que seus preparativos encontravam-se jaacute bastante adiantados considerando-se arelaccedilatildeo de Nietzsche com Deussen seria plausiacutevel especular que o autor da carta estivesse contandovantagem de seus planos filosoacuteficos que na verdade encontravam-se ainda longe de ser concluiacutedos sendoque algumas de suas partes ainda encontravam-se em seus estaacutegios iniciais como demonstra o estado dasnotas que nos foram legadas Vale ainda ressaltar que esta correspondecircncia como jaacute foi discutido na seccedilatildeo234 desta tese denuncia um interesse fortiacutessimo de Nietzsche pelos resultados de sua leitura de A Histoacuteriado Materialismo de Albert Lange de cujas ideias a dissertaccedilatildeo planejada pelo filoacutesofo encontra-se fartamentepermeada14 A coletacircnea de notas estaacute registrada na ediccedilatildeo completa de Colli e Montinari nos apontamentos 1868 62[3] - 62 [57] Cf NIETZSCHE F Werke Kritische Gesamtausgabe (KGW) 36 Baumlnde Herausgeben GiorgioColli e Mazzino Montinari Berlim De Gruyter 1967-2001 Bd I 15 As concepccedilotildees da filosofia antiga na medida em que se distinguem por uma compreensatildeo racional darealidade satildeo marcadas pela ideia de uma finalidade intriacutenseca a esta mesma realidade sendo Aristoacuteteles esua concepccedilatildeo das causas finais um marco deste tipo de pensamento Por outro lado com a concepccedilatildeoatomiacutestica inaugura-se na antiguidade ainda uma forma de se conceber a realidade como um produto dasinteraccedilotildees mecacircnicas de seus primeiros elementos Surge assim o embate entre s concepccedilotildees teleoloacutegicas emecacircnicas da realidade Marques resume esse antagonismo no seguinte dilema ldquo[] ou o mundo eacuteconstituiacutedo por uma multiplicidade de espontaneidades absolutas que em si tecircm inscritas a finalidade de seuagir ou o mundo seraacute sempre a obra de um Deus criador de uma obra imperfeitardquo (Marques 2003 p 22)Dando continuidade a este embate filosoacutefico aparecem na modernidade as concepccedilotildees de Leibniz e suateoria de mundo como harmonia preestabelecida por Deus e Descartes que pensava o mundo das realidadesextensas como tendo sua formaccedilatildeo determinada de maneira mecacircnica
13
Nietzsche se inseriria na tradiccedilatildeo racionalista criacutetica Por meio de uma anaacutelise
eminentemente histoacuterica das assim chamadas ldquoteses teleoloacutegicas sobre a historicidaderdquo
(MARQUES 2003 Paacuteg 43) Marques realiza uma apresentaccedilatildeo da condiccedilatildeo antinocircmica da
razatildeo moderna em sua interioridade em que Nietzsche se inseriria ao questionar a validade
dos produtos que a razatildeo se apresenta como sua proacutepria realidade
Neste contexto se destacariam as notas preparatoacuterias para Zur Teleologie como
testemunho textual de que jaacute em sua obra de juventude Nietzsche entra em contato com
questotildees de suma importacircncia para o pensamento moderno Este contato com problemas de
primeira ordem da filosofia moderna para Marques tornam o autor das notas preparatoacuterias
natildeo apenas um herdeiro dos problemas do pensamento moderno mas um pensador
moderno que leva ao aacutepice questotildees fundamentais da filosofia moderna
Esta tese pelo que tomamos notiacutecia atraveacutes da leitura dos fragmentos que nos
foram legados caso tivesse sido concluiacuteda poderia vir a ser considerada como sua
primeira incursatildeo por alguns dos temas mais importantes de sua filosofia Nas notas em
questatildeo satildeo adiantadas muitas de suas concepccedilotildees fundamentais as quais seriam
amadurecidas e posteriormente reelaboradas de forma mais rigorosa adquirindo o estilo
caracteriacutestico dos escritos do filoacutesofo Por meio de um lento refinamento e preparaccedilatildeo no
sentido de conferir um apelo original a estas ideias elas viriam a se popularizar como um
conjunto de reflexotildees acerca da natureza dos limites do conhecimento humano Com isso
aquilo que apenas fora esboccedilado de modo precaacuterio nas notas preparatoacuterias viria a
constituir um fundamento seguro para o posterior desenvolvimento da reflexatildeo
nietzschiana em torno dos problemas com relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e
conhecimento
No entanto por vaacuterias razotildees dentre as quais destacam-se certamente sua
convocaccedilatildeo para o serviccedilo militar e o consequente ferimento que o deixa impossibilitado
por semanas Nietzsche natildeo conseguiraacute levar este plano agrave conclusatildeo Ciente da
impossibilidade de levar seus planos adiante o jovem professor declararaacute em uma carta
endereccedilada a Rohde ldquoAssim querido amigo repito nossas perspectivas natildeo deram certo
[]rdquo (KSB II p 272)16 Apesar do naufraacutegio de seus planos ficaram registrados em seus
16 No original ldquoAlso lieber Freund nochmals unsere Aussichten sind zu nichterdquo (KSB II p272) CurtPaul Janz (naquela que eacute possivelmente a biografia mais celebrada de Nietzsche) comenta que nesta eacutepocaeste cogitara abandonar os estudos de filosofia para dedicar-se agraves ciecircncias naturais JANZ C P Nietzschebiographie Enfance Jeunesse Les Annees Baloises Trad Marc B de Launay Paris Gallimard 1984 p 208
14
cadernos de notas o conjunto de rascunhos que comporiam sua tese acerca dos limites do
orgacircnico a partir de Kant
Os preparativos para a dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant
compotildeem-se de uma seacuterie de notas e indicativos de leitura Estas referecircncias agrupadas por
Nietzsche satildeo compostas de alguns paraacutegrafos extraiacutedos da literatura que o autor das notas
considera leitura baacutesica para sua exposiccedilatildeo aqui incluiacutedos trechos da Criacutetica da Faculdade
do Juiacutezo de Kant e alguns apontamentos de textos extraiacutedos de obras em que a filosofia se
relaciona com temas das ciecircncias naturais Este material variado dentre o qual destacam-se
algumas relaccedilotildees de ideias e conclusotildees a serem comprovadas pela exposiccedilatildeo foram
reunidas apenas muito tardiamente em um dos muitos esforccedilos de conservaccedilatildeo da obra
nietzschiana ficando entatildeo conhecidas pela criacutetica do pensamento nietzschiano sob o tiacutetulo
de Zur Teleologie
As notas constituem material fundamental para a compreensatildeo da imbricada relaccedilatildeo
de Nietzsche com as principais influecircncias de seu pensamento com as quais entra em
contato jaacute na juventude Dentre estas influecircncias destacam-se uma seacuterie de autores das
ciecircncias naturais pesquisadores materialistas com os quais Nietzsche estabelece contato
atraveacutes de sua leitura de Friedrich Albert Lange O proacuteprio Lange representa uma
influecircncia fundamental para Nietzsche naquele periacuteodo e suas ideias acerca da filosofia
kantiana assim como de sua relaccedilatildeo com as ciecircncias garantem o estiacutemulo para a tentativa
de dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico Esta eacute por exemplo a interpretaccedilatildeo de
Elisabeth Foumlrster-Nietzsche a qual relata
Existe (hellip) um resumo de um trabalho ldquoacerca do conceito de orgacircnicodesde Kantrdquo com que meu irmatildeo durante sua convalescenccedila em marccedilo eabril (1866) se ocupou Ele tinha provavelmente retirado o estiacutemulo paraesse trabalho da Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange oqual ele leu imediatamente apoacutes sua publicaccedilatildeo e o qual ele estudounovamente em fevereiro de 186817
A obra de Lange a qual impactou fortemente Nietzsche representava uma espeacutecie
de reconstruccedilatildeo da histoacuteria do materialismo centrada na figura de Kant O fato de
Nietzsche pretender elaborar uma dissertaccedilatildeo acerca das relaccedilotildees entre a filosofia kantiana
17 Conforme Elisabeth Foumlrster-Nietzsche Das Leben Nietzsches Leipzig Verlag von C G Naumann 1895LN 1 269
15
e os estudos recentes acerca dos oacutergatildeos da sensibilidade humana logo apoacutes sua leitura da
obra de Lange natildeo poderia ser confundida como mera coincidecircncia Outra forte evidecircncia
de que Albert Lange foi uma forte inspiraccedilatildeo para esse trabalho encontra-se nas listas de
leituras a serem realizadas parte importante das notas que nos foram legadas Entre os
autores pertencentes a estas listas a serem pesquisadas praticamente todos satildeo cientistas e
filoacutesofos dos quais Nietzsche tomou conhecimento atraveacutes de sua leitura de A Histoacuteria do
Materialismo de Albert Lange
Nosso interesse nessa coleccedilatildeo de apontamentos para a dissertaccedilatildeo de Nietzsche se
justifica por vaacuterias razotildees Para aleacutem da importacircncia de rever escritos que ajudam a
descortinar um pouco de seu pensamento de juventude essas notas ajudam a descortinar o
caraacuteter prematuro do posicionamento filosoacutefico desse autor com relaccedilatildeo agrave temas
fundamentais para seu pensamento maduro Percebe-se em boa parte da argumentaccedilatildeo
sustentada nessas notas assim como no material que o autor escolhe para suportar esta
argumentaccedilatildeo que o filoacutesofo jaacute naquela eacutepoca demonstrou certa preocupaccedilatildeo com temas
fundamentais elaborados em profundidade em sua filosofia madura Por outro lado a
discussatildeo do tema da teleologia o potildee em contato com uma temaacutetica fundamental da
filosofia de todos os tempos
Do mesmo modo quando anuncia a Deussen sua intenccedilatildeo de escrever uma
dissertaccedilatildeo acerca dos limites do orgacircnico desde Kant o jovem estudante insinua a
disposiccedilatildeo em trabalhar com um conjunto de questotildees que jaacute compotildeem suas preocupaccedilotildees
fundamentais acerca da natureza do conhecimento Estas questotildees estatildeo intimamente
relacionadas com a criacutetica ao conhecimento expressa em sua obra de maturidade como
testemunho de que Nietzsche natildeo consegue resolver estas questotildees mesmo muitos anos
apoacutes suas primeiras incursotildees no tema
O aspecto epistemoloacutegico da investigaccedilatildeo a ser empreendida jaacute desponta nos
trechos de correspondecircncia citados em que Nietzsche se refere agrave questatildeo dos ldquolimites do
conhecimentordquo e sua relaccedilatildeo com a ldquosensibilidade humanardquo Estas questotildees implicam uma
anaacutelise do papel dos sentidos na constituiccedilatildeo do conhecimento do mesmo modo que
conduzem a uma consideraccedilatildeo do necessaacuterio condicionamento do que pode ser conhecido
pelas limitaccedilotildees da proacutepria sensibilidade humana Nesse sentido a reflexatildeo nietzschiana
expressa nestas notas aponta claramente para uma concepccedilatildeo de conhecimento como algo
determinado pelo aparato fisioloacutegico humano Tendo em vista estes aspectos fundamentais
16
do trabalho em questatildeo eacute possiacutevel identificar traccedilos precursores da compreensatildeo
nietzschiana acerca do conhecimento notadamente na questatildeo da determinaccedilatildeo do que
pode ser conhecido pelo homem segundo a natureza de sua constituiccedilatildeo natural18
De que estes fragmentos comportam informaccedilotildees importantes acerca da concepccedilatildeo
nietzschiana de conhecimento de seu juiacutezo acerca da metafiacutesica das relaccedilotildees entre a
linguagem e a conceitualidade temos o relato de Crawford para quem uma leitura atenta
das notas preparatoacuterias oferece um contato indispensaacutevel com todas estas concepccedilotildees tais
como elas aparecem no pensamento nietzschiano de juventude
Um olhar atento nessas notas acerca da teleologia eacute essencial para minhaposterior discussatildeo porque elas demonstram quatildeo fundamentalmente aepistemologia de Nietzsche eacute baseada em sua teoria da linguagem Nelasnoacutes encontramos a contiacutenua criacutetica de Nietzsche agrave metafiacutesica na qual eleusa como principal ferramenta sua compreensatildeo dos limites da linguageme conceptualidade Nietzsche equaciona pensamento teleoloacutegico compensamento metafiacutesico Em sua carta a Deussen o proacuteprio Nietzscheenfatiza natildeo exatamente o orgacircnico ou o teleoloacutegico mas acima distoele explora a ldquorelatividade consciente do conhecimentordquo e o ldquoponto doslimites do conhecimentordquo Veremos ateacute que ponto Nietzsche se apropriada ideia langeana de que qualquer que seja nossa abordagem dos limitesdo conhecimento o que resta para aleacutem satildeo palavras expressotildees e ummundo de relaccedilotildees mas nunca a verdade em si (CRAWFORD 1988Paacuteg 106)
Para aleacutem destas questotildees no entanto as notas sobre teleologia trazem informaccedilotildees
fundamentais acerca da relaccedilatildeo de Nietzsche com as concepccedilotildees otimista e pessimista sua
consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a toda presunccedilatildeo de racionalidade na natureza e sua ideia
de que esta racionalidade seria antes o resultado de nossa atuaccedilatildeo no mundo do que uma
caracteriacutestica da natureza ela mesma Como se vecirc estes satildeo temas que prenunciam os
caminhos percorridos pelo autor no desenvolvimento de sua filosofia resumidos nos
aspectos de caraacuteter filosoacutefico do trabalho pretendido
18 A limitaccedilatildeo da sensibilidade humana como um traccedilo determinante daquilo que pode ser conhecido pelohomem eacute uma conclusatildeo fundamental das notas a qual percorre uma longa trajetoacuteria ateacute se tornar um aspectofundamental da compreensatildeo nietzschiana do caraacuteter perspectivo de todo conhecimento Isto eacute na medida emque se considera que o perspectivismo nietzschiano estaria ligado agrave sugestatildeo fundamental de que cada umconhece do mundo segundo sua perspectiva a qual eacute determinada fundamentalmente pela sua constituiccedilatildeofisioloacutegica Como fundamento dessa compreensatildeo na filosofia nietzschiana de maturidade observe-se o queeacute dito no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia onde Nietzsche reflete acerca do desenvolvimento dos estudos dafisiologia e dos animais e de como esses estudos nos aproximam da ldquopremonitoacuteria suspeita de Leibnizrdquo ouseja do fato de que cada indiviacuteduo pode conhecer apenas a partir de sua perspectiva
17
Por outro lado a curiosa escolha de fontes para a tese sinaliza o interesse de
Nietzsche mesmo naquele periacuteodo prematuro de seu pensamento em temas das ciecircncias
naturais ou antes para as respostas das ciecircncias naturais para problemas filosoacuteficos
bastante de acordo com o espiacuterito que animou o renascimento do materialismo em sua
eacutepoca Aparentemente cansado do idealismo que reinava nas concepccedilotildees filosoacuteficas
daquele periacuteodo e ainda sob a influecircncia de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo
Nietzsche enxerga nas ciecircncias naturais um caminho seguro para livrar a filosofia de sua
maacute compreensatildeo acerca de questotildees fundamentais acerca da natureza
Se considerarmos a concepccedilatildeo kantiana acerca dos juiacutezos teleoloacutegicos como o
objeto principal das nota preparatoacuterias que serviraacute como mote para a criacutetica nietzschiana agrave
proacutepria concepccedilatildeo de Teleologia temos aqui uma antecipaccedilatildeo de uma criacutetica fundamental
que o filoacutesofo desenvolveraacute em sua filosofia madura Nesta preacutevia de sua criacutetica agrave
concepccedilatildeo teleoloacutegica que como Crawford aponta eacute associada por Nietzsche a uma
concepccedilatildeo metafiacutesica nos deparamos com noccedilotildees fundamentais que seriam posteriormente
conformadas em modos proacuteprios da filosofia nietzschiana Nesse sentido as notas servem
como um primeiro esboccedilo um primeiro deparar-se de Nietzsche com questotildees as quais o
filoacutesofo ofereceraacute como resposta em sua filosofia madura seu perspectivismo No entanto
na medida em que o projeto de Zur Teleologie foi abandonado com a mesma intensidade
com que fora elaborado as notas que compotildeem o que nos foi legado deste projeto nos
fornecem apenas um indicativo de como jaacute em 1868 Nietzsche compreendia o problema
dos limites do conhecimento
A nosso ver nas notas em questatildeo o autor ensaia uma espeacutecie de protoacutetipo do
perspectivismo na medida em que considera que o orgacircnico seria apenas uma noccedilatildeo
ficcional forjada pelo intelecto e que portanto os produtos subjetivos da razatildeo natildeo
passariam de ficccedilotildees de produtos esteacuteticos forjados a partir da capacidade criativa inerente
a tudo que vive Ou seja apesar de ser questionaacutevel por conta sobretudo da leitura
enviesada e de segunda matildeo da obra kantiana leitura que eacute fundamentada com base nas
interpretaccedilotildees de Kuno Fischer Albert Lange e Schopenhauer entre outros Zur Teleologie
apresenta alguns pontos de vista de grande relevacircncia para o aprofundamento das questotildees
acerca da compreensatildeo nietzschiana dos problemas com a concepccedilatildeo tradicional de
conhecimento
18
Vaacuterias satildeo os problemas apresentados nas notas que mais tarde seriam elaborados
de forma mais apropriada por Nietzsche Primeiramente temos nestas notas preparatoacuterias a
apresentaccedilatildeo de uma noccedilatildeo de organismo como multiplicidade noccedilatildeo que tambeacutem no
periacuteodo maduro de seu pensamento se relacionaraacute com seu perspectivismo Em segundo
lugar em Zur Teleologie eacute realizada a denuacutencia da natureza ficcional e utilitaacuteria da
concepccedilatildeo de teleologia que como outras concepccedilotildees tomadas por Nietzsche como
oriundas de uma consideraccedilatildeo metafiacutesica um conceito de caraacuteter universal que a tradiccedilatildeo
acredita se circunscrever no acircmbito puramente cognitivo eacute considerada naquele texto
como o produto de uma perspectiva limitada
A discussatildeo desenvolvida em Zur Teleologie sobre a finalidade da natureza colocara
Nietzsche diante de um dos principais problemas que sua filosofia precisara administrar o
problema do valor dos produtos subjetivos da razatildeo Toda a argumentaccedilatildeo nietzschiana em
torno das concepccedilotildees de teleologia e mecanicismo se justifica quase que exclusivamente
por apontar para esse problema A resposta para esse problema passa pela questatildeo do
niilismo discutida mais a frente e pela consideraccedilatildeo do perspectivismo como uma forma
de pensar os produtos da razatildeo como tendo valor a partir de uma consideraccedilatildeo de seu valor
bioloacutegico mas tambeacutem como expressatildeo da forccedila vital inerente a criaccedilatildeo de valor objetos
do capiacutetulo final deste trabalho
Estes elementos fazem de Zur Teleologie um objeto de interesse fundamental para
nossa investigaccedilatildeo Pois na medida em que o autor investiga a possibilidade de se rejeitar
concepccedilotildees tais como o juiacutezo teleoloacutegico sem que em seu lugar seja necessaacuterio recorrer a
outra qualquer concepccedilatildeo de cunho metafiacutesico percorre hipoacuteteses que em sua filosofia
madura se relacionaram ao questionamento acerca do embate entre valor vital e valor de
verdade de determinadas concepccedilotildees Esta forma de conceber o problema do valor de
concepccedilotildees metafiacutesicas antecipa a discussatildeo em torno da validade dos produtos da
atividade criativa humana como objetos de valor vital e os problemas oriundos de se tomar
este valor como estando vinculado a um valor de verdade absoluto
11 A interpretaccedilatildeo nietzschiana da questatildeo teleoloacutegica
19
Para a elaboraccedilatildeo de sua criacutetica da questatildeo teleoloacutegica no conjunto de notas que
comentaremos a seguir Nietzsche parte de uma leitura particular das filosofias de Kant
Albert Lange e Schopenhauer Mais especificamente sua argumentaccedilatildeo em torno da
concepccedilatildeo teleoloacutegica de mundo que constitui-se em um tema de importacircncia significativa
para ao desenvolvimento posterior de sua concepccedilatildeo de conhecimento eacute fundamentada em
uma releitura das posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer a partir de uma fundamentaccedilatildeo
cientiacutefica que o autor retira de sua leitura da obra de Lange Assim considerada a tradiccedilatildeo
filosoacutefica em torno do problema do qual Nietzsche pretende se aproximar a relevacircncia da
tentativa nietzschiana de se inserir na questatildeo acerca da teleologia eacute condicionada pelo
aspecto semifilosoacutefico e semi- cientiacutefico de seus argumentos
Para resumir uma questatildeo maior do que o espaccedilo que temos para apresentaacute-la
diriacuteamos que pelo menos desde a modernidade19 partidos disputam acerca da organizaccedilatildeo
da realidade no sentido de interpretar essa realidade ou bem como o resultado da
interaccedilatildeo dos aacutetomos ou bem de maneira teleoloacutegica ou seja como se esta se dispusesse
segundo uma finalidade uacuteltima Eacute neste embate teoacuterico que as colocaccedilotildees de Nietzsche
pretendem se situar De modo geral os fundamentos para a compreensatildeo nietzschiana do
problema da teleologia naquele momento de sua produccedilatildeo seriam as conclusotildees
apresentadas por Kant na segunda seccedilatildeo de sua Criacutetica do Juiacutezo acerca do Juiacutezo
Teleoloacutegico e as criacuteticas de Schopenhauer e Albert Lange a essas conclusotildees
No entanto se sua reflexatildeo se prendesse a estas referecircncias teoacutericas o conjunto de
fragmentos em questatildeo teria pouco interesse em nossa investigaccedilatildeo O que nos importa
aqui aleacutem da opiniatildeo nietzschiana acerca desses temas eacute sua interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees
mencionadas Motivo pelo qual necessitamos reconstruir minimamente as concepccedilotildees que
inspiraram Nietzsche na tentativa de entender como sua reflexatildeo pode ser tomada como
uma novidade em relaccedilatildeo ao problema da teleologia Neste sentido talvez natildeo seja absurdo
retomar a apresentaccedilatildeo schopenhaueriana do problema
No apecircndice para sua obra maacutexima em que concentra sua criacutetica da filosofia
kantiana Schopenhauer define o problema da teleologia como a disputa entre uma posiccedilatildeo
materialista e uma posiccedilatildeo teiacutesta acerca da produccedilatildeo do mundo Com essa apresentaccedilatildeo do
19 Propriamente falando a questatildeo remonta agrave antiguidade com a concepccedilatildeo aristoteacutelica das causas finaisassumindo na idade meacutedia uma feiccedilatildeo teoloacutegica por meio da ideia de um ser criador da realidade conformeuma inteligecircncia a semelhanccedila da humana Mas na criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica emboraestes ancestrais da questatildeo natildeo sejam ignorados ocupam papel secundaacuterio se comparados com os autoresque precedem imediatamente Kant
20
problema o autor prepara o terreno para a inclusatildeo de Kant na discussatildeo a partir de sua
concepccedilatildeo teleoloacutegica como um ponto de virada que torna sem sentido as posiccedilotildees dos
partidos em disputa Diz Schopenhauer
Ateacute Kant havia-se estabelecido para si o verdadeiro dilema entrematerialismo e teiacutesmo vale dizer entre a assunccedilatildeo de que um acaso cegoou uma inteligecircncia ordenadora de fora segundo fins e conceitos tenhaproduzido o mundo neque dabatur tertium (Natildeo havia terceirapossibilidade) Por isso ateiacutesmo e materialismo eram a mesma coisa Daiacutea duacutevida se poderia existir um ateu isto eacute uma pessoa que pudesserealmente confiar ao acaso cego a tatildeo extraordinaacuteria ordenaccedilatildeo finaliacutesticada natureza em especial a orgacircnica (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg637)
O problema acerca da produccedilatildeo do mundo eacute apresentada aqui como estando
diretamente relacionada agrave pergunta pelos princiacutepios ou fins norteadores de uma tal
produccedilatildeo Se concordamos com Schopenhauer entatildeo seria necessaacuterio admitir que natildeo
haveriam diferenccedilas fundamentais entre o ateiacutesmo e o materialismo na medida em que o
materialismo seria a explicaccedilatildeo da origem do mundo por meio de causas meramente
fiacutesicas sem a intercessatildeo divina Ou seja ambas interpretaccedilotildees rejeitam a ideia de que
Deus estaria reduzido a agente criador do mundo conforme um plano sumamente
inteligente Do mesmo modo em ambas as leituras parece subsistir a ideia de que o mundo
eacute tal como se nos apresenta
O problema da criaccedilatildeo do mundo tal como eacute posto por Schopenhauer implica na
compreensatildeo do modo como o mundo fora ordenado Nessa leitura ou bem esta ordenaccedilatildeo
se deu por acaso ou bem cumpria os ditames de uma inteligecircncia superior guiada por
finalidades a que se devia tal ordenaccedilatildeo A questatildeo mesma da natureza desta ordenaccedilatildeo natildeo
eacute posta em duacutevida jaacute que para ambos os partidos em disputa ela pareceria evidente na
contemplaccedilatildeo do mundo Teria sido em meio a essa disputa que Kant teria surgido e
mudado o foco da questatildeo por meio da distinccedilatildeo entre fenocircmenos e coisas em si
A validade daquela premissa maior disjuntiva daquele dilema entrematerialismo e teiacutesmo assenta-se na assertiva de que o mundo existentediante de noacutes eacute o das coisas em si por conseguinte natildeo existiria outraordem de coisas senatildeo empiacuterica Poreacutem depois que o mundo e suaordenaccedilatildeo se tornou via Kant mero fenocircmeno cujas leis se encontram
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principalmente nas formas de nosso intelecto a existecircncia e a essecircnciadas coisas e do mundo natildeo precisam mais ser explanadas conformeanalogia das mudanccedilas percebidas ou efetuadas por noacutes NO mundo Nemaquilo que apreendemos como meio e fim teria nascido em consequecircnciade um tal conhecimento Portanto Kant privando o teiacutesmo de seufundamento mediante a importante distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa emsi abriu por outro flanco o caminho para as explanaccedilotildees completamentediversas e mais profundas sobre a existecircncia (SCHOPENHAUER 1966paacuteg 638)
Para Schopenhauer portanto ateacute Kant apenas se podia discutir a questatildeo da
produccedilatildeo do mundo de duas formas ou bem o mundo eacute produto de uma criaccedilatildeo divina ou
obra do acaso Isto porque o modelo para a compreensatildeo da criaccedilatildeo das coisas era a
atuaccedilatildeo do homem em uma realidade que se considerava a realidade ela mesma Por outro
lado a partir da compreensatildeo de que o mundo que estaacute a disposiccedilatildeo para a criaccedilatildeo por
parte da inteligecircncia eacute justamente o mundo dos fenocircmenos torna-se sem sentido a
analogia entre a inteligecircncia divina e a humana
As duas uacutenicas alternativas ateacute entatildeo ou bem o mundo teria sido constituiacutedo
segundo uma inteligecircncia exterior ou bem seria o resultado de causas mecacircnicas pareciam
insuficientes para dar conta do problema da produccedilatildeo do mundo tanto assim que a questatildeo
natildeo chegava a uma soluccedilatildeo Ao apresentar assim o problema o autor potildee em relevo a
filosofia kantiana como um ponto de ruptura com as correntes de pensamento anteriores
que discerniam apenas de forma dualiacutestica o problema
A inserccedilatildeo de Kant nessa disputa deu-se por meio da compreensatildeo segundo a qual
os seres orgacircnicos natildeo seriam passiacuteveis de compreensatildeo apenas segundo modelos
mecacircnicos porque em sua natureza estaria incluiacuteda uma espeacutecie de necessidade
inexplicaacutevel segundo a necessidade mecacircnica tradicional Ou seja no reino inorgacircnico
diferentemente do reino orgacircnico tudo se reduziria agrave relaccedilatildeo de causas e efeitos segundo a
qual os processos de originaccedilatildeo e desenvolvimento seriam passiacuteveis de serem
compreendidos Para salientar esta questatildeo o filoacutesofo utiliza o caso da cristalizaccedilatildeo a qual
considera uma espeacutecie de crescimento no reino do inorgacircnico
A formaccedilatildeo ocorre pois por uma uniatildeo repentina isto eacute por umasolidificaccedilatildeo raacutepida e natildeo por uma passagem progressiva do estado fluido
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ao soacutelido mas como que por um salto cuja passagem tambeacutem eacutedenominada cristalizaccedilatildeo (KANT 2016 Paacuteg 211)
A referecircncia kantiana ao processo de cristalizaccedilatildeo eacute pensada como meio de
contrastar o desenvolvimento e relaccedilatildeo entre as partes nos seres inorgacircnicos em relaccedilatildeo ao
mesmo processo nos seres orgacircnicos Para Kant a cristalizaccedilatildeo que nos seres inorgacircnicos
diz respeito ao processo de passagem do estado fluido para o soacutelido e que poderia ser
compreendido como uma forma de crescimento e desenvolvimento no reino inorgacircnico
natildeo seria correlato ao crescimento e desenvolvimento dos seres do reino orgacircnico Posto
que no reino orgacircnico ocorreria uma troca de causaccedilotildees entre o todo e as partes e vice-
versa que natildeo se observa no reino inorgacircnico Segundo o exemplo kantiano haveria uma
muacutetua dependecircncia na geraccedilatildeo das folhas de uma aacutervore em relaccedilatildeo agrave proacutepria aacutervore
contrariamente ao que se observa na realidade inorgacircnica O crescimento das folhas
depende da aacutervore mas o desenvolvimento das aacutervores igualmente depende do
desenvolvimento das folhas
Assim no entender de Kant a causalidade tradicional segundo a qual para cada
efeito deveria haver uma causa determinante natildeo corresponderia ao tipo de necessidade
que se observa na formaccedilatildeo e crescimento de seres organizados Os seres orgacircnicos em
sua leitura seriam determinados por um princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproco que apenas
poderia ser compreendida em conformidade com uma ideia de fim natural Eacute com base
nesse princiacutepio de causaccedilatildeo reciacuteproca que no paraacutegrafo 65 da Criacutetica da faculdade do
juiacutezo que parece ter inspirado especialmente as concepccedilotildees criticadas por Nietzsche em
suas notas preparatoacuterias Kant prepara o caminho para sua definiccedilatildeo de um fim natural
Por isso para um corpo dever ser ajuizado em si e segundo a uma formainterna eacute necessaacuterio que as partes do mesmo se produzam umas agraves outrasreciprocamente em conjunto tanto segundo a sua forma como na sualigaccedilatildeo e assim produzam um todo a partir da sua proacutepria causalidadecujo conceito por sua vez e inversamente (num ser que possuiacutesse acausalidade adequada a um tal produto) poderia ser causa dele mesmosegundo um princiacutepio e em consequecircncia a conexatildeo das causaseficientes poderia ser ajuizada simultaneamente como efeito mediantecausas finais (KANT 2016 Paacuteg 239)
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A explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos assim requer um elemento estranho agrave explicaccedilatildeo
dos seres inorgacircnicos Para a explicaccedilatildeo do desenvolvimento das plantas que eacute o exemplo
preferido pelo filoacutesofo nosso entendimento requer uma concepccedilatildeo de fim natural que
contrasta com a causalidade mecacircnica na medida em que causas eficientes devem ser
tomadas tambeacutem como ldquoefeitos mediante causas finaisrdquo logo a uma concepccedilatildeo de fim
natural das partes em relaccedilatildeo ao todo Nesse sentido ldquoEste princiacutepio que eacute ao mesmo
tempo a definiccedilatildeo dos seres organizados eacute o seguinte um produto organizado da natureza
eacute aquele em que tudo eacute fim e reciprocamente meio Nele nada eacute em vatildeo sem fim ou
atribuiacutevel a um mecanismo natural cegordquo (KANT 2016 Paacuteg 242) Diferentemente do
reino inorgacircnico em que se observa que para cada causa corresponde um efeito que se
torna independente da causa originaacuteria no sentido de que natildeo seria retroativo em relaccedilatildeo a
essa causa cada parte de um ser organizado eacute causa e fim do ser organizado enquanto
totalidade
O exemplo escolhido por Kant o de uma planta de cujas folhas eacute ao mesmo
tempo fim e meio expressa claramente a ideia de necessidade de uma causa final diretora
das causas em jogo nas partes e no todo Posto que o desenvolvimento das folhas eacute efeito
da planta mas como o desenvolvimento da proacutepria planta depende do desenvolvimento
das folhas o desenvolvimento das folhas tambeacutem seria causa do desenvolvimento da
planta Esta concepccedilatildeo de uma coisa como fim de si mesma segundo Kant possuiacutea apenas
uma analogia com a causalidade enquanto ldquoconceito constitutivo de nosso entendimentordquo
ou seja enquanto forma de nosso entendimento Pois no tipo de causalidade que se
observaria no reino orgacircnico na reciprocidade de causaccedilatildeo que se observa na relaccedilatildeo entre
os seres orgacircnicos e suas partes teriacuteamos um residuum um fragmento natildeo explicado do
fenocircmeno sempre que o pensaacutessemos segundo o conceito inteligiacutevel de causalidade
O problema da teleologia natural surge quando considerado o tipo de ldquocausalidaderdquo
atuante no reino orgacircnico em que parece atuar uma espeacutecie de finalidade que apenas seria
compreensiacutevel segundo a analogia de uma inteligecircncia superior Para esta finalidade
superior a ldquocausalidaderdquo corresponderia como categoria superior Assim ao menos
metodologicamente pareceria viaacutevel a suposiccedilatildeo de uma inteligecircncia superior como forma
de se compreender a causalidade atuante na natureza orgacircnica
Por outro lado enquanto a concepccedilatildeo de uma inteligecircncia formativa exterior esteja
para muito aleacutem de nossa capacidade de conhecimento posto que a sua universalidade a
24
colocaria para aleacutem dos limites do conhecimento empiacuterico recai sob a concepccedilatildeo
teleoloacutegica da natureza o mesmo veto jaacute estabelecido na primeira criacutetica kantiana para as
ideias de Deus Liberdade e Alma Desta forma explica-se de que maneira a faculdade do
juiacutezo eacute aproximada por Kant da razatildeo teoacuterica e da razatildeo praacutetica Por meio de um uso
regulativo da concepccedilatildeo de conveniecircncia a fins que deve diferenciaacute-la do uso constitutivo
que o intelecto faz de seus conceitos Kant estabelece o uso do princiacutepio teleoloacutegico como
meacutetodo analoacutegico e acessoacuterio para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos
O conceito de uma coisa enquanto fim natural em si natildeo eacute por isso umconceito constitutivo do entendimento ou da razatildeo No entanto pode serum conceito regulativo para a faculdade de juiacutezo reflexiva para orientar ainvestigaccedilatildeo sobre objetos desta espeacutecie segundo uma analogia remotacom nossa causalidade segundo fins em geral refletir sobre o seu maisalto fundamento o que natildeo serviria para o conhecimento da natureza oude seu fundamento originaacuterio mas muito mais do conhecimento daquelanossa faculdade racional praacutetica com a qual por analogia noacutesconsideraacutevamos a causa daquela conformidade a fins (KANT 2016 Paacuteg241-242)
O propoacutesito de Kant assim natildeo se confunde com a descriccedilatildeo da finalidade natural
Menos ainda com a proposiccedilatildeo da existecircncia de uma causalidade superior Por meio da
suposiccedilatildeo de uma finalidade natural o filoacutesofo da criacutetica apenas pensava constituir o
intelecto com mais um instrumento para a compreensatildeo da natureza o que fica claro no
paraacutegrafo 68 da Criacutetica da faculdade do juiacutezo em que o autor trata da teleologia como um
princiacutepio interno da natureza
Neste paraacutegrafo Kant parte da definiccedilatildeo na constituiccedilatildeo das ciecircncias de seus
princiacutepios internos ou princiacutepios constitutivos e os princiacutepios externos aqueles que
encontram sua fundamentaccedilatildeo em outras ciecircncias Com essa distinccedilatildeo o autor pretende
considerar o princiacutepio teleoloacutegico como princiacutepio externo agrave ciecircncia da natureza como um
princiacutepio assessoacuterio agrave ciecircncia da fiacutesica tal qual as ciecircncias matemaacuteticas Ou seja mais do
que traccedilar consideraccedilotildees epistemoloacutegicas Kant procura afastar-se da concepccedilatildeo de fim na
natureza como produto de uma inteligecircncia externa
A distinccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si aparece aqui como elemento fundamental
dessa compreensatildeo Pois eacute atraveacutes de seu posicionamento transcendental que o autor busca
separar a teleologia da teologia e assim abrir caminho para um uso cientiacutefico do princiacutepio
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teleoloacutegico no estudo da natureza Este uso cientiacutefico meramente metodoloacutegico distingue-
se completamente das explicaccedilotildees teiacutestas da natureza
Diferentemente da compreensatildeo teoloacutegica que parte da pressuposiccedilatildeo de uma
inteligecircncia superior como fonte da finalidade natural o autor entende que apesar de nosso
entendimento carecer de um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos
conceber uma inteligecircncia exterior como causa da finalidade natural estaacute muito aleacutem da
capacidade cognitiva humana Por conta das limitaccedilotildees tiacutepicas de nossa forma de
considerar a realidade natildeo se pode saber se haacute um ser sumamente inteligente que criou a
natureza posto que tal existecircncia por definiccedilatildeo natildeo pode ser objeto de entendimento Do
mesmo modo seria impossiacutevel saber se caso um tal ser sumamente inteligente existisse
teria constituiacutedo a realidade segundo os princiacutepios de uma inteligecircncia anaacuteloga agrave
inteligecircncia humana Schopenhauer compreendeu bem essa distinccedilatildeo kantiana e natildeo
deixou de prestar sua homenagem a Kant pela sabedoria de suas conclusotildees
Kant tem plena razatildeo no assunto tambeacutem era necessaacuterio que apoacutes tersido mostrado que o conceito de causa e efeito natildeo se aplica ao todo danatureza em geral segundo sua existecircncia tambeacutem fosse mostrado queconforme sua iacutendole a natureza natildeo pode ser pensada como efeito deuma causa guiada por motivos (conceito de finalidade) Caso se pense nagrande plausibilidade da prova fisico-teoloacutegica que ateacute mesmoVOLTAIRE considerava irrefutaacutevel era da maior importacircncia mostrarque o subjetivo de nossa apreensatildeo para o qual Kant reivindicou espaccedilotempo e causalidade estende-se tambeacutem ao nosso julgamento dos corposnaturais e por conseguinte a necessidade que sentimos em pensaacute-loscomo surgidos premeditadamente segundo conceitos de finalidade logopor uma via ONDE A REPRESENTACcedilAtildeO DOS MESMOS TERIAPRECEDIDO SUA EXISTEcircNCIA eacute de origem tatildeo subjetiva quanto aintuiccedilatildeo do espaccedilo a expor-se objetivamente a qual entretanto natildeo podevaler como verdade objetiva (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 661)
Conforme o entendimento de Schopenhauer ao limitar o alcance do conceito de
finalidade agrave esfera da compreensatildeo humana Kant teria posto termo a credibilidade da
prova fiacutesico-teoloacutegica segundo a qual todo existente dependia de uma inteligecircncia
criadora Kant teria alcanccedilado esta vitoacuteria ao pressupor apenas de modo metodoloacutegico a
existecircncia de uma finalidade superior como uma exigecircncia do entendimento humano que
natildeo se sabe se pode obter um equivalente na realidade Nietzsche no entanto parece natildeo
26
ter tomado como suficiente o papel regulativo que Kant confere ao princiacutepio de fim
natural
A discordacircncia nietzschiana da compreensatildeo kantiana do problema natildeo eacute incidental
Pelo contraacuterio a forma como Kant reproduz o problema da teleologia apresenta-se ao autor
das notas preparatoacuterias como modelo da teoria a ser criticada Assim jaacute nas primeiras
linhas de Zur Teleologie o autor enuncia sua discordacircncia com o pensamento kantiano
ldquoKant tenta provar lsquoque haacute uma necessidade para pensar organismos como premeditados
quer dizer pensaacute-los em termos de conceitos de conformidade a finsrsquo apenas posso aceitar
que isto eacute uma forma de explicar-se a teleologiardquo (BAW 3 paacuteg 130)20 O que indica que o
filoacutesofo por seus proacuteprios motivos certamente apropria-se de forma inovadora da
distinccedilatildeo kantiana entre constitutivo e regulativo
Na medida em que se propotildee a efetuar uma reduccedilatildeo do conceito de explicaccedilatildeo a
uma concepccedilatildeo interpretativa entendimento que jaacute antecipa uma compreensatildeo
perspectivista Nietzsche pensa o conceito de finalidade natural como uma
antropomorfizaccedilatildeo desnecessaacuteria Nesse sentido tambeacutem o conceito de conveniecircncia a
fins para o autor das notas preparatoacuterias deveria ser compreendido como um aspecto
interpretativo mais do que um aspecto descritivo da natureza Um fato marcante para o
jovem Nietzsche eacute que em sua leitura o proacuteprio Kant deveria ter realizado a criacutetica das
concepccedilotildees reguladoras
O autor das notas preparatoacuterias compreende que se Kant natildeo o fez seria porque se
deixou levar por uma consideraccedilatildeo da concepccedilatildeo teleoloacutegica como expressatildeo de um
conhecimento do qual o autor da criacutetica sabia desde o princiacutepio natildeo ter direito Assim o
autor das notas preparatoacuterias engloba Kant em sua criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como
um antropomorfismo ingecircnuo embora seja muito provaacutevel que o proacuteprio Kant tenha
criticado as mesmas concepccedilotildees sob a mesma alegaccedilatildeo
De fato na medida em que considera sem sentido o recurso kantiano aos juiacutezos
explicativos Nietzsche enxerga no caraacuteter indeterminado do modo humano de
compreensatildeo da natureza a ausecircncia de um princiacutepio que justifique a admissatildeo dos
produtos de nossa consideraccedilatildeo da realidade como verdades inquestionaacuteveis A
conveniecircncia a fins na natureza eacute entatildeo reduzido elo autor a uma expressatildeo do modo
20 As notas Zur Teleologie satildeo citadas a partir do terceiro volume da ediccedilatildeo dos fragmentos e cartas dejuventude de Nietzsche organizadas por METTESCHLECHTA daqui pra frente mencionada sob a siglaldquoBAW 3rdquo e conforme sua paginaccedilatildeo As traduccedilotildees satildeo de nossa responsabilidade
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humano de compreensatildeo do reino do orgacircnico Compreendida pelo autor das notas
preparatoacuterias como uma criaccedilatildeo do intelecto condicionada pelo proacuteprio aparelho conceitual
e perceptivo do homem a finalidade na natureza natildeo passaria de uma ficccedilatildeo que cumpre
um papel na ordenaccedilatildeo humana da realidade mas que fora desta ordenaccedilatildeo poderia natildeo ter
nenhum significado
Em Zur Telelologie A disposiccedilatildeo do reino orgacircnico segundo a ideia de uma
conveniecircncia a fins eacute tomada como produto de uma ldquoimaginaccedilatildeo estendidardquo uma ficccedilatildeo
criada pelo homem para poder regular seu conhecimento e suas accedilotildees Desde que para o
autor das notas preparatoacuterias o conceito de conformidade a fins eacute considerado um produto
esteacutetico esta concepccedilatildeo passa a ser a expressatildeo de um poder inconsciente que cria e se
serve do conhecimento para as funccedilotildees vitais como fortalecimento crescimento
preservaccedilatildeo Esta interpretaccedilatildeo diverge significativamente da interpretaccedilatildeo kantiana na
qual a noccedilatildeo de uma teleologia natural eacute pensada como um conceito subjetivo fundamental
para o uso da razatildeo
Nas notas preparatoacuterias Nietzsche ainda natildeo adianta a tese que nortearaacute seu Ensaio
sobre Verdade e Mentira de que este tipo de ordenaccedilatildeo da natureza cumpre um papel
fundamental na conservaccedilatildeo do gecircnero humano A ideia fundamental nas notas eacute que uma
finalidade na natureza apenas eacute vista como uma forma especial de finalidade porque
tomamos a conservaccedilatildeo da vida como uma finalidade especial Assim o autor afirma no
apontamento 62[29] ldquoAqui verifica-se que acabamos de chamar proposital o que eacute viaacutevel
O segredo eacute apenas lsquovidarsquordquo(BAW 3 Paacuteg 380) Ao comentar as notas em questatildeo Lopes
identifica nesta concepccedilatildeo um certo pendor para a teoria de Lange na medida em que o
autor das notas preparatoacuterias amplia o escopo dos juiacutezos reflexivos tornando-os uma
questatildeo de utilidade bioloacutegica
Tambeacutem aqui Nietzsche deve ser visto como um herdeiro do programa deLange ao problematizar a distinccedilatildeo kantiana entre uso regulativo edeterminante dos juiacutezos Nietzsche daacute um passo decisivo rumo a umacompreensatildeo ficcional generalizada dos processos de assimilaccedilatildeo humanado mundo Os conceitos mobilizados pelos juiacutezos determinantes(Nietzsche fornece uma lista algo aleatoacuteria destes conceitos na passagemacima) satildeo igualmente regulativos e pertencem agrave mesma estrateacutegiaantropomoacuterfica de apropriaccedilatildeo do mundo (LOPES 2008 Paacuteg 153)
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Assim a compreensatildeo de base de que os conceitos satildeo criaccedilotildees humanas
condicionadas pela organizaccedilatildeo humana que eacute um traccedilo comum a ambas obras de
juventude nietzschianas tanto seu Ensaio sobre Verdade e Mentira quanto as notas
preparatoacuterias representaria uma releitura de uma conclusatildeo fundamental da filosofia de
Albert Lange Ou seja a apropriaccedilatildeo da concepccedilatildeo kantiana de uso regulativo dos
conceitos na forma de uma consideraccedilatildeo bioloacutegica uma apropriaccedilatildeo em que os interesses
para a vida entram em jogo representaria uma interpretaccedilatildeo nietzschiana das
consideraccedilotildees de Albert Lange o qual para Lopes ldquorestringe a fantasia especulativa ao
acircmbito do discurso edificante e da ficccedilatildeo conceitualrdquo (LOPES 2008 Paacuteg 152)
O que estaacute sendo dito aqui eacute que tanto para Albert Lange quanto para o jovem
autor das notas preparatoacuterias conceitos como o conceito de finalidade natural cumpririam
um importante papel na apropriaccedilatildeo humana da realidade Com o amadurecimento da
reflexatildeo nietzschiana uma consequecircncia mais geral desta forma de compreensatildeo do
problema conduziraacute agrave ideia de que natildeo haacute conhecimento no sentido tradicional mas
somente interpretaccedilatildeo criaccedilatildeo de ilusotildees segundo a determinaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo e
conforme a necessidade humana de dominaccedilatildeo da natureza Os juiacutezos explicativos
pressupostos por Kant em sua criacutetica do juiacutezo tornam-se sem sentido na reflexatildeo do jovem
Nietzsche devendo ser substituiacutedos pela categoria de interpretaccedilatildeo Esta compreensatildeo do
papel da interpretaccedilatildeo como uma afirmaccedilatildeo dos limites da compreensatildeo humana antecipa
os traccedilos fundamentais da madura compreensatildeo nietzschiana do conhecimento
12 A criacutetica nietzschiana a Kant e Schopenhauer como criacutetica agrave teleologia
Como apresentamos na seccedilatildeo anterior a redaccedilatildeo das notas preparatoacuterias para Zur
Teleologie tem nas reflexotildees de Kant e Schopenhauer uma inspiraccedilatildeo contiacutenua No entanto
em sua investigaccedilatildeo do problema teleoloacutegico o autor das notas busca conferir uma
abordagem diferenciada ao problema Esta abordagem diferenciada em parte se deveria a
uma constante reflexatildeo em torno das descobertas das ciecircncias naturais Ou seja a novidade
da abordagem nietzschiana se explica em parte no caraacuteter semicientiacutefico que o autor
29
pretendia conferir a sua tese No entanto no plano filosoacutefico qual seria a natureza das
divergecircncias de Nietzsche com relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees de Kant e Schopenhauer
Na medida em que a criacutetica nietzschiana a toda forma de teleologia baseia-se em
uma consideraccedilatildeo do caraacuteter antropomoacuterfico da proacutepria ideia de conveniecircncia a fins21 a
interpretaccedilatildeo kantiana apareceria como modelo de uma forma ingecircnua de interpretaccedilatildeo
teleoloacutegica por desconsiderar a atuaccedilatildeo do intelecto na formaccedilatildeo daquilo que
compreendemos como a ideia de organismo Nessa criacutetica o autor acompanha de perto a
Schopenhauer a quem se refere ao apontar que ldquoA simples ideia eacute distribuiacuteda na
multiplicidade de partes e condiccedilotildees do organismo mas resta intacta na junccedilatildeo necessaacuteria
das partes e funccedilotildeesrdquo (BAW 3 paacuteg 372)
A divergecircncia do autor das notas com relaccedilatildeo agrave Kant portanto eacute posta nos
primeiros momentos de sua reflexatildeo sua abordagem do problema entende-se como um
afastamento de Kant na medida em que o autor das notas pretende efetuar a reduccedilatildeo da
ideia de finalidade natural a um traccedilo da proacutepria constituiccedilatildeo humana A afirmaccedilatildeo
nietzschiana de que Kant deveria ser compreendido como um filoacutesofo filiado a uma
corrente teleoloacutegica em filosofia (BAW Paacuteg 372) estaacute diretamente ligada a esta forma de
compreensatildeo do problema Para Nietzsche a defesa de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica como
necessaacuteria para a compreensatildeo da natureza tal como esta noccedilatildeo apareceria na Criacutetica do
Juiacutezo soacute poderia ser admitida como uma maneira de definir o conceito de teleologia
A denuacutencia da filosofia kantiana como uma forma de defesa da teleologia parte da
compreensatildeo de que Kant chega em sua investigaccedilatildeo da finalidade natural a uma
conclusatildeo natildeo fundamentada Em sua anaacutelise das conclusotildees da Criacutetica do Juiacutezo
Nietzsche identifica uma transposiccedilatildeo indevida da anaacutelise da realidade fenomecircnica para
21 Crawford observa o caraacuteter antropomoacuterfico por traacutes da proacutepria consideraccedilatildeo da ideia de conveniecircncia afins tal como Nietzsche entende essa ideia ldquoAo levarmos em consideraccedilatildeo o primeiro ponto nos planos daobra de Nietzsche lsquoconceito de conveniecircncia a finsrdquo (Begriff der Zweckmaumlssigkeit BAW 3 Paacuteg 392) noteque ele qualifica a palavra conveniecircncia a fins (Zweckmaumlssigkeit Crawford traduz este termo por expedience)como o conceito de conveniecircncia a fins Nietzsche cita Kant duas vezes a partir da Criacutetica do Juiacutezo acerca dopapel fundamental dos conceitos lsquoNoacutes temos completa ideia apenas do que podemos fazer e cumprir deacordo com nossos conceitosrsquo A isso Nietzsche responde lsquoo que se encontra aleacutem dos conceitos eacutecompletamente incompreensiacutevelrsquo Tendo em vista superar o fato de que os seres humanos se potildee diante dodesconhecido eles inventam lsquoconceitos os quais apenas reuacutenem uma soma de caracteriacutesticas aparentes asquais poreacutem natildeo conseguem apreender as coisasrsquo Nietzsche entatildeo enfatiza a natureza provisional daconceitualidade com relaccedilatildeo aos elementos baacutesicos de uma consideraccedilatildeo teleoloacutegica ao escrever lsquoEntre estesestatildeo forccedila mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causa final Estes natildeo satildeo partes mas apenas juiacutezosreflexivosrsquordquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 110)
30
uma realidade superior apartada do mundo orgacircnico o que representaria um salto loacutegico
com base na pressuposiccedilatildeo da necessidade de se considerar fins na natureza Para o autor
das notas preparatoacuterias portanto Kant natildeo teria conseguido superar a interpretaccedilatildeo
ontoloacutegica do problema teleoloacutegico
O tratamento do problema da teleologia nas notas preparatoacuterias que se oferece
como a transiccedilatildeo de uma interpretaccedilatildeo ontoloacutegica para uma interpretaccedilatildeo eminentemente
epistemoloacutegica converge para uma forma de reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento
e dos limites da capacidade de compreensatildeo humana Assim em sua leitura Nietzsche
concebe a origem da ideia de finalidade exterior como uma superexaltaccedilatildeo da
racionalidade humana que por meio da analogia entre a inteligecircncia constituidora da
natureza com a nossa organizaccedilatildeo conduz a uma compreensatildeo da realidade segundo
princiacutepios finaliacutesticos
Para o jovem Nietzsche a suposiccedilatildeo de uma realidade organizada mediante uma
inteligecircncia exterior seria um antropomorfismo ingecircnuo Tal antropomorfismo que faz
com que se conceba a ideia de finalidade como um traccedilo ineliminaacutevel da realidade
conduziria inevitavelmente a uma concepccedilatildeo teleoloacutegica da realidade Competiria agrave criacutetica
da concepccedilatildeo teleoloacutegica desvelar este antropomorfismo por meio da fundamentaccedilatildeo da
compreensatildeo desta ideia como uma forma humana de compreensatildeo da realidade Nesse
sentido na medida em que a concepccedilatildeo teleoloacutegica diria respeito a nosso modo de
enxergar a realidade e natildeo agrave realidade tal como ela poderia ser em si mesma Nietzsche
trata do problema mediante um tratamento segundo uma anaacutelise das condiccedilotildees de
percepccedilatildeo das finalidades e natildeo de sua realidade necessaacuteria que seria a pretensatildeo por traacutes
das aproximaccedilotildees racionalistas
Segundo a leitura apresentada por Nietzsche nas notas preparatoacuterias a explicaccedilatildeo
kantiana do mundo orgacircnico parece reclamar um recurso agraves coisas em si para sua
justificaccedilatildeo Nesse sentido o jovem autor das notas preparatoacuterias se volta contra Kant e a
favor de Schopenhauer quando afirma ldquoA ideia expandida acima confere a explicaccedilatildeo da
conveniecircncia a fins externa A coisa em si deve lsquomostrar sua unidade na aceitaccedilatildeo de todas
as partesrsquordquo (BAW 3 paacuteg 373) O filoacutesofo compreende que se a natureza apenas nos pode
ser compreensiacutevel mediante a ideia de uma necessidade ou uma propensatildeo natural a fins
31
isto deveria ser creditado a uma caracteriacutestica de nossa forma de compreender o mundo e
natildeo agrave realidade ela mesma
A ideia de uma finalidade natural ideia na qual Kant teria se baseado para sua
defesa da adoccedilatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico norteador da investigaccedilatildeo da natureza
aparece nessa leitura como a transposiccedilatildeo de um elemento da consideraccedilatildeo humana da
natureza para a proacutepria natureza A criacutetica nietzschiana a interpretaccedilatildeo teleoloacutegica kantiana
portanto baseia-se na ideia de que a referecircncia ou o pressuposto da experiecircncia humana
como condiccedilatildeo de constituiccedilatildeo da natureza natildeo pode ser entendido senatildeo como a
radicalizaccedilatildeo de um caraacuteter aleatoacuterio como uma antropomorfizaccedilatildeo da natureza Esta
criacutetica no entanto apenas pode ser adiantada por Nietzsche na medida em que o autor
julga insuficiente o recurso kantiano agrave distinccedilatildeo entre conceito explicativo e conceito
regulativo Ou seja Nietzsche pensa que a admissatildeo de um princiacutepio teleoloacutegico ainda que
meramente como uma ferramenta auxiliar no estudo da natureza torna a concepccedilatildeo
kantiana como modelo de toda forma de defesa ingecircnua do princiacutepio de finalidade externa
Mas como compreender a relaccedilatildeo intriacutenseca entre as partes e o todo em um
organismo senatildeo por meio de uma ideia de finalidade Assim como na leitura
schopenhaueriana Nietzsche entende que esta accedilatildeo de junccedilatildeo seria uma accedilatildeo realizada
pelo intelecto e natildeo uma caracteriacutestica dos organismos Deste modo o autor das notas
afirma ldquoA conveniecircncia a fins do orgacircnico a regularidade do inorgacircnico satildeo acrescentadas
agrave natureza atraveacutes de nossa compreensatildeordquo (BAW 3 paacuteg 373) Nesse sentido a
conveniecircncia a fins identificada por Kant na realidade orgacircnica corresponderia apenas a
uma transposiccedilatildeo do modo humano de compreensatildeo da natureza agrave proacutepria natureza
A conformidade de opiniatildeo entre Nietzsche e Schopenhauer natildeo eacute total Esta
concordacircncia com Schopenhauer aparece nas notas preparatoacuterias quase que de forma
instrumental especialmente para a criacutetica da posiccedilatildeo kantiana Por outro lado o
desenvolvimento da reflexatildeo nietzschiana conduz a uma criacutetica ao recurso
schopenhaueriano agrave vontade como instacircncia em que a ideia de unidade se fundamentaria
Nessa leitura a compreensatildeo schopenhaueriana da ideia de conflito na natureza como uma
reflexo da atuaccedilatildeo do intelecto que se resolveria na ideia uacutenica de vontade eacute apresentada
como implicando em dificuldades teoacutericas incontornaacuteveis que apenas por meio do recurso
a uma vontade ao mesmo tempo muacuteltipla e una seria solucionaacutevel
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A interpretaccedilatildeo schopenhaueriana da conformaccedilatildeo das partes ao todo aparece em
sua filosofia como resposta ao problema da adequaccedilatildeo dos organismos em relaccedilatildeo agraves preacute-
condiccedilotildees de sua existecircncia Nesta abordagem tambeacutem eacute levada em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo
entre as partes do organismo em relaccedilatildeo ao organismo como um todo tal como esta relaccedilatildeo
eacute expressa por Kant na Criacutetica do Juiacutezo e que seria justamente o que fundamenta a
concepccedilatildeo teleoloacutegica expressa naquela obra22 Para Schopenhauer o instinto animal seria
a perfeita representaccedilatildeo da figuraccedilatildeo da finalidade na natureza Pois os animais embora
natildeo possam se figurar uma finalidade por natildeo serem racionais parecem agir segundo uma
finalidade sua manutenccedilatildeo
De maneira geral o instinto dos animais nos fornece o melhoresclarecimento para a restante teleologia da natureza Pois se o instinto eacutecomo se fosse um agir conforme um conceito de fim no entantocompletamente destituiacutedo dele assim tambeacutem todos os quadros danatureza se assemelham aos feitos conforme a um conceito de fim e noentanto completamente destituiacutedos dele Em realidade tanto nateleologia externa quanto na interna da natureza aquilo que temos depensar como meio e fim eacute em toda parte apenas o FENOcircMENO DAUNIDADE DA VONTADE UNA EM CONCORDAcircNCIA CONSIGOMESMA que apareceu no espaccedilo e no tempo para o nosso modo deconhecimento (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)
Como se explica esta correlaccedilatildeo temporal assim como sua reciprocidade A
explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta finalidade natural se daacute por meio da conformidade dos
fenocircmenos em relaccedilatildeo a uma objetividade originaacuteria da Vontade Una Como a passagem
deixa claro toda teleologia natural seria apenas o reflexo de uma harmonia da Vontade Una
que aparece no fenocircmeno segundo os ditames do intelecto Pois se toda ideia de fim na
natureza seria apenas manifestaccedilatildeo da Vontade Una no tempo e espaccedilo para nosso
conhecimento isto significa que a teleologia natildeo corresponde ao modo de ser da realidade
mas apenas ao modo humano de interpretar esta Vontade Una enquanto fenocircmeno A
explicaccedilatildeo schopenhaueriana desta relaccedilatildeo aprofunda a suposiccedilatildeo kantiana de uma
finalidade natural que faria convergir as necessidades das partes de um organismo agraves
necessidades do organismo propriamente
22 Conforme jaacute analisado em seccedilatildeo anterior deste capiacutetulo
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Se Kant enxerga nos organismos uma relaccedilatildeo reciacuteproca de causaccedilatildeo finaliacutestica uma
muacutetua dependecircncia e conformaccedilatildeo das partes em relaccedilatildeo ao todo e vice-versa
Schopenhauer entende essa relaccedilatildeo como reflexo da objetivaccedilatildeo dos fenocircmenos no tempo
segundo uma mesma Ideia diretora na Vontade Una De tal forma que a conformidade
entre as exigecircncias para o surgimento e manutenccedilatildeo de cada espeacutecie em seu ambiente
assim como entre as espeacutecies mesmas apareceria como a expressatildeo de uma objetivaccedilatildeo da
vontade segundo o tempo que natildeo eacute uma categoria da Vontade Una ela mesma eterna e
imutaacutevel mas do entendimento humano
Por conseguinte tendo em mente nossa presente consideraccedilatildeo sobre omodo como a objetivaccedilatildeo da Vontade se distribui em Ideias o curso dotempo eacute totalmente sem significaccedilatildeo e as Ideias cujos FENOcircMENOSapareceram mais cedo no tempo segundo a lei da causalidade agrave qualestatildeo submetidas como fenocircmenos natildeo possuem nenhum direito preacutevioem face daquelas Ideias cujos fenocircmenos apareceram mais tarde e quesatildeo a bem-dizer justamente as objetivaccedilotildees mais perfeitas da Vontade eque tecircm de se adaptar agraves objetivaccedilotildees anteriores tanto quanto estas a elas(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)
Em outros termos se a sucessatildeo temporal corresponde apenas a um modo do
intelecto representar entatildeo natildeo haacute que se espantar a perfeita correlaccedilatildeo entre o
aparecimento de uma espeacutecie e as condiccedilotildees de seu aparecimento Mais ainda esta relaccedilatildeo
de acomodaccedilatildeo natildeo apenas se expressaria na relaccedilatildeo entre o fenocircmeno precedente e o que
lhe sucede mas tambeacutem de forma retrospectiva
Nesse sentido a explanaccedilatildeo dada tambeacutem tem de ser usadaretrospectivamente e devemos natildeo apenas assumir que cada espeacutecie seadapta agraves circunstacircncias encontradas previamente mas tambeacutem estasprecedendo as espeacutecies no tempo levam igualmente em conta os seresque ainda estatildeo por vir Pois se trata de uma uacutenica e mesma Vontade quese objetiva no mundo Esta natildeo conhece tempo algum visto que a figuratemporal do princiacutepio de razatildeo natildeo pertence a ela nem agrave sua objetividadeoriginaacuteria as Ideias mas soacute agrave maneira como estas satildeo conhecidas pelosindiviacuteduos ndash eles mesmos transitoacuterios ndash isto eacute aos fenocircmenos das Ideias(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227)
Em sua interpretaccedilatildeo Schopenhauer pensa a relaccedilatildeo de reciprocidade entre
organismo e ambiente como algo que deve ser posto em antecipaccedilatildeo ao surgimento do
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organismo de tal maneira que ldquoEm conformidade com tudo isso cada fenocircmeno teve de
se adaptar ao ambiente no qual apareceu e este por seu turno teve de adaptar-se agravequele
embora cada fenocircmeno ocupe muito mais tardiamente uma posiccedilatildeo no tempordquo
(SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 226) Nesta leitura a finalidade natural eacute representada
pelo autor como exigecircncia necessaacuteria nesta adequaccedilatildeo reciacuteproca entre organismo e
ambiente De tal maneira que ou se pressupotildee uma finalidade natural a guiar o surgimento
dos organismos ou seriacuteamos levados a pensar que cada fenocircmeno natural anteciparia no
tempo as necessidades dos fenocircmenos que lhe sucedem e estes reciprocamente agravequeles
Ora se a Vontade Una natildeo estaacute sujeita ao curso do tempo a sucessatildeo temporal
embora seja fundamental na compreensatildeo dos fenocircmenos natildeo lhe diz respeito Na Vontade
Una natildeo haveria reflexo para a aparente adequaccedilatildeo entre os fenocircmenos que se sucedem
porque o tempo natildeo tem realidade na Vontade Se natildeo haacute sucessatildeo temporal na Vontade
natildeo pode haver uma pressuposiccedilatildeo de adequaccedilatildeo entre a ordem dos fenocircmenos Seria
assim o intelecto que conferiria aos fenocircmenos os aspectos antecipatoacuterios que conferimos
a toda coincidecircncia entre um determinado conjunto de caracteriacutesticas necessaacuterias e o
surgimento da espeacutecie mesma dependente destas caracteriacutesticas
O princiacutepio de razatildeo norteador do surgimento dos fenocircmenos no tempo segundo
Schopenhauer garante o surgimento dos fenocircmenos enquanto conformidade a uma
predeterminaccedilatildeo antecipada na unidade da Vontade Com isso o filoacutesofo parece adiantar
uma ideia de harmonia dos fenocircmenos enquanto objetivaccedilatildeo da Vontade Pois em sua
leitura ldquoTodas as partes da natureza se encaixam pois eacute uma Vontade UNA que aparece
em todas elasrdquo (SCHOPENHAUER 2005 paacuteg 227) A explicaccedilatildeo da adequaccedilatildeo das
espeacutecies ao ambiente portanto pressupotildee a harmonia preestabelecida na unidade da
Vontade que se apresentaria para os princiacutepios da razatildeo segundo o aspecto subjetivo de
uma teleologia natural
Nietzsche seraacute certamente influenciado por esta compreensatildeo do problema da
teleologia embora com ressalvas A manutenccedilatildeo da vida de um animal como princiacutepio de
finalidade seraacute por exemplo problematizado por Nietzsche Em sua leitura o autor das
notas preparatoacuterias questiona a superioridade da manutenccedilatildeo da vida de um organismo em
relaccedilatildeo agrave manutenccedilatildeo de uma substacircncia inorgacircnica Seria necessaacuterio pensar que a
manutenccedilatildeo de um ser vivo requer maior conveniecircncia a fins do que a manutenccedilatildeo de uma
rocha em unidade consigo mesma ou a finalidade neste caso como em tantos outros
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apareceria aqui apenas como resultado de uma antropomorfizaccedilatildeo e de uma
supervalorizaccedilatildeo da complexidade envolvida com tudo que diz respeito agrave vida O autor das
notas tende para a segunda resposta
Para Nietzsche que parece enxergar nas consideraccedilotildees de Kant e Schopenhauer
apenas a passagem de um modo necessaacuterio de compreensatildeo da realidade para uma
suposiccedilatildeo da proacutepria realidade com que se daria uma improcedente antropomorfizaccedilatildeo da
natureza A diferenccedila de posicionamento aqui diz respeito agrave radicalidade da interpretaccedilatildeo
nietzschiana que problematiza tanto a suposiccedilatildeo kantiana da necessidade de uma
teleologia natural como modo de explicaccedilatildeo da natureza quanto a suposiccedilatildeo
schopenhaueriana de uma unidade da vontade como modo de justificaccedilatildeo da correlaccedilatildeo
entre os fenocircmenos no tempo Por outro lado Nietzsche julga problemaacutetica a conciliaccedilatildeo
schopenhaueriana da ideia de conflito e a pressuposiccedilatildeo de uma unidade na Vontade
Na leitura do autor das notas preparatoacuterias o grande problema da interpretaccedilatildeo
schopenhaueriana diria respeito agrave tentativa do filoacutesofo em conciliar a unidade da vontade
com a ideia de conflito na natureza Schopenhauer pensa natildeo apenas a harmonia derivada
da unidade da vontade mas o proacuteprio conflito como necessaacuterios para a manutenccedilatildeo das
espeacutecies Nesse sentido nem mesmo a adaptaccedilatildeo e acomodaccedilatildeo dos fenocircmenos destroem o
conflito que eacute essencial agrave vontade seria ainda a fonte das guerras interminaacuteveis de
extermiacutenio dos indiviacuteduos
No entanto a adaptaccedilatildeo e a acomodaccedilatildeo reciacuteproca dos fenocircmenos quesurgem dessa unidade natildeo podem anular o conflito intriacutensecoanteriormente exposto o qual aparece na luta geral da natureza e eacuteessencial agrave Vontade Aquela harmonia vai soacute ateacute onde torna possiacutevel aCONSERVACcedilAtildeO do mundo e de seus seres os quais sem ela haacute muitotempo teriam se extinguido Em consequecircncia se em virtude daquelaharmonia e acomodaccedilatildeo as ESPEacuteCIES no reino orgacircnico e as FORCcedilASUNIVERSAIS DA NATUREZA no reino inorgacircnico se conservam lado alado e ateacute se apoiam reciprocamente por outro lado o conflito interno agraveVontade que se objetiva por meio de todas aquelas ideias mostra-senuma guerra interminaacutevel de extermiacutenio dos INDIVIacuteDUOS de cadaespeacutecie e na luta constante dos FENOcircMENOS das forccedilas da naturezaentre si como abordamos antes O cenaacuterio e o objeto dessa batalha eacute amateacuteria que eles se empenham por arrebatar uns dos outros bem como oespaccedilo e o tempo cuja uniatildeo pela forma da causalidade eacute propriamentea mateacuteria como foi exposto no primeiro livro (SCHOPENHAUER2005 paacuteg 227-228)
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Na leitura nietzschiana a suposiccedilatildeo do mundo orgacircnico entendido na acepccedilatildeo
schopenhaueriana como representaccedilatildeo de uma unidade harmocircnica em que a proacutepria luta
pela existecircncia desempenharia um papel importante eacute rejeitada na consideraccedilatildeo da
impropriedade em se considerar uma ideia de luta dos indiviacuteduos como compatiacutevel com a
ideia de uma unidade da vontade Com isso a justificaccedilatildeo para a ideia de unidade que se
daria na concepccedilatildeo schopenhaueriana de vontade resumida por Nietzsche na citaccedilatildeo
ldquotodas as partes da natureza encontram umas as outras por que haacute uma vontaderdquo (BAW 3
paacuteg 373) eacute contraposta a uma concepccedilatildeo da realidade como sendo inerentemente
muacuteltipla
A soluccedilatildeo schopenhaueriana aparece para o autor das notas como a tentativa de
deslocar a questatildeo acerca da finalidade natural em vez de resolver o problema
propriamente Nessa leitura criacutetica Schopenhauer teria atraveacutes da pressuposiccedilatildeo de uma
unidade da vontade transferido o problema da teleologia para outra realidade em que a
ideia de finalidade natural acabaria por ocasionar mais problemas Esta divergecircncia criacutetica
pode ser tomada como um exemplo da complexidade da influecircncia schopenhaueriana sobre
a filosofia nietzschiana de juventude
Naquele momento de sua trajetoacuteria intelectual apesar do que se toma conhecimento
atraveacutes da leitura de O Nascimento da Trageacutedia23 Nietzsche jaacute se encontrava em um
patamar criacutetico em relaccedilatildeo agrave filosofia schopenhaueriana Para o jovem leitor de Albert
Lange autor que influenciou de maneira profunda sua interpretaccedilatildeo da filosofia
schopenhaueriana a sentenccedila que resume esta filosofia seria a seguinte ldquoA vontade sem
fundamento e sem conhecimento se revela por meio de um aparato de representaccedilatildeo como
mundordquo24 Na concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana esta sentenccedila enquanto resumo da filosofia
schopenhaueriana carregaria todos os viacutecios daquele sistema Assim em sua criacutetica agrave
23 Sabe-se que a obra de estreia do filoacutesofo foi composta a luz das influecircncias de Schopenhauer e Wagnertambeacutem um schopenhaueriano Esta influecircncia aparece ali de modo expliacutecito e natildeo questionado ou sejaacriacutetico O que levaria a supor que naquele momento Nietzsche ainda natildeo houvera enxergado os problemascom a filosofia schopenhaueriana No entanto a publicaccedilatildeo dos poacutestumos daquele periacuteodo nos descortinamum filoacutesofo jaacute bastante ciente das contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano Testemunhos desta tomada deconsciecircncia nietzschiana dos problemas da filosofia schopenhaueriana satildeo o texto em estudo assim comoZur Schopenhauer do mesmo periacuteodo e que foi publicado na mesma ediccedilatildeo dos fragmentos poacutestumosnietzschianos de seu periacuteodo de juventude que estamos estudando24 Conforme a seguinte passagem em Zur Schopenhauer ldquoDer grundlose erkenntnisslose Wille offenbartsich unter einen Vorstellungsapparat gebracht als Weltrdquo (BAW Paacuteg 353) As notas Zur Schopenhauer satildeonotas remanescentes de um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana que Nietzsche elaborou na mesmaeacutepoca de redaccedilatildeo das notas Zur Teleologie Todas as vezes que este texto for citado seraacute acompanhado dapaginaccedilatildeo da ediccedilatildeo BAW da qual jaacute vinhamos extraindo passagens de Zur Teleologie e como as citaccedilotildeesdesse todas as traduccedilotildees daquele seratildeo de nossa responsabilidade
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Schopenhauer Nietzsche procura desvelar as contradiccedilotildees do sistema schopenhaueriano
por meio da anaacutelise desta sentenccedila agrave luz da obra do filoacutesofo
Em sua investigaccedilatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana Nietzsche toma o
empreendimento filosoacutefico de Schopenhauer como ldquouma tentativa de explicar o mundo por
meio de um fator aceitordquo (BAW Paacuteg 352) em que ldquoa coisa em si mesma se torna uma de
suas possiacuteveis formasrdquo (BAW Paacuteg 352) Ou seja tratava-se sobretudo de uma
interpretaccedilatildeo da realidade que toma as coisas em si como ao menos uma de suas
expressotildees possiacuteveis Isto apesar de para o autor das notas criacuteticas o empreendimento
filosoacutefico schopenhaueriano natildeo ter sido encarado por Schopenhauer como uma tentativa
(BAW Paacuteg 352) na medida em que este julgou a coisa em si como estando aberta para si
(BAW Paacuteg 352) A falha do autor de O Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em
encarar seu empreendimento como uma tentativa se deveria ao fato deste ldquonatildeo ter querido
perceber as negras contraditoriedades na regiatildeo onde a individualidade cessardquo (BAW Paacuteg
352)
Na medida em que tenta descrever a realidade em termos de ldquoVontaderdquo e
ldquoRepresentaccedilatildeordquo Schopenhauer natildeo se daacute conta de que ldquoO impulso de obscurecimento
produzido pelo mecanismo de representaccedilatildeo revela-se como mundordquo (BAW Paacuteg 352)
uacutenica forma pela qual o mundo da Vontade poderia permanecer velado para o homem
posto que ldquoEsta unidade natildeo estaacute incluiacuteda sob o principium individuationisrdquo (BAW Paacuteg
352) Assim se o traccedilo fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute sua descriccedilatildeo do
mundo como representaccedilatildeo e como tal algo passiacutevel de conhecimento esta hipoacutetese
repousaria fortemente na impossibilidade de se desvelar o mundo como Vontade
Por estas dificuldades assim como sua imbricaccedilatildeo com o proacuteprio nuacutecleo das
consideraccedilotildees schopenhauerianas Nietzsche considera este conjunto de consideraccedilotildees na
medida em que se considerava como sistema como estando ldquocheio de furosrdquo25 Para o
autor das notas sobre Schopenhauer estas falhas poderiam ser exploradas com sucesso
fundamentalmente de quatro diferentes formas Primeiramente em que Schopenhauer natildeo
supera Kant onde pretende superaacute-lo e conserva uma concepccedilatildeo do em si da qual natildeo tinha
direito pois tal como o proacuteprio Schopenhauer havia apontado com relaccedilatildeo ao sistema
kantiano por conta das proacuteprias implicaccedilotildees de seu sistema tal concepccedilatildeo deveria ser
25 Diante da pretensatildeo schopenhaueriana em ter posto termo ao sistema kantiano com seu proacuteprio sistemaNietzsche se questiona ldquo(hellip) wie in aller Welt ein Mensch mit einem so durchloumlcherten System zu solchenPraumltensionen komm[e]rdquo (BAW Paacuteg 354)
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abandonada Em segundo lugar ao permanecer assim tatildeo proacuteximo a Kant Schopenhauer
apenas substitui as coisas em si daquele pela categoria de Vontade o que segundo
Nietzsche apenas pocircde ser realizado por meio de uma ldquointuiccedilatildeo poeacuteticardquo (BAW Paacuteg 354)
cuja derivaccedilatildeo natildeo possuiacutea provas loacutegicas que pudessem satisfazer o proacuteprio
Schopenhauer posto que este natildeo fora convencido no caso da filosofia kantiana Em
terceiro lugar Nietzsche acusa Schopenhauer de derivar os predicados de sua coisa em si
de uma oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo aos predicados das representaccedilotildees Assim se as
representaccedilotildees tecircm como sua marca a temporalidade a espacialidade e a multiplicidade a
Vontade deveria ser Una indeterminada espacialmente e eterna Mas como poderia
Schopenhauer reclamar uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre as representaccedilotildees e a Vontade sem
declarar tal oposiccedilatildeo agraves representaccedilotildees como predicado daquela A quarta criacutetica que eacute
uma consequecircncia das trecircs anteriores seria mais complexa Nietzsche a descreve do
seguinte modo
No entanto pode-se postular para o creacutedito de Schopenhauer contra astrecircs objeccedilotildees uma possibilidade de poder triacuteplice pode haver uma coisaem si de todo modo apenas no sentido de que na aacuterea de transcendecircnciatudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute possiacutevel Essapossiacutevel coisa em si pode ser a vontade uma possibilidade que por surgirda junccedilatildeo de duas possibilidades nada mais eacute do que o poder negativo daprimeira possibilidade ou seja jaacute um bom passo em direccedilatildeo ao outropolo o que significa impossibilidade Elevamos este conceito de umapossibilidade sempre decrescente uma vez mais ao admitirmos ospredicados da vontade que Schopenhauer tomava como pertencentes agraveela apenas porque uma oposiccedilatildeo eacute improvaacutevel entre coisa em si eaparecircncia mas ainda pode ser pensada Contra tal noacute de possibilidadestodo pensamento eacutetico poderia explicar-se mas mesmo contra essepretexto eacutetico ainda se poderia objetar que o pensador que estaacute diante doenigma do mundo natildeo tem outro meio senatildeo oferecer palpites naesperanccedila de que um momento de elevada consciecircncia poraacute a palavra emseus laacutebios Uma palavra que oferece a chave para esse texto que repousaainda natildeo lido diante de todos os olhos o qual chamamos de mundoSeria este mundo vontade - Aqui estaacute o ponto em que devemos fazernosso quarto ataque A urdidura e a trama schopenhauerianas seemaranham em suas matildeos na menor parte como resultado de certa faltade taacutetica de seu autor mas principalmente porque o mundo natildeo se deixaprender tatildeo facilmente ao sistema como Schopenhauer havia esperado naprimeira inspiraccedilatildeo da descoberta Na sua velhice ele se queixou de queo problema mais difiacutecil da filosofia natildeo havia sido resolvido em suaproacutepria filosofia Ele quis dizer a questatildeo referente agraves fronteiras daindividuaccedilatildeo (BAW Paacuteg 354-355)
39
O autor de Zur Schopenhauer conclui que o sistema schopenhaueriano estaria
sujeito aos mesmos argumentos que Schopenhauer teria utilizado contra Kant segundo o
qual o que eacute predicado de um objeto segundo o princiacutepio de atuaccedilatildeo do sujeito natildeo poderia
ser predicado da coisa em si Como Nietzsche sugere no proacuteprio caso de Schopenhauer os
atributos de atemporalidade unidade e a falta de causa atributos que o autor de O mundo
como Vontade e como Representaccedilatildeo atribui agrave Vontade mostram-se improacuteprios da
realidade da Vontade se ela eacute como Nietzsche pensa a traduccedilatildeo schopenhaueriana do em
si kantiano
As criacuteticas apontadas por Nietzsche ao sistema schopenhaueriano e que tomam
parte ainda em suas notas Zur Teleologie datildeo testemunho de um profundo
amadurecimento de sua opiniatildeo para com Schopenhauer Como resultado deste
amadurecimento surge a rejeiccedilatildeo das tentativas de Schopenhauer de descrever o sentido
dos predicados da vontade como completamente inapreensiacuteveis e transcendentes Na
medida em que Nietzsche entra em contato com a criacutetica de Albert Lange agrave filosofia
kantiana e que absorve a ideia de que os predicados dos objetos aparecem na realidade
como resultado da nossa organizaccedilatildeo o autor passa a rejeitar o uso de formas gramaticais
como prova da atualidade de qualquer sistema filosoacutefico Assim na medida em que as leis
da existecircncia da Vontade schopenhaueriana natildeo se submetem agraves mesmas leis de formaccedilatildeo
dos fenocircmenos a ela natildeo poderiam ser atribuiacutedos predicados tais como unidade e
atemporalidade que natildeo tem sentido fora da esfera dos fenocircmenos
Como exemplo desta abordagem criacutetica Nietzsche oferece uma interpretaccedilatildeo de O
Mundo como Vontade e como Representaccedilatildeo em que certas passagens entrariam em
conflito com a delimitaccedilatildeo schopenhaueriana das fronteiras da individuaccedilatildeo tal como estes
limites aparecem definidos em passagens como a seguinte ldquoA unidade daquela Vontade
(hellip) em que temos reconhecido o ser interior do mundo fenomecircnico eacute uma unidade
metafiacutesica Consequentemente o conhecimento deste eacute transcendente o que significa
dizer ele natildeo repousa sobre as funccedilotildees de nosso intelecto e natildeo eacute portanto passiacutevel de
compreensatildeo por elesrdquo (BAW Paacuteg 357) Assim natildeo faz sentido em falar-se em unidade
fora de nossa esfera de compreensatildeo da realidade natildeo podendo este atributo ser relegado agrave
esfera da vontade
Com base nessa interpretaccedilatildeo em suas notas criacuteticas sobre a filosofia
schopenhaueriana Nietzsche escreve ldquoSchopenhauer estaacute completamente correto quando
40
ele mesmo sustenta contra esta operaccedilatildeo em geral mas aparentemente natildeo em seu proacuteprio
caso que lsquode fora natildeo se possa nunca chegar agrave essecircncia das coisas natildeo importa como se
busque vencer sobre imagens e nomesrsquordquo (BAW Paacuteg 358) Para Nietzsche a atribuiccedilatildeo
schopenhaueriana dos predicados de unidade eternidade e liberdade que satildeo os trecircs
predicados que Schopenhauer atribui agrave Vontade natildeo seria senatildeo retoacuterica vazia Pois estes
predicados seriam no fundo indivisiacuteveis e alinhados uns com os outros e com nossa
organizaccedilatildeo Sendo assim sempre se poderia perguntar qual o sentido destes predicados
fora de nossa esfera de organizaccedilatildeo qual sua validade na esfera da vontade
Em sua leitura portanto Nietzsche permanece fortemente criacutetico da concepccedilatildeo
schopenhaueriana das fronteiras da representaccedilatildeo assim como de toda tentativa de
expressatildeo linguiacutestica do que se encontraria para aleacutem desta fronteira26 Com isso seu
julgamento final sobre a atribuiccedilatildeo de predicados proacuteprios da realidade fenomecircnica agrave
Vontade levada a cabo por Schopenhauer baseia-se fortemente na interpretaccedilatildeo da
linguagem como algo que surge e se desenvolve em unidade com as exigecircncias do homem
vivendo em um determinado contexto social assim como em uma realidade determinada
por sua organizaccedilatildeo e suas necessidades fisioloacutegicas O escopo desta criacutetica cujo cerne
pode ser tambeacutem vislumbrado em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira e que diria respeito
ao veto de conhecimento e atribuiccedilatildeo de predicados agrave realidade que se potildee para aleacutem da
experiecircncia compotildee o essencial de sua compreensatildeo perspectivista do conhecimento em
sua filosofia madura
Retornando agraves notas preparatoacuterias veremos que a interpretaccedilatildeo criacutetica nietzschiana
das concepccedilotildees de Kant e Schopenhauer aproxima-se de uma consideraccedilatildeo perspectivista
da teleologia Isto porque nessa leitura a finalidade natural passa a ser interpretada natildeo
como um aspecto da natureza mas apenas como um modo de se considerar uma realidade
inapreensiacutevel de acordo com os ditames de nossa capacidade de conhecer que eacute
fundamentalmente determinada pelo esquema de nossa sensibilidade Ao fim e ao cabo
