a representaÇÃo do poder e autoridade - ufmt.br · sobre o poder, autoridade e violência dos...
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ROSENIR ANTONIA DA SILVA
PRIMERA MEMORIA: A REPRESENTAÇÃO DO PODER E AUTORIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de Concentração: Estudos literários/Literatura e realidade social. Orientadora: Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André.
Cuiabá-MT 2010
FICHA CATALOGRÁFICA
S586p Silva, Rosenir Antonia da Primera Memoria: a representação do poder e autoridade /
Rosenir Antonia da Silva. – 2010.
ix, 91 f. ; 30 cm. Orientadora: Profª. Drª. Rhina Landos Martínez André.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-graduação em Estudos de Linguagem, Área de Concentração: Estudos Literários, 2010. Bibliografia: f. 87-91. 1. Literatura espanhola – História e crítica. 2. Crítica literá- ria. 3. Matute, Ana Maria, 1926-. I. Título.
CDU – 821.134.2.09 Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
"Escrever é fácil: você começa com a letra
maiúscula e termina com ponto. No meio
você coloca idéias".
(Pablo Neruda)
v
AGRADECIMENTO
A todos que estiveram ao meu lado nos momentos de angústia no
tecer destas linhas.
Em especial, minha orientadora Profª Drª Rhina Landos Martínez
André, que incansavelmente esteve ao meu lado nos momentos de maior
aflição e descrença na concretização da pesquisa.
Aos meus amigos de sonhos...
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RESUMO
Primera Memoria: a representação do poder e a autoridade. Dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagem. Orientadora Rhina Landos Martínez André. Cuiabá: UFMT, 2010.
Esta dissertação apresenta o resultado de uma pesquisa que teve como objetivo principal analisar a obra literária Primera Memoria (1960), da escritora espanhola Ana Maria Matute, e nela abalizar as atitudes de poder e da autoridade que se observam em uma peculiar personagem feminina, a avó Práxedes. Nesse sentido, demonstramos como os recursos literários memorialísticos utilizados pela autora trasladam a fatos do contexto social e histórico-político que ocorreram durante a guerra civil espanhola e no período do imediato pós-guerra, pois a literatura de cunho memorialístico serve de refúgio para estampar as angústias e temores do confronto bélico que devastava o país. Mostramos, ao mesmo tempo, a construção da relação entre literatura e realidade social, numa tentativa de evidenciar as fragmentadas relações familiares e sociais, bem assim as limitações que as mulheres escritoras enfrentaram ao se opor ao regime ditatorial. Aspecto importante foi observar que, durante as recordações, afloram vestígios semelhantes aos da vida da escritora que vivenciou o trauma do conflito. Daí sugerimos que a obra contém muitos traços biográficos da autora e que a personagem feminina estudada, Práxedes, é a configuração metonímica dos dirigentes máximos de um sistema político em que o poder e a autoridade que tem em suas mãos são usados para manter o silenciamento e a obediência servil dos mais débeis. A análise está situada dentro da crítica literária feminina que desvela a interiorização, subordinação e exclusão das mulheres tanto no campo social como literário durante esse período. Por essa razão, realizamos breve incursão do impacto da guerra civil no universo familiar, impacto que marcou o processo literário da Espanha naquele período. Para o desenvolvimento da pesquisa, acudimo-nos de alguns filósofos, historiadores e estudiosos que dialogam sobre o poder, autoridade e violência dos regimes políticos para melhor compreensão do processo que vivenciou a população espanhola no decurso da guerra civil e no imediato pós-guerra. Palavras Chave: Primera memoria, Ana Maria Matute, poder, autoridade.
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RESUMEN
Primera Memoria: la representación del poder y de la autoridad. Disertación de Maestría en Estudios de Lenguaje. Orientadora: Dra. Rhina Landos Martínez Andrés. Cuiabá: UFMT, 2010. Esta disertación presenta los resultados de una investigación que tuvo por objetivo principal analizar la obra literaria "Primera Memoria" (1960), de la escritora española Ana María Matute, y evaluar los actos de poder y de autoridad que se observan en un peculiar personaje femenino: la abuela Práxedes. En ese sentido, se demuestra cómo los recursos literarios memorialísticos explotados por la autora se evidencian en los hechos del contexto social e histórico político que sucedieron durante la Guerra Civil Española y en el período inmediatamente posterior, o de la postguerra, pues la literatura de carácter memorialístico sirve de refugio para revelar las angustias y temores de la confrontación bélica que asolaba el país. De igual manera, se muestra la construcción de la relación entre literatura y realidad social, buscando evidenciar las fragmentadas relaciones familiares y sociales, bien así las limitaciones que las mujeres escritoras enfrentaron al oponerse al régimen dictatorial. Un aspecto importante fue observar que, durante los recuerdos, afloran huellas parecidas con aquellas de la vida de la escritora que vivió el trauma del conflicto. Por la cual se concluye que la obra contiene muchos rasgos biográficos de la autora y que el personaje femenino estudiado, Práxedes, representa una configuración metonímica de los dirigentes máximos de un sistema político en que resulta que el poder y la autoridad que uno tiene en sus manos es aplicado para mantener el silencio y la obediencia servil de los más débiles. El análisis se ubica en la crítica literaria femenina que desvela la interiorización, subordinación y exclusión de las mujeres, tanto en el campo social como en el literario durante el período mencionado. Por ello se realiza, breve incursión en el impacto de la guerra civil en el universo familiar, impacto este que enmarcó el proceso literario de España en aquel entonces. Para el desarrollo de la investigación, acúdeme-nos a algunos filósofos, historiadores y estudiosos que dialogan sobre el poder, la autoridad, la violencia de los regímenes políticos visando mejor comprensión del proceso evidenciado por la población española no decurso de la guerra civil y el inmediato postguerra. Palabras Clave: Primera Memoria, Ana María Matute, Poder y Autoridad.
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ABSTRACT
Primera Memoria: the representation of power and authority. Dissertation in Language Arts. Guideline Rhina Landos Martínez André. Cuiabá: UFMT, 2010.
This thesis presents the results of a survey that aimed to analyze the literary work Primera Memoria (1960), the Spanish writer Ana Maria Matute, and excel in her attitudes toward power and authority to themselves in a peculiar female character, the Práxedes grandmother. In this sense, we demonstrate how the literary devices used by the author memoirs translate the facts of social and historical context-political that occurred during the Spanish Civil War and during the immediate postwar period, since the literature of nature memorialístico serves as a refuge for showing anxieties and fears of military confrontation that devastated the country. Shown while the construction of the relationship between literature and social reality in an attempt to highlight the fragmented family and social relations, as well as the limitations that women writers faced in opposing the dictatorial regime. Important aspect was to observe that for the memories, similar to the outcrop traces the life of a writer who has experienced the trauma of conflict. I conclude that the book contains many biographical traits of the author and that the female character study, Práxedes is the metonymic configuration from the very top of a political system where power and authority he has in his hands are used to maintain their silence and obedience servant of the weakest. The analysis is situated within feminist literary criticism that reveals the internalization, exclusion and subordination of women both in social and literacy during this period. For this reason, we conducted brief foray into the impact of civil war in the universe, family impact that marked the literary process of Spain in that period. For the development of research, acudimo us of some philosophers, historians and scholars that are talking about power, authority and violence of political regimes to better understand the process that experienced the Spanish