26 Como Crawford aponta Nietzsche obteacutem este argumento linguiacutestico contra a noccedilatildeo de um primeiropensamento transcendental do mundo de Lange Stack por sua vez escreve sobre este argumentoldquoLinguagens humanas (para Lange e Nietzsche) se desenvolveram primeiramente para efeitos de relaccedilotildees einteraccedilotildees sociais satildeo perpassadas por lsquopersonificaccedilotildeesrsquo e antropomorfismos e evoluiacuteram para efeitos dedescriccedilatildeo e designaccedilatildeo de objetos e eventos encontrados na experiecircncia A linguagem entatildeo eacute projetada paraefeitos de necessidade praacutetica em um mundo fenomecircnico da experiecircncia O uso de tal linguagem para referir-se agrave ou lsquofiguraccedilatildeorsquo de entidades transcendentais ou um mundo transcendental natildeo supera sua associaccedilatildeoproacutexima com a realidade fenomecircnicardquo (STACK Lange and Nietzsche Paacuteg 66) Apud (CRAWFORD 1988Paacuteg 99)
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natildeo se trata de uma abordagem totalmente original uma divergecircncia verdadeira com
relaccedilatildeo agraves posiccedilotildees que Nietzsche critica Muito desta abordagem se deve ao modo como
Kant principia a conversatildeo do problema teleoloacutegico de uma reflexatildeo sobre a constituiccedilatildeo
da realidade em um problema acerca de nossa necessidade de compreensatildeo da realidade
segundo a ideia de uma finalidade natural Do mesmo modo como uma grande parte das
criacuteticas apresentadas pelo autor das notas depende de sua leitura de Schopenhauer Em
contraposiccedilatildeo a estes autores no entanto Nietzsche compreende a permanecircncia da ideia de
uma finalidade natural nas respectivas abordagens criticadas como um uacuteltimo resquiacutecio de
dependecircncia da concepccedilatildeo teleoloacutegica metafiacutesica
A critica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica portanto parte do pressuposto de
que esta teria tomado a finalidade natural como uma realidade objetiva que cumpria
explicar e cuja explicaccedilatildeo mais plausiacutevel seria a ideia de uma inteligecircncia superior
criadora Tendo em vista superar as dificuldades apontadas nas abordagens de Kant e
Schopenhauer Nietzsche se apropria do problema teleoloacutegico de maneira eminentemente
criacutetica para com qualquer suposiccedilatildeo de uma realidade exterior agrave realidade da experiecircncia
Neste sentido o autor apoia-se fortemente nas ciecircncias naturais sempre que julga
necessaacuterio mantendo o lado filosoacutefico da discussatildeo nos limites de uma compreensatildeo
epistemoloacutegica do problema Assim quando comparada ao modo como o problema da
teleologia eacute tratado nas filosofias de Schopenhauer e Kant onde eacute praticamente reduzido agrave
questatildeo sobre a finalidade em seres orgacircnicos27 nas notas preparatoacuterias vemos que
27 A ideia de uma consideraccedilatildeo epistemoloacutegica jaacute apareceria nas consideraccedilotildees de Schopenhauer da criacuteticado juiacutezo kantiana mas Nietzsche parece natildeo se aperceber dessa consideraccedilatildeo Na Criacutetica da faculdade doJuiacutezo em um paraacutegrafo sobre o qual Nietzsche parece ter se detido longamente Kant afirma ldquoPor isso osseres organizados satildeo os uacutenicos na natureza que ainda que tambeacutem soacute se considerem por si e sem umarelaccedilatildeo com outras coisas tecircm poreacutem de ser pensados como possiacuteveis enquanto fins daquela mesmanatureza e por isso como aqueles que primeiramente proporcionam uma realidade objetiva ao conceito deum fim que natildeo eacute um fim praacutetico mas sim um fim da natureza e desse modo agrave ciecircncia da natureza ofundamento para uma teleologia isto eacute um modo de ajuizamento dos seus objetos segundo um princiacutepioparticular que doutro modo natildeo estariacuteamos autorizados a nela introduzir (porque natildeo se pode de maneiranenhuma compreender a priori a possibilidade de uma tal espeacutecie de causalidade)rdquo (KANT 2016 Paacuteg 242)Por sua vez Schopenhauer na parte de sua criacutetica da filosofia kantiana em que se volta para a Criacutetica doJuiacutezo mais especificamente a criacutetica do juiacutezo teleoloacutegico escreve ldquoTodo a Criacutetica da Faculdade de Juiacutezoquer dizer apenas uma coisa embora os corpos organizados necessariamente apareccedilam a noacutes como se fossemcompostos segundo um conceito preacutevio de finalidade de modo algum temos a autorizaccedilatildeo de assumir istoobjetivamente Pois nosso intelecto ao qual as coisas satildeo dadas de fora e que portanto jamais conhece ointerior delas (mediante o qual nascem e existem) mas soacute o seu lado exterior natildeo pode tornar apreensiacuteveluma certa iacutendole proacutepria aos produtos orgacircnicos da natureza a natildeo ser por analogia na medida em que oscompara com as obras humanas produzidas intencionalmente cuja iacutendole eacute determinada por um conceito definalidade Essa analogia eacute suficiente para nos tornar compreensiacutevel a concordacircncia de todas as suas partescom o todo e assim serve como fio condutor para sua investigaccedilatildeo mas de maneira alguma a analogia podeser tomada como fundamento de explanaccedilatildeo da origem e da existecircncia de tais corpos A necessidade de assim
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Nietzsche traduz o problema da teleologia em termos de um problema do conhecimento na
medida em que reduz toda teleologia a uma forma de conceber a natureza em vez de
pensaacute-la como uma caracteriacutestica da natureza
O autor entende que a uacutenica soluccedilatildeo satisfatoacuteria para a compreensatildeo do problema
teleoloacutegico seria a reduccedilatildeo do conceito de finalidade natural uma concepccedilatildeo de fundo
ontoloacutegico em uma categoria do entendimento humano uma realidade eminentemente
epistemoloacutegica de cuja existecircncia objetiva natildeo se teria a menor necessidade nem direito de
supor Assim o autor das notas preparatoacuterias pensa adiantar uma interpretaccedilatildeo original do
problema quando opera a reduccedilatildeo do conceito de finalidade a uma forma de compreensatildeo
da realidade Essa diferenccedila fundamental o tratamento eminentemente epistemoloacutegico de
um problema de fundo ontoloacutegico prenuncia uma importante virada no pensamento
nietzschiano A abordagem nietzschiana em que toda forma de explicaccedilatildeo idealista eacute posta
em suspeita conduz agrave conclusotildees teoacutericas que apenas em sua filosofia de maturidade
assumiraacute total importacircncia Nesta reavaliaccedilatildeo do problema entram em jogo a confrontaccedilatildeo
da realidade como produccedilatildeo humana com as concepccedilotildees racionalistas que satildeo tomadas
pelo autor das notas preparatoacuterias como soluccedilotildees ingecircnuas justamente por
desconsiderarem o quanto de humano haacute nelas
13 A criacutetica agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica como concepccedilatildeo metafiacutesica
Um problema fundamental decorrente da concepccedilatildeo teleoloacutegica da natureza o qual
Nietzsche apresenta como uma dificuldade essencial de toda concepccedilatildeo teleoloacutegica seria a
dificuldade em atingir uma compreensatildeo que unifica o real para aleacutem da distinccedilatildeo
artificial e arbitraacuteria entre o que se apresenta de forma teleoloacutegica e o que se apresenta de
forma natildeo teleoloacutegica Este problema eacute apresentado pelo autor nas notas do seguinte
modo ldquoA maior dificuldade eacute a unificaccedilatildeo da teleologia e do mundo natildeo teleoloacutegicordquo
(BAW 3 paacuteg 373) Com a apresentaccedilatildeo do problema nesses termos o autor busca
evidenciar de que modo com base em uma concepccedilatildeo teleoloacutegica se poderia explicar a
os conceber eacute de origem subjetivardquo (SCHOPENHAUER 1966 paacuteg 660) Schopenhauer leva a cabo assimuma interpretaccedilatildeo subjetiva da teleologia kantiana da qual Nietzsche parece natildeo ter se apercebido comoveremos na anaacutelise das notas Zur Teleologie
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existecircncia de objetos que natildeo parecem justificar-se segundo nenhuma finalidade Nesse
sentido a existecircncia de realidades natildeo convenientes a fins seria o ponto aleacutem do qual
nenhuma concepccedilatildeo teleoloacutegica ateacute entatildeo teria conseguido ir Em Zur Teleologie
Nietzsche concebe esse problema como tendo certa similaridade com o problema referente
agrave relaccedilatildeo entre a causalidade natural e a questatildeo da liberdade humana como o proacuteprio Kant
houvera observado
O espaccedilo de que dispomos nesse trabalho natildeo possibilita um estudo exaustivo da
teoria do gosto kantiana Desta forma o que se segue agrave guisa de resumo e introduccedilatildeo agrave
compreensatildeo kantiana da concepccedilatildeo de teleologia apenas pretende uma breve
consideraccedilatildeo dos problemas abordados por Kant na terceira Criacutetica assim como uma breve
reflexatildeo acerca do lugar dos juiacutezos teleoloacutegicos naquela discussatildeo Uma comparaccedilatildeo entre
a primeira e a segunda criacutetica mostra que a determinaccedilatildeo dos limites da experiecircncia
humana em comparaccedilatildeo agraves exigecircncias do agir praacutetico acentua um abismo insuperaacutevel
entre o domiacutenio praacutetico e o teoacuterico em filosofia A Criacutetica do Juiacutezo representa assim o
esforccedilo kantiano pela conciliaccedilatildeo entre os acircmbitos praacutetico e teoacuterico por meio da anaacutelise do
juiacutezo do belo
Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)
Este abismo aparece ao autor da terceira criacutetica como uma lacuna teoacuterica a ser
superada mediante o estudo do juiacutezo de gosto Nesse sentido tendo em vista a integraccedilatildeo
dos dois saberes o filoacutesofo de Koumlnigsberg elabora um meio de superaccedilatildeo da distacircncia que
separa os dois acircmbitos da investigaccedilatildeo filosoacutefica o acircmbito do teoacuterico e do praacutetico A
constituiccedilatildeo da ponte de ligaccedilatildeo entre os dois acircmbitos do saber humano poreacutem depende
de uma compreensatildeo profunda dos elementos do saber humano como sendo limitados pela
fenomenalidade que contrasta com o acircmbito da liberdade
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Toda a nossa faculdade de conhecimento possui dois domiacutenios o dosconceitos da natureza e o do conceito de liberdade na verdade nos doisela eacute legisladora a priori Ora de acordo com isto tambeacutem a Filosofia sedivide em teoacuterica e praacutetica mas o territoacuterio em que o seu domiacutenio eacuteerigido e a sua legislaccedilatildeo exercida eacute sempre soacute a globalidade dos objetosde toda a experiecircncia possiacutevel na medida em que forem tomadossimplesmente como simples fenocircmenos eacute que sem isso natildeo poderia serpensada qualquer legislaccedilatildeo do entendimento relativamente agravequeles(KANT 2016 Paacuteg 05)
Na passagem citada em que a faculdade de julgar eacute apresentada pelo autor como
legislaccedilatildeo a priori cuja esfera de atuaccedilatildeo se distingue tanto da legislaccedilatildeo do entendimento
quanto da razatildeo praacutetica a esfera de atuaccedilatildeo da razatildeo teoacuterica assim como a da accedilatildeo praacutetica
satildeo determinantes O juiacutezo de gosto por sua vez seria apenas reflexivo Na medida em que
a esfera de validade de sua legislaccedilatildeo abrangeria apenas o contingente e as leis empiacutericas
particulares
Ora toda a contradiccedilatildeo poreacutem desaparece se eu digo o juiacutezo de gostofunda-se sobre um conceito (de um fundamento em geral daconformidade a fins subjetiva da natureza para a faculdade do juiacutezo) apartir do qual poreacutem nada pode ser conhecido e provado acerca doobjeto porque este conceito eacute em si indeterminaacutevel e inadequado para oconhecimento mas o juiacutezo ao mesmo tempo alcanccedila justamente por esseconceito validade para qualquer um (em cada um na verdade como juiacutezosingular que acompanha imediatamente a intuiccedilatildeo) porque o seuprinciacutepio determinante talvez se situe no conceito daquilo que pode serconsiderado como o substrato suprassensiacutevel da humanidade (KANT2016 Paacuteg 201-202)
Na segunda parte da terceira criacutetica a parte da obra referente agrave analiacutetica do belo a
legalidade do contingente eacute encontrada no conceito aacuterido de conformidade a fins que faz
do objeto belo apreciado um exemplo e natildeo uma lei geral Dado que a conformidade a fins
eacute vista na Natureza apenas do ponto de vista artiacutestico A conformidade a fins eacute aqui
entendida por Kant como o caraacuteter proacuteprio do orgacircnico sem o qual nenhum organismo
poderia ser compreendido Na medida em que o filoacutesofo distingue o produto das relaccedilotildees
dos elementos inorgacircnicos como o resultado das interaccedilotildees mecacircnicas de seus elementos
ele enfatiza o caraacuteter finaliacutestico dos elementos da natureza orgacircnica Posto que o belo eacute um
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produto da natureza e que toda criaccedilatildeo artiacutestica eacute dita bela na medida em que nela se
reconhece uma familiaridade com a natureza se poderia entender em que sentido uma obra
artiacutestica natildeo pode ser o produto de interaccedilotildees mecacircnicas mas apenas o resultado da accedilatildeo
humana consciente que pretende um fim
Por isso o filoacutesofo define o gecircnio como aquele dotado de uma faculdade produtora
cuja obra eacute a arte bela A arte bela como foi dito eacute para Kant uma analogia com a
Natureza cuja beleza o gecircnio procura penetrar A obra de arte bela parece ser assim objeto
da natureza que por meio da razatildeo se insere no reino das produccedilotildees humanas Neste
sentido a analogia entre a bela produccedilatildeo artiacutestica e a natureza apenas eacute possiacutevel se se
pensa a natureza como uma produccedilatildeo do aparato categorial humano cuja legalidade estaacute
no contingente e no exemplo
A anaacutelise esteacutetica kantiana que desemboca na questatildeo do gosto ou uma faculdade
de apreciaccedilatildeo esteacutetica reconhecida faz com que Kant entre em contato com um juiacutezo
esteacutetico fundamentado na sensaccedilatildeo de prazer Algo subjetivo mas que ao mesmo tempo
seria passiacutevel de ser reproduzido Assim a anaacutelise kantiana do gosto conduz a duas
conclusotildees aparentemente verdadeiras embora contraditoacuterias segundo as quais o gosto
seria subjetivo e ao mesmo tempo objetivo A objetividade do juiacutezo de gosto porquanto
tal juiacutezo pertenccedila a esfera subjetiva natildeo seria passiacutevel de determinaccedilatildeo objetiva
A forccedila do argumento kantiano repousa na sugestatildeo de que para que o gosto
pudesse vir a ser objeto de discussatildeo o que implica uma possiacutevel concordacircncia este deve
fundar-se em conceitos Desta forma com base na suposiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre coisas
em si e fenocircmenos suposiccedilatildeo que surge como conclusatildeo da primeira criacutetica kantiana o
filoacutesofo teria procurado superar a dificuldade envolvida na determinaccedilatildeo de uma certa
objetividade do juiacutezo de gosto Para o autor da terceira criacutetica a possibilidade de
determinaccedilatildeo da objetividade de um juiacutezo subjetivo tanto na questatildeo da filosofia praacutetica
quanto na questatildeo dos juiacutezos esteacuteticos apenas pode se dar com base na suposiccedilatildeo da
existecircncia de objetos necessaacuterios para a justificaccedilatildeo destes juiacutezos Suposiccedilatildeo que aqui
assume um caraacuteter apenas hipoteacutetico na medida em que o filoacutesofo compreende que destes
natildeo podemos ter conhecimento objetivo28
28 Este raacutepido resumo do problema justamente pela brevidade carece de muitos esclarecimentos eaprofundamentos No entanto aqui pretendemos apenas oferecer uma breve apreciaccedilatildeo dos problemasenfrentados por Kant na terceira criacutetica sobretudo do ponto de vista da consideraccedilatildeo nietzschiana destes
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Por outro lado a hipoacutetese de uma possiacutevel objetividade dos juiacutezos de gosto contaria
com uma hipoacutetese contraacuteria aleacutem de bastante plausiacutevel de que aquilo que agrada natildeo
agrada universalmente natildeo se podendo chegar a um consenso absoluto em termos de
gosto Esta antinomia aparentemente insoluacutevel na medida em que aponta para uma tese e
uma antiacutetese igualmente plausiacuteveis eacute resumida por Kant na possibilidade de se fundar o
gosto em conceitos Pois fica provado na esfera da anaacutelise esteacutetica que se o gosto deve ser
tomado como algo que se funda em conceitos ele poderia ser determinado segundo
demonstraccedilotildees e assim natildeo seria passiacutevel de disputa Por outro lado se este natildeo se funda
em conceitos natildeo eacute passiacutevel de disputa igualmente pois natildeo seria possiacutevel alcanccedilar uma
concordacircncia Assim segundo o autor da Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo essa saiacuteda deveria
ser considerada ainda que a contragosto como uma forma de libertar o juiacutezo do gosto de
sua antinomia
Vecirc-se portanto que a eliminaccedilatildeo da antinomia da faculdade de juiacutezoesteacutetica toma um caminho semelhante ao que a Criacutetica seguiu naresoluccedilatildeo das antinomias da razatildeo teoacuterica pura e que aqui do mesmomodo como na Criacutetica da razatildeo praacutetica as antinomias coagem acontragosto a olhar para aleacutem do sensiacutevel e a procurar no suprassensiacutevel oponto de convergecircncia de todas as nossas faculdades a priori pois natildeoresta nenhuma outra saiacuteda para fazer a razatildeo concordar consigo mesma(KANT 2016 Paacuteg 203)
A soluccedilatildeo para as antinomias do juiacutezo de gosto encontrar-se-ia portanto para aleacutem
dos limites do sensiacutevel Do mesmo modo na medida em que os juiacutezos teleoloacutegicos se
fundamentariam no ldquoconceito de um fim na naturezardquo a ele tambeacutem estaria ligado a
necessidade de um recurso esfera do suprassensiacutevel da qual segundo Kant embora natildeo se
possa ter um conceito exato deve-se admitir a existecircncia Este recurso agrave esfera do
suprassensiacutevel natildeo escaparaacute ao autor das notas sobre teleologia o qual rejeitaraacute este tipo de
soluccedilatildeo como um tipo de antropomorfizaccedilatildeo infundada Em sua leitura que eacute perpassada
por uma atitude de franca hostilidade a todo recurso ao suprassensiacutevel a soluccedilatildeo para o
problema da finalidade na natureza apenas poderia ser contemplada na compreensatildeo dos
limites do conhecimento humano Limites segundo as notas preparatoacuterias muito
rigidamente demarcados e que se restringiriam agrave esfera da causalidade mecacircnica
problemas
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Em sua compreensatildeo do problema da conformidade a fins no reino orgacircnico
compreensatildeo que o autor das notas determina como sendo ao mesmo tempo semifilosoacutefica
e semicientiacutefica a suposiccedilatildeo mesma da finalidade natural estaria ligada a uma maacute
compreensatildeo da realidade Maacute compreensatildeo que teria sido motivada por uma
desconsideraccedilatildeo do papel da razatildeo na organizaccedilatildeo dos elementos que compotildeem nossa
forma de conceber o mundo
Nietzsche pensa naquele momento que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel
como forma de justificar a existecircncia de uma finalidade na natureza estaria ligada a uma
recusa em aceitar o mecanicismo como meacutetodo adequado para a investigaccedilatildeo do orgacircnico
Esta recusa por sua vez seria decorrecircncia de um preconceito em favor do que vive
considerado nessa leitura como algo mais complexo do que o pertencente ao reino
inorgacircnico Mais ainda Nietzsche considera a suposiccedilatildeo de fins na natureza uma
decorrecircncia de uma transgressatildeo do princiacutepio de razatildeo miacutenima Estaacute transgressatildeo se daria
no recurso o qual o autor das notas pensa que teria sido utilizado pelos defensores da ideia
de uma finalidade natural a uma razatildeo superior Para o autor das notas este recurso natildeo se
justificaria pois tal problema poderia ser satisfatoriamente resolvida com base em um
princiacutepio mais simples
Conformidade interna a fins Vemos uma maacutequina complicada que semantecircm a si mesma e natildeo podemos vislumbrar outra estrutura quepudesse constituir-se de modo mais simples isto significa apenas amaacutequina se manteacutem por si mesma assim ela eacute conforme a umafinalidade Um julgamento acerca de ldquouma finalidade superiorrdquo natildeopodemos fazer Podemos no melhor das hipoacuteteses decidir acerca de umarazatildeo mas natildeo temos direito a indicar se eacute uma razatildeo superior ou inferior(BAW 3 paacuteg 373)
A ideia kantiana de que a forma de causalidade reciacuteproca atuante nos seres
orgacircnicos apenas poderia ser compreendida por meio do recurso a uma razatildeo superior eacute
rejeitada por Nietzsche por meio da compreensatildeo de que nessa leitura a ideia de finalidade
sofre uma supervalorizaccedilatildeo indevida Para dar sentido a esta rejeiccedilatildeo o autor das notas
preparatoacuterias faz uso de uma espeacutecie de princiacutepio de Ockham29 segundo o qual a
29 Para Guilherme de Ockham o Princiacutepio da Parcimocircnia o que ficou conhecido na tradiccedilatildeo como Navalhade Ockham significava que ldquoeacute desperdiacutecio fazer com mais o que pode ser feito com menosrdquo Embora natildeo
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atribuiccedilatildeo de um princiacutepio exterior no caso em questatildeo uma razatildeo superior que pensa uma
finalidade superior agravequela que o homem pode compreender natildeo procede de uma conclusatildeo
loacutegica mas de uma ilusatildeo que atua por forccedila de um grosseiro antropomorfismo Este
antropomorfismo consistiria na defesa de uma razatildeo superior defesa por meio da qual o
defensor da finalidade natural nada mais faria do que pocircr em praacutetica uma exaltaccedilatildeo da
razatildeo
Segundo a compreensatildeo do autor das notas preparatoacuterias no entanto este tipo de
afirmaccedilatildeo de uma finalidade externa superior natildeo se sustenta em uma anaacutelise da razatildeo
porque ldquoapenas temos experiecircncia do meacutetodo da naturezardquo (BAW 3 paacuteg 374) e nunca de
finalidades Desta maneira quando nos confrontamos com um produto da natureza a sua
finalidade apenas nos aparece como o produto de um meacutetodo sem sentido nunca como
uma necessidade loacutegica Por outro lado a ideia de uma finalidade superior apenas nos
aparece quando somos confrontados com a vida Para Nietzsche esta deduccedilatildeo de uma
finalidade superior na manutenccedilatildeo da vida natildeo obedeceria qualquer loacutegica mas talvez
uma certa arrogacircncia de espeacutecie Pois na medida em que pertencemos ao grupo dos
ldquoviventesrdquo possuiacutemos um preconceito com relaccedilatildeo ao que eacute vivo
Segundo a compreensatildeo nietzschiana a vida seria o grande segredo que reclamaria
em sua explicaccedilatildeo a ideia de uma finalidade natural Isto na medida em que ao nos
depararmos com um ser vivo como noacutes somos cegados pelo orgulho e queremos enxergar
na nossa existecircncia algo mais do que a pura atuaccedilatildeo de causas e efeitos Assim este
comportamento natildeo encontraria nenhum suporte loacutegico e a vida poderia como os demais
tenha sido inventado por Ockham o princiacutepio da Navalha teve seu nome ligado em especiacutefico a este filoacutesofopor sua larga utilizaccedilatildeo no sistema que desenvolveu (JUNGES 2005 Paacuteg 03) Conforme nota cinco doartigo Deus e a metafiacutesica em Ockham e Nietzsche ldquoA expressatildeo lsquoNavalha de Ockhamrsquo surgiu no seacuteculoXVI sugerindo que mediante tal Navalha Ockham lsquoencurtava as barbas de Platatildeorsquo numa referecircncia direta aodualismo que ele suprimia com sua negaccedilatildeo da existecircncia dos universais Com essa concepccedilatildeo as essecircnciaspassavam a ser apenas elucubraccedilotildees deslocando o eixo da metafiacutesica para um empirismo nominalista jaacute queOckham dizia serem os universais apenas nomes dados agraves coisas criados pela mente de seu autor e o querealmente havia eram as singularidades e o que poderia ser experimentado pelos sentidos humanosrdquo(JUNGES 2005 Paacuteg 16)Com relaccedilatildeo agrave proximidade entre as filosofias de Ockham e Nietzsche Jungesafirma ldquoAqui apenas podemos comparar entre nossos dois filoacutesofos em questatildeo o fato de que ambosapontavam a concretude da vida como indiscutiacutevel fundamental renegando a metafiacutesica como expedientepara um entendimento do mundo em si A mentira do outro mundo era paralisante desnecessaacuteria O vieacutesantimetafiacutesico de Ockham e Nietzsche denota a importacircncia da criacutetica do mundo ocidental em seus escritos(hellip) Quanto agrave existecircncia dos universais amplamente negada por Ockham acreditamos ser seuposicionamento bastante proacuteximo ao de Nietzsche Isso porque Ockham num vieacutes de declarado cunhoaristoteacutelico pensava os universais como impossiacuteveis sob uma justificativa loacutegica natildeo passando de palavrasque denominavam sentidos por noacutes criados abstraccedilotildees ou ficccedilotildees da mente humanardquo (JUNGES 2005Paacuteg 14)
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eventos naturais ser explicado sem o recurso a uma finalidade natural Pois aiacute natildeo operaria
nenhuma ideia de conveniecircncia a fins apenas uma supervalorizaccedilatildeo do fenocircmeno vida
Ficamos impressionados entatildeo com a complexidade e conjecturamos (pormeio de uma analogia humana) uma sabedoria especial nisto O querealmente eacute maravilhoso para noacutes realmente satildeo os viventes orgacircnicos etodos os meios para mantecirc-los chamamos conforme a fins Por quesuspendemos o conceito de conformidade a fins no mundo inorgacircnicoPorque temos aqui apenas unidades natildeo partes correlacionadas atuandoumas com as outras (BAW 3 paacuteg 374)
Em outras palavras a proacutepria distinccedilatildeo entre o orgacircnico e o inorgacircnico nada mais
seria do que o produto de nosso preconceito para com o que vive sem o qual suas partes
assim como as partes dos elementos do reino inorgacircnico tambeacutem seriam vistas como
unidades e natildeo oacutergatildeos Nossa ideia de uma finalidade superior adveacutem de uma
incompreensatildeo fundamental acerca do fenocircmeno vida por conta de nosso preconceito para
com o que vive Sendo que apenas por esse motivo natildeo nos vemos na necessidade de um
recurso a uma finalidade para a explicaccedilatildeo do reino inorgacircnico Posto que entre os
produtos possiacuteveis da atuaccedilatildeo das partes da natureza tambeacutem os organismos seriam uma
possibilidade Isso independente da complexidade envolvida desde que para o autor
ldquoAcaso pode encontrar a mais bela melodiardquo (BAW 3 paacuteg 374) Disso decorre a hipoacutetese
nietzschiana de que a vida mesma pudesse ser compreendida como o produto de forccedilas
atuando ao acaso segundo uma causalidade mecacircnica Ou seja independente da
complexidade envolvida tudo poderia ser obra do acaso
Nesta suposiccedilatildeo encontramos o surgimento de uma concepccedilatildeo fundamental
segundo a qual toda realidade que se nos apresenta de forma orgacircnica poderia ser produto
da atuaccedilatildeo de forccedilas ao acaso Assim com a alusatildeo ao acaso associada agrave ideia da atuaccedilatildeo
de relaccedilotildees causais Nietzsche opera uma explicaccedilatildeo do surgimento do orgacircnico sem
recorrer a qualquer instacircncia externa ao orgacircnico sem nenhum recurso a uma finalidade
externa Solucionada assim a questatildeo do surgimento da realidade orgacircnica por meio do
recurso a uma associaccedilatildeo entre causalidade mecacircnica e acaso restaria explicar como um
ser orgacircnico poderia sustentar-se sem uma finalidade interna
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Respondida a questatildeo do surgimento do orgacircnico para o autor a ideia por traacutes de
sua manutenccedilatildeo parece uma questatildeo friacutevola que apenas poderia ser despertada no interior
de uma concepccedilatildeo teleoloacutegica que sempre suscita muitas questotildees sem sentido30 A
resposta adequada para este problema livre de um preconceito tendencioso a enxergar uma
explicaccedilatildeo finaliacutestica onde este tipo de explicaccedilatildeo natildeo teria lugar se daacute por meio do
recurso agrave ideia de que a finalidade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto
Recorrendo novamente agrave filosofia schopenhaueriana Nietzsche sustenta a
identificaccedilatildeo de uma finalidade por traacutes da manutenccedilatildeo dos seres orgacircnicos como
consequecircncia da atuaccedilatildeo do intelecto Eacute nesse sentido que o autor das notas sobre
teleologia afirma ldquovemos um meacutetodo para alcanccedilar um objetivo ou mais exatamente
vemos a existecircncia e seus meios e decidimos que esses meios satildeo conformes a fins O
reconhecimento de uma razatildeo elevada certamente natildeo a de uma razatildeo superior ainda natildeo
se potildee aquirdquo (BAW 3 paacuteg 374) Ou seja o fato de que organismos se mantenham
conforme a sua proacutepria manutenccedilatildeo natildeo implica a ideia de uma finalidade superior porque
a manutenccedilatildeo do organismo eacute um fim apenas para o organismo e natildeo um fim superior
O tipo de explicaccedilatildeo adotada por Nietzsche neste ponto de sua exposiccedilatildeo que toma
como base uma explicaccedilatildeo natildeo teleoloacutegica do reino orgacircnico teria como interesse mais
profundo lanccedilar as bases para uma investigaccedilatildeo das questotildees naturais sem o recurso a uma
realidade ideal apartada das relaccedilotildees de necessidade Esta compreensatildeo do problema
portanto natildeo pode ser desvinculado de um interesse praacutetico fundamental Ou seja com a
eliminaccedilatildeo da teleologia e a consequente restituiccedilatildeo das questotildees orgacircnicas ao reino do
orgacircnico surgiria a possibilidade de se eliminar o mundo das ideias que como vimos
aparece como fundamento para a soluccedilatildeo da questatildeo teleoloacutegica no procedimento kantiano
na Criacutetica do Juiacutezo Nesse sentido o autor das notas sobre teleologia afirma ldquoo colocar de
lado da teleologia tem um valor praacutetico Eacute apenas uma questatildeo de recusar o conceito de
uma razatildeo superior assim jaacute nos satisfazemosrdquo (BAW 3 paacuteg 374) Por interesse praacutetico
o autor soacute poderia compreender uma compreensatildeo da liberdade que natildeo implique o recurso
a uma realidade suprassensiacutevel
Nos parece que o ponto fundamental a ser considerado aqui eacute que em Zur
Teleologie Nietzsche parece reconhecer a atuaccedilatildeo de um princiacutepio metafiacutesico na tendecircncia
30 Tais questotildees seriam por exemplo a compreensatildeo do mundo como um organismo vivo e da origem domal questotildees cuja rejeiccedilatildeo ecoara na obra madura de Nietzsche
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para a soluccedilatildeo das questotildees teleoloacutegicas por meio das coisas em si Assim ao afastar a
questatildeo de uma razatildeo superior o autor entende que a soluccedilatildeo do problema teleoloacutegico sem
o recurso a uma realidade suprassensiacutevel tornaria possiacutevel a anaacutelise de questotildees referentes
agrave liberdade sem o recurso a uma concepccedilatildeo idealista Mesmo se o alvo de sua criacutetica eacute a
ideia de uma finalidade natural a tendecircncia a uma explicaccedilatildeo idealista desta finalidade natildeo
seria menos questionaacutevel
Enfatizamos este ponto porque embora a negaccedilatildeo de uma realidade ideal apenas se
torne atuante na filosofia madura nietzschiana jaacute nas notas preparatoacuterias esta rejeiccedilatildeo
encontra plena expressatildeo na ideia de que o recurso a uma realidade suprassensiacutevel para a
soluccedilatildeo de problemas teoacutericos repousa em uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel Tendecircncia
que mais do que uma explicaccedilatildeo teoacuterica seria oriunda de questotildees praacuteticas na medida em
que estaria relacionada agrave concepccedilatildeo kantiana da necessidade de se reservar um espaccedilo para
a liberdade em uma realidade para aleacutem dos fenocircmenos De tal maneira que se a soluccedilatildeo
kantiana para o problema da teleologia interna repousa no mesmo tipo de distinccedilatildeo entre o
mundo dos fenocircmenos e o mundo das coisas em si em que Kant faz repousar sua soluccedilatildeo
do problema da liberdade entatildeo a soluccedilatildeo meramente mecacircnica do problema da teleologia
poderia apontar para uma soluccedilatildeo mecacircnica tambeacutem para o problema da liberdade
Por outros termos o reconhecimento do combate agraves coisas em si como uma parte
fundamental do combate a uma tendecircncia filosoacutefica condenaacutevel do ponto de vista teoacuterico
tem suas primeiras origens jaacute entre as obras do periacuteodo de juventude da filosofia
nietzschiana31 Podemos ver assim que Nietzsche jaacute na primeira fase de seu pensamento
potildee em accedilatildeo uma estrateacutegia de combate agrave metafiacutesica que precede em algumas deacutecadas a
sua rejeiccedilatildeo do niilismo que o filoacutesofo considera um traccedilo inerente a toda consideraccedilatildeo
idealista No entanto naquele periacuteodo de sua reflexatildeo o autor ainda natildeo chega a confrontar
todos os riscos inerentes a sua posterior consideraccedilatildeo do niilismo propriamente
Se eacute certo que tatildeo cedo quanto em suas notas preparatoacuterias o autor jaacute confronta o
problema da finalidade e o associa com a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente
mecacircnica destas entatildeo podemos dizer que jaacute nesse momento o autor contrapotildee
fortemente o recurso a toda realidade em si como uma forma equivocada de explicaccedilatildeo
Logo em suas primeiras incursotildees pela questatildeo teleoloacutegica podemos enxergar uma
31 Como atestaria tambeacutem o texto criacutetico Zur Schopenhauer jaacute referido na seccedilatildeo anterior
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antecipaccedilatildeo dessa temaacutetica que mais tarde se transformaraacute no questionamento acerca do
valor de concepccedilotildees idealistas para a vida Ou seja jaacute naquele periacuteodo de sua reflexatildeo
filosoacutefica Nietzsche interpreta o mundo das ideias como uma criaccedilatildeo humana
fundamentada em uma supervalorizaccedilatildeo da razatildeo
Contraacuterio ao posicionamento metafiacutesico que faz repousar ldquoA valorizaccedilatildeo da
teleologia em sua avaliaccedilatildeo do humano mundo das ideiasrdquo (BAW 3 paacuteg 375) o autor
parte para uma consideraccedilatildeo esteacutetica da teleologia ldquoTeleologia eacute como otimismo um
produto esteacuteticordquo (BAW 3 paacuteg 375) Esta compreensatildeo implica que tanto a teleologia
quanto o otimismo seriam criaccedilotildees humanas segundo um impulso poeacutetico fundamental
Fica claro entatildeo que jaacute em seu ensaio sobre a teleologia em Kant Nietzsche estaacute de posse
da ideia de que o mundo das ideias corresponderia apenas a um produto esteacutetico um
produto da atuaccedilatildeo do potencial criativo humano e que essa ideia fundamental estaria
ligada a um otimismo na contemplaccedilatildeo da realidade Da mesma forma o autor das notas jaacute
parece estar de posse de uma compreensatildeo apurada do caraacuteter interpretativo dessa forma
de se considerar a realidade
Partindo de uma avaliaccedilatildeo criacutetica da questatildeo teleoloacutegica que toma a compreensatildeo
kantiana expressa na criacutetica do juiacutezo como modelo Nietzsche estabelece uma forte
oposiccedilatildeo agrave tendecircncia idealista que faz ver nos problemas referentes agrave vida uma explicaccedilatildeo
extra-fenomecircnica Ao opor-se a este tipo de explicaccedilatildeo o autor entende que tanto a
regularidade observada no reino inorgacircnico como a conveniecircncia a fins que se observa no
reino orgacircnico seriam produtos da apropriaccedilatildeo da razatildeo e natildeo caracteriacutesticas da realidade
mesma Pois para o autor das notas preparatoacuterias ldquoNatildeo temos direito a qualquer
julgamento sobre a intencionalidade maiorrdquo (BAW 3 paacuteg 375) e ldquoA teleologia assim como
o otimismo satildeo produtos esteacuteticosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) Com este tipo de afirmaccedilatildeo o autor
das notas Zur Telelologie pretende dizer que nem uma intencionalidade superior nem uma
consideraccedilatildeo otimista da realidade teriam fundamentos em elementos objetivos da
realidade Pelo contraacuterio tanto a consideraccedilatildeo otimista quanto a consideraccedilatildeo da realidade
segundo a pressuposiccedilatildeo de uma finalidade seriam produtos de uma apropriaccedilatildeo da
realidade segundo os modos da organizaccedilatildeo intelectual humana32
32 O termo ldquoperspectivismordquo natildeo aparece nas notas propriamente No entanto eacute possiacutevel perceber que seNietzsche naquela eacutepoca natildeo utiliza o termo perspectivismo para caracterizar uma apropriaccedilatildeo da realidadesegundo as instacircncias racionais o que corresponderia a uma falsificaccedilatildeo da realidade o termo eacute
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Para o autor das notas preparatoacuterias afastada a hipoacutetese da superioridade da vida
em relaccedilatildeo agrave natureza inorgacircnica a suposiccedilatildeo de uma finalidade como explicaccedilatildeo do
orgacircnico em nada pareceria superior a uma explicaccedilatildeo mecacircnica De fato qual a diferenccedila
entre uma explicaccedilatildeo mecacircnica e uma explicaccedilatildeo finaliacutestica da natureza quando afastada a
hipoacutetese de uma verdade superior agrave que toda explicaccedilatildeo da natureza deve-se se reportar O
que estaacute sendo colocado em duacutevida por Nietzsche aqui de fato seria a proacutepria validade de
um juiacutezo reflexivo teleoloacutegico Neste sentido como Lopes afirma o autor das notas
preparatoacuteria se colocaria em direta confrontaccedilatildeo agrave compreensatildeo kantiana da distinccedilatildeo entre
juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos
O caraacuteter indeterminado desta categorizaccedilatildeo permite a Nietzschequestionar um dos grandes dogmas do kantismo a antiacutetese entremecanismo e teleologia ou melhor entre juiacutezo determinante e juiacutezoreflexivo Ao longo de boa parte das notas preparatoacuterias Nietzscheparece aderir agrave concepccedilatildeo dicotocircmica de Kant que restringe o conceitode explicaccedilatildeo ao emprego da causalidade mecacircnica expressa no juiacutezodeterminante Contudo na progressatildeo das notas Nietzsche toma umadireccedilatildeo inversa e sugere uma reduccedilatildeo das causas mecacircnicas a causasfinais e do uso constitutivo ao uso reflexivo da faculdade de julgar(LOPES 2008 paacuteg 150)
O que Lopes sugere eacute que a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos determinantes e juiacutezos
reflexivos passa a ser questionada por Nietzsche em sua rejeiccedilatildeo de que se possa explicar
a natureza orgacircnica por meio de uma concepccedilatildeo finaliacutestica Paras compreensatildeo desse
problema torna-se necessaacuteria um retorno agrave terceira criacutetica kantiana A Criacutetica da
Faculdade do Juiacutezo de Kant pode ser entendida fundamentalmente como uma
investigaccedilatildeo criacutetica acerca de uma certa classe de juiacutezos chamados reflexionantes Os
juiacutezos reflexivos satildeo pesados por Kant em oposiccedilatildeo aos juiacutezos determinantes ou juiacutezos
cientiacuteficos
praticamente a uacutenica coisa que falta para efetuar uma aproximaccedilatildeo entre o pensamento expresso nas notaspreparatoacuterias e seu posterior perspectivismo Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo desconsiderar que naquele periacuteodo daobra nietzschiana a atribuiccedilatildeo de uma perspectividade em consideraccedilatildeo da apropriaccedilatildeo da realidade segundoos ditames da razatildeo corresponde a um anacronismo Mas os argumentos que o autor apresenta nas notaspreparatoacuterias conduzem a uma conclusatildeo fundamental que sem duacutevida seraacute retomada em seuperspectivismo a ideia de que toda ordem que se observa na realidade corresponde apenas a uma apropriaccedilatildeoracional da realidade e natildeo agrave realidade ela mesma
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Tal princiacutepio natildeo pode ser senatildeo este como leis universais da naturezatecircm seu fundamento em nosso entendimento que as prescreve agrave natureza(ainda que somente segundo o conceito universal dela como natureza) asleis empiacutericas particulares no que diz respeito agravequilo que nelas eacute deixadoindeterminado pelas leis universais da natureza precisam serconsideradas segundo uma tal unidade [nach einer solchen Einheitbetrachtet werden muumlssen] como se [als ob] um entendimento (aindaque natildeo o nosso) as tivesse dado com vistas agrave [zum Behuf] nossafaculdade de conhecimento para tornar possiacutevel um sistema daexperiecircncia segundo leis da natureza particulares Natildeo que desse modoum tal entendimento tivesse realmente que ser admitido (KANT 2016Paacuteg 11)
Os juiacutezos determinantes se diferenciariam dos juiacutezos reflexivos na medida em que
satildeo orientados por um universal Nesse sentido a terceira criacutetica kantiana que parte da
constataccedilatildeo de que um certo uso judicativo supotildee determinadas condiccedilotildees que natildeo satildeo as
mesmas que fundam nossos juiacutezos objetivos e a maioria dos nossos juiacutezos subjetivos33 Na
continuaccedilatildeo do texto do qual eacute extraiacutedo a citaccedilatildeo acima Kant refere-se aos juiacutezos e ao
33 Conforme Pedro Costa Rego a distinccedilatildeo kantiana entre juiacutezos objetivos e juiacutezos subjetivos diria respeitofundamentalmente a validade universal de certos juiacutezos em comparaccedilatildeo agrave validade meramente subjetiva deoutros ldquoPor juiacutezos objetivos entende Kant ateacute sua investigaccedilatildeo na terceira Criacutetica juiacutezos de validadeuniversal Objetividade e universalidade se confundem na medida em que 1) um juiacutezo objetivo eacute um juiacutezofundado em conceitos do entendimento ou da razatildeo 2) as categorias como formas de conceitos empiacutericos eas ideias da razatildeo satildeo elementos pertencentes agrave subjetividade como tal 3) juiacutezos que tecircm como fundamentode determinaccedilatildeo princiacutepios pertencentes a priori agrave subjetividade satildeo vaacutelidos para todos os sujeitos Que todojuiacutezo objetivo seja universal isso jamais seraacute problema para Kant O que entretanto a anaacutelise do gostorevelaraacute impreciso seraacute a formulaccedilatildeo completa ateacute entatildeo vaacutelida para a relaccedilatildeo entre a objetividade e auniversalidade do juiacutezo a saber que universalidade seja condiccedilatildeo necessaacuteria e suficiente para a objetividadede um juiacutezordquo (REGO 2006 Paacuteg 217) Em outras palavras Rego entende que a criacutetica do Juiacutezo se torna ummarco na filosofia kantiana na medida em que nesta criacutetica a distinccedilatildeo entre objetivo e subjetivo eacute elevada aum novo patamar ldquoFundamentar a pretensatildeo de universalidade erguida pelo uso habitual do predicado lsquobelorsquoeacute indicar no elemento da subjetividade como tal o fundamento de determinaccedilatildeo natildeo-objetivo de tal usojudicativo Se isso natildeo for possiacutevel o juiacutezo de gosto natildeo se diferencia do juiacutezo de agradabilidade privada enatildeo haacute argumento contra a tese do empirismo esteacutetico Se for possiacutevel natildeo eacute mais preciso aderir agrave insensatezracionalista de um gosto loacutegico e demonstraacutevel para mostrar que os prazeres esteacuteticos natildeo satildeo todos iguaisEm suma a relaccedilatildeo entre universalidade subjetiva e juiacutezo de gosto eacute uma relaccedilatildeo reivindicada A lsquoAnaliacuteticada Faculdade do Juiacutezo Esteacuteticarsquo eacute uma exposiccedilatildeo da reivindicaccedilatildeo de universalidade subjetiva que apenas ojuiacutezo de gosto ergue e uma deduccedilatildeo do direito do uso dessa reivindicaccedilatildeordquo (REGO 2006 Paacuteg 218) Emoutras palavras com base na sugestatildeo de que o juiacutezo de belo eacute comumente relacionado natildeo a um gostoparticular e nesse sentido subjetivo mas a uma certa universalidade entatildeo Kantpensa a possibilidade de seanalisar juiacutezos que apesar de natildeo poderem reclamar um caraacuteter universal posto que natildeo seriam vinculados aum universal nem tivessem fundamentos na constituiccedilatildeo transcendental ainda assim parecem se relacionarcom algum tipo de objetividade A criacutetica da faculdade de julgar assim se constituiria enquanto estudopropriamente desta objetividade tal como Rego afirma ldquo(hellip) a universalidade de um juiacutezo que tem comofundamento de determinaccedilatildeo natildeo um conceito mas o poder de julgar enquanto tal Sendo esse juiacutezojustamente o juiacutezo de gosto sobre o belo fica explicada a relaccedilatildeo entre lsquouniversalidade subjetivarsquo lsquojuiacutezo degostorsquo e lsquofaculdade do juiacutezorsquo e compreende-se no mesmo movimento por que a Esteacutetica de Kant eacute a parteprincipal de uma obra chamada lsquocriacutetica da faculdade de julgarrsquordquo (REGO 2006 Paacuteg 219)
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nosso poder de produzi-los como se aqui se trata-se de uma definiccedilatildeo que aqui eacute chamada
de subsunccedilatildeo O juiacutezo como subsunccedilatildeo apresenta-se ainda segundo a introduccedilatildeo da
terceira criacutetica em dois modos baacutesicos o determinante e o reflexionante Para Kant os
juiacutezos reflexionantes natildeo tecircm todos a mesma natureza e os mesmos fins Essa diversidade
permite a Kant classificaacute-los em dois grupos o dos esteacuteticos que tem por finalidade o
belo e o dos teleoloacutegicos que tem por finalidade o telos da natureza
Certamente satildeo estes uacuteltimos que interessam mais prontamente a Nietzsche em
Zur Telelologie Os juiacutezos teleoloacutegicos na medida em que se distinguem dos juiacutezos
esteacuteticos por seu objeto e por uma certa objetividade que se fundamentaria na natureza satildeo
definidos por Kant como juiacutezos cientiacuteficos ldquoA faculdade de juiacutezo teleoloacutegica [] procede
como sempre acontece no conhecimento teoacuterico segundo conceitos [] Por isso segundo
a sua aplicaccedilatildeo pertence agrave parte teoacuterica da filosofiardquo (KANT 2016 Paacuteg 27) Assim na
medida em que a condiccedilatildeo de reflexionante e por conseguinte a presenccedila do princiacutepio da
Zweckmaumlssigkeit e a conformidade a uma intenccedilatildeo cognoscitiva satildeo considerados traccedilos
distintivos do juiacutezo reflexionante teleoloacutegico em relaccedilatildeo aos juiacutezos reflexionantes esteacuteticos
estes satildeo tomados por Kant o juiacutezo de conhecimento de um telos na natureza e portanto
um juiacutezo conceitual A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo teleoloacutegica kantiana rejeita
justamente a possibilidade de que juiacutezos reflexionantes teleoloacutegicos sejam tomados como
juiacutezos determinantes como juiacutezos cientiacuteficos Isto porque em sua leitura apenas
explicaccedilotildees mecacircnicas da natureza corresponderiam a um tratamento verdadeiramente
cientiacutefico da natureza
Nietzsche compreende jaacute em Zur Teleologie que apenas podemos compreender do
mundo aquilo que criamos que incluiacutemos no mundo De tal maneira que nosso
conhecimento natildeo se confunde com uma estrateacutegia de traduccedilatildeo da natureza como se esta
se tratasse de um texto dado que a noacutes competiria decifrar Em sua leitura conhecimento
tem muito ais a ver com criaccedilatildeo do que com explicaccedilatildeo Eacute nesse sentido por exemplo que
em um fragmento poacutestumo em que o filoacutesofo reflete acerca de um texto kantiano acerca da
distinccedilatildeo entre juiacutezos determinantes e juiacutezos reflexivos Nietzsche escreve
(hellip) soacute podemos compreender plenamente aquilo que noacutes mesmospodemos construir e trazer agrave existecircncia segundo conceitos Deste modo
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apenas o matemaacutetico pode ser plenamente compreendido (ou sejacompreensatildeo formal) Estamos de resto face ao desconhecido Paraadministraacute-lo o homem inventa conceitos que apenas unificam umasomatoacuteria de propriedades que se manifestam mas natildeo tocam a coisa Aeles pertencem fora mateacuteria indiviacuteduo lei organismo aacutetomo causafinal Eles natildeo satildeo juiacutezos constitutivos mas tatildeo somente juiacutezos reflexivos(KGW I4 paacuteg 565)
Neste fragmento o que estaacute sendo posto eacute a possibilidade de reduccedilatildeo dos juiacutezos
determinantes Para o filoacutesofo na medida em que o homem em sua investigaccedilatildeo da
natureza nunca toca o acircmago das coisas mas pelo contraacuterio sempre trabalha no interior de
realidades por ele criadas tais como aacutetomos sujeitos objetos e todas as categorias com
que se tencione descrever agrave natureza a proacutepria razatildeo sempre estaria atuando de maneira
reflexiva sobre seus proacuteprios produtos Com isso a classe kantiana dos juiacutezos
determinantes a qual dependeria da admissatildeo ainda que apenas metodoloacutegica de uma
realidade extrafenocircmenica estaria de fato esvaziada de objetos Isto natildeo se confunde no
entanto com um alargamento do conceito de explicaccedilatildeo Natildeo se trata de propor que juiacutezos
explicativos deem conta de juiacutezos de finalidade mas o contraacuterio Nietzsche compreende
que juiacutezos explicativos de fato natildeo satildeo possiacuteveis
Retornando agrave anaacutelise levada a cabo pelo autor em Zur Teleologie em que esta
compreensatildeo se mostra presente a conveniecircncia a fins na natureza tal como estaacute foi
imposta ao reino orgacircnico natildeo passaria do produto de um juiacutezo reflexivo uma
consideraccedilatildeo subjetiva que confere leis agrave natureza sem as retirar dela Isto por que
Nietzsche rejeita a ideia de uma inteligecircncia superior como algo que deva ser aceito como
necessaacuterio para a compreensatildeo da natureza desde que para o autor eliminada a distinccedilatildeo
infundada entre realidade orgacircnica e realidade inorgacircnica esta poderia ser compreendida
em sua inteireza por meio da admissatildeo de causas meramente mecacircnicas Assim a
suposiccedilatildeo de uma finalidade na natureza tal como Kant a concebe natildeo diria respeito senatildeo
a uma investigaccedilatildeo da razatildeo com base em seus proacuteprios produtos
Como se pode ver o projeto de investigaccedilatildeo do conceito de orgacircnico a partir de
Kant potildee Nietzsche jaacute em 1868 em contato com uma postura proacutexima agravequela que
caracterizaraacute o periacuteodo maduro de seu pensamento34 Esta postura seria determinada pela
34 Notadamente com as ideias expressas pelo autor no aforismo 14 Aleacutem do Bem e do Mal ldquoComeccedila adespontar em cinco seis ceacuterebros talvez a ideia de que tambeacutem a fiacutesica eacute apenas uma interpretaccedilatildeo e
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compreensatildeo de que as leis da natureza ou conceitos gerais como o de ldquoorgacircnicordquo natildeo satildeo
mais do que ilusotildees produzidas pelo intelecto Na rejeiccedilatildeo nietzschiana das concepccedilotildees
kantianas entram em accedilatildeo ideias contundentes de A Histoacuteria do Materialismo que teratildeo
um longo amadurecimento na reflexatildeo nietzschiana e que acabaratildeo por fundamentar sua
concepccedilatildeo madura acerca do conhecimento assim como da relaccedilatildeo do conhecimento com
a metafiacutesica O fato de o autor das notas referir-se diversas vezes a passagens do texto
langeano para reforccedilar suas posiccedilotildees como por exemplo ao afirmar que ldquoOrdem e
desordem natildeo se encontram na naturezardquo (BAW 3 paacuteg 375) e que ldquoAtribuiacutemos efeitos agrave
causalidade dos quais as causas relacionadas natildeo vemosrdquo (BAW 3 paacuteg 375) apenas
reforccedila a compreensatildeo de que Nietzsche reflete longamente sobre as concepccedilotildees de Albert
Lange Dessa reflexatildeo a ideia de que toda atribuiccedilatildeo de finalidade na realidade seria um
produto da atuaccedilatildeo poeacutetica humana eacute o resultado mais importante para o texto em estudo
A rejeiccedilatildeo da vida como elemento especial da realidade aparece nessa
compreensatildeo como exemplo da profundidade da influecircncia do materialismo de Lange na
reflexatildeo nietzschiana No lugar de uma concepccedilatildeo otimista em relaccedilatildeo agrave realidade o autor
sustenta uma posiccedilatildeo segundo a qual o acaso seria a uacuteltima fundamentaccedilatildeo da existecircncia
de tudo o que aparece Assim ao considerar que das inuacutemeras possibilidades de
combinaccedilatildeo dos elementos naturais tambeacutem o orgacircnico aparece como possiacutevel o autor das
notas estaacute rejeitando toda necessidade de uma finalidade superior como forma de
explicaccedilatildeo para a vida No lugar de finalidade a vida aparece como tendo seu surgimento e
manutenccedilatildeo condicionados por causas puramente materiais
Para o autor das notas sobre teleologia tudo que existe deve existir posto que deve
ter as condiccedilotildees de sua existecircncia impressas em seu surgimento A apariccedilatildeo do orgacircnico
natildeo representaria nesse sentido nenhum milagre mas apenas uma apariccedilatildeo natural de algo
de cujas causas se desconhece em todo ou em parte Por outro lado o desconhecimento das
causas que ocasionam o seu surgimento natildeo correspondem a um milagre mas apenas a
uma limitaccedilatildeo no conhecimento destas causas
disposiccedilatildeo do mundo (nisso nos acompanhando permitam lembrar) e natildeo uma explicaccedilatildeo do mundoporeacutem na medida em que se apoia na crenccedila nos sentidos ela passa e deveraacute passar durante muito tempopor algo mais isto eacute por explicaccedilatildeordquo (JGBABM I sect14)
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Coisas existem entatildeo elas devem existir o que significa que elas devemter as condiccedilotildees para a existecircncia Quando o homem faz algo estes meiosfazem este algo capaz de existecircncia ele pensa acerca das condiccedilotildees sobas quais isto pode se dar Ele chama as condiccedilotildees para a existecircncia daobra acabada conveniente a fins apoacutes o fato Portanto ele tambeacutem chamaas condiccedilotildees de existecircncia das coisas convenientes a fins o que querdizer apenas com a pressuposiccedilatildeo de que eles surgem do mesmo modoque as obras humanas Quando um homem sorteia um nuacutemero de umacaixa e este natildeo eacute seu nuacutemero ele natildeo eacute nem conforme a fins e neminconforme a fins mas como se diz acaso (zufaumlllig) o que quer dizersem pensamento precedente Poreacutem as condiccedilotildees dessa existecircncia satildeodadas (BAW 3 paacutegs 375-376)
Tudo que surge no reino do orgacircnico pertence agrave realidade porque causa mecacircnicas
determinam seu surgimento e natildeo por conta de um intelecto superior que determina sua
existecircncia Esta suposiccedilatildeo confronta diretamente a concepccedilatildeo kantiana segundo a qual a
causalidade mecacircnica natildeo poderia explicar o reino do orgacircnico Assim ao citar Kant
quando diz ldquoA organizaccedilatildeo da natureza natildeo tem nenhuma analogia com qualquer
causalidade que conheccedilamosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) e ldquoUm organismo eacute aquilo em que tudo
eacute intercambiaacutevel tanto o fim quanto os meiosrdquo (BAW 3 paacuteg 376) Nietzsche jaacute estaacute em
condiccedilotildees de negar estas exigecircncias Ao inveacutes de uma explicaccedilatildeo aceitaacutevel para a origem
do orgacircnico o autor das notas preparatoacuterias vecirc em Kant apenas uma supervalorizaccedilatildeo do
racional fundamentada em uma concepccedilatildeo infundada do orgacircnico como algo superior agrave
natureza inorgacircnica
14 A esfera mecacircnica como perspectiva propriamente humana
O autor das notas sobre teleologia apresenta em sua leitura do problema do
orgacircnico assim como sua relaccedilatildeo com o inorgacircnico uma interpretaccedilatildeo em que nem a
realidade mecacircnica nem a orgacircnica pertenceriam agrave realidade em si Para o jovem
Nietzsche ambas aproximaccedilotildees do problema tanto a teleoloacutegica quanto a mecacircnica
representariam apenas reflexos de nosso ponto de vista seriam assim produtos de nossa
organizaccedilatildeo Com isso eacute possiacutevel ver que nesta concepccedilatildeo intercalam-se aspectos da
rejeiccedilatildeo nietzschiana das realidades em si e de sua concepccedilatildeo do conhecimento como
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tendo suas limitaccedilotildees em nossa organizaccedilatildeo Estas satildeo ideias caras a Nietzsche que
decorrem sobretudo de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo
Agravequela altura o autor estaacute certo de que a partir de nosso ponto de referecircncia do
ponto de vista da natureza humana apenas somos capazes de conhecer por meio de
relaccedilotildees causais ou seja ldquoapenas conhecemos mecanismosrdquo e natildeo organismos Com isso
Nietzsche adianta sua conclusatildeo final para o caso dos organismos e da teleologia portanto
uma rejeiccedilatildeo da posiccedilatildeo kantiana e uma reafirmaccedilatildeo da posiccedilatildeo langeana
O que Kant afirma ele afirma com base em uma maacute analogia que deacordo com essa ideia natildeo haacute nada similar agraves relaccedilotildees de conveniecircncia afins dos organismos A conveniecircncia a fins surge como um caso especialdo possiacutevel formas sem fim surgem o que quer dizer por meio de junccedilatildeomecacircnica entre estas incontaacuteveis formas poderia haver tambeacutem algumascapazes de vida (BAW 3 paacuteg 378-379)
Na citaccedilatildeo fica expliacutecita a compreensatildeo nietzschiana segundo a qual apenas por
meio de uma analogia improcedente entre o modo como o homem cria com a forma como
as coisas satildeo criadas na natureza Kant teria podido sustentar sua concepccedilatildeo teleoloacutegica35
Assim a uacutenica forma de rejeitar o surgimento dos organismos por meios mecacircnicos seria a
suposiccedilatildeo de uma conformidade a fins incoerente como Nietzsche estaacute convencido de
haver demonstrado
Na compreensatildeo nietzschiana Kant teria recorrido a uma realidade extrafenomecircnica
como modo de justificar a existecircncia de uma inteligecircncia diretora por conta de sua rejeiccedilatildeo
de que organismos complexos pudessem surgir por meios mecacircnicos Mas como o autor da
Criacutetica do Juiacutezo poderia sustentar este recurso a uma realidade superior se em sua filosofia
teoacuterica teria negado a possibilidade de conhecimento de qualquer coisa que se pusesse para
aleacutem dos fenocircmenos Assim ao oferecer uma rejeiccedilatildeo sistemaacutetica das concepccedilotildees
kantianas acerca do orgacircnico Nietzsche pensava sustentar aquilo que considerava ser uma
posiccedilatildeo eminentemente kantiana Posiccedilatildeo segundo a qual ldquoo que se encontra para aleacutem de
nossos conceitos eacute completamente impossiacutevel de conhecerrdquo (BAW 3 paacuteg 378-379)
35 A analogia eacute bastante conhecida na histoacuteria da defesa de concepccedilotildees teleoloacutegicas na forma de umaconcepccedilatildeo de design inteligente segundo a qual toda criaccedilatildeo complexa implica a existecircncia de um criadorinteligente
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Vimos em seccedilatildeo anterior que naquele periacuteodo de seu pensamento Nietzsche
escreve um texto criacutetico da filosofia schopenhaueriana em que ataca justamente este
ponto Assim negada a possibilidade de acesso cognitivo a uma realidade superior o que
restaria seria a afirmaccedilatildeo de que o conceito de orgacircnico eacute apenas um conceito humano que
natildeo encontra reflexos na realidade objetiva Assim Nietzsche afirma ldquoa ideia de totalidade
eacute obra nossa Aqui repousa a fonte de nossa representaccedilatildeo de finalidadesrdquo (BAW 3 paacuteg
379) A totalidade da natureza orgacircnica agrave qual Kant pensava que as partes se referiam de
forma finaliacutestica seria apenas um produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo
De fato para o autor das notas preparatoacuterias a proacutepria constituiccedilatildeo do orgacircnico
passa por categorias humanas como a categoria de unidade e de totalidade Sem a ideia de
totalidade tambeacutem a ideia kantiana de finalidade orgacircnica cairia por terra Mas se a
finalidade natural natildeo tem sua explicaccedilatildeo em uma realidade extrafenomecircnica porque natildeo
temos acesso a uma tal realidade isto natildeo quer dizer que o orgacircnico natildeo possa ter sua
origem explicada Esta explicaccedilatildeo no entanto natildeo poderia ser dada de forma definitiva
posto que se fundamentaria em nossa organizaccedilatildeo Assim Para Nietzsche a origem do
orgacircnico apenas pode ser dada de forma hipoteacutetica36 e a hipoacutetese defendida pelo autor das
notas seria uma combinaccedilatildeo de mecanicismo e causalismo A ideia da origem do orgacircnico
por meio da atuaccedilatildeo de relaccedilotildees causais que se dariam ao acaso eacute formulada pelo autor das
notas com base em sua rejeiccedilatildeo da concepccedilatildeo de uma inteligecircncia diretora por traacutes da
criaccedilatildeo da realidade
A origem do orgacircnico eacute uma origem hipoteacutetica em que noacutes imaginamosum entendimento humano como presente Agora o conceito de orgacircnicoeacute tambeacutem apenas humano deve-se apontar a analogia de que o que eacute
36 Na adoccedilatildeo nietzschiana de uma hipoacutetese como resposta agrave suposiccedilatildeo contraacuteria que no caso das notas sobreteleologia eacute a hipoacutetese teleoloacutegica eacute possiacutevel perceber traccedilos de semelhanccedila com a madura concepccedilatildeonietzschiana de vontade de potecircncia e sua defesa hipoteacutetica no aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do MalCertamente que a defesa de hipoacuteteses natildeo constitui elemento original na filosofia de um autor comoNietzsche o qual sempre apresenta em seus escritos mais questionamentos do que respostas Mas o fato dofiloacutesofo natildeo defender posiccedilotildees dogmaacuteticas pode ser um elemento mais significativo do que parece a primeiravista podendo significar uma resoluta renuacutencia agrave defesa de posiccedilotildees dogmaacuteticas Atitude que a partir deAleacutem do Bem e do Mal se torna expliacutecita Chama a nossa atenccedilatildeo sobretudo o fato de Nietzsche apresentaresta concepccedilatildeo de maneira hipoteacutetica nessa passagem o que remete agrave forma como o autor apresenta a suaconcepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia como hipoacutetese adversaacuteria da concepccedilatildeo mecanicista dos fiacutesicos No casoem questatildeo a hipoacutetese resumida por Nietzsche como a hipoacutetese acerca da origem do orgacircnico segundo aqual o mesmo princiacutepio diretor que atua na manutenccedilatildeo do orgacircnico atuaria em sua criaccedilatildeo eacute contraposta aideia de uma associaccedilatildeo de mecanicismo e acaso que o autor entende como capaz de originar mesmo asformas mais complexas do orgacircnico
61
capaz de vida surge dentre uma multiplicidade daquelas possibilidadesincapazes de vida Com o quecirc nos aproximamos da soluccedilatildeo doorganismo Vemos o tanto quanto eacute capaz de vida surgir e se manter evemos o meacutetodo Suposto que a forccedila que opera para tornar a vida capazde existecircncia a traz para a existecircncia e a manteacutem do mesmo modo isto eacutemuito irracional Mas esta eacute a pressuposiccedilatildeo da teleologia (BAW 3 paacuteg379)
Diante do absurdo da suposiccedilatildeo de que um mesmo princiacutepio guiado pelas mesmas
premissas atuaria na origem e na manutenccedilatildeo de um ente orgacircnico o autor apresenta a
concepccedilatildeo segundo a qual apenas nossa forma de compreender o orgacircnico poderia
justificar esta distorccedilatildeo fundamental A partir dessa rejeiccedilatildeo fundamental da ideia de uma
inteligecircncia diretora e da hipoacutetese de que um mesmo princiacutepio atuasse na origem e na
manutenccedilatildeo dos seres vivos Nietzsche passa a levar em consideraccedilatildeo o problema
epistemoloacutegico fundamental apresentado na Criacutetica do Juiacutezo Assim na continuidade do
conjunto de fragmentos poacutestumos que compotildeem as notas preparatoacuterias para Zur
Teleologie o autor pretende estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas
categorias de causa e efeito
Atraveacutes do recurso agrave categoria de causalidade e a propriedade do meacutetodo de
investigaccedilatildeo mecanicista Nietzsche rejeita a oposiccedilatildeo entre as categorias de unidade e
multiplicidade Esta oposiccedilatildeo com base na qual a explicaccedilatildeo kantiana da necessidade de
um princiacutepio teleoloacutegico para a explicaccedilatildeo de seres orgacircnicos se fundamentaria seria de
fato o rela motivo pelo qual o autor das notas preparatoacuterias teria inserido Kant entre os
defensores da teleologia Na leitura do autor das notas preparatoacuterias apesar da ideia
simples do organismo se apresentar a noacutes como o proacuteprio organismo esta ideia se potildee para
aleacutem da multiplicidade de partes e estados que compotildeem o organismo sem que com isso
se perca a sua identidade
Por isso o filoacutesofo cita uma passagem de A Histoacuteria do Materialismo em que
Lange discute as concepccedilotildees naturalistas de Goethe ldquolsquoToda coisa vivarsquo nos diz Goethe lsquoeacute
natildeo uma singularidade mas uma pluralidade mesmo se no entanto ela aparece a noacutes
como um indiviacuteduo ela permanece uma coleccedilatildeo de seres vivos independentesrsquordquo (BAW 3
Paacuteg 376) Com base nessa interpretaccedilatildeo Nietzsche argumenta que tal natildeo se daria se o
organismo natildeo fosse um elemento estrutural da natureza mas ao contraacuterio a unidade
62
estrutural do orgacircnico fosse um produto de nosso intelecto e natildeo uma caracteriacutestica da
natureza
Este seria o real motivo porque o foco da criacutetica nietzschiana agrave teleologia naquele
momento recaia sobre a concepccedilatildeo tradicional de orgacircnico Pois na medida em que a
tradiccedilatildeo representava a visatildeo da natureza como sendo formada por unidades independentes
que se organizariam para constituir um todo complexo a dicotomia entre a multiplicidade
das partes e a unidade do organismo seria fundamental para a compreensatildeo do mundo
orgacircnico Portanto a verdadeira oposiccedilatildeo natildeo se daria entre uma concepccedilatildeo mecacircnica e
uma concepccedilatildeo teleoloacutegica dos organismos mas entre uma concepccedilatildeo que se baseia na
ideia tradicional de organismos aqueles que pretendem um esclarecimento da natureza
mediante a elucidaccedilatildeo da categoria de orgacircnico e as concepccedilotildees mecacircnicas que
pretendem estabelecer uma explicaccedilatildeo da natureza com base nas categorias de causa e
efeito (BAW 3 paacuteg 130)
Acompanhando a interpretaccedilatildeo de Fischer para quem ldquoO que a razatildeo conhece da
natureza atraveacutes de seus conceitos natildeo eacute nada mais do que o efeito de forccedilas em
movimento ou seja seu mecanismordquo(BAW 3 paacuteg 377) Nietzsche adianta uma
explicaccedilatildeo do mundo orgacircnico que pressupotildee apenas uma forma de causalidade mecacircnica
retomando assim a possibilidade de uma explicaccedilatildeo meramente mecacircnica dos
organismos Nesse sentido o autor chega a admitir apenas a explicaccedilatildeo mecacircnica como
explicaccedilatildeo cientiacutefica como demonstra a citaccedilatildeo de Fischer que encontramos como
fundamento de sua posterior argumentaccedilatildeo ldquoO que natildeo pode ser conhecido por meio de
um ponto de vista meramente mecacircnico natildeo pertence agrave ciecircncia naturalrdquo (BAW 3 paacuteg
377) Com base na suposiccedilatildeo apenas de princiacutepios mecacircnicos na explicaccedilatildeo da realidade
orgacircnica Nietzsche desqualifica toda forma de explicaccedilatildeo teleoloacutegica da natureza como
sendo uma explicaccedilatildeo natildeo cientiacutefica
Ainda em conformidade com Fischer e Lange Nietzsche escreve ldquoexplicar
mecanicamente significa explicar a partir de causas externasrdquo (BAW 3 paacuteg 377) Desta
maneira o autor das notas preparatoacuterias reforccedila a ideia de que toda suposiccedilatildeo de uma
teleologia interna repousa apenas em um preconceito ocasionado por uma super-
valorizaccedilatildeo da razatildeo Esta interpretaccedilatildeo do problema teleoloacutegico eacute contraposta agrave
interpretaccedilatildeo apresentada por Kant na criacutetica do Juiacutezo segundo a qual ldquoA especificaccedilatildeo
63
(da natureza) natildeo pode ser explicada atraveacutes de causas naturaisrdquo (BAW 3 paacuteg 377)
Nietzsche conclui que as causas internas as quais Kant necessariamente precisa recorrer
em sua explicaccedilatildeo dos organismos na figura da finalidade seriam o mesmo que
representaccedilotildees ideias as quais se recorre para atribuir uma explicaccedilatildeo ao que natildeo eacute
passiacutevel de conhecimento
No entanto desde que a elas corresponderia apenas um ldquoponto de vistardquo e um
ponto de vista natildeo pode ser confundido com um conhecimento objetivo a explicaccedilatildeo dos
seres orgacircnicos por meio da ideia de conveniecircncia a fins corresponderia apenas agrave uma
perspectiva limitada Se como Nietzsche nesse ponto chega a afirmar ldquoo princiacutepio de um
tal ponto de vista necessaacuterio deve ser um conceito da razatildeordquo (BAW 3 paacuteg 377) entatildeo
toda forma de explicaccedilatildeo da natureza corresponderia apenas a sua sujeiccedilatildeo ao mecanismo
representacional humano Logo toda explicaccedilatildeo da natureza repousaria em uma forma de
representaccedilatildeo mais ou menos subjetiva ocasionada pelo modo mesmo como a razatildeo
constitui seus produtos Por outro lado a proacutepria compreensatildeo das coisas mediante uma
explicaccedilatildeo causal seria ainda uma limitaccedilatildeo relativa apenas ao nosso modo de
compreensatildeo porque ldquoDevido a nossa organizaccedilatildeo apenas podemos compreender uma
origem mecacircnica das coisasrdquo (BAW 3 paacuteg 378)
As notas preparatoacuterias para a tese sobre teleologia assim parece apresentar como
seu resultado final uma compreensatildeo do caraacuteter limitado de toda forma de compreensatildeo da
realidade Posto que todo conhecimento da realidade apenas pode ser tomado como uma
representaccedilatildeo segundo a forma humana de apreensatildeo desta realidade entatildeo ou bem o
conhecimento propriamente natildeo eacute possiacutevel ou apenas pode ser tomado como
conhecimento uma forma humana de representaccedilatildeo da realidade Em um outro texto do
periacuteodo de juventude Nietzsche se voltaraacute para os problemas referentes agrave verdade e ao
conhecimento mas agora entraram em cena novas variaacuteveis tais como a linguagem e o
valor moral das nossa representaccedilotildees da realidade Desta forma na medida em que
compreendemos que a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do conhecimento diz respeito a
uma avaliaccedilatildeo do valor do conhecimento entatildeo o Ensaio sobre Verdade e Mentira
apresentaraacute em relaccedilatildeo agrave Zur Teleologie elementos que atestam um progresso
consideraacutevel no caminho da formulaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano
64
2 Segundo capiacutetulo O Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral
O Ensaio sobre Verdade e Mentira escrito poacutestumo ditado por Nietzsche a um
amigo em 1873 portanto um ano apoacutes a publicaccedilatildeo de O Nascimento da Trageacutedia
testemunha a preocupaccedilatildeo do jovem filoacutesofo com temas relacionados aos problemas do
conhecimento e da verdade Nesse sentido como um primeiro exemplo da abordagem
destes problemas na filosofia nietzschiana pretendemos interpretar este ensaio como o
ponto de partida para diversas concepccedilotildees acerca da natureza do conhecimento Como a
leitura do ensaio deixa claro o autor retira estas concepccedilotildees de seu contato com as ciecircncias
naturais de sua eacutepoca O que significa que assim como no caso das notas Zur Teleologie o
Ensaio sobre Verdade e Mentira assume um aspecto que se poderia qualificar
parafraseando Nietzsche como semifilosoacutefico e semicientiacutefico
Tanto nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie quanto no Ensaio sobre Verdade
e Mentira Nietzsche demonstra um profundo interesse pelas disputas em torno de temas
comuns agraves ciecircncias naturais Se nas notas sobre teleologia o autor se relaciona intimamente
com diversas teorias acerca da natureza do orgacircnico no ensaio aparecem representadas
teses sobre evoluccedilatildeo das espeacutecies e sobre a funccedilatildeo bioloacutegica de determinadas estruturas do
aparato humano De tal forma estes textos demonstram a preponderacircncia de questotildees
relacionadas ao conhecimento em uma interpretaccedilatildeo que aproxima essa temaacutetica dos
estudos bioloacutegicos que natildeo se pode deixar de relacionaacute-los aos desdobramentos que o
autor apresenta no aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia
No aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia encontramos os traccedilos centrais da teoria do
conhecimento suportada por Nietzsche no periacuteodo intermediaacuterio de seu pensamento
Nesses traccedilos natildeo encontraremos a meu ver mudanccedilas significativas em relaccedilatildeo ao modo
como o conhecimento eacute tratado em sua filosofia de juventude notadamente em seu Ensaio
sobre Verdade e Mentira O objeto do aforismo eacute a criacutetica agrave concepccedilatildeo de consciecircncia
apresentado aqui discretamente como o problema do tornar-se consciente desde que
Nietzsche rejeita a ideia de uma consciecircncia independente do ldquotornar-se conscienterdquo Uma
65
resultante desse problema como se pode notar facilmente eacute a concepccedilatildeo de consciecircncia
como objeto de um conhecimento absolutamente certo de si mesma37
O perspectivismo e o fenomenalismo aparecem aqui como a indicaccedilatildeo de que
apenas como fenocircmeno apenas no seu aparecer enquanto o nosso tornar-se consciente a
consciecircncia pode ser objeto de conhecimento38 E como fenocircmeno que eacute nos diz
Nietzsche39 esta seria passiacutevel de uma anaacutelise apenas parcial posto que apenas pode ser
reconhecida por noacutes como um produto de nossa organizaccedilatildeo A anaacutelise do processo de
formaccedilatildeo da consciecircncia tal como estaacute se daraacute aqui tal como se deu a anaacutelise do intelecto
em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira passa pelo questionamento acerca da utilidade do
aparato cognitivo humano
Os textos em questatildeo representariam sobretudo um posicionamento criacutetico de
Nietzsche com relaccedilatildeo agrave concepccedilotildees tradicionais de conhecimento Do mesmo modo estes
textos se utilizam amplamente de concepccedilotildees derivadas das ciecircncias naturais como forma
de se contrapor a tais concepccedilotildees tradicionais Em sua abordagem evolutiva ou seja que
toma como referecircncia a evoluccedilatildeo bioloacutegica da espeacutecie humana a consciecircncia eacute tomada
como um oacutergatildeo cuja principal funccedilatildeo estaria relacionada agrave criaccedilatildeo da linguagem A
linguagem por sua vez seria compreendida como uma peccedila fundamental na estrateacutegia de
sobrevivecircncia que se tornou mais eficiente para os homens Assim encontraremos no
aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia o questionamento ldquopara quecirc precisamente consciecircnciardquo
37 Como se sabe o conceito de consciecircncia assim como a possibilidade de seu conhecimento certocompotildee o argumento central da filosofia cartesiana a qual influenciou fortemente toda a filosofia moderna Acriacutetica agrave modernidade e sua concepccedilatildeo racionalista portanto comeccedila em Nietzsche pela criacutetica da concepccedilatildeoracionalista de consciecircncia e com a apresentaccedilatildeo dos elementos inconscientes por traacutes da formaccedilatildeo daconsciecircncia que ele apresenta no aforismo em questatildeo38 Eacute importante notar que estes termos satildeo utilizados aqui por Nietzsche com a maacutexima precauccedilatildeo comobem observa Stegmaier ldquoEs ist einer der seltenen Faumllle in denen er im veroumlffentlichten Werk solche Terminibenutzt und er umstellt sie denn auch sogleich mit deutlichen Einschraumlnkungen bdquoDies ist der eigentlichePhaumlnomenalismus und Perspektivismus wie ich ihn versteherdquo (STEGMAIER Werner NietzschesBefreiung der Philosophie Kontextuelle Interpretation des V Buchs der bdquoFroumlhlichen Wissenschaftldquo IIUrsprungsfragen zur Aufloumlsung von scheinbar letztem Halt De Gruyter (Berlin Boston) 2012 Paacuteg 280)Como Stegmaier tambeacutem nos diz essa eacute uma das poucas passagens onde podemos contemplar a utilizaccedilatildeodestes termo por Nietzsche
39 Como explica Stegmaier ldquoDer Begriff sbquoPhaumlnomenalismuslsquo war vor allem auf Kants Lehre gemuumlnzt dasswir es niemals mit sbquoDingen an sichlsquo sondern immer nur mit sbquoErscheinungenlsquo sbquoPhaumlnomenenlsquo zu tun haumlttenauch dieser sbquo-ismuslsquo wurde wie viele andere zunaumlchst von Kritikern jener Lehre aufgebracht und dann auchzu ihrer Verteidigung und Fortbildung benutztrdquo Idem
66
Este questionamento que de certo modo jaacute encontra fora respondido no Ensaio sobre
Verdade e Mentira tem no aforismo em questatildeo uma resposta hipoteacutetica ldquoPara fins de
comunicaccedilatildeordquo
Consideramos que a concepccedilatildeo presente no ensaio de uma evoluccedilatildeo do intelecto
com base na necessidade de uma vida coletiva a qual por sua vez torna-se cada vez mais
dependente de uma linguagem pode ser lida aqui como uma variaccedilatildeo do questionamento
suportado por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia A similaridade de objetos assim como da
resposta torna possiacutevel estabelecer uma certa continuidade entre o periacuteodo de juventude e
o periacuteodo intermediaacuterio da reflexatildeo nietzschiana Continuidade que se natildeo pode se
confundir com a supressatildeo das discordacircncias pode servir de base para a ideia de que
apesar de uma certa variaccedilatildeo na abordagem as ideias acerca das relaccedilotildees entre o
conhecimento e a linguagem permanecem praticamente intocadas com o desenvolvimento
do pensamento nietzschiano
A primeira dificuldade que se nos apresenta no estudo do ensaio em questatildeo eacute o
uso ambiacuteguo de verdade a que este daacute lugar40 A originalidade do ensaio que como o tiacutetulo
40 No capiacutetulo de seu livro dedicado ao estudo do ensaio sobre verdade e mentira Bornedal se daacute conta dessaconhecida dificuldade e identifica trecircs (ou quatro) sentidos de verdade no ensaio em questatildeo ldquolsquoverdadersquo eacuteuma bem conhecida pedra no caminho para os comentadores do ensaio de juventude de Nietzsche Muitoscomentadores veem Nietzsche se contradizendo porque ele introduz muitos conceitos diferentes eincompatiacuteveis de verdade Concordamos que Nietzsche realmente introduz diferentes noccedilotildees de lsquoverdadersquo eestamos aptos a numerar no ensaio exatamente trecircs (ou quatro dependendo de como se conta) destas taisnoccedilotildees de verdade verdade como veracidade (truthfulness) verdade como ilusatildeo (que se divide em duasformas porque a verdade pode ser uma ilusatildeo devida agrave percepccedilatildeo ou uma ilusatildeo devida aos conceitos) everdade como a coisa em si Poreacutem ao introduzir estes trecircs ou quatro conceitos de verdade natildeo percebemosuma contradiccedilatildeo em Nietzsche desde que as noccedilotildees tecircm diferentes definiccedilotildees aplicaccedilotildees e contextosrdquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 32-33) No entanto apresentamos uma versatildeo um pouco diferente dasconcepccedilotildees de verdade segundo Bornedal porque este associa uma concepccedilatildeo de coisas em si com umaconcepccedilatildeo de verdade segundo Nietzsche quando nos parece que o autor do ensaio nega esta relaccedilatildeo emtodos os momentos que se refere agraves coisas em si Bornedal parece incorrer em uma interpretaccedilatildeo corriqueirada filosofia de juventude de Nietzsche a qual nos contrapomos de que nesta fase o filoacutesofo postula-se aexistecircncia de coisas em si como um elemento necessaacuterio de sua negaccedilatildeo do conhecimento verdadeiro Com oadendo de que Bornedal faz observaccedilotildees fundamentais no sentido de esclarecer que na reflexatildeo nietzschianadaquele periacuteodo este jaacute se relacionaria com uma versatildeo criacutetica da coisa em si de acordo com asinterpretaccedilotildees de Lange e Hemholtz da filosofia kantiana Versatildeo criacutetica em que o que se potildee para aleacutem dosfenocircmenos natildeo teria relaccedilotildees com uma realidade transcendente mas apenas com o complexo bruto natildeotraduzido de estiacutemulos nervosos Em resumo a coisa em si a qual Nietzsche faria referecircncia no ensaio teriamais a ver com os estiacutemulos nervosos por traacutes das percepccedilotildees humanas ou ldquoNesta reformulaccedilatildeoepistemoloacutegico-cientiacutefica do pensamento kantiano a coisa em si eacute mais do que simplesmente o enigmaacuteticolsquoXrsquo de Kant ele ainda eacute certamente enigmaacutetico mas agora ele eacute compreendido como impressotildees sensiacuteveisimpressas em noacutes lsquosob a pelersquo como diria Schopenhauer A coisa em si eacute tatildeo incompreensiacutevel e inacessiacutevelcomo sempre mas agora sua incompreensibilidade tinha uma explicaccedilatildeo fisioloacutegico-cientiacuteficardquo(BORNEDAL 2010 paacutegs 41)
67
anuncia tem como tema a verdade e a mentira vistas de um ponto de vista extramoral
residiria no fato de que a anaacutelise destes temas em contraposiccedilatildeo agraves abordagens
tradicionais buscaria situar-se em um patamar de exterior agrave moral A primeira denuacutencia do
texto portanto denuacutencia que jaacute se encontra em seu tiacutetulo diz respeito a insinuaccedilatildeo da
moral em questotildees relativas agrave verdade e a mentira Para o autor do ensaio o
questionamento pela forma como a moral se confunde com a verdade e a mentira jaacute
representaria um passo fundamental na determinaccedilatildeo do que sejam de fato verdade e
mentira
Seu posicionamento distingue-se aos estudos anteriores dessas concepccedilotildees
filosoacuteficas que o autor julga terem sido analisados dentro de uma apreciaccedilatildeo estritamente
moral Assim o autor do ensaio procura qualificar tanto a verdade quanto a mentira como
instacircncias cuja a origem natildeo se relacionaria com algum reino moral Seria somente a partir
das consequecircncias negativas deste uso que surgiria o impulso moral agrave verdade Pois para o
autor do ensaio a verdade em uma primeira acepccedilatildeo estaria relacionada agrave veracidade ou
o uso correto de designaccedilotildees produzidas pelo intelecto a partir de metaacuteforas Em outro
sentido a verdade seria uma ilusatildeo decorrente de se tomar por verdadeiro uma percepccedilatildeo
ou um conceito de algo Por fim a verdade estaria relacionada ao uso dos termos
acordados em uma comunidade tornando-se aquilo que a tradiccedilatildeo entendeu como verdade
com todo o peso moral que esta concepccedilatildeo assume a partir de um haacutebito de interiorizaccedilatildeo
das consequecircncias do uso incorreto dos termos acordados Eacute assim que para o autor a
mentira poderia a princiacutepio ser tomada como o uso incorreto de designaccedilotildees acordadas
em sociedade
Poderia ser dito entatildeo que a originalidade do texto em questatildeo reside no
questionamento do julgamento moral positivo acerca da verdade e o correlato julgamento
negativo com relaccedilatildeo agrave mentira que encontramos nas abordagens tradicionais dos
problemas da verdade Se a verdade eacute universalmente e objetivamente preferiacutevel agrave
mentira e o autor estaacute bem longe de acreditar nisso sua preferecircncia deve ser dada por algo
estranho agrave moral que ao contraacuterio do que se imagina natildeo eacute eterna e portanto anterior agrave
criaccedilatildeo da verdade e da mentira Para o autor do ensaio pelo contraacuterio a moral seria uma
decorrecircncia da criaccedilatildeo da verdade e da mentira
68
21 O erro como condiccedilatildeo de sobrevivecircncia e o valor moral da mentira
No ensaio sobre verdade e mentira o intelecto eacute concebido apenas como um
instrumento uma construccedilatildeo orgacircnica um oacutergatildeo voltado para a sobrevivecircncia do ser
humano No que se vecirc claramente uma rejeiccedilatildeo de qualquer finalidade exterior agrave
sobrevivecircncia humana41 Esta renuacutencia ao conhecimento como finalidade a indicaccedilatildeo de
que ao contraacuterio do que a tradiccedilatildeo imagina o intelecto natildeo seria o uacuteltimo grau de
desenvolvimento bioloacutegico prepara o cenaacuterio para o desmascaramento do homem como
ponto culminante da criaccedilatildeo
Naquelas notas preparatoacuterias para uma dissertaccedilatildeo em filosofia o autor buscava
uma explicaccedilatildeo mecacircnica capaz de suplantar a explicaccedilatildeo teleoloacutegica do mundo natural
Analogamente no ensaio em estudo a biologia a lei natural de desenvolvimento dos
organismos apareceraacute como instrumento interpretativo para estruturas sobre as quais o
idealismo fundamentava o que o autor considerava as mais tresloucadas concepccedilotildees Mais
ainda em sua exposiccedilatildeo do desenvolvimento do intelecto como oacutergatildeo para a linguagem o
autor desconsidera a possibilidade de qualquer finalidade superior assim como reduz a
importacircncia do oacutergatildeo em questatildeo a uma finalidade fisioloacutegica Com isso o autor parece
pocircr em uso um entendimento criacutetico com relaccedilatildeo agrave teleologia que seria similar ao
apresentado nas jaacute referidas notas sobre teleologia
Uma conclusatildeo fundamental que pode ser extraiacuteda do ensaio eacute que o conhecimento
representado aqui na forma do grande edifiacutecio de conceitos da qual a ciecircncia seria uma
expressatildeo natildeo se confunde em Nietzsche como um produto da verdade Na verdade
como a construccedilatildeo que toma por material os conceitos que satildeo algo como cristalizaccedilotildees de
metaacuteforas adequadas a ciecircncia eacute apenas uma construccedilatildeo humana para fins de
sobrevivecircncia humana que natildeo tem um valor absoluto e cujo valor para outras espeacutecies eacute
questionaacutevel Ora se aprofundarmos a metaacutefora da teia da aranha em relaccedilatildeo ao
conhecimento para o homem veremos que a ciecircncia humana eacute tatildeo verdadeira para a aranha
quanto a teia desta para noacutes Algo simplesmente natildeo encaixa na comparaccedilatildeo porque o
41 Quando tomada a questatildeo da finalidade como centro de reflexatildeo de Nietzsche naquele momento de suaproduccedilatildeo eacute importante repensar a criacutetica agrave concepccedilatildeo de finalidade como explicaccedilatildeo dos organismos talcomo esta reflexatildeo aparece em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie analisadas no toacutepico anterior
69
filoacutesofo entende que ambas criaccedilotildees apenas correspondem agraves necessidades de cada espeacutecie
e natildeo tecircm valor algum fora de suas perspectivas
Nesse sentido longe de ser o objeto proacuteprio do ser humano seu uacuteltimo alvo e
finalidade no universo diante do qual todo universo deveria se dobrar o conhecimento eacute
tomado pelo autor como uma relaccedilatildeo antropomoacuterfica uma estrateacutegia de sobrevivecircncia
criada com o uacutenico intuito de conservar por um breve momento a mais na existecircncia a
espeacutecie mais ameaccedilada de todas Assim por meio de uma faacutebula apresentada jaacute no
primeiro paraacutegrafo do ensaio Nietzsche apresenta uma visatildeo pessimista com relaccedilatildeo ao
conhecimento
Em algum remoto rincatildeo do universo que se desaacutegua fulgurantementeem inumeraacuteveis sistemas solares havia uma vez um astro no qualanimais astuciosos inventaram o conhecimento Foi o minuto maisaudacioso e hipoacutecrita da ldquohistoacuteria universalrdquo mas no fim das contas foiapenas um minuto Apoacutes alguns respiros da natureza o astro congelou-see os astuciosos animais tiveram de morrer Algueacutem poderia desse modoinventar uma faacutebula e ainda assim natildeo teria ilustrado suficientementebem quatildeo lastimaacutevel quatildeo sombrio e efecircmero quatildeo sem rumo e semmotivo se destaca o intelecto humano no interior da natureza houveeternidades em que ele natildeo estava presente quando ele tiver passadomais uma vez nada teraacute ocorrido (WLVM sectI paacuteg 25)42
Esta faacutebula da criaccedilatildeo do conhecimento humano que consta como poacutertico de
entrada do ensaio daacute mostras do tom irocircnico a ser utilizado para com o intelecto humano e
para com o proacuteprio conhecimento em todo o escrito Disto jaacute tomamos notiacutecia pela ecircnfase
do autor no termo ldquohistoacuteria universalrdquo mencionado entre aspas como a ironizar a
arrogacircncia necessaacuteria para chamar universal uma histoacuteria que eacute narrada a partir de nossa
perspectiva limitada criaturas destinadas a sumir ao fim de apenas alguns respiros do
universo Do mesmo modo o uso da faacutebula como que para demarcar o limite hipoteacutetico de
toda essa formulaccedilatildeo arbitraacuteria e antropocecircntrica guarda bastante do tom irocircnico utilizado
pelo autor para tratar do conhecimento em seus textos da fase madura43
42 As citaccedilotildees satildeo da traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros do Ensaio sobre Verdade e Mentira da editoraHedra conforme consta na bibliografia Entre parecircnteses eacute indicado o texto por WLVM a indicaccedilatildeo deparaacutegrafo e a paacutegina da traduccedilatildeo em estudo43 Por outro lado o recurso agrave faacutebula como instrumento expositivo nesse ensaio se torna importante porquerepresenta a permanecircncia no pensamento do autor de um recurso discursivo com o qual este se opotildee agravesdescriccedilotildees com pretensatildeo cientiacutefica Este recurso eacute especialmente comum em textos nietzschianos em que o
70
O sentido do primeiro paraacutegrafo do texto torna-se assim claro e rico de sentido o
autor do ensaio natildeo vecirc com benevolecircncia o conhecimento humano assim como natildeo atribui
grande importacircncia ao intelecto humano Toda esta postura denuncia um afastamento da
tradiccedilatildeo na medida em que aquela eacute marcada pela ecircnfase nessas instacircncias meramente
humanas Por isso o autor acrescenta que este intelecto lastimaacutevel sombrio e efecircmero o
qual ldquohouve eternidades em que ele natildeo estava presenterdquo e que ldquoquando ele tiver passado
mais uma vez nada teraacute ocorridordquo (WLVM sectI paacuteg 25) natildeo tem nenhuma missatildeo
especial no universo para aleacutem da sobrevivecircncia humana
O intelecto nos diz o autor natildeo alcanccedila nada para aleacutem de sua funccedilatildeo bioloacutegica a
criaccedilatildeo de ilusotildees capazes de facilitar a sobrevivecircncia humana No entender de Nietzsche
apenas o homem toma este intelecto de forma tatildeo ldquopateacuteticardquo centrando o universo nesse
instrumento de sobrevivecircncia Como uma mosca que fundamentasse o universo em seu
voar o homem mede todo o universo a partir de sua perspectiva limitada e enganosa Esse
pathos a sensaccedilatildeo de que o mundo pode ser explicado por meio de uma tatildeo limitada
ferramenta teria sido justamente o motivo de tantos erros em filosofia Erros os quais
seria funccedilatildeo do ensaio questionar tomando como instrumento criacutetico uma anaacutelise bioloacutegica
do desenvolvimento humano e suas estruturas perceptivas
Atraveacutes da exposiccedilatildeo dos limites de nosso intelecto assim como pela exposiccedilatildeo do
caraacuteter perspectivo de nossas pretensas verdades universais Nietzsche coloca-se frente agrave
pretensatildeo de verdade representada pelas filosofias racionalistas identificada pelo autor do
ensaio como a pretensatildeo de atingir a verdade absoluta atraveacutes de um instrumento
necessariamente relativo humano Assim por meio de uma consideraccedilatildeo perspectiva do
conhecimento a defesa do caraacuteter limitado de nossas formulaccedilotildees acerca da realidade
repousaraacute sobre a prova da precariedade de nosso aparelho cognitivo o que o filoacutesofo
realiza por meio da constataccedilatildeo dos limites do intelecto em contrariedade a toda a tradiccedilatildeo
racionalista que preferiu se voltar contra os oacutergatildeos dos sentidos Sua anaacutelise de tudo que
autor reflete acerca dos problemas da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O uso da faacutebula emcontraposiccedilatildeo a uma descriccedilatildeo dos fatos assinala um certo caraacuteter provisoacuterio ou hipoteacutetico com que se podetratar do tema do conhecimento sem que seja necessaacuteria a defesa de uma concepccedilatildeo proacutepria que se entendecomo definitiva Ou seja o recurso nietzschiano agrave faacutebula assim como seu recurso agraves hipoacuteteses marcam aoposiccedilatildeo criacutetica do autor a toda forma de tratamento dogmaacutetico Do mesmo modo este modo peculiar deargumentar eacute utilizado pelo filoacutesofo como demonstraccedilatildeo de que eacute possiacutevel opor-se a uma posiccedilatildeo dogmaacuteticasem recorrer a uma outra posiccedilatildeo dogmaacutetica Este recurso pode ser compreendido desta forma comomanifestaccedilatildeo praacutetica do experimentalismo nietzschiano
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ateacute entatildeo foi tomado como verdadeiro submete o proacuteprio oacutergatildeo responsaacutevel pelo
desdobramento do mundo em substacircncia inteligiacutevel agrave anaacutelise de sua origem e
desenvolvimento
O contato nietzschiano com autores das ciecircncias naturais contato que teria sido
mediado pela leitura de A Histoacuteria do Materialismo de Albert Lange proporciona uma
investigaccedilatildeo do intelecto com base na interpretaccedilatildeo deste como um oacutergatildeo voltado para a
sobrevivecircncia humana Para o autor do ensaio sua funccedilatildeo mais comum eacute a geraccedilatildeo de
linguagem que nessa leitura significa a modelagem de estruturas natildeo comunicaacuteveis dentro
de conceitos passiveis de serem convertidos em sons Nesta leitura o processo de
formaccedilatildeo da linguagem eacute examinado com base na suposiccedilatildeo de que esta teria evoluiacutedo sob
a pressatildeo da necessidade humana Assim a linguagem teria sido criada esse desenvolvido
natildeo com base na descriccedilatildeo da realidade mas na simplificaccedilatildeo de uma forma de realidade
Esta simplificaccedilatildeo teria se dado sobretudo na supressatildeo da mobilidade que nos eacute
apresentada pelos sentidos por meio de metaacuteforas que conferem um caraacuteter fixo e
comunicaacutevel a estas impressotildees fundamentais Mas a linguagem apenas se torna uma
funccedilatildeo orgacircnica importante na medida em que o homem passa a depender de outros
homens para sua sobrevivecircncia E se o intelecto tem como funccedilatildeo fundamental a criaccedilatildeo da
linguagem eacute natural compreender que este enquanto estrutura propriamente humana que
se originou e desenvolveu segundo nossas necessidades naturais ocupe um papel
secundaacuterio no conjunto de nossas atividades orgacircnicas
Seraacute apenas a partir deste gecircnero de anaacutelise da utilidade do intelecto e seus
produtos que passam a ser encarados no Ensaio Sobre Verdade e Mentira como
instrumentos adequados agraves necessidades humanas que Nietzsche poderaacute efetuar uma
criacutetica evolutiva do conhecimento humano Ou seja com esta anaacutelise que toma o intelecto
natildeo como oacutergatildeo para a verdade mas como estrutura voltada para uma estrateacutegia de
sobrevivecircncia Nietzsche desenvolve uma criacutetica da razatildeo baseada em sua utilidade
bioloacutegica44
44 Haacute uma dificuldade interpretativa em Nietzsche quanto agrave categoria de razatildeo De modo adverso aos autoresque lhe antecedem e que satildeo uma clara influecircncia na sua teoria sobre a verdade e o conhecimento tais comoKant e Schopenhauer Nietzsche natildeo desenvolve uma elucidaccedilatildeo dos mecanismos da razatildeo e natildeo sepreocupa em fazer uma distinccedilatildeo entre o que sejam intuiccedilatildeo entendimento intelecto e razatildeo que para atradiccedilatildeo que ele perpetua tem um papel fundamental Tal se daacute entre outros motivos pela negaccedilatildeo dasfaculdades espirituais que eacute comum a todos os escritos sobre o conhecimento de Nietzsche Do mesmomodo para descrever a faculdade que daacute origem agrave linguagem ele adota um termo no Ensaio Sobre Verdade eMentira (Intellektintelecto) e outro no sect354 de A Gaia Ciecircncia (Bewusstseinsconsciecircncia) A mudanccedila do
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Nesta criacutetica em que o intelecto natildeo eacute mais visto como fonte da veracidade do
mundo mas como um oacutergatildeo que evoluiu segundo as exigecircncias de uma estrateacutegia de
sobrevivecircncia proacutepria de nossa espeacutecie o filoacutesofo considera que o conhecimento humano
como parte de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia Como tal o conhecimento humano natildeo
teria uma origem divina extramundana mas sim um surgimento na histoacuteria do mesmo
modo que um dia teraacute seu fim Como estrutura bioloacutegica o intelecto seria para o homem
algo correlato ao chifre ou agraves presas para outras espeacutecies45 uma formaccedilatildeo fisioloacutegica
adaptativa que se associa a uma estrateacutegia de sobrevivecircncia especiacutefica
Esta compreensatildeo eacute pensada como para subverter a compreensatildeo do intelecto como
algo divino Compreensatildeo que fundamentaria a compreensatildeo da verdade como um
produto do intelecto tambeacutem como algo divino Ao contraacuterio da tradiccedilatildeo que entende que
o intelecto foi moldado para a verdade Nietzsche compreende que ldquoSeu efeito mais geral eacute
engano ndash mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caraacuteterrdquo
(WLVM sect1) Assim a compreensatildeo do intelecto como instrumento possibilita a
compreensatildeo da verdade como algo relacionado agrave sobrevivecircncia humana
O modo de operaccedilatildeo do intelecto que estaria relacionado ao condicionamento de
um nuacutemero ilimitado de objetos a uma quantidade limitada de conceitos torna possiacutevel ao
autor do ensaio sustentar uma relaccedilatildeo estrutural entre a verdade e o falseamento da
realidade Se a verdade seria um produto da atuaccedilatildeo do intelecto entatildeo a ela estaria
relacionada natildeo uma descriccedilatildeo mais adequada da realidade mas o falseamento dessa
realidade mais proveitoso para a espeacutecie humana A constante suposiccedilatildeo nietzschiana de
nossa dependecircncia do erro que encontraremos em diversos textos do filoacutesofo em todas as
termo em uso sugere uma progressatildeo de sua reflexatildeo e um afastamento da filosofia de Schopenhauer O usodo termo ldquointelectordquo se adequaria melhor a descriccedilatildeo da atuaccedilatildeo da razatildeo em consonacircncia com a teoria doconhecimento em Schopenhauer na eacutepoca em que ele escreve o ensaio enquanto que o uso de consciecircnciasucinta a denuacutencia de um problema que se alastraria em meio a intelectualidade da Europa a eacutepoca de A GaiaCiecircncia o tornar-se consciente mais racional cada vez mais ldquolinguiacutesticordquo em conclusatildeo cada vez menosverdadeiro45 Aparentemente Nietzsche toma essa analogia entre os chifres e a razatildeo de Schopenhauer Assim em seuensaio sobre verdade e mentira nos diz ldquoComo um meio para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo o intelectodesenrola suas principais forccedilas na dissimulaccedilatildeo pois esta constitui o meio pelo qual os indiviacuteduos maisfracos menos vigorosos conservam-se como aqueles aos quais eacute denegado empreender uma luta pelaexistecircncia com chifres e presas afiadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 27) O que eacute certo eacute que esta noccedilatildeo do intelectocoincide com a hipoacutetese de Schopenhauer de que a razatildeo eacute um instrumento para a sobrevivecircncia humanasendo um testemunho indiscutiacutevel da influecircncia de Schopenhauer na teoria perspectivista de Nietzsche Noentanto cumpre observar que o fato de Nietzsche relacionar o uso da consciecircncia a um certoenfraquecimento da espeacutecie humana assim como a consideraccedilatildeo com fortes traccedilos evolucionistas queencontramos em sua reflexatildeo satildeo indiacutecios de uma apropriaccedilatildeo da teoria schopenhaueriana que natildeo se reduzsimplesmente as consideraccedilotildees do autor de O Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo
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fases de sua produccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada desta compreensatildeo fundamental
Acompanhemos o autor em sua descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo da linguagem
Diante da pluralidade estrutural da realidade a linguagem eacute criada pelo intelecto
mediante a compreensatildeo de muitos objetos em uma mesma categoria sem que com isso
seja respeitada nenhuma lei estrutural A uacutenica lei que parece guiar esta compreensatildeo seria
a forma especiacutefica de vida humana Nesse sentido a funccedilatildeo primordial do intelecto estaria
relacionada ao estabelecimento de metaacuteforas para os objetos com os quais nos deparamos
em nosso meio Por este motivo o autor do ensaio considera o intelecto o autor das mais
sublimes ilusotildees desde que seria ele o responsaacutevel pela constituiccedilatildeo das metaacuteforas que se
tornam em conceitos
Afastada a hipoacutetese de que a funccedilatildeo do intelecto estivesse relacionada ao
desvelamento do real o autor do ensaio se volta para sua real funccedilatildeo a potencializaccedilatildeo da
sobrevivecircncia humana Para Nietzsche dois seriam os expedientes empregados pelo
intelecto para alcanccedilar uma maior permanecircncia do mais fraco dos animais na existecircncia a
criaccedilatildeo da linguagem e a autojustificaccedilatildeo do intelecto Esta autojustificaccedilatildeo se daria no
sentido de uma supervalorizaccedilatildeo de seu papel e de seu alcance Atraveacutes desta
autojustificaccedilatildeo do intelecto A dignidade tributada ao intelecto pela tradiccedilatildeo seria a mais
poderosa ilusatildeo de que o proacuteprio intelecto eacute capaz Pois seria justamente esta ilusatildeo que lhe
conferiria uma nobreza tatildeo desmensurada quando comparada agrave sua real importacircncia A
importacircncia dessa supervalorizaccedilatildeo do intelecto estaacute relacionada no pensamento
nietzschiano com sua criacutetica ao racionalismo da tradiccedilatildeo Assim dada a importacircncia de se
submeter o intelecto a uma avaliaccedilatildeo criacutetica agrave luz de suas reais funccedilatildeo e origem Nietzsche
se volta com frequecircncia em seu ensaio contra esta supervalorizaccedilatildeo do intelecto Jaacute nos
primeiros paraacutegrafos esta arrogacircncia do intelecto eacute abordada por meio da faacutebula do
surgimento do intelecto Do mesmo modo em uma passagem bastante conhecida do
ensaio Nietzsche se voltaraacute com irocircnica admiraccedilatildeo e espanto contra as capacidades do
intelecto Assim o autor conclui
Eacute curioso pensar que isso seja levado a efeito pelo intelecto precisamenteele que foi outorgado apenas como instrumento auxiliar aos maisinfelizes fraacutegeis e evanescentes dos seres para conservaacute-los um minutona existecircncia da qual teriam todos os motivos para fugir tatildeo rapidamentequanto o filho de Lessing (WLVM sectI paacuteg 26)
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A autojustificaccedilatildeo do intelecto seria assim a grande ilusatildeo que subjaz a todas as
outras ilusotildees criadas pelo proacuteprio intelecto Pois esta seria uma ilusatildeo fundamental que lhe
garante sua veracidade por meio da qual se disfarccedila sua real aplicaccedilatildeo Por fim a proacutepria
crenccedila que a tradiccedilatildeo depositou na capacidade do intelecto em revelar a verdade seria
ainda uma consequecircncia deste modo de proceder do intelecto em sua avaliaccedilatildeo de si
mesmo
Mas por que o homem se deixa enganar pela ilusatildeo do intelecto em sua
autojustificaccedilatildeo Isto se daacute no entender de Nietzsche porque o valor do homem teria se
associado no decorrer da formaccedilatildeo da sociedade ao proacuteprio valor do intelecto Desta
forma o homem compartilharia com o intelecto a ilusoacuteria importacircncia que lhe eacute atribuiacuteda
por meio de avaliaccedilatildeo deste sobre si Por outro lado a confianccedila no intelecto fornece meios
para o homem sustentar uma compreensatildeo limitada acerca do universo circundante e de
seus horrores indescritiacuteveis Tudo isso faz contribui para que o animal humano se sinta natildeo
apenas seguro mas orgulhoso de seu lugar na existecircncia
Aquela audaacutecia ligada ao conhecer e sentir que se acomoda sobre osolhos e sentidos dos homens qual uma neacutevoa ofuscante ilude-os quantoao valor da existecircncia na medida em que traz em si a mais envaidecedoradas apreciaccedilotildees valorativas sobre o proacuteprio conhecer Seu efeito maisuniversal eacute engano ndash todavia os efeitos mais particulares tambeacutem trazemconsigo algo do mesmo caraacuteter (WLVM sectI paacuteg 27)
Ao valor do conhecimento enquanto produto da avaliaccedilatildeo de si mesmo do
intelecto se vincula o valor mesmo que o intelecto se atribui Dessa forma o homem passa
a depender para sua sobrevivecircncia do engano na estimaccedilatildeo do valor do intelecto Em
outros termos se poderia dizer que a proacutepria criaccedilatildeo da perspectiva humana assim como a
atribuiccedilatildeo de valor que lhe conferimos seria obra do intelecto
Por meio desta atuaccedilatildeo do intelecto em que engano e valor surgem como criaccedilotildees
de igual importacircncia o homem consegue natildeo apenas fixar-se na existecircncia mas envolvido
nesse pathos valorando a existecircncia a partir dessa perspectiva atinge o cume de sua
vitalidade em um orgulho que natildeo encontra paralelos em sua real situaccedilatildeo como animal
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ameaccedilado Assim a perspectiva do intelecto se autoafirma como o proacuteprio valor da
existecircncia humana
Em seus estaacutegios mais primitivos portanto toda a potecircncia criativa inerente ao
intelecto estaria ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia estaria a serviccedilo da vida No
entanto com o uso constante do intelecto este passa a afastar-se dos interesses para a vida
passa a constituir uma realidade apartada da realidade da vida fazendo repousar o valor de
sua perspectiva em valores de negaccedilatildeo da vida No entanto enquanto ainda estaacute vinculado
agrave vida a funccedilatildeo primordial do intelecto humano eacute o engano que ele aplica de maneira
muito especiacutefica no segundo expediente que este utiliza para conservar nossa existecircncia a
linguagem Antes de entrarmos na questatildeo da linguagem poreacutem seria interessante analisar
a relaccedilatildeo entre a verdade e o engano nos primeiros estaacutegios de anaacutelise da atuaccedilatildeo do
intelecto
Inicialmente Nietzsche considera um fato fundamental acerca do homem que este
natildeo admira a verdade acima de todas as coisas Como prova deste fato eacute apresentado o
argumento segundo o qual nada mais agrada o homem comum do que deixar-se enganar
em sonhos todas as noites O Haacutebito de sonhar natildeo tem via de regra nenhum tipo de
repreensatildeo moral nenhum homem procura vencer esse haacutebito por consideraacute-lo imoral
Eles se acham profundamente imersos em ilusotildees e imagens oniacutericas seuolho desliza apenas ao redor da superfiacutecie das coisas e vecirc ldquoformasrdquo suasensaccedilatildeo natildeo leva agrave verdade em nenhum lugar mas antes se satisfaz emreceber estiacutemulos e tocar por assim dizer um teclado sobre o dorso dascoisas Para tanto o homem consente agrave noite e atraveacutes de toda uma vidaser enganado em sonho sem que seu sentimento moral jamais tentasseevitar isso natildeo obstante deve haver homens que pela forccedila de vontadedeixaram de roncar (WLVM sectI paacuteg 27)
O exemplo do sonho sugere que o deixar-se enganar por si natildeo eacute motivo de
reprimenda moral sendo necessaacuterio acrescentar algum outro elemento ao engano para
tornaacute-lo repreensiacutevel Se pensamos na verdade como consequecircncia de um impulso moral
como entender que ldquoagrave noite e durante toda uma vidardquo o homem se permita deixar enganar
em sonhos sem que isto estimule um sentimento moral que talvez nos convencesse da
necessidade de deixar de sonhar Por outro lado para Nietzsche ocorreria no homem
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quando em sonhos o mesmo que ocorre quando este estaacute desperto ambos nunca estariam
de fato diante de realidades Para ambos apenas se apresentariam ilusotildees embora as
ilusotildees do homem desperto se mostrem mais persistentes
Ou seja para o autor do ensaio mesmo quando desperto o tatear do homem pelo
mundo apenas carrega os traccedilos confusos de dados obtidos por meio de um aparato
sensiacutevel ruacutestico seu tatear confuso natildeo atinge o cerne do mundo atinge apenas como que
apenas as costas das coisas Tanto eacute assim que mesmo acerca de noacutes mesmos nosso objeto
mais proacuteximo noacutes pouco sabemos pois apenas coletamos dados obtusos de um mundo
interior fabulado e os agrupamos toscamente em teorias complicadas E eacute com base nesses
dados obtusos que o homem constroacutei suas verdades sem que no entanto nada nele rejeite
essa conduta Ou seja nenhum princiacutepio moral inato o faz recuar dessas ilusotildees
Em sua confrontaccedilatildeo da tradiccedilatildeo Nietzsche desvela a atuaccedilatildeo figuradora do
intelecto que em vez de nos guiar no caminho reto da verdade como se pressupunha que
este deveria fazer eacute ele mesmo a principal fonte de ilusotildees Para o autor do ensaio seria
por forccedila do intelecto que um estiacutemulo logo se torna uma imagem Posteriormente esta
imagem eacute traduzida em sons na medida em que temos necessidade de comunicar a outros
o que nos representamos Todo este processo que deriva da atuaccedilatildeo de um potencial
criativo humano vinculado ao intelecto revela-se na atividade da produccedilatildeo da linguagem
Nesse processo a simplificaccedilatildeo do mundo circundante em foacutermulas mais ou menos
passiacuteveis de comunicaccedilatildeo constitui os passos fundamentais para o estabelecimento da
linguagem e posteriormente da verdade
Ora se o intelecto atua no sentido de uma cada vez maior dependecircncia de ilusotildees
dado que como Nietzsche natildeo se cansa de repetir a criaccedilatildeo de ilusotildees seria sua funccedilatildeo
primordial entatildeo o que se estaacute atacando aqui no fundo seria a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua
confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo Posto que
este tipo de anaacutelise que eacute conduzida por Nietzsche durante todo o ensaio tambeacutem tem
seus efeitos negativos para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade que teria se tornado
dependente de uma compreensatildeo do intelecto como potencializador do conhecimento
verdadeiro
Por meio desta criacutetica o filoacutesofo ataca a concepccedilatildeo metafiacutesica e moral que e a
proacutepria concepccedilatildeo tradicional de verdade fundada na ideia de que a verdade teria como
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suas origens nobres a racionalidade assim como um sentimento moral inato a esta
vinculado O autor do ensaio substitui esta noccedilatildeo da verdade como reflexo de uma
racionalidade e uma moralidade perfeita pela ideia da nossa necessidade de erro de
enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa estrateacutegia de sobrevivecircncia
Esta necessidade fundamenta de erro e ilusatildeo cede lugar a uma valorizaccedilatildeo da verdade
apenas na medida em que esta proacutepria verdade tambeacutem eacute tida como uma forma de erro
uma forma de ilusatildeo
Com isso poderiacuteamos concluir que a verdade parece natildeo ser o produto mais direto
de todo este processo criativo do intelecto e que portanto todos os produtos do intelecto
deveriam ser tomados como mentiras No entanto sabe-se que haacute uma distinccedilatildeo
fundamental entre verdade e mentira que natildeo pode ser simplesmente reduzida a uma
forma de distinccedilatildeo entre modos diferentes de ilusatildeo posto que se observa entre os homens
uma preferecircncia pela verdade Assim em meio ao cenaacuterio apresentado ateacute aqui pelo autor
do ensaio se poderia perguntar onde surge o apreccedilo pela verdade entre os homens se estes
evoluem em uma cada vez maior dependecircncia de erros e ilusotildees Para Nietzsche
enquanto o homem faz uso do intelecto apenas de forma ocasional natildeo haacute a necessidade de
um questionamento pela verdade ou pela mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua
nos niacuteveis mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe
em imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido
de tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que
em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano
propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo
em falsificaccedilatildeo Como surge entatildeo a verdade e a mentira O autor do ensaio condiciona o
surgimento destes ao surgimento da comunidade quando o homem por teacutedio e
necessidade procura o conviacutevio com outros homens
Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)
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Apenas quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com
outros homens o intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um
mundo que se nos daacute a conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado
pela criaccedilatildeo de estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo
assim como a posterior comunicaccedilatildeo de um mundo que se deve compartilhar satildeo os preacute-
requisitos para a intercompreensatildeo e posterior hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana Ateacute
entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma necessidade moral
inata o coage a dizer a verdade necessidade que apenas surgiraacute a partir da convivecircncia
com outros seres humanos
Eacute preciso estar atento aos movimentos que Nietzsche potildee em jogo neste momento
Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e a
razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta
distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos
que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa
compreensatildeo do mundo No entanto se jaacute eacute espantosa a forccedila do intelecto enquanto fonte
de enganos sobre a natureza real do mundo e seus riscos seraacute apenas na formaccedilatildeo das
condiccedilotildees da coexistecircncia coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se
verdadeiramente poderoso
A linguagem pensada no ensaio como estrateacutegia para que se estabeleccedila entre os
homens um acordo de paz seria a peccedila fundamental para a sobrevivecircncia de um animal
que natildeo teria como responder aos riscos da natureza sozinho O homem torna-se animal
gregaacuterio animal linguiacutestico e animal moral tudo a partir dos poderes de dissimulaccedilatildeo do
intelecto Apenas com base no respeito ao uso acordado dos signos da linguagem torna-se
possiacutevel a coexistecircncia Esta torna-se a claacuteusula fundante do acordo de paz estabelecido
pelos homens da qual decorrem as demais normas A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em
contraposiccedilatildeo aos valores que regem a existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro
modelo no uso adequado das designaccedilotildees acordadas pela sociedade
Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva das
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coisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)
A verdade se estabelece quando o homem troca a linguagem das imagens mentais
proacuteprias de sua existecircncia individual por imagens compartilhaacuteveis representadas por
signos coletivamente determinados46 Por meio do acordo entre os homens sua decisatildeo
coletiva em aplicar as mesmas metaacuteforas nas mesmas circunstancias satildeo fixados o sentido
do que se toma como verdadeiro assim como a condenaccedilatildeo do que natildeo eacute A adesatildeo ao
acordo implica no abandono do uso individual dos signos linguiacutesticos pois o uso adequado
das designaccedilotildees acordadas eacute o que agora se toma como verdadeiro o descumprimento
dessa regra eacute o que agora se chama mentir A verdade assim torna-se decorrecircncia da
aceitaccedilatildeo e cumprimento dessa primeira claacuteusula
Dessa primeira relaccedilatildeo estrutural da primeira divisatildeo da sociedade em membros
dignos e indignos da sociedade ou seja aqueles que usam corretamente as designaccedilotildees
acordadas e aqueles que deturpam os sentidos das designaccedilotildees surge o primeiro juiacutezo
moral Segundo esse juiacutezo a verdade enquanto favoraacutevel agrave convivecircncia gregaacuteria eacute boa A
mentira por sua vez enquanto prejudicial agrave convivecircncia gregaacuteria passa a ser tomada como
maacute Nesse sentido o mentiroso aquele que ldquoserve-se das designaccedilotildees vaacutelidas as palavras
para fazer o imaginaacuterio surgir como efetivordquo (WLVM sectI paacuteg 30) natildeo eacute tanto
repreendido por ferir alguma sensibilidade moral mas por comprometer o acordo de paz
fundamental estabelecido
Atraveacutes dessa leitura Nietzsche ataca frontalmente a tradiccedilatildeo metafiacutesica e sua
confianccedila na razatildeo como elemento fundamental para a constituiccedilatildeo do mundo O filoacutesofo
46 Para Constacircncio a transposiccedilatildeo do terrenos dos signos para o terreno das palavras como um primeiroestaacutegio para a criaccedilatildeo dos conceitos representaria ainda um primeiro estaacutegio para o surgimento da razatildeoem sentido tradicional ldquoUm signo representa ou se coloca como outra coisa embora natildeo como uma coacutepia deoutra coisa ndash e menos que tudo como uma coacutepia adequada disto ndash mas antes de tudo como umarepresentaccedilatildeo simplificada conectada abreviada disto Esta representaccedilatildeo abreviada funciona como um tipode ferramenta fixa que nos permite rapidamente nos referirmos a ou designar aquilo para o qual o simbolorepresenta (zu be-zeichen) Assim ao falar em palavras em termos de lsquosignosrsquo Nietzsche escreve que lsquoahistoacuteria da linguagem eacute a a histoacuteria de um processo de abreviaccedilatildeorsquo (JGBABM IV sect268) Mais importantedo que isso Nietzsche acredita que os conceitos emergem dos signos e que aquilo que chamamos de lsquorazatildeorsquo(por exemplo aquilo que Schopenhauer chama de lsquorazatildeorsquo) eacute essencialmente nossa habilidade de desenvolverpensamentos abstratos com base em signos e conceitos Como escreve explicitamente Nietzsche em umanota poacutestuma de 1884-1885 lsquoprimeiramente signos (Zeichen) entatildeo conceitos (Begriffe) finalmente razatildeo(Vernunft) no sentido convencional (NL 1884-1885 KSA 11 30[10]rdquo (CONSTAcircNCIO 2012 Paacuteg 201)
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ataca do mesmo modo a concepccedilatildeo que nos foi imposta pela tradiccedilatildeo de que a verdade
deriva de um sentimento moral inato Em seu lugar o autor do ensaio pressupotildee a nossa
necessidade de erro de enganos e ilusotildees como constituintes fundamentais de nossa
estrateacutegia de sobrevivecircncia que apenas atraveacutes da pressatildeo de outras necessidades mais
prementes se curva diante de uma necessidade moral posteriormente constituiacuteda
Se entre os filoacutesofos anteriores existe uma identidade fundamental entre o mundo e
a razatildeo o filoacutesofo explora a capacidade de perverter a realidade proacutepria do intelecto Esta
distorccedilatildeo da realidade eacute validada por noacutes em nossa existecircncia quotidiana pois acreditamos
que o fato de nossas accedilotildees corresponderem a nossas vontades garante a verdade de nossa
compreensatildeo do mundo Mas a partir da consideraccedilatildeo nietzschiana do conhecimento
pode-se identificar ainda por traacutes disso a atuaccedilatildeo do intelecto que molda o mundo como
percebemos dentro de padrotildees que podem nos ser conhecidos e uacuteteis Tudo isso dito fica
faacutecil ver que estas natildeo satildeo nem de perto as condiccedilotildees mais favoraacuteveis para o surgimento
da verdade tal como a tradiccedilatildeo entende este conceito Com isso poderiacuteamos concluir que a
verdade parece natildeo ser o produto mais direto de todo este processo criativo do intelecto e
que portanto todos os produtos do intelecto deveriam ser tomados como mentiras
Poreacutem o autor do ensaio nos diz que ateacute aqui ainda natildeo estamos diante de um
questionamento acerca da mentira Pois ateacute o ponto em que o intelecto atua nos niacuteveis
mais baacutesicos de nossa compreensatildeo do mundo convertendo os dados que recebe em
imagens sensiacuteveis ele apenas dissimula o real o embeleza conscientemente no sentido de
tornaacute-lo mais agradaacutevel ao homem Nesse sentido apenas falamos do homem como que
em estado de inocecircncia em sua mais solitaacuteria solidatildeo em um estado anterior ao engano
propriamente dito Motivo pelo qual ateacute aqui o autor fala apenas em dissimulaccedilatildeo e natildeo
em falsificaccedilatildeo
Enquanto o indiviacuteduo num estado natural das coisas quer preservar-secontra outros indiviacuteduos ele geralmente se vale do intelecto apenas paraa dissimulaccedilatildeo mas porque o homem quer ao mesmo tempo existirsocialmente e em rebanho por necessidade e teacutedio ele necessita de umacordo de paz e empenha-se entatildeo para que a mais cruel bellum omniumcontra omnes ao menos despareccedila de seu mundo Esse acordo de paz trazconsigo poreacutem algo que parece ser o primeiro passo rumo agrave obtenccedilatildeodaquele misterioso impulso agrave verdade (WLVM sectI paacuteg 29)
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Ateacute entatildeo o homem natildeo se vecirc na necessidade de dizer a verdade nenhuma
necessidade moral inata o coage a dizer a verdade eacute apenas a partir da convivecircncia com
outros seres humanos que surgiria a obrigaccedilatildeo de se dizer a verdade No entanto se dessa
perspectiva o intelecto eacute necessaacuterio agrave sobrevivecircncia enquanto fonte de enganos sobre a
natureza real do mundo e seus riscos eacute na formaccedilatildeo das condiccedilotildees da coexistecircncia
coletiva fonte do pathos da verdade que este mostra-se verdadeiramente poderoso Pois
quando o homem por teacutedio e necessidade eacute solicitado a interagir com outros homens o
intelecto produz suas ilusotildees mais poderosas capazes de falsear um mundo que se nos daacute a
conhecer intimamente Esse falseamento do mundo eacute caracterizado pela criaccedilatildeo de
estruturas de fixaccedilatildeo do real em foacutermulas comunicaacuteveis Esta fixaccedilatildeo e posterior
comunicaccedilatildeo de um mundo satildeo os preacute-requisitos para a intercompreensatildeo e posterior
hierarquizaccedilatildeo da sociedade humana
Assim pela simplificaccedilatildeo do real e possibilitaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo a linguagem
desempenha entre os homens o papel de um acordo de paz no sentido em que faz com que
estes possam entrar em acordo Como claacuteusula desse acordo por meio da linguagem eacute
fixado o sentido do que se toma como verdadeiro atraveacutes do qual a coexistecircncia se torna
possiacutevel A fixaccedilatildeo dos valores coletivos em contraposiccedilatildeo aos valores que regem a
existecircncia do indiviacuteduo tem assim seu primeiro modelo no uso adequado das designaccedilotildees
acordadas pela sociedade A verdade torna-se decorrecircncia da aceitaccedilatildeo e cumprimento
dessa primeira claacuteusula
Agora fixa-se aquilo que doravante deve ser ldquoverdaderdquo quer dizerdescobre-se uma designaccedilatildeo uniformemente vaacutelida e impositiva dascoisas sendo que a legislaccedilatildeo da linguagem fornece tambeacutem as primeirasleis da verdade pois aparece aqui pela primeira vez o contraste entreverdade e mentira (WLVM sectI paacuteg 29)
A verdade surge assim pela primeira vez quando satildeo criadas as leis da linguagem
Em contraposiccedilatildeo agrave sua situaccedilatildeo anterior o homem que vive coletivamente em rebanho
pode dizer a verdade Pois agora ele pode designar de acordo com uma norma
coletivamente instituiacuteda o que natildeo lhe era dado fazer quando em sua existecircncia individual
Do mesmo modo poreacutem agora ele tambeacutem pode mentir quando rompe o acordo acerca
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dos usos permitidos dos termos fixados na tentativa de tornar real ou fazer parecer real o
que natildeo eacute Da reflexatildeo acerca das leis da linguagem acordada coletivamente surge a
compreensatildeo de que a mentira apenas conduz agrave consequecircncias negativas em uma
convivecircncia gregaacuteria e natildeo universalmente Em outro sentido quando se deixa enganar em
sonhos o homem natildeo mente propriamente Pois nesse estado preacute-linguiacutestico ele apenas
dissimula quando se deixa enganar nos sonhos O homem que se deixa enganar em sonhos
natildeo mente porque natildeo age em natildeo-conformidade com leis da linguagem embora seja
enganado pela atividade criativa proacutepria de sua constituiccedilatildeo mais iacutentima
O ensaio conduz a uma reavaliaccedilatildeo das origens da verdade que tornam nula sua
dignidade fundamental A verdade natildeo seria algo de primordial posto que antes da verdade
jaacute haviam as ilusotildees uacuteteis agrave sobrevivecircncia Nesse sentido as ilusotildees pertencem a uma
existecircncia humana mais primitiva preacute-gregaacuteria da qual natildeo nos desvinculamos Pelo
contraacuterio posto que nos tornamos cada vez mais gregaacuterios mais linguiacutesticos nos
tornamos tambeacutem cada vez mais dependentes de ilusotildees e de enganos A vida ateacute onde
falamos em vida humana das condiccedilotildees necessaacuterias para a sobrevivecircncia e fortalecimento
do gecircnero humano depende fundamentalmente de ilusatildeo Ou seja as ilusotildees tecircm um valor
fundamental em relaccedilatildeo agrave vida natildeo por serem mais verdadeiras do que as ilusotildees da
verdade mas por serem mais fundamentais
No prosseguimento do ensaio Nietzsche especula acerca do valor das primeiras
intuiccedilotildees que logo satildeo convertidas pelo intelecto em metaacuteforas Para o autor estas
primeiras intuiccedilotildees teria um valor superior ao valor das metaacuteforas por conta de serem
condiccedilotildees de fortalecimento do tipo mais individual de vida Estas metaacuteforas
fundamentais no entanto satildeo substituiacutedas pelos conceitos por meio do uso da linguagem
O que conduz agrave criaccedilatildeo da ciecircncia como empreendimento comprometido com as falsas
criaccedilotildees do intelecto
22 A contraposiccedilatildeo nietzschiana a uma compreensatildeo metafiacutesica da verdade
Ao considerar o valor da verdade como sendo uma decorrecircncia de seu valor para a
sobrevivecircncia o Ensaio sobre Verdade e Mentira pode ser visto em grande parte como o
83
palco para o confronto entre uma explicaccedilatildeo essencialista e uma apresentaccedilatildeo cientiacutefica da
verdade Assim na apresentaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca do surgimento da linguagem
Nietzsche apoia-se fortemente em explicaccedilotildees oriundas das ciecircncias bioloacutegicas as quais
geralmente apresenta como contraposiccedilotildees agrave crenccedila tradicional que filia as palavras agraves
entidades ideais exteriores agrave existecircncia fisioloacutegica humana
Assim em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche caracteriza o desejo
sincero pela verdade como sendo o produto de um processo de internalizaccedilatildeo dos usos da
linguagem Nessa leitura a verdade ela mesma tal como a tradiccedilatildeo a representa natildeo seria
desejaacutevel ao homem mais do que pelo seu valor como conservador da sociabilidade
motivo pelo qual o autor do ensaio contrasta a ideia de uma verdade verdadeiramente
desinteressada com a utilidade bioloacutegica da verdade Aqui o conhecimento puro eacute tomado
como algo estranho agrave investigaccedilatildeo da verdade
Num sentido semelhantemente limitado o homem tambeacutem quer apenas averdade Ele quer as consequecircncias agradaacuteveis da verdade queconservam a vida frente ao puro conhecimento sem consequecircncias ele eacuteindiferente frente agraves verdades possivelmente prejudiciais e destruidorasele se indispotildee com hostilidade inclusive (WLVM sectI paacuteg 30)
Natildeo eacute a verdade logo aquilo que nos atraiacute mas seu poder de conservar a paz entre
os homens Mas quais seriam as leis da verdade correlativas as leis da linguagem Sabe-
se que estas leis satildeo produto de uma existecircncia coletiva satildeo as bases do acordo que faz
cessar a guerra de todos contra todos tornando possiacutevel a coexistecircncia paciacutefica Nesse
sentido as leis da verdade difeririam fundamentalmente daquilo que a tradiccedilatildeo pensa delas
Na medida em que esta parece pensar as leis da verdade em conformidade com a loacutegica
como instacircncia exterior ao terreno das necessidades humanas segundo a qual toda forma
de engano eacute afastada
Na acepccedilatildeo tradicional os filoacutesofos entendem o engano como a condiccedilatildeo
perniciosa que deteriora a verdade Nada mais longe do entender do autor do ensaio que
entende que as leis da verdade natildeo protegem a verdade mas sim o viacutenculo social que
propicia a coexistecircncia paciacutefica Por isso ele nos diz ldquoNisso os homens natildeo evitam tanto
ser ludibriados quanto lesados pelo engano Mesmo nesse niacutevel o que eles odeiam
84
fundamentalmente natildeo eacute o engano mas as consequecircncias ruins hostis de certos gecircneros
de enganosrdquo (WLVM sect1 paacuteg 29-30) A concepccedilatildeo nietzschiana da utilidade da verdade
se opotildee aqui a uma tradiccedilatildeo que entende que o homem seria guiado por um impulso
honesto para a verdade
Para o autor esta imagem do impulso honesto para a verdade se fixou na cultura
apoacutes seacuteculos de uso das leis da linguagem que tornaram sem forma os preceitos mais
ruacutesticos dessas leis como que tornando fugidio o sentido por traacutes da rejeiccedilatildeo quase que
instintiva que o homem moderno sente pela mentira No entanto em sua investigaccedilatildeo
extramoral da verdade Nietzsche conclui que mesmo em um niacutevel subconsciente natildeo seria
tanto a verdade que almejamos mas as vantagens para a convivecircncia paciacutefica que se
originam do uso da verdade convencionada No mesmo sentido nossa repulsa pela
mentira natildeo eacute mais do que o produto de um longo processo de internalizaccedilatildeo do terror
pelas consequecircncias da mentira
Motivo pelo qual o autor do ensaio nos diz que somos completamente indiferentes
ldquofrente ao puro conhecimento sem consequecircnciasrdquo Pois um tal tipo de conhecimento natildeo
implica em vantagem ou desvantagem para nossa sobrevivecircncia jaacute que natildeo implica em
conflito aberto com as normas da coletividade Diante de uma verdade prejudicial entatildeo o
homem se encolhe como faria diante de um engano Por meio dessas observaccedilotildees o autor
pretende demonstrar que eacute a utilidade para a sociabilidade e como esta eacute condiccedilatildeo
necessaacuteria agrave conservaccedilatildeo agrave sobrevivecircncia que condiciona o pathos do conhecimento e
natildeo sua verdade No mais a linguagem enquanto produto dessa relaccedilatildeo entre o
entendimento humano e nossa necessidade de sobrevivecircncia seria apenas mais um tipo de
ilusatildeo
Como produto do intelecto a linguagem se constitui como um mecanismo de
simplificaccedilatildeo do real Nesse sentido as relaccedilotildees da linguagem natildeo podem refletir de
maneira exata o mundo que simplifica As relaccedilotildees da linguagem que a princiacutepio tem por
objetivo apenas a sociabilidade natildeo traduzem o real de forma exata O que o autor do
Ensaio expressa na forma do questionamento ldquoas designaccedilotildees e as coisas se recobremrdquo
(WLVM sect1 paacuteg 29-30) que recebe imediatamente uma resposta negativa e uma seacuterie de
contraexemplos
85
Nessa leitura criacutetica da formaccedilatildeo da linguagem o autor conclui que em primeiro
lugar seria um forte contraexemplo agrave ideia de que a linguagem espelha o real o fato de
que quando analisada pormenorizadamente toda linguagem apresenta diversas
arbitrariedades em sua constituiccedilatildeo Outro argumento marcante seria o fato objetivo da
existecircncia de diversas liacutenguas Assim o autor procura demonstrar que natildeo atingimos a
verdade por meio da linguagem ateacute porque este natildeo eacute seu objetivo sua razatildeo de existir
Nesse sentido as coisas e nossas designaccedilotildees natildeo satildeo intercambiaacuteveis mais do que por
termos assim convencionado e mais tarde esquecido que assim o convencionamos
passando a acreditar que assim o seja de fato
Apenas por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a imaginarque deteacutem uma verdade no grau ora mencionado Se ele natildeo esperacontentar-se com a verdade sob a forma da tautologia isto eacute comconchas vazias entatildeo iraacute permutar eternamente ilusotildees por verdades Oque eacute uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como umacausa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificadado princiacutepio de razatildeo Como poderiacuteamos caso tatildeo somente a verdadefosse decisiva na gecircnese da linguagem caso apenas o ponto de vista dacerteza fosse algo decisoacuterio nas designaccedilotildees como poderiacuteamos noacutes natildeoobstante dizer a pedra eacute dura como se esse ldquodurardquo ainda nos fosseconhecido de alguma outra maneira e natildeo soacute como um estiacutemulototalmente subjetivo (WLVM sectI paacuteg 29-30)
Na medida em que a dureza de uma pedra nos aparece apenas como efeito de uma
causa desconhecida sendo que aqui mesmo a aplicaccedilatildeo da relaccedilatildeo de causa e efeito jaacute eacute
uma abstraccedilatildeo e que essa dureza apenas diz respeito a noacutes jamais seria possiacutevel sustentar a
verdade da simples afirmaccedilatildeo ldquoa pedra eacute durardquo com base nos princiacutepios inerentes agrave verdade
de acordo com a tradiccedilatildeo Isto se deveria ao fato de que a concepccedilatildeo tradicional de verdade
parte de uma consideraccedilatildeo do ldquoponto de vista da certezardquo como algo ldquodecisoacuterio nas
designaccedilotildeesrdquo (WLVM sectI paacuteg 29-30) Por outro lado quando proferimos este tipo de
afirmaccedilatildeo apenas nos utilizamos das designaccedilotildees acordadas no sentido de facilitar a
comunicaccedilatildeo de sensaccedilotildees totalmente subjetivas
Nietzsche pensa que sensaccedilotildees como a dureza de uma pedra variam
necessariamente de indiviacuteduo para indiviacuteduo E nem o fato de podermos alcanccedilar uma
designaccedilatildeo coletiva para transmitir essa sensaccedilatildeo individual muda o fato fundamental da
individualidade da sensaccedilatildeo Portanto as designaccedilotildees que se atinge por meio do
86
procedimento do intelecto ou seja por meio da simplificaccedilatildeo da realidade pouco tem que
ver com certezas Como se poderia falar de certezas quando se sabe que diante da
absoluta individualidade das sensaccedilotildees natildeo pode haver objetividade possiacutevel47 O que o
intelecto realiza nesse sentido ele apenas o pode realizar por meio de transgressotildees
arbitraacuterias tendo em vista propiciar a comunicaccedilatildeo segundo um processo de simplificaccedilatildeo
arbitraacuterio
Estas transgressotildees arbitraacuterias que satildeo amplamente empregadas na criaccedilatildeo da
linguagem atingem seu ponto maacuteximo de abstraccedilatildeo quando a proacutepria ciecircncia passa a
apoiar-se no uso convencionado dessas transgressotildees como validaccedilatildeo para aleacutem de sua
adequaccedilatildeo com quaisquer coisas que sejam seu objeto Por outro lado quando Nietzsche
considera que ldquoA reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso como uma causa fora de noacutes jaacute eacute o
resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacuteg
29-30) somos levados a refletir acerca do que foi dito no capiacutetulo anterior acerca do
princiacutepio de razatildeo Ou seja tal como em suas notas para Zur Teleologie Nietzsche aqui
reflete criticamente acerca da impropriedade em se inferir a existecircncia de algo para aleacutem de
nossa esfera de conhecimento
Esta preocupaccedilatildeo eacute ainda o reflexo de uma importante questatildeo da filosofia criacutetica o
problema em torno dos limites de nosso conhecimento Este mesmo problema jaacute havia sido
discutido por Nietzsche em Zur Schopenhauer como o problema das fronteiras da
individuaccedilatildeo segundo a terminologia schopenhaueriana A conclusatildeo apresentada no
ensaio eacute coerente com o tratamento apresentado anteriormente pelo autor
Para o autor do ensaio o estiacutemulo nervoso eacute a uacutenica coisa que pode ser deduzida
com base na fisiologia de nossa constituiccedilatildeo nervosa como causa da sensaccedilatildeo Isto porque
natildeo se poderia conhecer qualquer coisa fora da esfera de nossas sensaccedilotildees que estariam
como que na regiatildeo do em si kantiano Nesse sentido o filoacutesofo parece fazer coincidir os
limites de nossa sensibilidade e os limites de nosso conhecimento em estreita similaridade
com a posiccedilatildeo kantiana que como se sabe determinava os limites do conhecimento aos
limites da experiecircncia possiacutevel Assim a determinaccedilatildeo dos limites do conhecimento em
uma leitura semifilosoacutefica e semicientiacutefica assim como este objetivo se apresentava para o
47 No capiacutetulo deste trabalho acerca do perspectivismo nietzschiano deveremos voltar a este ponto com baseno conhecido aforismo 12 da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral
87
autor do das notas para Zur Teleologie parece permanecer um objetivo para o autor do
ensaio sobre verdade e mentira
A suposiccedilatildeo da existecircncia de uma entidade da qual natildeo temos direito de supor nada
Em outras palavras a suposiccedilatildeo de algo aleacutem dos estiacutemulos nervosos de algum objeto que
propicia este estiacutemulo jaacute estaria fora das consideraccedilotildees do autor do ensaio Para aleacutem
destes limites pensa o autor do ensaio qualquer afirmaccedilatildeo eacute uma temeraacuteria aplicaccedilatildeo
injustificada do princiacutepio de razatildeo suficiente De modo geral isto conduz a conclusatildeo
epistemoloacutegica de que natildeo se poderia fundamentar a veracidade de nossa afirmaccedilatildeo em
algo que se potildee para aleacutem dos estiacutemulos nervosos uacuteltima coisa que ainda se pode
considerar como causa das sensaccedilotildees
Qualquer tentativa de transpor estes limites recebe aqui o mesmo veto que o autor
das notas preparatoacuterias para Zur Teleologie atribuiacutea agrave tentativa de se estabelecer a
existecircncia de uma finalidade natural48 Com isso Nietzsche estabelece uma duacutevida essencial
acerca da origem dos estiacutemulos nervosos Duacutevida que natildeo poderia ser sanada por nenhum
tipo de procedimento cientiacutefico ou filosoacutefico posto que seu esclarecimento necessitaria de
dados externos agrave esfera de nossa sensibilidade Destas conclusotildees se origina um forte
argumento para a fundamentaccedilatildeo da opiniatildeo do autor de que na criaccedilatildeo das designaccedilotildees
nunca estariacuteamos tratando com certezas
A hipoacutetese de uma realidade objetiva por traacutes da criaccedilatildeo da linguagem recebe ainda
uma criacutetica mais forte que diz respeito aos diferentes idiomas ldquoDispostas lado a lado as
diferentes liacutenguas mostram que nas palavras o que conta nunca eacute a verdade jamais uma
expressatildeo adequada pois do contraacuterio natildeo haveriam tantas liacutenguasrdquo (WLVM sectI paacuteg
31) Ou seja para o autor do ensaio se a linguagem fosse de fato criada com base em uma
realidade objetiva entatildeo os diferentes idiomas postos lado a lado deveriam demonstrar
mais coincidecircncias do que no geral demonstram Em uacuteltima instacircncia natildeo eacute uma
realidade objetiva o que condiciona a criaccedilatildeo da linguagem mas o uso da linguagem
enquanto meio de comunicaccedilatildeo Sendo assim a criaccedilatildeo das linguagens natildeo diz respeito a
um compromisso com o verdadeiro eacute seu soacute que determina as condiccedilotildees de verdade
48 Conforme a discussatildeo sobre as notas preparatoacuterias na seccedilatildeo 213 desse trabalho
88
A hipoacutetese contraacuteria de que a linguagem seria proveniente de um compromisso
fundamental com a verdade eacute rejeitada com base na compreensatildeo de que se tal hipoacutetese
fosse verdadeira todos os idiomas teriam que se comportar como derivaccedilotildees de uma liacutengua
primordial da qual os diferentes ramos se afastam Algo que o autor do ensaio estaacute longe
de considerar verdadeiro Assim atraveacutes do recurso agrave figura do criador da linguagem
Nietzsche estabelece uma hipoteacutetica origem para a linguagem condizente com sua
suposiccedilatildeo de que esta estaria diretamente ligada agrave necessidade de sobrevivecircncia Por outro
lado o fato de que Nietzsche nessa consideraccedilatildeo fabulosa da origem da linguagem
sustentar a hipoacutetese de uma falsificaccedilatildeo da natureza na criaccedilatildeo das palavras estaria
diretamente relacionado agrave sua suposiccedilatildeo de que a verdade mesma tal como se pretende
que esta exista fora das relaccedilotildees da linguagem jamais estaria ao alcance deste criador e
nem mesmo lhe seria objeto especial de preocupaccedilatildeo
Esta parte da investigaccedilatildeo nietzschiana eacute singularmente importante Isto porque a
referecircncia nietzschiana agraves coisas em si tal como esta referecircncia frequentemente aparece no
ensaio faz deste texto nietzschiano objeto de constantes insinuaccedilotildees do compromisso do
autor com uma realidade em si Os comentadores que tomam o uso das coisas em si nos
textos nietzschianos de juventude como testemunho de seu compromisso com estas
categorias entendem que a rejeiccedilatildeo nietzschiana da pretensatildeo de verdade da linguagem
repousa sobre a negaccedilatildeo de que esta consiga referir-se a uma realidade objetiva Ou seja
Nietzsche utilizaria as coisas em si para negar que a linguagem possa dizer algo sobre tais
entidades
Do mesmo modo para estes comentadores apenas com base em um recurso a uma
realidade objetiva o autor poderia sustentar sua constante criacutetica dos produtos do intelecto
como falsificaccedilotildees Nesta leitura se os produtos do intelecto satildeo falsificaccedilotildees eacute necessaacuterio
que eles falsifiquem algo Como aqui se trata de uma reflexatildeo acerca da verdade entatildeo
essa falsificaccedilatildeo representaria um fracasso na correspondecircncia entre os produtos do
intelecto e aquilo que o intelecto tenta reproduzir Eacute nesse espiacuterito que Clark afirma em sua
obra sobre Nietzsche e a verdade
A aceitaccedilatildeo de Nietzsche da teoria metafiacutesica da correspondecircncia parecebastante oacutebvia tanto quando ele nega que a linguagem pudesse expressar
89
a verdade porque natildeo se preocupa com a ldquocoisa-em-sirdquo quanto quandoele critica a ldquoverdade antropomoacuterficardquo por natildeo conter ldquonem um uacutenicoponto que seria lsquoverdadeiro em sirsquo ou realmente e universalmente vaacutelidaslsquopara aleacutem de todos os seres humanosrsquordquo em ambos os casos eleclaramente assume que a realidade eacute independente dos seres humanos eque aquilo que falha em corresponde a esta realidade natildeo pode serverdadeiro A questatildeo permanece como se o uso da expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentidokantiano e assim como se ele interpreta-se a verdade como independentede seres humanos no sentido necessaacuterio para tornaacute-lo um realistametafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85)
Ao analisar a filosofia de juventude nietzschiana notadamente seu Ensaio sobre
Verdade e Mentira Clark submete o pensamento sobre a verdade do autor a uma
interpretaccedilatildeo eminentemente metafiacutesica assegurada pela sua aceitaccedilatildeo do princiacutepio de
correspondecircncia Segundo essa leitura a concepccedilatildeo nietzschiana de que as palavras
representam uma falsificaccedilatildeo da realidade seria dependente da defesa de uma realidade em
si segundo a qual poderia ser negado que as designaccedilotildees e as coisas coincidam Caso em
que a constante referecircncia do filoacutesofo agraves coisas em si como na seguinte passagem ldquoA
lsquocoisa em sirsquo (ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequecircncias) tambeacutem
eacute para o criador da linguagem algo totalmente inapreensiacutevel e pelo qual nem de longe
vale a pena esforccedilar-serdquo (WLVM sect1 paacuteg 31) estaria justificada49
No entanto para aleacutem do fato de tratar-se aqui de uma faacutebula da origem da
linguagem o que de si jaacute colocaria em risco a suposiccedilatildeo de uma consideraccedilatildeo seacuteria da
parte de Nietzsche da concepccedilatildeo de coisas em si temos ainda que na medida em que
49 Andreacute Luiacutes Mota Itaparica em seu artigo As objeccedilotildees de Nietzsche ao Conceito de Coisa em Si(kriterion Belo Horizonte nordm 128 Dez2013 p 307-320) toma como certa a admissatildeo nietzschiana dacategoria de coisa em si em sua filosofia de juventude ldquoA esse respeito natildeo haacute duacutevida de que entre ostemas kantianos discutidos por Nietzsche a questatildeo sobre o estatuto da coisa em si eacute particularmenterelevante para a elaboraccedilatildeo de sua proacutepria filosofia jaacute que ela tem como um dos seus objetivos em suaforma madura a criacutetica agrave noccedilatildeo de uma realidade independente de qualquer perspectiva Por esse motivo acompreensatildeo de Nietzsche desse problema tambeacutem se tornou um dos assuntos mais debatidos e controversosentre seus inteacuterpretes De forma geral e com naturais diferenccedilas de ecircnfase os comentadores tendem aidentificar na filosofia de Nietzsche uma trajetoacuteria que o levaria da admissatildeo de um conceito de coisa em siem sua juventude ateacute uma negaccedilatildeo da coisa em si considerada como uma concepccedilatildeo contraditoacuteria em suafilosofia madura A discordacircncia entre os comentadores surge quando se pergunta se o conceito de coisa emsi que Nietzsche critica eacute exatamente aquilo que Kant entendia por coisa em sirdquo (ITAPARICA 2013 Paacutegs308-309) Claramente Itaparica segue aqui a indicaccedilatildeo de Clark de que A questatildeo permanece como se o usoda expressatildeo ldquocoisa-em-sirdquo (no ensaio) correspondesse ao que eu tomo como sendo um sentido kantiano eassim como se ele interpretasse a verdade como independente de seres humanos no sentido necessaacuterio paratornaacute-lo um realista metafiacutesico como tenho definido esse termo (CLARK 1995 Paacuteg 85) conforme citaccedilatildeoda paacutegina anterior
90
verificamos uma certa continuidade entre este escrito com relaccedilatildeo a textos do mesmo
periacuteodo de produccedilatildeo tais como as jaacute referidas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie e
Zur Schopenhauer nos parece proveitoso nos afastarmos dessa leitura50 Isto porque
consideramos que com base na leitura que o autor do ensaio efetua da filosofia kantiana
nessa eacutepoca uma tal concepccedilatildeo como a da realidade das coisas em si seria insustentaacutevel51
A compreensatildeo do sentido do uso nietzschiano da concepccedilatildeo de coisas em si no
ensaio passa pela anaacutelise dos jaacute referidos textos Nesta leitura a referecircncia criacutetica a esta
concepccedilatildeo sempre se daacute de modo criacutetico e muitas vezes irocircnico Com base em uma
reavaliaccedilatildeo criacutetica das coisas em si presente sobretudo nas primeiras impressotildees criacuteticas
acerca da obra kantiana52 o autor do ensaio na passagem acima mencionada procuraria
indicar que o reino da verdade por princiacutepio estaria fora do alcance e da esfera de
interesses do criador da linguagem Motivo pelo qual em sua exposiccedilatildeo das origens da
linguagem a partir do intelecto esta natildeo teria nada que ver com a verdade tal como a
tradiccedilatildeo a concebe posto que natildeo eacute criada tendo por base o mundo das ldquocoisas em sirdquo53
Aleacutem desses motivos o uso de aspas para indicar esta concepccedilatildeo kantiana pode ser tomado
como uma indicaccedilatildeo da ironia com quecirc o autor toma o conceito de coisas em si na
passagem em questatildeo do mesmo modo como faz inuacutemeras vezes em que o autor se refere
a esta concepccedilatildeo em sua obra madura
50 Na carta de 1866 citada anteriormente em que Nietzsche apresenta a seu amigo Baratildeo von Gersdorff osresultados de suas leituras de A Histoacuteria do Materialismo de Friedrich Albert Lange o filoacutesofo jaacute demonstrauma certa compreensatildeo criacutetica da concepccedilatildeo kantiana de coisas em si Na correspondecircncia em questatildeoNietzsche afirma ldquo(hellip) Entatildeo a verdadeira natureza das coisas as coisas em si natildeo apenas nos satildeodesconhecidas mas ateacute mesmo o conceito delas seria nada mais nada menos do que a uacuteltima encarnaccedilatildeo deuma contradiccedilatildeo condicionada por nossa organizaccedilatildeo da qual natildeo sabemos se tem qualquer sentido paranossa experiecircnciardquo (BVN-1866 517 ndash carta a Carl von Gesdorf de fins de agosto de 1886) Por outro ladoem um fragmento dos rascunhos para A Filosofia na eacutepoca Traacutegica dos Gregos Nietzsche escreve de umaforma que evidencia um uso metodoloacutegico das coisas em si ldquo(hellip) Certamente esta unidade uacuteltima dolsquoindeterminadorsquo o choque original de todas as coisas apenas pode ser descrito negativamente pelo homemcomo algo ao qual nenhum predicado pode ser dado fora do existente mundo do tornar-se e para a qualportanto as lsquocoisas em sirsquo kantianas podem ser igualmente aplicadasrdquo (PHG-4 sect4) Acredito que o uso queo autor faz das coisas em si no ensaio em estudo seria tambeacutem uma espeacutecie de uso metodoloacutegico destaconcepccedilatildeo kantiana A traduccedilatildeo dos fragmentos eacute de nossa responsabilidade51 O que parece concordar com as diversas criacuteticas que essa concepccedilatildeo recebe na filosofia nietzschiana dematuridade que inclusive satildeo antecipadas em muitos fragmentos dos primeiros anos de sua reflexatildeo comoas jaacute mencionadas cartas que antecipam a possibilidade de produccedilatildeo de uma tese acerca dos limites doorgacircnico a partir de Kant 52 Com as quais Nietzsche entra em contato atraveacutes de sua leitura de filoacutesofos criacuteticos de Kant notadamenteAlbert Lange e Schopenhauer53 Uma ideia recorrente do ensaio que eacute melhor compreendida a partir da comparaccedilatildeo nietzschiana entre ouso da palavra ldquofolhardquo com a ideia de uma folha fundamental com base na qual todas as folhas seriamconfeccionadas mas como que ldquopor matildeos inaacutebeisrdquo
91
Mais ainda a referecircncia de que tais entidades como coisas em si corresponderiam
ao mundo das verdades sem consequecircncias as mesmas verdades que o autor anteriormente
afirmava serem indiferentes ao homem torna ainda mais visiacutevel o trato irocircnico para com
estas entidades As quais natildeo corresponderiam a um objeto especial da filosofia tal como a
tradiccedilatildeo parece tecirc-las entendido Estas entidades que natildeo possuem relaccedilotildees com outras
entidades nos seriam totalmente indiferentes aleacutem de incompreensiacuteveis Logo o criador
da linguagem se sua motivaccedilatildeo fosse propiciar a sobrevivecircncia natildeo poderia apoiar-se em
um tal terreno das verdades incompreensiacuteveis e inuacuteteis para a comunicaccedilatildeo entre os
homens
Pelo contraacuterio segundo o autor do ensaio ldquoEle designa apenas as relaccedilotildees das
coisas com os homens e para expressaacute-las serve-se da ajuda das mais ousadas metaacuteforasrdquo
(WLVM sectI paacuteg 29-32) Nada aqui traz qualquer relaccedilatildeo com a verdade eterna e
imutaacutevel pois natildeo se trata de uma tentativa de alcanccedilar um reino especial da verdade mas
apenas de tornar comunicaacutevel as relaccedilotildees das coisas enfim o que nos pode ser uacutetil nas
coisas Se o objeto da criaccedilatildeo da linguagem nada tem que ver com a verdade o que dizer
do instrumento as metaacuteforas com as quais satildeo construiacutedas as designaccedilotildees das coisas
Diga-se de passagem natildeo quaisquer metaacuteforas mas ldquoas mais ousadasrdquo como o autor faz
questatildeo de ressaltar
Estas metaacuteforas seriam as mais ousadas porque no entender do autor do ensaio
seriam as mais distantes daquilo que se conveacutem chamar verdade Segundo Nietzsche a
loacutegica da criaccedilatildeo da linguagem sugere a passagem de estiacutemulos nervosos para imagens
mentais que logo seriam traduzidas em sons A transposiccedilatildeo das imagens mentais em sons
por meio do intelecto obedece a necessidade de comunicar uma impressatildeo individual e
natildeo a qualquer tipo de correspondecircncia De fato em todo esse processo a coisa mesma natildeo
entra em questatildeo O autor afirma que natildeo se pode tomar sua existecircncia como causa das
sensaccedilotildees Do mesmo modo posto que a criaccedilatildeo das palavras eacute determinada por uma
necessidade de comunicar e que nesta criaccedilatildeo o intelecto opera com base nas mais
ousadas transposiccedilotildees natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo causal entre a coisa e a palavra que a
nomeia Menos ainda uma relaccedilatildeo de correspondecircncia Assim nos diz Nietzsche ldquoO que eacute
uma palavra A reproduccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em sons Mas deduzir do estiacutemulo
nervoso uma causa fora de noacutes jaacute eacute o resultado de uma aplicaccedilatildeo falsa e injustificada do
92
princiacutepio de razatildeordquo (WLVM sectI paacutegs 30-31) Portanto a deduccedilatildeo da existecircncia de algo
como coisas em si para aleacutem do estiacutemulo nervoso que daacute margem agrave criaccedilatildeo das palavras
seria ir aleacutem do que permite o princiacutepio de razatildeo do mesmo modo que seria um erro
considerar-se coisas em si como causas dos fenocircmenos Em ambos os casos estariacuteamos
diante de um uso indevido do princiacutepio de razatildeo ao supormos uma causa onde nada nos
possibilita uma tal suposiccedilatildeo
Portanto na criaccedilatildeo das palavras em cada conversatildeo em cada metaacutefora ocorre a
transposiccedilatildeo para um terreno novo totalmente adverso do ponto de partida como nos diz
Nietzsche ldquoDe antematildeo um estiacutemulo nervoso transposto em uma imagem Primeira
metaacutefora A imagem por seu turno remodelada num som Segunda metaacutefora E a cada
vez um completo sobressalto de esferas em direccedilatildeo a uma outra totalmente diferente e
novardquo (WLVM sectI paacuteg 32) Com isso a proacutepria pretensatildeo de dizer a verdade conforme
uma concepccedilatildeo de verdade que toma como princiacutepio a relaccedilatildeo entre as coisas e as palavras
passa a ser analisada como um desatino porque desconsideraria todo o processo indicado
pelo autor
Notaacutevel que em sua explicaccedilatildeo da origem da linguagem o autor fundamente-se
amplamente em teorias das ciecircncias naturais como fica claro em sua reduccedilatildeo do mundo a
meros estiacutemulos nervosos Do mesmo modo seu uso dos experimentos de Chladni54 acerca
54 Nietzsche demonstra em seus escritos poacutestumos ter se interessado enormemente pelas experiecircncias deChladini Assim em uma nota poacutestuma de 1872 o filoacutesofo afirma ldquoSondern die feinsten Ausstrahlungen vonNerventhaumltigkeit auf einer Flaumlche gesehn sie verhalten sich wie die Chladnirsquoschen Klangfiguren zu demKlang selbst so diese Bilder zu der darunter sich bewegenden Nerventhaumltigkeit Das allerzarteste sichSchwingen und Zittern Der kuumlnstlerische Prozeszlig ist physiologisch absolut bestimmt und nothwendigrdquo(NFFP 1872 19[79]) Assim Nietzsche pensa as reproduccedilotildees visuais da atividade nervosa como umaespeacutecie de reflexo da atividade artiacutestica por traacutes da atividade humana Esta atividade artiacutestica demonstrariatal como as figuras sonoras de Chladini uma perfeita harmonia Esta ideia volta a ser reproduzida em umanota mais curta no fragmento poacutestumo (NFFP 1872 19[140]) Em um outro fragmento daquele periacuteodo ofiloacutesofo reflete sobre a relaccedilatildeo entre as leis da multiplicidade e sua expressatildeo em foacutermulas numeacutericas comouma metaacutefora Neste sentido a reproduccedilatildeo das leis da natureza em expressotildees numeacutericas guardaria a mesmarelaccedilatildeo de similaridade que as figuras de Chladini com o som que as gerou ldquoBesonders die Zahl dieAufloumlsung aller Gesetze in Vielheiten ihr Ausdruck in Zahlenformeln ist eine μεταφορά wie jemand dernicht houmlren kann die Musik und den Ton nach den Chladnischen Klangfiguren beurtheiltrdquo (NFFP 187219[237]) Seraacute exatamente esta ideia que retornaraacute no Ensaio sobre Verdade e Mentira A ideia de que asfiguras de Chladini guardariam a mesma similaridade com os sons que lhe geram que os sons guardariamcom os estiacutemulos nervosos que lhe originam ldquoMan kann sich einen Menschen denken der ganz taub ist undnie eine Empfindung des Tones und der Musik gehabt hat wie dieser etwa die Chladnischen Klangfiguren imSande anstaunt ihre Ursachen im Erzittern der Saite findet und nun darauf schwoumlren wird jetzt muumlsse erwissen was die Menschen den Ton nennen so geht es uns allen mit der Sprache (WLVM sect01) Para umaexcelente explicaccedilatildeo dos experimentos de Chladni e sua relaccedilatildeo com a teoria da linguagem de Nietzscherecomendo a muito clara explicaccedilatildeo do Professor Fernando Barros na nota trecircs na traduccedilatildeo em uso doEnsaio Sobre Verdade e Mentira (WLVM sectI paacutegs 32-33)
93
da acuacutestica indica que ainda entreteacutem estreitos laccedilos com as ciecircncias naturais Assim
como jaacute mencionado temos que considerar que na confecccedilatildeo do ensaio suas leituras
acerca das ciecircncias tal como nas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie possibilitam a
Nietzsche um patamar argumentativo para se contrapor agraves correntes idealistas de
investigaccedilatildeo do conhecimento e da verdade
Em complemento ao que foi dito acerca das coisas em si no Ensaio sobre Verdade e
Mentira devemos abordar o uso do termo ldquoterreno das essencialidadesrdquo no referido ensaio
A criacutetica nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade parte da denuacutencia de uma
compreensatildeo errocircnea dos filoacutesofos que tomam a linguagem como algo que eacute criado como
reflexo da verdade objetiva Nessa leitura pelo recurso a uma concepccedilatildeo da criaccedilatildeo da
linguagem como processo de traduccedilatildeo arbitraacuteria de estiacutemulos nervosos em imagens e dai
em sons o autor do ensaio procura refutar qualquer sugestatildeo de uma necessaacuteria relaccedilatildeo
entre a linguagem e uma realidade original da qual esta seria reflexo Assim o autor
defende a suposiccedilatildeo de que toda vez que nos utilizamos a linguagem para nos referirmos agrave
realidade ignoramos completamente estas relaccedilotildees arbitraacuterias das quais a linguagem deve
sua existecircncia
A concepccedilatildeo tradicional da linguagem por outro lado parece fundamentar-se em
uma origem quase maacutegica da linguagem como se ela espelha-se uma relaccedilatildeo de parentesco
entre a inteligecircncia criadora da realidade e nossa inteligecircncia Nesse espelhamento da
realidade ideal da qual as imagens que nosso intelecto nos apresentam seriam algo como
reflexo imperfeito das proacuteprias coisas surgiria a relaccedilatildeo de correspondecircncia pressuposta
em toda afirmaccedilatildeo verdadeira O autor do ensaio no entanto esforccedila-se por destituir de
vaidade esta origem mitoloacutegica da linguagem No lugar de um terreno da objetividade o
autor faz questatildeo de enfatizar que sempre que usamos a linguagem estamos no terreno das
metaacuteforas
Acreditamos saber algo acerca das proacuteprias coisas quando falamos deaacutervores cores neve e flores mas com isso nada possuiacutemos senatildeometaacuteforas das coisas que natildeo correspondem em absoluto agravesessencialidades originais Tal como o som sob a forma de figura de areiaassim se destaca o enigmaacutetico ldquoXrdquo da coisa em si uma vez comoestiacutemulo nervoso em seguida como imagem e por fim como som Dequalquer modo o surgimento da linguagem natildeo procede pois
94
logicamente sendo que o inteiro material no qual e com o qual o homemda verdade o pesquisador o filoacutesofo mais tarde trabalha e edifica temsua origem se natildeo em alguma nebulosa cucolacircndia em todo caso natildeo naessecircncia das coisas (WLVM sectI paacuteg 35)
Mais do que o falante comum o homem da verdade eacute enganado aqui por ser o mais
dependente das essencialidades originais para sua atividade As supostas coisas em si que
o proacuteprio Kant pensou apenas como um ldquoXrdquo enigmaacutetico natildeo representariam qualquer
papel na criaccedilatildeo da linguagem Na leitura nietzschiana apresentada no ensaio portanto a
linguagem natildeo procede de forma loacutegica mas seria o resultado de arbitraacuterias transposiccedilotildees
de metaacuteforas Do mesmo modo ela natildeo procede de qualquer essencialidade mas de um
estiacutemulo nervoso em primeira instacircncia e de uma imagem criada a partir desse estiacutemulo
em segunda instacircncia Com isso o autor do ensaio natildeo afirma nada acerca de uma relaccedilatildeo
entre as essencialidades e a linguagem como forma de qualificar uma teoria da verdade
mais correta do que a tradicional mas apenas rejeita a teoria que faz decorrer a linguagem
dessas supostas essencialidades55
A preocupaccedilatildeo fundamental do autor o motivo pelo qual retoma com frequecircncia
sua teoria acerca da linguagem diz respeito a sua preocupaccedilatildeo com um us bastante
especiacutefico da linguagem o uso cientiacutefico Assim seu objetivo final eacute demonstrar que toda
ciecircncia eacute construiacuteda com base em relaccedilotildees pouco explicadas com abstraccedilotildees arbitraacuterias
com palavras de cuja origem natildeo se poderia garantir a veracidade Nesse sentido seu
uacuteltimo alvo seria a constataccedilatildeo de que aquilo com que o homem da verdade trabalha e
edifica aquilo com que o filoacutesofo constroacutei suas belas teorias metafiacutesicas natildeo proveacutem do
reino das ideias mas de uma seacuterie de processos pouco racionais
O conceito por exemplo o material com que segundo o autor do ensaio satildeo
construiacutedas as teorias cientiacuteficas e filosoacuteficas seria ainda um produto deste tipo de relaccedilatildeo
de simplificaccedilatildeo e falsificaccedilatildeo que natildeo se prende a qualquer racionalidade Uma palavra se
55 No fragmento poacutestumo 19 [165] do mesmo periacuteodo da obra em estudo Nietzsche parece refletir acercado caraacuteter das supostas essecircncias das coisas ldquoconhecemos apenas uma realidade ndash a dos pensamentos E seisso fosse a essecircncia das coisas Se memoacuteria e sensaccedilatildeo fossem o material das coisardquo O uso de exclamaccedilotildeese todo o contexto do fragmento parece sugerir que Nietzsche usa o termo essecircncia como origem das coisas oque por sinal tambeacutem poderia ser um sentido utilizado no proacuteprio texto do Ensaio Sugestatildeo que me parecemais provaacutevel do que a ideia de que naquela altura de seu desenvolvimento intelectual o autor aindasuportasse alguma crenccedila em essecircncias em sentido metafiacutesico Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na seletade fragmentos poacutestumos publicados em adendo a traduccedilatildeo em estudo Paacuteg 70
95
torna um conceito no entender de Nietzsche na medida em que seu uso se torna cada vez
mais especializado servindo para designar progressivamente objetos cada vez mais
gerais Em sua leitura contraacuteria agravequela da concepccedilatildeo tradicional acerca da formaccedilatildeo da
linguagem o conceito por meio da solidificaccedilatildeo de uma palavra quando ela perde a
flexibilidade adequada agraves necessidades da comunicaccedilatildeo cotidiana passando a designar um
conjunto de objetos em vez de um objeto individual Desta maneira uma palavra torna-se
um conceito ldquoagrave medida que natildeo deve servir a tiacutetulo de recordaccedilatildeo para a vivecircncia
primordial completamente singular e individualizada agrave qual deve seu surgimentordquo
(WLVM sectI paacuteg 35) Ou seja no processo de criaccedilatildeo dos conceitos um esquecimento do
uso individual da palavra tem efeito convergindo na aplicaccedilatildeo desta palavra em contextos
cada vez mais especializados o que significa um afastamento cada vez maior da realidade
da qual o conceito eacute derivado
Pode se ver assim que na leitura nietzschiana um conceito natildeo designa um
objeto mas um conjunto do qual o objeto eacute um exemplo Deste modo todo conceito seria
essencialmente uma generalizaccedilatildeo Mas o esquecimento desse caraacuteter geneacuterico em que
toda individualidade dos objetos eacute deixada de lado conduz agrave arbitraacuteria igualaccedilatildeo do
individual uma supressatildeo das caracteriacutesticas individuais dos objetos e uma supervaloraccedilatildeo
dos conceitos que passam a assumir o caraacuteter de uma realidade condizente com a realidade
ela mesma
Em contraposiccedilatildeo a essa ideia o autor do ensaio supotildee todas as coisas como sendo
individuais em um niacutevel indescritiacutevel Logo um conceito jamais poderia ser considerado
uma coisa e sua formaccedilatildeo corresponderia a mais um estaacutegio de afastamento da linguagem
daquilo que esta deveria designar Nesse sentido a criaccedilatildeo de conceitos por meio da
destituiccedilatildeo de individualidade dos objetos estaria relacionada a mais uma transposiccedilatildeo
arbitraacuteria Pois quando designamos diversos objetos sob um mesmo termo como quando
utilizamos a palavra folha para designar vaacuterios objetos individuais nos esquecemos de que
algo como ldquoa folhardquo por exemplo natildeo existe O que existem satildeo folhas todas diferentes
umas das outras Mas a transposiccedilatildeo natildeo paacutera aiacute pois na criaccedilatildeo do conceito a atribuiccedilatildeo
de realidade do conceito representa mais um grau de afastamento das verdades individuais
96
Nesse sentido a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma realidade conceitual eacute
comparada agrave ideia de meras criaccedilotildees arbitraacuterias do intelecto que teria seu fundamento nos
produtos mais fundamentais da apreensatildeo dos estiacutemulos nervosos uacutenica realidade agrave qual o
filoacutesofo estaria de acordo em admitir em sua leitura As implicaccedilotildees dos problemas
decorrentes de uma consideraccedilatildeo essencialista dos conceitos eacute apresentada por Nietzsche
traveacutes da consideraccedilatildeo de qualidades como a honestidade que surgiria da desconsideraccedilatildeo
de uma grande gama de eventos individuais os quais satildeo conceituados como uma
qualidade determinante de um indiviacuteduo
Nada sabemos por certo a respeito de uma qualidade essencial que sechamasse honestidade mas antes do mais de inuacutemeras accedilotildeesindividualizadas e por conseguinte desiguais que igualamos poromissatildeo do desigual e passamos a designar dessa feita como accedilotildeeshonestas a partir delas formulamos finalmente uma qualitas occultacom o nome honestidade (WLVM sectI paacuteg 36)
Assim surgiria o conceito de honestidade como qualidade daquilo que eacute honesto
como nos diz o autor do ensaio O autor do ensaio se vale aqui uma vez mais de uma forte
ironia como veiacuteculo para uma ideia fundamental Dizer que a honestidade eacute a qualidade
daquilo que eacute honesto natildeo diz mais sobre a honestidade do que dizer que o oacutepio faz dormir
por conta de sua virtus dormitiva Nesse exemplo satildeo vaacutelidos os mesmos problemas que
Nietzsche enxerga no caso da criaccedilatildeo de conceitos a partir de objetos Assim o processo de
cunhagem do conceito de honestidade cumpriria os mesmos estaacutegios do processo de
cunhagem do conceito de ldquofolhardquo com a exceccedilatildeo de que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de
algo como a honestidade eacute mais oacutebvia do que a pressuposiccedilatildeo de existecircncia de uma folha
primordial
O autor do ensaio procura por meio deste gecircnero de argumentos contrapor-se agrave
crenccedila arraigada entre os filoacutesofos de que os conceitos seriam derivados de alguma
realidade supra-terrena Em contraposiccedilatildeo a esta ideia o autor entende que a origem dos
conceitos se deveria a uma igualaccedilatildeo do desigual no uso da linguagem A atribuiccedilatildeo de
existecircncia aos conceitos seria o uacuteltimo degrau em uma escala progressiva de esquecimento
de seu uso individual Ou seja apenas por meio de um esquecimento acerca da origem
97
desses conceitos assim como de seu uso individual seria possiacutevel atribuir uma existecircncia
desconexa de seu uso a tais entidades inexistentes De todo modo o que se vecirc no ensaio eacute
uma progressiva destituiccedilatildeo de validade dos fundamentos que suportam a concepccedilatildeo da
existecircncia dos conceitos
Por outro lado se o autor natildeo nega explicitamente a existecircncia objetiva dos
conceitos isto se deveria apenas ao receio de incorrer em uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica
Assim no lugar da rejeiccedilatildeo destes o autor utiliza-se de argumentos criacuteticos baseados nas
limitaccedilotildees da capacidade humana de conhecer como forma de demonstrar que devido a
proacutepria natureza de nossa constituiccedilatildeo estamos impedidos de conhecer algo como
conceitos ou coisas me si
A inobservacircncia do individual e efetivo nos fornece o conceito bemcomo a forma ao passo que a natureza desconhece quaisquer formas econceitos e portanto tambeacutem quaisquer gecircneros mas tatildeo somente umldquoXrdquo que nos eacute inaccessiacutevel e indefiniacutevel Pois ateacute mesmo nossa oposiccedilatildeoentre o indiviacuteduo e gecircnero eacute antropomoacuterfica e natildeo adveacutem da essecircncia dascoisas ainda que natildeo arrisquemos dizer que ela natildeo lhe corresponde issoseria efetivamente uma asserccedilatildeo dogmaacutetica e como tal tatildeoindemonstraacutevel quanto o seu contraacuterio (WLVM sectI paacuteg 36)
Nada sabemos da essecircncia das coisas nem mesmo se tais essecircncias existem
Apenas uma fuga dos limites da efetividade pode sugerir a existecircncia de tais essecircncias
Dizer que natildeo haacute distinccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros no reino das essecircncias seria fazer
uma afirmaccedilatildeo dogmaacutetica e assim ferir o preceito kantiano de limitaccedilatildeo do conheciacutevel agrave
esfera dos fenocircmenos No entanto tudo poderia se passar de modo que estas se
comportassem exatamente do modo como a tradiccedilatildeo acredita e nesse sentido esta
realidade poderia refletir as relaccedilotildees de gecircnero e indiviacuteduo que Nietzsche procura
qualificar como antropomoacuterficas Pois como mencionado no capiacutetulo anterior Nietzsche
aceita jaacute em Zur Schopenhauer que tal como na citaccedilatildeo do ensaio acima ldquopode haver uma
coisa em sirdquo mas essa possibilidade apenas eacute referida porque o filoacutesofo compreende que
ldquona aacuterea de transcendecircncia tudo que jaacute foi capturado pelo ceacuterebro de um filoacutesofo eacute
possiacutevelrdquo (BAW Paacuteg 354-355) A existecircncia de coisas em si nesse sentido seria apenas
possiacutevel
98
Devemos considerar entretanto que tal como o autor argumenta em Zur
Schopenhauer eacute apenas negativa E que essa probabilidade conta praticamente como
desvantagem para a concepccedilatildeo das coisas em si Desta maneira tal como em sua reflexatildeo
acerca da multiplicidade e individualidade em Zur Teleologie aqui tambeacutem o autor
renuacutencia oferecer qualquer posiccedilatildeo determinada acerca do caraacuteter em si da existecircncia por
considerar esta uma posiccedilatildeo dogmaacutetica Mas aqui como nas notas preparatoacuterias o filoacutesofo
rejeita toda argumentaccedilatildeo que parte da consideraccedilatildeo destas realidades preferindo manter-
se no limite do efetivo e do individual Para tanto apoia-se com frequecircncia nas ciecircncias da
natureza como a se tratar aqui de modelo seguro para sua determinaccedilatildeo do caraacuteter
antropomoacuterfico destas determinaccedilotildees A investigaccedilatildeo da natureza com base em preceitos
cientiacuteficos neste caso a investigaccedilatildeo natural da origem da linguagem e dos conceitos
demonstra que nossa diferenciaccedilatildeo entre indiviacuteduos e gecircneros eacute uma decorrecircncia de
diversas transposiccedilotildees arbitraacuterias entre metaacuteforas de reinos muito distintos de existecircncia
Por esses motivos procuramos por meio de nossa interpretaccedilatildeo romper com a ideia
de uma defesa nietzschiana do reino das essencialidades como fundamento de suas
afirmaccedilotildees concepccedilatildeo que acreditamos que o autor substitui pela ideia de uma
investigaccedilatildeo natural das origens da linguagem e da verdade Com isso com a
contraposiccedilatildeo nietzschiana agrave progressiva inclusatildeo de conceitos nas realidades cientiacuteficas e
filosoacuteficas o autor efetuaria uma de suas primeiras denuacutencias da progressiva destituiccedilatildeo de
valor da realidade pelas concepccedilotildees racionalistas Em sua leitura na medida em que
passamos a depositar total confianccedila em uma realidade conceitual na medida em que
fazemos depender nossa existecircncia desse gecircnero de criaccedilatildeo arbitraacuteria passamos a rejeitar
uma forma mais original de existecircncia que se fundamentaria no valor de nossas criaccedilotildees
enquanto criaccedilotildees
23 O pathos da verdade ou a verdade como valor
Todo o progresso alcanccedilado pelo autor do ensaio ateacute aqui serve de preparaccedilatildeo para
a postulaccedilatildeo de sua hipoacutetese acerca da verdade Hipoacutetese a que o autor do ensaio chega
99
atraveacutes de uma investigaccedilatildeo extramoral da verdade e da mentira que culmina em uma
anaacutelise das origens da linguagem A relaccedilatildeo estabelecida pelo autor entre a linguagem e a
verdade possibilita uma anaacutelise do valor da verdade como decorrecircncia das origens mesmas
da linguagem Nesse sentido a partir do momento que Nietzsche conclui que a verdade
surge em consequecircncia do uso da linguagem como uma decorrecircncia das leis das
designaccedilotildees coletivas a concepccedilatildeo da verdade formulada no ensaio natildeo pode ser
desvinculada de sua anaacutelise das origens da linguagem
A que conclusotildees o estudo das origens da linguagem conduz Ora se o autor
percebe que a linguagem seria o produto de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias de
metaacuteforas primeiramente de estiacutemulos nervos em imagens mentais e posteriormente destas
em sons a verdade que eacute compreendida pela tradiccedilatildeo como uma propriedade da
linguagem em relaccedilatildeo a um objeto tambeacutem teria sua validade derivada destas
transposiccedilotildees arbitraacuterias Se a linguagem eacute este conjunto de transposiccedilotildees arbitraacuterias
tambeacutem a verdade acaba por constituir-se como um conjunto de metaacuteforas que devem sua
origem a tais transposiccedilotildees arbitraacuterias
O que eacute pois a verdade Um exeacutercito moacutevel de metaacuteforas metoniacutemiasantropomorfismos numa palavra uma soma de relaccedilotildees humanas queforam realccediladas poeacutetica e retoricamente transpostas e adornadas e queapoacutes uma longa utilizaccedilatildeo parecem obrigatoacuterias as verdades satildeo ilusotildeesdas quais se esqueceu que elas assim o satildeo metaacuteforas que se tornaramdesgastadas e sem forccedila sensiacutevel moedas que perderam seu troquel eagora satildeo levadas em conta apenas como metal e natildeo mais comomoedas (WLVM sectI paacuteg 37)
Eacute fundamental atentar para o sentido que o autor atribui agraves verdades aqui As
verdades ou seja as afirmaccedilotildees tomadas com verdadeiras dentro das normas linguiacutesticas
convencionadas ainda que preservem todas as exigecircncias que um teoacuterico tradicional queira
prescrever para o que seja verdadeiro carregam consigo os viacutecio da linguagem Nesse
sentido toda verdade afirmada seria sempre o produto de um esquecimento das origens das
palavras Sendo assim a conclusatildeo a que o posicionamento criacutetico nietzschiano chega eacute de
que as verdades seriam o contraacuterio do que se pensou delas ateacute entatildeo Com isso a
concepccedilatildeo tradicional finda destituiacuteda de validade
100
Verdades neste caso satildeo ilusotildees do tipo mais profundo porque nela se ignora seu
efeito ilusoacuterio Assim naquele momento de sua produccedilatildeo Nietzsche toma as verdades
como uma parcela inserida no conjunto maior das ilusotildees das metaacuteforas de cuja origem
metafoacuterica se esquece para bem da comunicaccedilatildeo Com isso tem-se uma caracterizaccedilatildeo
provisoacuteria do sentido da verdade no Ensaio sobre Verdade e Mentira enquanto ilusotildees das
quais comodamente nos esquecemos que satildeo ilusotildees para fins gregaacuterios Sendo assim a
verdade corresponderia a algo como um conjunto de mentiras convencionadas cujo valor
haacute muito tempo deixou de relacionar-se com sua origem
A veracidade diria respeito entatildeo a uma relaccedilatildeo entre designaccedilotildees que por sua
vez satildeo produtos de transposiccedilotildees arbitraacuterias Portanto a relaccedilatildeo de veracidade natildeo
corresponderia a uma relaccedilatildeo de proximidade com um mundo essencial incognosciacutevel mas
representaria a internalizaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo linguiacutestica mediante a pressatildeo da
necessidade Mas como se pode explicar isso Qual o sentido de termos como metaacutefora e
ilusatildeo nessa argumentaccedilatildeo
Para exemplificar diriacuteamos que haacute expressotildees cujo significado usual suplanta sua
origem A existecircncia de expressotildees que perpetuam-se na liacutengua por seu uso e cujo sentido
se sobrepotildee agraves origens de onde obtinha seu sentido a princiacutepio parece ser um fenocircmeno
facilmente observaacutevel em todos os idiomas Assim quando chamamos a liacutengua portuguesa
ldquoa uacuteltima flor do Laacuteciordquo utilizamos uma expressatildeo que poderia significar uma flor literal
nascida no Laacutecio origem poeacutetica da qual a expressatildeo deve sua origem56 Aqui no entanto
tal expressatildeo perde toda ligaccedilatildeo com seu sentido poeacutetico passando a representar o idioma
que eacute comparado a uma flor Nesse sentido esta expressatildeo poderia ser tomada como uma
metaacutefora para a liacutengua portuguesa
No caso nietzschiano no entanto as metaacuteforas tecircm o sentido que lhes eacute atribuiacutedo na
comparaccedilatildeo com o que pretendem significar mas natildeo um sentido independente porque o
que lhes daacute origem eacute algo que natildeo tem sentido propriamente independente do que se quer
comunicar Isto porque o sentido poeacutetico destas expressotildees teria sido a muito tempo
esquecidas As metaacuteforas que fundamentam a concepccedilatildeo de verdade que Nietzsche busca
56 A expressatildeo agora praticamente em desuso pertence ao o soneto ldquoLiacutengua Portuguesardquo do poeta brasileiroOlavo Bilac Neste soneto Olavo Bilac escreve no primeiro verso ldquoUacuteltima flor do Laacutecio inculta e belardquoreferindo-se ao idioma Portuguecircs como a uacuteltima liacutengua derivada do Latim Vulgar idioma falado na regiatildeo doLaacutecio na Itaacutelia principalmente por soldados rasos e comerciantes dai o adjetivo ldquoincultardquo utilizado porOlavo Bilac
101
descrever satildeo metaacuteforas em um sentido muito especial portanto Isto porque usualmente
uma metaacutefora guarda uma relaccedilatildeo de sentido com o que tenta significar aleacutem de um
sentido literal independente o que natildeo ocorre com as metaacuteforas dos estiacutemulos nervosos
que segundo Nietzsche seriam as imagens mentais Do mesmo modo tambeacutem os sons
tomados como metaacuteforas das metaacuteforas que satildeo as imagens mentais natildeo guarda uma
relaccedilatildeo de sentido com elas Por fim os conceitos que seriam metaacuteforas das quais se perde
completamente ateacute a lembranccedila de que deveriam se reportar a algo aparecem como
metaacuteforas muito mais esmaecidas em relaccedilatildeo agraves primeiras metaacuteforas
Agora o que o autor do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sugerir eacute que a
verdade enquanto uso verdadeiro de designaccedilotildees linguiacutesticas guarda exatamente este
mesmo tipo de relaccedilatildeo com suas origens Grosso modo a verdade natildeo seria mais do que a
sobreposiccedilatildeo do uso de expressotildees linguiacutesticas sobre sua origem que eacute sem sentido e
incomunicaacutevel Nietzsche procura assim desvincular o apreccedilo pela verdade de qualquer
origem nobre que lhe tenha sido atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo Ainda assim determinadas a
origem e o significado da verdade faltaria ao autor explicar a tendecircncia natural agrave verdade
ou o impulso agrave verdade que para a tradiccedilatildeo eacute como que uma marca distintiva da
humanidade entre os outros animais
Toda a histoacuteria da origem da verdade apresentada pelo autor sugere apenas a
obrigatoriedade de se falar a verdade como uma obrigaccedilatildeo moral assumida perante a
sociedade na tentativa de evitar as consequecircncias negativas do engano para a
sociabilidade A identificaccedilatildeo da verdade como um tipo de engano consentido em grupo
ou ldquodito moralmente da obrigaccedilatildeo de mentir conforme uma convenccedilatildeo consolidada
mentir em rebanho num estilo a todos obrigatoacuteriordquo (WLVM sect1 paacuteg 37) natildeo afasta a
necessidade de se explicar as origens do pathos da verdade do sentimento moral que a
tradiccedilatildeo associou agrave verdade e que constrange o seu uso
A referecircncia nietzschiana a este pathos ou seja o forte sentimento que estaacute ligado
em noacutes agrave obediecircncia de certas regras na praacutetica discursiva se deveria a um lento processo
de internalizaccedilatildeo destas mesmas regras por forccedila do receio de recair em uma maacute
disposiccedilatildeo por parte da comunidade Nesse sentido por exemplo o fato de nos sentirmos
mal ao mentir e nos sentirmos bem ao falar a verdade estaria relacionado a uma instintiva
recordaccedilatildeo das consequecircncias da mentira para seu praticante Assim a origem desse
102
pathos estaria relacionada natildeo a um desejo inato pela verdade mas a um receio
inconsciente de rejeiccedilatildeo Por outro lado o pathos da verdade poderia ser relacionado ao
sentimento advindo da constataccedilatildeo da falta de apreccedilo pelas consequecircncias da mentira Ou
seja quando confrontado com o lugar legado pela sociedade aos mentirosos ao mesmo
tempo que eacute motivado cada vez mais a fazer uso de tantas abstraccedilotildees quantas se lhe
apresentem o homem cultiva em seu iacutentimo a necessidade de verdade
O homem que vive em rebanho passa entatildeo a ser fortemente incentivado a criar
formas de comunicar todo acesso consciente agraves intuiccedilotildees agraves impressotildees repentinas e
individuais com que se depara Certamente este esforccedilo em comunicar o que eacute individual
representa tambeacutem um progressivo afastamento do que eacute individual na medida em que se
deve esquecer a individualidade das impressotildees na esperanccedila de melhor comunicaacute-las
Assim o homem de rebanho troca estas impressotildees originais por conceitos E pelo uso de
conceitos cada vez mais ldquodesbotados e friosrdquo o homem passa a se distinguir em sua
comunidade como portador de um conjunto cada vez maior de veracidade
O resultado mais imediato desse pathos da verdade seria a constituiccedilatildeo de
hierarquias que posteriormente evoluiriam e viriam a se tornar nosso ordenamento juriacutedico
e social distintivos da existecircncia em rebanho que se contrapotildee ao modo de existir
individual Disso dependeria fundamentalmente o modo humano de existir assim como
nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No entanto na medida em
que esta progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma progressiva falsificaccedilatildeo das
impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva dependecircncia do homem para
com a linguagem
A partir do reforccedilo do costume de se dizer a verdade cumpriria ao homem
enquanto pretende ser um homem da verdade aplicar os conceitos segundo a forma
convencionada tomando cuidado em ldquojamais atentar contra a ordenaccedilatildeo de castas bem
como contra a sequecircncia das classes hierarquicamente organizadasrdquo (WLVM sectI paacuteg 39)
Nesse sentido a preservaccedilatildeo da verdade significaria tambeacutem preservaccedilatildeo das hierarquias
Em outras palavras na medida em que a vida humana passa progressivamente a girar em
torno da sociabilidade necessariamente o cultivo da linguagem passa a relacionar-se com a
preservaccedilatildeo das cadeias de comando pois a linguagem se relaciona intimamente com as
cadeias de reproduccedilatildeo de valor
103
24 A criacutetica nietzschiana ao mito da superioridade humana
Segundo a aproximaccedilatildeo do homem a outras espeacutecies de animais que Nietzsche
torna operante em todo o ensaio a razatildeo mesma que goza de alta consideraccedilatildeo por parte da
tradiccedilatildeo racionalista passa a ser entendida como um instrumento fornecido pela natureza
para melhor adaptaccedilatildeo do homem Dela dependeria fundamentalmente o modo humano
de existir assim como nisto consistiria sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros animais No
entanto na medida em que a progressiva objetivaccedilatildeo da linguagem significa uma
progressiva falsificaccedilatildeo das impressotildees individuais a ela estaria ligada uma progressiva
dependecircncia do homem para com a linguagem um tornar-se cada vez mais linguiacutestico
logo cada vez mais consciente Na leitura nietzschiana no entanto isto natildeo faria do
homem um animal superior mas apenas um animal mais dependente de ilusotildees
Com isso a intenccedilatildeo de Nietzsche seria confrontar a secular distinccedilatildeo do homem
como animal racional O autor do ensaio combate a interpretaccedilatildeo segundo a qual o homem
seria um animal superior por conta de sua racionalidade ao afirmar que a distinccedilatildeo entre os
seres humanos e os outros animais consistiria em outras qualidades menos oacutebvias Pois ao
contraacuterio do que imagina a tradiccedilatildeo natildeo eacute uma tendecircncia agrave verdade e ao conhecimento que
distingue o homem dos outros animais mas sua necessidade de ilusotildees de aparecircncias Ao
atacar as bases daquilo que a tradiccedilatildeo toma como traccedilo distintivo do ser humano sua
propensatildeo para a verdade sua racionalidade Nietzsche pretende sujeitar o intelecto a sua
funccedilatildeo como instrumento para a sobrevivecircncia Esta estrateacutegia argumentativa a defesa de
uma interpretaccedilatildeo do intelecto enquanto oacutergatildeo para a linguagem se opotildee a uma estrateacutegia
que o autor do ensaio pretende tornar natildeo operante a interpretaccedilatildeo metafiacutesica do intelecto
que se confunde com uma explicaccedilatildeo teleoloacutegica
Eacute nesse contexto que surge a imagem da teia de conceitos A cadeia de conceitos
que possibilita a ciecircncia seria o ponto mais elevado da estrateacutegia de sobrevivecircncia descrita
no ensaio A teia conceitual vista nessa leitura enquanto construccedilatildeo humana seria
104
aparentada com a teia da aranha por ser igualmente engenhosa57 De fato a teia conceitual
da ciecircncia aparece na leitura de Nietzsche como um claro exemplo da engenhosidade
arquitetocircnica humana que superaria em engenhosidade e sutileza a teia da aranha na
medida em que eacute tecida em material mais eteacutereo apesar de igualmente flexiacutevel e resistente
Aqui cabe muito bem admirar o homem como um formidaacutevel gecircnio daconstruccedilatildeo capaz de erguer sobre fundamentos instaacuteveis e como quesobre a aacutegua corrente um domo de conceitos infinitamente complicadopor certo a fim de manter-se firmemente em peacute sobre tais fundamentoscumpre ser uma construccedilatildeo como que feita com teias de aranhasuficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas e firme obastante para natildeo ser despedaccedilada pelo sopro do vento Como gecircnio daconstruccedilatildeo o homem eleva-se muito acima da abelha na seguinte medidaesta uacuteltima constroacutei a partir da cera que ela recolhe da natureza ao passoque o primeiro a partir da mateacuteria muito mais delicada dos conceitos queprecisa fabricar a partir de si mesmo Aqui cumpre admiraacute-lo muito masnatildeo somente por causa de seu impulso agrave verdade ao conhecimento purodas coisas (WLVM sectI paacuteg 40)
O significado da metaacutefora nietzschiana da teia relaciona-se natildeo apenas ao fato de
exemplificar uma forma sofisticada de estrateacutegia de sobrevivecircncia mas ao aspecto
definidor da realidade em ambos os casos Ou seja tanto a teia da aranha quanto o palaacutecio
conceitual da ciecircncia humana os quais constituem estrateacutegias de sobrevivecircncia para seus
criadores evoluem junto com a espeacutecie cuja sobrevivecircncia possibilitam Assim do mesmo
modo que a aranha e sua teia evoluem em uma iacutentima relaccedilatildeo a ponto da teia ser para a
aranha seu mundo posto que seu aparato sensorial evoluiu no sentido de uma limitaccedilatildeo de
sua realidade agrave sua teia o mundo de conceitos seria para o homem seu mundo
Nesse sentido a metaacutefora da teia eacute uma representaccedilatildeo poeacutetica do caraacuteter
perspectivo do conhecimento na filosofia nietzschiana Pois a perspectiva humana eacute
formada por aquilo que se lhe apresenta como objeto de conhecimento em uma primeira
acepccedilatildeo mas tambeacutem pela teia conceitual que eacute construiacuteda como modo de apreensatildeo
daquilo que se lhe apresenta ao conhecimento
57 O uso de animais nos escritos nietzschianos eacute sempre muito rico de sentido Em especial esta reflexatildeoacerca das semelhanccedilas entre os mecanismos de sobrevivecircncia do homem e da aranha constitui uma dasprimeiras apariccedilotildees de uma imagem poeacutetica constantemente retomada na filosofia nietzschiana acerca doconhecimento De fato muitas vezes a referecircncia agrave aranha ou a referecircncia a teia conceitual humanaaparecem como indicativos dos momentos na obra nietzschiana em que o autor reflete acerca doconhecimento
105
A genialidade da raccedila humana consistiria assim natildeo na veracidade de seus
construtos teoacutericos mas na capacidade de construir estruturas mais fraacutegeis e ao mesmo
tempo mais duradouras que outras espeacutecies naturais e que lhe possibilitam apreender o
mundo a sua volta Assim sua aparente tendecircncia ao conhecimento e agrave verdade seria
apenas mais uma ilusatildeo Uma ilusatildeo que lhe faz admirar seu construto teoacuterico do mesmo
modo que uma aranha aprende a estimar sua teia Nessas comparaccedilotildees as construccedilotildees
teoacutericas dos seres humanos natildeo aparecem em um grau superior agravequelas dos outros animais
o que confere ao texto a impressatildeo de que aqui o autor estivesse comparando estrateacutegias de
sobrevivecircncia sem desmerecer nenhuma delas
Na leitura nietzschiana portanto a propensatildeo ao conhecimento proacutepria do homem
seu impulso agrave verdade consistiria apenas em uma espeacutecie de truque da razatildeo A busca pela
verdade que tradicionalmente se tomava como a missatildeo sagrada do homem eacute vista pelo
autor do ensaio como um resultado de seu proceder racional Isto se daria porque para
Nietzsche o procurar e encontrar da ldquoverdaderdquo no interior do domiacutenio da razatildeo natildeo
poderia ter outro resultado senatildeo a descoberta de verdades criadas pela proacutepria razatildeo Dado
que a criaccedilatildeo de conceitos pelo homem condiciona o tipo de coisa designada e nada haacute de
especial em encaixar uma coisa em sua designaccedilatildeo conceitual pois o proacuteprio conceito eacute
um esquecimento da designaccedilatildeo original da coisa
Se crio a definiccedilatildeo de mamiacutefero e aiacute entatildeo apoacutes inspecionar um camelodeclaro veja eis um mamiacutefero com isso uma verdade decerto eacute trazida agraveplena luz mas ela possui um valor limitado digo ela eacute antropomoacuterficade fio a pavio e natildeo conteacutem um uacutenico ponto sequer que fosse ldquoverdadeiroem sirdquo efetivo e universalmente vaacutelido deixando de lado o homem Emprinciacutepio o pesquisador dessas verdades procura apenas a metamorfosedo mundo nos homens esforccedila-se por uma compreensatildeo do mundo vistocomo uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das hipoacuteteses granjeiapara si o sentimento de uma assimilaccedilatildeo Agrave semelhanccedila do astroacutelogo queobserva as estrelas a serviccedilo dos homens e em conformidade com suafelicidade e sofrimento assim tambeacutem um tal pesquisador observa omundo inteiro como conectado ao homem como o ressoar infinitamentefragmentado de um som primordial do homem como a coacutepiareduplicada de uma imagem primordial do homem (WLVM sectI paacuteg40-41)
106
Como afirma o autor nada haacute de ldquoverdadeiro em si58rdquo nesse tipo de procedimento
apesar disso parecer desesperador aos filoacutesofos mais antigos Tudo se daacute aqui no terreno
antropomoacuterfico dos conceitos e natildeo no terreno da pesquisa desinteressada da verdade Pois
o pesquisador deixando de lado o caraacuteter metafoacuterico de suas primeiras imagens as quais
lhe servem de objeto atua como se estivesse diante da realidade ela mesma sem se dar
conta que apenas testemunha uma verdade antropomoacuterfica Assim ele atua em erro de
princiacutepio ao fim ldquoeis seu procedimento ter o homem por medida de todas as coisas algo
que ele faz poreacutem partindo do erro de acreditar que teria tais coisas como objetos puros
diante de sirdquo (WLVM sectI paacuteg 41) Estes objetos puros natildeo satildeo colocados diante do
homem mais do que pela proacutepria razatildeo que procura nesses objetos a verdade Isto a razatildeo
faz de maneira inconsciente na medida em que ldquoEle se esquece pois das metaacuteforas
intuitivas originais tais como satildeo metaacuteforas e as toma pelas proacuteprias coisasrdquo (WLVM
sectI paacuteg 41)
O modo pelo qual Nietzsche chega aos conceitos diverge profundamente do modo
como a filosofia metafiacutesica os concebe Se a tradiccedilatildeo concebe os conceitos como uma
pressuposiccedilatildeo necessaacuteria a partir da constataccedilatildeo que a verdade deve ser eterna e imutaacutevel
Nietzsche concebe estas entidades como a imobilizaccedilatildeo dos impulsos originais por meio
de uma cadeia de transposiccedilotildees arbitraacuterias que culmina com o esquecimento desta mesma
cadeia A compreensatildeo dos conceitos como esta ldquocalcificaccedilatildeordquo das palavras a
internalizaccedilatildeo de palavras devido seu uso continuado na praacutetica comunicativa culminaria
na compreensatildeo da ciecircncia como construto que tem por seus elementos menores os
conceitos Nesse sentido se os conceitos natildeo teriam relaccedilatildeo com uma forma mais
verdadeira de representar a realidade tambeacutem a ciecircncia natildeo poderia ter esperanccedilas de
representar a realidade de um modo mais verdadeiro
Para o autor do ensaio o conceito seria apenas um produto tardio oriundo de nossa
pouca memoacuteria e deve-se notar em uacuteltima instacircncia produto de nossa sensibilidade
limitada Pois se natildeo percebemos as mudanccedilas constantes na realidade isso se deveria a
uma limitaccedilatildeo fundamental de nossos sentidos que satildeo marcados pela estabilidade como
58 O proacuteprio uso do termo ldquoverdadeiro em sirdquo entre aspas nesse trecho do Ensaio assim como os outrostermos relacionados (efetivo e universalmente vaacutelido) daacute a ideia de que Nietzsche nega que seusantagonistas os adeptos da concepccedilatildeo tradicional de verdade em algum momento tenham atingido seusobjetivos em sua pesquisa filosoacutefica Mas de maneira alguma o uso destes termos torna o autorcomprometido com a crenccedila nesse tipo de conceitos
107
necessidade fundamental Posto que nossos sentidos se desenvolveram em acordo com
nossa necessidade de estabilidade eles nos conferem em associaccedilatildeo com o intelecto a
estabilidade sem a qual natildeo poderiacuteamos sobreviver Assim apenas pela omissatildeo da
realidade em sua natureza mutaacutevel podemos conceber um mundo de estabilidade Por outra
parte somente porque desprezamos a originalidade de cada entidade o que significaria sua
natildeo existecircncia objetiva podemos conceber os conceitos
Nesse sentido os conceitos constituem a perspectiva verdadeira para o homem
capaz de lhe garantir uma existecircncia ateacute certo ponto feliz posto que o colocam para aleacutem
da terriacutevel circunstacircncia de sua existecircncia enquanto espeacutecie ameaccedilada O palaacutecio
conceitual criado pelo intelecto que atua por forccedila da capacidade do intelecto de criar
ilusotildees eacute concebido aqui como uma proteccedilatildeo que manteacutem a autoconsciecircncia segura do
risco de confrontar o desconhecido sob o qual descansa A ideia dos terrores sobre os quais
o homem constitui sua existecircncia natildeo eacute nova na literatura nietzschiana e o autor apenas
retoma aqui uma ideia que jaacute houvera exposto em O Nascimento da Trageacutedia59 onde por
meio da reproduccedilatildeo de uma extensa passagem de O mundo como vontade e representaccedilatildeo
o autor pretende vincular sua interpretaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana do veacuteu de Maia
(hellip) Seu olho deve ser lsquosolarrsquo em conformidade com a sua origemmesmo quando mira coleacuterico e mal-humorado paira sobre ele aconsagraccedilatildeo da bela aparecircncia E assim poderia valer em relaccedilatildeo a Apoloem um sentido excecircntrico aquilo que Schopenhauer observou a respeitodo homem colhido no veacuteu de Maia na primeira parte de O mundo comovontade e representaccedilatildeo ldquoTal como em meio ao mar furioso queilimitado em todos os quadrantes ergue e afunda vagalhotildees bramantesum barqueiro estaacute sentado em seu bote confiando na fraacutegil embarcaccedilatildeoda mesma maneira em meio a um mundo de tormentos o homemindividual permanece calmamente sentado apoiado e confiante noprincipium individuationis [princiacutepio de individuaccedilatildeo]rdquo Sim poder-se-iadizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressatildeo a inabalaacutevelconfianccedila nesse principium e o tranquilo ficar aiacute sentado de quem neleestaacute preso e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplecircndidaimagem divina do principium individuationis a partir de cujos gestos eolhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ldquoaparecircnciardquojuntamente com a sua belezardquo (GTNT I sect1)
59 A citaccedilatildeo eacute da traduccedilatildeo de J Guinsburg para a editora Companhia das Letras conforme bibliografia
108
Na passagem em questatildeo Nietzsche relata os poderes de Apolo na medida em que
este eacute tomado como o impulso artiacutestico por traacutes da criaccedilatildeo da realidade oniacuterica como uma
representaccedilatildeo mitoloacutegica do principium individuationis Segundo a interpretaccedilatildeo
schopenhaueriana que Nietzsche acompanha em sua referecircncia a situaccedilatildeo do homem
mediante a confianccedila depositada no princiacutepium individuationis eacute comparaacutevel a de um
homem que em meio a um mar bravio se prende a seu bote com a seguranccedila de que nele
repousa sua uacutenica esperanccedila de sobrevivecircncia
No Ensaio sobre Verdade e Mentira por sua vez o intelecto eacute representado como
uma fonte de conforto e orgulho para o homem Isto porque o homem participa na
exaltaccedilatildeo do intelecto que eacute apresentada para ele por meio da autojustificaccedilatildeo do intelecto
Nesse sentido o orgulho advindo da compreensatildeo do intelecto sobre si mesmo torna-se
uma taacutebua de salvaccedilatildeo que protege o homem da compreensatildeo da perenidade de todo
conhecimento Isto seria alcanccedilado por meio da caracteriacutestica capacidade de iludir do
intelecto que faz o homem repousar em sua teia conceitual que foi criada como sua esfera
de atuaccedilatildeo na realidade
Somente pelo esquecimento desse mundo metafoacuterico apenas peloenrijecimento e petrificaccedilatildeo de uma massa imageacutetica que qual umliacutequido fervente desaguava originalmente em torrentes a partir dacapacidade primitiva da fantasia humana tatildeo somente pela crenccedilaimbatiacutevel de que este sol esta janela esta mesa satildeo uma verdade em siem suma apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e comefeito enquanto sujeito artisticamente criador ele vive com certatranquilidade com alguma seguranccedila e consequecircncia se pudesse sairapenas por um instante das redomas aprisionadoras dessa crenccedila entatildeosua ldquoautoconsciecircnciardquo desapareceria de imediato (WLVM sectI paacuteg 42)
Em outros termos a elevada estima para com o conhecimento seria apenas o
produto de um desconhecimento fundamental acerca de suas origens O proacuteprio valor da
ciecircncia dependeria fundamentalmente desta ignoracircncia fundamental Por outro lado o
desvelamento das origens da ciecircncia que eacute alcanccedilada no ensaio a anaacutelise dos fundamentos
mesmos de onde ela surge faz perceber que natildeo eacute o conhecimento o grande diferencial do
homem em relaccedilatildeo aos demais animais mas sua criatividade artiacutestica Natildeo apenas a
109
ciecircncia seria produto desta criatividade artiacutestica fundamental mas o proacuteprio valor que
atribuiacutemos a ciecircncia como produto do intelecto seria decorrecircncia desta criatividade
Nesse movimento portanto ao mesmo tempo que Nietzsche expotildee a ciecircncia como
natildeo sendo digna de sua reputaccedilatildeo faz da criatividade humana o seu grande potencial Esta
forma de conceber a ciecircncia em relaccedilatildeo agrave arte guarda certa similaridade com a forma como
o autor pensa essa relaccedilatildeo em O Nascimento da Trageacutedia O que nos chama atenccedilatildeo aqui
no entanto eacute que se naquela obra o autor tomava partido pela arte se era o artista
Nietzsche que falava ali aqui o autor realiza a criacutetica da ciecircncia utilizando-se de uma
anaacutelise que privilegia o uso de concepccedilotildees cientiacuteficas Isto significaria que jaacute naquele
periacuteodo de sua produccedilatildeo o filoacutesofo fazia um uso da ciecircncia como produto da criatividade
artiacutestica humana
A consciecircncia do valor da ciecircncia como produto artiacutestico no entanto eacute algo que soacute
se torna possiacutevel a partir da criacutetica do intelecto como produtor de ilusotildees Assim podemos
perceber que a autoconsciecircncia enquanto a imagem do homem criada a partir do potencial
criativo do intelecto em sua autojustificaccedilatildeo tem importacircncia significativa na consideraccedilatildeo
do valor da ciecircncia Sendo assim os alicerces de nosso edifiacutecio conceitual repousariam natildeo
sobre uma fundaccedilatildeo segura na verdade mas sobre uma representaccedilatildeo do intelecto como
elemento revelador da verdade Mediante a desintegraccedilatildeo da autoconsciecircncia um exerciacutecio
que ateacute certo ponto eacute levado a cabo nesta passagem do ensaio outras perspectivas
despontariam para o homem como igualmente vaacutelidas
Exigi-lhe esforccedilo inclusive admitir para si mesmo o fato de que o insetoou o paacutessaro percebem um mundo totalmente diferente daquele percebidopelo homem sendo que a pergunta por qual das duas percepccedilotildees demundo eacute a mais correta natildeo possui qualquer sentido haja visto que pararespondecirc-la a questatildeo teria de ser previamente medida com criteacuterioatinente agrave percepccedilatildeo correta isto eacute de acordo com um criteacuterio que natildeoestaacute agrave disposiccedilatildeo A mim me parece em todo caso que a percepccedilatildeocorreta ndash que significaria a expressatildeo adequada de um objeto no sujeito ndasheacute uma contraditoacuteria absurdidade pois entre duas esferas absolutamentediferentes tais como entre sujeito e objeto natildeo vigora nenhumacausalidade nenhuma exatidatildeo nenhuma expressatildeo mas acima de tudouma relaccedilatildeo esteacutetica digo uma transposiccedilatildeo sugestiva uma traduccedilatildeobalbuciante para uma liacutengua totalmente estranha Algo que requer dequalquer modo uma esfera intermediaacuteria manifestamente poeacutetica einventiva bem como uma forccedila mediadora (WLVM sectI paacuteg 42)
110
O que se percebe nessa passagem eacute uma preacutevia reflexatildeo acerca do caraacuteter limitado
de nossa compreensatildeo da realidade assim como uma criacutetica do valor de nossas estimaccedilotildees
da realidade com base em uma concepccedilatildeo da consciecircncia que eacute desde sempre apenas um
produto da autojustificaccedilatildeo do intelecto Destituiacuteda de validade a ciecircncia passa a ser
compreendida como algo que deve seu valor apenas a uma concepccedilatildeo dogmaacutetica acerca do
entendimento humano Desta interpretaccedilatildeo criacutetica surge a possibilidade de que existam
outras perspectivas outras concepccedilotildees de mundo fora da concepccedilatildeo humana Por outro
lado toda tentativa de julgamento destas outras perspectivas eacute confrontada com a
suposiccedilatildeo de que esta criacutetica ela mesma seria realizada a partir do intelecto Logo natildeo
poderia ter validade fora da esfera de justificaccedilatildeo do intelecto
A denuacutencia do caraacuteter antropomoacuterfico das criaccedilotildees teoacutericas humanas abriria assim
tereno para a postulaccedilatildeo nietzschiana das demais perspectivas como possibilidades
Apenas considerando-se o que fora dito anteriormente levando-se em consideraccedilatildeo
inclusive a reflexatildeo acerca dos diferentes modos de sensibilidade animal investigaccedilatildeo
com a qual Nietzsche entra em contato a partir de sua leitura de A Histoacuteria do
Materialismo eacute possiacutevel pesar a complexidade dos argumentos que compotildeem esta
sentenccedila
Grosso modo o problema poderia ser colocado do seguinte modo admitindo-se
como certa a hipoacutetese de que o homem natildeo seja a medida de todas as coisas que de certo
modo eacute a alma deste ensaio como ficariam as outras perspectivas diante da perspectiva
humana Ou seja considerando-se a possibilidade de que outras espeacutecies possam ver o
mundo sob formas muito diferentes da nossa e essa possibilidade eacute amplamente
respaldada pelas investigaccedilotildees das ciecircncias naturais agravequela eacutepoca como julgar se a nossa
seria a mais correta O uacutenico modo para o autor seria a comparaccedilatildeo com a perspectiva
correta No entanto tal perspectiva natildeo estaacute ao alcance A proacutepria especulaccedilatildeo acerca de
uma tal perspectiva seria um absurdo60 Na medida em que examinamos estaacute reflexatildeo tecircm-
60 Nesta passagem Nietzsche adianta uma reflexatildeo fundamental para seu perspectivismo que eacute referida noaforismo 374 de A Gaia Ciecircncia intitulado ldquonosso novo infinitordquo Naquela conhecida passagem o autorafirmaraacute ldquoNatildeo podemos enxergar aleacutem de nossa esquina eacute uma curiosidade desesperada querer saber queoutros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haverrdquo (FWGC V sect374) com isso retomando a reflexatildeode juventude acerca das formas como os insetos ou os paacutessaros enxergam a realidade Das conclusotildees que oautor retira dessa impossibilidade falaremos no uacuteltimo capiacutetulo
111
se como certo que o autor natildeo admite a possibilidade de que se possa comparar
perspectivas porque natildeo estamos de posse de uma pedra de toque definitiva o criteacuterio
atinente com que se poderia determinar qual seria a perspectiva correta
Embora sua consideraccedilatildeo do papel do intelecto na apropriaccedilatildeo do mundo pela
humanidade soacute se torne possiacutevel em uma filosofia que conhece a criacutetica efetuada por Kant
Nietzsche se opotildee a essa filosofia ao contrastar a confianccedila do filoacutesofo de Koumlnigsberg na
capacidade da razatildeo em julgar a si mesma com a suspeita de que como instrumento
plasmador de ilusotildees o intelecto eacute pouco confiaacutevel para estabelecer a verdade de qualquer
coisa especialmente sobre si mesmo
Para que a consciecircncia viesse a efetuar sua proacutepria criacutetica seria necessaacuterio que esta
se desloca-se para aleacutem de sua proacutepria perspectiva para julgar as demais perspectivas
como se aqui se trata-se de uma perspectiva absoluta Ou ainda que este se coloca-se em
uma relaccedilatildeo de proximidade com o conhecimento verdadeiro em sentido metafiacutesico que
este se colocasse em uma relaccedilatildeo ideal com a coisa em si o que lhe seria impossiacutevel posto
que a proacutepria concepccedilatildeo de coisas em si repudia a possibilidade de atuaccedilatildeo do intelecto
Assim a hipoacutetese de que o intelecto pudesse efetuar sua proacutepria criacutetica que de certo modo
se encontra subjacente agrave consideraccedilatildeo criacutetica kantiana ainda reconhece na razatildeo humana
um sentido para a verdade que lhe eacute totalmente estranho
Como o autor defende desde que o homem da verdade estaacute imbuiacutedo em sua
perspectiva da verdade natildeo lhe eacute faacutecil contemplar a sugestatildeo de que outras perspectivas
sejam sempre possiacuteveis Pois o investigador que toma a seacuterio a possibilidade da verdade
natildeo pode imaginar que esta seja subjetiva61 Mas se tal fosse possiacutevel o autor aponta a
saiacuteda seria necessaacuterio entender-se com a objetivaccedilatildeo mais adequada da realidade
Para o autor do ensaio poreacutem esta sugestatildeo seria um absurdo na medida em que tal
criteacuterio natildeo nos estaria disponiacutevel Pois seria necessaacuterio ter um acesso privilegiado ao
mundo das verdades para daiacute entatildeo postular qual perspectiva se lhe aproxima mais Mas
61 Esta passagem reflete ideias que seriam retomadas por Nietzsche em seu pensamento maduronotadamente na seguinte passagem de seu espoacutelio ldquoO intelecto natildeo pode ele mesmo criticar-se justamenteporque natildeo pode ser comparado com intelectos diferentemente constituiacutedos e porque sua capacidade deconhecer viria agrave luz somente em face da lsquoverdadeira realidadersquo [wahren Wirklichkeit] isto eacute porque paracriticar o intelecto precisariacuteamos ser um ser mais elevado com lsquoconhecimento absolutorsquo Isto jaacute pressupotildeeque haveria algo um lsquoem sirsquo para aleacutem de todas as espeacutecies de perspectivas de consideraccedilatildeo e deapropriaccedilatildeo sensiacutevel-espiritual ndash mas a deduccedilatildeo psicoloacutegica da crenccedila em coisas nos proiacutebe falar de lsquocoisasem sirsquordquo (WMVP Livro III sect473)
112
da relaccedilatildeo entre um objeto e um sujeito uma imensidatildeo de possibilidades criativas se
coloca natildeo sendo a objetividade uma decorrecircncia necessaacuteria Assim o autor toma toda
objetivaccedilatildeo como uma decorrecircncia esteacutetica sempre que eacute produto da atuaccedilatildeo de instacircncias
criativas sem as quais o objeto mesmo natildeo aparece ao sujeito
Nestas consideraccedilotildees satildeo adiantadas muitas concepccedilotildees que seratildeo retomadas por
Nietzsche em seu pensamento de maturidade Entre estas ideias talvez a mais significativa
seja a concepccedilatildeo do poder criativo do intelecto A sugestatildeo nietzschiana de que na
apariccedilatildeo dos fenocircmenos entram em jogo forccedilas criativas conduz agrave conclusatildeo de que a
interpretaccedilatildeo nunca eacute um produto espontacircneo no sentido de uma decorrecircncia natural uma
maacutegica apariccedilatildeo de um algo para um sujeito Toda aparecircncia eacute sempre um resultado uma
regulaccedilatildeo natural de uma forccedila criativa inerente ao intelecto
Mesmo aquilo que Nietzsche toma como base de sua teoria da linguagem a
tranposiccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso em uma imagem eacute tomado em sentido hipoteacutetico
Sendo assim tal relaccedilatildeo natildeo seria uma decorrecircncia necessaacuteria mas apenas um haacutebito
adquirido mediante a contiacutenua repeticcedilatildeo desta atividade Desta forma o autor do ensaio
procura evitar qualquer referecircncia a uma realidade que vaacute aleacutem dos limites do que pode ser
conhecido Mantendo-se nos limites do que eacute exposto no ensaio percebe-se que Nietzsche
ateacute mesmo evita usar termos como fenocircmeno e aparecircncia pois compreende que estes ainda
poderiam ser confundidos com a ideia de que algo no mundo empiacuterico esteja relacionado
com um reino original de onde brotasse nosso conhecimento das coisas
A palavra aparecircncia conteacutem muitas tentaccedilotildees daiacute eu evitaacute-la sempre quepossiacutevel pois natildeo eacute verdade que a essecircncia das coisas aparece no mundoempiacuterico Um pintor cujas matildeos lhe faltassem e quisesse ainda assimexpressar pelo canto a imagem por ele visionada sempre revelaraacute nessatroca de esferas muito mais sobre a essecircncia das coisas do que aquilo querevela o mundo empiacuterico A proacutepria relaccedilatildeo de um estiacutemulo nervoso coma imagem gerada natildeo eacute em si algo necessaacuterio mas quando justamente amesma imagem foi gerada milhotildees de vezes e foi herdada por muitasgeraccedilotildees de homens ateacute que por fim aparece junto agrave humanidade inteirasempre na sequecircncia da mesma ocasiatildeo entatildeo ela termina por adquirir aofim e ao cabo o mesmo significado para o homem como se fosse aimagem exclusivamente necessaacuteria e como se aquela relaccedilatildeo do estiacutemulonervoso original com a imagem gerada constituiacutesse uma firme relaccedilatildeocausal assim como um sonho que se repete eternamente seria semduacutevida sentido e julgado como efetividade Mas o enrijecimento e a
113
petrificaccedilatildeo de uma metaacutefora natildeo asseguram coisa alguma agrave suanecessidade e justificaccedilatildeo exclusiva (WLVM sectI paacuteg 42-43)
Em outros termos a regularidade que se observa na transposiccedilatildeo dos estiacutemulos
nervosos em imagens mentais pode ser vista como mais um efeito da atuaccedilatildeo do intelecto
Esta regularidade no entanto pouco significa para a veracidade dessas relaccedilotildees E assim
seria um erro loacutegico entender a regularidade dessas transposiccedilotildees como um argumento a
favor de sua certeza Pois um sonho que nos aparecesse com a mesma regularidade natildeo
seria mais real por isso
Como podemos ver as uacuteltimas conclusotildees da primeira parte do ensaio parecem
apontar para um forte ceticismo Segundo esta leitura natildeo haveriam certezas nas relaccedilotildees
da linguagem porque estas se constituem na transposiccedilatildeo de esferas do mundo dos
estiacutemulos ao mundo das imagens Por outro lado seria essa possibilidade de criar uma
realidade ao lado da realidade mais fundamental das intuiccedilotildees fundamentais segundo uma
certa regularidade natural que nos possibilita estabelecer as bases para nossa criaccedilatildeo da
linguagem Isto eacute certo na medida em que a hipoacutetese acerca da criaccedilatildeo da linguagem nos
fornece uma explicaccedilatildeo plausiacutevel que se fundamenta em um processo evolucionaacuterio e
seletivo que acabaria por criar um tesouro de metaacuteforas coerentes
Por outro lado o ensaio deixa claro que a relaccedilatildeo entre o sujeito e o objeto eacute uma
relaccedilatildeo esteacutetica e natildeo epistemoloacutegica Com isso o autor quer dizer que o processo segundo
o qual constituiacutemos nossa perspectiva eacute um processo criativo que se desenrola pela
atividade mesma de uma esfera intermediaacuteria poeacutetica e inventiva uma forccedila mediadora
para a qual neste momento o autor natildeo tinha um nome Por outro lado uma concepccedilatildeo
definitiva acerca da realidade como o homem aspira eacute uma ilusatildeo Pois tudo que merece o
nome de realidade seria apenas o produto da atuaccedilatildeo de nossa organizaccedilatildeo intelectual e
crer no contraacuterio conduziria ao idealismo mais arbitraacuterio
O que nos interessa mais diretamente ateacute aqui eacute o fato de que este mundo dos
conceitos criados a partir de um mundo de intuiccedilotildees originais passa a constituir-se por
conta de nossa crescente dependecircncia da ciecircncia como o mundo que merece valor Nesse
sentido necessariamente o mundo mais fundamental das intuiccedilotildees perde valor em relaccedilatildeo
ao mundo organizado segundo a hierarquia de valores inerente a uma consideraccedilatildeo
114
cientiacutefica da realidade Este eacute um estaacutegio fundamental no desenvolvimento do niilismo em
que o proacuteprio mundo dos conceitos a medida que a ciecircncia torna-se cada vez mais criacutetica
tambeacutem tem seu valor desvalorizado
Assim se considerarmos que no ensaio em questatildeo Nietzsche se detecircm ainda que
de maneira pouco sistemaacutetica com o problema da desvalorizaccedilatildeo do mundo dos conceitos
entatildeo podemos considerar a segunda parte do ensaio como a apresentaccedilatildeo de uma
possibilidade de superaccedilatildeo do problema da desvalorizaccedilatildeo dos produtos da atividade
criativa humana atraveacutes da comparaccedilatildeo de duas formas antagocircnicas de consideraccedilatildeo da
realidade a do homem da verdade e a do homem intuitivo Este passo eacute fundamental
porque representa a possibilidade cotejada na filosofia de maturidade nietzschiana de se
valorizar o conhecimento como criaccedilatildeo em detrimento do conhecimento que se
desconhece como criaccedilatildeo forjada na ilusatildeo
25 O valor edificante das metaacuteforas para o homem intuitivo
Em sua leitura criacutetica Nietzsche conclui que apesar de sua fundamental relaccedilatildeo
com a sobrevivecircncia o uso da linguagem implicaria em consequecircncias negativas em
relaccedilatildeo agrave vida Isto na medida em que passa a constituir um modo de vida que culmina na
desvalorizaccedilatildeo do mundo de intuiccedilotildees originais A simplificaccedilatildeo da realidade para fins de
comunicaccedilatildeo o que Nietzsche considera um processo fundamental na formaccedilatildeo da
linguagem conduz a uma dependecircncia crescente em uma realidade conceitual que se potildee
ao lado da realidade das impressotildees fundamentais Como este processo eacute progressivo
como o homem paulatinamente se esquece de sua realidade individual e passa a pensar
dentro de uma rede determinada de conceitos a realidade conceitual acabaria por substituir
em importacircncia e valor a realidade mais fundamental daquelas impressotildees fundamentais
Esta forma de compreensatildeo da relaccedilatildeo da ciecircncia com o reino mais fundamental
das impressotildees seria o reflexo de um problema constante na especulaccedilatildeo nietzschiana a
substituiccedilatildeo da vida pela vida racionalmente mediada Isto porque apesar de a reduccedilatildeo da
realidade a conceitos passo fundamental para a constituiccedilatildeo da linguagem expressar-se
115
por meio de um mecanismo psicoloacutegico de defesa destinado a sustentar um ser no mundo
por mais um pouco de tempo este mesmo processo eacute entendido como culminando em um
abandono das relaccedilotildees mais fundamentais com a realidade da qual a vida mesma se
apresentaria como impressotildees individuais
Em um certo sentido o uso de conceitos que tornam o homem um ser cada vez
mais linguiacutestico cada vez mais consciente tornam-no com isso cada vez mais dependente
das ilusotildees fundamentais inerentes ao uso da linguagem Esta eacute a natureza do risco da
progressiva conscientizaccedilatildeo do homem seu paulatino tornar-se mais linguiacutestico tal como
este risco seraacute apresentado em A Gaia Ciecircncia Dessa maneira a superestimaccedilatildeo da razatildeo
conduz a uma confianccedila na razatildeo que acaba por tornar a realidade conceitual um objeto de
crenccedila o que por sua vez conduz agrave destituiccedilatildeo de validade da realidade mais original das
impressotildees originais
Podemos antever na exposiccedilatildeo nietzschiana o modo como a expressatildeo
cientificamente mediada da realidade tomada aqui como produto da sugestiva apariccedilatildeo dos
conceitos que correspondem ao enrijecimento de metaacuteforas adequadas embora providencie
uma base segura para a investigaccedilatildeo cientiacutefica acaba constituindo-se como uma limitaccedilatildeo
para a atuaccedilatildeo humana Pois para Nietzsche a investigaccedilatildeo levada a cabo dentro dos
limites conceituais natildeo atinge senatildeo um tipo de verdade bastante limitado Os conceitos
pensados no ensaio como fossilizaccedilotildees de palavras tem uma origem descortinada por
Nietzsche no esquecimento do uso de determinadas noccedilotildees gerais Assim sua existecircncia
estaacute necessariamente restrita agrave histoacuteria de seu uso Palavras analogamente se tornam
valores fixos com os quais construiacutemos uma rede de estabilidade onde podemos viver e
estabelecer hierarquias de comando
Nessa leitura a comunicaccedilatildeo pode ser vista como tendo sua determinaccedilatildeo na
necessidade de medir algo contra outra coisa uma impressatildeo com uma representaccedilatildeo
sonora desta representaccedilatildeo Como uma sequecircncia de siacutembolos que devem corresponder a
outra sequecircncia de siacutembolos de modo a definir e medir e criar uma referecircncia
reciprocamente entre eles Assim se por um lado o homem pode pesquisar dentro de seu
ciacuterculo antropomoacuterfico com base em conceitos tanto no sentido de uma investigaccedilatildeo que
contemplasse as menores grandezas quanto as maiores sem nunca encontrar uma
contradiccedilatildeo por outro lado este tipo de pesquisa nunca o afastaria das condiccedilotildees de
116
possibilidade jaacute dadas pela forma como a linguagem eacute constituiacuteda Do mesmo modo esta
atividade investigativa nunca possibilitaria um conhecimento adequado da realidade
mesma que eacute justamente a pretensatildeo de todo conhecimento
Ainda assim o conhecimento que se torna atuante atraveacutes do progressivo uso dos
conceitos na medida em que corresponde a uma perspectiva tipicamente humana constitui
uma forma estabelecida de ciecircncia Mais do que isso eacute possiacutevel que nunca tenha havido
na histoacuteria da humanidade uma outra forma de ciecircncia Assim de um certo modo a
caracteriacutestica mesma do humano consistiria na capacidade do intelecto em constituir
imagens em conceitos expediente por meio do qual se tornaria possiacutevel a ciecircncia Nessa
leitura a capacidade de constituir em conceitos uma realidade comunicaacutevel mais do que
objeto de censura da parte de Nietzsche aparece no ensaio quase como motivo de
assombro
Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende dessa capacidadede volatilizar as metaacuteforas intuitivas num esquema de dissolver umaimagem num conceito portanto no acircmbito daqueles esquemas torna-sepossiacutevel algo que nunca poderia ser alcanccedilado sob a eacutegide das primeirasimpressotildees intuitivas erigir uma ordenaccedilatildeo piramidal segundo castas egradaccedilotildees criar um novo mundo de leis privileacutegios subordinaccedilotildeesdelimitaccedilotildees que agora faz frente ao outro mundo intuitivo das primeirasimpressotildees como o mais consolidado universal conhecido humano eem virtude disso como o mundo regulador e imperativo (WLVM sectIpaacuteg 38)
Eacute natural que diante das dificuldades enfrentadas pelo criador da linguagem nos
vejamos diante deste imponente edifiacutecio com assombro e admiraccedilatildeo Ainda assim aquilo
de que noacutes nos assombramos natildeo eacute em uacuteltima anaacutelise senatildeo de noacutes mesmos Assim com
certa admiraccedilatildeo o filoacutesofo descreve a capacidade humana de ldquovolatilizar metaacuteforas
intuitivasrdquo ou seja de desgastar impressotildees fundamentais tornando-as conceitos como a
base para a criaccedilatildeo de um mundo cuja realidade compete com a realidade do mundo das
intuiccedilotildees fundamentais
Para Nietzsche a hierarquia fundamental que caracterizaria o modo humano de
existir depende desta capacidade de conferir realidade a uma ordenaccedilatildeo de valores
fundamentais independentes do mundo de impressotildees originais para o qual esse mundo de
117
conceitos torna-se o esquema compreensivo Com isso o mundo fundamental das intuiccedilotildees
passa a fazer frente ao mundo inventado dos conceitos ldquocomo o mundo regulador e
imperativordquo por meio do qual o homem constitui sua ciecircncia Assim com a caracterizaccedilatildeo
da ciecircncia como o empreendimento que toma como realidade a realidade conceitual o
autor antecipa uma importante conclusatildeo do ensaio em questatildeo na apreciaccedilatildeo do problema
do valor dos conceitos cientiacuteficos em relaccedilatildeo agrave vida que aqui eacute representada na forma das
intuiccedilotildees fundamentais
Haacute uma diferenccedila fundamental entre a primeira parte do Ensaio sobre Verdade e
Mentira e a segunda A primeira parte do ensaio pode ser interpretada como a apresentaccedilatildeo
do posicionamento criacutetico do autor para com a concepccedilatildeo tradicional de verdade Dentro
deste posicionamento satildeo apresentadas as hipoacuteteses nietzschianas acerca das origens da
linguagem da verdade e do valor moral atribuiacutedo agrave verdade Nesse sentido a primeira
parte culmina em uma criacutetica ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade A segunda
parte do ensaio parte dessa consideraccedilatildeo criacutetica com relaccedilatildeo a uma vida norteada pelas
concepccedilotildees conceituais e a ela confronta um modo de vida mais original fundamentado
nas impressotildees originais Assim a primeira parte do ensaio a parte teoacuterica prepara o
terreno para um problema de cunho praacutetico o conflito intriacutenseco a dois modos de
existecircncia a do homem cientiacutefico e a do homem intuitivo
O homem cientiacutefico recebe uma caraterizaccedilatildeo negativa jaacute em consequecircncia das
criacuteticas nietzschianas ao modo cientiacutefico de consideraccedilatildeo da realidade Deste modo na
segunda parte do ensaio o autor continua a descrever esta concepccedilatildeo de realidade de
maneira pouco elogiosa Por outro lado a esta concepccedilatildeo da realidade eacute apresentada uma
concepccedilatildeo antagocircnica que eacute representada aqui como constituinte de um tipo de existecircncia
em a capacidade de criaccedilatildeo eacute valorizada em detrimento da necessidade de conceitos O que
eacute dito aqui do homem intuitivo natildeo se distingue daquilo que no periacuteodo intermediaacuterio da
filosofia nietzschiana Nietzsche diraacute dos espiacuteritos livres
O autor do ensaio inicia a segunda parte do texto por meio de uma apresentaccedilatildeo da
linguagem e dos conceitos como produtos de uma atividade de simplificaccedilatildeo da realidade
Nesta apresentaccedilatildeo o processo de criaccedilatildeo da linguagem eacute caracterizado como tendo suas
fases evolutivas marcadas pela criaccedilatildeo de metaacuteforas que culminaria na criaccedilatildeo dos
conceitos Por sua vez os conceitos se entrelaccedilariam se relacionariam de modo a criar
118
uma rede de compreensatildeo em que a realidade eacute traduzida em ciecircncia No entanto se os
conceitos satildeo como o autor pensa petrificaccedilotildees das intuiccedilotildees originais que se daria atraveacutes
de vaacuterias transposiccedilotildees arbitraacuterias entatildeo a ciecircncia seria uma construccedilatildeo produzida com
base nestas mesmas transposiccedilotildees arbitraacuterias
O processo de produccedilatildeo dos conceitos que tem por finalidade preparar os
elementos necessaacuterios para a constituiccedilatildeo da ciecircncia eacute marcado pela compressatildeo de
informaccedilatildeo Os conceitos seriam esta forma mais compacta de se preservar a realidade
embora uma realidade mais aacuterida do que o terreno original das primeiras impressotildees que
lhe datildeo origem Nesse sentido a ciecircncia enquanto rede compreensiva de conceitos
enquanto verdadeira piracircmide conceitual torna-se uma representaccedilatildeo aacuterida de todo o
mundo empiacuterico Este mundo empiacuterico no entanto que nessa altura nada mais eacute do que o
mundo sob uma perspectiva antropomoacuterfica A realidade da ciecircncia aparece como um
reflexo paacutelido da realidade mais original das impressotildees Por ser paacutelido poreacutem este
reflexo torna-se mais cocircmodo ao olhar miacuteope do cientista
Qual o caraacuteter deste empobrecimento da realidade narrado por Nietzsche Em quecirc
esta piracircmide de conceitos deixa a desejar em relaccedilatildeo agrave realidade mais fundamental das
metaacuteforas intuitivas Para Nietzsche um dos problemas com o tornar-se mais linguiacutestico
mais dependente do esquema conceitual caracteriacutestico das ciecircncias seria o fato de que a
proacutepria linguagem natildeo eacute vista como um meio seguro para expressar a diferenccedila Como
uma forma de fixaccedilatildeo do real os conceitos se relacionam intimamente com a similaridade
entre as impressotildees fundamentais que no fundo nunca satildeo de fato similares Assim por
exemplo dois homens que apontassem para um objeto e que usam a mesma designaccedilatildeo
para nomeaacute-lo poderiam entender-se perfeitamente Mas algo eacute sempre deixado de lado
nessa comunicaccedilatildeo e natildeo eacute possiacutevel dizer de fato o que cada um vecirc Porque haacute uma
diferenccedila fundamental em seus modos de perceber intuitivamente o mundo que natildeo eacute
capturado pelos conceitos
Na traduccedilatildeo da realidade das metaacuteforas intuitivas em conceitos para o autor do
ensaio se daacute uma falsificaccedilatildeo fundamental da realidade A traduccedilatildeo da natureza nas leis da
fiacutesica eacute um exemplo recorrentemente utilizado na obra nietzschiana para demarcar o tipo
de simplificaccedilatildeo que eacute operada pela ciecircncia As leis da fiacutesica representam a ciecircncia apenas
do ponto de vista do fiacutesico nunca do ponto de vista da natureza ela mesma De modo que
119
tudo que eacute expresso pela fiacutesica eacute verdadeiro apenas no interior da fiacutesica Do mesmo modo
se as leis da fiacutesica natildeo podem ser equivocadas isto apenas significa que desde que estas
leis satildeo uma imposiccedilatildeo segundo a norma convencionada de aplicaccedilatildeo de conceitos nada
dizem acerca da natureza mesmo pois expressam apenas um sistema de relaccedilotildees fechado
Por outro lado o que haacute de verdadeiramente significativo nas leis da natureza
seriam as relaccedilotildees de sucessatildeo e nuacutemero que satildeo expressotildees do tempo e espaccedilo portanto
aplicaccedilotildees de conceitos humanos Ou seja as leis da natureza satildeo criaccedilotildees nossas tal qual
a regularidade numeacuterica que eacute produzida ldquocom aquela necessidade com a qual a aranha
tece sua teiardquo (WLVM sectI paacuteg 45) Lembremos que em suas notas preparatoacuterias para
Zur Teleologie o filoacutesofo nos falava das leis da fiacutesica como uacutenico modo de compreensatildeo
da natureza para os homens62
Mas porque as leis da fiacutesica satildeo criaccedilotildees humanas capazes de oferecer uma
explicaccedilatildeo da natureza Porque satildeo criadas com esse propoacutesito No entanto as leis da
fiacutesica satildeo produtos de nossa atividade criativa condicionadas pela regularidade numeacuterica
que eacute inerente ao nosso intelecto e natildeo carateriacutesticas da proacutepria natureza Sendo assim
poderiacuteamos nos perguntar o que eacute expresso nestas determinaccedilotildees numeacutericas Para
Nietzsche a mesma regularidade que eacute o traccedilo do intelecto o traccedilo caracteriacutestico de nossa
atividade criativa sobre o mundo que seria o uacutenico conteuacutedo das leis da natureza Isto
seria de fato uma explicaccedilatildeo da natureza Mas uma explicaccedilatildeo dentro de um ponto de
vista63
Por fim tem-se que as leis da fiacutesica seriam a forma mais avanccedilada de falsificaccedilatildeo
da natureza por meio da qual se constitui nossa ciecircncia natural Nesse sentido se por um
lado esta domesticaccedilatildeo das imagens em conceitos coincide com uma maior falsificaccedilatildeo da
realidade por outro apenas por meio desta falsificaccedilatildeo seria possiacutevel constituir a ciecircncia
enquanto um edifiacutecio de riacutegidos conceitos e hierarquizaccedilatildeo Desta maneira repercutindo
uma ideia apresentada em suas notas preparatoacuterias para a dissertaccedilatildeo sobre teleologia
62 Em suas notas preparatoacuterias para Zur Teleologie Nietzsche reuacutene uma seacuterie de citaccedilotildees da obra deFischer tendo em vista estabelecer como ponto de partida de sua proacutepria concepccedilatildeo sobre os organismosque noacutes apenas podemos conhecer o que eacute mecacircnico (BAW 3 Paacuteg 377) Em outras palavras para o homemapenas o que se revela em relaccedilotildees de necessidade seria passiacutevel de conhecimento Embora como as notasparecem significar conhecimento a partir de um ponto de vista mecacircnico ao que o autor acrescenta ldquoEineBetrachtungsweise ist noch keine Erkenntnissrdquo ou seja ldquoUm ponto de vista ainda natildeo eacute conhecimentordquo(BAW 3 Paacuteg 377)63 Vide nota anterior
120
Nietzsche reduz toda regularidade da natureza a regularidade dos conceitos que aparece
para o autor como o reflexo de nossa proacutepria constituiccedilatildeo
Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetoacuteria dos planetas eno processo quiacutemico coincide no fundo com aquelas propriedades quenoacutes mesmos introduzimos nas coisas de sorte que com issoimpressionamos a noacutes mesmos Disso se segue por certo que aquelaformaccedilatildeo artiacutestica de metaacuteforas que em noacutes daacute iniacutecio a toda sensaccedilatildeo jaacutepressupotildee tais formas e portanto realiza-se nelas somente a partir dafirme persistecircncia dessas formas primordiais torna-se possiacutevel esclarecercomo pocircde assim como outrora ser novamente erigido um edifiacutecio deconceitos feito com as proacuteprias metaacuteforas Tal edifiacutecio eacute pois umaimitaccedilatildeo das relaccedilotildees de tempo espaccedilo e nuacutemero sobre o solo dasmetaacuteforas (WLVM sectI paacuteg 45)
Toda a impressionante ordenaccedilatildeo da natureza seria assim um reflexo de nosso
ponto de vista determinado natildeo se podendo tributar agrave natureza qualquer regularidade
proacutepria Por outro lado o autor esforccedila-se em demonstrar que um conceito natildeo tem
realidade ldquoa-histoacutericardquo pois sua existecircncia estaacute necessariamente restrita a histoacuteria de seu
uso Por sua vez o proacuteprio mundo de conceitos e de hierarquia que eacute a ciecircncia seria um
mundo humano construiacutedo com base em leis de regularidade que a proacutepria regularidade de
nossa constituiccedilatildeo lhe impotildee Como Nietzsche afirma ldquoEm princiacutepio o pesquisador dessas
verdades procura apenas a metamorfose do mundo nos homens esforccedila-se por uma
compreensatildeo do mundo visto como uma coisa proacutepria ao homem e na melhor das
hipoacuteteses granjeia para si o sentimento de uma assimilaccedilatildeordquo (WLVM sectI paacuteg 40) De
tal modo a existecircncia humana passa a depender destas associaccedilotildees automaacuteticas que os
conceitos passam a valer na existecircncia humana como verdadeiras entidades Ainda assim
tatildeo distantes os conceitos estatildeo das metaacuteforas que lhe datildeo origem que facilmente
descremos dessa origem Com a mesma facilidade com que o homem perde de vista o fato
de que todo conceito e portanto toda ciecircncia tem como sua origem uma ilusatildeo
ocasionada por uma atividade criativa inerente agrave constituiccedilatildeo humana
Enquanto cada metaacutefora intuitiva eacute individual e desprovida de seucorrelato e por isso sabe sempre eludir a todo rubricar o grande edifiacuteciodos conceitos exibe a inflexiacutevel regularidade de um columbaacuterio romano e
121
exala na loacutegica aquela dureza e frieza que satildeo proacuteprias agrave matemaacuteticaAquele que eacute baforado por essa frieza mal acreditaraacute que mesmo oconceito ossificado e octogonal como um dado e tatildeo rolante como estepermanece tatildeo-somente o resiacuteduo de uma metaacutefora sendo que a ilusatildeo datransposiccedilatildeo artiacutestica de um estiacutemulo nervoso em imagens se natildeo eacute amatildee eacute ao menos a avoacute de todo conceito (WLVM sectI paacutegs 38-39)
Exatamente nisso os conceitos se diferenciam das metaacuteforas intuitivas Enquanto as
metaacuteforas intuitivas satildeo eventos singulares desprovidos de sentido aleacutem de sua apariccedilatildeo
os conceitos satildeo criaccedilotildees que devem servir de modelo para interpretaccedilatildeo da realidade em
formas fixas segundo uma riacutegida loacutegica Os elementos constitutivos de todas as ciecircncias
relacionam-se uns aos outros para formar estruturas que estatildeo ancoradas a outros
conceitos que conduzem a um fundamento riacutegido que se presume ser um ldquoinstantacircneordquo do
mundo em que realmente vivemos Um instantacircneo de forma loacutegica e epistemologicamente
exata por assim dizer Mas se levarmos a seacuterio esse pensamento como fica a realidade
Onde estaacute o mundo em que realmente vivemos Neste instantacircneo Seraacute que ele teria sido
simplesmente captado por completo em nossa representaccedilatildeo conceitual da realidade A
resposta do autor eacute claramente negativa para todas estas questotildees
O processo que culmina na produccedilatildeo da ciecircncia tem para Nietzsche uma loacutegica
determinada segundo a qual ldquo() a linguagem trabalha na construccedilatildeo dos conceitos desde
o princiacutepio e em periacuteodos posteriores a ciecircnciardquo (WLVM sectI paacuteg 46) Assim a
linguagem eacute considerada nessa leitura como um passo inicial no processo de produccedilatildeo da
ciecircncia que teraacute seu modo de operaccedilatildeo determinado por essa mesma loacutegica Eacute esta loacutegica
que determina que a busca de regularidade proacutepria da ciecircncia culmine em um
esquecimento da realidade para aleacutem da regularidade atribuiacuteda a ela Ou seja tendo em
vista uma cada vez melhor adaptaccedilatildeo da realidade agraves necessidades humanas notadamente
a necessidade de comunicaccedilatildeo a ciecircncia opera com conceitos cada vez menos relacionados
agrave realidade original das metaacuteforas intuitivas
Nesse processo a proacutepria similaridade da constituiccedilatildeo humana parece cooperar na
medida em que ocasiona que sempre vejamos o mundo de uma perspectiva muito
semelhante posto que condicionada pela mesma organizaccedilatildeo64 Apesar disso a tendecircncia
64 A ideia da conformidade da constituiccedilatildeo do aparato perceptivo humano como motivo da regularidade dasexperiecircncias compartilhadas pelos homens eacute reforccedilada no Fragmento poacutestumo 19 [157] do mesmo periacuteododa obra citada ldquoO imenso consenso dos homens acerca das coisas comprova a uniformidade de seu aparatoperceptivordquo Traduccedilatildeo do Prof Fernando Barros na paacutegina 67 da obra em estudo
122
humana agrave formulaccedilatildeo de conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural da qual a
proacutepria criaccedilatildeo de conceitos seria dependente
A caracterizaccedilatildeo da dependecircncia humana do esquema conceitual possibilita a
Nietzsche qualificar sua eacutepoca enquanto uma eacutepoca culturalmente dominada pela
primordialidade da ciecircncia como uma eacutepoca ameaccedilada pela crescente dependecircncia do
esquema conceitual fruto do intelecto Pois o autor identifica na incapacidade humana em
trabalhar apenas com as metaacuteforas poeacuteticas originais incapacidade que torna-se algo
inerente ao modo de vida que passa a caracterizar a humanidade uma crescente perda de
vitalidade na forma de uma crescente deterioraccedilatildeo da capacidade de ver segundo a
pluralidade de perspectivas possiacuteveis Assim para o autor do ensaio que confirmaraacute essa
suspeita em obras posteriores apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida
humana caracterizar-se por um processo de crescente adoecimento do homem a
consideraccedilatildeo da realidade segundo a realidade dos conceitos tende a uma expansatildeo
contiacutenua Pois a atividade dissimuladora do intelecto responsaacutevel pela conversatildeo de
metaacuteforas intuitivas em conceitos tende a uma atividade contiacutenua
Esta atividade criativa estruturalmente ligada ao intelecto chega a tornar-se nos
homens seu traccedilo caracteriacutestico Assim este traccedilo positivo do intelecto na medida em que
eacute manifestaccedilatildeo do potencial criativo inerente agrave atividade humana revela-se como potencial
artiacutestico incansaacutevel E ainda quando estabelecido o outro mundo dos conceitos cientiacuteficos
a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas permanece ativa e pronta para desempenhar seus
artifiacutecios em terrenos ainda inexplorados pelas ciecircncias
Tal impulso agrave formaccedilatildeo de metaacuteforas esse impulso fundamental dohomem ao qual natildeo se pode renunciar nem por um instante jaacute que comisso renunciar-se-ia ao proacuteprio homem natildeo eacute em verdade subjugado eminimamente domado pelo fato de um novo mundo firme e regular ter-lhe sido construiacutedo qual uma fortificaccedilatildeo a partir de seus produtosvolatilizados o mesmo eacute dizer os conceitos (WLVM sectI paacutegs 46-47)
Nesta leitura o autor identifica a atividade de criaccedilatildeo de metaacuteforas com uma forccedila
que natildeo se deteacutem mesmo diante do soacutelido palaacutecio de conceitos da ciecircncia Ou seja apesar
da preponderacircncia da ciecircncia em determinadas eacutepocas o poder dissimulador do intelecto
permanece ativo e a disposiccedilatildeo Apenas o pesquisador o homem da verdade que associa
123
seu modo de vida ao proacuteprio desenvolvimento do palaacutecio conceitual da ciecircncia
permaneceria alienado dessa atividade propriamente artiacutestica do intelecto Mesmo que
enquanto homem natildeo possa ignorar a atuaccedilatildeo dessa potencialidade criativa que
constantemente lhe forccedila a confrontar suas certezas com outras tantas formas de verdade
Nesse sentido o pesquisador da verdade seria o homem mais ameaccedilado pela constante
intromissatildeo de verdades estranhas em seu sistema de compreensatildeo do mundo
Se o homem de accedilatildeo une sua vida agrave razatildeo e a seus conceitos para natildeo serarrastado e natildeo se perder a si mesmo o pesquisador de sua parteconstroacutei sua cabana junto agrave torre da ciecircncia para que possa prestar-lheassistecircncia e encontrar ele proacuteprio amparo sob o baluarte agrave suadisposiccedilatildeo E com efeito ele necessita de amparo pois haacute forccedilasterriacuteveis que lhe irrompem constantemente e que opotildee agraves verdadescientiacuteficas ldquoverdadesrdquo de um tipo totalmente diferente com as maisdiversas espeacutecies de emblemas (WLVM sectI paacuteg 46)
O homem de accedilatildeo nesse sentido identifica-se de forma instrumental com o palaacutecio
de conceitos mas o homem da ciecircncia o pesquisador faz desse palaacutecio a razatildeo mesma de
sua existecircncia Assim por conta da dependecircncia crescente neste construto teoacuterico para o
homem da ciecircncia este lhe pareceraacute sempre mais e mais real Na medida em que o homem
da ciecircncia dedica sua vida agrave construccedilatildeo do palaacutecio de conceitos e que faz sua vida
depender desse palaacutecio conceitual embora no fundo estes mesmos conceitos sejam ainda o
resultado dos enganos mais criativos natildeo pode fugir das ldquoverdadesrdquo de tipo distinto aos
conceitos cientiacuteficos que como resultado da atuaccedilatildeo do intelecto sempre se lhe
apresentam
O que o autor relata aqui eacute a presenccedila fundamental da forccedila criadora de metaacuteforas
como princiacutepio que natildeo se encerra na produccedilatildeo das verdades cientiacuteficas mas que
permanece ativa para aleacutem da consolidaccedilatildeo desse empreendimento Assim apesar de a
razatildeo conduzir inevitavelmente a uma certa imobilizaccedilatildeo da accedilatildeo na medida em que o
homem se deixa conduzir unicamente por seu princiacutepio falsificador com isso natildeo
chegamos a um pessimismo em relaccedilatildeo agrave accedilatildeo humana mas agrave conclusatildeo de que apenas
podemos ser guiados por intuiccedilotildees que satildeo produtos de nossa capacidade poeacutetica e que
encontram seu valor nessa capacidade poeacutetica
124
Por meio da reflexatildeo acerca da relaccedilatildeo entre a atividade cientiacutefica e a atividade
criativa de metaacuteforas inerente agrave existecircncia humana Nietzsche ressalta o papel da forccedila
criativa que atua na construccedilatildeo das metaacuteforas a qual o autor considera uma forccedila poeacutetica
ineliminaacutevel nos homens A abordagem desse potencial criativo poderia ser lida como
complemento ao que Lange expressa sob a questatildeo do potencial criativo do ideal no
capiacutetulo de A Histoacuteria do Materialismo acerca do ponto de vista do ideal e deste modo
estaria relacionada agrave questatildeo mais fundamental acerca da inevitabilidade da tendecircncia
metafiacutesica no homem65
De modo geral o que Nietzsche nos apresenta ao confrontar o homem da verdade
com o homem intuitivo seria um reflexo da ideia langeana de que a forccedila poeacutetica no ser
humano seria um complemento necessaacuterio agrave atividade do homem teoacuterico66 Assim o autor
65 Em sua filosofia de maturidade Nietzsche considera que Kant assim como Schopenhauer teriam sidotragados para uma consideraccedilatildeo seacuteria das coisas em si por conta da necessidade moral que subjaz agraves suasfilosofias Essa necessidade moral teria sido de acordo com a interpretaccedilatildeo criacutetica de Nietzsche o peso quearrastou a filosofia desses autores para o abismo da inevitabilidade metafiacutesica Nesse sentido a segundagrande influecircncia na interpretaccedilatildeo nietzschiana da filosofia kantiana Fr A Lange acompanha Kant naproibiccedilatildeo do conhecimento do que se coloca para aleacutem da experiecircncia possiacutevel embora atribua um papelimportante para as realidades ideais como fontes de estiacutemulo na pesquisa cientiacutefica e inspiraccedilatildeo nas esferaspoeacutetica e moral Assim ele nos diz ldquoUma coisa eacute certa que o homem tem necessidade de completar arealidade com um mundo ideal que o mesmo cria e que para tais criaccedilotildees concorrem as mais altas e nobresfunccedilotildees de sua inteligecircnciardquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 586) Assim estes produtos das mais altas e nobresfunccedilotildees da inteligecircncia humana natildeo deveriam ser desperdiccedilados mas ter seu uso restrito ao acircmbito praacuteticoMotivo pelo quecirc as uacuteltimas seccedilotildees de sua obra satildeo dedicadas agrave descriccedilatildeo do uso adequado dessa propensatildeonatural especialmente no que diz respeito agrave religiosidade que tem um papel fundamental enquanto fonte devalores morais na proposta langeana ldquo(hellip) e chegamos a crer que esta tese da associaccedilatildeo da religiatildeo com aarte e a metafiacutesica seraacute adotada de modo geral em um tempo natildeo muito distante e ainda nos parece que estasrelaccedilotildees satildeo reconhecidas ou ao menos pressentidas pelos mais entusiastas em uma medida muito maisampla do que se admite ordinariamenterdquo (Tomo II 4 II Paacuteg 521) Por outro lado como se sabe o combateagrave religiosidade exatamente por conta dos valores morais associados a essa praacutetica humana eacute objeto degrande destaque na filosofia nietzschiana na qual a destruiccedilatildeo da metafiacutesica aparece como objeto central Noentanto eacute possiacutevel observar que o que Nietzsche afirma acerca do potencial das metaacuteforas intuitivas serelaciona intimamente como o que Lange diz acerca da atuaccedilatildeo do potencial poeacutetico humano ldquoA visatildeo deconjunto que converte os fatos em ciecircncias e a ciecircncia em sistema eacute um fruto da livre siacutentese e proveacutemportanto da mesma origem que a criaccedilatildeo do ideal mas enquanto este dispotildee em completa liberdade damateacuteria a siacutentese apenas tem o domiacutenio do movimento a liberdade de sua origem que emana do espiacuteritopoeacutetico do homem e estaacute por outro lado encarregado da tarefa de estabelecer a maior harmocircnia possiacutevelentre os fatores necessaacuterios do conhecimento subtraiacutedos a nosso caprichordquo (Tomo II 4 IV Paacuteg 578)66 De modo geral os elementos que Nietzsche absorve de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo deAlbert Lange satildeo resumidos pelo filoacutesofo em uma carta escrita a Carl von Gersdoff seu amigo ecorrespondente de longa data A carta em questatildeo que foi datada de fins de agosto de 1866 reflete asimpressotildees que Nietzsche conservava de sua leitura da obra de Lange ldquoFinalmente devemos mencionartambeacutem Schopenhauer pelo qual eu ainda tenho a maior simpatia O que pode ser encontrado nele foirecentemente esclarecido para mim por uma fonte diferente o excelente e muito instrutivo entre os seusHistoacuteria do Materialismo e criacutetica de sua importacircncia para o presente Fr A Lange 1866 Aqui encontramosum kantiano e um investigador da natureza altamente esclarecido Os seus resultados podem ser resumidosnas trecircs seguintes sentenccedilas 1-O mundo sensiacutevel eacute o produto da nossa organizaccedilatildeo 2-Nossos oacutergatildeos visiacuteveis(fiacutesicos) satildeo como todas as outras partes do mundo fenomecircnico somente imagens de um objeto
125
do ensaio nos apresenta uma concepccedilatildeo dessa forccedila criativa essencial segundo a qual em
alguns momentos da histoacuteria em que o intelecto conseguiria libertar-se da indigecircncia do
modo conceitual de viver ele atuaria na livre construccedilatildeo de produtos diretos das intuiccedilotildees
fundamentais As aacutereas afeitas a essa atividade nos diz Nietzsche seriam as aacutereas da
criaccedilatildeo dos mitos e das artes o que reflete a ideia Langeana de que natildeo apenas a filosofia
mas tambeacutem a arte e a religiatildeo tecircm livre acesso ao terreno dos conceitos67 Ao defender
essa concepccedilatildeo langeana fundamental Nietzsche descreve o modo como o intelecto natildeo
circunspecto aos limites da criaccedilatildeo dos conceitos busca uma fuga na criaccedilatildeo de ilusotildees
embelezadoras enriquecedoras da existecircncia humana tanto na arte quanto na criaccedilatildeo de
mitos
Ele busca um novo acircmbito para sua accedilatildeo e um outro regato sendo que oencontra no mito e em linhas gerais na arte Perpetuamente mistura asrubricas e as divisoacuterias dos conceitos ao introduzir novas transposiccedilotildeesmetaacuteforas metoniacutemias perpetuamente demonstra o aacutevido desejo deconfigurar o mundo agrave disposiccedilatildeo do homem desperto sob uma forma tatildeocoloridamente irregular inconsequentemente desarmocircnica instigante eeternamente nova como a do mundo do sonho (WLVM sectI paacuteg 47)
Assim na medida em que o intelecto se liberta da indigecircncia de sua atuaccedilatildeo
segundo a pressatildeo da necessidade de sobrevivecircncia sua atividade se volta para a criaccedilatildeo de
desconhecido 3-A nossa verdadeira organizaccedilatildeo permanece desconhecida para noacutes bem como as coisasexternas reais Noacutes apenas temos o produto de ambos perante noacutes (KSB 2 p 159-160) A referida citaccedilatildeoassim como as proacuteximas passagens mencionadas desta mesma carta satildeo uma traduccedilatildeo nossa de textopertencente agrave coleccedilatildeo de cartas de Nietzsche na ediccedilatildeo eletrocircnica de suas obras completas (eKGB) sob asigla BVN 1886 517 A mesma carta foi publicada no segundo volume da coletacircnea completa das obras deNietzsche organizada por Colli-Mortinari sob a sigla (KSB 2 p 159-160) Nesse trecho em que Nietzschefaz uma exposiccedilatildeo entusiaacutestica de sua leitura de A Histoacuteria do Materialismo podemos ver o quanto o jovemprofessor de filologia apreciou o livro de seu colega de Bonn e disciacutepulo de Ritschl Havia apenas um anoque o jovem filoacutelogo houvera descoberto O Mundo como Vontade e Representaccedilatildeo e acreditava ver a perfeitaqualificaccedilatildeo das ideias de Schopenhauer como herdeiro direto da filosofia kantiana no livro de Lange 67 O percurso investigativo que toma como ponto de partida a estrutura humana de apreensatildeo da realidadetem suas raiacutezes na antiguidade do pensamento No entanto a consideraccedilatildeo da estrutura racional responsaacutevelpela constituiccedilatildeo da realidade em objeto de apreensatildeo mental eacute um traccedilo caracteriacutestico da filosofia modernaque foi legado agrave filosofia posterior na forma do questionamento pelo sujeito do conhecimento Esta estruturapor traacutes da formaccedilatildeo da realidade que foi apresentada por Kant em A Criacutetica da Razatildeo Pura na forma dosujeito transcendental foi nomeada por Lange como nossa organizaccedilatildeo psicofiacutesica estrutura que surge emseu pensamento como um produto ressignificado daquela concepccedilatildeo kantiana Esta concepccedilatildeo que surge naespeculaccedilatildeo langeana acerca dos avanccedilos dos estudos dos oacutergatildeos dos sentidos e da fisiologia que apareceespecialmente no terceiro capiacutetulo do segundo volume de sua Histoacuteria do Materialismo seraacute o modelo dainvestigaccedilatildeo que seraacute assumida na filosofia nietzschiana na forma de uma concepccedilatildeo naturalista genealoacutegicae fenomenoloacutegica da consciecircncia
126
produtos esteacuteticos relacionados agrave criaccedilatildeo de mitos e obras artiacutesticas Eacute difiacutecil natildeo ver nessa
passagem os efeitos da leitura de Nietzsche da obra de Albert Lange o qual via os ideais da
razatildeo como produtos diretos da atividade poeacutetica do intelecto Assim a concepccedilatildeo do
potencial criativo humano e a importacircncia que esse potencial possui na filosofia desses
autores constituiria um traccedilo caracteriacutestico em ambas filosofias assim como um importante
passo na compreensatildeo da relaccedilatildeo desses autores com o idealismo Tal semelhanccedila entre as
reflexotildees desses autores pode ser pensada sem prejuiacutezo algum como uma continuidade de
objetivos entre ambos pensamentos apesar das necessaacuterias diferenccedilas de abordagem
Para Nietzsche em uma cultura em que a arte da dissimulaccedilatildeo natildeo foi sublimada
pela obsessatildeo pela verdade torna-se possiacutevel ao intelecto libertar-se da necessidade de
sobrevivecircncia e atuar segundo a sua inclinaccedilatildeo original ldquoO intelecto esse mestre da
dissimulaccedilatildeo acha-se pois livre e desobrigado de todo seu serviccedilo de escravo sempre que
pode enganar sem causar prejuiacutezo e festeja entatildeo suas Saturnais nunca ele eacute mais
opulento rico orgulhoso versaacutetil e arrojadordquo (WLVM sectI paacuteg 48) Para o intelecto que
liberta-se da necessidade de sobrevivecircncia ldquoEm comparaccedilatildeo com o que fazia antes agora
tudo o que faz traz em si a dissimulaccedilatildeo assim como sua conduta anterior trazia em si a
deformaccedilatildeo Copia a vida humana mas a toma por uma coisa boa e parece estar
plenamente satisfeito com elardquo (WLVM sectI paacuteg 49) Nesse sentido na medida em que o
intelecto liberta-se das amarras da necessidade e da necessidade de prover os elementos
garantidores da coexistecircncia gregaacuteria atua no sentido de uma criaccedilatildeo de sentido individual
da realidade independente da atuaccedilatildeo dos conceitos Com isso antecipa-se na reflexatildeo
nietzschiana uma resposta para o proacuteprio pessimismo inerente a uma consideraccedilatildeo da
realidade segundo os preceitos das ciecircncias
Ao contrapor a atuaccedilatildeo do intelecto segundo a pressatildeo da sobrevivecircncia que
implica na criaccedilatildeo dos conceitos e por fim na criaccedilatildeo da ciecircncia com a atividade do
intelecto em sua liberdade o autor relaciona duas atividades tatildeo distintas quanto a
falsificaccedilatildeo e a dissimulaccedilatildeo Nessa leitura a ciecircncia implicaria em uma falsificaccedilatildeo da
realidade na medida em que cria um mundo que se coloca lado a lado com o mundo mais
originaacuterio das intuiccedilotildees fundamentais que faz passar como mais verdadeiro do que o
mundo que daacute origem agrave realidade dos conceitos cientiacuteficos em uma clara atitude de
falsificaccedilatildeo Por outro lado a atividade dissimuladora do intelecto se caracteriza por um
127
embelezamento da realidade intuitiva originaacuteria o qual natildeo se explica mas se expressa de
acordo com belas imagens de sonhos
Em uma profunda reflexatildeo acerca do potencial criativo do intelecto que se liberta
de suas funccedilotildees habituais Nietzsche defende a opiniatildeo que estas funccedilotildees habituais natildeo satildeo
sua funccedilatildeo primordial posto que estas parecem se opor ao ilimitado potencial criativo do
intelecto Na compreensatildeo do filoacutesofo muito mais afeito a este potencial criativo ilimitado
do intelecto seria o papel fundamental na criaccedilatildeo de sentido a que este se entrega quando
liberto da necessidade de dissimular Ou seja mais do que propiciar a manutenccedilatildeo do
homem por meio de uma crescente falsificaccedilatildeo da realidade segundo as necessidades da
ciecircncia o intelecto teria surgido pela necessidade do homem de sentido
Em comparaccedilatildeo agrave necessidade humana de sentido o proacuteprio palaacutecio da ciecircncia
visto de um ponto de vista teoacuterico como a maior realizaccedilatildeo da humanidade seria apenas
uma ocupaccedilatildeo secundaacuteria do intelecto Assim a este palaacutecio conceitual corresponderia a
negaccedilatildeo da realidade poeacutetica inerente agrave existecircncia humana Mais do que constituir-se no
proacuteprio sentido para o homem o palaacutecio da ciecircncia seria visto como uma prisatildeo
momentacircnea para o intelecto como uma muleta para o homem como uma falsificaccedilatildeo
necessaacuteria agrave sobrevivecircncia e nada mais
Aquele enorme entablamento e andaime de conceitos sobre o qual ohomem necessitado se pendura e se salva ao longo da vida eacute para ointelecto tornado livre apenas um cadafalso e um brinquedo para seusmais audaciosos artifiacutecios (hellip) ele entatildeo revela que natildeo necessitadaqueles expedientes da indigecircncia e que agora natildeo eacute conduzido porconceitos mas por intuiccedilotildees (WLVM sectI paacuteg 49)
Reaparece aqui a ideia comum ao Nascimento da Trageacutedia de que a arte e natildeo a
ciecircncia seria a verdadeira atividade inerente ao potencial criativo humano Ou seja ao
afirmar que na criaccedilatildeo de mitos e produccedilotildees artiacutesticas o intelecto natildeo eacute conduzido por
conceitos mas por intuiccedilotildees e que nisso consistiria sua libertaccedilatildeo Nietzsche reafirma uma
valorizaccedilatildeo da arte comum agravequele periacuteodo de sua produccedilatildeo filosoacutefica Embora natildeo nomeie
os partidos eacute impossiacutevel natildeo relacionar os lados em disputa com os representantes de duas
formas de vida jaacute apresentados em sua obra de estreia o racionalista socraacutetico e o homem
128
traacutegico68 Assim em passagens que parecem retomar o tema fundamental de O Nascimento
da Trageacutedia a contraposiccedilatildeo entre o homem intuitivo grego e o cientista desenganado pela
ciecircncia Nietzsche passa a descrever nas passagens subsequentes do ensaio de que modo a
criaccedilatildeo contiacutenua de ilusotildees favoreceu o homem grego antigo
Analisado a luz das reflexotildees posteriores do filoacutesofo O Nascimento da
Trageacutedia passa a ser interpretado como um experimento em que as oacuteticas da arte e da
ciecircncia satildeo confrontadas com a vida como instacircncia de valoraccedilatildeo suprema Na medida em
que por meio de uma espeacutecie de confronto entre as oacuteticas da arte e da ciecircncia o autor
consegue oferecer um questionamento do valor da ciecircncia antecipa a conclusatildeo de que a
crenccedila no valor inquestionaacutevel da ciecircncia estaria fundamentado em uma compreensatildeo
eminentemente moral da realidade Assim o problema do valor da ciecircncia estaria fundado
em uma interpretaccedilatildeo moral que camufla a necessidade do questionamento verdadeiro o
problema da ciecircncia como valor
A ciecircncia apenas consegue se impor como valor segundo Nietzsche porque nesta
avaliaccedilatildeo parte-se de um princiacutepio moral Do ponto de vista de um princiacutepio vital no
entanto a ciecircncia se mostraria como algo inferior agrave arte Desta maneira antecipando um
tema que seraacute tratado em profundidade em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzsche
teria compreendido jaacute em O Nascimento da Trageacutedia que a valorizaccedilatildeo da verdade em
detrimento da mentira atende a uma determinaccedilatildeo de ordem moral
Ora se a verdade eacute concebida no Ensaio sobre Verdade e Mentira como uma opccedilatildeo
metafiacutesica que tornou-se objeto de estima isto apenas teria se dado porque a tradiccedilatildeo
metafiacutesica parte de uma avaliaccedilatildeo moral decadente a mesma moral que em sua revisatildeo de
O Nascimento da Trageacutedia eacute associada pelo autor a uma consideraccedilatildeo cristatilde da realidade
A vontade de verdade ou seja o sincero desejo de verdade natildeo se determinaria por uma
melhor apreciaccedilatildeo teoacuterica Menos ainda por uma recusa teoacuterica da ilusatildeo Pelo contraacuterio a
vontade de verdade seria consequecircncia de um apego moral agrave verdade e uma recusa moral
agraves consequecircncias imorais que podem provir da mentira Assim uma dimensatildeo moral que
sustenta a valorizaccedilatildeo da ficccedilatildeo da ciecircncia em detrimento da ficccedilatildeo da arte justamente o
68 Em uma visatildeo retrospectiva de sua obra de estreia tanto em Ecce Homo no primeiro paraacutegrafo da seccedilatildeosobre O Nascimento da Trageacutedia quanto no prefaacutecio tardio para aquela obra escrito em 1886 e publicadojunto agrave traduccedilatildeo em estudo sob o nome de ldquoTentativa de autocriacuteticardquo paraacutegrafo segundo Nietzsche se refereaos grandes temas daquele livro como sendo o confronto entre uma visatildeo de mundo racionalista otimista euma visatildeo de mundo traacutegica dionisiacuteaca que considera o pessimismo da vida como um tocircnico para a vida
129
que vem agrave tona quando a primeira eacute examinada pelo meacutetodo perspectivista do jogo de
oacuteticas69 ensaiado em O Nascimento da Trageacutedia seria a grande redescoberta de Nietzsche
quando reflete retrospectivamente acerca daquela obra
Com base nesta releitura criacutetica da concepccedilatildeo de ciecircncia sustentada em O
Nascimento da Trageacutedia o otimismo teoacuterico passa a ser interpretado como a tentativa de
por meio de uma intenccedilatildeo moral elevar a valoraccedilatildeo inerente a ilusotildees como verdade e
ciecircncia O problema seria que estas mesmas verdade e ciecircncia por si mesmas teriam
pouco valor quando avaliada em relaccedilatildeo a sua adequaccedilatildeo agrave realidade No entanto por meio
de uma associaccedilatildeo com a moral o domiacutenio teoacuterico se sobrepotildee agrave proacutepria natureza como
posiccedilatildeo de maior valor
A segunda parte do Ensaio sobre Verdade e Mentira parece sustentar-se nesta
mesma posiccedilatildeo em que as ilusotildees da ciecircncia satildeo tomadas como tendo sido erigidas como
novos valores em detrimento das ilusotildees da arte Permanece no ensaio a suspeita de que
apenas com base em uma interpretaccedilatildeo moral a ciecircncia poderia ser pensada como superior
agrave arte Consideradas do ponto de vista de seu valor para a vida no entanto com base em
uma esfera de avaliaccedilatildeo diferente da esfera de avaliaccedilatildeo da moral decadente Nietzsche
pensa que os produtos da arte deveriam ser tomados como objetos de maior valor porque
reconhecem-se como produtos de uma atividade criativa mais proacutexima da realidade
individual
Com isso o autor confronta duas formas de vida diametralmente opostas do ponto
de vista da vida e da sobrevivecircncia De um lado o homem da verdade o pesquisador de
outro o homem intuitivo o artista traacutegico Atraveacutes da apresentaccedilatildeo do confronto entre o
homem intuitivo e o homem da verdade o filoacutesofo parece refletir sobre o confronto de
duas eacutepocas diferentes a eacutepoca grega claacutessica e a dele proacuteprio Nesta comparaccedilatildeo a
realidade da Greacutecia do periacuteodo claacutessico aparece como o feliz produto de uma consideraccedilatildeo
artiacutestica da realidade de uma eacutepoca em que o homem se deixava guiar por belas imagens
de uma realidade vista sob a oacutetica da criaccedilatildeo artiacutestica e dos mitos
69 A ideia do jogo de oacuteticas eacute uma contribuiccedilatildeo de Dalla Vechia em sua tese de doutoramento (VECHIA2005 Paacuteg 84)
130
Haacute eacutepocas em que o homem racional e o homem intuitivo colocam-selado a lado um com medo da intuiccedilatildeo outro ridicularizando a abstraccedilatildeoo uacuteltimo eacute tatildeo irracional quanto o primeiro eacute inartiacutestico Ambos contamimperar sobre a vida este sabendo encarar as mais baacutesicas necessidadesmediante precauccedilatildeo sagacidade e regularidade aquele como ldquoheroacuteisobre-exaltadordquo passando ao largo de tais necessidades e tomando porreal somente a vida dissimulada em aparecircncia e beleza Onde o homemintuitivo tal como na antiga Greacutecia alguma vez manipula suas armasmais violentamente e mais vitoriosamente do que seu oponente entatildeosob circunstacircncias favoraacuteveis pode tomar forma uma cultura e fundar-seo domiacutenio da arte sobre a vida aquela dissimulaccedilatildeo aquele repuacutedio agraveindigecircncia aquele brilho das intuiccedilotildees metafoacutericas e em linhas geraisaquela imediatez do engano seguem todas as manifestaccedilotildees de tal vidaNem a casa nem a maneira de andar nem a vestimenta nem a jarra deargila evidenciam que foi a necessidade que os inventou tudo se passacomo se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime eum oliacutempico desanuviamento bem como uma espeacutecie de jogo com aseriedade (WLVM sectI paacutegs 50-51)
Em sua reflexatildeo acerca da Greacutecia claacutessica o autor nos apresenta a opccedilatildeo entre a
dependecircncia do mundo conceitual da verdade e a superabundacircncia de vida advinda da
atividade criativa do intelecto Deste modo esta parte do ensaio corresponde ao confronto
entre duas formas de saberes distintas o conhecimento intuitivo e o conhecimento
racional70 Na leitura nietzschiana do problema do conhecimento considerando-se
especialmente o papel das construccedilotildees poeacuteticas na filosofia e na ciecircncia a forccedila criativa
que origina as metaacuteforas aparece como um elemento ineliminaacutevel da constituiccedilatildeo humana
Esta forccedila criativa atuaria tanto no homem da verdade quanto no poeta e criador de mitos
Aqui nos deparamos com a aridez da ciecircncia diante do potencial criativo inerente ao
indiviacuteduo que toma como suporte as metaacuteforas intuitivas Esta imagem do confronto entre
modos de vida antagocircnicos divididos pela sua postura diante dos produtos do intelecto
fecha o ensaio
70 A distinccedilatildeo nietzschiana entre o conhecimento intuitivo e o conhecimento racional que encontramosfortemente representado no ensaio parte da distinccedilatildeo schopenhaueriana das duas formas de saberes nointerior do princiacutepium individuationis que satildeo apresentados por Crawford em sua obra sobre as origens dateoria nietzschiana da linguagem no capiacutetulo dois acerca de Schopenhauer ldquoO sujeito ou o principiumindividuationis tinha dois modos de conhecimento o conhecimento da percepccedilatildeo (ou conhecimentointuitivo) e o conhecimento abstrato da percepccedilatildeo ou seja conhecimento racional O que pode existir fora doprincipium individuationis a coisa em si natildeo pode nunca ser conhecida (embora posteriormente em minhadiscussatildeo descobriremos que Schopenhauer afirma identificar a essecircncia da coisa em si mesma sob o nomeda vontade) Dentro das representaccedilotildees o sujeito pode apenas conhecer suas percepccedilotildees e o que eleconceitualiza e pensa acerca destas percepccedilotildees como objetos Assim representaccedilotildees significam maisprecisamente ndash objeto para o sujeito Poreacutem o sujeito ele mesmo eacute tambeacutem necessariamente apenas objetopara sua proacutepria consciecircncia que conhecerdquo (CRAWFORD 1988 Paacuteg 24)
131
Enquanto o homem conduzido por conceitos e abstraccedilotildees apenas rechaccedilapor meio destes a infelicidade sem granjear para si mesmo umafelicidade a partir das abstraccedilotildees enquanto ele se esforccedila ao maacuteximo paralibertar-se da dor o homem intuitivo situado no interior de uma culturajaacute colhe de suas intuiccedilotildees aleacutem da defesa contra tudo que eacute mal umailuminaccedilatildeo contiacutenua e caudalosa juacutebilo redenccedilatildeo Por certo sofre commais intensidade quando sofre sim sofre ateacute com mais assiduidadeporque natildeo sabe aprender a partir da experiecircncia voltando a cair sempreno mesmo buraco em que jaacute havia caiacutedo Ele eacute assim tatildeo irracional nosofrimento quanto na felicidade grita alto e natildeo dispotildees de qualquerconsolo Quatildeo diferentemente ali se coloca sob o mesmo reveacutes o homemestoico versado na experiecircncia que se governa atraveacutes de conceitos Eleque de mais a mais soacute busca probidade verdade liberdade frente aosenganos e proteccedilatildeo contra as incursotildees ardilosas executa agora nainfelicidade a obra-prima da dissimulaccedilatildeo tal como aquele na felicidadenatildeo carrega um rosto humano trecircmulo e movente mas uma espeacutecie demaacutescara com digna simetria de traccedilos natildeo grita e tampouco muda suavoz uma vez sequer Se uma vultosa nuvem de chuva desaacutegua sobre eleenrola-se em seu manto e passo a passo caminha lentamente paradebaixo dela (WLVM sectI paacutegs 51-52)
Se levarmos a seacuterio a hipoacutetese de que Nietzsche se utiliza dessa imagem para
expressar uma reflexatildeo acerca de sua eacutepoca percebe-se que esta aparece como sendo
marcada pelo cientificismo e pessimismo inerentes agrave concepccedilatildeo cientiacutefica da realidade O
que ocorre agora quando confrontados o homem das intuiccedilotildees e homem da verdade o
homem racional O homem de ciecircncia aparece como uma forma mais dependente das
construccedilotildees conceituais do que o homem comum na medida em que os conceitos satildeo sua
proacutepria vida Para o homem da verdade a construccedilatildeo do edifiacutecio da ciecircncia eacute sua missatildeo
no mundo Missatildeo aacuterdua sem duacutevida na medida em que ele eacute constantemente assaltado
por ldquoverdadesrdquo muito dispares das verdades cientiacuteficas lhe satildeo inspiradas pela mesma
natureza a que deve toda sua construccedilatildeo teoacuterica
Ao contraacuterio do homem comum que utiliza-se dos conceitos de uma forma
pragmaacutetica como ferramentas para ancoraacute-lo na existecircncia coletiva o homem que se
compraz nas metaacuteforas intuitivas utiliza-se do intelecto com mais liberdade O intelecto
nesses casos atuaria como um artista que em curtos intervalos de liberdade goza seus
dotes artiacutesticos com mais prazer possibilitando a fruiccedilatildeo de se deixar enredar pelas ilusotildees
sempre que estas dissimulaccedilotildees da realidade podem ser desfrutadas sem prejuiacutezo agrave
sociabilidade Nestes casos nessa atividade livre do homem que se deixa levar por sua
natureza poeacutetica natildeo haacute restriccedilotildees para a forccedila criativa do intelecto O uso que faz das
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mesmas metaacuteforas e metoniacutemias que possibilitam a ciecircncia eacute mais rico porque natildeo eacute
regulado por nenhuma necessidade de sobrevivecircncia da qual liberta-se o intelecto nessa
atividade
Em oposiccedilatildeo agrave atividade segundo a qual o intelecto criava as ilusotildees necessaacuterias agrave
sociabilidade condicionado pela pressatildeo da sobrevivecircncia sob as quais o homem atuava no
sentido de deturpar a realidade ou seja deformaacute-la e moldaacute-la para seu benefiacutecio agora
ele a dissimula a embeleza de maneira conscientemente mentirosa A distinccedilatildeo entre
deturpaccedilatildeo e dissimulaccedilatildeo aqui eacute assinalada pelo fato de que a consciecircncia da falsidade dos
produtos do intelecto difere fundamentalmente de uma consideraccedilatildeo dos produtos do
intelecto que natildeo os compreende como ilusotildees No caso em que o homem intuitivo
reconhece suas criaccedilotildees como algo falso natildeo se trata de mentira como falsificaccedilatildeo mas
como adereccedilo como dissimulaccedilatildeo portanto Assim para o autor do ensaio a mentira da
arte e do mito se diferenciariam da mentira da ciecircncia pela consciecircncia da falsidade dos
produtos do intelecto em contraposiccedilatildeo agrave aridez da ciecircncia que toma suas construccedilotildees
como estando relacionadas agrave verdade
O homem da ciecircncia assim confronta uma posiccedilatildeo delicada Na medida em que
mesmo quando as verdades poeacuteticas e mitoloacutegicas confrontam seu conhecimento da
realidade conceitual natildeo poderia renunciar a esta natureza criativa Pois a renuacutencia desta
forccedila plasmadora de metaacuteforas invalidaria o proacuteprio palaacutecio de conceitos que tambeacutem
deve sua existecircncia a ela Assim ele eacute forccedilado a contemplar as verdades criadas como
formas de dissimulaccedilatildeo do real verdades cuja similaridade com as verdades cientiacuteficas
recusa-se a ver pois natildeo pode identificar o aspecto conscientemente enganoso nas
verdades cientiacuteficas Assim acometido por esta influecircncia de seu potencial criativo o
homem da verdade resistiria a tomar a ciecircncia tambeacutem como mito e criaccedilatildeo artiacutestica sem
no entanto conseguir diferenciaacute-las de maneira definitiva Mais fortemente entatildeo este se
apegaria ao mito da ciecircncia
133
3 Terceiro capiacutetulo Sobre conhecimento niilismo e valor
O niilismo aparece apenas de forma fugidia entre os fragmentos poacutestumos do
periacuteodo intermediaacuterio da filosofia nietzschiana71 O proacuteprio Nietzsche demonstrou ter
consciecircncia do quatildeo tarde esta concepccedilatildeo problemaacutetica se torna presente em seu
pensamento quando afirma em um fragmento poacutestumo pertencente ao seu uacuteltimo periacuteodo
de produccedilatildeo ldquoSomente tarde tem-se coragem para aquilo que realmente se sabe Entendi
somente haacute pouco que eu fui desde o fundo ateacute aqui niilistardquo (KSA XII 9[123]) Ainda no
mesmo fragmento o filoacutesofo aponta para uma interpretaccedilatildeo de sua compreensatildeo do
niilismo como um pensamento da perda de valor dos valores fundamentais motivo porque
identifica sua proacutepria reflexatildeo como indiacutecio de um pensamento que carecia de metas falta
que foi disfarccedilada pela incriacutevel energia com que teria se dedicado a atingir aquilo que
enxergava como metas
A precariedade de fontes textuais na obra publicada de certa forma constitui uma
limitaccedilatildeo da compreensatildeo de um conceito tatildeo importante cuja interpretaccedilatildeo permanece
sempre como um fragmento do que tal concepccedilatildeo poderia ter significado uma perspectiva
limitada diante das possibilidades a que seu criador poderia tecirc-lo elevado Tamanha a
escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada que acreditamos o que se encontra
entre estas natildeo permitiria uma caracterizaccedilatildeo adequada desta concepccedilatildeo nietzschiana
Ainda mais grande parte do significado do niilismo nietzschiano estaacute ligado agrave dificuldade
71 A primeira apariccedilatildeo registrada do termo ldquoNiilismordquo ocorre em uma correspondecircncia do filoacutesofo de 1881com Heinrich Koumlsenlitz na qual o filoacutesofo escreve ldquoIch bedarf aller Arten Gesundheit mdash es ist mir etwas zutief inrsquos Herz gegangen dieser bdquoherzbrecherische Nihilismusldquo Nun bleiben wir tapfer Treugesinnt F Nldquo Acredibilidade desta carta no entanto eacute questionaacutevel uma vez que teria sido alterada em 1888 Um ensaiopreacutevio de um aforismo que mais tarde seria trabalhado pelo autor aparece em 1882 no qual estaacute registradobdquoDie Freunde des Lebens Nihilismus als kleines Vorspiel Unmoumlglichkeit der Philosophie Wie derBuddhismus unproduktiv und gut macht so wird auch Europa unter seinem Einfluszlig muumlde Die Guten dasist die Ermuumldungldquo (NF FP 1882 2 [4]) Este registro eacute importante porque nele apesar de sua brevidade jaacutese percebem elementos que mais tarde o filoacutesofo relacionaraacute adequadamente com o niilismo Outro registrodo termo naquele ano eacute feito em bdquoAlle Art von wahnsinniger Entartung houmlherer Naturen (zB Nihilismus)kommt an ihn heran Zarathustra 2 mdash bdquodie Lehre der ewigen Wiederkehrldquo mdash zunaumlchst zerdruumlckend fuumlr dieEdleren scheinbar das Mittel sie auszurotten mdash denn die geringeren weniger empfindlichen Naturenbleiben uumlbrigldquo (NF FP 1884 27 [23]) A partir de 1885 o termo torna-se bastante frequente e jaacute seexpressa com alguma clareza em sua determinaccedilatildeo conceitual
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encontrada pelo filoacutesofo em abordar este tema Ou seja a proacutepria relutacircncia nietzschiana
em abordar tema tatildeo profundo eacute um sinal de que o autor natildeo encontrou em seu periacuteodo
produtivo meio de expressatildeo adequado para tatildeo grande concepccedilatildeo72
Ao julgar como vaacutelido para a discussatildeo do pensamento nietzschiano apenas o que o
filoacutesofo publicou ou seja o que seria representativo de seu pensamento concreto amputa-
se a dificuldade inerente agrave complexidade e variedade de significados de seus escritos
deixa-se de lado o fato de que o proacuteprio Nietzsche parece natildeo ter encontrado uma forma
adequada de tratar alguns dos temas que aborda Assim a proacutepria tentativa de abordar o
niilismo apenas com base nestas raras passagens constituiria uma deturpaccedilatildeo de seu
sentido
Apesar da vaga referecircncia ao niilismo na obra publicada natildeo permitir uma
caracterizaccedilatildeo adequada deste conceito esta referecircncia nos potildee em contato com uma
concepccedilatildeo que julgamos fundamental para a interpretaccedilatildeo de sua concepccedilatildeo de
conhecimento pelos motivos que seratildeo apresentados nesse capiacutetulo Entatildeo como
proceder Ora se a ausecircncia de referecircncias na obra publicada nesse como em outros temas
da filosofia nietzschiana apresenta-se como limite interpretativo entatildeo concepccedilotildees
fundamentais de seu periacuteodo maduro se perderiam posto que este periacuteodo eacute interrompido
sem aviso preacutevio pela doenccedila de Nietzsche Assim percebemos que tal ausecircncia de
referecircncias pode e deve ser remediada pelo uso dos escritos poacutestumos do filoacutesofo
72 Acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte de sua obra fundamental que natildeo pode vir a lume por contade seu colapso mental ao niilismo Temos notiacutecia dessa obra fundamental em Genealogia da Moral ldquoBastaBasta Deixemos essas curiosidades e complexidades do espiacuterito moderno nas quais haacute tanto para rir quantopara aborrecer-se pois nosso problema o problema da significaccedilatildeo do ideal asceacutetico pode dispensaacute-las ndashque tem ele a ver com o hoje e o ontem Tais coisas seratildeo por mim tratadas em outro contexto com maiorprofundidade e severidade (sob o tiacutetulo de lsquoHistoacuteria do Niilismo europeursquo numa obra que estou preparandoA vontade de poder Ensaio de transvaloraccedilatildeo de todos os valores)rdquo (GMGM III sect27) Como se vecircNietzsche anuncia a pretensatildeo de tratar do tema do niilismo em uma obra futura que foi abandonada emmeio a sua preparaccedilatildeo Apoacutes o abandono desse projeto monumental o filoacutesofo decidiu aproveitar suas notasna composiccedilatildeo de um projeto mais modesto um livro possivelmente intitulado Versuch einer Umwertungaller Werte (Tentativa de Transvaloraccedilatildeo de todos os Valores) tiacutetulo que encontra-se as vezes na posiccedilatildeoprincipal as vezes como subtiacutetulo em diversos rascunhos Esta obra seria composta de quatro livros cadaqual contendo quatro ensaios dos quais apenas O Anticristo veio a ser escrito acompanhado do prefaacutecio Noentanto em um dos primeiros esforccedilos de popularizar a obra nietzschiana Elisabeth Foster-Nietzsche a irmatildedo filoacutesofo solicitou a Peter Gast uma organizaccedilatildeo dos fragmentos dos projetos abandonados que forampublicados sob o tiacutetulo de Der Wille zur Macht Estes fragmentos passaram por vaacuterias ediccedilotildees sempre comprofundos questionamentos acerca da autenticidade das notas da ordem em que foram postos assim como deseu papel no interior da obra nietzschiana Estes questionamentos vem dividindo os comentadores da obranietzschiana desde a publicaccedilatildeo destes textos
135
Por outro lado interpretar o niilismo sem considerar o fato de que aqui estamos
diante de uma hipoacutetese natildeo desenvolvida em sua integridade nos faria perder de vista a
complexidade desta concepccedilatildeo Concepccedilatildeo para a qual como afirmamos o proacuteprio
Nietzsche natildeo julgou encontrar uma forma adequada ou definitiva de abordagem Assim
devemos partir do pressuposto de que dizer o que Nietzsche pretendia expressar quando se
referia ao niilismo significa muitas vezes apenas isso interpretar o que ele poderia querer
dizer mas natildeo disse Nesse sentido o que aqui se pretende como uma correta compreensatildeo
desse importante conceito ao qual acredita-se que Nietzsche dedicaria boa parte daquela
que considerou sua obra fundamental73 depende fortemente da interpretaccedilatildeo de seus
fragmentos poacutestumos
Acreditamos que este uso quando pautado por uma reflexatildeo criacutetica acerca da
limitaccedilatildeo de tais textos oferece uma leitura mais aproximada do pensamento nietzschiano
do que a mera exclusatildeo do tema por falta de referecircncias poderia oferecer Esta reflexatildeo
criacutetica por sua vez deve pautar-se pela consciecircncia de que apesar de nos propormos a
amenizar a escassez de referecircncias ao niilismo na obra publicada recorrendo aos
fragmentos poacutestumos estamos cientes de que aqui se trata de uma concepccedilatildeo inacabada
que eacute apresentada atraveacutes de textos que o autor natildeo julgou prontos para a publicaccedilatildeo
Mas por que nos debruccedilarmos sobre o niilismo quando o objeto de nosso estudo eacute
o perspectivismo nietzschiano Acreditamos que uma tentativa de interpretaccedilatildeo do niilismo
nietzschiano apesar de natildeo poder reclamar para si o status de interpretaccedilatildeo correta
sobretudo por conta da multiplicidade de sentidos possiacuteveis para o termo niilismo na obra
nietzschiana tem uma vantagem fundamental em nossa leitura A proacutepria incerteza acerca
desse tema se mostra como objeto de experimentaccedilatildeo por meio da qual seria possiacutevel ler
os escritos nietzschianos como a manifestaccedilatildeo de uma concepccedilatildeo afirmativa do niilismo
que por sua vez se relacionaria com uma concepccedilatildeo afirmativa do perspectivismo No
73 Obra que como foi mencionado na nota anterior natildeo pode vir a lume por conta de seu colapso doadoecimento de Nietzsche Poreacutem entre os poacutestumos de 1888 constam diversos planos para A vontade dePotecircncia tentativa de transvaloraccedilatildeo de todos os valores que preenchem diversas anotaccedilotildees de Nietzsche eque levam o niilismo seriamente em consideraccedilatildeo notadamente em (NFFP 1887 9[127]) e (NFFP 1885-1887 9[164]) Em (NFFP 1887 9[127]) Nietzsche faz constar a seguinte ordem de capiacutetulos em um esboccedilopara a obra em questatildeo O advento do niilismo que se dividiria em A loacutegica do niilismo A autosuperaccedilatildeo doniilismo e Superadores e Superados No segundo fragmento mencionado sob o tiacutetulo A vontade de poder esubtiacutetulo Tentativa de uma transvaloraccedilatildeo de todos os valores Nietzsche faz constar uma ordem de livrossendo o primeiro intitulado O niilismo como consequecircncia dos valores supremos existentes ateacute agora osegundo intitulado Criacutetica dos valores supremos existentes ateacute agora o terceiro A autosuperaccedilatildeo do niilismo eo quarto Os superadores e os superados
136
mais se reconhecemos no tratamento nietzschiano de temas como a verdade e o
conhecimento a permanecircncia de um questionamento acerca do valor destas concepccedilotildees
natural que nos questionemos acerca das consequecircncias teoacutericas da perda de valor destas
segundo a loacutegica proacutepria do niilismo descrita por Nietzsche
Na uacuteltima fase de seu pensamento Nietzsche entende os valores morais associados
a uma concepccedilatildeo moral de ciecircncia e conhecimento como valores de decadecircncia Segundo
esta compreensatildeo o filoacutesofo passa a interpretar os valores morais como formas negativas
em relaccedilatildeo agrave vida Este julgamento do valor negativo destas concepccedilotildees em relaccedilatildeo agrave vida
se daacute no contexto de uma interpretaccedilatildeo em que a vida mesma eacute percebida como uacuteltima
forma de se instituir valores
A reflexatildeo nietzschiana neste ponto se volta contra tudo o que a tradiccedilatildeo entenderia
como sendo o homem e sua missatildeo sua finalidade Aqui a racionalidade associada pelo
autor agraves condiccedilotildees de formaccedilatildeo e ascensatildeo dos valores da deacutecadence74 eacute posta em cheque
pela consideraccedilatildeo do homem como ser de criaccedilatildeo Para o filoacutesofo se o conhecimento ainda
se reconhece como atividade que define o humano conhecer natildeo eacute mais entendido como a
procura por explicaccedilotildees mas como o processo de criaccedilatildeo de valor Estes valores criados
pelo homem em sua atividade interpretativa seriam os fundamentos natildeo apenas do
conhecimento mas na medida em que constituem para o homem sua realidade do proacuteprio
homem Neste contexto aparecem as tentativas nietzschianas de vincular ao conhecimento
agrave ousadia da criaccedilatildeo agrave coragem de empreender experimentos com o pensamento com o
proacuteprio niilismo arriscando tentativas de superaccedilatildeo de toda negatividade
Mediante esta interpretaccedilatildeo nos deparamos com uma leitura do perspectivismo
nietzschiano em que este deixa de ser interpretado como concepccedilatildeo puramente criacutetica
tornando-se uma concepccedilatildeo criativa Ou seja enquanto expressatildeo afirmativa que surge de
uma profunda criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento o perspectivismo
nietzschiano relaciona-se com uma forma afirmativa de niilismo tornando-se tambeacutem uma
forma afirmativa de perspectivismo
74 Em um fragmento poacutestumo da primavera de 1888 Nietzsche diraacute ldquoO niilismo natildeo eacute causa mas apenas aloacutegica da deacutecadencerdquo (NFFP XII 14 [86])
137
31 O niilismo como reflexo da crise dos valores morais
Tratar do tema do niilismo nietzschiano implica em reconhecer como uma
dificuldade inicial o fato desta concepccedilatildeo pertencer de forma necessaacuteria aos planos
filosoacuteficos interrompidos por Nietzsche De partida eacute necessaacuterio reconhecer que com base
na escassa base textual disponiacutevel natildeo se pode pretender afirmar categoricamente o que o
autor pretendia dizer quando utilizava a expressatildeo niilismo75 Se a escassez de referecircncias
na obra publicada do autor pode lanccedilar duacutevidas acerca da importacircncia desta concepccedilatildeo
para a compreensatildeo do pensamento nietzschiano esta duacutevida eacute amenizada pelo rico
material produzido pelos comentaacuterios da obra nietzschiana76 Do mesmo modo o peso que
o autor atribui ao conceito em questatildeo quando a ele se refere em sua obra parece constituir
evidecircncia da grande importacircncia dessa concepccedilatildeo
As vagas apariccedilotildees do niilismo mesmo nos escritos poacutestumos refletem uma ideia
que retorna com frequecircncia na mente do filoacutesofo mas para a qual este natildeo parece encontrar
um modo de expressatildeo que decirc conta de sua grandeza Entre estes escritos essa apariccedilatildeo se
daacute com frequecircncia na forma de uma previsatildeo o anuacutencio de um grande perigo para a
humanidade Ao niilismo estaria vinculado um processo de aprofundamento para a
humanidade uma linha que apoacutes cruzada mudaria completamente a realidade e o proacuteprio
ser humano Assim por exemplo o niilismo aparece em um fragmento de marccedilo de 1887
carregado de fatalidade e de prenuacutencio de cataacutestrofe
Grandes coisas exigem que delas nos calemos ou que delas falemos comgrandeza grandeza a saber cinicamente e com inocecircncia O que eunarro eacute a histoacuteria dos dois proacuteximos seacuteculos Descrevo o que vem o que
75 A compreensatildeo nietzschiana do niilismo eacute profundamente marcada pela literatura russa de onde a maioriados comentaristas acredita que o autor teria entrado em contato com o termo Sabe-se que Dostoieacutevski foium autor importante para Nietzsche Um bdquoPsychologeldquo segundo a expressatildeo do fiacuteloacutesofo (GDCI I sect46) aquem Nietzsche leu e costumava recomendar a leitura (Vide correspondecircncia do filoacutesofo notadamenteBVN-1887798 BVN-1887800 BVN-1887812 BVN-1887814 BVN-1887845 BVN-18881130 BVN-18881134 BVN-18881151 BVN-18881160 Ver tambeacutem (WA CW Epilog) (AC AC I sect31)) Noentanto a criaccedilatildeo do termo eacute comumente atribuiacuteda a Turgeniev que o utiliza para caracterizar um de seuspersonagens em seu romance Pais e Filhos 76 De acordo com Kaulbach Nietzsche foi o responsaacutevel por abrir os olhos de sua geraccedilatildeo (e das vindouras)para a experiecircncia limite que atravessa o homem moderno ndash o niilismo ldquoEsta experiecircncia consiste nadesilusatildeo da feacute do povo na tradiccedilatildeo platocircnico-cristatilde de um lsquomundo realrsquo na razatildeo do Ser fundada no Sercujo sentido pode ser descoberto pelo homem []rdquo (KAULBACH 1990 p 210)
138
natildeo poderaacute deixar de vir o advento do niilismo Esta histoacuteria jaacute pode sercontada pois eacute a necessidade mesma que estaacute aqui em obra Este futurofala jaacute atraveacutes de cem signos este destino anuncia-se em toda parte paraesta muacutesica do futuro todos os ouvidos jaacute estatildeo atentos (NFFP 188711[411])
Como se vecirc no fragmento em questatildeo Nietzsche considera a aproximaccedilatildeo do
niilismo mais profundo como uma certeza como algo que se anuncia jaacute por meio de ldquocem
signosrdquo Embora seja apresentado como risco a este natildeo eacute vinculada nenhuma forma de
resistecircncia nenhuma possibilidade de evitaacute-lo posto que em seu progresso seria a proacutepria
necessidade quem opera O mesmo tom premonitoacuterio o anuacutencio da aproximaccedilatildeo de uma
grande crise aparece por vezes na obra publicada No proacutelogo de A Genealogia da Moral
por exemplo o filoacutesofo pensa o niilismo como uma ameaccedila iminente como o grande
perigo que se acerca da humanidade
Mas precisamente contra esses instintos manifestava-se em mim umadesconfianccedila cada vez mais radical um ceticismo cada vez maisprofundo Precisamente nisso enxerguei o grande perigo para ahumanidade sua mais sublime seduccedilatildeo e tentaccedilatildeo ndash a quecirc ao nada ndash precisamente nisso enxerguei o comeccedilo do fim o ponto morto o cansaccediloque olha para traacutes a vontade que se volta contra a vida a uacuteltima doenccedilaanunciando-se terna e melancoacutelica eu compreendi a moral da compaixatildeocada vez mais se alastrando capturando e tornando doentes ateacute mesmo osfiloacutesofos como o mais inquietante sintoma dessa nossa inquietantecultura europeia como o seu caminho sinuoso em direccedilatildeo a um novobudismo a um budismo europeu a um ndash niilismohellip (GMGM proacutelogosect05)
Como uma forma europeia de budismo o que aqui significa como uma forma
europeizada de negaccedilatildeo da realidade o niilismo se expressaria como a manifestaccedilatildeo de um
profundo cansaccedilo contra o qual Nietzsche se opunha quase que de forma instintiva Do
mesmo modo o filoacutesofo via como avanccedilo da ameaccedila niilista a expansatildeo da moral da
compaixatildeo que alcanccedilava ldquoateacute mesmo os filoacutesofosrdquo como o grande sintoma que apenas
ele pensava haver identificado77 Natildeo haacute duacutevidas de que aqui o filoacutesofo identifica no
77 Nietzsche pensa a moral da compaixatildeo como uma novidade no acircmbito da moral que para o autor semprehavia sido estabelecida com base na negaccedilatildeo dos valores que tornam uma forma de vida possiacutevel quepossibilitam seu crescimento e expansatildeo Assim na continuaccedilatildeo da passagem citada Nietzsche identifica emoutros filoacutesofos uma certa desconfianccedila com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo como virtude ldquoPois essa modernapreferecircncia e superestimaccedilatildeo da compaixatildeo por parte dos filoacutesofos eacute algo novo justamente sobre o natildeo-valor
139
niilismo o grande adversaacuterio de sua filosofia assim como o fundamento da sua criacutetica agraves
concepccedilotildees filosoacuteficas que lhe cercam
Este posicionamento teoacuterico manifesto na maioria dos casos na forma de criacutetica agraves
concepccedilotildees estabelecidas foi entendido desde entatildeo como um ceticismo crescente que
foi posteriormente associado de forma definitiva com seu perspectivismo No entanto o
aparente ceticismo por traacutes de seu posicionamento seria apenas a manifestaccedilatildeo de um
criticismo crescente em relaccedilatildeo aos valores que fundamentam as ciecircncias e posiccedilotildees
filosoacuteficas dogmaacuteticas Natildeo seria esse ceticismo a renuacutencia em descobrir novas verdades o
que seria contraacuterio agrave concepccedilatildeo mesma de conhecimento em Nietzsche mas a perda de
crenccedila nas concepccedilotildees filosoacuteficas O ceticismo eacute usado aqui como manifestaccedilatildeo
fundamental de repuacutedio a tudo que era tido haacute eacutepoca de Nietzsche como ciecircncia e como
sabedoria Natildeo agrave sabedoria e a ciecircncia elas mesmas no entanto
O ceticismo de suas concepccedilotildees de juventude nos diz Nietzsche no comeccedilo do
proacutelogo teria crescido em oposiccedilatildeo a ldquoos instintos de compaixatildeo abnegaccedilatildeo sacrifiacuteciordquo os
quais o filoacutesofo entende que Schopenhauer teria idolatrado acima de todas as coisas
ldquodourado divinizado idealizadordquo (GMGM proacutelogo sect5) Assim o aparente ceticismo da
posiccedilatildeo nietzschiana natildeo se poderia confundir com uma renuacutencia com relaccedilatildeo a toda forma
de verdade Mas apenas como uma suspeita que se estende a todas as avaliaccedilotildees morais
esteacuteticas e filosoacuteficas de sua eacutepoca tomadas em sua leitura como expressotildees do niilismo
O primeiro valor que se torna objeto de criacutetica aqui a compaixatildeo aparece como
elemento constitutivo de uma moral que seduz para o nada e que eacute reproduzida pela
filosofia como expressatildeo de uma moralidade superior Ao identificar o niilismo como uma
tendecircncia para desvalorizar valores essa concepccedilatildeo desempenha um papel fundamental na
criacutetica nietzschiana da moralidade Criacutetica segundo a qual o niilismo que aparece para o
autor da genealogia como uma forma europeia de budismo eacute interpretada como uma
tendecircncia agrave supervalorizaccedilatildeo do nada camuflada na forma de uma adoraccedilatildeo da apoacutes a
morte
da compaixatildeo os filoacutesofos estavam ateacute agora de acordo Menciono apenas Platatildeo Spinoza La Rochefoucaulde Kant quatro espiacuteritos tatildeo diversos quanto possiacutevel um do outro mas unacircnimes em um ponto na poucaestima da compaixatildeordquo (GMGM proacutelogo sect05)
140
Por sua vez ao relacionarmos o que eacute dito aqui com o que o filoacutesofo apresenta em
seu Anticristo percebe-se uma certa continuidade Neste sentido a compaixatildeo aparece
naquela obra como princiacutepio moral que se propaga a outras esferas da atividade humana A
compaixatildeo teria se tornado assim elemento fundamental para a criacutetica dos valores morais
cristatildeos na medida em que ela eacute percebida como algo que expande sua zona de alcance a
todas as concepccedilotildees teoacutericas que se deixaram infectar pelo instinto teoloacutegico Motivo pelo
qual em O Anticristo Nietzsche afirma enxergar o instinto teoloacutegico em toda parte
(ACAC I sect09)
Por outro lado na medida em que a verdade aparece em sua leitura como um valor
fundado em uma concepccedilatildeo moral desde que a veracidade aparece aqui como
reverberaccedilatildeo da moralidade como expressatildeo mesma do desenvolvimento de uma forma de
moralidade as questotildees referentes agrave sua compreensatildeo da verdade e do conhecimento
comeccedilam a se relacionar com a dinacircmica proacutepria do niilismo Nessa leitura a veracidade a
exigecircncia da vontade de verdade que aparece aqui como consequecircncia da moralidade
ocasiona que a proacutepria interpretaccedilatildeo moral do mundo passa a ser vista como falsa ou seja
que os valores que suportam essa interpretaccedilatildeo perdem seus valores Como diz Araldi
Nietzsche afirma num fragmento do outono de 1887 que aldquoPotencializaccedilatildeo do valor do homemrdquo foi ateacute entatildeo obra dos meiosdisciplinadores da moral Entretanto entre as forccedilas engendradas pelamoral estaacute a veracidade que por fim descobre a falsidade subjacente agraveinterpretaccedilatildeo moral do mundo Eacute a proacutepria moral em suas raiacutezes imoraise natildeo-verdadeiras que deve desvendar a inverdade do processo O valorda moral poreacutem natildeo estaacute em seu grau de veracidade mas em possibilitara vida em ser antiacutedoto ao niilismo (Cf XII 5 [70]) (ARALDI 1998Paacutegs 78)
Ao pensar o valor da moral como sendo fundamentando na categoria de veracidade
o filoacutesofo abre a possibilidade de se pensar a necessidade de superaccedilatildeo do niilismo a partir
de seus valores como exigecircncia para a proposiccedilatildeo de uma nova forma de valoraccedilatildeo Nesse
processo a consciecircncia da falta de sentido no mundo da verdade na verdade mesma
desempenha papel fundamental Por isso entendemos que o niilismo nietzschiano
relaciona-se com o seu perspectivismo que tem na falta de sentido por traacutes da criaccedilatildeo de
um mundo da verdade assim como da distinccedilatildeo deste de um mundo das aparecircncias um
141
aspecto fundamental Do mesmo modo a identificaccedilatildeo dessa tendecircncia como aquilo que
alimentava sua duacutevida seu ceticismo indica que sua proacutepria concepccedilatildeo negativa em
relaccedilatildeo agrave verdade natildeo eacute isenta de um reconhecimento do niilismo como adversaacuterio
32 Os niilismos nietzschianos
Em uma das primeiras apariccedilotildees do termo entre os escritos poacutestumos nietzschianos
Nietzsche jaacute esboccedila uma reflexatildeo acerca das consequecircncias negativas da evoluccedilatildeo de uma
tendecircncia segundo a qual o niilismo eacute concebido ldquocomo um pequeno preluacutediordquo (NFFP
1882 2 [4]) que ldquoComo o budismo torna improdutivo e bomrdquo e que ldquoa Europa tambeacutem
estaacute sob sua influecircncia cansadardquo (NFFP 1882 2[4]) Em sua leitura o niilismo seria natildeo
um caso de exceccedilatildeo mas ldquoum estado normalrdquo (NFFP 1887 9[35]) um ldquoestado
intermediaacuterio patoloacutegicordquo (NFFP 1887 9 [35]) ou seja uma etapa decrescente de forccedila
no desenvolvimento da cultura de um povo na medida em que se generaliza a conclusatildeo
de que ldquonatildeo haacute nenhum sentido absolutordquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoas forccedilas
produtivas natildeo satildeo ainda suficientemente fortesrdquo (NFFP 1887 9 [35]) seja porque ldquoa
deacutecadenceacute ainda vacila e natildeo foi inventado ainda seus remeacutediosrdquo (NFFP 1887 9 [35])
Como a consciecircncia de uma ldquofalta de metardquo (NFFP 1887 9 [35]) como a
ausecircncia de resposta para a pergunta pelo ldquopor quecircrdquo o niilismo representa para o filoacutesofo
que ldquoos valores supremos se desvalorizamrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o que para Nietzsche
torna o niilismo algo ambiacuteguo (NFFP 1887 9 [35]) na medida em que a consciecircncia da
desvalorizaccedilatildeo dos valores supremos poderia implicar em duas atitudes uma permanecircncia
nos valores dados apesar da consciecircncia de sua falta de sentido ou a criaccedilatildeo de novos
valores Estas duas atitudes por sua vez enquanto condicionadas pela forccedila ou cansaccedilo do
niilista que se depara com os valores dados seriam aspectos fundamentais de duas formas
de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo Poreacutem mais do que duas formas
desconectadas de niilismo o niilismo passivo e o niilismo ativo significariam dois estaacutegios
na dinacircmica proacutepria do niilismo que vai de seu surgimento a sua radicalizaccedilatildeo78 Posto
78 Araldi pensa os diferentes modos de apresentaccedilatildeo do niilismo na obra tardia o niilismo passivo oniilismo ativo e o niilismo completo como representaccedilotildees de diferentes momentos no processo dedesenvolvimento do niilismo Assim o comentador afirma ldquoEacute importante ressaltar entatildeo que o foco centraldas diversas caracterizaccedilotildees elaboradas na obra tardia estaacute no caraacuteter de processo do niilismo o qual
142
que para Nietzsche as diversas formas que o niilismo assume em sua obra mais do que
uma apresentaccedilatildeo de suas variaccedilotildees cumpririam a funccedilatildeo de determinar uma loacutegica de
superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo
Assim o filoacutesofo representa a possibilidade do niilismo se apresentar como ldquosigno
do poder ascendente do espiacuteritordquo o que nesta leitura significa que a atitude diante dos
valores poderia condicionar um niilismo ativo (NFFP 1887 9 [35]) Dessa forma ao
passo que ldquoa forccedila do espiacuterito poderia ter crescido tanto que as metas que tinha ateacute o
momento (lsquoconvicccedilotildeesrsquo artigos de feacute) lhe satildeo inadequadasrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o
niilismo pode tornar-se o primeiro estaacutegio na produccedilatildeo de novos valores a partir da
consciecircncia da necessidade de superaccedilatildeo do que eacute dado como insuficiente
Nesse sentido para Nietzsche mais do que uma convicccedilatildeo motivada por um
conhecimento superior ldquouma crenccedila de fato expressa em geral a coerccedilatildeo de condiccedilotildees de
existecircncia uma submissatildeo agrave autoridade de situaccedilotildees em que um ser prospera cresce
ganha poderrdquo (NFFP 1887 9 [35]) o niilismo ativo representaria uma consciecircncia
ascendente do oder que rejeita o que eacute dado como sendo insuficiente Ou seja o autor
entende que todo ser prospera cresce e ganha poder de acordo com as condiccedilotildees que lhe
satildeo dadas e aceitas como crenccedilas Por sua vez a consciecircncia da vacuidade de sentido
dessas crenccedilas seria o niilismo mas a atividade de criaccedilatildeo de novos valores a partir da
consciecircncia dessa vacuidade de sentido seria o que determinaria uma forma ativa de
niilismo
Por sua vez o niilismo passivo o estaacutegio oposto ao niilismo ativo eacute caracterizado
por Nietzsche como ldquodecreacutescimo e retrocesso do poder do espiacuteritordquo como signo de
debilidade como sinal de esgotamento e cansaccedilo da vontade De tal forma que modo que
ldquoas metas e os valores existentes ateacute o momento satildeo inadequados e natildeo encontram creacuteditordquo
(NFFP 1887 9 [35]) Nesse sentido como sintoma de enfraquecimento da vontade e
cansaccedilo que impede a criaccedilatildeo de novos valores o niilismo passivo seria ainda signo de
ldquodissolvecircncia da proacutepria siacutentese entre valores e metasrdquo sobre as quais descansa toda cultura
forte (NFFP 1887 9 [35]) Nesse estado de cansaccedilo e perda de vivacidade da cultura
tudo o que eacute reconfortante tudo que anestesia passa para primeiro plano torna-se em
comporta uma gecircnese um transcurso e um acabamentordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 84)
143
valor por sob diferentes disfarces tratem-se de disfarces morais religiosos poliacuteticos ou
esteacuteticos
O niilismo passivo seria marcado como ldquoum signo de uma forccedila insuficiente para
apresentar-se novamente de um modo produtivo uma meta um lsquoporquecircrsquo uma crenccedilardquo
(NFFP 1887 9 [35]) Este seria tambeacutem visto pelo filoacutesofo como um ldquoniilismo cansado
que jaacute natildeo atacardquo (NFFP 1887 9 [35]) e cuja forma mais famosa e uma das mais
presentes em seus comentaacuterios do niilismo passivo seria o budism79 De fato tanto o
budismo quanto o cristianismo aparecem na obra nietzschiana como expressotildees de uma
vontade cansada portanto como manifestaccedilotildees de uma forma negativa de niilismo
A diferenccedila aqui seria de grau desde que o cristianismo ao rejeitar o valor da vida
em sua corporeidade coloca o valor da vida em um aleacutem Por meio desta transposiccedilatildeo do
valor do terreno da vida e sua corporeidade para o terreno de uma existecircncia ideal o
cristianismo operaria uma espeacutecie de promoccedilatildeo da extinccedilatildeo da vida agrave categoria de ideal O
budismo por outro lado seria compreendido por Nietzsche como uma forma radical de
niilismo passivo que reconhece a falta de sentido e coloca seu empenho no
estabelecimento do nirvana ou seja no reino do nada absoluto Assim Claudemir Araldi
enfoca esta distinccedilatildeo fundamental quando chama a atenccedilatildeo para o fato do niilismo
enquanto uma forma europeia de budismo natildeo compartilhar ainda da radicalidade
daquele seu correlato indiano
O cristianismo procura retardar o niilismo da accedilatildeo (der Nihilismus derThat) forma consequente de niilismo que encoraja para a morte eautoaniquilamento atraveacutes da indicaccedilatildeo de uma falsa sobrevivecircncia paraaleacutem desse mundo Em vez do autoaniquilamento o cristianismo propotildeeuma vida duradoura mas fraca e empobrecida (XIII 14 (9)) O budismorepresenta uma forma mais radical de niilismo pois nele haacute a dissoluccedilatildeoda vontade do indiviacuteduo no nada no nirvana ldquoO pessimismo europeuestaacute ainda em seu iniacutecio ele natildeo tem ainda aquela descomunal fixideznostaacutelgica do olhar na qual se espelha o nada como ele teve outrora naIacutendiardquo (XI 25 (16)) (ARALDI 1998 Paacutegs 86-87)
79 A compreensatildeo do niilismo como uma forma de budismo europeu estaacute presente no proacutelogo de AGenealogia da Moral onde este eacute pensado como modelo de uma forma de niilismo passivo e portantopoderia ser considerado uma forma de budismo europeu
144
Por outro lado em O Anticristo Nietzsche pensa a relaccedilatildeo entre o budismo e o
cristianismo como expressatildeo de uma disputa entre uma forma positiva e uma forma
negativa de religiatildeo da decadecircncia Ainda como religiotildees da decadecircncia ambas se
distinguiriam pelo niacutevel de realismo do budismo que natildeo apregoa a necessidade de um
outro mundo mas restringe suas praacuteticas agraves esferas da dieteacutetica e da higiene Aqui como
manifestaccedilatildeo mais realista de uma forma decadente o budismo eacute considerado por
Nietzsche como uma forma superior de se encarar o problema da falta de sentido Pois
para o filoacutesofo o budismo representaria uma forma de racionalizaccedilatildeo do problema da falta
de sentido da realidade muito a frente do cristianismo
Com minha condenaccedilatildeo do cristianismo natildeo quero ser injusto com umareligiatildeo a ele aparentada que pelo nuacutemero de seguidores ateacute o supera obudismo As duas satildeo proacuteximas por serem religiotildees niilistas ndash religiotildees dedecadence ndash as duas de diferenciam de modo bastante notaacutevel O criacuteticodo cristianismo tem uma diacutevida de gratidatildeo aos eruditos hindus pelo fatode elas poderem se comparadas ndash O budismo eacute mil vezes mais realistado que o cristianismo ndash ele carrega a heranccedila da colocaccedilatildeo fria e objetivados problemas ele vem apoacutes seacuteculos de contiacutenuo movimento filosoacutefico oconceito de ldquodeusrdquo jaacute foi abolido quando ele surge O budismo eacute a uacutenicareligiatildeo realmente positivista que a histoacuteria tem a nos mostrar ateacute mesmoem sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo ndash )(ACAC I sect20)
Com base nessa leitura podemos ver que a distinccedilatildeo fundamental entre o
cristianismo e o budismo se resume a uma diferenccedila de graus de niacuteveis mas natildeo em sua
natureza Ambas compartilham na especulaccedilatildeo nietzschiana uma classificaccedilatildeo comum
enquanto formas passivas de niilismo Como tais sua expansatildeo significaria para o filoacutesofo
um risco para a cultura Assim em A Gaia Ciecircncia Nietzsche relaciona a propagaccedilatildeo do
budismo e do cristianismo a um adoecimento da vontade a um decreacutescimo no iacutempeto de
comando que levou os homens a procurar por uma autoridade forte fora do mundo
A feacute sempre eacute mais desejada mais urgentemente necessitada quandofalta a vontade pois a vontade eacute enquanto afeto de comando o decisivoemblema da soberania e da forccedila Ou seja quanto menos sabe algueacutemcomandar tanto mais anseia por algueacutem que comande que comandeseveramente mdashpor um deus um priacutencipe uma classe um meacutedico um
145
confessor um dogma uma consciecircncia partidaacuteria De onde se concluiriatalvez que as duas religiotildees mundiais o budismo e o cristianismo podemdever sua origem e mais ainda a suacutebita propagaccedilatildeo a um enormeadoecimento da vontade E assim foi na verdade ambas as religiotildeesdepararam com a exigecircncia de um ldquotu devesrdquo alccedilada ateacute o absurdo peloadoecimento da vontade e indo ateacute o desespero ambas ensinaram ofanatismo em eacutepocas de afrouxamento da vontade com issoproporcionando a muitos um apoio uma nova possibilidade de quererum deleite no querer Pois o fanatismo eacute a uacutenica ldquoforccedila de vontaderdquo quetambeacutem os fracos e inseguros podem ser levados a ter como uma espeacuteciede hipnotizaccedilatildeo de todo o sistema sensoacuterio-intelectual em prol daabundante nutriccedilatildeo (hipertrofia) de um uacutenico ponto de vista e sentimentoque passa a predominar mdash o cristatildeo o denomina sua feacute Quando umapessoa chega agrave convicccedilatildeo fundamental de que tem de ser comandadatorna-se ldquocrenterdquo inversamente pode-se imaginar um prazer e forccedila naautodeterminaccedilatildeo uma liberdade da vontade em que um espiacuterito sedespede de toda crenccedila todo desejo de certeza treinado que eacute em seequilibrar sobre tecircnues cordas e possibilidades e em danccedilar ateacute mesmo agravebeira de abismos Um tal espiacuterito seria o espiacuterito livre por excelecircncia(FWGC V sect347)
Nietzsche pensa a propagaccedilatildeo do cristianismo e do budismo como sintoma de uma
forma de adoecimento da vontade que acaba por condicionar a busca pelo comando em
esferas exteriores agrave esfera do acontecer humano que se mostra preponderantemente sob o
domiacutenio dos instintos fracos Dessa forma jaacute no periacuteodo de gestaccedilatildeo de sua obra
intermediaacuteria niilismo e budismo mostram-se associados Mais do que as religiotildees da
decadecircncia o niilismo passivo determina o avanccedilo de uma forma de pensar uma doutrina
acerca da verdade e do conhecimento contra a qual como vemos no fim da passagem
citada se voltariam os espiacuteritos livres
Em oposiccedilatildeo agrave forma de pensar condicionada pela necessidade de crenccedilas como
substitutos para o iacutempeto de comando os espiacuteritos livres seriam marcados pela sua
liberdade em relaccedilatildeo a toda forma de determinaccedilatildeo dogmaacutetica toda forma de verdade
dada Nesse sentido o espiacuterito livre ldquopor excelecircnciardquo seria aquele que obteacutem prazer ldquona
autodeterminaccedilatildeordquo na ldquoliberdade da vontaderdquo e no despedir-se de toda crenccedila Seria
justamente este abandono de todo ldquodesejo de certezardquo e abandono de si ldquosobre tecircnues
cordas e possibilidadesrdquo que caracterizaria a forma de conhecer proacutepria aos espiacuterito livre
146
Assim na necessidade de definir este estilo de filosofar a ele poderia ser comparado uma
danccedila a beira do abismo a brincadeira com o perigoso propor novas verdades80
Retomando poreacutem o problema da distinccedilatildeo entre as diferentes formas de niilismo
temos que o niilismo passivo seria marcado pela consciecircncia de uma falta de sentido
estrutural dos valores que no entanto natildeo subordina a produccedilatildeo de novos valores por se
dar em uma natureza cansada Aqui aparece o niilista como o sujeito dessa vontade
cansada como aquele que nega o mundo dos fenocircmenos mas que natildeo consegue criar um
mundo ideal e que portanto transporta para outra esfera o mundo das criaccedilotildees ideias
A criacutetica nietzschiana ao niilismo eacute caracterizada pela criacutetica agrave rejeiccedilatildeo do mundo
existente com base na defesa da necessidade de um mundo melhor inexistente uma
realidade idealizada Criacutetica que se sustentaria com base na negaccedilatildeo da realidade
imperfeita que eacute percebida pelo filoacutesofo como sendo nossa criaccedilatildeo Assim em uma
80 Aqui poreacutem torna-se necessaacuterio distinguir aquela que Nietzsche toma como a atitude filosoacutefica porexcelecircncia e a atitude ceacutetica A descriccedilatildeo do espiacuterito livre como aquele que se despede das certezas natildeo seconfunde com a defesa de uma forma ceacutetica de consideraccedilatildeo do conhecimento Ou seja natildeo faz parte denossa tese a reduccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzscheana de conhecimento a uma forma de ceticismo O ceticismo naverdade recorrentemente aparece entre os poacutestumos como representante de um tipo de niilismo passivo oque diga-se de passagem serve de referecircncia para distinguir o Perspectivismo nietzschano de uma forma deceticismo Em sua criacutetica ao ceticismo antigo nos poacutestumos Nietzsche chega a chamar Pirro de ldquoum budistagregordquo (NFFP 1888 14[85]) e retorna essa opiniatildeo quando diz que ldquoO filltoacutesofogt antigo ltagt partir deSoacutecrates tem os estigmas da decadecircncia moralismo e felicidaderdquo e que Pirro havia alcanccedilado o pontoculminante desta tendecircncia ldquoalcanccedilando o niacutevel do budismordquo (NFFP 1888 14[87]) Leia-se especialmenteo fragmento (NFFP 1888 14[99]) em que Nietzsche retorna a chamar Pirro de budista e oferece umacomparaccedilatildeo deste com Epicuro como tipos caracteriacutesticos da deacutecadeacutence entre os gregos Neste fragmentodiz Nietzsche sob o tiacutetulo de filosofia como decadecircncia ldquoFilosofia como deacutecadence ndash O cansaccedilo saacutebioPirro O budista Comparaccedilatildeo com Epicuro Pirro Viver entre os humildes humildemente Sem orgulhoViver de maneira ordinaacuteria honrar e crer o que todos creem Estar em guarda frente a ciecircncia e o espiacuteritoinclusive frente a tudo que inflahellip Simplesmente indescritivelmente paciente despreocupado suave (hellip)Um budista para Greacutecia crescido em meio ao tumulto das escolas vindo tarde fatigado o protesto docansado ante o zelo dos dialeacuteticos a natildeo crenccedila do cansado na importacircncia de todas as coisas Viu aAlexandre viu aos penitentes hindus Em tais indiviacuteduos tardios e refinados tudo o que eacute humilde tudo o queeacute pobre tudo o que eacute idiota causa efeitos inclusive sedutores Isto atua como um narcoacutetico produz distensatildeoPascal Por outro lado em meio do gentio e confusos com qualquer estes sentem um pouco de calornecessitam calor esses indiviacuteduos cansados hellip (hellip) Pirro igualmente a Epicuro duas formas da deacutecadencegrega afins no oacutedio contra a dialeacutetica e contra todas as virtudes histriocircnicas [schauspielerische] ndash A estasduas coisas entatildeo se chamou filosofia ndash intencionalmente eacute o humilde o que estes amam escolhendo paraisto os nomes habituais e inclusive depreciados representando um estado no qual natildeo se estaacute nem doentenem satildeo nem vivo nem mortohellip Epicuro mais ingecircnuo mais idiacutelico mais agradecido mais viajado commais experiecircncias vividas mais niilistahellip Sua vida foi um protesto contra a grande teoria da identidade(felicidade = virtude = conhecimento) A vida reta natildeo se encontra mediante a ciecircncia a sabedoria natildeo fazldquosaacutebiosrdquohellip (NFFP 1888 14[99]) Com o que fica dito a guisa de justificaccedilatildeo do uso ocasional do termoldquoceticismordquo nesta tese natildeo se depreende a tentativa de definiccedilatildeo do ceticismo na filosofia nietzschianaNossa explicaccedilatildeo natildeo eacute nem poderia ser exaustiva Quando se queira aprofundar sobre este tema natildeopoderiacuteamos recomendar nada melhor do que a tese de doutoramento de Rogeacuterio Lopes que serviu deinspiraccedilatildeo para muitas das ideias discutidas aqui e que se encontra na bibliografia
147
passagem bastante conhecida pelos autores que trabalham o tema do niilismo Nietzsche
pensa o niilista como ldquoo homem que a respeito do mundo tal como eacute julga que natildeo
deveria ser e a respeito do mundo que deveria ser julga que natildeo existerdquo (NFFP 1887
9[60]) Nesta leitura ao negar o mundo o niilista estaria negando o proacuteprio ser que se
apresenta na forma de um ldquoagir sofrer querer sentirrdquo que aparece para ele como natildeo
tendo sentido O niilista assim se caracterizaria pelo pathos do ldquoem vatildeordquo que percebe
como uma inconsequecircncia (NFFP 1887 9[60])
Em outros termos o niilista atua por forccedila de uma forte rejeiccedilatildeo do que cria da
realidade condicionada como sua criaccedilatildeo e procura a verdade em uma realidade que este
natildeo pode criar Ou seja o filoacutesofo define o niilista como aquele que rejeita o mundo com
que se relaciona em prol de um mundo com o qual sabe natildeo poder se relacionar O que
norteia esta realizaccedilatildeo para o autor da passagem seria mesmo uma espeacutecie de impulso
para o nada em que o mais proacuteximo e exequiacutevel eacute abandonado em prol do distante e
inexequiacutevel Quase como algueacutem que diante da possibilidade de conquistar uma vitoacuteria
certa mais humilde se lanccedila agrave conquista de um objetivo grandioso embora impossiacutevel
Ora se pensarmos que nossa realidade eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees entatildeo o
mundo que o niilista rejeita eacute o mundo de nossas valoraccedilotildees o qual ele desejaria ver
substituiacutedo por um mundo ideal independente de nossas valoraccedilotildees Na leitura
perspectivista nietzschiana no entanto posto que natildeo se pode pensar um mundo senatildeo
como produto de nossas valoraccedilotildees o niilista seria aquele que pretende alcanccedilar um
mundo de objetividade natildeo avaliada
Esta concepccedilatildeo do niilismo estaacute estreitamente relacionada com a criacutetica
nietzschiana agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade Seria apenas porque a concepccedilatildeo de
verdade estaria relacionada com a ideia de uma realidade inaccessiacutevel que o filoacutesofo
considera niilista todo projeto filosoacutefico ocidental que se deixa guiar pela ideia de uma
realidade objetiva natildeo valorada da qual decorreria a verdade Do mesmo modo a rejeiccedilatildeo
operada pela filosofia tradicional do testemunho dos sentidos em prol de uma realidade que
apenas pode ser concebida pelo intelecto eacute vista pelo filoacutesofo como constituindo um dos
primeiros estaacutegios na histoacuteria do niilismo ocidental
Nessa leitura a ideia de uma realidade idealizada que apenas pode ser
compreendida aqui como realidade enquanto criaccedilatildeo do intelecto seria o ponto de
148
culminacircncia de toda forma disfarccedilada de niilismo Por outro lado aquele que concebe o
mundo como criaccedilatildeo como inferior posto que eacute sua criaccedilatildeo rejeita nele mesmo a proacutepria
criaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo desta criaccedilatildeo no entanto configura-se como passividade na medida em
que se determinaria por uma rejeiccedilatildeo do proacuteprio criar
Satildeo essas razotildees que nos impotildeem a necessidade de distinguir entre duas formas de
niilismo o niilismo ativo e o niilismo passivo Pois uma avaliaccedilatildeo desta distinccedilatildeo torna
claro que aquilo que comumente se toma como a criacutetica nietzschiana ao niilismo estaria
voltada prioritariamente a uma forma passiva de niilismo em detrimento do niilismo como
um todo Assim se o niilismo passivo como vimos estaria relacionado ao cansaccedilo das
forccedilas criativas que se tornam ressentimento da necessidade de criaccedilatildeo quase como se o
intelecto ciente de sua condicionalidade enquanto estrutura criativa se visse ressentido de
sua limitaccedilatildeo enquanto instacircncia de criaccedilatildeo e passasse a criar a partir desse ressentimento
por outro lado o niilista ativo seria aquele que consciente da realidade de sua criaccedilatildeo
enfatiza os poderes criativos do intelecto como superiores criando uma realidade
idealizada a partir da potecircncia criativa do intelecto
Partindo dessa consideraccedilatildeo das diferenccedilas entre uma forma passiva e uma forma
ativa de niilismo percebe-se que nada se aproveita do niilismo passivo posto que apenas
os piores instintos os instintos cansados parecem estar a seu serviccedilo Ao niilismo ativo
por outro lado Nietzsche relaciona um aspecto positivo na medida em que neste jaacute se
reconhece a moral como algo superado Neste sentido o niilismo ativo poderia ser lido
como a representaccedilatildeo de uma forma de superaccedilatildeo criativa do pessimismo da existecircncia o
que caracteriza essa forma de niilismo como sintoma de um grau elevado de ldquocultura
espiritualrdquo Alto grau de cultura espiritual aqui significa que este estaacutegio de desdobramento
do niilismo seria caracterizado pela criaccedilatildeo proliacutefica de novas realidades
Natildeo eacute que a ldquopenuacuteriardquo tenha aumentado pelo contraacuterio ldquoDeus a moral aresignaccedilatildeordquo eram remeacutedios a niacuteveis profundos e terriacuteveis de miseacuteria oniilismo ativo aparece em condiccedilotildees relativamente muito mais favoraacuteveisJaacute o fato de que se sinta a moral como algo superado supotildee um graubastante elevado de cultura espiritual esta por sua vez a um relativobem-estar Um certo cansaccedilo espiritual que a grande luta de opiniotildeesfilosoacuteficas conduziu ateacute a um ceticismo desesperado frente a filosofiacaracteriza tambeacutem agrave classe de nenhuma maneira baixa destes niilistasPense-se na situaccedilatildeo na que surgiu Buda A doutrina do eterno retorno
149
teria pressupostos doutos (assim como os tinha a doutrina de Buda porexemplo o conceito de causalidade etc) (NFFP 1886-1887 5 [71])
A crenccedila no Deus assim como a moral que pertenceriam a um estado inferior da
ldquocultura espiritualrdquo satildeo superados pela suposiccedilatildeo de uma forma nova de valorar no
niilismo ativo O niilismo ativo assim distingue-se do passivo pela potencialidade
criativa que supera a moral dada Em comparaccedilatildeo ao niilismo ativo o niilismo passivo
pode ser visto como algo esteacuteril posto que em seu desenvolvimento este natildeo confronta a
realidade de forma tatildeo criativa quanto aquele Desta forma como uacuteltimo momento do
confronto do niilista com a realidade este jaacute pressuporia um alto niacutevel de desenvolvimento
cultural produto das sucessivas superaccedilotildees das produccedilotildees do niilismo passivo
Nesse sentido o ceticismo nietzschiano para com toda forma de criaccedilatildeo moral
apareceria como sintoma deste alto niacutevel de desenvolvimento cultural No entanto este
ceticismo como sintoma da superaccedilatildeo de diversas formas de moral apareceria tambeacutem
como a exaustatildeo de forccedilas criativas Por isso o ceticismo eacute visto como uma forma
desesperada de niilismo que se daacute diante da constataccedilatildeo da inutilidade da moral mas que
natildeo condiciona a accedilatildeo Do mesmo modo aqui estariacuteamos diante da ideia de uma forma
mais extrema de niilismo ativo no qual ocorre natildeo apenas a negaccedilatildeo da moral mas uma
elaboraccedilatildeo do homem em meio de cura em graus profundos de miseacuteria Nesse sentido o
niilismo ativo aparece em condiccedilotildees que se configuram relativamente mais favoraacuteveis
Seria portanto na possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que apareceria em toda
profundidade a diferenccedila entre o niilismo passivo e o niilismo ativo Porque o iacutempeto para
a destruiccedilatildeo dos valores dados passo necessaacuterio na constituiccedilatildeo dos novos valores apenas
se daacute pela consciecircncia da vacuidade de sentido da carecircncia de fundamento do que eacute dado
atraveacutes do qual ldquoseu maacuteximo de forccedila relativa eacute alcanccedilada como forccedila violenta de
destruiccedilatildeo como niilismo ativordquo (NFFP 1887 9 [35]) O fundamental aqui eacute reconhecer
que um niilismo ativo poderia representar um passo importante na dinacircmica de superaccedilatildeo
do proacuteprio niilismo
Satildeo muitos os fragmentos poacutestumos em que o filoacutesofo se refere a uma forma mais
desenvolvida do niilismo ativo um niilismo perfeito enquanto ldquoconsequecircncia necessaacuteria
dos ideais tidos ateacute o momentordquo (NFFP 1887 10 [42]) Ou seja em contraposiccedilatildeo ao
150
niilismo incompleto em meio ao qual o filoacutesofo pensa que se desdobrava a cultura
filosofia e religiatildeo de sua eacutepoca haveria uma forma extrema de niilismo que poderia
produzir resultados no processo de superaccedilatildeo do niilismo como perda de sentido
Na medida em que Nietzsche entende que as tentativas de escapar-se do niilismo
sem realizar uma avaliaccedilatildeo dos valores recebidos da tradiccedilatildeo apenas tornavam mais agudas
as consequecircncias do niilismo (NFFP 1887 10[42]) ele pensa o niilismo completo como
uma forma de superar a negatividade do niilismo a partir do proacuteprio niilismo Assim a
radicalizaccedilatildeo do niilismo que conduz ao niilismo completo como ponto da dinacircmica do
niilismo em que se rompe a cadeia de criaccedilatildeo de valores niilistas se daria com o colapso
do conceito de ldquoDeusrdquo entendido aqui como fundamento de todos os valores niilistas
Como diz Araldi ldquoA morte de Deus eacute um evento que repercute na modernidade e que
aciona novas formas de niilismo sempre na perspectiva de sua radicalizaccedilatildeordquo (ARALDI
1998 Paacutegs 85-86) Isto porque o conceito de ldquoDeusrdquoeacute visto pelo filoacutesofo como uma
repercussatildeo da realidade ideal como a traduccedilatildeo moderna do antigo conceito platocircnico de
realidade das ideias
Tal como a realidade ideal platocircnica o Deus veraz atua na modernidade como
fundamento uacuteltimo da verdade Aqui aparece para Nietzsche o cristianismo como um
ldquoplatonismo para as massasrdquo como o lugar de fundamentaccedilatildeo de uma veracidade que se
perde na iminecircncia do grande evento da morte de Deus Posto que Deus passa a ser visto
de acordo com os princiacutepios dessa veracidade como ldquouma hipoacutetese demasiado extremardquo
(NFFP 1886 5[71]) Motivo pelo qual Claudemir Araldi pensa a distinccedilatildeo entre uma
forma incompleta e uma forma completa de niilismo como dependendo fundamentalmente
do anuacutencio da morte de Deus
Eacute nesse sentido que Nietzsche distingue entre niilismo incompleto eniilismo completo No niilismo incompleto (unvollstaumlndig Nihilismus) haacutea tentativa de preencher o vazio decorrente da morte do deus cristatildeo tidocomo a fonte da verdade (XII 10 (42) Atraveacutes de ideais laicizados (oprogresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia) os homensainda mantecircm o lugar outrora ocupado por Deus o supra-sensiacutevel poisbuscam algo que ordene categoricamente ao qual possam se entregarabsolutamente Em suma no niilismo incompleto haacute a tentativa desuperar o niilismo sem transvalorar os valores (XII 10 (42)) No niilismocompleto (vollkommener Nihilismus) haacute uma autoconsciecircncia do homem
151
sobre si proacuteprio e sobre a sua nova situaccedilatildeo apoacutes a morte de Deus (XII10 (42) Esta forma de niilismo eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria dosvalores estimados ateacute entatildeo como superiores Nesse momento contudonatildeo ocorre ainda a criaccedilatildeo de valores afirmativos o niilista completo natildeoconsegue mais mascarar atraveacutes de ideais e ficccedilotildees a vontade de nadaNatildeo eacute apenas o supra-sensiacutevel que eacute abolido mas tambeacutem a oposiccedilatildeoentre ambos (GDCI Como o Mundo Verdadeiro tornou-se Faacutebula) Comum olhar paacutelido desfigurado o niilista completo contempla e idealiza apartir da fraqueza A completude do niilismo natildeo ocorre somente nessadissoluccedilatildeo passiva no tipo do decadente que frui passivamente de seuesgotamento (ARALDI 1998 Paacutegs 86)81
Segundo Araldi Nietzsche compreendeu a modernidade filosoacutefica como a tentativa
de ocupar o lugar vago pela ausecircncia do Deus cristatildeo atraveacutes da admissatildeo de ideais
laicizados tais como o progresso na histoacuteria a razatildeo moral a ciecircncia a democracia Estas
tentativas no entanto aparecem para o autor como uma forma fracassada de abandonar os
ideais cristatildeos82 Desde que os fundamentos satildeo reconhecidos aqui como pertencendo a
uma instacircncia superior agrave instacircncia do acontecer humano esfera na qual Nietzsche enxerga
a dinacircmica da criaccedilatildeo de valores esta tentativa ainda se fundamentava em uma concepccedilatildeo
tradicional de verdade Sendo assim esta tentativa de superaccedilatildeo do Deus cristatildeo cai por
terra na medida em que conserva o lugar ocupado por Deus Esta leitura eacute coerente com o
que ao autor expressa em A Gaia Ciecircncia o filoacutesofo narra os motivos do fracasso dessa
tentativa de se livrar de Deus como a permanecircncia na crenccedila na verdade
Mas jaacute teratildeo compreendido onde quero chegar isto eacute que a nossa feacute naciecircncia repousa ainda numa crenccedila metafiacutesica ndash que tambeacutem noacutes quehoje buscamos o conhecimento noacutes ateus e antimetafiacutesicos aindatiramos nossa flama daquele mesmo fogo que uma feacute milenar acendeuaquela crenccedila cristatilde que era tambeacutem de Platatildeo de que Deus eacute a verdadede que a verdade eacute divinahellip Mas como se precisamente isto se tornacada vez menos digno de creacutedito se nada mais se revela divino com apossiacutevel exceccedilatildeo do erro da cegueira da mentira ndash se o proacuteprio Deus serevela como a nossa mais longa mentira (FWGC V sect344)
81 A citaccedilatildeo manteve intacta a estrutura e redaccedilatildeo dada por seu autor ao texto ou seja foram preservados osaspectos do texto que foram redigidos anteriormente agrave adoccedilatildeo das normas do novo acordo ortograacutefico daliacutengua portuguesa82 Nos diz ainda Claudemir Araldi ldquoA modernidade representa para o filoacutesofo tanto o esforccedilo de substituir odeus transcendente por outros valores (razatildeo histoacuteria progresso) bem como o vazio aberto pela percepccedilatildeode que o deus transcendente jaacute natildeo exerce nenhuma influecircncia sobre a existecircnciardquo (ARALDI 1998 Paacutegs77-78) Ou seja segundo Araldi natildeo apenas a modernidade filosoacutefica fracassa em ocupar o lugar deixadovago pela morte de Deus como ainda traz a tona a realidade desse vazio
152
A morte de Deus a perda do ldquobem em sirdquo e o desaparecimento de um fundamento
universal da realidade constituem nessa leitura diferentes niacuteveis de uma mesma
experiecircncia Poreacutem a radicalidade do ponto de partida nietzschiano diz respeito agrave
concomitacircncia destes fundamentos em uma concepccedilatildeo tradicional de verdade Assim a
permanecircncia na verdade marca ainda o lugar onde uma uacuteltima crenccedila deve ser abandonada
A avaliaccedilatildeo dos valores portanto comeccedila pela consciecircncia da morte do Deus cristatildeo que
eacute anunciada no aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia mas apenas se conclui a partir da
consciecircncia da caducidade da ideia de verdade
Em suma estaacute fase intermediaacuteria representaria ainda uma manifestaccedilatildeo do niilismo
incompleto em que a tentativa de superar o niilismo ocorre sem oferecer uma completa
avaliaccedilatildeo dos valores No niilismo completo no entanto ocorre uma tomada de
consciecircncia o reconhecimento da responsabilidade pela criaccedilatildeo dos valores que
condiciona a radicalizaccedilatildeo e superaccedilatildeo do niilismo tornando-se este assim uma forma de
niilismo ativo
Se o niilismo eacute a situaccedilatildeo a que se vecirc confrontada uma eacutepoca que experimenta a
perda de validade dos valores supremos na medida em que Nietzsche reconhece nos
ldquovalores superioresrdquo mais do que a fundamentaccedilatildeo da organizaccedilatildeo social humana mas a
proacutepria atribuiccedilatildeo de valor para a vida entre os homens ou seja a moral o filoacutesofo
reconhece na perda de validade destes valores um risco iminente para a humanidade
33 A criacutetica nietzschiana ao niilismo a partir de sua criacutetica agrave moralidade
Nos primeiros capiacutetulos deste trabalho procuramos mostrar que apesar de o
desdobramento da reflexatildeo nietzschiana acerca do niilismo pertencer agrave terceira fase de seu
pensamento o potencial afirmativo inerente agrave superaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de
verdade jaacute se acha prenunciado no pensamento da primeira fase desse autor em sua
confrontaccedilatildeo de uma forma radical de pessimismo fundado em uma concepccedilatildeo moral do
conhecimento Em suas primeiras incursotildees filosoacuteficas em que o niilismo aparece ainda
sob a aparecircncia de uma forma radical de pessimismo Nietzsche identifica um potencial
153
deleteacuterio da cultura europeia Este potencial de destruiccedilatildeo dos valores fundamentais eacute
criticado pelo autor pela primeira vez a partir da suspeita lanccedilada agraves formulaccedilotildees teoacutericas
do racionalismo socraacutetico Naquela reflexatildeo Nietzsche pensava as condiccedilotildees histoacutericas de
surgimento do conceito de verdade como algo que teria se associado agrave ideia de valor
absoluto por meio de uma interpretaccedilatildeo moral
Considerando-se que neste periacuteodo de seu pensamento o filoacutesofo ainda parece
considerar a justificaccedilatildeo esteacutetica da existecircncia como uma contra medida para com os
valores cristatildeos que seriam aqueles que pretendem-se unicamente morais eacute possiacutevel
pensar que a criaccedilatildeo artiacutestica dos valores seria uma forma de contrapor-se aos valores do
pessimismo Nesse sentido mais do que uma criacutetica agrave moral a criacutetica ao mundo-de-laacute
criado para difamar o mundo de caacute tenciona alargar a denuacutencia dos problemas teoacutericos
referentes agrave consideraccedilatildeo do verdadeiro que em Nietzsche estatildeo indissociavelmente
relacionados aos valores morais do cristianismo
O cristianismo eacute concebido no pensamento nietzschiano como se opondo natildeo
apenas agrave vida mas tambeacutem a seus princiacutepios fundamentais dentre os quais a aparecircncia a
arte e o proacuteprio caraacuteter perspectivo de que toda vida seria dependente Tal ideia da
negaccedilatildeo cristatilde dos valores fundamentais agrave vida eacute expressa com clareza no prefaacutecio tardio
para O Nascimento da Trageacutedia em que Nietzsche reflete sobre o silecircncio que houvera
conservado para com o cristianismo naquela obra
Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendorantimoral seja no precavido e hostil silecircncio com que no livro inteiro setrata o cristianismo ndash o cristianismo como a mais extravagante figuraccedilatildeodo tema moral que a humanidade chegou ateacute agora a escutar Na verdadenatildeo existe contraposiccedilatildeo maior agrave exegese e justificaccedilatildeo puramenteesteacutetica do mundo tal como eacute ensinada neste livro do que a doutrinacristatilde a qual eacute e quer ser somente moral e com seus padrotildees absolutos jaacutecom sua veracidade de Deus por exemplo desterra a arte toda arte aoreino da mentira ndash isto eacute nega-a reprova-a condena-a Por traacutes desemelhante modo de pensar e valorar o qual tem de ser adverso agrave arteenquanto ela for de alguma maneira autecircntica sentia eu tambeacutem desdesempre a hostilidade agrave vida a rancorosa vingativa aversatildeo contra aproacutepria vida pois toda a vida repousa sobre a aparecircncia a arte a ilusatildeo aoacuteptica a necessidade do perspectiviacutestico e do erro (Prefaacutecio sect5 Paacuteg 19)
154
Ainda que de modo inconsciente em sua formulaccedilatildeo na filosofia nietzschiana de
juventude a suspeita em torno da verdade e sua relaccedilatildeo com a moral cristatilde satildeo vistas aqui
como um grande perigo para a humanidade Segundo o autor natildeo apenas contra o
cristianismo ldquocomo a mais extravagante figuraccedilatildeo do tema moral que a humanidade
chegou ateacute agora a escutarrdquo mas contra os princiacutepios morais do niilismo expressos sub-
repticiamente nessa moral seus instintos o haviam precavido Precauccedilatildeo que teria se
refletido no silecircncio para com estes temas que o filoacutesofo conserva em sua obra de estreia
Assim entendemos que embora o niilismo seja inegavelmente uma concepccedilatildeo em que
Nietzsche passa a se deter mais prontamente a partir do periacuteodo intermediaacuterio de seu
pensamento e que recebe um tratamento mais aprofundado apenas a partir de seus uacuteltimos
escritos os pressupostos para a formulaccedilatildeo desta concepccedilatildeo jaacute estavam contidos na criacutetica
nietzschiana agraves concepccedilotildees tradicionais de verdade e conhecimento
Seu projeto de superaccedilatildeo do niilismo portanto natildeo se resume a apontar o futuro do
niilismo e sua superaccedilatildeo definitiva Uma vez que de acordo com a concepccedilatildeo genealoacutegica
nietzschiana as condiccedilotildees de superaccedilatildeo do niilismo residem na consideraccedilatildeo das razotildees
pelas quais ele se tornou hegemocircnico na vida intelectual do Ocidente Por sua vez em
consequecircncia de sua compreensatildeo do niilismo como uma tendecircncia agrave desvalorizaccedilatildeo da
realidade a possiacutevel superaccedilatildeo dos valores de decadecircncia soacute poderia advir de uma
consideraccedilatildeo fundamental sobre o caraacuteter da realidade como interpretaccedilatildeo
Nessa leitura a consideraccedilatildeo da vida em sua essecircncia como vontade de potecircncia
desempenharia um papel fundamental Pois se para Nietzsche ldquoesse mundo eacute a vontade de
potecircncia e nada aleacutem dissordquo (NFFP 1885 38[12]) tambeacutem a vida enquanto uma
manifestaccedilatildeo no mundo seria apenas vontade de potecircncia e nada mais Apesar de natildeo
constituir objeto fundamental de nosso trabalho e apesar de natildeo possuirmos espaccedilo
suficiente aqui para uma correta abordagem dessa importante concepccedilatildeo nietzschiana
consideramos que a concepccedilatildeo de vontade de potecircncia deve ser brevemente elucidada para
efeitos de compreensatildeo do que se diz nesse capiacutetulo e mais a frente
Em nossa interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia natildeo
seria possiacutevel natildeo mencionar a interpretaccedilatildeo de Muumlller-Lauter83 Em seu comentaacuterio da
83 Trabalhamos em nossa leitura com a traduccedilatildeo para o portuguecircs do artigo ldquoA Doutrina da Vontade dePoder em Nietzscherdquo de Oswaldo Giacoacuteia Juacutenior publicado pela editora Annablume Satildeo Paulo 1997conforme bibliografia
155
concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia Muumlller-Lauter a qualifica como uma
concepccedilatildeo metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 51-52) mesmo rejeitando
ldquoconceber a vontade de poder como lsquoinequiacutevocarsquo vontade metafiacutesica no sentido de
Schopenhauerrdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 70) e mesmo rejeitando a posiccedilatildeo de
Heidegger De fato Muumlller-Lauter escreve suas consideraccedilotildees acerca da concepccedilatildeo
nietzschiana de vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo adversaacuteria da interpretaccedilatildeo de
Heidegger
Nesta reflexatildeo polecircmica o autor parte da suposiccedilatildeo de que a filosofia nietzschiana
representaria um acabamento do pensamento metafiacutesico Posiccedilatildeo como se vecirc muito
proacutexima da leitura heideggeriana No entanto para Muumlller-Lauter o pensamento
nietzschiano se converte em uma forma de metafiacutesica por forccedila do constante questionar-se
nietzschiano acerca da metafiacutesica (MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 53) Por outro lado o
autor compreende que este estreito refletir acerca da metafiacutesica que teria forccedilado
Nietzsche mesmo a adotar uma certa terminologia metafiacutesica em suas obras natildeo se
confunde com uma compreensatildeo abrangente do sentido de metafiacutesica Sendo assim se
Nietzsche pode ser considerado um pensador metafiacutesico isto natildeo torna seu pensamento
paradoxal pois o sentido de metafiacutesica de sua reflexatildeo natildeo se confundiria com aquilo que
o filoacutesofo criticava sob o nome de metafiacutesica
Como se pode ver estamos aqui diante de uma possiacutevel autocontradiccedilatildeo no
pensamento nietzschiano que tem que ser enfrentada por Muumlller-Lauter Pois ao interpretar
a vontade de potecircncia como conceito metafiacutesico o autor precisa confrontar a criacutetica
nietzschiana agrave metafiacutesica presente em boa parte de seus escritos Em sua interpretaccedilatildeo o
autor realiza este movimento por meio de uma consideraccedilatildeo da criacutetica nietzschiana agrave
metafiacutesica a partir da compreensatildeo de que o filoacutesofo teria entendido por metafiacutesica uma
compreensatildeo da realidade segundo uma teoria dos dois mundos Ou seja embora o
pensamento nietzschiano possa ser entendido como uma forma de pensamento metafiacutesico
este pensamento natildeo operaria com base na defesa de um dualismo ontoloacutegico
Esta interpretaccedilatildeo enquanto pode ser vista como uma leitura vaacutelida da filosofia
nietzschiana enfrenta dificuldades peculiares Primeiro por que a distinccedilatildeo entre duas
formas de filosofia no pensamento nietzschiano parece repousar em evidecircncia textual
precaacuteria E segundo porque a criacutetica nietzschiana a toda forma de filosofia natildeo parece ser
156
compatiacutevel com a ideia de uma defesa nietzschiana de uma determinada forma de
metafiacutesica O que motiva a adoccedilatildeo de Muumlller-Lauter desta interpretaccedilatildeo da filosofia
nietzschiana como uma certa forma de metafiacutesica seria antes de tudo a necessidade de
interpretar a concepccedilatildeo nietzschiana de vontade de potecircncia como uma forma de
fundamentaccedilatildeo metafiacutesica da verdade Ou seja a tentativa de fundamentar o discurso
nietzschiano em uma compreensatildeo da vontade de potecircncia como conceito ontoloacutegico
subjacente agrave realidade das interpretaccedilotildees
De fato em um fragmento poacutestumo de fins de 1887 3 iniacutecios de 1888 Nietzsche
considera a vontade de potecircncia sob a luz de uma consideraccedilatildeo desta enquanto ldquoum
quantum de poder um devir na medida em que nele nada tem o caraacuteter do lsquoserrsquordquo (NFFP
1887-1888 11[73]) Sendo assim enquanto esta interpretaccedilatildeo poderia por um lado ser
considerada a afirmaccedilatildeo de um caraacuteter ontoloacutegico da vontade de potecircncia por outro na
medida em que o filoacutesofo afirma que esta concepccedilatildeo teria relaccedilotildees com o devir em
contraposiccedilatildeo ao ser fica difiacutecil natildeo pensar que esta passagem se contrapotildee a uma tentativa
de pensar a Vontade de potecircncia como uma espeacutecie de fundamento Na medida em que
nada na vontade de potecircncia refletiria um ser ela mesma natildeo poderia ser vista como
fundamento do existente
Como alternativa pode-se pensar uma interpretaccedilatildeo da concepccedilatildeo nietzschiana de
vontade de potecircncia como a compreensatildeo desta como uma hipoacutetese Dessa forma
tornando-se possiacutevel evitar a necessidade de fundamentaacute-la em uma interpretaccedilatildeo
ontoloacutegica Ao interpretar esta concepccedilatildeo como uma forma de quantum de potecircncia a
vontade de potecircncia natildeo refletiria um existir determinado mas apenas a percepccedilatildeo dela
enquanto um ponto mais baixo ou mais elevado de potecircncia Ou seja a vontade de
potecircncia natildeo seria uma realidade sua interpretaccedilatildeo enquanto vontade forte ou vontade
fraca dependeria da captura de um momento de seu existir pois ldquonatildeo haacute nenhuma
vontade haacute pontuaccedilotildees da vontade que constantemente aumentam ou perdem seu poderrdquo
(NFFP 1887-1888 11[73]) Sendo assim a vontade de potecircncia natildeo poderia ser pensada
de maneira independente de sua interpretaccedilatildeo submetendo-se ela mesma aos princiacutepios
nietzschianos da hegemonia da interpretaccedilatildeo
Esta forma de compreender a vontade de potecircncia parece combinar perfeitamente
com o sentido de textos Nietzschianos tais como o aforismo 22 de Aleacutem do Bem e do Mal
157
em que Nietzsche expressamente fala da vontade de potecircncia como uma interpretaccedilatildeo
Naquele texto sobre o qual falaremos no uacuteltimo capiacutetulo deste trabalho Nietzsche
considera a concepccedilatildeo dos fiacutesicos e de suas leis da natureza como uma maacute interpretaccedilatildeo e
a ela confronta a possibilidade de se explicar os mesmos fenocircmenos com base na hipoacutetese
da vontade de potecircncia Neste confronto o que parece interessar ao filoacutesofo que busca
destituir de validade a ideia de uma realidade natural como texto a ser interpretado seria a
possibilidade de se confrontar perspectivas diferentes diferentes hipoacuteteses como formas
igualmente verdadeiras de se interpretar o mesmo fenocircmeno
Perdoem a esse velho filoacutelogo que sou se natildeo renuncia a abdicar domaligno prazer que representa pocircr o dedo na chaga das explicaccedilotildeeserrocircneas de vossas fraquezas filoloacutegicas Porque em verdade essemecanismo das ldquoleis da naturezardquo de que voacutes fiacutesicos falais com tantoorgulho natildeo eacute um fato nem um texto mas uma composiccedilatildeoingenuamente humana dos fatos uma deturpaccedilatildeo do sentido umaadulaccedilatildeo servil agrave habilidade dos instintos democraacuteticos da alma modernaldquoEm todas as partes igualdade diante da lei a este respeito a naturezanatildeo foi melhor tratada que noacutesrdquo Sedutora segunda intenccedilatildeo que encobremais uma vez o oacutedio da plebe contra toda marca de privileacutegio e de tiraniabem como uma segunda forma mais sutil de ateiacutesmo Ni Dieu nimaitre Voacutes tambeacutem desejais que assim seja e por isso gritais ldquoVivam asleis da naturezardquo (JGBABM I sect22)
Muumlller-Lauter no entanto parece pensar diferente Assim quando julga a
possibilidade de interpretar a vontade de potecircncia como uma hipoacutetese tatildeo verdadeira
quanto a hipoacutetese representada naquele texto pela posiccedilatildeo dos fiacutesicos o autor afirma ldquoEle
proacuteprio [Nietzsche] sustenta uma pretensatildeo de superioridade em face de outras
interpretaccedilotildees do mundo Ao questionarmos seu pensamento em relaccedilatildeo a essa pretensatildeo
deparamos com o problema da fundamentabilidade de sua lsquodoutrina da vontade de poderrsquordquo
(MUumlLLER-LAUTER 1997 Paacutegs 121) Desta maneira o autor parece compreender que
Nietzsche natildeo teria pensado sua posiccedilatildeo a interpretaccedilatildeo da natureza segundo a hipoacutetese da
vontade de potecircncia como uma hipoacutetese de validade igual agrave hipoacutetese apresentada pelos
fiacutesicos mas como posiccedilatildeo superior Assim a pretensatildeo de superioridade das posiccedilotildees
nietzschianas problema fundamental do uacuteltimo capiacutetulo desse trabalho impediria a
compreensatildeo da concepccedilatildeo de vontade de potecircncia como interpretaccedilatildeo
158
Nos parece algo bastante simboacutelico que ao analisar o aforismo vinte e dois de
Aleacutem do Bem e do Mal Muumlller-Lauter considere que ldquoPara o que aqui nos importa eacute
essencial que ele [Nietzsche] impute aos lsquofiacutesicosrsquo uma maacute lsquofilologiarsquordquo ou seja ao
considerar o aforismo em questatildeo Muumlller-Lauter julga que o fato de Nietzsche considerar
a posiccedilatildeo dos fiacutesicos como uma maacute interpretaccedilatildeo conduz agrave crenccedila de que o filoacutesofo
sustentava sua proacutepria interpretaccedilatildeo como uma interpretaccedilatildeo segundo uma boa filologia
como uma interpretaccedilatildeo superior Assim ao confrontar a hipoacutetese de que Nietzsche
necessariamente deva tomar suas posiccedilotildees como interpretaccedilotildees com a necessidade de que
o filoacutesofo as defenda como uma interpretaccedilatildeo superior chegamos a um ponto fundamental
para o questionamento acerca do valor destas interpretaccedilotildees Refletindo sobre este
problema Muumlller-Lauter escreve
Entatildeo toda explicaccedilatildeo (Deutung) do mundo eacute tambeacutem uma interpretaccedilatildeoperspectivamente enganosa a mecanicista natildeo menos que aquela quecompreende todo acontecer do mundo como o caos de vontades de podercooperantes e combatentes Em consequecircncia disso lsquoorsquo mundoconcebido como soma de forccedilas seria uma interpretaccedilatildeo perspectiva domundo ao lado de inuacutemeras outras Em face da fundamental relatividadede todo explicar-o-mundo o que poderia ser aduzido em favor dalsquoverdadersquo da interpretaccedilatildeo de Nietzscherdquo (MUumlLLER-LAUTER 1997Paacutegs 126)
O fundamental aqui eacute o questionamento acerca do que pode ser acrescentado em
favor da posiccedilatildeo defendida por Nietzsche a fim de que esta venha a ser tomada como mais
verdadeira e portanto superior ao posicionamento dos fiacutesicos e sua explicaccedilatildeo mecacircnica
da natureza Na leitura do autor apenas a compreensatildeo que identifica a vontade de
potecircncia como fundamento da verdade poderia garantir esta veracidade e consequente
superioridade Mas aqui se confunde superioridade de uma perspectiva e sua veracidade o
que eacute justamente questionado por meio do perspectivismo nietzschiano Ou seja se
assumirmos que apenas a veracidade de uma posiccedilatildeo pode ser ponto de demarcaccedilatildeo de seu
valor tornamos sem sentido o perspectivismo nietzschiano Mas sendo assim de que outro
modo se poderia justificar a superioridade do posicionamento nietzschiano
A resposta a esta questatildeo representa um ponto fundamental de nossa interpretaccedilatildeo
Trata-se de considerar como ponto central das criacuteticas de Nietzsche agrave concepccedilatildeo tradicional
159
de verdade a implicaccedilatildeo entre valor e verdade de um posicionamento concepccedilatildeo que a
interpretaccedilatildeo tradicional da natureza da verdade nos levaria a aceitar Esta implicaccedilatildeo a
qual Nietzsche jaacute denuncia como improcedente desde seus escritos de juventude
notadamente seu Ensaio sobre Verdade e Mentira seria apenas o resultado de uma
interpretaccedilatildeo moral do problema da verdade Por outro lado como julgar da superioridade
de interpretaccedilotildees adversaacuterias quando natildeo se pode reclamar para estas uma maior
veracidade No caso especiacutefico apresentado por Muumlller-Lauter como justificar a
superioridade da posiccedilatildeo nietzschiana em relaccedilatildeo agraves interpretaccedilotildees que o filoacutesofo combate
Uma possiacutevel resposta para esta pergunta eacute que nada pode ser acrescentado em favor da
ldquoverdaderdquo da interpretaccedilatildeo nietzschiana No entanto no que se trata do questionamento da
superioridade desta posiccedilatildeo poderiacuteamos acrescentar agrave posiccedilatildeo nietzschiana o fato dela ser
derivada de uma arte de filologia superior
Nesta interpretaccedilatildeo consideramos que Nietzsche toma a concepccedilatildeo de vontade de
potecircncia como uma parte de sua filosofia que eacute apenas reconhecida pelo filoacutesofo como
uma possiacutevel interpretaccedilatildeo entre outras interpretaccedilotildees Por outro lado o fato de Nietzsche
se opor a certas interpretaccedilotildees e defender as suas proacuteprias natildeo nos obriga a pensar que o
autor tomava suas posiccedilotildees como mais verdadeiras Pois diferentemente da interpretaccedilatildeo
sustentada por Muumlller-Lauter distinguimos uma interpretaccedilatildeo superior de uma
interpretaccedilatildeo mais verdadeira O fato de Nietzsche tomar sua posiccedilatildeo como superior tanto
no caso em questatildeo como em todos os casos em que este aparente paradoxo se apresenta
natildeo significa que estamos julgando dentro do terreno da veracidade
De fato desde que esta atitude seja entendida como componente do perspectivismo
nietzschiano ela deve ser interpretada como a representaccedilatildeo de uma forma de se
confrontar o dogmatismo pela proacutepria defesa da interpretaccedilatildeo como possibilidade Assim
o que eacute dito na mencionada passagem de Aleacutem do Bem e do Mal representaria um
exerciacutecio deste tipo de compreensatildeo em que a proacutepria possibilidade de se apresentar novas
interpretaccedilotildees jaacute pesa contra a possibilidade de uma posiccedilatildeo dogmaacutetica que deve sempre
ser vista como a uacutenica interpretaccedilatildeo vaacutelida
O mesmo se observa na descriccedilatildeo nietzschiana das forccedilas e suas relaccedilotildees como
aspecto mais iacutentimo da vontade de potecircncia Nestes casos como em todos os casos em que
o filoacutesofo se propotildee a realizar uma descriccedilatildeo da vontade de potecircncia enxergamos uma
160
atitude experimental e artiacutestica um modo criativo de apresentar hipoacuteteses em
contraposiccedilatildeo a uma determinaccedilatildeo definitiva Assim embora saibamos que natildeo temos aqui
uma apresentaccedilatildeo definitiva das justificativas para tanto tomaremos a concepccedilatildeo de
vontade de potecircncia como hipoacutetese interpretativa como um expediente com a qual
Nietzsche pretendeu opor-se a uma determinaccedilatildeo dogmaacutetica da realidade
A inferioridade das posiccedilotildees que critica eacute sempre relacionada por Nietzsche aos
instintos do pesquisador que apresenta esta posiccedilatildeo ou aos valores por traacutes de tais
interpretaccedilotildees A verdade ou falsidade destas posiccedilotildees eacute tomada pelo filoacutesofo sempre como
um efeito colateral dos valores sustentados por tais posiccedilotildees No entanto eacute claro que o
filoacutesofo natildeo poderia tomar suas posiccedilotildees como mais verdadeiras em sentido tradicional
posto que considerava tais concepccedilotildees como aspectos de sua interpretaccedilatildeo da realidade O
que significa dizer que elas tinham que ser tomadas como interpretaccedilotildees a partir de sua
perspectiva
Desde que a partir da concepccedilatildeo nietzschiana da realidade todos os fenocircmenos satildeo
redutiacuteveis agrave categoria de vontade de potecircncia a vida mesma passa a ser expressa como
uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia Logo os valores afirmativos da vida que se
manifestam atraveacutes de um sentimento de ampliaccedilatildeo da potecircncia satildeo tidos nessa leitura
como valores superiores Novamente como compreender a superioridade destes valores se
abdicamos de uma suposta veracidade superior para os mesmos Esta superioridade se
deveria ao fato destas interpretaccedilotildees representarem de forma mais adequada uma
determinada configuraccedilatildeo de forccedilas que se mostraria ascendente naquele momento Como
interpretaccedilatildeo em que as forccedilas mais fortes ou um nuacutemero maior de forccedilas se expressa
uma posiccedilatildeo poderia no entender de Nietzsche ser tomada como refletindo de forma mais
afirmativa a vida e assim a proacutepria vontade de potecircncia
Por outro lado os valores morais que com o apoio da doutrina cristatilde obtecircm os
nomes mais elevados na tradiccedilatildeo filosoacutefica seriam consequecircncia de um estado em que
forccedilas menos fortes se agrupariam em torno de um fim Neste sentido enquanto sintoma de
forccedila descendente de forccedilas menos fortes estes valores seriam expressatildeo de tudo que eacute
inferior Por representarem uma configuraccedilatildeo descendente de forccedilas tais valores
inviabilizariam a vida que cresce constituindo-se em valores de negaccedilatildeo de tudo que eacute
161
necessaacuterio agrave sobrevivecircncia A estes valores que Nietzsche toma como expressatildeo mesma do
niilismo estaria ligada uma corrupccedilatildeo fundamental do animal homem
Digo que um animal uma espeacutecie um indiviacuteduo estaacute corrompido quandoperde seus instintos quando escolhe prefere o que lhe eacute desvantajosoUma histoacuteria dos ldquosentimentos superioresrdquo dos ldquoideais da humanidaderdquo ndashe eacute possiacutevel que eu tenha de escrevecirc-la ndash tambeacutem seria quase a explicaccedilatildeode porque o homem se acha tatildeo corrompido A vida mesma eacute para miminstinto de crescimento de duraccedilatildeo de acumulaccedilatildeo de forccedilas de poderonde falta a vontade de poder haacute decliacutenio Meu argumento eacute que a todosos supremos valores da humanidade falta essa vontade ndash que valores dedecliacutenio valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados(ACAC I sect6)
Como a citaccedilatildeo sugere na fase final de seu pensamento o filoacutesofo entende o
niilismo como a concomitacircncia de dois eventos a corrupccedilatildeo dos valores fundamentais e o
empobrecimento vital da espeacutecie o enfraquecimento da vontade de potecircncia Para
Nietzsche a vida como uma expressatildeo da vontade de potecircncia se constitui como luta
interminaacutevel por mais poder Por sua vez a afinidade a iacutentima relaccedilatildeo entre o niilismo e o
cristianismo enquanto filiados a um impulso para a piedade para a compaixatildeo denuncia
um certo cansaccedilo da espeacutecie que natildeo mais vecirc prazer na destruiccedilatildeo e como esta eacute apenas
uma face da criaccedilatildeo natildeo vecirc mais prazer na criaccedilatildeo propriamente Para a pergunta por que
os valores cristatildeos seriam valores niilistas Competiria responder porque nestes valores a
ambiccedilatildeo por poder eacute tomada como algo negativo Onde haacute vida haacute uma acumulaccedilatildeo de
poder onde falta o desejo dessa acumulaccedilatildeo falta a vida Corrupccedilatildeo decadecircncia e niilismo
estatildeo aqui vinculados a uma mesma ideia a destituiccedilatildeo de valor da vida Valores que
impossibilitam a vida satildeo tomados segundo essa leitura como valores niilistas e a estes eacute
atribuiacuteda a potecircncia corruptora por excelecircncia
O impulso para a piedade e agrave compaixatildeo comuns ao niilismo e ao cristianismo eacute
entendido por Nietzsche como impulso para a negaccedilatildeo de tudo que eacute afirmativo da vida
desde que vida mesma em sua leitura se opotildee agrave piedade O processo dinacircmico por ldquomais
poderrdquo se daacute em todas as formaccedilotildees de domiacutenio e o niilismo mesmo constitui apenas uma
ldquoparterdquo uma etapa do processo dinacircmico que caracteriza tudo aquilo que existe Como
162
tudo que existe ele apenas quer mais poder84 Assim o autor entende o niilismo como
movimento que confronta diretamente o apetite para o crescimento que eacute comum a tudo
que vive e que para Nietzsche na avaliaccedilatildeo segundo a moral da decadecircncia muitas vezes
se expressa na forma de crueldade
Nesse impulso para a morte na negaccedilatildeo da vida inerente a uma concepccedilatildeo cristatilde do
mundo estaria a justificativa para os ataques ferrenhos de Nietzsche ao cristianismo assim
como contra as pretensotildees da moral cristatilde a qual eacute vista na leitura nietzschiana como uma
tentativa de aprisionar o homem em valores ilusoriamente tomados como absolutos Com
base nessa concepccedilatildeo da moral cristatilde o filoacutesofo move sua genealogia como tentativa de
trazer agrave luz as negras raiacutezes dos ideais humanos Este procedimento mais do que
descortinar o caraacuteter ilusoacuterio das concepccedilotildees dogmaacuteticas eacute pensado como meio de tornar
vaacutelidas tambeacutem as demais criaccedilotildees humanas
Assim enquanto tendecircncia imobilizante a esta tendecircncia moral e epistemoloacutegica
estariam vinculados impulsos de morte O que aqui deve ser compreendido no sentido mais
amplo tanto quando diz respeito a um impulso para a verdade enquanto objetividade
entendida como a caracterizaccedilatildeo estaacutevel de uma realidade em movimento como quanto a
uma vontade de paz comum aos espiacuteritos religiosos Nesse sentido O Anticristo apresenta
os mais ferozes ataques de Nietzsche ao niilismo e a seus valores dos quais a compaixatildeo
destaca-se como elemento fundamental
Ousou-se chamar a compaixatildeo uma virtude (ndash em toda moral nobre eacuteconsiderada fraqueza ndash) foi-se mais longe fez-se dela a virtude o solo eorigem de todas as virtudes ndash apenas eacute verdade e natildeo se deve jamaisesquecer do ponto de vista de uma filosofia que era niilista queinscreveu no seu emblema a negaccedilatildeo da vida Schopenhauer estava certonisso atraveacutes da compaixatildeo a vida eacute negada tornada digna de negaccedilatildeo ndashcompaixatildeo eacute a praacutetica do niilismo (ACAC I sect7)
84 Ao fim e ao cabo a destruiccedilatildeo dos valores motivada pelo niilismo seria apenas uma expressatildeo danatureza que tem na destruiccedilatildeo de formas organizadas sua funccedilatildeo primordial por meio da qual obtecircm poderSegundo Giacoia ldquoUma formaccedilatildeo decadente eacute para Nietzsche uma Verkehtheit isto eacute uma totalidade postasob o impeacuterio de um movimento de inversatildeo de reversatildeo violenta de fins e propoacutesitos cujo ser e operarpotildeem em movimento a destruiccedilatildeo de uma determinada estrutura hierarquizada de forccedilas em relaccedilatildeo Estadestruiccedilatildeo eacute no entanto um lsquoevento natural do mundo orgacircnicorsquordquo (GIACOIA 1997 Paacuteg 21)
163
Por meio de uma anaacutelise genealoacutegica da compaixatildeo que teria se tornado um valor
fundamental tanto da filosofia quanto da moral de seus contemporacircneos o filoacutesofo nos
apresenta um processo de decadecircncia na passagem de uma moral nobre em que a
compaixatildeo era tomada como expressatildeo de fraqueza para a moral cristatilde85 Assim mais do
que uma virtude cristatildeo a compaixatildeo teria se tornado mesmo uma marca um sintoma dos
instintos desagregadores de sua eacutepoca
A compaixatildeo cristatilde eacute tomada aqui como expressatildeo de uma falta de higiene do
espiacuterito de modo que para Nietzsche ldquoNada eacute mais insalubre em meio a nossa insalubre
modernidade do que a compaixatildeo cristatilderdquo e seria necessaacuterio com relaccedilatildeo agrave compaixatildeo
cristatilde ldquoser meacutedico aqui ser inexoraacutevel aqui usar a faca ndash isso pertence a noacutes esse eacute nosso
modo de amor ao homem com isso noacutes somos filoacutesofos noacutes hiperboacutereosrdquo (ACAC I
sect7) Com isto o filoacutesofo pretendeu afirmar o verdadeiro papel do filoacutesofo na forma da
eterna inimizade para com a compaixatildeo como fundamento do valor Pois em sua leitura a
compaixatildeo estaria ligada de forma inseparaacutevel agrave decadecircncia
Repito esse instinto depressivo e contagioso entrava os instintos quetendem agrave conservaccedilatildeo e elevaccedilatildeo do valor da vida eacute um instrumentocapital na intensificaccedilatildeo da decadeacutence como um multiplicador damiseacuteria e como conservador de tudo que eacute miseraacutevel ndash a compaixatildeopersuade ao nadahellip Mas natildeo se diz ldquonadardquo diz-se ldquoaleacutemrdquo ou ldquoDeusrdquoou ldquoa verdadeira vidarsquo ou nirvana salvaccedilatildeo bem-aventuranccedilahellip Estainocente retoacuterica do acircmbito da idiossincrasia moral-religiosa parecemuito menos inocente quando se nota qual a tendecircncia que aiacute veste omanto das palavras sublimes a tendecircncia hostil agrave vida (ACAC I sect7)
O fato do autor enfatizar aqui a expressatildeo ldquoa verdadeira vidardquo natildeo eacute ocasional
como se pode perceber Esta expressatildeo carregaria um certo sentido teoloacutegico por traacutes do
qual se esconde um certo anseio pelo nada uacutenica realidade possiacutevel por traacutes da cortina dos
valores ensinados pela religiatildeo86 Por meio desta consideraccedilatildeo criacutetica do cristianismo
85 Conforme nota da seccedilatildeo anterior acerca da revoluccedilatildeo dos escravos na moral em Genealogia da Moralou seja da mudanccedila de paradigma dos valores morais constituidores da cultura romana para os valoresmorais cristatildeos originados no interior da cultura judaica86 Leia-se novamente o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[35]) em que o niilismo passivo eacute apresentadocomo uma divinizaccedilatildeo de tudo que eacute decadente atraveacutes da valorizaccedilatildeo exacerbada de tudo que ldquorefrescacura tranquiliza anestesiardquo que passa para o primeiro plano de consideraccedilatildeo humana sob ldquodisfarcesdiversosrdquo O fato do filoacutesofo referir-se ainda ao ldquoNirvanardquo indica a proximidade com que considera tanto ocristianismo quanto o budismo ambos como sendo posicionamentos niilistas que pregam sob os mais belos
164
apresentado como um subterfuacutegio por meio do qual inocular os valores do niilismo o autor
combate a crenccedila na sacralidade dos valores morais fundamentados pela religiatildeo cristatilde No
entanto cumpre salientar que o ataque ao cristianismo nestas reflexotildees natildeo seria o cerne
mas apenas uma consequecircncia do ataque ao niilismo
De que o ataque de Nietzsche ao cristianismo seria apenas a consequecircncia de um
ataque mais amplo a toda uma forma de consideraccedilatildeo da realidade o autor nos demonstra
em diversas passagens do anticristo em que associa cristianismo e budismo agrave mesma
tendecircncia negativa em relaccedilatildeo ao impulso para ser mais proacuteprio de tudo que vive Ou seja
a renuacutencia a este iacutempeto de criaccedilatildeo e expansatildeo teria como substrato uma tendecircncia mais
geral o niilismo propriamente como tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo Desta forma tendo em
vista esclarecer que sua criacutetica ao cristianismo assim como ao budismo tinha no niilismo
um alvo mais geral o autor afirma natildeo querer fazer injusticcedila a estas duas expressotildees
religiosas Isto mesmo quando considera que ldquoAmbas devem ser classificadas entre as
religiotildees niilistasrdquo e logo que ldquoambas satildeo religiotildees de decadecircnciardquo (ACAC I sect20)De
fato o autor ateacute demonstra certa afinidade com os princiacutepios do budismo sobretudo sua
epistemologia que assim como a concepccedilatildeo sustentada por Nietzsche seria ldquoum
fenomenismo estritordquo (ACAC I sect20)
Apesar de sua determinaccedilatildeo se dirigir ao niilismo e de ateacute mesmo demonstrar certa
admiraccedilatildeo pelo budismo87 Nietzsche deixa claro em O Anticristo que o instinto teoloacutegico
seria uma ameccedila subterracircnea agrave vida na medida em que de forma velada propagaria os
valores da negaccedilatildeo da realidade em prol de uma realidade inexistente Nesta leitura o
filoacutesofo considera toda virtude religiosa como uma maacutescara um simulacro para camuflar
os reais propoacutesitos da moral que seria a extinccedilatildeo da vida por meio da supressatildeo de suas
manifestaccedilotildees mais fortes mais sadias Com isso uma desvalorizaccedilatildeo de todo sentimento
de forccedila tem lugar e todo instinto de criaccedilatildeo eacute suplantado a partir do instinto teoloacutegico
Assim tambeacutem a compaixatildeo a virtude cristatilde por excelecircncia eacute vista como um disfarce por
nomes o desejo do nada87 O budismo via de regra eacute considerado por Nietzsche uma forma superior de niilismo passivo Seja emsua consideraccedilatildeo da epistemologia budista como um ldquofenomenismo estritordquo seja em sua consideraccedilatildeo assuas prescriccedilotildees bem ao gosto de Nietzsche como tendo uma prescriccedilatildeo de fundo higiecircnico Vida ao ar livreviagens todas formas de combater uma depressatildeo originada em uma profunda sensibilidade ao sofrimentoesta forma de niilismo exime-se das criacuteticas agudas que o filoacutesofo impotildee ao cristianismo e sua moral Nascomparaccedilotildees que o filoacutesofo apresenta entre o cristianismo e o budismo Nietzsche realccedila o caraacuteter meramenteobjetivo da consideraccedilatildeo budista do mundo que em oposiccedilatildeo ao cristianismo natildeo enfrenta uma luta entre obem e o mal na forma de uma luta contra o pecado
165
meio do qual o niilismo esconderia seu rosto doentio no manto dos valores cristatildeos Como
disfarce por meio do qual seriam inoculados os valores niilistas o instinto teoloacutegico se
expressaria por meio da feacute uma espeacutecie de maacute visatildeo para com a realidade
A este instinto de teoacutelogo eu faccedilo guerra encontrei sua pista em todaparte Quem possui sangue de teoacutelogo no corpo jaacute tem ante todas ascoisas uma atitude enviesada e desonesta O paacutethos que daiacute se desenvolvechama a si mesmo de feacute cerrar os olhos a si mesmo de uma vez portodas para natildeo sofrer da visatildeo da incuraacutevel falsidade Dessa defeituosaoacutetica em relaccedilatildeo agraves coisas a pessoa faz uma moral uma virtude umasantidade vincula a boa consciecircncia agrave falsa visatildeo ndash exige que nenhumaoutra oacutetica possa mais ter valor apoacutes tornar sacrossanta a sua proacutepriausando as palavras ldquoDeusrdquo ldquosalvaccedilatildeordquo ldquoeternidaderdquo (ACAC I sect9)88
Como uma maacute visatildeo para com a falsidade que se transveste de boa consciecircncia a feacute
se expressa como um fechar os olhos para todo defeituoso que se encontra a nosso alcance
Este fechar os olhos para todo defeituoso torna-se um defeito na oacutetica do instinto teoloacutegico
que ignora que a vida depende fundamentalmente de falsidades Do mesmo modo a vida
parece se fortalecer com base nessas falsidades ineliminaacuteveis Esta oacutetica da vida nesse
sentido se confundiria com a oacutetica humana a oacutetica dos valores humanos
Aqui Nietzsche retoma uma concepccedilatildeo que sustenta desde seu Ensaio sobre
Verdade e Mentira e que permanece no periacuteodo intermediaacuterio de sua obra A concepccedilatildeo
segundo a qual a vida depende fundamentalmente de certos erros para sua manutenccedilatildeo Por
outro lado agrave moral que se fundamenta na feacute nega esta caracteriacutestica fundamental da vida e
por isto se torna uma concepccedilatildeo niilista A esta moral niilista que eacute criada a partir dos
instintos teoloacutegicos estaria vinculada uma perspectiva defeituosa que estimula a natildeo
enxergar o defeituoso na existecircncia e que ao mesmo tempo deturpa o valor de outras
perspectivas A feacute agiria no sentido de fazer parecer toda outra perspectiva todo enxergar a
falsidade na realidade como moralmente defeituosa Esta deturpaccedilatildeo do valor de outras
oacuteticas seria propriamente o que se chama moral religiosa enquanto a negaccedilatildeo de toda
perspectiva que natildeo eacute tornada sacrossanta pela feacute ou seja que natildeo eacute contaminada pela
oacutetica defeituosa da feacute
88 Acompanhamos a traduccedilatildeo de David Jardim Juacutenior para a editora Nova Fronteira
166
Haacute que se pensar que a rejeiccedilatildeo nietzschiana dessa moral assim como da
perspectiva moral que lhe sustenta natildeo se relaciona com um problema teoloacutegico Natildeo
interessa ao filoacutesofo os problemas religiosos assim como a feacute mesma natildeo seria um
problema para o autor de O Anticristo No entanto enquanto parte de um movimento mais
amplo enquanto instrumento para a expansatildeo do niilismo esta perspectiva se torna algo a
ser criticado Importante nesse sentido compreender que a moral teoloacutegica natildeo respeita os
limites da mera religiatildeo se expandindo para diversas aacutereas da experiecircncia humana Motivo
pelo qual Nietzsche afirma encontrar este instinto teoloacutegico em todas as partes
Desencavei o instinto de teoacutelogo em toda parte eacute a mais disseminada aforma realmente subterracircnea de falsidade que existe na Terra O que umteoacutelogo percebe como verdadeiro tem de ser falso aiacute se tem quase queum criteacuterio da verdade Seu mais fundo instinto de conservaccedilatildeo proiacutebeque a realidade receba as honras ou mesmo assuma a palavra em algumponto Ateacute onde vai a influecircncia do teoacutelogo o julgamento de valor estaacute decabeccedila para baixo os conceitos de ldquoverdadeirordquo e ldquofalsordquo estatildeonecessariamente invertidos o que eacute mais prejudicial agrave vida chama-seldquoverdadeirordquo o que a realccedila eleva afirma justifica e faz triunfar chama-se ldquofalsordquohellip se acontece de os teoacutelogos atraveacutes da ldquoconsciecircnciardquo dospriacutencipes (ou dos povos ndash ) estenderem a matildeo para o poder natildeoduvidemos do que no fundo sempre se daacute a vontade de fim a vontadeniilista quer alcanccedilar o poder(ACAC I sect9)
A reflexatildeo que encontramos aqui entre a amplitude da esfera de atuaccedilatildeo dos
instintos teoloacutegicos e a questatildeo da verdade natildeo eacute acidental A radicalidade da criacutetica
nietzschiana a esta fragilidade fundamental da concepccedilatildeo teoloacutegica chega tatildeo longe a
ponto de quase tornar em princiacutepio de verdade a contraposiccedilatildeo agraves suas suposiccedilotildees
Nietzsche percebe na atuaccedilatildeo destes instintos a expansatildeo de uma moral niilista sob
diferentes aspectos da existecircncia humana que se tornam contaminados por um princiacutepio de
desvalorizaccedilatildeo que toma de assalto tudo o que interessaria agrave vida ser tomado como
verdadeiro Assim como uma maacute vontade para tudo que eacute defeituoso enquanto visatildeo
radicalmente contraacuteria aos elementos mais fundamentais de toda visatildeo a concepccedilatildeo
teoloacutegica da realidade distingue-se como visatildeo falsa por definiccedilatildeo Eacute contra esta forma de
maacute perspectiva que Nietzsche impotildee uma concepccedilatildeo de perspectividade de todo conhecer
167
Pois em sua leitura Nietzsche entende como verdadeiro tudo que se reconhece no caraacuteter
perspectivo relativo de toda concepccedilatildeo da realidade
Na leitura apresentada pelo autor a boa consciecircncia cristatilde que teria por base uma
visatildeo defeituosa seria profundamente marcada por uma incapacidade de perceber a
necessidade das perspectivas incapaz de atribuir valor a qualquer outra forma de ver
Assim a feacute nesta leitura seria a covarde negaccedilatildeo do caraacuteter aparente que eacute necessaacuterio agrave
existecircncia como negaccedilatildeo da falsidade inerente a toda forma de vida A suposiccedilatildeo de uma
perspectiva privilegiada proveniente da feacute seria assim um dos defeitos congecircnitos de toda
consideraccedilatildeo teoloacutegica da realidade
A compreensatildeo nietzschiana desta forma de considerar a realidade ao postular que
essa perspectiva limitativa tem sua origem em uma ldquovisatildeo defeituosardquo se associa em seu
pensamento agrave necessidade de se conceber uma forma de valorar que seja contraacuteria agrave loacutegica
do niilismo Em seu julgamento criacutetico o que torna a oacutetica teoloacutegica algo condenaacutevel seria
sua incapacidade em captar a falsidade como elemento fundamental da realidade Por outro
lado esta forma de se compreender as coisas eacute entendida como defeituosa porque lhe falta
o caraacuteter criativo inerente a todo olhar que se entende como um projetar o mundo a partir
de seu ponto de vista
A leitura nietzschiana do caraacuteter epistemoloacutegico da posiccedilatildeo teoloacutegica passa por uma
qualificaccedilatildeo do criteacuterio fisioloacutegico de verdade em contraposiccedilatildeo a uma caracterizaccedilatildeo
negativa dos valores morais Segundo esta leitura assim como a concepccedilatildeo teoloacutegica
constitui seus valores com base em uma atividade instintiva de negaccedilatildeo da vida tambeacutem
uma forma afirmativa de vida constitui seus valores atraveacutes da atuaccedilatildeo de seus instintos
Pois a potecircncia criativa que gera as perspectivas eacute vista pelo filoacutesofo como uma
manifestaccedilatildeo da proacutepria vontade por traacutes da realidade
O que a anaacutelise do instinto teoloacutegico nos ensina eacute que em um sentido fundamental
Nietzsche pensa que toda perspectiva parte de uma determinada configuraccedilatildeo instintual
Satildeo os instintos teoloacutegicos que orientam a formaccedilatildeo de uma moral niilista uma moral que
rejeita a realidade Dessa moral em outros termos desta primeira unidade de formaccedilatildeo de
valores surge a oacutetica que orienta os filoacutesofos metafiacutesicos a buscarem uma outra realidade
que natildeo a realidade das falsidades indispensaacuteveis agrave vida para fundamentar sua concepccedilatildeo
168
de verdade Nesse sentido a verdade mesma natildeo eacute tomada mais do que como um
indicativo de forccedila ou decadecircncia O valor mesmo recai natildeo sobre a veracidade da feacute mas
na configuraccedilatildeo de instintos que impulsiona a feacute em determinadas verdades
Estes instintos satildeo vistos por Nietzsche como manifestaccedilotildees de uma determinada
configuraccedilatildeo de forccedila Deste modo a criaccedilatildeo dos valores correspondente a uma atividade
instintual afirmativa em relaccedilatildeo agrave existecircncia dependeria tambeacutem de uma determinada
configuraccedilatildeo de forccedilas Em sua leitura os valores da moral teoloacutegica nunca satildeo tomados
como orientados para uma forma menos verdadeira de avaliaccedilatildeo da realidade Eles satildeo
considerados inferiores porque direcionados a uma forma de avaliar a vida que constrange
seu crescimento Do mesmo modo devemos supor que os valores criados a partir de uma
perspectiva afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida natildeo seriam mais verdadeiros do que os valores da
moral teoloacutegica No entanto enquanto guiados por uma oacutetica em que a falsidade da
realidade natildeo eacute ignorada estes valores seriam mais afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida
Se tomarmos estes valores como expressatildeo da verdade segundo as diferentes oacuteticas
em anaacutelise entatildeo chegaremos agrave conclusatildeo que o autor de Anticristo oferece uma anaacutelise de
seu valor sem levar em conta sua veracidade propriamente mas sua afinidade com as
exigecircncias da vida Em outras palavras importa mais ao autor o que se toma por
verdadeiro e o motivo pelo qual se toma isto por verdadeiro do que a verdade do que se
toma por verdadeiro Assim desde que ao fim aos valores criados nenhuma realidade
superior estaacute ligada tanto no caso da concepccedilatildeo teoloacutegica como no caso de uma concepccedilatildeo
afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida a veracidade em sentido tradicional natildeo importa para a
consideraccedilatildeo de sua validade
A liccedilatildeo que a anaacutelise dos valores teoloacutegicos nos ensina eacute que a oacutetica de onde uma
determinada moral eacute forjada eacute determinada por uma certa configuraccedilatildeo instintual que
determina seu valor Desde que o filoacutesofo entende que desde sempre nos movemos apenas
em meio a inverdades o fundamental seria caracterizar o valor destas inverdades para a
vida pois ldquoDe fato faz uma grande diferenccedila com que finalidade se mente se com isso
se conserva ou destroacuteirdquo (ACAC I sect58) Por outro lado ao cristianismo parece pertencer
um impulso para a negaccedilatildeo da realidade que nega inclusive esta negaccedilatildeo ela mesma ou
seja a moral cristatilde para o filoacutesofo parece fundamentar-se no esquecimento de seu valor
enquanto interpretaccedilatildeo
169
Na compreensatildeo nietzschiana nessa adoraccedilatildeo do aleacutem como uma doenccedila que se
propaga por meio da cultura o niilismo ameaccedila o futuro do homem na exata medida em
que os cientistas e filoacutesofos consideram avanccedilar em seu conhecimento do mundo O autor
sinaliza o avanccedilo desta concepccedilatildeo sobre as demais esferas da experiecircncia humana atraveacutes
de sua denuacutencia da confluecircncia da filosofia e da religiatildeo assim como no crescente apreccedilo
pela compaixatildeo como virtude uacuteltima na moral Esta compreensatildeo eacute vista por Nietzsche
como contraacuteria a tudo que era tomado como bom senso em filosofia ateacute Kant89 como
atesta o reconhecimento de ilustres pensadores anteriores a si como representantes
destacados da criacutetica agrave compaixatildeo
Atraveacutes dessa leitura todo impulso metafiacutesico eacute visto pelo filoacutesofo como tendecircncia
funesta impulso para o nada disfarccedilado de vontade de verdade Por esse motivo a vontade
de verdade estaria intrinsecamente associada agrave vontade de morte enquanto vontade de que
cesse o vir-a-ser da existecircncia Por outro lado o avanccedilo da concepccedilatildeo filosoacutefica que vecirc na
compaixatildeo a virtude moral por excelecircncia apresenta-se para Nietzsche como sintoma do
avanccedilo do proacuteprio niilismo que passa aos olhos desapercebidos dos filoacutesofos europeus na
figura do melhoramento do homem90
89 A opiniatildeo de Nietzsche acerca da moral kantiana eacute sujeita a alguma variaccedilatildeo no interior de sua obraEmbora aqui Kant apareccedila entre os filoacutesofos ilustres que antes de Nietzsche se contrapuseram agrave compaixatildeocomo virtude em O Anticristo Nietzsche reproduziraacute uma extensa criacutetica agrave moral kantiana a associando auma forma niilista de consideraccedilatildeo do mundo ldquoAlgumas palavras agora contra Kant como moralista Umavirtude tem de ser nossa invenccedilatildeo deve brotar de nossas necessidades naturais para nossa defesa Emqualquer outro caso eacute uma fonte de perigo Tudo que natildeo pertence agrave nossa vida a ameaccedila uma ldquovirtuderdquocomo Kant queria eacute perniciosa ldquoVirtuderdquo ldquodeverrdquo o ldquobem pelo bemrdquo a bondade baseada na impessoalidadeou em uma noccedilatildeo de validez universal ndash tudo isso natildeo passa de quimeras e nelas encontramos apenas umaexpressatildeo de decadecircncia o uacuteltimo colapso da vida o espiacuterito chinecircs de Koumlnigsberg Exatamente o contraacuterio eacuteexigido pelas mais profundas leis da autopreservaccedilatildeo e do desenvolvimento perceber que todo homemencontra sua proacutepria virtude o seu proacuteprio imperativo categoacuterico Uma naccedilatildeo se despedaccedila quandoconfunde o seu dever com o conceito geral de dever Nada provoca mais completo e pungente desastre doque todo dever ldquoimpessoalrdquo todo sacrifiacutecio diante do Moloc da abstraccedilatildeo Pensar-se que ningueacutem achou oimperativo categoacuterico de Kant perigoso para a vidahellip Somente o instinto teoloacutegico o tomou sob suaproteccedilatildeo ndash uma accedilatildeo motivada pelo instinto vital mostra-se uma accedilatildeo correta pela quantidade de prazer quetraz consigo no entanto aquele niilista com as suas entranhas de dogmatismo cristatildeo considera o prazercomo uma objeccedilatildeohelliprdquo (ACAC I sect11)90 No aforismo onze do segundo livro de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Nietzsche opotildee sua concepccedilatildeo de moralcomo obediecircncia aos instintos agrave concepccedilatildeo que equaciona felicidade com a obediecircncia agrave Razatildeo e que entendeo ensinamento da subserviecircncia agrave Razatildeo como uma forma de moral do aperfeiccediloamento Jaacute no livro seacutetimoda mesma obra intitulada Os ldquomelhoradores da humanidaderdquo o autor parte da compreensatildeo da inexistecircnciade ldquofatos moraisrdquo para qualifica a moral como uma maacute interpretaccedilatildeo de determinados fenocircmenos Nessesentido aquilo que os pregadores morais teriam realizado sob a prerrogativa de melhoramento dahumanidade apenas teria significado um amansamento uma debilitaccedilatildeo da forccedila inerente ao homem(GDCI VII sect2)
170
34 A morte de Deus como pressuposto da superaccedilatildeo do niilismo
Em um fragmento poacutestumo de 1885 ou 1886 que pertenceu aos planos para um
livro acerca do niilismo europeu (Der europaumlische Nihilismus)91 Nietzsche apresenta uma
reflexatildeo profunda acerca da emergecircncia do niilismo Nessa reflexatildeo o autor pensa que o
niilismo como consequecircncia de um processo em curso de desvalorizaccedilatildeo da realidade
estaria estreitamente relacionado ao fato de que nossa realidade natildeo pode ser desvinculada
de nossa oacutetica de avaliaccedilatildeo
Mais do que a mera desvalorizaccedilatildeo da realidade por conta de sua falsidade
estrutural o niilismo implicaria uma rejeiccedilatildeo do valor de tudo aquilo que natildeo pertenceria agrave
realidade de maneira certa e incorruptiacutevel Em outros termos tudo que eacute acrescentado agrave
realidade por meio da atividade humana eacute tomado em uma leitura niilista como
contaminaccedilatildeo Quase como se por meio de nossa interpretaccedilatildeo da realidade a
destituiacutessemos de valor por acrescentar a ela a limitaccedilatildeo caracteriacutestica de nossa oacutetica
Por outro lado segundo a compreensatildeo nietzschiana uma realidade tal como o
homem a venera em sua eternidade e veracidade natildeo teria valor para noacutes Pois tudo que
tem valor na realidade para o homem eacute produto de sua atividade de interpretaccedilatildeo Para noacutes
tem valor o mundo em que vivemos que criamos que somos Assim o filoacutesofo afirma
que ldquoOcasiona o seu ocaso a oposiccedilatildeo do mundo que noacutes veneramos do mundo em que
noacutes vivemos que noacutes somosrdquo (NFFP 1885 2[131])92 Com isso Nietzsche pretendia
assinalar que diante da eminecircncia de uma forma radical de niilismo teriacuteamos duas opccedilotildees
ou aboliriacuteamos nossa adoraccedilatildeo do mundo ideal ou de noacutes mesmos Segundo sua leitura a
segunda forma seria uma expressatildeo do niilismo cuja emergecircncia o autor considerava uma
certeza como expressatildeo do desenvolvimento do pessimismo inerente agrave valorizaccedilatildeo da
91 Extraiacutedo de (eKGWBNF-18852[131] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1885 mdash Herbst 1886)Exceto menccedilatildeo em contraacuterio para a traduccedilatildeo foram utilizadas as traduccedilotildees de Marco Antocircnio Casanova parao volume VI das traduccedilotildees dos fragmentos poacutestumos da editora Forense Universitaacuteria92 Segundo Araldi (ARALDI 1998 Paacutegs 77) esse aforismo pertence aos planos para elaboraccedilatildeo de A GaiaCiecircncia correspondendo ao aforismo 346 onde Nietzsche diz ldquoNatildeo caiacutemos exatamente com isso nasuspeita de uma oposiccedilatildeo uma oposiccedilatildeo entre o mundo no qual ateacute hoje nos sentiacuteamos em casa com nossasveneraccedilotildees ndash em virtude das quais talvez suportaacutessemos viver ndash e um outro mundo que somos noacutes mesmosnuma inexoraacutevel radical profunda suspeita acerca de noacutes mesmos que cada vez mais e de forma cada vezpior toma conta de noacutes europeus e facilmente poderia colocar as geraccedilotildees vindouras ante essa terriacutevelalternativa lsquoou suprimir suas veneraccedilotildees ou ndash a si mesmosrsquo esta seria niilismo mas aquela natildeo seria tambeacutemndash niilismo Eis a nossa interrogaccedilatildeordquo (FWGC V sect346)
171
realidade segundo os juiacutezos de valor cristatildeo que eram juiacutezos de valor moral baseado na
ldquovontade de verdaderdquo
O diagnoacutestico do filoacutesofo eacute claro se queremos superar o niilismo temos que
escolher entre uma realidade ideal e a realidade de nossas valoraccedilotildees a realidade em que
vivemos que noacutes somos Como forma de se contrapor ao niilismo restaria ao homem uma
valorizaccedilatildeo da realidade de nossas impressotildees como valor em si mesma Estas satildeo as
consequecircncias que se pode extrair das vaacuterias conclusotildees da filosofia nietzschiana acerca da
relaccedilatildeo entre a vida e a verdade Ou seja se nessa leitura a vida apenas pode prosperar no
que eacute perspetivo se a vida depende fundamentalmente de falsidade a realidade ideal seria
um siacutembolo para nossa extinccedilatildeo Assim ao homem interessaria sobretudo abrir matildeo de
uma realidade ideal em prol da realidade de suas proacuteprias avaliaccedilotildees
No entanto a ideia de uma realidade ideal apenas eacute operante na filosofia da
antiguidade Assim como uma forma de traduzir este problema para sua eacutepoca o filoacutesofo
converte a ideia de um colapso da realidade ideal na ideia da morte de Deus O Deus veraz
que eacute traduzido na filosofia moderna como o grande garantidor da verdade substitui na
filosofia contemporacircnea a ideia de uma realidade ideal Com o anuacutencio da morte de Deus
que aparece no fim do periacuteodo intermediaacuterio da obra nietzschiana93 o filoacutesofo identifica o
estado geral do homem moderno com a ausecircncia do valor supremo da vida considerado
ateacute entatildeo como uacutenica garantia de felicidade para o homem num aleacutem-mundo
A passagem em que a morte de Deus eacute revelada na obra nietzschiana de forma mais
expressiva e rica de sentido eacute o aforismo 125 de A Gaia Ciecircncia Nesta passagem que
ocupa um lugar estrateacutegico no livro trecircs daquela obra logo apoacutes o louvor do horizonte
aberto agraves novas descobertas e antes de uma seacuterie de explicaccedilotildees acerca das supersticcedilotildees
religiosas94 o autor nos potildee diante do evento decisivo da morte de Deus
93 Pela primeira vez em A Gaia Ciecircncia e novamente em Assim Falou Zaratustra94 Para efeito de compreensatildeo o tiacutetulo dos aforismos que se seguem ao 125 satildeo 126 Explicaccedilotildees miacutesticas127 Efeito posterior da antiga religiosidade 128 O valor da oraccedilatildeo 129 As condiccedilotildees para Deus 130 Umadecisatildeo perigosa breve reflexatildeo acerca do fato da decisatildeo cristatilde de achar o mundo feio e ruim que acaba portornar o mundo feio e ruim 131 o cristianismo e o suiciacutedio 132 contra o cristianismo e outros queapresentam sempre a ideia de uma criacutetica agraves crenccedilas religiosas inclusive agraves do cristianismo comosupersticcedilotildees mal fundadas Isto ateacute o 145 que apresenta uma variaccedilatildeo do tema na criacutetica ao vegetarianismoApoacutes este o autor apresenta uma criacutetica ao nacionalismo alematildeo e a seguir volta a atacar o cristianismo
172
O louco saltou no meio deles e os transpassou com os olhos ldquoOnde estaacuteDeus ele chorou eu quero te dizer Noacutes o matamos ndash vocecirc e eu Somostodos seus assassinos Mas como fizemos isso Como pudemos beber omar Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro O quefizemos ao desatar a terra do seu sol Onde eles estatildeo se movendo agoraPara onde vamos Longe de todos os soacuteis Natildeo estamos mergulhandocontinuamente Para traacutes para os lados para frente em todas asdireccedilotildees Existe ainda algum em cima ou para baixo Natildeo estamosvagando como que atraveacutes de um nada infinito Natildeo sentimos na pele osopro do vaacutecuo Natildeo ficou mais frio Natildeo permanece sempre a noite emais noite Natildeo se tem que acender lanternas de manhatilde Natildeo ouvimos obarulho da cova de Deus sendo cavada Natildeo sentimos o cheiro daputrefaccedilatildeo divina - Deuses tambeacutem decompotildeem-se Deus estaacute mortoDeus continua morto E noacutes o matamos Como havemos de nos consolaros assassinos de todos os assassinos O santo e mais poderoso que omundo ateacute entatildeo possuiacutea ele sangrou ateacute a morte em nossas facas - quemvai limpar o este sangue de noacutes Com que aacutegua poderiacuteamos nospurificar A expiaccedilatildeo que jogos sagrados teremos de inventar natildeo amagnitude desta obra muito grande para noacutes Natildeo devemos nos tornarDeuses simplesmente para aparecer digno Nunca houve uma maior accedilatildeondash e quem eacute nascido depois de noacutes pertence a este ato de amor de umamaior histoacuteria de toda a histoacuteria ateacute aqui (FWGC Livro III sect125)
O clima geral de duacutevida em torno do anuacutencio da morte de Deus parece tornar clara
a ideia fundamental de que com a extinccedilatildeo deste fundamento uacuteltimo da veracidade todo
posicionar-se eacute determinantemente abalado Por isso o texto faz menccedilatildeo agrave concepccedilotildees
cientiacuteficas como a ideia da gravitaccedilatildeo da terra em torno do sol o qual ainda se relaciona
com a concepccedilatildeo platocircnica de bem que eacute representada como o sol que ilumina a verdade
e portanto reforccedila a ideia de que o racionalismo da ciecircncia se relaciona com a crise da
verdade representada pela morte de Deus
Deus como siacutembolo de uma realidade ideal inexistente que chega a seu colapso na
filosofia Nietzscheana O que significa neste contexto que toda a busca por certezas ou a
vontade de verdade proacutepria da ciecircncia satildeo interpretados nessa leitura como oriundos de
um empreendimento desprovido de sentido Pois na medida em que o processo mesmo de
desenvolvimento das ciecircncias foi guiado por uma vontade de verdade sobretudo a partir do
seacuteculo XIX entatildeo o que condiciona seu desenvolvimento eacute uma loacutegica interna de auto-
supressatildeo Isto porque eacute o proacuteprio avanccedilo da moralidade cristatilde que condiciona esta
vontade de verdade Por sua vez o aacutepice do desenvolvimento desta moralidade cristatilde eacute a
consciecircncia da falta de sentido da proacutepria vontade de verdade Assim diante da
necessidade que a moralidade cristatilde ocasiona desta efetuar sua proacutepria criacutetica o colapso
173
do edifiacutecio teoacuterico criado pela racionalidade ocidental jaacute podia estar determinado desde a
fundaccedilatildeo de seus alicerces
Eacute a proacutepria exigecircncia de rigor da ciecircncia que eacute uma consequecircncia da moralidade
cristatilde presente neste empreendimento teoacuterico que gera as condiccedilotildees para o colapso de seu
fundamentos Este colapso tem sua expressatildeo mais clara na filosofia nietzschiana na ideia
da morte de Deus no colapso da proacutepria moralidade cristatilde por conta de suas proacuteprias
exigecircncias Por sua vez a ciecircncia que se deixa determinar por essa moralidade encontra
seu colapso no colapso da ideia de um fundamento uacuteltimo para a verdade representado
aqui na ideia de Deus
A destituiccedilatildeo de validade de um sistema de crenccedilas e conhecimento a ciecircncia
mesma perece por forccedila das contradiccedilotildees internas da moralidade a partir da qual se
desenvolveu Atinge seu ponto de validade mais baixo por determinaccedilatildeo de seus proacuteprios
fundamentos morais Ou seja na medida em que o mundo ideal pensado por Nietzsche
como sendo a proacutepria expressatildeo de nosso ponto mais baixo em termos de vitalidade
corresponderia em sua eacutepoca agrave ideia de Deus o filoacutesofo concebe a morte de Deus como
correlato agrave supressatildeo da realidade ideal De maneira que o ldquomaior de todos os eventosrdquo eacute
percebido em sua filosofia como evento marcante no processo de desenvolvimento do
niilismo
2) O cristianismo perecendo de sua moral ldquoDeus eacute a verdaderdquo ldquoDeus eacute oamorrdquo ldquoo Deus justordquo ndash o maior de todos os eventos ndash ldquoDeus estaacute mortordquondash sentido de maneira grosseira A tentativa alematilde de transformar ocris[tianismo] em uma gnose eacute recusada por uma desconfianccedila profundao ldquoinveriacutedicordquo aiacute eacute experimentado da maneira mais forte o possiacutevel(contra Schelling por exemplo) (NFFP 1885 2[131])
Nietzsche analisa a pouca influecircncia desse evento ainda em sua eacutepoca e concluiacute que
este evento ainda era sentido de forma grosseira em contraposiccedilatildeo por exemplo a uma
tentativa de se reorganizar o cristianismo decadente transformando-o em uma expressatildeo
da ciecircncia Em um outro fragmento poacutestumo de 1886 ou 188795 outro plano para o
trabalho intitulado O Niilismo Europeu Nietzsche reflete sobre o niilismo ativo e sua
95 Idem (eKGWBNF-18865[71]) mdash Nachgelassene Fragmente Sommer 1886 mdash Herbst 1887 citado nocapiacutetulo anterior paacuteg 138
174
expressatildeo na moral cristatilde Em sua leitura o fato dessa moral natildeo haver ocasionado um
aumento na indigecircncia ou seja uma intensificaccedilatildeo no empobrecimento intelectual da
Europa favorece sua crenccedila de que tal seria consequecircncia de uma alianccedila entre a
intelectualidade e a moral cristatilde Nesse sentido os eruditos como manifestaccedilotildees do
niilismo ativo teriam mesmo se utilizado dos artifiacutecios da moral cristatilde como meios para
sua conservaccedilatildeo
Estes fragmentos como se vecirc satildeo contemporacircneos ao periacuteodo de preparaccedilatildeo de A
Gaia Ciecircncia periacuteodo em que Nietzsche refletia fortemente acerca da morte de Deus e sua
relaccedilatildeo com o niilismo conceito que no entanto natildeo aparece nos livros anteriores ao livro
cinco daquela obra Assim uma anaacutelise daquele que considerava o maior de todos os
eventos pertencia aos seus planos de anaacutelise do fenocircmeno niilismo evento narrado ainda
nos primeiros livros daquela obra e que portanto haviam sido elaborados de forma
passiacutevel agrave publicaccedilatildeo antes de suas conclusotildees acerca do niilismo terem tomado uma
forma apresentaacutevel
Na medida em que o niilismo enquanto movimento histoacuterico de desvalorizaccedilatildeo
dos valores relaciona-se com o conceito de Deus enquanto fundamento uacuteltimo da
verdade o niilismo mais extremo adquire sentido positivo a partir da queda do uacuteltimo e
mais elevado dos valores que fundamentam a concepccedilatildeo filosoacutefica ocidental Para
Nietzsche o niilismo apenas se torna expressatildeo de um grande risco na Europa por conta
de sua associaccedilatildeo com os valores inerentes a uma concepccedilatildeo moral da realidade
notadamente sua concepccedilatildeo de um mundo do aleacutem apartado do mundo dos fenocircmenos No
entanto eacute esta mesma forma de moralidade que culminando no sentido de uma necessaacuteria
veracidade conduz ao colapso das consideraccedilotildees advindas da forma cristatilde de consideraccedilatildeo
da realidade como diz Araldi
A moral cristatilde eacute o evento determinante do Ocidente No cristianismo ainterpretaccedilatildeo moral da existecircncia e do mundo se impotildee em todo o seusignificado e com pretensatildeo absoluta de domiacutenio A vontade de verdadeou a ambiccedilatildeo metafiacutesica de certeza tem sua gecircnese jaacute em Soacutecrates ePlatatildeo mas eacute no cristianismo que ela desdobra a amplitude de seu sentidoe de seu caraacuteter problemaacutetico e ambiacuteguo A vontade de verdade quenasce da moral cristatilde volta-se contra a moral contra a necessidade dementira e falsificaccedilatildeo do mundo que ela comporta (ARALDI 1998Paacutegs 79)
175
A vontade de verdade impulsionada pela consideraccedilatildeo cristatilde da realidade aponta
para uma criacutetica da consideraccedilatildeo falsa do mundo que eacute inerente agrave moral cristatilde torna-se
eminente a crise da proacutepria concepccedilatildeo de veracidade e do fundamento uacuteltimo dessa
veracidade segundo uma consideraccedilatildeo moral cristatilde Nesse sentido o avanccedilo do niilismo
nos meios intelectuais da Europa estaria vinculado a outro evento histoacuterico de importacircncia
igualmente significativa a morte de Deus
A partir da aproximaccedilatildeo entre a moral cristatilde e o niilismo que eacute tiacutepica do uacuteltimo
periacuteodo de produccedilatildeo da filosofia nietzschiana o filoacutesofo concebe uma possibilidade de
superaccedilatildeo do niilismo no esgotamento vital da concepccedilatildeo cristatilde Com base na afirmaccedilatildeo de
Dostoieacutevski ldquoSe Deus natildeo existe tudo eacute permitidordquo96 Nietzsche vislumbra natildeo o terror do
relativismo moral que parece motivar o romancista russo mas a liberdade de atuaccedilatildeo
teoacuterica independente da necessidade de verdade da vontade de verdade proacutepria do
pensamento racionalista Eacute nesse sentido por exemplo que o filoacutesofo relaciona a ideia da
queda dos fundamentos da necessidade de se crer na verdade com a ideia de uma
liberdade de atuaccedilatildeo improacutepria de homens acostumados com os valores cristatildeos e com a
qual estes teriam entrado em contato pela primeira vez quando adentram os segredos da
seita oriental dos assassinos
Quando os cruzados cristatildeos no Oriente depararam com aquela invenciacutevelOrdem dos Assassinos aquela ordem de espiacuteritos livres par excellencecujos graus inferiores viviam numa obediecircncia que nenhuma ordemmonaacutestica alcanccedilou igual obtiveram de algum modo informaccedilatildeo sobreaquele siacutembolo e senha reservado aos graus superiores como seusecretum ldquoNada eacute verdadeiro tudo eacute permitido (GMGM III sect24)
As questotildees levantadas pela passagem em questatildeo dizem respeito ao verdadeiro
sentido de espiacuterito livre Se considerarmos verdadeiro o que Nietzsche nos diz nessa
passagem em contraposiccedilatildeo aos cientistas os membros da seita dos assassinos seriam
verdadeiros modelos de espiacuteritos livres Para o filoacutesofo isso se deveria sobretudo a sua
libertaccedilatildeo do uacuteltimo dos entraves ao espiacuterito a crenccedila na verdade A suprema sabedoria
96 Expressatildeo utilizada por Dostoieacutevski em sua famosa obra Irmatildeos Karamazov e que impactouprofundamente a reflexatildeo nietzschiana natildeo apenas em seu desenvolvimento da ideia da morte de Deus masainda na reflexatildeo em torno das consequecircncias morais da ausecircncia da crenccedila na verdade
176
expressa na renuacutencia de toda forma de verdade aparece nessa leitura como traccedilo
caracteriacutestico de uma vivecircncia da realidade superior a toda forma de sabedoria advinda do
meacutetodo cientiacutefico
A ecircnfase nietzschiana na expressatildeo ldquonada eacute verdadeiro tudo eacute permitidordquo eacute bastante
expressiva Ela atua no sentido de realccedilar uma revelaccedilatildeo fundamental uma sabedoria
superior reservada apenas aos graus mais elevados da seita dos assassinos Esta sabedoria
ganha sentido na contraposiccedilatildeo desta com aquilo que era considerado sabedoria pelos
autoproclamados uacuteltimos idealistas os cientistas de sua eacutepoca Se estes se consideravam
espiacuteritos livres na medida em que pensavam terem conquistado independecircncia para com
toda forma de dogmatismo o filoacutesofo lhes apresenta ainda uma uacuteltima crenccedila da qual
teriam esquecido de se desvencilhar Seria portanto a partir de sua compreensatildeo do que
significa ser um espiacuterito livre que Nietzsche descreve a distacircncia entre os cientistas e os
membros da seita dos assassinos
Diante da imagem dos membros da seita dos assassinos os quais se libertaram ateacute
mesmo da ideia de verdade algo que os cientistas estariam longe de alcanccedilar Nietzsche
estabelece como criteacuterio uacuteltimo de libertaccedilatildeo da metafiacutesica a renuacutencia da crenccedila na
verdade Eacute a partir da compreensatildeo de que os cientistas ao permanecerem presos agrave
verdade natildeo poderiam reclamar para si o tiacutetulo de espiacuteritos livres que eacute posta em duacutevida o
caraacuteter antimetafiacutesico e ateu da ciecircncia de sua eacutepoca Ao confrontar os cientistas modernos
com sua crenccedila na verdade a qual o autor relaciona como uma uacuteltima expressatildeo do
idealismo os pretensos espiacuteritos livres satildeo tomados como aqueles que natildeo compreendem
ateacute que ponto ainda permanecem presas de uma crenccedila ancestral na verdade Apesar de sua
profissatildeo de feacute contra a autoridade teoloacutegica
De modo geral sem ferir o sentido do texto nietzschiano podemos considerar que
nessa passagem Nietzsche efetua uma reformulaccedilatildeo da expressatildeo de Dostoieacutevski ao
substituir o termo ldquoDeusrdquo pelo termo ldquoverdaderdquo que para o autor poderia ser tomado como
uma traduccedilatildeo literal do sentido de Deus Com isso nos aproximamos da grande
significacircncia de sua concepccedilatildeo da morte de Deus que entendemos como querendo
significar principalmente crise da concepccedilatildeo de verdade A morte de Deus como aacutepice da
desvalorizaccedilatildeo da crenccedila em um mundo verdadeiro traz consigo o reconhecimento de que
a abdicaccedilatildeo da crenccedila na verdade traz de volta a liberdade de atuaccedilatildeo necessaacuteria aos
177
espiacuteritos livres Pois em sentido amplo a morte de Deus enquanto o maior evento da
histoacuteria humana leva consigo todas as certezas
Eacute assim por exemplo que Heidegger em sua avaliaccedilatildeo criacutetica da filosofia
nietzschiana interpreta a morte de Deus como um ponto central do niilismo nietzschiano
articulando este conceito com a ideia da caducidade do sentido97 Para o filoacutesofo em uma
leitura que privilegia a originalidade do pensamento nietzschiano e sua relaccedilatildeo com os
desdobramentos do niilismo esta concepccedilatildeo compreendida como momento histoacuterico
singular poderia mesmo ser resumida na expressatildeo nietzschiana ldquoDeus estaacute mortordquo que
marca um ponto de viragem entre o desenvolvimento posterior e a culminacircncia e extrema
significaccedilatildeo que o niilismo viria a obter no seacuteculo vindouro Para Heidegger se o Deus
Cristatildeo ocupa para a eacutepoca de Nietzsche o lugar de principal representaccedilatildeo do
suprassensiacutevel a denuacutencia da caducidade dessa representaccedilatildeo carrega o sentido de uma
crise na credibilidade do proacuteprio suprassensiacutevel que eacute o traccedilo fundamental do niilismo
Nietzsche emprega a palavra ldquoniilismordquo como o nome para o movimentohistoacuterico por ele reconhecido pela primeira vez que jaacute transpassava demaneira determinante os seacuteculos precedentes e que determina o seuproacuteximo seacuteculo um movimento cuja interpretaccedilatildeo essencial ele concentrana sentenccedila ldquoDeus estaacute mortordquo essa sentenccedila quer dizer o ldquoDeus cristatildeordquoperdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definiccedilatildeo do homem O ldquoDeuscristatildeordquo eacute ao mesmo tempo a representaccedilatildeo diretriz para oldquosuprassensiacutevelrdquo em geral e para as suas diversas interpretaccedilotildees para osideias e para as normas para os ldquoprinciacutepiosrdquo e as ldquoregrasrdquo para asldquofinalidadesrdquo e os ldquovaloresrdquo que satildeo erigidos ldquosobrerdquo o ente a fim de lheldquodarrdquo ao ente na totalidade uma meta uma ordem e ndash como se diz demaneira sucinta ndash um ldquosentidordquo Niilismo eacute aquele processo histoacuterico pormeio do qual o domiacutenio do ldquosuprassensiacutevelrdquo se torna nulo e caduco de talmodo que o ente mesmo perde o seu valor e o seu sentido Niilismo eacute ahistoacuteria do proacuteprio ente uma histoacuteria por meio da qual a morte do Deuscristatildeo vem agrave tona de maneira lenta mas irremediaacutevel (HEIDEGGER2014 Paacuteg 482)
Assim na leitura heideggeriana na medida em que Deus torna-se a fundamentaccedilatildeo
do mundo suprassensiacutevel o evento descomunal da morte de Deus significa que a validade
desta realidade caduca deixa de ser atuante Com isso o conceito de Deus que estaria no
97 As polecircmicas em torno da interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana satildeo bastante conhecidasNossa referencia agrave interpretaccedilatildeo de Heidegger natildeo significa uma adesatildeo irrestrita agrave suas posiccedilotildees mas oreconhecimento de que este eacute um autor que natildeo se pode desconsiderar ao propor-se uma interpretaccedilatildeo dopensamento nietzschiano No entanto a interpretaccedilatildeo heideggeriana da filosofia nietzschiana eacute tomada aquicom bastante cautela conforme jaacute antecipado na introduccedilatildeo deste trabalho
178
cerne das preocupaccedilotildees nietzschianas especialmente em relaccedilatildeo ao niilismo como a
culminacircncia e preparaccedilatildeo para a superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores
quer significar apenas a validade dos valores e do sentido Na interpretaccedilatildeo heideggeriana
o conceito do Deus cristatildeo que ocupa uma posiccedilatildeo central em relaccedilatildeo ao sentido como
norma como lei e como fundamento tem a significacircncia de um agregador de sentido
metafiacutesico Assim como o niilismo como consequecircncia da crenccedila na caducidade dos
valores e das normas significaria o colapso da crenccedila na validade da realidade
suprassensiacutevel que tem seu colapso traduzido na simples expressatildeo ldquoDeus estaacute mortordquo
Com o colapso da crenccedila na verdade que tem seu correlato na moral na crenccedila
cristatilde no Deus garantidor da verdade colapsaria todo o edifiacutecio de sentido da humanidade
que na eacutepoca de Nietzsche estaria fundado no suprassensiacutevel Ainda segundo Heidegger
este problema fundamental seria mesmo o problema nietzschiano por excelecircncia Do
mesmo modo o niilismo como movimento histoacuterico que conduz ao colapso da crenccedila na
verdade representada na figura do Deus cristatildeo seria o meio atraveacutes do qual a reflexatildeo
nietzschiana poderia se constituir em uma leitura acerca do sentido metafiacutesico da
existecircncia
Podemos discordar de Heidegger na medida em que natildeo identificamos na filosofia
nietzschiana a busca por um sentido metafiacutesico da existecircncia98 Ainda assim podemos
concordar com o filoacutesofo na concepccedilatildeo que toma a morte de Deus enquanto
acontecimento filosoacutefico como possuindo um lugar de proeminecircncia entre as conclusotildees
teoacutericas de Nietzsche Do mesmo modo compreendemos que Heidegger compreende bem
esta concepccedilatildeo quando a vincula ao problema do valor e de sua crise que se expressa na
obra nietzschiana na forma do niilismo
98 Sobre a questatildeo da influecircncia de Heidegger na interpretaccedilatildeo das concepccedilotildees nietzschianas do niilismo eda morte de Deus Claudemir Araldi esclarece na nota sete do artigo de que temos nos utilizado em nossainterpretaccedilatildeo ldquoHeidegger ressalta a importacircncia da questatildeo do niilismo no pensamento de Nietzsche ateacute oponto de afirmar lsquoSeu pensamento se vecirc sob o signo do niilismorsquo (Heidegger 5 p 178) O filoacutesofo daFloresta Negra entretanto procura levar a seacuterio Nietzsche como pensador metafiacutesico situando o niilismo nahistoacuteria metafisicamente determinada do Ocidente Criticando Nietzsche Heidegger diraacute que nihil emniilismo eacute um conceito de ser e natildeo de valor Visto que Nietzsche investiga o niilismo a partir da moralHeidegger distancia-se radicalmente do projeto nietzschiano pois remete agrave essecircncia do niilismo agrave Questatildeo doSer Apesar da distacircncia entre os projetos filosoacuteficos de Nietzsche e de Heidegger parece-nos pertinente ainterpretaccedilatildeo heideggeriana do niilismo como um processo fundamental (constituiacutedo de um advento de umdesenvolvimento e por sua superaccedilatildeo) que move a Histoacuteria do Ocidente A Morte de Deus eacute o eventofundamental nesse processo tendo como consequecircncias a ruiacutena do mundo supra-sensiacutevel e a derrocada dosvalores tradicionaisrdquo (ARALDI 1998 Paacutegs 91)
179
No entanto a restituiccedilatildeo do valor agrave esfera do ser que parece ser o ponto
fundamental da interpretaccedilatildeo de Heidegger ultrapassa em muito nossa interpretaccedilatildeo da
filosofia nietzschiana Em nossa compreensatildeo seria a partir de uma reconstruccedilatildeo teoacuterica
do avanccedilo da moral cristatilde em sua eacutepoca que Nietzsche traccedilaria uma iacutentima relaccedilatildeo entre o
aspecto histoacuterico do niilismo e a questatildeo da perspectiva da genealogia dos valores morais99
Nesse sentido em sua leitura da histoacuteria do surgimento e superaccedilatildeo do niilismo
tanto o racionalismo socraacutetico quanto a fundamentaccedilatildeo da crenccedila cristatildeo ocupam lugar
privilegiado na constituiccedilatildeo de uma realidade suprassensiacutevel em que eacute depositada toda a
crenccedila e todos os valores da humanidade100 A morte de Deus seria vista nessa leitura como
uma etapa do processo de negatividade instaurado pela proacutepria loacutegica do niilismo processo
que tem seu fechamento e conclusatildeo jaacute preacute-determinado desde sua origem na criaccedilatildeo do
mundo ideal o qual Nietzsche localiza no racionalismo socraacutetico
Dessa forma o anuacutencio da morte de Deus constitui um dos aspectos de suma
importacircncia no desenvolvimento da dinacircmica proacutepria do niilismo explicitada por
Nietzsche na medida em que aqui se daria o ponto de ruptura em que o niilismo
engendraria a partir de seu progresso sua proacutepria superaccedilatildeo Atraveacutes do processo de
internalizaccedilatildeo da veracidade em seus valores fundamentais o cristianismo teria
possibilitado a tomada de consciecircncia dos paradoxos envolvidos na proacutepria crenccedila na
verdade Assim a morte de Deus representaria a tomada de consciecircncia da derrocada da
metafiacutesica na medida em que potildee abaixo sua pretensatildeo de verdade a validade das
verdades eternas e inalcanccedilaacuteveis ao homem em sua vivecircncia material O conceito de Deus
o fundamento uacuteltimo da verdade para a metafiacutesica que desde Platatildeo faz sua entrada no
reino das preocupaccedilotildees filosoacuteficas por meio da categoria de bem101 colapsa diante do
avanccedilo de uma tendecircncia de desvalorizaccedilatildeo de todos os valores que eacute impulsionada pela
crenccedila da filosofia em encontrar a verdade objetiva em uma realidade extrafenomecircnica
99 Ainda conforme Araldi sobre a relaccedilatildeo entre a histoacuteria de desenvolvimento do niilismo e sua relaccedilatildeo coma moral cristatilde ldquoEacute a partir da histoacuteria da moral que o filoacutesofo procuraraacute caracterizar e validarmetodologicamente as diversas formas de niilismo Ou seja o niilismo foi cunhado na obra de Nietzsche apartir da investigaccedilatildeo da moral da qual resulta a elaboraccedilatildeo de um novo meacutetodo de anaacutelise da moral oprocedimento genealoacutegicordquo (ARALDI 1998 Paacutegs 78)100 A histoacuteria de um erro a faacutebula nietzschiana expressa em Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da origem ecolapso da ideia de uma realidade ideal ou mundo verdadeiro pode ser lida em consonacircncia com estainterpretaccedilatildeo de onde se entende em que sentido a morte de Deus pode ser lida como um ponto de viragemem relaccedilatildeo agrave mentira de dois mil anos da idealidade de uma realidade apartada da realidade das perspectivas101 Conforme nota 73 ainda nesse capiacutetulo
180
Em outras palavras Nietzsche entende a concepccedilatildeo concebida no interior do
racionalismo socraacutetico como a imagem da verdade no mundo das ideias como um
ancestral da ideia de Deus que teria sido mais tarde reelaborada pelo cristianismo atraveacutes
da vinculaccedilatildeo da existecircncia de uma verdade com a existecircncia de um fundamento da
verdade Isto porque se Platatildeo compreendeu o conceito de bem como uma ideia divina
como o sol que iluminava todas as verdades este conceito moral e epistemoloacutegico encontra
na modernidade na figura do Deus cristatildeo sua uacuteltima apariccedilatildeo Nesse sentido enquanto
sustentada pelo Deus extraterreno garantidor absoluto da verdade a verdade mesma teria
se tornado divina
Na medida em que a leitura nietzschiana encontra no racionalismo socraacutetico a
origem do processo de desenvolvimento do niilismo identifica no conceito de bem de
Platatildeo uma crenccedila que embora natildeo tivesse na antiguidade o mesmo papel que Deus na sua
eacutepoca esta estreitamente relacionada com a ideia de fundamentaccedilatildeo extraterrena da
verdade Do mesmo modo o supremo geocircmetra concebido pelos modernos como aquele
que garante a validade das verdades eternas desde que as caracteriacutesticas de clareza e
distinccedilatildeo natildeo nos possibilitariam discernir o que eacute real do que eacute sonho sem que a
existecircncia do Deus veraz nos fosse necessaacuteria Com isso tem-se a origem e deslocamento
de uma crenccedila fundamental na idealidade dos valores que se reinventa atraveacutes da histoacuteria
e que ocupa na imagem do Deus cristatildeo seu uacuteltimo desenvolvimento
Do ponto de vista da filosofia nietzschiana no entanto o ponto fundamental do
anuacutencio da morte de Deus seria a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores que aparece
como consequecircncia do vaacutecuo criado pelo colapso do sistema moral cientiacutefico ancorado na
ideia de uma realidade ideal Podemos portanto relacionar a morte de Deus enquanto
correlata da morte da verdade com uma representaccedilatildeo do fim das limitaccedilotildees que o proacuteprio
homem se havia imposto Assim quando renuncia agrave crenccedila em uma realidade ideal
inexistente o homem se torna apto a criar sua proacutepria realidade Mais do que isso sua
avaliaccedilatildeo dessa realidade criada da realidade de suas valoraccedilotildees natildeo sofre mais o
constrangimento de uma realidade ideal inexistente com a qual pudesse ser comparada
Nesse sentido a morte de Deus enquanto colapso da seguranccedila do fundamento
significaria a abertura de possibilidades novas de criaccedilatildeo que adveacutem do abandono das
certezas fundamentadas no nada
181
Com a morte de Deus abrem-se caminhos novos nunca trilhados102 E seria
sobretudo por isso que o anuacutencio da morte Deus ocupa o lugar que ocupa em A Gaia
Ciecircncia Pois o anuacutencio da morte de Deus nos revela que haacute um vazio no ponto de
estimaccedilatildeo ideal nada nos constrange a tomar como valiosas nossas proacuteprias estimaccedilotildees
Assim surge a possibilidade do abandono da necessidade de uma escala superior de
avaliaccedilatildeo Motivo porque tambeacutem a ideia da coragem para criar associada agrave ideia de
lanccedilar-se em novos mares eacute constantemente retomada por Nietzsche em A Gaia Ciecircncia
como um convite para a alegre criaccedilatildeo de sentido que se torna possiacutevel apenas quando
abrimos matildeo das certezas que satildeo aqui representadas na imagem de velhos portos Assim
no aforismo anterior ao citado acima o filoacutesofo anuncia
No horizonte do infinito ndash Deixamos a terra firme e embarcamosQueimamos a ponte ndash mais ainda cortamos todo laccedilo com a terra queficou para traacutes Agora tenha cautela pequeno barco Junto a vocecirc estaacute ooceano eacute verdade que ele nem sempre ruge e agraves vezes se estende comoseda e ouro e devaneio de bondade Mas viratildeo momentos em que vocecircperceberaacute que ele eacute infinito e que natildeo haacute coisa mais terriacutevel que ainfinitude Oh pobre paacutessaro que se sentiu livre e agora se bate nasparedes dessa gaiola Ai de vocecirc se for acometido de saudade da terracomo se laacute tivesse havido mais liberdade ndash e jaacute natildeo existe mais terra(FWGC III sect124)
Aqui anuncia-se um aspecto fundamental do posterior desenvolvimento do niilismo
nietzschiano na aproximaccedilatildeo da necessidade de se libertar de um ponto de vitalidade baixo
com relaccedilatildeo agrave necessidade de se lanccedilar ao sem sentido para criar O anuacutencio da morte de
Deus nos diz que o homem precisa se livrar do medo do desconhecido apresentado pelo
autor como primeira consequecircncia do advento da queda dos fundamentos Eacute este medo que
se torna para o homem liberto das amarras de uma existecircncia ideal o uacutenico impedimento
para sua auto-exultaccedilatildeo Sendo assim a partir da morte de Deus o homem precisa
acostumar-se com a ausecircncia de terra firme conceitos estaacuteveis verdades absolutas pelos
quais se guiar Para ele natildeo haacute mais porto seguro possiacutevel de modo que se pode desconfiar
que aqui a humanidade se encontraria em pior estado do que quando gozava confiante da
102 Se por um lado eacute inquestionaacutevel que a imagem do mar de possibilidades que se abre com o anuacutencio damorte de Deus tem uma significaccedilatildeo moral na obra nietzschiana por outro lado esta imagem comporta aindauma significaccedilatildeo epistemoloacutegica Esta significaccedilatildeo eacute perceptiacutevel na anaacutelise do conjunto do livro em que oaforismo em questatildeo se insere Dentre estes aforismos deve ser destacado o importante aforismo 354 em queNietzsche trata de seu perspectivismo
182
ilusatildeo das verdades permanentes como se naquelas houvesse mais liberdade Nisso tudo se
passa como no estaacutegio passivo do niilismo
Poreacutem a indecisatildeo natildeo poderia durar para sempre e o proacuteprio Nietzsche parece
avanccedilar em seu otimismo na medida em que passa a refletir acerca das possibilidades
abertas pelo colapso da realidade ideal Assim quando o filoacutesofo retomar a ideia da morte
de Deus no livro cinco da mesma obra escrito quase cinco anos apoacutes o livro trecircs103 esta
ideia jaacute estaraacute claramente relacionada agrave ideia de liberdade de criaccedilatildeo tanto na esfera dos
valores quanto na esfera da investigaccedilatildeo teoacuterica No aforismo 343 de A Gaia Ciecircncia o
autor mostrasse cheio de esperanccedilas para com o futuro do homem quando consegue
absorver os efeitos do grande evento da morte de Deus Nessa passagem o autor reflete
sobre as primeiras consequecircncias do anuacutencio da morte de Deus que lanccedila suas ldquoprimeiras
sombras sobre a Europardquo e chega agrave conclusatildeo de que ao menos para os espiacuteritos livres os
poucos corajosos e desejosos o suficiente para ainda criar a morte de Deus representa uma
libertaccedilatildeo a promessa de novos mares abertos
O sentido de nossa jovialidade - O maior acontecimentos recentes- O fato de que ldquoDeus estaacute mortordquo de que a crenccedila no Deus cristatildeoperdeu o creacutedito ndash jaacute comeccedila a lanccedilar suas primeiras sombras sobre aEuropa Ao menos para aqueles poucos cujo olhar cuja suspeita no olhareacute forte e refinada o bastante para esse espetaacuteculo algum sol parece ter seposto alguma velha e profunda confianccedila parece ter se transformado emduacutevida para eles nosso velho mundo deve aparecer cada dia maiscrepuscular mais desconfiado mais estranho ldquomais velhordquo (hellip) De fatonoacutes filoacutesofos e ldquoespiacuteritos livresrdquo ante a notiacutecia de que ldquoo velho Deusmorreurdquo nos sentimos como iluminados por uma nova aurora nossocoraccedilatildeo transborda de gratidatildeo espanto pressentimento expectativa mdashenfim o horizonte nos aparece novamente livre embora natildeo esteja limpoenfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todoperigo novamente eacute permitida toda a ousadia de quem busca oconhecimento o mar o nosso mar estaacute novamente aberto eprovavelmente nunca houve tanto ldquomar abertordquo (FWGC Livro Vsect343)
Na medida em que o autor identifica os filoacutesofos e os espiacuteritos livres como aqueles
que vislumbram com otimismo ldquogratidatildeo espanto pressentimento expectativardquo o grande
evento da morte de Deus qualifica estes como aqueles capazes de mesmo diante da
103 A Gaia Ciecircncia foi redigida por Nietzsche em trecircs momentos distintos primeiramente em 1881 o quartolivro em 1882 e recebe um novo prefaacutecio e o quinto livro em 1886
183
evidecircncia da mais completa cataacutestrofe experimentada pelo gecircnero humano se lanccedilar agrave
criaccedilatildeo A estes no entanto o filoacutesofo contrasta os entristecidos pelo escurecimento pelo
obscurecimento do proacuteprio sol novamente em uma referecircncia clara agrave antiga concepccedilatildeo
platocircnica do bem Com isso o autor nos apresenta a dualidade do evento da morte de Deus
que por sua vez nos remete agrave jaacute referida ambiguidade do niilismo
Partindo da distinccedilatildeo entre o niilismo passivo e o niilismo ativo podemos
representar dois momentos apresentados em A Gaia Ciecircncia como consequecircncias da morte
de Deus Em uma analogia direta entre a forma como o niilismo ativo se distingue do
niilismo passivo poderiacuteamos dizer que a ideia de que a falta de sentido apresentada aqui
por meio da imagem do novo infinito do mar aberto condiciona duas formas de encarar o
evento da morte de Deus simboliza a possibilidade de superaccedilatildeo da inaccedilatildeo por meio de
uma atitude afirmativa diante da responsabilidade pela criaccedilatildeo
A queda dos fundamentos simbolizada aqui pelo evento da morte de Deus eacute
apresentada como evento ainda incerto que divide a humanidade em dois tipos diferentes
reconhecidos na histoacuteria do conhecimento atraveacutes de duas atitudes opostas diametralmente
Se por um lado a queda dos fundamentos representa para o filoacutesofo da tradiccedilatildeo o fim do
conhecimento e desespero das ciecircncias para os espiacuteritos livres os filoacutesofos do futuro tal
acontecimento representa a afirmaccedilatildeo de ldquotoda ousadia do conhecedorrdquo que agora pode se
lanccedilar sobre um mar de possibilidades Assim em um aforismo do livro cinco de A Gaia
Ciecircncia o filoacutesofo retoma a questatildeo das novas possibilidades de criaccedilatildeo abertas com a
mote de Deus
O mundo tornou-se novamente ldquoinfinitordquo para noacutes na medida em que natildeopodemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitasinterpretaccedilotildees Mais uma vez nos acomete o grande tremor mdash mas quemteria vontade de imediatamente divinizar de novo agrave maneira antiga essemonstruoso mundo desconhecido E passar a adorar o desconhecidocomo ldquoo ser desconhecidordquo Ah estatildeo incluiacutedas demasiadaspossibilidades natildeo divinas de interpretaccedilatildeo nesse desconhecidodemasiada diabrura estupidez tolice de interpretaccedilatildeo mdasha nossa proacutepriahumana demasiado humana que bem conhecemoshellip (FWGC Livro Vsect374)
184
Nesse aforismo em que Nietzsche reflete acerca da pluralidade de perspectivas
inerentes agrave nova forma de contemplar a realidade a partir da morte de Deus surge a
afirmaccedilatildeo do nosso novo infinito de possibilidade de criar e o temor advindo dessa
possibilidade que surge como consequecircncia da exposiccedilatildeo dos perigos agenciados pela
morte de Deus A afirmaccedilatildeo do caraacuteter perspectivo da existecircncia inerente a uma forma de
conceber a realidade que se liberta das certezas fundamentadas na concepccedilatildeo tradicional de
verdade representa a antecipaccedilatildeo do problema fundamental do conflito entre o niilismo o
pessimismo da existecircncia e a proacutepria perspectiva o caraacuteter mais imediato da existecircncia
Em sua leitura do avanccedilo do niilismo como vimos em seccedilotildees anteriores a postura
eminentemente antiniilista de conceber a verdade eacute sempre representada por meio da
referecircncia ao perspectivo ao ponto de vista agrave acuidade do olhar Estas satildeo sempre formas
de interpretar que o autor apontaraacute em oposiccedilatildeo ao racionalismo socraacutetico e ao
cristianismo com o intuito de demarcar a diferenccedila essencial entre os ideais regidos pela
negatividade e a concepccedilatildeo afirmativa da existecircncia Assim a morte de Deus tal como
Nietzsche parece entender este pensamento profundo surge aqui como uma completa
compreensatildeo da ausecircncia de sentido da vida do homem a partir da qual surge na vacacircncia
do trono divino a possibilidade do proacuteprio homem ocupar o lugar de significaccedilatildeo maacutexima
que eacute representada na possibilidade de se divinizar perspectivas
Aleacutem do Deus cristatildeo no entanto tambeacutem outros iacutedolos necessitam ser demolidos
Entre eles os princiacutepios da moral todos eles entendidos na leitura nietzschiana como
estando fundados na crenccedila em uma realidade suprassensiacutevel Ou seja todo princiacutepio
considerado aqui como reminiscecircncia das ideias platocircnicas como formas de valores
superiores ateacute entatildeo Assim em obras posteriores em que o niilismo eacute tratado por
Nietzsche em maior profundidade tais como Para Aleacutem de Bem e Mal Para a Genealogia
da Moral e O Anticristo assim como nos fragmentos contemporacircneos a estas haacute a
indicaccedilatildeo de sintomas pelos quais o acontecimento da morte de Deus e suas consequecircncias
para o futuro do homem satildeo retratadas como o resultado de uma profunda crise
Partindo de uma concepccedilatildeo afirmativa advinda do panorama aberto pela morte de
Deus o filoacutesofo concebe a possibilidade de superaccedilatildeo do niilismo que eacute marcado pela
crenccedila nas verdades fundamentadas na ideia de bem Assim pode-se afirmar que na
terceira fase da obra nietzschiana o filoacutesofo estaria de posse de tudo que eacute fundamental
185
para a proposiccedilatildeo de uma soluccedilatildeo para o problema do niilismo assim como das possiacuteveis
vias de superaccedilatildeo no pensamento dogmaacutetico
35 O niilismo como fundamento de um modo divino de pensar
Entre os comentaacuterios do pensamento nietzschiano com frequecircncia nos deparamos
com um tratamento eminentemente criacutetico do sentido de niilismo na obra deste autor Por
estas leituras serem tratadas como uma reflexatildeo acerca dos valores e sua corrupccedilatildeo por
desprezar o aspecto deleteacuterio desse conceito em relaccedilatildeo aos valores epistemoloacutegicos a
anaacutelise do niilismo suportada nestas leituras acaba por mostrar-se uma leitura parcial
Assim na medida em que o niilismo eacute contemplado nestes comentaacuterios exclusivamente
com base em sua implicaccedilatildeo criacutetica enquanto processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores a
ele logo eacute associada a criacutetica nietzschiana agrave moral
Por outro lado um exame atento dos textos nietzschianos demonstraria a forma
como o filoacutesofo relaciona a corrupccedilatildeo dos valores morais com a corrupccedilatildeo dos princiacutepios
epistemoloacutegicos Pois o autor reconhece na concepccedilatildeo tradicional de verdade assim como
a submissatildeo cega da ciecircncia a esta concepccedilatildeo traccedilos de uma moral niilista Uma leitura
neste sentido propiciaria uma interpretaccedilatildeo segundo a qual a desconfianccedila nietzschiana
para com os fundamentos morais da concepccedilatildeo tradicional de verdade acaba por despertar
no filoacutesofo a necessidade de repensar o valor do conhecimento posto que considera que
este teria se enredado com uma vontade de verdade estranha aos fundamentos da proacutepria
vida
Se por um lado o niilismo nietzschiano eacute concebido como a loacutegica de corrupccedilatildeo
dos valores por outro percebe-se que o autor pensa essa desvalorizaccedilatildeo como atingindo
tambeacutem o acircmbito do conhecimento Nesta leitura se Nietzsche rejeita as concepccedilotildees
tradicionais de verdade e conhecimento tal se daria porque reconhece nestas concepccedilotildees
elementos constitutivos de uma vontade de verdade que para o filoacutesofo seriam expressatildeo
de uma moral decadente Tendo em vista a superaccedilatildeo desta moral decadente Nietzsche
contrapotildee agrave concepccedilatildeo tradicional de ciecircncia uma concepccedilatildeo de conhecimento pensada em
186
conformidade com os preceitos da vida Por sua vez em sua explicitaccedilatildeo dos preceitos
internos agrave proacutepria vida o filoacutesofo se utiliza da categoria de vontade de potecircncia uma
interpretaccedilatildeo da realidade em sua loacutegica interna que viabilizaria uma concepccedilatildeo de
conhecimento afeita aos princiacutepios da proacutepria vida
Tendo em vista a superaccedilatildeo do niilismo Nietzsche expotildee a loacutegica de
desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes de um procedimento genealoacutegico chegando a uma
forma de niilismo em que as verdades eternas mesmas concepccedilatildeo que desencadeia o
processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores eacute reconhecida como uma concepccedilatildeo sem valor Se
eacute a proacutepria concepccedilatildeo da realidade ideal que confere ao niilismo sua limitaccedilatildeo na medida
que as exigecircncias da concepccedilatildeo de verdade inerente a essa criaccedilatildeo deve culminar em um
exame das concepccedilotildees cientiacuteficas morais e filosoacuteficas que delas eacute dependente entatildeo o
advento do niilismo prepara as condiccedilotildees do surgimento desenvolvimento e queda dos
valores supremos segundo uma dinacircmica de autossuperaccedilatildeo (Selbstaufhebung) dos valores
ideais104
A anaacutelise genealoacutegica do niilismo conduz agrave identificaccedilatildeo de uma dinacircmica de
desvalorizaccedilatildeo dos valores superiores que potildee em riso a existecircncia humana na medida em
que esta existecircncia apenas pode se dar com base em uma avaliaccedilatildeo segundo uma hierarquia
de dominaccedilatildeo e subjugaccedilatildeo Por sua vez a consideraccedilatildeo do aspecto ativo do niilismo
dentro da dinacircmica de desenvolvimento interna ao niilismo conduz agrave compreensatildeo de que
a destituiccedilatildeo dos valores apesar de atuar de forma debilitante em algumas naturezas
conduzindo ao niilismo passivo e consequentemente agrave criaccedilatildeo de valores morais
decadentes pode ser considerado do ponto de vista de naturezas melhores condicionadas
104 Na leitura heideggeriana toda forma de conceber a realidade segundo princiacutepios enquanto forma deordenamento de comando constitui seus valores e eacute portanto uma forma de moral uma metafiacutesica dosvalores Nesse sentido se Heidegger pensa que toda filosofia posterior a Platatildeo eacute uma concepccedilatildeo metafiacutesicana medida em que pensa o ente a partir de valores dados ou seja se ldquoNesse entendimento toda a filosofiadesde Platatildeo se transforma em uma metafiacutesica dos valoresrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 652) entatildeo tambeacutem afilosofia nietzschiana poderia ser compreendida como uma metafiacutesica dos valores Assim na leituraheideggeriana o confronto de Nietzsche com a metafiacutesica platocircnica faz da filosofia nietzschiana uma formainvertida de platonismo e desse modo ainda uma especulaccedilatildeo metafiacutesica da realidade Ao contrapor-se aessa tese heideggeriana fundamental Scarlett Marton procura analisar a filosofia nietzschiana como umprojeto de filosofia da natureza uma cosmologia em sentido similar agravequele dos filoacutesofos preacute-socraacuteticosNeste sentido a radicalidade da filosofia nietzschiana ldquonatildeo residiria na tentativa de levar a metafiacutesica ateacutesuas uacuteltimas consequecircncias [Heidegger] nem no ensaio de inaugurar novas teacutecnicas de interpretaccedilatildeo[Foucault]rdquo (MARTON 1990 p 13) mas na tentativa de reduzir todos os processos de formaccedilatildeo de valor auma instacircncia especiacutefica a vontade de potecircncia que apoiada em dados cientiacuteficos deve constituir a basedesta cosmologia
187
tornando-se niilismo ativo e conduzindo a uma compreensatildeo interpretativa da realidade
Ou como nos diz Claudemir Araldi
A compreensatildeo nietzschiana da moral como a ldquoteoria das relaccedilotildees dedominaccedilatildeo sob as quais se origina o fenocircmeno lsquovidarsquordquo (JGBBM sect19)implica na admissatildeo da ambiguumlidade do termo a moral pode engendrarum povo e indiviacuteduos superiores ou pode levar agrave decadecircncia dependendode qual fonte os valores satildeo criados da vida afirmativa ou da vida doenteAo examinar a preacute-histoacuteria da moral o periacuteodo da eticidade dos costumes(die Sittlichkeit der Sitte) Nietzsche constata que o processo da eticidadedos costumes tem como termo o indiviacuteduo soberano (das souveraineIndividuum) autocircnomo e extra-moral que por fim se liberta da coaccedilatildeo edos deveres morais a que estava vinculado (GMGM II 2))Compreendida desse modo a moral eacute condiccedilatildeo necessaacuteria para aautodisciplina e auto-superaccedilatildeo do homem (ARALDI 1998 Paacutegs 79)
Segundo a dinacircmica proacutepria desse movimento tal como Nietzsche a descortina o
niilismo ativo do qual surge a possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria sua
radicalizaccedilatildeo na emergecircncia de uma forma de niilismo extremado em que os proacuteprios
princiacutepios da dinacircmica do niilismo satildeo questionados Com a emergecircncia dessa forma de
niilismo extremo que levaria a termo as potencialidades do niilismo ativo uma tendecircncia a
um perecer para tudo aquilo que fenece uma vontade de nada para tudo aquilo que anseia
pelo fim eacute posta em praacutetica por meio da negaccedilatildeo da proacutepria concepccedilatildeo de uma verdade em
si105 que culmina com o grande evento da morte de Deus
De maneira geral o processo histoacuterico de desenvolvimento e radicalizaccedilatildeo do
niilismo eacute concebido por Nietzsche como algo que apenas pode ser conduzido a termo por
meio de sua vivecircncia ateacute o fim atraveacutes da vivecircncia de uma forma radical de niilismo106
Nesse sentido se por um lado o niilismo eacute um mal para as naturezas fraacutegeis aquelas que
105 Eacute neste sentido que Heidegger pensa a realizaccedilatildeo do niilismo ativo como a realizaccedilatildeo de que aquilo quequer perecer deve perecer ldquoEm contrapartida o niilismo lsquoativorsquo interveacutem revoluciona na medida em que seexpotildee a partir do modo de vida ateacute aqui e inspira com razatildeo ainda maior ao lsquoanseio pelo fimrsquo aquilo que querperecerrdquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Assim se a concepccedilatildeo de uma realidade em si eacute vista na leituranietzschiana como obra de uma vontade cansada que quer perecer a contemplaccedilatildeo do sem sentido dessaconcepccedilatildeo apenas faz perecer essa vontade cansada106 Em sua leitura do problema do niilismo e do papel que esta concepccedilatildeo desempenharia na histoacuteria doocidente Heidegger afirma ldquoPara se tornar completo o niilismo precisa atravessar o lsquoextremorsquordquo(HEIDEGGER 2014 Paacuteg 657) Para o filoacutesofo ldquoO lsquoniilismo extremorsquo reconhece que natildeo haacute nenhumalsquoverdade eterna em sirsquo Na medida em que soacute se conforma determinadamente com essa intelecccedilatildeo e em queobserva a decadecircncia dos valores supremos ateacute aqui ele permanece passivordquo (HEIDEGGER 2014 Paacuteg657)
188
dependem do valor das verdades em si por outro ele implica um bem para as naturezas
afeitas agrave necessidade de criaccedilatildeo de valor como apresentaccedilatildeo da possibilidade de um novo
modo de valorar Torna-se entatildeo necessaacuterio compreender de que forma o niilismo ativo
concebido em conformidade com a concepccedilatildeo do fim da verdade que eacute anunciada por
Nietzsche no grande evento da morte de Deus culminaria em uma forma de pensar que ao
mesmo tempo identificada com o niilismo propicia as condiccedilotildees da superaccedilatildeo da dinacircmica
da desvalorizaccedilatildeo dos valores atraveacutes da renuacutencia agrave criaccedilatildeo de uma realidade ideal
Na medida em que o niilismo passivo eacute pensado por Nietzsche como contraacuterio ao
proacuteprio estabelecimento de valores que eacute preacute-condiccedilatildeo para a vida sua superaccedilatildeo se daria
com base na observaccedilatildeo dos aspectos fortalecedores da vida entre os quais Nietzsche
destaca a perspectividade Nesse sentido a capacidade de criar valores que se entende
desde o princiacutepio apenas como criaccedilotildees portanto valores que natildeo se deixam determinar
pelas exigecircncias da veracidade constituem o acircmago de uma nova moral a partir de
Nietzsche assim como da proacutepria concepccedilatildeo nietzschiana de conhecimento107 Por esta
razatildeo o filoacutesofo pensa a possibilidade de se estabelecerem valores como criaccedilotildees cujo
fundamentos natildeo teriam relaccedilotildees com a concepccedilatildeo tradicional de verdade e que portanto
natildeo reclamam para si um acesso privilegiado a um acircmbito objetivo
Para Nietzsche todas as revoluccedilotildees observadas na modernidade significariam uma
tentativa de ocupar o lugar da veracidade que colapsa conservando as mesmas estruturas e
por isso para o filoacutesofo estariam fadadas ao fracasso Neste ponto o filoacutesofo reflete
acerca da superaccedilatildeo do niilismo e pensa que esta natildeo poderia prescindir de uma
reavaliaccedilatildeo da estrutura mesma de fundamentaccedilatildeo dos valores Nesse sentido a proacutepria
veracidade que o filoacutesofo entendia como a fundamentaccedilatildeo do mundo verdadeiro na figura
de um Deus garantidor da verdade passa por uma revisatildeo Por isso o filoacutesofo pensa que
uma verdadeira superaccedilatildeo do niilismo apenas se tornaria possiacutevel por meio de uma
radicalizaccedilatildeo do niilismo mesmo o que significaria a destruiccedilatildeo dos princiacutepios de
107 Pois como Araldi ressalta haacute traccedilos do niilismo em todas as formas de cultura contemporacircnea inclusiveem teoria do conhecimento ldquoA reflexatildeo de Nietzsche sobre si e sobre sua eacutepoca eacute elaborada filosoficamenteem termos de niilismo O niilismo que se origina e se desenvolve a partir da moral radicaliza-se namodernidade tanto na teoria quanto na praacutetica haacute traccedilos niilistas na teoria do conhecimento na moral nasciecircncias naturais na poliacutetica na esteacutetica (XII 2 (131) Natildeo haacute como fugir desse hoacutespede inquietante que seinstala sorrateiramente em todos os domiacutenios da modernidaderdquo (ARALDI 1998 Paacuteg 87)
189
avaliaccedilatildeo dominantes A ideia de uma superaccedilatildeo do niilismo pelos filoacutesofos do futuro
aparece por exemplo em um aforismo de A Genealogia da Moral
Algum dia poreacutem num tempo mais forte do que esse presente murchoinseguro de si mesmo ele viraacute o homem redentor o homem do grandeamor e do grande desprezo o espiacuterito criador cuja forccedila impulsoraafastaraacute sempre de toda transcendecircncia e toda insignificacircncia cujasolidatildeo seraacute mal compreendida pelo povo como se fosse fuga darealidade quando seraacute apenas a sua imersatildeo absorccedilatildeo penetraccedilatildeo narealidade para que ao retornar agrave luz do dia ele possa trazer a redenccedilatildeodessa realidade sua redenccedilatildeo da maldiccedilatildeo que o ideal existente sobre elalanccedilou Esse homem do futuro que nos salvaraacute natildeo soacute do ideal vigentecomo daquilo que dele forccedilosamente nasceria do grande nojo da vontadede nada do niilismo esse toque de sino do meio-dia e da grande decisatildeoque torna novamente livre a vontade que devolve agrave terra sua finalidade eao homem sua esperanccedila esse anticristatildeo e antiniilista esse vencedor deDeus e do nada ele tem que vir um dia (GMGM II sect24)
Atraveacutes do recurso agrave imagem dos homens do futuro que pensam de forma
divergente do estabelecido pelo ldquoideal vigenterdquo Nietzsche antecipa um ponto de viragem
na histoacuteria dos valores ateacute entatildeo Para o filoacutesofo as diferentes formas do niilismo o
primeiro como uma forma de debilidade uma representaccedilatildeo da incapacidade de fixar
valores verdadeiramente novos o segundo como expressatildeo da forccedila como tendecircncia a
destruiccedilatildeo dos valores antigos representariam a expressatildeo de instintos fundamentais
atuando por traacutes da atividade de criaccedilatildeo de valores e que culminariam na substituiccedilatildeo do
ideal pela criaccedilatildeo Esta revoluccedilatildeo do pensamento se daria como um anuacutencio do meio dia o
momento da menor sombra em que a vontade deixa de ser vontade de verdade e torna-se
vontade livre Esta ideia tem similaridade com o que Nietzsche expotildee na segunda seccedilatildeo do
Ensaio sobre Verdade e Mentira acerca da forma como o intelecto se liberta da pressatildeo da
necessidade e torna-se criador de produccedilotildees artiacutesticas que reconhece como manifestaccedilotildees
mais puras de um princiacutepio natural criador de metaacuteforas108
Na medida em que o filoacutesofo entende que a tendecircncia humana agrave formulaccedilatildeo de
conceitos coexiste com sua tendecircncia criativa estrutural a capacidade de criaccedilatildeo aparece
como impulso para a arte e para as ciecircncias Assim ainda quando qualifica sua eacutepoca como
sendo culturalmente dominada pela primordialidade da ciecircncia portanto como uma eacutepoca
ameaccedilada pelo enrijecimento do esquema conceitual e da cega obediecircncia agrave vontade de
108 Conforme exposto na seccedilatildeo 224 do primeiro capiacutetulo desse trabalho
190
verdade que possibilita a expansatildeo dos domiacutenios das ciecircncias todo esse progresso
cientiacutefico apenas aponta para a emergecircncia de uma nova veracidade que se compreende em
seu caraacuteter criativo Pois apesar da preponderacircncia da ciecircncia no modo de vida humano
tender a uma expansatildeo contiacutenua a atividade criativa do intelecto a que deve-se a
capacidade de conversatildeo de metaacuteforas em conceitos assim como dos produtos artiacutesticos
nunca deixa de atuar nos homens sendo mesmo seu traccedilo caracteriacutestico
No entanto esta forma de niilismo ativo seria marcada pela radicalidade de sua
novidade Esta novidade eacute compreendida como provindo da consciecircncia mesma do
aprofundamento do niilismo sem a qual o filoacutesofo pensa que natildeo seria possiacutevel a inversatildeo
dos valores proacutepria da filosofia do futuro a qual pensa contemplar Ou seja o filoacutesofo
concebe sua proacutepria praacutetica filosoacutefica assim como toda a filosofia do futuro como
expressotildees de uma forma ativa produtiva de niilismo Pois essa filosofia do futuro seria
profundamente determinada pela consciecircncia da natildeo existecircncia de verdades em sentido
tradicional Natildeo admira portanto que sua concepccedilatildeo de conhecimento funde-se na mesma
certeza que para o filoacutesofo inaugura o niilismo
Que natildeo haacute verdades que natildeo haacute constituiccedilatildeo absoluta das coisas quenatildeo haacute ldquocoisa em sirdquo ndash isso mesmo eacute um niilismo e o mais extremoColocar o valor das coisas precisamente em que a esse valor natildeo lhecorresponde nem lhe correspondeu nenhuma realidade senatildeo que eacuteapenas um sintoma de forccedila por parte de quem institui o valor umasimplificaccedilatildeo com o fim da vida (NFFP1887 9 [35])
Por traacutes da compreensatildeo criacutetica acerca do conhecimento suportada na fase madura
de seu pensamento permanece a mesma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade que eacute
inerente ao niilismo mais extremo Na medida em que esta estaria fundada na compreensatildeo
fundamental da ausecircncia de verdades e da ausecircncia de um mundo de ldquocoisas em sirdquo como
um ponto de vista exterior a todas as formas de avaliaccedilatildeo a ela corresponderia uma forma
extrema de niilismo Do mesmo modo a compreensatildeo de que nenhum valor corresponde agrave
realidade mas que apresenta-se como resultado de uma avaliaccedilatildeo que toma a vida como
medida compreensatildeo que remonta agraves primeiras investigaccedilotildees do autor acerca da natureza
da concepccedilatildeo tradicional de finalidade natural permanece em seu pensamento da
necessidade de superaccedilatildeo do niilismo Em sua leitura no entanto a desconfianccedila para com
191
a concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute traduzida em uma interpretaccedilatildeo em que seria a forccedila
de quem institui os valores que garantem a validade da concepccedilatildeo suportada
A verdade seria nessa leitura resultante das forccedilas em jogo na sustentaccedilatildeo de uma
determinada concepccedilatildeo Isto sem duacutevida implicaria em uma imposiccedilatildeo posto que eacute a
maior forccedila em accedilatildeo em uma determinada compreensatildeo da realidade natildeo sua veracidade
em sentido tradicional que garante sua superioridade Por sua vez a esta imposiccedilatildeo de
valores corresponderia uma simplificaccedilatildeo ldquocom o fim da vidardquo ou seja uma simplificaccedilatildeo
para efeitos de sobrevivecircncia Pois as valoraccedilotildees possibilitadas pela dominacircncia de uma
determinada forma de compreender a realidade correspondem apenas a uma parcela da
objetividade geral que seria garantida apenas de forma hipoteacutetica pela consideraccedilatildeo do
maior nuacutemero possiacutevel de formas de compreensatildeo da realidade
O aspecto fundamental da compreensatildeo nietzschiana acerca da verdade
compreensatildeo em que a verdade passa a ser entendida como uma restriccedilatildeo da esfera de
criaccedilatildeo de valores agraves necessidades de cada ser interpretante pode ser compreendida como
reflexo de uma concepccedilatildeo nietzschiana de juventude acerca da verdade No entanto eacute
preciso assinalar que na maturidade de seu pensamento a compreensatildeo da dinacircmica
proacutepria do niilismo desempenha um papel fundamental em suas consideraccedilotildees acerca da
natureza do conhecimento e da verdade Pois na medida em que o filoacutesofo pensa que esta
concepccedilatildeo de conhecimento se relaciona intimamente com ldquoO niilismo enquanto negaccedilatildeo
de um mundo verdadeiro de um serrdquo (NFFP 1887 9 [41]) e que por isso mesmo
ldquopoderia ser um modo de pensamento divino (NFFP 1887 9 [41]) podemos concluir que
sua concepccedilatildeo madura apenas se torna possiacutevel mediante a identificaccedilatildeo da dinacircmica
proacutepria de desenvolvimento do niilismo
A concepccedilatildeo expressa por Nietzsche em seus textos de juventude de que a verdade
que nos interessa corresponderia apenas a uma simplificaccedilatildeo para fins da sobrevivecircncia
retorna em seu pensamento de maturidade como fundamento uacuteltimo de seu perspectivismo
Assim sua compreensatildeo madura acerca do conhecimento distingue-se de suas concepccedilotildees
de juventude na medida em que eacute entendida como uma etapa no processo que
caracterizaria uma forma de superaccedilatildeo da dinacircmica de desvalorizaccedilatildeo dos valores
constituiacutedos Segundo esta compreensatildeo apenas conforme uma interpretaccedilatildeo do
192
perspectivismo nietzschiano como representando uma forma divina de pensar se pode
reconhecer um aspecto positivo na admissatildeo nietzschiana de seu niilismo109
Na medida em que a noccedilatildeo de niilismo tem dois sentidos no interior da reflexatildeo
nietzschiana e que passamos de uma forma de niilismo passivo para uma forma afirmativa
de niilismo faz sentido pensar que o autor localizava seu pensamento como uma forma
afirmativa de niilismo Forma que prepara os passos para sua radicalizaccedilatildeo Assim
enquanto uma forma de niilismo fundado na concepccedilatildeo da inexistecircncia da verdade a forma
de niilismo extremo ao qual o pensamento nietzschiano poderia ser relacionado diria
respeito agrave consciecircncia da ausecircncia de verdades consciecircncia que constrange agrave criaccedilatildeo de
valores novos a partir de uma vontade afirmativa Nesse sentido esta forma de niilismo se
distinguiria fortemente de uma forma passiva de niilismo que atuando segundo a vontade
de verdade natildeo se vecirc capaz da criaccedilatildeo de novos valores embora compreenda os valores
antigos como sendo valores fundados em um mundo inexistente
Na leitura nietzschiana a forma mais extrema de niilismo estaria vinculada agrave
concepccedilatildeo de que todas as crenccedilas satildeo falsas Esta forma de compreender segundo a qual
todas as crenccedilas seriam falsas apenas poderia se fundamentar na certeza da inexistecircncia de
uma realidade ideal na certeza da inexistecircncia de um fundamento uacuteltimo da verdade A
esta forma de niilismo corresponderia a negaccedilatildeo de toda certeza assim como a
impossibilidade de toda forma de valoraccedilatildeo Tendo em vista sua sobrevivecircncia o homem
crecirc naquilo que precisa crer para continuar vivendo Assim o homem passa a crer na
veracidade de seus discursos na correspondecircncia de sua linguagem em relaccedilatildeo a uma
realidade ideal em tudo por fim que garanta sua permanecircncia na terra No entanto o que
eacute uma crenccedila Para Nietzsche esta pergunta estaria relacionada ao caraacuteter perspectiviacutestico
da realidade
O que eacute uma crenccedila Como surge Toda crenccedila eacute um tomar-por-verdadeiro ( fuumlr-wahr-halten) A forma extrema do niilismo seria que toda crenccedila todo tomar-por-verdadeiro eacute necessariamente falso porque natildeo haacute em absoluto um mundoverdadeiro Portanto uma aparecircncia perspectivista cuja origem estaacute em noacutesmesmos (enquanto temos necessidade permanentemente de um mundo maisestreito abreviado simplificado ndash que a medida da forccedila eacute o grau em que
109 Segundo uma interpretaccedilatildeo do fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9 [123]) apresentada no iniacutecio destecapiacutetulo
193
podemos admitir a aparencialidade a necessidade da mentira sem sucumbir(NFFP 1887 9[41])
A crenccedila nada mais eacute do que a confianccedila na veracidade de uma concepccedilatildeo para ela
portanto natildeo interessa a veracidade da concepccedilatildeo em jogo Por outro lado para Nietzsche
este tomar por verdadeiro daquilo que necessitamos crer para viver corresponderia a uma
aparecircncia perspectivista da realidade Ou seja a origem da forccedila de toda crenccedila a
capacidade de se tomar por verdadeiro o que eacute necessaacuterio para nossa sobrevivecircncia estaria
em nosso interior E o que determinaria a nobreza do homem seria o fato da natureza o ter
munido de um intelecto capaz de criar estas condiccedilotildees para sua sobrevivecircncia A esta
capacidade corresponderia nossa capacidade de criar uma realidade cada vez mais criacutevel
Mas como Nietzsche antecipa em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira esta potencialidade
do intelecto apenas foi dada ao homem porque este seria o animal mais ameaccedilado o mais
fraacutegil frente as demais espeacutecies o que o teria tornado o animal mais dependente de
aparecircncias para sobreviver
Por outro lado enquanto a fraqueza de um ser vivo possa ser determinada pela
quantidade de acessoacuterios de que este depende para sobreviver a forccedila do homem poderia
ser determinada pela quantidade de ilusotildees de que este depende para sua manutenccedilatildeo Em
outros termos de quantas ilusotildees quantas crenccedilas poderia o homem se livrar sem
sucumbir Posto em termos nietzschiano quatildeo longe o homem poderia se aprofundar no
niilismo sem sucumbir A isto Nietzsche chama experimento a ideia de que algumas
naturezas sucumbem enquanto outras florescem na compreensatildeo de que a vida natildeo tem
valor aleacutem do valor que damos a ela
Nesse sentido a partir da vacuidade de sentido gerada na corrupccedilatildeo das certezas
inerente ao grande evento da morte de Deus o filoacutesofo pensa a possibilidade do
surgimento de uma forma de pensar afirmativa em relaccedilatildeo ao terriacutevel da existecircncia ateacute
mesmo de sua falta de sentido radical A esta forma de pensar Nietzsche as vezes se refere
como pensamento traacutegico as vezes como concepccedilatildeo dionisiacuteaca da realidade Nessa
concepccedilatildeo o filoacutesofo parece vislumbrar o surgimento de uma nova forma de filoacutesofos
Filoacutesofos traacutegicos capazes de apropriar-se de forma ativa de sua potencialidade criativa
superando a negatividade do niilismo atraveacutes de sua consumaccedilatildeo
194
Noacutes os pensantes-que-sentem somos os que de fato e continuamentefazem algo que ainda natildeo existe o inteiro mundo em eterno crescimentode avaliaccedilotildees cores pesos perspectivas degraus afirmaccedilotildees e negaccedilotildeesEsse poema de nossa invenccedilatildeo eacute pelos chamados homens praacuteticos(nossos atores como disse) permanentemente aprendido exercitadotraduzido em carne e realidade em cotidianidade O que quer que tenhavalor no mundo de hoje natildeo o tem em si conforme sua natureza mdash anatureza eacute sempre isenta de valor mdashfoi-lhe dado oferecido um valor efomos noacutes esses doadores e ofertadores O mundo que tem alguminteresse para o ser humano fomos noacutes que o criamos mdashMas justamenteeste saber nos falta e se num instante o colhemos no instante seguintevoltamos a esquececirc-lo desconhecemos nossa melhor capacidade e nossubestimamos um pouco noacutes os contemplativos mdash natildeo somos tatildeoorgulhosos nem tatildeo felizes quanto poderiacuteamos ser (FWGC IV sect301)
O pensamento do futuro portanto seria a retomada de uma forma de filosofia de
artista no sentido em que os novos filoacutesofos deveriam empoderar-se de sua capacidade
criar valor atraveacutes das criaccedilotildees de seu intelecto O uacuteltimo homem aquele que sofre ainda
das consequecircncias negativas da morte de Deus seria incapaz deste empoderamento A ele
se assemelharia um artista que se perde na criaccedilatildeo e por vezes perde o sentido de sua
criaccedilatildeo Inerente a este tipo de filosofia estaria a capacidade de conviver com um grau
elevado de ilusotildees sem deteriorar seu valor por conta da independecircncia dessas ilusotildees de
uma realidade ideal
Em sua reflexatildeo acerca do conhecimento Nietzsche pensa o homem como criador
de valor que por vezes esquece-se dessa propensatildeo de sua natureza Em certo sentido o
filoacutesofo compreende que algumas formas de constituiccedilatildeo vital vinculadas pelo filoacutesofo a
uma moral decadente e a uma ciecircncia dogmaacutetica tornam-se extremamente dependentes do
tipo de verdade concebida no interior de uma concepccedilatildeo platocircnica da realidade enquanto
outras formas segundo Nietzsche melhor constituiacutedas tem sua vitalidade vinculada agrave
negaccedilatildeo desse tipo de realidade ideal A sua noccedilatildeo de experimento assim significaria uma
forma de pensar as manifestaccedilotildees niilistas da cultura como sintomas de enfraquecimento
vital
Nesta leitura a consciecircncia da ausecircncia de verdades absolutas possibilitaria a
criaccedilatildeo de valores novos nos quais temos consciecircncia da falta absoluta de fundamentaccedilatildeo
Sendo assim o pensamento maduro nietzschiano compreendido dentro dos limites de uma
195
consideraccedilatildeo acerca da possibilidade de criaccedilatildeo de novos valores teria como base a
consciecircncia de que toda crenccedila eacute essencialmente falsa A esta consciecircncia estaria vinculada
a certeza de que toda crenccedila seria efeito de uma confianccedila na veracidade de uma
concepccedilatildeo e natildeo de sua veracidade propriamente Acreditamos que a referecircncia ao
perspectivo no fragmento poacutestumo citado acima natildeo eacute aleatoacuteria nem mesmo indireta mas
que diz respeito aos princiacutepios que Nietzsche faz constar como elementos fundamentais de
sua compreensatildeo afirmativa do conhecimento Ou seja o questionamento do quanto de
verdade um ser vivente suporta sem sucumbir110 constitui-se como as bases para a
compreensatildeo de um modo divino de pensar
O perspectivismo enquanto pensamento radical que se contrapotildee a toda verdade
absoluta a todo ser enquanto fundamento da existecircncia representaria assim o modo de
pensar divino que afirma de modo criativo a falta de sentido da existecircncia Esta
compreensatildeo da perspectividade de toda suposta verdade refletiria aquilo que Nietzsche
nos diz quando afirma em um fragmento poacutestumo de 1887 ldquoNessa medida o niilismo
poderia como negaccedilatildeo de um mundo verdadeiro de um ser ser um modo de pensar
divinordquo (NFFP 1887 9[41]) Ou seja o perspectivismo nietzschiano enquanto expressatildeo
de um niilismo extremo que nega todo ser e o substitui por aparecircncias que nega toda
verdade e a substitui por interpretaccedilotildees corresponderia a uma forma de pensar que
refletiria um grau maacuteximo de forccedila um grau divino de existecircncia humana
O filoacutesofo relaciona a forma mais extrema de niilismo agrave tomada de consciecircncia da
inexistecircncia de um mundo verdadeiro Esta compreensatildeo da realidade em que o mundo
verdadeiro perde forccedila de significaccedilatildeo a partir do grande evento da morte de Deus pode
110 Atraveacutes de sua concepccedilatildeo de experimento Nietzsche retoma uma ideia fundamental jaacute presente em seuEnsaio sobre Verdade e Mentira e que retorna com frequecircncia em seus escritos posteriores A concepccedilatildeo danecessidade humana de falsidade de um mundo simplificado tornado passiacutevel de comunicaccedilatildeo um mundoque natildeo eacute mais do que a soma dos erros fundamentais necessaacuterios agrave nossa sobrevivecircncia Esta concepccedilatildeofundamental para a compreensatildeo nietzschiana que vincula o conhecimento agrave necessidade humana desobrevivecircncia eacute expressa com frequecircncia em seus poacutestumos de 1887 e a ideia apresentada no fragmentopoacutestumo 9[41] de nossa necessidade de um mundo simplificado jaacute havia sido antecipada no aforismo 9[35]em sua segunda seccedilatildeo Neste fragmento em que Nietzsche pensa ldquoO fato de natildeo haver nenhuma verdaderdquo(NFFP 1887 9[35]) como uma consequecircncia positiva do niilismo o filoacutesofo antecipa a ideia de que adesvalorizaccedilatildeo dos valores fundados em uma realidade ideal implica a constataccedilatildeo de um enfraquecimentovital inerente agrave afirmaccedilatildeo dessa realidade Assim a constataccedilatildeo ldquode natildeo haver nenhuma constituiccedilatildeoabsoluta das coisas nenhuma lsquocoisa em sirsquordquo (NFFP 1887 9[35]) implica a investigaccedilatildeo das forccedilas posta emjogo na afirmaccedilatildeo de uma tal realidade Nesse sentido o perspectivismo nietzschiano na medida em que estaacuterelacionado agrave denuacutencia da inexistecircncia de uma realidade ideal apresenta-se como manifestaccedilatildeo de umniilismo extremo e como manifestaccedilatildeo de uma forccedila afirmativa em relaccedilatildeo agrave vida
196
ser relacionada com a falsidade atribuiacuteda a todas as perspectivas assim como com o
potencial de valor associado ao princiacutepio que gera as perspectivas Desta maneira apesar
da nossa necessidade de perspectivas na medida em que nos desenvolvemos segundo a
necessidade de um mundo simplificado passiacutevel de ser comunicado essa necessidade
poderia ser valorizada como ponto de vista da criaccedilatildeo como arte
36 O perspectivismo nietzschiano como estrateacutegia de superaccedilatildeo do niilismo
Consideradas a obra nietzschiana do ponto de vista cronoloacutegico temos que a partir
de 1880 seu pensamento apresenta uma abordagem diferenciada para os problemas que
havia antecipado em seus escritos de juventude A emergecircncia de conceitos como Vontade
de Poder e Niilismo circunscrevem um periacuteodo em que seu pensamento toma como
fundamento o sentimento de afirmaccedilatildeo do mundo e da vida Nesta leitura a estrateacutegia
nietzschiana de radicalizaccedilatildeo do niilismo se fundamenta em uma nova estrutura conceitual
na qual o filoacutesofo vinha trabalhando jaacute desde seu Assim Falava Zaratustra Assim na
uacuteltima fase de seu pensamento em que Nietzsche estaacute preocupado de maneira especial
com o niilismo assim como em oferecer uma estrateacutegia de superaccedilatildeo deste entram em
jogo conceitos novos com os quais o filoacutesofo tencionava mobilizar uma estrateacutegia de
reversatildeo do processo de decadecircncia moral e cultural em que acreditava que sua eacutepoca
havia se aprofundado111
111 Esta interpretaccedilatildeo natildeo eacute incomum nos comentaacuterios da filosofia nietzschiana Nesse sentido eacute relevanteretomar a conhecida interpretaccedilatildeo heideggeriana para quem o pensamento nietzschiano poderia sercircunscrito a cinco conceitos fundamentais que seriam ldquoOs cinco tiacutetulos principais mencionados ndashlsquoniilismorsquo lsquotransvaloraccedilatildeo de todos os valores ateacute aquirsquo lsquovontade de poderrsquo lsquoeterno retorno do mesmorsquolsquoaleacutem-do homemrsquo ndash mostram a metafiacutesica de Nietzsche em um aspecto a cada vez uno mas respectivamentedeterminante do todordquo (HEIDEGGER 2007 Paacuteg 38) Nessa leitura a opccedilatildeo heideggeriana pelo niilismocomo conceito fundamental do pensamento metafiacutesico nietzschiano e a traduccedilatildeo de outros conceitosnietzschianos fundamentais a partir desse conceito indica um caminho de leitura possiacutevel em que osprincipais expoentes do pensamento nietzschiano relacionam-se a uma tentativa de superaccedilatildeo do niilismo Noentanto na medida em que compreendemos que no pensamento nietzschiano natildeo estamos diante de umauacutenica forma de niilismo posto que seria possiacutevel identificar em seu pensamento um niilismo da verdade umniilismo como antirealismo um niilismo como criacutetica dos fundamentos da religiatildeo um niilismo como criacuteticaaos fundamentos da ciecircncia e por uacuteltimo e talvez mais relevante um niilismo dos valores morais torna-senecessaacuterio ir aleacutem da interpretaccedilatildeo unificante de Heidegger De certa forma posto que o niilismo se apresentaa Nietzsche como mostrando-se a partir de ldquocentena de signosrdquo talvez fosse mais correto dizer que Nietzscheentende o niilismo como uma tendecircncia deteriorante uma doenccedila que perpassa diversas formas de culturahumana manifestando-se atraveacutes da negaccedilatildeo da realidade
197
Estes aspectos conduzem seu pensamento agrave busca pelos modos de se atingir o mais
elevado grau de vivacidade possiacutevel de ser experimentado De maneira geral importa a
Nietzsche neste periacuteodo de sua reflexatildeo oferecer alternativas aos problemas teoacutericos e de
fundo fisioloacutegico112 que o filoacutesofo encontra em sua eacutepoca Eacute nesse momento de sua
produccedilatildeo que o filoacutesofo registra em suas notas em um fragmento poacutestumo que costuma
constar como proacutelogo nos comentaacuterios do niilismo nietzschiano
O que eu relato eacute histoacuteria dos proacuteximos dois seacuteculos Descrevo o que estaacutea caminho o que natildeo pode mais ser diferente o advento do niilismoEssa histoacuteria pode ser relatada desde jaacute pois eacute a necessidade mesma queopera aqui Esse futuro fala agora mesmo atraveacutes de uma centena designos esse destino se anuncia em toda parte para essa muacutesica do futurotodos os ouvidos estatildeo abertos agora mesmo Por algum tempo ateacute agoratoda a nossa cultura europeia se moveu como que em direccedilatildeo a umacataacutestrofe com uma tensatildeo tortuosa que foi crescendo deacutecada por deacutecadaincansavelmente violentamente irrecorrivelmente como uma torrenteque quer alcanccedilar o fim que jaacute natildeo reflete que tem medo de refletir(KSA XIII 11[411])
Neste fragmento o niilismo eacute apresentado como se mostrando atraveacutes de uma
ldquocentena de signosrdquo ou seja como manifestando-se em diversas formas de expressatildeo na
cultura europeia Motivo pelo qual a ele ldquotodos os ouvidos estatildeo abertosrdquo Claramente aqui
o que estaacute em jogo eacute um sentido negativo do niilismo como uma ldquocataacutestroferdquo que se
anuncia por diversos signos Estes signos seriam a crescente tendecircncia decadente
subversora do sentido que Nietzsche enxerga presente na filosofia nas ciecircncias e de modo
geral na moral e que poria em risco a proacutepria existecircncia humana
De fato considerando-se que a moral eacute o grande campo de disputa da reflexatildeo
nietzschiana e que seu uso do termo aparece muitas vezes relacionado agrave sua criacutetica ao
cristianismo enquanto fundamento da moral ocidental entatildeo natildeo teriacuteamos duacutevida acerca
da natureza deste conceito em sua obra Deveriacuteamos concluir que o uso nietzschiano do
112 No fundo os problemas teoacutericos e suas consequecircncias fisioloacutegicas nunca satildeo distintos de forma clara nopensamento nietzschiano que toma a fisiologia dos processos de reflexatildeo como um modelo de reflexatildeo Esteaspecto tambeacutem eacute parte do experimentalismo da postura do filoacutesofo na qual o corpo e suas manifestaccedilotildeesfisioloacutegicas satildeo tomadas como laboratoacuterio de pesquisa Nesse sentido o conhecimento importa ao autor namedida em que possibilita o fortalecimento do tipo humano ao contraacuterio eacute relegado ao plano da especulaccedilatildeosem sentido
198
termo niilismo condiz com uma forma de criticar uma tendecircncia que se encontraria muito
fundamentalmente arraigada nos fundamentos da moral A partir da moral entatildeo o
niilismo enquanto tendecircncia teoacuterica conseguiria expandir-se para os outros terrenos da
cultura humana Nesse sentido na medida em que a ciecircncia e a filosofia se deixam
influenciar por concepccedilotildees morais inoculam o niilismo em suas produccedilotildees
Diante do exposto acreditamos natildeo ser absurdo contemplar o efeito da tendecircncia
niilista nas teorias do conhecimento criticadas por Nietzsche Em termos epistemoloacutegicos
que dizem respeito mais diretamente ao objeto deste trabalho o uso nietzschiano do termo
niilismo estaacute vinculado a uma criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade e conhecimento
como conceitos vinculados a uma vontade negativa em relaccedilatildeo agrave vida Nesse sentido o
niilismo estaria relacionado ao posicionamento epistemoloacutegico que afirma a possibilidade
de se atingir verdades absolutas com base em uma realidade suprassensiacutevel Ao negar a
possibilidade de se atingir verdades absolutas Nietzsche pretende opor resistecircncia agrave
tendecircncia niilista em teoria do conhecimento vista em sua leitura como um fundamento do
pensamento ocidental presente tanto no racionalismo como na metafiacutesica na religiatildeo e ateacute
mesmo na ciecircncia113
A questatildeo fundamental acerca do niilismo eacute colocada por Nietzsche nos seguintes
termos ldquoO niilismo estaacute agrave porta de onde nos vem esse mais sinistro de todos os
hoacutespedesrdquo (NFFP 1885 2[127]) Esta pergunta pode ser respondida com base nos textos
nietzschianos onde a genealogia do niilismo efetuada por Nietzsche acaba por conduzir ao
otimismo socraacutetico a crenccedila na razatildeo como remeacutedio para a existecircncia como a raiz mais
antiga do niilismo114 Se o filoacutesofo vincula a origem do niilismo a uma tendecircncia
epistemoloacutegica da antiguidade que certamente reflete uma opccedilatildeo moral associada pelo
113 Nietzsche certamente natildeo foi o primeiro a opor resistecircncia agraves concepccedilotildees que pretendem fundamentar oconhecimento em uma esfera exterior agrave realidade material Assim o perspectivismo nietzschiano enquantopostura epistemoloacutegica teria antecedentes histoacutericos em algumas correntes relativistas radicais daantiguidade tais como em Goacutergias famoso sofista nascido em Leontinos na Siciacutelia por volta de 485480aC cuja ceacutelebre negaccedilatildeo da existecircncia do ser assim como a negaccedilatildeo da possibilidade de seu conhecimentoe comunicaccedilatildeo testemunham uma das primeiras criacuteticas radicais agrave categoria de verdade na antiguidade Poroutro lado o relativismo agnoacutestico de Protaacutegoras que o leva a construir seu meacutetodo da antilogia a crenccedila deque natildeo existiria uma soacute verdade sobre os objetos mas duas verdades opostas e igualmente sustentaacuteveisatraveacutes do discurso possivelmente deve ser considerado como uma influecircncia melhor reconhecida nareflexatildeo nietzschiana Isto se daacute por conta dos embates deste sofista com os filoacutesofos disciacutepulos de Soacutecratesque com certeza refletem-se no antiplatonismo radical que Nietzsche reclama para sua filosofia Ao comparara postura nietzschiana com relaccedilatildeo agrave verdade a estas tendecircncias relativistas da antiguidade fica claro que seuposicionamento tem suas origens em uma espeacutecie de relativismo extremado embora natildeo possa ser reduzido aisto posto que tem tambeacutem um caraacuteter construtivo como pretendemos demonstrar a frente
199
filoacutesofo agrave valores decadentes o presente do niilismo para Nietzsche estaria diretamente
vinculado agrave moral cristatilde Motivo pelo qual na sequecircncia do texto jaacute referido o filoacutesofo
afirma que ldquoem uma interpretaccedilatildeo bem determinada na interpretaccedilatildeo moral cristatilde reside
o niilismordquo Ou seja considerando o niilismo um evento histoacuterico o filoacutesofo suscita uma
desconfianccedila acerca de suas bases constitutivas Poreacutem dado que reconhece uma inter-
relaccedilatildeo entre a moral cristatilde e a epistemologia que move a ciecircncia de sua eacutepoca natildeo tem
duacutevidas acerca do presente do niilismo Do mesmo modo por conta de seu caraacuteter de
mascaramento que reproduz de forma dissimulada a mesma tendecircncia presente no
otimismo socraacutetico o autor considera o cristianismo uma versatildeo popular do platonismo
A definiccedilatildeo de niilismo que se segue no poacutestumo em questatildeo pode ser considerada
definitiva ldquoQue significa niilismo ndash Que os valores supremos desvalorizem-se Falta o
fim falta a resposta ao lsquoPor quecircrsquordquo115 Assim ao niilismo estaria associada uma falta
estrutural de referenciais assim como a ausecircncia total de finalidade do devir Na medida
em que entende que o niilismo teve sua apariccedilatildeo nos meios culturais europeus e que nestes
fez residecircncia sem convite e sem se dar por conhecido o autor descreve o niilismo como
ldquoo mais estranho e mais ameaccedilador de todos os hoacutespedesrdquo116 Diante da nota nietzschiana
ldquoNiilismo falta a metardquo deduz-se que toda ausecircncia de objetivos manifesta uma vacuidade
de sentido da accedilatildeo humana para a qual ldquofalta a resposta ao por quecircrsquordquo deixando a accedilatildeo
humana pendendo sob o abismo da indeterminaccedilatildeo Sendo que o homem eacute visto nessa
leitura como ser limitado a uma determinada forma de viver eacute um ser determinado pela
necessidade de diretrizes ldquoO fato de que os valores supremos se desvalorizamrdquo
114 Eacute nesse sentido por exemplo que Heidegger no capiacutetulo de sua obra colossal acerca da filosofianietzschiana inicia sua apresentaccedilatildeo do niilismo por uma apresentaccedilatildeo da filosofia platocircnica HEIDEGGERMartin Nietzsche 2ordf ediccedilatildeo traduccedilatildeo de Marco antocircnio Casanova editora Forense Universitaacuteria Rio deJaneiro 2014 Mais do que isso o platonismo ocupa a primeira posiccedilatildeo nos estaacutegios do importante capiacutetulode Crepuacutesculo dos Iacutedolos acerca da histoacuteria de um erro em que o autor apresenta sua versatildeo para a origem daideia de um mundo verdadeiro que estaacute na base do niilismo epistemoloacutegico como a crenccedila na verdade comovalor
115 Idem116 Nesse mesmo fragmento poacutestumo a consciecircncia da aproximaccedilatildeo de uma eacutepoca em que os fundamentosse tornam inoacutecuos eacute expressa por Nietzsche na sentenccedila ldquoo niilismo estaacute a portardquo (KSA XII 2[127])
200
(NFFP1887 9[35])117 ocasiona para ele um ponto de ruptura a partir do qual poucas
possibilidades se lhe apresentam
O que significa que os valores se desvalorizam Primeiramente isto significa que
natildeo haacute na razatildeo um norte a ser seguido uma finalidade determinada que conduza a accedilatildeo
humana Em segundo lugar isto significa que a concepccedilatildeo em que os valores fundamentais
se baseia mostra-se sem valor sem sentido O que seria para Nietzsche resultado de um
processo de anaacutelise da razatildeo que potildee valores sobre estes mesmos valores Assim com a
questatildeo acerca do sentido da falta de sentido do niilismo nietzschiano nos colocamos
diante de uma exposiccedilatildeo clara e determinante de como este deve ser compreendido em
associaccedilatildeo a duas concepccedilotildees fundamentais Primeiramente o niilismo se opotildee a toda
forma de teleologia ele se afirma na constataccedilatildeo da vacuidade de objetivos para a
realidade Em segundo lugar o niilismo estaacute relacionado com uma vacuidade nos valores
uma deterioraccedilatildeo dos valores fundamentais
Nestas duas concepccedilotildees temos um ponto de partida o niilismo significa que os
valores que fundamentam a existecircncia humana os fundamentos necessaacuterios para nossa
accedilatildeo perdem seu valor Para a pergunta fundamental para o sentido da existecircncia nos falta
uma resposta Deste problema fundamental surge a necessidade de se ocupar o vaacutecuo de
sentido para a existecircncia criado pela emergecircncia do niilismo Considerado o problema
dessa maneira a partir de uma compreensatildeo da falta de sentido na existecircncia duas
possibilidades parecem se apresentar ao filoacutesofo Motivo pelo qual ainda no aforismo
mencionada acima o autor traccedila uma distinccedilatildeo entre duas formas do niilismo o niilismo
ativo e o niilismo passivo
Ao niilismo passivo estaria vinculada toda forma de cansaccedilo da existecircncia toda
forma de instinto decadente O filoacutesofo entende o niilismo enquanto maldiccedilatildeo para a
117 eKGWBNF-18879[35] mdash Nachgelassene Fragmente Herbst 1887 Em relaccedilatildeo aos aforismospoacutestumos foram consultados os originais na ediccedilatildeo digital das obras e cartas de Nietzsche organizadas porCOLLIMORTINARI Sempre que disponiacuteveis utilizamos as traduccedilotildees dos poacutestumos reunidas na coletacircneade fragmentos poacutestumos 1885-1887 volume VI traduzidos por Marco Antocircnio Casanova publicado pelaeditora GEN em parceria com a Forense Universitaacuteria Tambeacutem utilizamos a ediccedilatildeo de fragmentos do espoacuteliode julho de 1882 a inverno de 18831884 traduzidos por Flaacutevio R Kothe e publicada pela editora UNBTambeacutem foram consultados os fragmentos sobre o Niilismo reunidas nas uacuteltimas paacuteginas do volumeNietzsche da coleccedilatildeo os pensadores editora Abril Cultural 1978 com seleccedilatildeo de textos de Geacuterard Lebrun ecom traduccedilotildees Rubens Rodrigues Torres Filho Quando satildeo utilizados fragmentos que natildeo constam nessascoletacircneas a traduccedilatildeo eacute de nossa responsabilidade A indicaccedilatildeo dos poacutestumos segue o seguinte padratildeo(NFFP Ano Nuacutemero do volume das notas poacutestumas e nuacutemero do fragmento)
201
humanidade como estando vinculado a uma necessidade de repouso que se expressa
muitas vezes em uma adoraccedilatildeo de uma realidade inexistente A constituiccedilatildeo de uma
concepccedilatildeo de verdade como correspondecircncia a uma realidade apartada da realidade
humana estaacute ligada de forma direta a esta forma passiva de niilismo Nesse sentido o
niilismo poderia tambeacutem ser visto como um sinal de forccedila ldquonatildeo suficienterdquo um estado
cansado passivo reativo em relaccedilatildeo agrave realidade A este estado corresponderia uma
afirmaccedilatildeo da idealidade do que se nos apresenta uma sacralizaccedilatildeo dos valores apesar da
consciecircncia de sua ineficiecircncia Nesse sentido o niilismo passivo apresenta-se como uma
forma decadente de valorar a realidade na medida em que se ampara em valores vazios
em que torna o proacuteprio nada como um telos
A esta forma passiva do niilismo Nietzsche vincula as formas negativas de
existecircncia aquelas que se potildee em contradiccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave vida O cristianismo eacute como
se sabe considerado pelo autor como um exemplo da manifestaccedilatildeo desse tipo de niilismo
na histoacuteria118 E jaacute no prefaacutecio tardio para O Nascimento da Trageacutedia Nietzsche expressa a
radicalidade da contrariedade do cristianismo em relaccedilatildeo agrave vida e a consequente
valorizaccedilatildeo negativa da vida inerente a essa postura
O cristianismo foi desde o iniacutecio essencial e basicamente asco e fastioda vida na vida que apenas se disfarccedilava apenas se ocultava apenas seenfeitava sob a crenccedila em ldquooutrardquo ou ldquomelhorrdquo vida O oacutedio ao ldquomundordquoa maldiccedilatildeo dos afetos o medo agrave beleza e agrave sensualidade um lado-de-laacuteinventado para difamar melhor o lado-de-caacute no fundo um anseio pelonada pelo fim pelo repouso para chegar ao ldquosabaacute dos sabaacutesrdquo (Prefaacuteciosect5 Paacuteg 19)
Ao cristianismo portanto estaria ligado uma forma negativa de niilismo passivo
Consequentemente ao cristianismo estaria ligada uma forma negativa de existecircncia Mas o
niilismo passivo natildeo eacute a uacuteltima palavra de Nietzsche acerca do niilismo Se por um lado
diante da criacutetica ao cristianismo que encontramos no interior da obra nietzschiana nos
veriacuteamos diante da necessidade de atribuir um valor estritamente negativo ao niilismo do
118 Embora o budismo tambeacutem seja apresentado pelo autor em certas passagens notadamente no Anticristocomo uma forma do niilismo passivo na medida em que entende que este fundamentava-se em uma negaccedilatildeoagrave realidade O budismo no entanto distinguir-se-ia do cristianismo na medida em que o cristianismo conduza uma atitude de rejeiccedilatildeo da realidade que eacute estranha ao budismo
202
qual o cristianismo seria a manifestaccedilatildeo mais elevada por outro lado uma tal condenaccedilatildeo
do niilismo por si passa por alto a distinccedilatildeo fundamental entre niilismo ativo e passivo
Mais do que isso a condenaccedilatildeo do niilismo pode ainda ser vista como um aspecto do
niilismo passivo no qual natildeo se apresentaria uma alternativa de superaccedilatildeo Por sua vez ao
niilismo ativo estaria vinculada uma foacutermula da superaccedilatildeo do proacuteprio niilismo Esta forma
de superaccedilatildeo do niilismo que toma o niilismo mesmo como elemento relaciona-se
intimamente com o projeto nietzschiano de transvaloraccedilatildeo dos valores
A esta forma do niilismo segundo Nietzsche estariam vinculados os instintos
afirmativos e criadores Assim ainda no fragmento poacutestumo 9[39] de 1887 Nietzsche
afirma ldquolsquoNiilismorsquo como ideal da mais elevada potencialidade do espiacuterito em parte
destrutivo em parte irocircnicordquo (NFFP 1887 9[39]) Com isso o filoacutesofo daacute a entender que
o niilismo por si natildeo eacute apenas um estado negativo uma fatalidade histoacuterica Pois em sua
leitura quando o valor da existecircncia carece de sentido o niilismo pode ser ldquosinal do poder
elevado do espiacuteritordquo na medida em que ldquoas metas ateacute aquirdquo se mostram inapropriadas para
algueacutem incapazes de satisfazer as ldquoconvicccedilotildeesrdquo ou os ldquoartigos de feacuterdquo do indiviacuteduo
O niilismo ativo se mostra aqui como potencial criativo na medida em que a
consciecircncia da vacuidade dos valores produz valores novos A proacutepria mudanccedila dos
valores sua transformaccedilatildeo seria manifestaccedilatildeo da forccedila da vontade como uma expressatildeo
direta do crescimento do poder daquele que estabelece os valores (NFFP 1887 9[39])
Para o filoacutesofo a caducidade dos valores eacute condicionada pela sua crescente ineficiecircncia
pela sua incapacidade em suprir a vontade do indiviacuteduo em questatildeo dando margem agrave
mudanccedila dos valores Nesse sentido agrave mudanccedila dos valores estaria ligada a um progresso
no poder criativo daqueles que constituem os valores os legisladores o tipo filosoacutefico
cotejado por Nietzsche em seus escritos a partir de Humano demasiado Humano
Esta distinccedilatildeo se mostra fundamental para um estudo aprofundado do pensamento
de Nietzsche e nem sempre estaacute clara nas leituras mais ligeiras da obra deste autor Assim
apesar da criacutetica ao niilismo na filosofia nietzschiana superar enormemente o sentido
afirmativo dessa tendecircncia eacute importante considerar que na leitura nietzschiana do
processo de desvalorizaccedilatildeo dos valores nem todo niilismo eacute um niilismo passivo Posto
203
que no o autor contempla a possibilidade em se falar de um niilismo positivo afirmativo
ou como prefere Nietzsche um niilismo ativo transformador da realidade119
O niilismo ativo como consciecircncia da falta de sentido no mundo que conduz a
criaccedilatildeo de sentido eacute uma forma de niilismo de extrema significaccedilatildeo na filosofia
nietzschiana Sua concepccedilatildeo da vontade de potecircncia enquanto poder criativo inerente agrave
realidade associa-se intimamente a esta concepccedilatildeo e seu experimentalismo estaacute
estreitamente relacionado com a ideia de um atribuir valor as coisas como podemos ver
em um outro fragmento de 1887 no qual o autor declara
Aquele que natildeo eacute capaz de pocircr sua vontade nas coisas que eacute sem forccedila devontade sabe pelo menos dar um sentido agraves coisas isto eacute agrave crenccedila de queelas encerram uma vontade Eacute uma medida para indicar o grau de forccedilade vontade o saber ateacute que ponto podem as coisas carecer de sentido paranoacutes ateacute que ponto suportamos viver num mundo sem sentido (NFFP1887 9[60])
O filoacutesofo aponta para uma capacidade de atribuir sentido para as coisas
pertencente agravequeles capazes de colocar sua vontade nas coisas E essa capacidade eacute
encarada aqui como uma medida para julgar entre posiccedilotildees contraacuterias entre diferentes
quanta de forccedila O experimento aqui consiste em saber ateacute que ponto as coisas podem
carecer de sentido e serem ainda afirmadas ou de outro modo ateacute que ponto uma
constituiccedilatildeo fisioloacutegica suporta a falta de sentido estrutural nas coisas Tal medida natildeo se
distingue fundamentalmente da ideia presente em outras partes da produccedilatildeo nietzschiana
nas quais o autor relaciona o eterno retorno enquanto extrema forma de niilismo como a
falta de sentido mais elevada e o questionamento acerca do quanto de verdade algueacutem
pode suportar Neste experimento eacute constatado o proacuteprio fato de que a medida da forccedila eacute
quanto podemos admitir da necessidade da mentira sem perecer120
Mesmo diante da constataccedilatildeo da falta de sentido da existecircncia o filoacutesofo chega a
uma conclusatildeo fundamental segundo a qual uma determinada vontade pode ser expressa
em um ato positivo no sentido de sustentar uma crenccedila tomaacute-la por verdade independente
de ser ela verdade ou natildeo Assim considerado a partir dessa perspectiva o niilismo eacute
119 A diferenciaccedilatildeo entre niilismo ativo e passivo eacute expressa por Nietzsche no fragmento poacutestumo(NFFP1887 9[35]) citado a frente (Conforme ainda A Vontade de Poder Paacuteg 36) 120 Vide por exemplo o fragmento poacutestumo (NFFP 1887 9[41])
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ressignificado tornando-se a negaccedilatildeo do mundo do ser o mundo ideal contraposto ao
mundo real da ausecircncia de sentido Natildeo eacute sem importacircncia o fato de que seraacute justamente
nessa superaccedilatildeo da necessidade de um aleacutem enquanto fonte de sentido da existecircncia que o
filoacutesofo encontraraacute a forma mais adequada ao espiacuterito livre
Com base nesta concepccedilatildeo do niilismo ativo pode-se pensar a desconfianccedila acerca
da possibilidade de se nos representarmos a realidade em sua inteireza proacutepria do
perspectivismo como fundamento de uma concepccedilatildeo do conhecimento como criaccedilatildeo A
consideraccedilatildeo frequente nos textos nietzschianos especialmente a partir de A Gaia Ciecircncia
de uma forma de conhecimento como associada agrave audaacutecia da criaccedilatildeo e da experimentaccedilatildeo
assume um novo sentido que lhe afasta da mera consideraccedilatildeo do relativismo inerente agrave
consideraccedilatildeo de que todo conhecimento afirma-se como uma mera interpretaccedilatildeo
Na leitura do filoacutesofo quando uma determinada estrateacutegia epistemoloacutegica vista
aqui apenas como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia torna-se uma obsessatildeo no homem por
exemplo quando a vontade de verdade se sobrepotildee agrave vontade de vida quando o
conhecimento se torna para o homem uma ilusatildeo e uma fuga a ele se vinculam instintos
contraacuterios agrave manutenccedilatildeo da vida E dessa forma se abriria a possibilidade de uma forma
de niilismo Eacute contra o niilismo desta concepccedilatildeo que Nietzsche se volta ao pensar o
conhecimento segundo uma compreensatildeo perspectivista
A este niilismo oriundo da consciecircncia da desvalorizaccedilatildeo dos valores
epistemoloacutegicos ou seja a consciecircncia da inconsistecircncia dos conceitos tomados ateacute entatildeo
como os mais certos vincula-se a possibilidade de criar Esta criaccedilatildeo no entanto natildeo eacute
mais tomada como verdade tais como as criaccedilotildees da ciecircncia e da filosofia dogmaacutetica A
criaccedilatildeo aqui passa a ser vista como de fato eacute apenas uma forma de valorar a realidade
segundo as capacidades e limitaccedilotildees do homem Daiacute o perspectivismo
Nessa leitura entra em jogo uma forma de conceber a criaccedilatildeo que difere da
falsificaccedilatildeo a qual Nietzsche atribuiacute agrave ciecircncia e a filosofia dogmaacutetica No fundo tal como
em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira o autor trabalha aqui com duas possibilidades
inerentes agrave inesgotaacutevel capacidade humana de figuraccedilatildeo De um lado teriacuteamos o homem
dos conceitos que se embrenha nas criaccedilotildees do intelecto sem se dar conta da falsidade de
sua atuaccedilatildeo acabando por ficar preso nas redes de seu proacuteprio dogmatismo para o qual
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natildeo vecirc saiacuteda mesmo quando se torna consciente da falsidade de seus conceitos Aqui
Nietzsche fala propriamente em uma falsificaccedilatildeo da realidade posto que a atitude para
com os produtos do conhecimento implicaria na crenccedila na veracidade destes produtos
A esta atitude para com os produtos do intelecto o autor confronta o modo de
proceder do homem intuitivo do artista do filoacutesofo do futuro do espiacuterito livre todos
variaccedilotildees em torno de uma mesma compreensatildeo do papel do filoacutesofo Segundo Nietzsche
por agir para com os produtos do intelecto de maneira conscientemente artiacutestica o homem
que se liberta do dogmatismo da ciecircncia e da filosofia natildeo falsearia a realidade mas apenas
a dissimularia Deste modo o que estaacute em jogo natildeo eacute mais a falsidade dos produtos da
atuaccedilatildeo perspectivista humana mas a crenccedila em sua veracidade A ideia de
experimentalismo em Nietzsche estaacute estreitamente relacionada a esta compreensatildeo da
atuaccedilatildeo do intelecto Isto porque o filoacutesofo pensa seu experimentalismo como o
questionamento do quanto o homem poderia se aprofundar no niilismo ou seja quanto ele
poderia tornar-se consciente do caraacuteter meramente artiacutestico de seus conceitos de suas
verdades sem sucumbir
Uma filosofia experimental tal como eu a vivo antecipaexperimentalmente ateacute mesmo as possibilidades de um niilismo radicalsem querer dizer com isso que ela se detenha em uma negaccedilatildeo no natildeoem uma vontade de natildeo Ela quer em vez disso atravessar ateacute ao inversondash ateacute a um dionisiacuteaco dizer - sim ao mundo tal como eacute sem descontoexceccedilatildeo e seleccedilatildeo ndash quer o eterno curso circular ndash as mesmas coisas amesma loacutegica e iloacutegica do encadeamento Supremo estado que umfiloacutesofo pode alcanccedilar estar dionisiacamente diante da existecircncia ndashminha foacutermula para isso eacute amor fati (NFFP XIII 16 [32])121
Se o que o filoacutesofo diz aqui eacute dito com relaccedilatildeo ao mundo ldquosem desconto exceccedilatildeo e
seleccedilatildeordquo entatildeo tambeacutem implicaria um radical dizer-sim ateacute agrave pequenez de nossa
perspectiva humana Nesse sentido o amor fati tambeacutem significaria amar nossa
perspectiva em seu caraacuteter aparente sem sucumbir Segundo a compreensatildeo nietzschiana
em que aspectos das ciecircncias naturais satildeo tomados como suporte teoacuterico o perspectivismo
apareceria como uma postura em relaccedilatildeo ao conhecimento mais proacutexima das exigecircncias da
121 Foi utilizada a traduccedilatildeo de Rubens Rodrigues Torres filho do espoacutelio do Outono de 1888 constante novolume das obras selecionadas de Nietzsche para a coleccedilatildeo os pensadores
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proacutepria vida Pois na medida em que uma espeacutecie aparece para o filoacutesofo como
dependente de uma consideraccedilatildeo da realidade segundo suas necessidades seria a proacutepria
perspectividade que potencializaria o desenvolvimento daquela espeacutecie Em contrapartida
a confusatildeo entre o tomar como perspectivo o que eacute necessaacuterio agrave vida e o tomaacute-lo como
verdadeiro caracterizaria uma forma de vida decadente
Na medida em que o autor pensa a transvaloraccedilatildeo como esse movimento que busca
o inverso a partir do que eacute dado ou seja que considera que a chegada em um estaacutegio
superior de afirmaccedilatildeo apenas se torna possiacutevel quando se supera um estaacutegio radical de
negaccedilatildeo a passagem necessaacuteria pelo niilismo radical se torna uma parte importante de seu
procedimento de experimentaccedilatildeo Pois para o filoacutesofo o niilismo apresenta-se como uma
fase um estaacutegio no caminho da afirmaccedilatildeo mais radical o dionisiacuteaco dizer sim Nesse
sentido fundamental o experimentalismo nietzschiano estaria vinculado a uma tentativa de
superaccedilatildeo do niilismo radical
Como o fragmento acima citado demonstra a utilizaccedilatildeo dos termos ldquofilosofia
experimentalrdquo e ldquoamor fatirdquo pertencem ao periacuteodo dos uacuteltimos escritos nietzschianos em
que o filoacutesofo jaacute esboccedila uma tentativa de reconstruccedilatildeo de sua proacutepria obra122 A esta
tentativa pertence tambeacutem e de forma especial o conceito de transvaloraccedilatildeo o qual
vinculamos em nossa interpretaccedilatildeo agrave superaccedilatildeo do niilismo por meio de uma vivecircncia do
niilismo radical ou seja a tentativa de superar o niilismo atraveacutes do niilismo mesmo
122 Como sugere Charles Andler em ANDLER C Nietzsche sa vie et sa penseacutee Paris Gallimard 1958vol 2 p 13
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4 Quarto capiacutetulo ndash A perspectiva do valor e o valor das perspectivas
Qualquer interpretaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano enfrenta uma dificuldade
inicial peculiar a escassez de referecircncias a esta concepccedilatildeo tanto em textos publicados em
vida quanto na obra poacutestuma do filoacutesofo O termo ldquoperspectivismordquo aparece propriamente
apenas em poucas passagens da obra nietzschiana publicada O primeiro exemplo de
apariccedilatildeo deste termo que gostariacuteamos de analisar encontra-se no sect 354 de A Gaia Ciecircncia
que eacute de tal modo frequente em todos comentadores que trabalham a temaacutetica do
perspectivismo a ponto de quase ser considerada como um ponto de partida oficial dos
comentaacuterios do perspectivismo nietzschiano
Nesta passagem o perspectivismo eacute associado ao ldquofenomenalismordquo no que o autor
pretende como sendo uma afirmaccedilatildeo do caraacuteter amplamente restritivo que a consciecircncia
assume em seu pensamento Nesta consideraccedilatildeo das limitaccedilotildees de sua concepccedilatildeo de
consciecircncia que eacute afirmada em aberta contraposiccedilatildeo ao tratamento epistemoloacutegico
tradicional e seu par conceitual sujeitoobjeto o conceito de perspectivismo natildeo eacute no
entanto oferecido como uma contribuiccedilatildeo original mas eacute apresentado como um traccedilo
caracteriacutestico do pensamento do autor
Este eacute o verdadeiro fenomenalismo e perspectivismo como eu o entendoa natureza da consciecircncia animal ocasiona que o mundo de que podemosnos tornar conscientes seja soacute um mundo generalizado vulgarizado ndash quetudo o que se torna consciente por isso mesmo torna-se raso ralorelativamente tolo geral signo marca de rebanho que a todo tornar-seconsciente estaacute relacionada uma grande radical corrupccedilatildeo falsificaccedilatildeosuperficializaccedilatildeo e generalizaccedilatildeo (FWGC Livro V sect354)
Com sua referecircncia ao ldquoFenomenalismordquo de suas concepccedilotildees o autor de A Gaia
Ciecircncia demarca o acircmbito da investigaccedilatildeo a que se propotildee o aparecimento das realidades
em estudo Interessa ao autor portanto o estudo daquilo que se apresenta a noacutes em nossa
experiecircncia Mais ainda o autor assume o caraacuteter restritivo de sua investigaccedilatildeo do tema
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posto que eacute tomado como advindo de uma perspectiva limitada Do mesmo modo
consciente de que a atuaccedilatildeo da consciecircncia123 conduz a uma superficializaccedilatildeo daquilo que eacute
investigado por meio dela o autor denomina perspectivismo a sua apropriaccedilatildeo do objeto
na medida em que sua apropriaccedilatildeo desse objeto como toda aproximaccedilatildeo de qualquer
objeto por meio da consciecircncia apenas pode se dar de modo a falsear tornar comunicaacutevel
generalizar
Ao entender que sua filosofia esta demarcada por um fenomenalismo e um
perspectivismo o autor reconhece que sua abordagem dos problemas filosoacuteficos natildeo estaacute
alheia ao conhecimento de que toda posiccedilatildeo filosoacutefica apenas pode se dar por meio de uma
grande reduccedilatildeo e simplificaccedilatildeo da realidade Nesta compreensatildeo da necessaacuteria reduccedilatildeo e
superficializaccedilatildeo operada pela consciecircncia encontramos elementos da abordagem que
Nietzsche adota em seu Ensaio sobre Verdade e Mentira em Sentido Extra Moral
Notadamente a afirmaccedilatildeo do caraacuteter falsificador da atuaccedilatildeo da organizaccedilatildeo intelectual
humana124
Em ambos textos o autor parece partir do reconhecimento do avanccedilo das ciecircncias
naturais Esta abordagem eacute significativa porque a partir dela a consciecircncia apareceria para
noacutes como um fenocircmeno entre outros cada vez melhor conhecido e natildeo mais como
substacircncia separada da realidade125 Nesta leitura a consciecircncia atuando no sentido de
123 Vale ressaltar que Nietzsche aplica aqui a anaacutelise da consciecircncia de um modo distinto da tradiccedilatildeo Obrassobre a consciecircncia a razatildeo o entendimento humano satildeo comuns desde a modernidade mas o autor doEnsaio Sobre Verdade e Mentira trabalha com este conceito em um sentido fisioloacutegico e de certo modoevolucionista que distoa da concepccedilatildeo metafiacutesica da consciecircncia tal como esta foi entendida pela tradiccedilatildeoEsta interpretaccedilatildeo parte da consideraccedilatildeo do Ensaio Sobre Verdade e Mentira no sentido Extra-moral cujatemaacutetica e desenvolvimento eacute semelhante as do aforismo em questatildeo A consciecircncia aparece nessa concepccedilatildeocomo um oacutergatildeo do aparato humano uma adaptaccedilatildeo bioloacutegica que cumpre um papel essencial na manutenccedilatildeode nossa espeacutecie O trato naturalista que Nietzsche aplica a consciecircncia seraacute desenvolvido adiante124 Em ambos textos Nietzsche trabalha com a ideia de que o aparato racional humano ao constituir alinguagem simplifica a realidade em prol da sobrevivecircncia humana Ou seja ao inveacutes de estar voltado para averdade como se a realidade estivesse constituiacuteda de forma racional e apenas racionalmente pudesse serdesvelada a razatildeo humana trabalharia no sentido de tornar racional algo muito mais complexo do que a razatildeopossa compreender Assim na tentativa de converter esta complexidade pura em algo passiacutevel decomunicaccedilatildeo a razatildeo operaria uma ldquoviolecircnciardquo para com a realidade propriamente Note-se que toda estaexplicaccedilatildeo parece sugerir que haacute um algo que eacute traduzido em linguagem por meio de uma simplificaccedilatildeo Noentanto a existecircncia desse ldquoalgordquo se deveria muito mais a uma limitaccedilatildeo da linguagem com relaccedilatildeo ao que ofiloacutesofo tenta dizer do que propriamente uma crenccedila de Nietzsche em uma realidade em si que eacute traduzidaem linguagem por meio desta simplificaccedilatildeo Esperamos que isto fique claro no decorrer de nossa exposiccedilatildeoPor fim uma importante ressalva a ser feita diz respeito ao termo utilizado para se referir ao oacutergatildeoresponsaacutevel pela criaccedilatildeo da linguagem em ambos textos Em se Ensaio sobre Verdade e Mentira Nietzscherefere-se a esta faculdade como intelecto (Intelect) e no aforismo em questatildeo de A Gaia Ciecircncia o filoacutesofoconsidera a consciecircncia a estrutura responsaacutevel por esta conversatildeo125 Nesse sentido o autor do aforismo estaacute em conformidade com o essencial da leitura de Lange dafilosofia e do modo como a aplicaccedilatildeo do meacutetodo cientiacutefico conduziria a um afastamento cada vez maior das
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gerar comunicaccedilatildeo conduz a uma reduccedilatildeo cada vez maior de todos os aspectos internos
tudo que haacute de mais individual na vida humana a uma generalizaccedilatildeo passiacutevel de ser
tornada comum Este aspecto generalizante faz com que fiquemos impedidos de nos
relacionar com os eventos verdadeiros ateacute mesmo de nossa proacutepria existecircncia pessoal
Assim perspectivamos o que haacute de verdadeiro acerca de nossa proacutepria constituiccedilatildeo interna
que eacute individual e natildeo passiacutevel de comunicaccedilatildeo na tentativa de nos tornarmos conscientes
de acontecimentos cuja ocorrecircncia natildeo permitiria generalizaccedilatildeo126
A anaacutelise nietzschiana se destaca pela associaccedilatildeo entre perspectivismo e
consciecircncia como uma forma de inversatildeo da tradiccedilatildeo filosoacutefica Ou seja se a tradiccedilatildeo
compreende que seria o elemento racional humano o elemento potencializador do
conhecimento Nietzsche quer problematizar a natureza desta concepccedilatildeo de conhecimento
que para o filoacutesofo natildeo se relacionaria com a descoberta de verdades disponiacuteveis agrave razatildeo
Sua reflexatildeo criacutetica portanto diz respeito agrave anaacutelise de nossa capacidade de conhecer e do
oacutergatildeo que a tradiccedilatildeo considera responsaacutevel por este conhecimento
Este movimento se realiza com o mesmo sentido com que a tradiccedilatildeo teria operado a
criacutetica ao sensualismo como a desqualificaccedilatildeo dos oacutergatildeos dos sentidos como fonte do
conhecimento Ou seja assim como a tradiccedilatildeo desqualifica os sentidos como fonte de
conhecimento por considerar que sua afinidade com o movimento comprometeria sua
capacidade de revelar qualquer coisa verdadeira Nietzsche desqualifica a consciecircncia
como fonte de conhecimento e suspeita de suas certezas como se natildeo se tratasse de algo
proacuteprio da realidade Assim o primeiro aspecto de uma teoria perspectivista do
conhecimento trata da natureza de nossa consciecircncia a qual natildeo eacute considerada na leitura
nietzschiana como oacutergatildeo para a verdade Desde que sua funccedilatildeo estaria relacionada agrave
generalizaccedilatildeo a vulgarizaccedilatildeo a igualaccedilatildeo do natildeo igual
supersticcedilotildees metafiacutesicas tal como a concepccedilatildeo tradicional de consciecircncia Esta passa a ser analisada tambeacutemaqui em sua geraccedilatildeo e desenvolvimento como fenocircmeno e natildeo mais como substacircncia eterna e imortal126 Este argumento da ignoracircncia no qual somos mantidos em relaccedilatildeo agrave nossa constituiccedilatildeo interna eacute caro aNietzsche para sua negaccedilatildeo de que obtemos qualquer acesso agrave verdade assim como que esta verdade se nosdaacute a conhecer atraveacutes da consciecircncia Este argumento jaacute aparece em seu Ensaio Sobre Verdade e Mentira nosentido Extra-moral em um sentido muito proacuteximo do utilizado na passagem da Gaia Ciecircncia citada acimaldquoO que sabe propriamente o homem sobre si mesmo Sim seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-secompletamente como se estivesse em uma vitrina iluminada Natildeo lhe cala a natureza quase tudo mesmosobre seu corpo para mantecirc-lo agrave parte das circunvoluccedilotildees dos intestinos do fluxo raacutepido das correntessanguiacuteneas das intrincadas vibraccedilotildees das fibras exilado e trancado em uma consciecircncia orgulhosa charlatatildeEla atirou fora a chave e ai da fatal curiosidade que atraveacutes de uma fresta foi capaz de sair uma vez docubiacuteculo da consciecircncia e olhar para baixo e agora pressentiu que sobre o implacaacutevel o aacutevido o insaciaacutevel oassassino repousa o homem na indiferenccedila de seu natildeo-saber e como que pendente em sonhos sobre o dorsode um tigrerdquo (WLSVM sect1)
210
O aparato cognitivo humano aparece aqui como a ferramenta atraveacutes da qual nossa
espeacutecie se livra da pluralidade e extrema individualidade a fim operacionalizar uma cadeia
de comando produtiva Em outros termos este aparato teria evoluiacutedo em funccedilatildeo de uma
estrateacutegia de sobrevivecircncia tipicamente humana estrateacutegia em que estaria envolvida a
dissimulaccedilatildeo de elementos da realidade127 para efeitos de comunicaccedilatildeo Assim a
consciecircncia que eacute tomada pela filosofia moderna como instrumento revelador da verdade
passa a ser considerada como instrumento ldquomascaradorrdquo oacutergatildeo que cria metaacuteforas a partir
da verdade multifacetada e em constante mudanccedila
E esta seria a passagem na obra nietzschiana em que o termo perspectivismo
aparece com maior clareza Na grande quantidade de notas epistemoloacutegicas reunidas nos
poacutestumos nietzschianos cumpre notar que o termo perspectivismo eacute mencionado apenas
raras vezes O tratamento destas passagens como constituindo um conjunto de notas
epistemoloacutegicas no entanto nada tem a ver com a determinaccedilatildeo dada por seu autor a estas
Este tratamento relaciona-se com uma apreciaccedilatildeo destes textos como constituindo uma
profunda reflexatildeo acerca da natureza do conhecimento suas consequecircncias e pressupostos
Sobressai entre estas passagens o fragmento 7[60] de fins de 1886 e iniacutecios de 1887
bastante conhecido dos comentadores e ao qual fazemos repetidas referecircncias nesse
trabalho
Contra o positivismo que fica no fenocircmeno ldquosoacute haacute fatosrdquo eu diria natildeojustamente natildeo haacute fatos soacute interpretaccedilotildees [Interpretationen] Natildeopodemos verificar nenhum fato ldquoem sirdquo talvez seja um absurdo quereruma tal coisa ldquoTudo eacute subjetivordquo dizeis mas jaacute isso eacute interpretaccedilatildeo[Auslegung] O ldquosujeitordquo natildeo eacute nada de dado mas sim algo a mais
127 Estes argumentos satildeo apresentados por Nietzsche em oposiccedilatildeo ao que a tradiccedilatildeo postulava motivo peloqual o autor se vecirc na necessidade de fazer referecircncia a um objeto ideal tal como a realidade na tentativa deprovar que se a consciecircncia evolui no sentido de propiciar a comunicaccedilatildeo entatildeo seu funcionamentonecessariamente envolve a eliminaccedilatildeo de elementos do real a fim de criar realidades que possam sercomunicadas Assim sua hipoacutetese eacute apresentada para demonstrar que nosso elemento racional natildeo poderiaser algo afeito agrave natureza veraz da realidade como um oacutergatildeo para a verdade mas que sua atuaccedilatildeo apenas serestringiria agrave criaccedilatildeo de verdades que possam ser comunicadas A permanecircncia na filosofia de juventude deNietzsche deste elemento uacuteltimo absolutamente individual eacute resultado da influecircncia da filosofia metafiacutesicade Schopenhauer e torna parte da filosofia nietzschiana passiacutevel de ser relacionada a uma forma depensamento metafiacutesico No entanto acreditamos que ainda na juventude Nietzsche sustenta uma reflexatildeoeminentemente criacutetica para com toda forma de metafiacutesica Jaacute em 1872 atraveacutes da influecircncia naturalistaobtida da leitura de Lange Nietzsche se vecirc de posse de um arsenal de argumentos cientiacuteficos que lhepossibilitam recusar qualquer recurso a uma explicaccedilatildeo metafiacutesica De que o filoacutesofo se afasta jaacute naqueleperiacuteodo de uma concepccedilatildeo metafiacutesica de verdade temos como testemunho os textos analisados nos primeiroscapiacutetulos deste trabalho em que o filoacutesofo procura responder agrave diversas questotildees referentes agrave verdade combase nos resultados das ciecircncias naturais notadamente na anaacutelise dos oacutergatildeos dos sentidos
211
inventado posto por traacutes - Eacute afinal necessaacuterio pocircr o inteacuterprete por traacutes dainterpretaccedilatildeo Isso jaacute eacute poesia hipoacutetese (NFFP 1886-1887 7[60])
A passagem citada eacute geralmente interpretada como a negaccedilatildeo da possibilidade do
conhecimento independentemente do sujeito que conhece e de sua constituiccedilatildeo especiacutefica
Assumimos esta interpretaccedilatildeo como propiacutecia agrave elucidaccedilatildeo do perspectivismo nietzschiano
que vem a filiaacute-lo aos resultados da filosofia kantiana Poreacutem com isso natildeo queremos dizer
que o autor destas notas permanece preso agraves consequecircncias teoacutericas a que Kant chega
Pois ao passo que Nietzsche entende o conhecimento como trabalho ativo da consciecircncia
em sua postulaccedilatildeo mais tardia esta ideia se liga agrave inutilidade em se conceber uma realidade
natildeo interpretativa
Ainda que com estas ressalvas Nietzsche conserva algo do espiacuterito da primeira
criacutetica kantiana ao assumir que todo conhecer seria produto da atuaccedilatildeo do sujeito Ou seja
que o conhecimento teria expressatildeo fenomecircnica como apropriaccedilatildeo de eventos natildeo
racionalizaacuteveis de acordo com nossa perspectiva de sujeito O que de partida afastaria a
possibilidade de que em algum momento de nossas formulaccedilotildees teoacutericas estejamos lidando
com fatos brutos ou verdades puras desinteressadas o que jaacute denunciaria o caraacuteter
racional dos elementos por detraacutes da interpretaccedilatildeo Como se pode notar esta constataccedilatildeo jaacute
estaacute presente no aforismo 354 da Gaia Ciecircncia analisado acima
Nesta leitura o conhecimento do mundo pode apenas ser visto como uma
possibilidade quando levamos em consideraccedilatildeo que conhecimento natildeo eacute a explicitaccedilatildeo do
sentido do mundo sua realidade uacuteltima Natildeo haacute um sentido por traacutes mas uma
multiplicidade de sentidos em um mundo permanentemente em mudanccedila impossiacutevel de
apreender de uma vez por todas O que nos conduz agrave necessidade de considerar outra
apariccedilatildeo do termo perspectivismo nos poacutestumos nietzschianos
41 O perspectivismo nietzschiano como uma negaccedilatildeo da objetividade
Em uma anotaccedilatildeo poacutestuma Nietzsche questiona a crenccedila dos fiacutesicos em um mundo
verdadeiro Crenccedila que o filoacutesofo julga subjacente agraves teorias das ciecircncias como um todo
Nesta leitura o mundo aparente enquanto o mundo disponiacutevel para cada um segundo suas
212
capacidades de apreensatildeo se revelaria como paacutelido reflexo deste mundo dos fatos A
criacutetica nietzschiana agraves ciecircncias aqui cumpre os mesmos estaacutegios de sua criacutetica agrave filosofia
dogmaacutetica Assim do mesmo modo que o filoacutesofo houvera criticado a concepccedilatildeo de um
mundo platocircnico das ideias rebate aqui a concepccedilatildeo de aacutetomos que eacute tomada como uma
mera ficccedilatildeo para fins da ciecircncia
Os fiacutesicos acreditam em um ldquomundo verdadeirordquo agrave sua maneira umafirme sistematizaccedilatildeo de aacutetomos igual para todos os seres [Wesen] e commovimentos necessaacuterios ndash de modo que para eles o ldquomundo aparenterdquose reduz ao lado acessiacutevel a cada ser [Wesen] segundo sua espeacutecie do ser[Sein] universal e universalmente necessaacuterio (acessiacutevel e tambeacutem aindapreparado ndash feito ldquosubjetivordquo) Mas com isso enganam-se o aacutetomo quepostulam eacute deduzido a partir da loacutegica daquele perspectivismo daconsciecircncia ndash tambeacutem ele proacuteprio eacute portanto uma ficccedilatildeo subjetiva Essaimagem de mundo que eles projetam natildeo eacute em absoluto essencialmentedistinta da imagem de mundo subjetiva ela soacute eacute construiacuteda com sentidosestendidos pelo pensar mas absolutamente com nossos sentidos Porfim sem sabecirc-lo omitiram algo da constelaccedilatildeo justamente o necessaacuterioperspectivismo em virtude do qual cada centro de forccedila - e somente ohomem - constroacutei a partir de si todo o mundo restante isto eacute medeapalpa forma pela sua forccedila Esqueceram de computar essa forccedila quepotildee perspectivas no ldquoser verdadeirordquo [ldquowahre Seinrdquo] Dito na linguagemda escola o ser-sujeito Eles acham que este foi ldquodesenvolvidordquo que veiode acreacutescimo - Mas o quiacutemico ainda o usa tal eacute o ser-especiacutefico quedetermina o agir e reagir de tal e qual maneira sempre de acordo(NFFP 188814 [186])
Segundo esta leitura tudo o que eacute fato para noacutes jaacute seria o resultado do trabalho
ativo da consciecircncia o que natildeo garante que hajam fatos por traacutes do que nos eacute dado como
objeto de conhecimento Esta afirmaccedilatildeo tem como consequecircncia mais radical a negaccedilatildeo de
um mundo a ser interpretado um mundo para aleacutem das interpretaccedilotildees Isso explica a
negaccedilatildeo do mundo aparente junto agrave negaccedilatildeo do mundo verdadeiro tal como se observa na
passagem de Crepuacutesculo dos Iacutedolos cujo subtiacutetulo histoacuteria de um erro denuncia a
falsidade por traacutes da constituiccedilatildeo do conceito de mundo verdadeiro Processo em que
segundo Nietzsche a filosofia kantiana ocupa uma etapa importante128
128 Esta passagem eacute parte do livro Trecircs do Crepuacutesculo dos Iacutedolos a ldquoRazatildeordquo em filosofia onde Nietzschediz ldquo3 O mundo verdadeiro - inatingiacutevel indemonstraacutevel despromoviacutevel mas o proacuteprio pensamento disso -um consolo uma obrigaccedilatildeo um imperativo (No fundo o velho sol mas visto atraveacutes da neblina e doceticismo A ideia tornou-se elusiva paacutelida noacuterdica koumlnigsbergiana)rdquo O aspecto ldquokoumlnigsbergianordquo domundo real eacute claro refere-se agrave concepccedilatildeo kantiana do mundo ldquonoumenalrdquo
213
Com o que fica dito nestas observaccedilotildees jaacute nos aproximamos dos elementos
fundamentais de uma compreensatildeo perspectivista da verdade tal como acreditamos poder
extrair do pensamento nietzschiano Primeiramente a afirmaccedilatildeo norteadora de que natildeo haacute
fatos apenas interpretaccedilotildees que regula a compreensatildeo da verdade em questatildeo como
contraacuterio tanto ao conceito de verdade herdado da tradiccedilatildeo quanto a uma concepccedilatildeo de
verdade com base na atuaccedilatildeo desinteressada do pesquisador presente na concepccedilatildeo
positivista da filosofia
De fato a pretensatildeo positivista de localizar fatos brutos no efetivo sua esperanccedila
de atingir os fatos eternos por traacutes das coisas ultrapassa os limites impostos pelas
consideraccedilotildees criacuteticas nietzschianas Nesta leitura a renuacutencia a qualquer origem natildeo
investigada assim como a negaccedilatildeo da permanecircncia de qualquer fundamento uacuteltimo satildeo
componentes ineliminaacuteveis Por traacutes desta consideraccedilatildeo criacutetica haacute uma compreensatildeo baacutesica
segundo a qual em nossa atividade cognoscitiva temos sempre apenas interpretaccedilotildees de
acontecimentos que nos satildeo dados sem forma racional anterior sendo necessaacuterio tornaacute-los
conscientes o que significa nesta leitura categorizaacute-los segundo os ditames de nossa
racionalidade o que jaacute seria acreacutescimo na constituiccedilatildeo de nossas interpretaccedilotildees Em outras
palavras a consideraccedilatildeo da realidade segundo a pressuposiccedilatildeo de fatos seria um defeito do
qual cumpriria ao filoacutesofo se libertar sempre que este pretendesse uma aproximaccedilatildeo
cientiacutefica da realidade
A elucidaccedilatildeo dos erros fundamentais dos quais os filoacutesofos devem se libertar eacute um
aspecto frequente nas obras nietzschianas Em sua Genealogia da Moral estes erros
fundamentais aparecem como traccedilos de um ideal que guiaria as formulaccedilotildees dogmaacuteticas
em filosofia A partir de sua concepccedilatildeo do caraacutecter perspectivo de todo conhecimento ao
filoacutesofo interessaria antes de tudo criticar a concepccedilatildeo metafiacutesica da verdade como uma
posiccedilatildeo que concebe algo tatildeo absurdo quanto uma visatildeo do nada Com isso a posiccedilatildeo
nietzschiana implicaria a compreensatildeo de que natildeo haacute verdade que natildeo seja em si uma
perspectiva e de que de modo aproximado natildeo haacute conhecimento que natildeo parta de uma
motivaccedilatildeo
Esta compreensatildeo de uma a motivaccedilatildeo a guiar todo posicionamento filosoacutefico estaacute
presente em um dos relatos mais abrangentes acerca do caraacuteter perspectivo do
conhecimento no aforismo doze da terceira dissertaccedilatildeo de Genealogia da Moral Neste
texto Nietzsche rejeita a ldquoposiccedilatildeo asceacutetica que se potildee a filosofarrdquo como uma forma de
214
negaccedilatildeo da vida que descarregaraacute seu arbiacutetrio ldquoNaquilo que eacute experimentado do modo
mais seguro como verdadeiro como realrdquo ou seja que em sua tentativa de perverter a
proacutepria verdade ldquobuscaraacute o erro precisamente ali onde o autecircntico instinto de vida situa
incondicionalmente a verdaderdquo (GMGM III sect12) Com isso com as ldquoresolutas inversotildees
das perspectivasrdquo operada pelo ideal asceacutetico que se potildee a filosofar a tradiccedilatildeo teria
procurado operar uma negaccedilatildeo da verdade de que haacute ldquoapenas uma visatildeo perspectiva
apenas um lsquoconhecerrsquo perspectivordquo (GMGM III sect12)
Na medida em que a tradiccedilatildeo filosoacutefica eacute entendida aqui como tendo se alinhado a
um ideal de negaccedilatildeo da corporeidade Nietzsche interpreta toda a filosofia antiga como a
tentativa de promover uma falsificaccedilatildeo uma corrupccedilatildeo uma simplificaccedilatildeo da verdadeira
objetividade129 que implicaria na pluralidade de perspectivas inerente a toda corporeidade
O traccedilo distintivo desta falsificaccedilatildeo seria a imaginaccedilatildeo de uma objetividade ideal uma
realidade das verdades eternas e imutaacuteveis Segundo a compreensatildeo nietzschiana no
entanto a objetividade como apreensatildeo dos objetos em sua forma natildeo interpretativa seria
inalcanccedilaacutevel para noacutes Objetividade nesse sentido implicaria uma ausecircncia de
necessidades um desinteresse que natildeo eacute caracteriacutestico da atividade teoacuterica Assim o autor
afirma em Genealogia da Moral
Devemos afinal como homens do conhecimento ser gratos a taisresolutas inversotildees das perspectivas e valoraccedilotildees costumeiras com que oespiacuterito de modo aparentemente sacriacutelego e inuacutetil enfureceu-se consigomesmo por tanto tempo ver assim diferente querer ver assim diferente eacuteuma grande disciplina e preparaccedilatildeo do intelecto para a sua futura
129 Entende-se por objetivismo a concepccedilatildeo filosoacutefica que associa conhecimento verdadeiro aoconhecimento dos objetos independente da apreensatildeo de seres conscientes Em um sentido kantianoobjetividade significa a qualidade dos objetos em-si independentes das condiccedilotildees de constituiccedilatildeo de taisobjetos para a experiecircncia Contemporaneamente a vertente filosoacutefica que entende que o valor de verdade deasserccedilotildees acerca da realidade depende da existecircncia de tais objetos se chama realismo em contraposiccedilatildeo agravecorrente anti-realista a qual se constitui em torno da negaccedilatildeo dessa dependecircncia Tal como o objetivismo operspectivismo nietzschiano ao menos em sua formulaccedilatildeo mais primitiva parece requerer uma interpretaccedilatildeoda realidade como algo natildeo interpretativo ou objetivo De acordo com essa interpretaccedilatildeo falar emperspectivismo significa dizer que natildeo temos acesso agraves coisas como elas satildeo para aleacutem de nossainterpretaccedilatildeo A existecircncia de uma realidade objetiva a partir do projeto criacutetico kantiano se relacionaintimamente com a postulaccedilatildeo das coisas em si entidades anteriores a constituiccedilatildeo do fenocircmeno daexperiecircncia Bem se vecirc que Nietzsche natildeo eacute indiferente a polecircmica em torno das coisas em si e embora parteconsideraacutevel de suas teorias sobre a verdade pareccedilam repousar na dependecircncia de tais objetos seupensamento se filia claramente a corrente anti-realista no sentido de que sustenta em boa parte de suaproduccedilatildeo uma criacutetica incisiva as coisas em si No entanto a afirmaccedilatildeo frequente em seu Ensaio sobreVerdade e Mentira de que nossas afirmaccedilotildees do mundo consideradas verdadeiras satildeo de fato metaacuteforas deque a verdade natildeo passa ao final de uma ilusatildeo tem em seu caraacuteter iacutentimo a necessidade de falsear taisverdades e afirmaccedilotildees
215
ldquoobjetividaderdquo ndash a qual natildeo eacute entendida como ldquoobservaccedilatildeodesinteressadardquo (um absurdo sem sentido) mas como a faculdade de terseu proacute e seu contra sob controle e deles poder dispor de modo a saberutilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas einterpretaccedilotildees afetivas De agora em diante senhores filoacutesofosguardemo-nos bem contra a antiga perigosa faacutebula conceitual queestabelece um ldquopuro sujeito do conhecimento isento de vontade alheio agravedor e ao tempordquo guardemo-nos dos tentaacuteculos de conceitos contraditoacuterioscomo ldquorazatildeo purardquo ldquoespiritualidade absolutardquo ldquoconhecimento em sirdquo ndashtudo isto pede que se imagine um olho que natildeo pode absolutamente serimaginado um olho voltado para nenhuma direccedilatildeo no qual as forccedilasativas e interpretativas as que fazem com que ver seja ver-algo devemestar imobilizadas ausentes exige-se do olho portanto algo absurdo esem sentido Existe apenas uma visatildeo perspectiva apenas um ldquoconhecerrdquoperspectivo e quanto mais olhos diferentes olhos soubermos utilizarpara esta coisa tanto mais completo seraacute no ldquoconceitordquo dela nossaldquoobjetividaderdquo (GMGM III sect12)
Ora se toda investigaccedilatildeo se orienta por um objeto a idealizaccedilatildeo da pesquisa
desinteressada natildeo faria nenhum sentido Do mesmo modo a objetividade enquanto
propriedade de um objeto ideal exterior a todo interesse seria uma criaccedilatildeo tornada
operante por meio da negaccedilatildeo do verdadeiro aspecto da objetividade sua perspectividade
Ou seja se toda apreensatildeo da realidade apenas se daacute de acordo com interesses
determinados entatildeo soacute nos restaria ansiar por uma objetividade na forma determinada pela
comparaccedilatildeo das diversas perspectivas sendo que jamais alcanccedilaremos a objetividade
absoluta dado serem inuacutemeras as perspectivas inuacutemeras as interpretaccedilotildees possiacuteveis
Enquanto tentativa de atingir uma realidade ideal o ideal asceacutetico se mostra como
uma forma fracassada de se fazer filosofia No entanto a atuaccedilatildeo dos filoacutesofo segundo os
preceitos deste ideal trariam como consequecircncia positiva a preparaccedilatildeo para uma forma de
pesquisar afeita agrave diversidade de perspectivas Nesta leitura a objetividade passa a ser
compreendida como uma idealizaccedilatildeo uma hipoteacutetica reuniatildeo de todas as perspectivas
possiacuteveis Para o autor o exerciacutecio de novas perspectivas no caso a perspectiva do ideal
asceacutetico prepararia o terreno para uma nova compreensatildeo do conhecimento dos conceitos
e da objetividade e a proacutepria restriccedilatildeo dos termos conhecimento objetividade e conceito
que encontramos nesta passagem implica uma interpretaccedilatildeo perspectiva de conceitos da
tradiccedilatildeo
Pretender conhecer a essecircncia em si do mundo eacute um disparate pois conhecer eacute
exatamente apropriar-se tornar uma coisa no que ela eacute de fato e natildeo desvendar sua
216
essecircncia uacuteltima Tal ldquodesvelamentordquo se fosse possiacutevel seria qualquer coisa mas nunca
conhecimento Eacute a proacutepria imposiccedilatildeo das necessidades do ser que interpreta que faz com
que ver se torne visatildeo de algo Se natildeo haacute interpretaccedilatildeo independente das necessidades de
quem interpreta e se essas necessidades satildeo para cada indiviacuteduo o valor para ele entatildeo
toda interpretaccedilatildeo seria consequecircncia natildeo apenas de uma perspectiva mas tambeacutem de um
conjunto de valores Por sua vez a razatildeo o proacuteprio instrumento que segundo a tradiccedilatildeo nos
conduziria agrave verdade eterna por traacutes das coisas distorce inevitavelmente o real
Nessa interpretaccedilatildeo as conclusotildees de Nietzsche acerca da natureza perspectiva do
conhecimento satildeo contrapostas frontalmente agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento tal
como a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental a consolidou Desde os princiacutepios da filosofia a
atividade de conhecer eacute interpretada como o esforccedilo humano na tentativa de descortinar a
realidade de sua aparente transitoriedade e assim revelar sua verdade objetiva posta por
traacutes das coisas O ideal de verdade a determinaccedilatildeo da accedilatildeo a partir da postulaccedilatildeo de fins da
razatildeo e a dicotomia entre mundo verdadeiro e o mundo aparente seriam os elementos
identificados por Nietzsche como constitutivos da concepccedilatildeo tradicional de conhecimento
Dentre estes elementos constitutivos destaca-se o proacuteprio ideal de verdade o qual em
Aleacutem do Bem e do Mal eacute tomado como ldquoa ceacutelebre veracidade que ateacute agora todos os
filoacutesofos reverenciaramrdquo (JGBBM I sect 01) e que em Genealogia da Moral apresenta-se
como ldquoa feacute no proacuteprio ideal asceacuteticordquo (GMGM III sect 24)
Seraacute justamente contra este ideal de verdade que tem suas origens ligadas
diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta a Nietzsche como fundamento
constituidor do niilismo o objeto privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual o
filoacutesofo mobilizaraacute sua concepccedilatildeo de interpretaccedilatildeo Por outro lado quando em Genealogia
da Moral Nietzsche representa a interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja
renuacutencia os cientistas pensam obter sua honra como uma tendecircncia agrave ldquoviolentar ajustar
abreviar omitir preencher imaginar falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do
interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma uma criacutetica jaacute suportada em seus escritos de
juventude que naquele momento se apresentava na forma da explicitaccedilatildeo da formaccedilatildeo da
concepccedilatildeo tradicional de verdade e da constituiccedilatildeo da linguagem como uma forma de
dissimulaccedilatildeo da realidade
A defesa nietzschiana da interpretaccedilatildeo como forma mais adequada de verdade
estaria ligada a uma criacutetica ao ideal tradicional de verdade que jaacute se encontrava na filosofia
217
de juventude do autor Nessa leitura sua criacutetica agrave concepccedilatildeo tradicional de verdade se daacute
na forma de uma defesa da interpretaccedilatildeo como noccedilatildeo mais adequada do que a verdade
poderia significar e como posiccedilatildeo contraacuteria agrave noccedilatildeo de verdade encampada por valores
niilistas Esta criacutetica tambeacutem reclamaria em sua criacutetica que os ldquopensadores mais fortes
mais vitais ainda sedentos de vidardquo viessem a ldquotomar partido contra a aparecircncia e
pronunciar jaacute com altivez a palavra lsquoperspectivarsquordquo (JGBBM I sect10)
Por outro lado assim como a concepccedilatildeo de verdade vinculada agrave valores de
decadecircncia teria no platonismo suas primeiras origens tambeacutem a dicotomia entre mundo
verdadeiro e mundo aparente130 outro aspecto fundamental da concepccedilatildeo niilista vinculada
por Nietzsche a um ldquoniilismo e sinal de uma alma em desespero mortalmente cansadardquo
(JGBBM I sect10) teria suas raiacutezes no racionalismo socraacutetico Em sua criacutetica a esta
dicotomia fundamental o autor atribui um cansaccedilo e desilusatildeo essencial conducente ao
nada como forma de repouso a toda consideraccedilatildeo da necessidade de se defender a
existecircncia de uma realidade apartada da realidade das perspectivas e da interpretaccedilatildeo
Mas se a realidade do aleacutem-mundo teria sua origem no platonismo o filoacutesofo
reconhece sua sacralizaccedilatildeo na crenccedila cristatilde de um mundo do aleacutem A determinaccedilatildeo da accedilatildeo
a partir da postulaccedilatildeo de fins da razatildeo131 como uma forma de estabelecer-se virtudes a
partir da razatildeo que se vincula a uma concepccedilatildeo teoloacutegica e que na modernidade vincula-se
tanto agrave ideia cristatilde de um Deus como fonte do bem quanto na concepccedilatildeo moralista agrave ideia
de uma tendecircncia ao bem inerente agrave racionalidade teria encontrado tambeacutem no platonismo
sua origem e estiacutemulo na equaccedilatildeo que faz equivaler razatildeo virtude e felicidade
Em todas estes posicionamentos criacuteticos o ponto em comum seria a compreensatildeo
nietzschiana da razatildeo como elemento falseador do caraacuteter perspectivo da realidade Assim
o filoacutesofo enxerga na supervalorizaccedilatildeo da razatildeo um risco para a cultura e contra a
decadecircncia uma maacute ferramenta posto que a crenccedila na razatildeo natildeo eacute vista pelo filoacutesofo como
uma forma de se contrapor a algo que ela mesma figura com necessidade Ou seja em sua
leitura quando os filoacutesofos e moralistas fazem da razatildeo um meio para sair do processo de
decadecircncia ldquoelegem como meio como salvaccedilatildeordquo algo que ldquoeacute apenas mais uma expressatildeo
da deacutecadencerdquo (GDCI II sect11) Assim em sua contraposiccedilatildeo a toda forma de
130 Conforme (JGBBM I sect10) e a importante seccedilatildeo de Crepuacutesculo dos Iacutedolos Como o verdadeiro mundoacabou por se tornar uma faacutebula em que a filosofia platocircnica ocupa o primeiro estaacutegio do processo decriaccedilatildeo do ideal131 Esta ideia fundamental eacute narrada em Crepuacutesculo do Iacutedolos na seccedilatildeo sobre O problema de Soacutecrates sect10
218
melhoramento do homem toda forma de estabelecimento de virtudes por meio de uma
supervalorizaccedilatildeo da razatildeo Nietzsche defende a proeminecircncia dos instintos como forma de
julgar as accedilotildees humanas Pois entende que ldquoTer de combater os instintos ndash eis a foacutermula da
deacutecadencerdquo mas ldquoenquanto a vida ascende felicidade eacute igual a instintordquo (GDCI II sect11)
Com isso o filoacutesofo acredita opor-se ao platonismo assim como agrave proacutepria tradiccedilatildeo
filosoacutefica na medida em que faz sobressair o corpo em contraposiccedilatildeo agrave razatildeo e a ideia de
objetividade deduzida a partir dela
Se a noccedilatildeo de objetividade segundo a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento
seria apenas um valor que perde sentido com a constataccedilatildeo da inexistecircncia de uma
realidade ideal entatildeo sempre que se credita possuir ou pelo menos ter direito de atingir a
interpretaccedilatildeo definitiva opera-se no interior de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica e como tal
apenas uma ilusatildeo O conhecimento soacute tem sentido se considerado em suas limitaccedilotildees
enquanto conhecimento humano determinado pelo conjunto de interesses que guiam sua
busca Do ponto de vista de uma realidade objetiva no entanto ele natildeo pode ser
totalizante
Por isso na continuaccedilatildeo do fragmento poacutestumo citado acima Nietzsche nos diz
ldquoTanto quanto a palavra lsquoconhecimentorsquo tem sentido o mundo eacute conheciacutevel mas ele eacute
interpretaacutevel de outra maneira ele natildeo tem nenhum sentido atraacutes de si mas sim inuacutemeros
sentidos lsquoperspectivismorsquordquo (NFFP 1886-1887 7[60]) Haacute tantos sentidos ldquopor traacutesrdquo da
realidade quantas interpretaccedilotildees possiacuteveis da mesma Pois o sentido eacute sempre um sentido
para algueacutem nunca um sentido ldquoem-sirdquo Assim ao mesmo tempo em que Nietzsche afirma
que o conhecimento humano eacute possiacutevel ele nega a pretensatildeo de se atingir uma verdade
absoluta Logo haacute tantas formas de conhecimento quantas forma de configuraccedilatildeo de
necessidades especiacuteficas
Natildeo admira que a concepccedilatildeo tradicional de verdade compreendida por Nietzsche
como tendo suas origens ligadas diretamente ao racionalismo socraacutetico e que se apresenta
ao filoacutesofo como fundamento constituidor do niilismo tenha se tornado o objeto
privilegiado da criacutetica nietzschiana contra o qual este mobiliza sua concepccedilatildeo de
interpretaccedilatildeo Tendo renunciado agrave possibilidade de obter um conhecimento coerente com
os princiacutepios da vida a partir da razatildeo Nietzsche passa a compreender o conhecimento
como expressatildeo de uma determinada forma de valoraccedilatildeo da realidade Posto que natildeo
219
havendo fatos por traacutes das coisas conhecer natildeo pode ser algo como esta objetividade
imaginada pelas cabeccedilas metafiacutesicas
Conhecer na interpretaccedilatildeo nietzschiana seria o mesmo que interpretar segundo os
padrotildees humanos de acordo com a atuaccedilatildeo dos instintos que guiam nossas opccedilotildees teoacutericas
Ou seja o conhecimento eacute sempre consequecircncia de uma determinada configuraccedilatildeo de
necessidades o que significa uma determinada ordenaccedilatildeo das necessidades internas ao
indiviacuteduo Isto no entanto de modo algum elimina a possibilidade de outras
interpretaccedilotildees
A criacutetica nietzschiana agrave tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave incapacidade desta em
reconhecer adequadamente os limites da perspectiva a qual o filoacutesofo vecirc como elemento
ineliminaacutevel de toda formulaccedilatildeo teoacuterica e que aparece para o filoacutesofo como viacutecio inerente
a toda forma de consideraccedilatildeo dogmaacutetica Assim quando Nietzsche representa a
interpretaccedilatildeo enquanto concepccedilatildeo de verdade de cuja renuacutencia os cientistas pensam obter
sua honra como uma tendecircncia ldquoa violentar ajustar abreviar omitir preencher imaginar
falsear e o que mais seja proacuteprio da essecircncia do interpretarrdquo (GMGM III sect 24) retoma
suas concepccedilotildees de juventude acerca da formaccedilatildeo da verdade e da constituiccedilatildeo da
linguagem como uma forma de dissimulaccedilatildeo da realidade defendendo essa concepccedilatildeo
como componente de sua proacutepria compreensatildeo do conhecimento contraacuteria agrave noccedilatildeo de
verdade niilista
Com isso reconhece-se que sua defesa da interpretaccedilatildeo estaacute ligada a sua criacutetica ao
ideal tradicional de verdade Certamente esta atitude natildeo qualifica um posicionamento
teoacuterico determinado em relaccedilatildeo agrave verdade embora surja como reflexo de uma criacutetica ao
sentido tradicional de verdade Com isso a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma
forma de se elevar para aleacutem das consideraccedilotildees em torno da noccedilatildeo tradicional de verdade e
sua relaccedilatildeo com a perspectividade inerente a toda consideraccedilatildeo da realidade pode ser vista
como um posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade sem
no entanto estabelecer-se como outra forma de verdade Considerando-se o pensamento
nietzschiano em sua totalidade considerando-se especialmente o progresso de suas
consideraccedilotildees criacuteticas acerca do conhecimento e da verdade o que nos eacute apresentado eacute
uma compreensatildeo do conhecimento que reduz sua validade agraves instacircncias de sua
enunciaccedilatildeo sem que com isso se destitua qualquer afirmaccedilatildeo de seu valor em relaccedilatildeo agraves
demais afirmaccedilotildees necessaacuterias agrave sobrevivecircncia
220
O foco das criacuteticas nietzschianas agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento recai
completamente sobre a razatildeo e seu caraacuteter limitado Limitaccedilatildeo que conduz a uma
concepccedilatildeo de realidade como mundo verdadeiro Neste sentido desde suas primeiras
incursotildees filosoacuteficas sua criacutetica ao conhecimento estaacute relacionada agrave apresentaccedilatildeo de nosso
aparato intelectual como parte de nosso aparato bioloacutegico e assim como algo que se
desenvolve em torno de nossa necessidade de sobrevivecircncia e natildeo a favor de uma verdade
objetiva
O perspectivismo nietzschiano especialmente na forma como fica exposto no
aforismo doze de Genealogia da Moral carrega consigo a ideia de que todas as
perspectivas satildeo limitadas nesse sentido natildeo verdadeiras Nem por isso falsas pois em
segundo plano agrave exposiccedilatildeo do perspectivismo permanece a ideia de que a objetividade
como a totalidade de perspectivas eacute algo que se pode conceber sem contradiccedilatildeo como a
totalidade de perspectivas possiacuteveis Em outro sentido o conhecimento como a tradiccedilatildeo o
entende como a visatildeo unilateral de uma verdade existente de forma independente do ato
de conhecer se torna uma perspectiva inferior exatamente por que abre matildeo da
multiplicidade de perspectivas inerente agrave ideia de objetividade cotejada por Nietzsche Ou
seja embora natildeo represente em si mesma uma teoria acerca do conhecimento nem
implique a criacutetica ao conhecimento tradicional como distorccedilatildeo da realidade o
perspectivismo nietzschiano utiliza-se da metaacutefora da perspectiva para promover o
reconhecimento do caraacuteter natildeo-fundacional do conhecimento assim como caracterizar
como contraditoacuteria a ideia de uma realidade em si mesma
42 O perspectivismo nietzschiano e o problema dos valores
Consideramos a questatildeo do valor como uma questatildeo fundamental para o
pensamento nietzschiano com base na qual se poderia entender sua concepccedilatildeo de verdade
pois esta gira em torno da necessidade de desconsiderar a concepccedilatildeo tradicional da
verdade afim de estabelecer algo de suma importacircncia para a determinaccedilatildeo de um valor
superior ou seja a proacutepria vida Para Nietzsche o problema dos valores estaria
relacionado ao fato de que na histoacuteria da filosofia a questatildeo dos valores morais foi tomada
221
como a proacutepria questatildeo do valor Assim ao refletir sobre isso o filoacutesofo afirma que ldquoA
ldquoAvaliaccedilatildeo moralrdquo ateacute onde eacute algo social mede erroneamente o homem a partir de seus
efeitosrdquo (NF FP 1887 9 [55]) Ou seja que a apreciaccedilatildeo dos valores de um ponto de
vista dos valores morais reduz a questatildeo mais ampla dos valores a uma consideraccedilatildeo que
leva apenas os efeitos praacuteticos da avaliaccedilatildeo moral dentro de um contexto no qual a
sociabilidade eacute tomada como um estado natural o filoacutesofo procura desfazer essa confusatildeo
pensando a natureza do valor em seu surgimento e totalidade
Por outro lado a consideraccedilatildeo dos valores em uma avaliaccedilatildeo exterior agrave proacutepria
sociabilidade se distinguiria fundamentalmente de uma compreensatildeo dos valores como
determinaccedilatildeo objetiva fora dos homens Nessa leitura a interpretaccedilatildeo dos valores morais
como os valores em si como a uacutenica forma de valor eacute confrontada por uma explicitaccedilatildeo
dos valores como resultado de um processo fisioloacutegico avaliaccedilatildeo que expotildee os valores
morais como algo pertencente apenas a um tipo bastante determinado de valor
Nesta interpretaccedilatildeo do problema dos valores em geral os valores morais
corresponderiam apenas a uma forma da categoria mais ampla dos valores Assim os
valores natildeo seriam realidades independentes dos homens mas produtos de sua atuaccedilatildeo
interpretativa poisldquoNossos valores satildeo introduzidos nas coisas com a interpretaccedilatildeordquo (NF
FP 18851886 2 [77]) A interpretaccedilatildeo nietzschiana dos valores assim exclui a validade
de uma consideraccedilatildeo de um ldquosentido no em sirdquo na medida em que considera os valores
como decorrecircncias de nossa interpretaccedilatildeo Todo sentido passa a ser considerado nessa
leitura como algo relacional e perspectivo Os valores morais aparecem aqui como
resultado de uma interpretaccedilatildeo especiacutefica como a interpretaccedilatildeo que substitui a
interpretaccedilatildeo religiosa decadente (NFFP 1887 9 [60])
A partir da intuiccedilatildeo fundamental de que todo valor seria produto de uma
interpretaccedilatildeo ou seja de que todo valor corresponderia a uma avaliaccedilatildeo portanto de que
toda moral deve alcanccedilar seu instante de superaccedilatildeo em uma nova taacutebua de valores (ZAZa
III Das antigas e novas taacutebuas sect02) Nietzsche contempla a possibilidade de uma
afirmaccedilatildeo incondicional do mundo e da vida na atividade criativa de valores Os valores
morais satildeo entendidos aqui como valores de conservaccedilatildeo consolidados por uma
determinada tradiccedilatildeo dos quais competiria ao homem se livrar na medida que potildee o
fortalecimento da vida a frente de sua conservaccedilatildeo Este pensamento que se coloca na
222
contramatildeo de tudo o que se fez desde a cultura racional do socratismo-platonismo ateacute o
presente traduz a maacutexima expressatildeo da afirmaccedilatildeo da vida na aceitaccedilatildeo de seu caraacuteter
ficcional
Em sua leitura Nietzsche qualifica o valor como ponto de vista fundamental
segundo os ditames das necessidades de algo que queira permanecer no curso do devir
Assim em um fragmento poacutestumo o filoacutesofo afirma ldquoO ponto de vista do lsquovalorrsquo eacute o ponto
de vista das condiccedilotildees de conservaccedilatildeo e aumento com respeito a formaccedilotildees complexas de
relativa duraccedilatildeo da vida no seio do devirrdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) Em outros termos
a vida aparece para Nietzsche como condiccedilatildeo de possibilidade de toda avaliaccedilatildeo posto que
ela eacute preacute-requisito para toda avaliaccedilatildeo Para tudo que pretende durar na existecircncia assume
valor aquilo que possibilita esta duraccedilatildeo Por isso o filoacutesofo pensa desde suas primeiras
incursotildees filosoacuteficas a verdade como correlata a um valor desde que esta seria parte
fundamental na estrateacutegia de sobrevivecircncia humana
O problema do perspectivismo se relaciona com o problema do valor jaacute na
suposiccedilatildeo nietzschiana de que toda interpretaccedilatildeo seria o produto de nossas necessidades
Assim o filoacutesofo escreve ldquoSatildeo nossas necessidades as que interpretam o mundo nossos
impulsos e seus proacutes e contras Cada impulso eacute uma espeacutecie de acircnsia de domiacutenio cada um
tem sua perspectiva que gostaria de impor como norma a todos os demais impulsosrdquo (NF
FP 1886-1887 7[60]) Na medida em que cada impulso tem seu proacute e seu contra a ele
estaria relacionada uma determinada ordenaccedilatildeo de valores uma determinada hierarquia
Sua vontade tem como moacutevel acima de tudo o estabelecimento de seus proacutes e contras
como norma geral Ou seja toda perspectiva tem como razatildeo de existir o estabelecimento
de valores a partir de si Neste sentido natildeo haacute valor extra-perspectivo Do mesmo modo
que natildeo haacute perspectiva que natildeo implique valores Com isso podemos ver que a perspectiva
e o valor estatildeo intimamente relacionados no pensamento nietzschiano
Valores satildeo estabelecidos na medida em que sua capacidade de fazer algo
permanecer na existecircncia eacute comprovada Assim quando uma determinada configuraccedilatildeo de
forccedilas se mostra propiacutecia agrave manutenccedilatildeo da vida em seu entorno se agrupam cada vez mais
forccedilas o que acaba conduzindo agrave formaccedilatildeo de centros de domiacutenio ldquolsquovalorrsquo eacute
essencialmente o ponto de vista para o aumento ou a diminuiccedilatildeo destes centros de domiacutenio
(NFFP 1887-1888 11[73]) O valor configura perspectivas na medida em que tende a
223
agrupar forccedilas em torno de um determinado centro de domiacutenio que passa a se fazer valer
como uma perspectiva de dominaccedilatildeo Uma perspectiva nesse sentido seria justamente o
ponto de vista de uma determinada ordenaccedilatildeo das forccedilas inerentes a uma realidade
segundo os ditames de sua manutenccedilatildeo ou crescimento
Se toda forma de avaliar depende das condiccedilotildees de manutenccedilatildeo de um determinado
tipo de vida entatildeo toda filosofia enquanto conjunto de valores enquanto reflexo de uma
determinada valoraccedilatildeo corresponderia a um determinado conjunto de necessidades
inerentes a um modo de vida pois ldquopor traacutes de toda loacutegica e de sua aparente soberania de
movimentos existem valoraccedilotildees ou falando mais claramente exigecircncias fisioloacutegicas para
a preservaccedilatildeo de uma determinada espeacutecie de vidardquo (JGBABM I sect03) Assim a
substituiccedilatildeo de uma filosofia niilista por uma forma perspectivista de filosofia
corresponderia no pensamento nietzschiano agrave substituiccedilatildeo de uma forma decadente de
valoraccedilatildeo que tem no conjunto de suas necessidades uma necessidade de nada suportada
pela crenccedila em uma realidade ideal por uma forma ascendente de avaliaccedilatildeo que tem na
multiplicidade e na mudanccedila suas necessidades essenciais
A substituiccedilatildeo de uma esfera ideal de constituiccedilatildeo dos valores pela vida tomada
aqui como escala segundo a qual os proacuteprios valores se constituem possibilitaria uma
avaliaccedilatildeo dos valores que difere completamente da avaliaccedilatildeo tradicional segundo a qual
haveriam valores dados e irrevogaacuteveis Pois segundo uma compreensatildeo dos valores que
toma a vida como criteacuterio as condiccedilotildees em que algo tem que se firmar mudam Nesse
sentido eacute natural que tambeacutem os valores mudem posto que natildeo haacute sentido exterior a uma
escala de necessidades nem nenhuma escala determinante na esfera do devir
A cada momento para cada espeacutecie verdadeiro eacute apenas aquilo que possibilita sua
conservaccedilatildeo Seraacute justamente esta interpretaccedilatildeo do valor que possibilitaraacute ao filoacutesofo opor-
se tanto agrave moral dogmaacutetica quanto agrave concepccedilatildeo dogmaacutetica de conhecimento Um valor
segundo a tradiccedilatildeo criticada por Nietzsche seria justamente o bem em si mesmo uma
ideia a qual o filoacutesofo se opotildee fortemente O mesmo ocorreria com a verdade em si que
segundo esta compreensatildeo teria por problema fundamental sua dependecircncia em relaccedilatildeo agrave
defesa niilista de uma realidade criada que torna sem valor a realidade dos fenocircmenos
224
Ateacute onde se compreende o que Nietzsche considera problemaacutetico no dogmatismo
filosoacutefico tradicional fica claro que ele entende que a grande falha da filosofia tradicional
teria sido seu entendimento da verdade como algo localizaacutevel de forma definitiva ainda
que em uma realidade externa agrave realidade dos fenocircmenos Esta realidade externa aos
fenocircmenos no entanto natildeo houvera aparecido para a tradiccedilatildeo como uma realidade criada
do mesmo modo que a realidade a partir dos sentidos A partir de sua consideraccedilatildeo criacutetica
da razatildeo como parte do esquema de simplificaccedilatildeo da realidade Nietzsche se coloca em
condiccedilotildees de questionar justamente este caraacuteter simplificado da realidade concebida a
partir da razatildeo aprofundado uma criacutetica que a tradiccedilatildeo filosoacutefica apenas havia comeccedilado
Assim no prefaacutecio de Aleacutem do Bem e do Mal Nietzsche explica brevemente o que ele
chama de ldquoo erro do dogmatismordquo Apoacutes sua pequena anedota acerca do despreparo dos
filoacutesofos dogmaacuteticos para abordar uma mulher o filoacutesofo diz
Falando seriamente haacute boas razotildees para esperar que toda dogmatizaccedilatildeoem filosofia natildeo importando o ar solene e definitivo que tenhaapresentado natildeo tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa deiniciantes e talvez esteja proacuteximo o tempo em que se perceberaacute quatildeopouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutasconstruccedilotildees filosofais que os dogmaacuteticos ergueram ndash alguma supersticcedilatildeopopular de um tempo imemorial (como a supersticcedilatildeo da alma que comosupersticcedilatildeo do sujeito e do Eu ainda hoje causa danos) talvez algumjogo de palavras alguma seduccedilatildeo da gramaacutetica ou temeraacuteriageneralizaccedilatildeo de fatos muito estreitos muito pessoais demasiadohumanos (JGBABM Proacutelogo sect1)
Em sua leitura o autor denomina dogmaacutetico tudo aquilo que se segue agrave criaccedilatildeo das
sublimes e absolutas criaccedilotildees filosoacuteficas com base em fatos pessoais idiossincrasias
filosoacuteficas coisa humana demasiado humana A proacutepria criaccedilatildeo platocircnica do reino das
ideias fundamento e ponto de partida de toda concepccedilatildeo niilista parece fornecer o modelo
deste tipo de construccedilatildeo filosoacutefica dogmaacutetica Motivo pelo qual em sua leitura o autor
indica a invenccedilatildeo do ldquopuro espiacuterito e do bem em sirdquo como um erro de dogmaacutetico o ldquopior o
mais persistente e perigoso dos erros ateacute aquirdquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Do mesmo
modo a criaccedilatildeo da moralidade decorrente da criaccedilatildeo dogmaacutetica das noccedilotildees de ldquoo bemrdquo e
ldquoo malrdquo seria mais a frente abordada por Nietzsche e com maior profundidade em
Genealogia da Moral
225
O que determina a importacircncia das poucas indicaccedilotildees acerca do que o autor entende
como sendo o dogmatismo da concepccedilatildeo tradicional de verdade eacute o bastante para conectar
a fabricaccedilatildeo da moralidade ao problema do dogmatismo e sua superaccedilatildeo na consideraccedilatildeo
do caraacuteter perspectivo da existecircncia Assim em uma outra passagem do proacutelogo de Aleacutem
do Bem e do Mal Nietzsche considera que o erro dogmaacutetico de Platatildeo surgiu de sua
incapacidade em adotar um perspectivismo adequado ldquoCertamente significou pocircr a
verdade de ponta-cabeccedila e negar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica de toda vida falar do
espiacuterito e do bem como o fez Platatildeordquo (JGBABM Proacutelogo sect1) Para Nietzsche portanto a
luta para superar o erro dogmaacutetico platocircnico e toda moralidade decorrente desse erro
significava pocircr a verdade de volta sob seus peacutes e afirmar a perspectiva a condiccedilatildeo baacutesica
de toda a vida
De fato nesta leitura tambeacutem a verdade enquanto componente de uma estrateacutegia
especiacutefica de sobrevivecircncia natildeo poderia ter seu valor determinado absolutamente Assim
como parte de uma estrateacutegia de sobrevivecircncia tiacutepica de uma espeacutecie que busca se manter
no curso do devir o conhecimento humano tambeacutem corresponderia a um ponto de vista
determinado de valores proacuteprios De fato toda ciecircncia e filosofia ateacute entatildeo teria seu valor
vinculado agrave conservaccedilatildeo da vida Motivo pelo qual para Nietzsche a loacutegica por exemplo
soacute eacute importante porque nosso modo de vida depende dela fundamentalmente Isto natildeo
significa que a realidade seja ela mesma loacutegica ou que se comporte de forma loacutegica
apenas que a realidade assume valor para noacutes na exata medida em que podemos aplicar a
loacutegica a ela
Por outro lado conceitos fundamentais da fiacutesica tambeacutem apenas adquiririam
sentido para noacutes por sua utilidade praacutetica natildeo por sua veracidade De um modo geral toda
forma de compreensatildeo da realidade segundo instacircncias fixas seria reflexo desta mesma
conversatildeo da realidade em elementos uacuteteis para a conservaccedilatildeo da vida pois ldquonatildeo haacute
unidades uacuteltimas duradouras natildeo haacute aacutetomos natildeo haacute mocircnadas tambeacutem aqui lsquoo ente [das
Seiende]rsquo foi introduzido primeiro por noacutes (por razotildees praacuteticas uacuteteis segundo a
perspectiva)rdquo (NFFP 1887-1888 11[73]) A criacutetica nietzschiana a esta perspectiva por
sua vez natildeo diria respeito a seu caraacuteter perspectivo Pois posto que todo conhecimento eacute
perspectivo seria necessaacuterio possuir uma verdade no sentido que o filosofo rejeita para
entatildeo questionar a perspectividade de uma posiccedilatildeo
226
No entanto o fato desta perspectiva adotar como interesse praacutetico a conservaccedilatildeo
motivo pelo qual se apoia em conceitos imobilistas aparece como algo criticaacutevel para
Nietzsche que reconhece nestes conceitos criaccedilotildees de menor valor Nesse sentido o
perspectivismo nietzschiano distingue-se fundamentalmente de uma teoria pragmaacutetica da
verdade Pois o filoacutesofo considera toda utilidade enquanto princiacutepio para a conservaccedilatildeo
como manifestaccedilatildeo de valores de decadecircncia Na leitura do filoacutesofo o princiacutepio de
utilidade conduziria agrave criaccedilatildeo de valores imobilistas e estes por sua vez conduziriam agrave
criaccedilatildeo de uma realidade extra-fenomecircnica logo acaba por se configurar em uma forma
dogmaacutetica de filosofia ou ciecircncia Desta maneira se pode entender a criacutetica agrave concepccedilatildeo
tradicional de utilidade presente no final do aforismo 354 de A Gaia Ciecircncia
Natildeo temos nenhum oacutergatildeo para o conhecer para a ldquoverdaderdquo noacutesldquosabemosrdquo (ou cremos ou imaginamos) exatamente tanto quanto podeser uacutetil ao interesse da grege humana da espeacutecie e mesmo o que aqui sechama ldquoutilidaderdquo eacute afinal apenas uma crenccedila uma imaginaccedilatildeo etalvez precisamente a fatiacutedica estupidez da qual um dia pereceremos(FWGC IV sect354)
Posto que o filoacutesofo compreende que toda forma de conhecimento conduz agrave
admissatildeo de erros fundamentais conclui que a proacutepria utilidade seria um erro talvez o erro
fundamental de que um dia sucumbiremos Nesta leitura Nietzsche percebe que o homem
enquanto animal de rebanho persegue por comodidade valores de conservaccedilatildeo valores
dos quais se o homem deve se livrar do niilismo precisa abandonar Em seu lugar
competiria ao homem estabelecer o conhecimento sob o fundamento de valores de
aumento da forccedila de crescimento Estes valores estatildeo vinculados ao risco satildeo valores
experimentais os quais o filoacutesofo do futuro deveria acolher em detrimento dos valores de
decadecircncia Nesta leitura o problema com a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento seria
sua renuacutencia ao caraacuteter perspectivo de todo conhecimento
Tomada sua reflexatildeo criacutetica em sentido amplo eacute possiacutevel ver em seus ataques aos
filoacutesofos que lhe precedem uma condenaccedilatildeo de toda tentativa de dizer a verdade vistas
aqui como um ato que constrange interpretaccedilotildees diversas a uma unificaccedilatildeo improcedente
o que condiciona o sentido da verdade a um posicionamento dogmaacutetico Assim parte de
227
sua criacutetica agrave metafiacutesica se fundamentaria no fato de que esta atraveacutes da busca pelos
fundamentos uacuteltimos teria conduzido a filosofia a estipular um deux ex machina na figura
de concepccedilotildees tais como a concepccedilatildeo de causa sui
A causa sui eacute a mais bela contradiccedilatildeo jaacute cogitada uma espeacutecie deviolaccedilatildeo e golpe mortal agrave loacutegica Poreacutem o orgulho ilimitado do homemconduziu-o a um emaranhamento cada vez maior no intrincado absurdo odesejo do ldquolivre arbiacutetriordquo entendido no sentido superlativo e metafiacutesicoque domina ainda (por desgraccedila nos ceacuterebros semi-cultivados) que eacute anecessidade de suportar a completa e absoluta responsabilidade de seusatos e natildeo atribuiacute-la a Deus ao mundo agrave hereditariedade agrave sorte agravesociedade esta causa sui natildeo eacute mais que a necessidade de ser algueacutem ecom esta audaacutecia intreacutepida que supera agrave do baratildeo de Muumlnchhausen tentatirar a si mesmo do pacircntano do nada puxando seus proacuteprios cabelos eentrar na luz da existecircncia (JGBABM Livro I sect21)
O que o autor nos apresenta em sua leitura criacutetica das concepccedilotildees antagocircnicas de
livre-arbiacutetrio e determinismo eacute uma mesma crenccedila de base na causalidade A causalidade eacute
vista pelo autor como um condicionamento das concepccedilotildees que se pretendem natildeo
condicionais de causa e efeito Mais especificamente a crenccedila em que todos os atos
humanos ou bem seriam produtos de uma escolha ou bem satildeo resultados da atuaccedilatildeo de
causas externas agrave vontade humana o que acaba por conduzir agrave compreensatildeo de que toda
causa deva ter um efeito reciacuteproco Esta compreensatildeo da realidade que eacute a compreensatildeo
de base dos naturalistas quando se baseiam no meacutetodo mecanicista eacute tida aqui como um
erro de interpretaccedilatildeo oriundo da crenccedila na necessidade de uma dicotomia de princiacutepios
Assim o filoacutesofo apela para que tal concepccedilatildeo seja abandonada
Se algueacutem chegasse a vislumbrar a neacutescia rusticidade do famoso conceitodo ldquolivre arbiacutetriordquo ateacute chegar a afastaacute-lo do seu espiacuterito eu lhe rogariaque desse mais um passo e afastasse de seu ceacuterebro o contraacuterio dessepseudoconceito isto eacute o ldquodeterminismordquo que conduz ao mesmo abusodas noccedilotildees de causa e efeito Natildeo eacute preciso cometer o erro de tornarcondicionados causa e efeito como fazem os naturalistas (e todos quesequem seu meacutetodo de pensar) segundo as cretinices mecanicistas emvoga que querem que toda causa impulsione e pressione ateacute produzir umefeito (JGBABM Livro I sect21)
228
A crenccedila na causalidade na lei que rege as accedilotildees humanas com a mesma
regularidade com que rege os eventos da natureza seria por sua vez um reflexo na crenccedila
na oposiccedilatildeo entre falsidade e verdade Estas concepccedilotildees surgem de uma consideraccedilatildeo
mecanicista da realidade que opotildee duas esferas governadas pela mesma lei de necessidade
Razatildeo pela qual em seu pensamento antimetafiacutesico Nietzsche buscaria ao contraacuterio da
concepccedilatildeo tradicional minar o dualismo fundamental que divide o mundo em uma
realidade superior agrave realidade dada pelos sentidos e desta forma instaurar a validade
perspectiva como uacutenica pretensatildeo possiacutevel ao conhecimento humano
Atraveacutes da constataccedilatildeo da hegemonia da interpretaccedilatildeo satildeo igualadas todas as
concepccedilotildees acerca da realidade como sendo igualmente falsas sendo que satildeo oriundas de
uma consideraccedilatildeo perspectiva A ausecircncia de fundamento uacuteltimo que surge da anaacutelise
perspectivista das concepccedilotildees tradicionais expotildee o absurdo de se buscar a verdade uacuteltima
Mediante esta reflexatildeo a proacutepria oposiccedilatildeo entre interpretaccedilatildeo e mundo verdadeiro eacute
esvaziada de sentido Posto que natildeo havendo texto ou seja natildeo havendo uma realidade
ideal com base na qual julgar a realidade das avaliaccedilotildees natildeo haacute necessariamente
interpretaccedilatildeo Assim ao padratildeo de avaliaccedilatildeo da realidade segundo os criteacuterios de verdade e
falsidade Nietzsche contrapotildee a hipoacutetese de se interpretar a realidade conforme diferentes
valores os quais natildeo se distinguiriam de maneira dicotocircmica mas se diferenciariam
conforme a um padratildeo correlato ao padratildeo de uma avaliaccedilatildeo esteacutetica
Aqui se nos apresenta o seguinte problema o que caracteriza a condiccedilatildeo
perspectiva de toda vida como o ponto correto de consideraccedilatildeo da realidade Ou seja se
tudo que temos satildeo interpretaccedilotildees como a consideraccedilatildeo nietzschiana da primordialidade
das perspectivas pode ser considerada uma interpretaccedilatildeo melhor do que a interpretaccedilatildeo
platocircnica Estariacuteamos aqui diante de uma consideraccedilatildeo dogmaacutetica da perspectividade da
existecircncia em Nietzsche Quando considerada a criacutetica nietzschiana a toda forma de
determinaccedilatildeo de verdade como certeza este natildeo parece ser o caso
O perspectivismo nietzschiano implicaria assim na afirmaccedilatildeo de que toda
justificaccedilatildeo de nossas crenccedilas depende de um contexto dado a partir de outras crenccedilas que
passam por verdadeiras quando no fundo satildeo apenas consideradas incontestaacuteveis para o
momento Assim a defesa nietzschiana de suas posiccedilotildees de suas concepccedilotildees filosoacuteficas
em especial natildeo partiria de uma consideraccedilatildeo de sua veracidade mas de uma afirmaccedilatildeo
229
contextual que tomaria a vida como criteacuterio absoluto e sobre o qual nenhum outro criteacuterio
poderia ser estabelecido Isto no entanto por vezes pode parecer insuficiente posto que a
defesa da posiccedilatildeo nietzschiana parece requerer uma base para a qualificaccedilatildeo desta como
superior ou entatildeo o filoacutesofo incorreria em uma forma menos expliacutecita de dogmatismo
Assim certamente o filoacutesofo natildeo poderia dizer que sua perspectiva eacute verdadeira baseada
apenas no modo como as coisas lhe parecem Mesmo que natildeo conte com uma base objetiva
ou neutra deve dar conta do porquecirc de sua perspectiva dever ser confiada antes de outra
Desde que Nietzsche claramente faz afirmaccedilotildees de verdade que ele acredita que satildeo
apoiadas por seu perspectivismo sem no entanto explicar o que exatamente as torna
verdadeiras o filoacutesofo introduz embora experimentalmente o problema da verdade tal
como este surgiu entre os gregos e que culminaria na elaboraccedilatildeo platocircnica do mundo das
ideias Mas um relato decisivo acerca do que realmente seria a verdade nunca esteve entre
os planos do filoacutesofo que ao inveacutes de propor uma concepccedilatildeo proacutepria de verdade preferiu
esclarecer um problema inerente agraves formas tradicionais da concepccedilatildeo de verdade132
Ao oferecer uma criacutetica extensa do equiacutevoco que Nietzsche considera comum entre
os filoacutesofos que lhe precedem de que algo possa ser afirmado objetivamente fora de
qualquer perspectiva sua reflexatildeo em torno da verdade constitui-se apenas de forma
negativa Desta maneira suas posiccedilotildees filosoacuteficas seriam reconhecidas como hipoacuteteses
interpretaccedilotildees que natildeo reclamariam nenhuma vantagem em relaccedilatildeo agraves concepccedilotildees que o
filoacutesofo critica a natildeo ser pelo fato de se reconhecerem como interpretaccedilotildees o que se torna
possiacutevel na medida em que suas concepccedilotildees natildeo se deixam guiar por uma vontade de
verdade moralmente decadente
O perspectivismo nietzschiano assim deve ser avaliado como contraproposta a
uma forma de conhecimento tradicional associada por Nietzsche a uma tendecircncia niilista
de consideraccedilatildeo da realidade que como tal conduz a uma consideraccedilatildeo negativa da
realidade e de seu caraacuteter mais essencial como sendo a proacutepria perspectividade Na defesa
desta contraproposta apresentada de modo experimental mais do que uma anaacutelise da
verdade de posicionamentos filosoacuteficos interessa a Nietzsche a anaacutelise do valor desses
posicionamentos
230
43 A vida como criteacuterio de avaliaccedilatildeo de perspectivas
O problema da verdade que aparece ao filoacutesofo desde suas primeiras incursotildees
filosoacuteficas como um problema fundamental assume um caraacuteter duplo em sua reflexatildeo
madura Esta mudanccedila apenas pode ser produzida quando Nietzsche confronta o problema
do niilismo que condiciona uma mudanccedila de sentido da concepccedilatildeo de vida em seu
pensamento agora natildeo mais pensada apenas enquanto instacircncia bioloacutegica mas tambeacutem
como instacircncia de fundamentaccedilatildeo de valores Se em Zur Teleologie motivada pelo
problema da questatildeo teoloacutegica o filoacutesofo pensa a vida apenas como algo que pode ser
mantido agora ela lhe aparece como algo que natildeo apenas se deve manter mas que tambeacutem
deve ser fortalecida Assim quando tomada a vida como determinante para a
caracterizaccedilatildeo dos valores primeiramente haveriam os valores de manutenccedilatildeo da vida e
depois aqueles valores que tornam a vida mais forte Os primeiros valores que estariam
vinculados a criaccedilatildeo de uma realidade ideal e conceitos imobilistas seriam valores
inferiores em relaccedilatildeo agrave vida Em contraposiccedilatildeo a estes os valores de afirmaccedilatildeo da vida
seriam aqueles que a fortalecem Nesse sentido a perspectividade enquanto fundamento de
uma compreensatildeo da realidade que rejeita toda forma de imobilismo estaria vinculada de
maneira necessaacuteria ao fortalecimento da vida caracterizando um posicionamento superior
quando em comparaccedilatildeo ao posicionamento dogmaacutetico
Para Nietzsche portanto o fundamental de um posicionamento filosoacutefico seria seu
potencial afirmativo da vida natildeo sua veracidade Em sua interpretaccedilatildeo criacutetica da
concepccedilatildeo tradicional de verdade interessaria ao filoacutesofo opor vida e valores e desta
forma questionar o valor dos valores afirmativos em relaccedilatildeo agrave vida em oposiccedilatildeo aos
valores que satildeo essenciais para nossa sobrevivecircncia Neste sentido no fragmento poacutestumo
7[8] que tem por tiacutetulo ldquoNiilismordquo escrito entre o final de 1886 e a primavera de 1887 e
que corresponderia ao terceiro capiacutetulo do terceiro livro dos planos para a obra Vontade de
Potecircncia Nietzsche apresenta este como sendo seu verdadeiro problema que apenas em
sua filosofia se teria feito consciente
231
Suportei ateacute aqui uma tortura todas as leis segundo as quais a vida sedesenvolve pareciam-me estar em contradiccedilatildeo com os valores em virtudedos quais noacutes nos mantemos vivos Natildeo parece ser o estado do qualmuitos sofrem conscientemente apesar disso quero reunir os sinais apartir dos quais suponho que esse eacute o caraacuteter fundamental o problematraacutegico propriamente dito de nosso mundo moderno e a indigecircnciasecreta a causa ou a interpretaccedilatildeo de todas as nossas indigecircncias Esseproblema tornou-se consciente em mim (NFFP 18861887 7 [08])
Na medida em que se considera que entre as leis em que a vida se desenvolve se
inclui a proacutepria consideraccedilatildeo perspectiva da realidade que se opotildee frontalmente agrave nossa
necessidade de aparecircncias que ocupam na loacutegica de nossa sobrevivecircncia um lugar de
importacircncia iacutempar natildeo pode haver duacutevida de que neste fragmento estamos diante do
questionamento acerca do valor mesmo de uma consideraccedilatildeo perspectiva dos valores em
relaccedilatildeo ao valor das proacuteprias aparecircncias Se a caracterizaccedilatildeo da perspectiva como condiccedilatildeo
inerente agrave vida pode ser vista como contraposiccedilatildeo a um mal-entendido da verdade que o
autor identifica nas posiccedilotildees dogmaacuteticas entatildeo os valores suportados pela consideraccedilatildeo
tradicional da verdade estariam ligados agrave manutenccedilatildeo da vida e os valores de uma
consideraccedilatildeo perspectivista da vida estariam ligados a uma forma de valorar segundo
valores que tornam a vida mais forte
O perspectivismo nietzschiano por sua vez desde que tem em seus fundamentos
uma reavaliaccedilatildeo da concepccedilatildeo tradicional de verdade pode ser visto como uma forma de
reflexatildeo radical natildeo apenas acerca do conhecimento e da verdade mas tambeacutem dos
valores como criaccedilotildees oriundas de uma perspectiva limitada e que natildeo tem importacircncia
para aleacutem da esfera de sua criaccedilatildeo O que torna o mundo dos valores enquanto mundo da
criaccedilatildeo humana segundo sua perspectiva como uacutenica realidade para aleacutem da consideraccedilatildeo
de uma realidade verdadeira assim como de uma realidade como aparecircncia Nesse sentido
a soluccedilatildeo apresentada pelo autor como uma forma de reverter completamente a noccedilatildeo
tradicional da natureza da verdade e da perspectiva pode ser vista como um
posicionamento que procura restabelecer o caraacuteter perspectivo da verdade ainda que com
isto se acentue a contradiccedilatildeo entre aquilo que propicia a sobrevivecircncia humana em relaccedilatildeo
ao que a torna mais forte
Ao propor a ideia de que a realidade seja interpretada segundo uma escala de
inuacutemeros valores o filoacutesofo adianta-se em sua missatildeo de instituir um antiplatonismo
232
radical ao atacar a concepccedilatildeo de mundo verdadeiro A concepccedilatildeo criacutetica nietzschiana do
conhecimento nesse sentido corresponderia a uma tentativa de analisar a possibilidade de
se considerar qualquer posicionamento teoacuterico como passiacutevel de ser localizado dentro de
uma escala valorativa de infinitos graus infinitos valores para usar a terminologia
nietzschiana em que no grau mais baixo se encontraria o posicionamento menos
afirmativo em relaccedilatildeo agrave vida posto que tende a uma concepccedilatildeo de mundo verdadeiro Pois
na medida em que o mundo verdadeiro que fundamentaria as concepccedilotildees cientiacuteficas e
filosoacuteficas agraves quais Nietzsche se opotildee eacute criticado como a maior das falsidades jaacute criada os
valores que repousam sobre este fundamento satildeo forccedilados a uma reavaliaccedilatildeo Sua negaccedilatildeo
do mundo verdadeiro representaria a ruptura com a mentira de seacuteculos que instituiu um
mundo separado da realidade material como forma de fugir ao caraacuteter limitado de nossas
formulaccedilotildees teoacutericas
A necessidade de uma alteraccedilatildeo do criteacuterio de avaliaccedilatildeo surge da constataccedilatildeo
nietzschiana do colapso do sistema valorativo tradicional suportado pela filosofia
metafiacutesica pela ciecircncia naturalista e pela concepccedilatildeo religiosa Quanto a esta necessidade a
leitura nietzschiana da filosofia tradicional eacute muito clara em sua suposiccedilatildeo de que o
dualismo ontoloacutegico teria levado a pesquisa filosoacutefica a sua exaustatildeo o que se daacute atraveacutes
do confronto entre a inexistecircncia de uma realidade idealizada e a hegemonia da
interpretaccedilatildeo
Para pensar a relaccedilatildeo intriacutenseca entre o conhecimento e os afetos subjacentes agrave
consciecircncia eacute necessaacuterio retornar com ecircnfase especial ao paraacutegrafo 333 de A Gaia
Ciecircncia onde o autor apresenta um suposto tiacutetulo que de fato corresponde a uma citaccedilatildeo
de Espinosa O que significa conhecer Non ridere non lugere nequi detestari sed
intelligere A passagem do Tractatus Politicus de Spinoza aparece aqui como a forma mais
contraacuteria agrave concepccedilatildeo de conhecimento que o autor almeja defender Em contraposiccedilatildeo agrave
ideia de conhecimento como cessaccedilatildeo dos afetos o autor diraacute que o conhecimento natildeo
surge a partir de um apagamento dos impulsos de rir lamentar e detestar mas sim de uma
certa tomada de consciecircncia dos uacuteltimos estaacutegios da luta desses impulsos
A noacutes nos chega agrave consciecircncia apenas as uacuteltimas cenas de conciliaccedilatildeo eajuste de contas desse longo processo e por isso achamos que intelligere eacutealgo conciliatoacuterio justo bom essencialmente contraacuterio aos impulsos
233
enquanto eacute apenas uma certa relaccedilatildeo dos impulsos entre si (FWGC IVsect333)
Conhecer portanto natildeo seria deixar calar os instintos mais iacutentimos do pesquisador
mas o chegar agrave consciecircncia destes estados iacutentimos Pois o que move o conhecimento eacute
precisamente o duelo entre esses instintos de modo que o resultado desse duelo produz
algo diferente novo e que sobreveacutem ao pesquisador como uma faiacutesca que surge do contato
entre duas espadas Ora destes estados iacutentimos o pesquisador reconhece apenas os uacuteltimos
momentos logo ele natildeo eacute sujeito de conhecimento exceto em uma acepccedilatildeo muito precaacuteria
Para todos os efeitos o pesquisador eacute apenas instrumento dos instintos que nele lutam e
atraveacutes dele chegam a uma conformaccedilatildeo especiacutefica segundo a natureza de seus instintos
Esta eacute de fato a caracteriacutestica uacuteltima do tipo de conhecimento defendido por
Nietzsche e estaacute em iacutentima associaccedilatildeo com sua concepccedilatildeo de Vontade de Potecircncia De
fato a luta dos instintos eacute uma manifestaccedilatildeo da vontade de potecircncia que nesse sentido
seria a verdadeira responsaacutevel pela interpretaccedilatildeo que chega ao pesquisador em seus
estaacutegios finais como conhecimento Na vontade que Nietzsche pensa como subjacente a
toda concepccedilatildeo racional de natureza nada como a verdade existe Por isso o filoacutesofo diz
ldquoGuardemo-nos de dizer que haacute leis da natureza Haacute apenas necessidades natildeo haacute ningueacutem
que comande ningueacutem que obedeccedila ningueacutem que transgridardquo (FWGC III sect109) Assim
visto a questatildeo ainda de outro modo o conhecimento natildeo seria o cessar das contradiccedilotildees
inerentes aos instintos em luta como se estaria tentado a deduzir diante da concepccedilatildeo
apresentada por Nietzsche como sendo a de Spinosa Mas antes o apaziguar dessas
contradiccedilotildees por meio da consciecircncia mediante a pressatildeo de uma necessidade nossa uma
coaccedilatildeo bioloacutegica que aspira a um cessar dos instintos
A coaccedilatildeo subjetiva que impede de contradizer eacute uma coaccedilatildeo bioloacutegica oinstinto de utilidade que haacute em concluir assim como concluiacutemos tornou-se para noacutes uma segunda natureza somos quase esse instinto Mas queingenuidade querer extrair daiacute a demonstraccedilatildeo de que possuiacutemos umaverdade em si O fato de natildeo ser possiacutevel a contradiccedilatildeo eacute prova de umaincapacidade e natildeo de uma ldquoverdaderdquo (NFFP 1888 14[152])
234
Apesar de o apaziguamento dos instintos que se daacute no sujeito surgir como o efeito
de uma potecircncia ordenadora constituinte da proacutepria consciecircncia aqui natildeo se expressa uma
capacidade superior como por vezes a tradiccedilatildeo do pensamento deixa entender A ela estaacute
ligada a necessidade de simplificar uma realidade caoacutetica para fins de comunicaccedilatildeo Com
isso natildeo se expressa uma potecircncia uma capacidade para a verdade mas uma limitaccedilatildeo
Concebemos verdades com uma determinada regularidade natildeo por uma maior capacidade
interpretativa mas por uma maior dependecircncia de regularidade em relaccedilatildeo a outras
espeacutecies naturais
() O mundo imaginaacuterio do sujeito da substacircncia da ldquorazatildeordquo etc eacutenecessaacuterio haacute em noacutes uma potecircncia ordenadora simplificadora quefalsifica e separa artificialmente ldquoVerdaderdquo eacute a vontade de tornar-sesenhor da multiplicidade das sensaccedilotildees (NFFP 1887 09[189])
Dependemos de estabilidade para viver assim criamos um mundo imaginaacuterio da
substacircncia Com isso nenhuma verdade eacute atingida a natildeo ser que se tome por verdade
aquilo que eacute necessaacuterio para nossa existecircncia Segundo Nietzsche esse teria sido o erro da
tradiccedilatildeo ateacute entatildeo tomar por verdadeiro o que eacute necessariamente verdadeiro para noacutes
Nessa leitura o conhecimento tal como este foi perseguido pela tradiccedilatildeo estaria
relacionado a uma impotecircncia para criar que encontra na vontade de verdade a mateacuteria
prima para a construccedilatildeo do outro mundo
Em Crepuacutesculo dos Iacutedolos no capiacutetulo intitulado ldquoOs quatro grandes errosrdquo
Nietzsche nos diz ldquoO vir-a-ser eacute despojado de sua inocecircncia quando se faz remontar esse
ou aquele modo de ser agrave vontade agrave intenccedilotildees a atos de responsabilidade ()rdquo (GDCI VI
sect7) A inocecircncia do vir-a-ser para Nietzsche diz respeito agrave inocecircncia do real que para ele
eacute vir-a-ser ou seja devir Em outras palavras o filoacutesofo compreende que o bem e o mal
natildeo estatildeo colocados de uma vez por todas no real pois jaacute em sua filosofia de juventude
conclui que a realidade natildeo possui ordem ou desordem Assim o mundo se o
considerarmos em si mesmo independente do homem natildeo eacute afeito a coisas como erro
verdade mentira bom ou ruim
235
Na leitura nietzschiana a realidade natildeo possui valor em si valores natildeo-humanos
Todo valor eacute decorrecircncia da atividade criativa humana pois eacute o homem que turva o mundo
com ilusotildees interpretaccedilotildees muito proacuteprias ligadas desde sua origem a ordem de suas
necessidades Por isso o filoacutesofo afirma ldquoEsse impulso () agrave conservaccedilatildeo da espeacutecie ()
traz entatildeo um esplecircndido cortejo de motivos ao redor e com toda a forccedila quer fazer
esquecer que no fundo eacute impulso instinto tolice ausecircncia de motivordquo (FWGC I sect1)
Assim Nietzsche concebe o mundo como uma decorrecircncia da atuaccedilatildeo dos instintos de
sobrevivecircncia e por isso algo que torna-se carregado de sentido a partir da existecircncia
humana Avaliado fora da esfera da atuaccedilatildeo humana no entanto o instinto eacute por definiccedilatildeo
sem razatildeo sem motivo sem sentido O que significa dizer que a accedilatildeo humana natildeo eacute guiada
por alguma instacircncia racional mas apenas por instinto ou seja em uacuteltima instacircncia a accedilatildeo
humana pode ser compreendida como sendo sem fundamento
Nessa leitura a razatildeo os motivos a ordem a racionalidade o fundamento a
finalidade a moralidade o sentido satildeo tomadas pro Nietzsche com instacircncias do instinto
de conservaccedilatildeo nos seres humanos Os diferentes valores natildeo passam de padronizaccedilotildees
humanas inexistentes no mundo mesmo pois como nos diz o filoacutesofo ldquoSomos noacutes apenas
que criamos as causas a sucessatildeo a reciprocidade a relatividade a coaccedilatildeo o nuacutemero a
lei a liberdade o motivo a finalidade e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse
mundo de signos como algo lsquoem sirsquo agimos como sempre fizemos ou seja
mitologicamenterdquo (JGBABM I 21) Os valores corresponderiam assim a uma atribuiccedilatildeo
humana de sentido ao mundo segundo a hierarquia da necessidade de sobrevivecircncia de
uma determinada configuraccedilatildeo de forccedilas
A necessidade do mundo necessaacuterio da substacircncia condiciona nossa busca pelo
conhecimento como a busca pelo conhecimento deste mundo antropomorficamente
necessaacuterio Mas posto que a existecircncia desse mundo eacute dependente de nossa atuaccedilatildeo a este
mundo natildeo corresponderia nenhuma realidade em si Assim a concepccedilatildeo de conhecimento
combatida por Nietzsche se relaciona intimamente com a tendecircncia niilista que se
propaga do campo da moral para o campo do conhecimento Em sua concepccedilatildeo
perspetivista que confronta o fato de que natildeo haacute outro mundo o elemento criativo
plasmador de interpretaccedilotildees torna-se o ponto central No entanto a negaccedilatildeo de um outro
mundo distingue-se da negaccedilatildeo de uma realidade em si que seria jaacute certo
236
comprometimento com aquilo que se tenciona negar Por outro lado a afirmaccedilatildeo de nosso
mundo de interpretaccedilotildees eacute coerente com o sentido mais iacutentimo da reflexatildeo nietzschiana
conforme o autor esclarece em um fragmento poacutestumo a ideia que regeu sua obra
Que o valor do mundo reside em nossa interpretaccedilatildeo (ndash que em algumoutro lugar talvez sejam possiacuteveis ainda outras interpretaccedilotildees que natildeo ashumanas ndash) que as interpretaccedilotildees ateacute aqui satildeo avaliaccedilotildeesperspectiviacutesticas graccedilas agraves quais noacutes nos mantemos na vida ou seja navontade de poder de crescimento de poder que toda elevaccedilatildeo do homemtraz consigo a superaccedilatildeo de interpretaccedilotildees mais estreitas que todaintensificaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo do poder alcanccediladas abrem novas perspectivase conclamam a que se acredite em novos horizontes ndash isto eacute algo queatravessa meus escritos O mundo que em alguma medida nos dizrespeito eacute falso isto eacute natildeo eacute nenhum fato mas uma sedimentaccedilatildeo e umarrendondamento a partir de uma soma mais magra de observaccedilotildees eleestaacute em ldquofluxordquo como algo que deveacutem como uma falsidade que semprese translada novamente que nunca se aproxima da verdade pois ndash natildeo haacutenenhuma ldquoverdaderdquo (NFFP 18851886 2 [108])
Aqui eacute necessaacuterio voltar-se para a definiccedilatildeo nietzschiana de niilismo na tentativa
de entender radicalmente sua negaccedilatildeo do outro mundo Nietzsche diz ldquoo niilista eacute o
homem que julga que o mundo tal como eacute natildeo deveria existir e o mundo tal qual deveraacute
ser natildeo existerdquo (NFFP 1887 9[60]) O niilista portanto seria aquele que defende a
existecircncia de uma realidade idealizada com base na negaccedilatildeo da realidade imperfeita que eacute
nossa criaccedilatildeo Assim se pensarmos em uma posiccedilatildeo que tenciona superar o niilismo
estamos diante da necessidade natildeo de negar um outro mundo mas de afirmar o mundo
que eacute nossa criaccedilatildeo Pois o nosso mundo objetivo enquanto totalidade de perspectivas eacute
afirmado na consideraccedilatildeo perspectivista nietzschiana como o uacutenico mundo existente
Em contraposiccedilatildeo ao niilista que natildeo consegue aceitar o mundo como totalidade de
perspectivas por consideraacute-lo inferior ao mundo ideal inexistente o filoacutesofo perspectivista
seria aquele que apreende um mundo que entende desde o comeccedilo como produto de sua
atuaccedilatildeo criativa no mundo Desta maneira a ele se assemelha o homem das metaacuteforas
intuitivas do ensaio sobre verdade e mentira para quem as metaacuteforas constituem em seu
caraacuteter mesmo de metaacuteforas o material de sua existecircncia poeacutetica Ao homem da ciecircncia no
ensaio em questatildeo corresponderia o niilista que tenta apoiar-se em uma perspectiva
definitiva uacutenica verdadeira apesar de igualmente ilusoacuteria
237
Conforme referido anteriormente a vontade de verdade constitui uma impotecircncia
para criar que encontra reflexo na afirmaccedilatildeo de que o mundo que deveria ser jaacute eacute e jaacute estaacute
aiacute Atraveacutes dessa concepccedilatildeo a vontade que move a afirmaccedilatildeo da existecircncia do mundo
ideal exclui-se da criaccedilatildeo do mundo e age tatildeo-somente em sua antecipaccedilatildeo Poreacutem na
medida em que se assume que este mundo o mundo aparente natildeo deveria existir caiacutemos
no niilismo Por outro lado haacute tambeacutem um niilismo em uma criacutetica agrave vontade de verdade
tal como a empreendida por Nietzsche Ela se configura como a afirmaccedilatildeo de que o mundo
tal como deveraacute ser ou tal como deveria ser natildeo existe Dessa maneira estamos sempre no
limiar entre um niilismo ativo e um passivo na medida em que assumimos a necessidade
de criar um mundo na ausecircncia deste ou nos ausentamos desta requisiccedilatildeo Eacute nesse terreno
que encontramo-nos quando com Nietzsche nos embrenhamos na anaacutelise genealoacutegica da
verdade como falsidade
A posiccedilatildeo criacutetica nietzschiana assume sua maior radicalidade na tentativa de
subverter todos os dualismos a partir da reavaliaccedilatildeo de toda duplicidade de consideraccedilotildees
da realidade como sendo produto da crenccedila em instacircncias superiores Na medida em que
seu ataque ao dualismo de valores inerente agrave concepccedilatildeo filosoacutefica tradicional se torna
cada vez mais radical o colapso da crenccedila em uma realidade superior se torna o meio pelo
qual ficaria exposta a existecircncia exclusiva de um mundo aparente Nesse sentido a
destituiccedilatildeo de validade do mundo verdadeiro e com ela a invalidaccedilatildeo de sua contraparte o
mundo aparente considerado como mundo falso coloca nossas afirmaccedilotildees no terreno da
interpretaccedilatildeo sem texto
44 A superaccedilatildeo dos valores de conservaccedilatildeo da vida como valor da perspectiva
Em sua obra acerca da verdade na filosofia nietzschiana Clark sustenta que a
problemaacutetica presente nesse pensamento em torno da concepccedilatildeo tradicional de verdade
teria se tornado um dos grandes temas de discussatildeo da filosofia desse autor De fato esta
preocupaccedilatildeo fundamental encontra-se com frequecircncia na obra nietzschiana Sobretudo em
seus uacuteltimos livros notadamente em Aleacutem do Bem e do Mal e Genealogia da Moral
Apesar disso rigorosamente falando o filoacutesofo natildeo oferece em contraposiccedilatildeo a esta
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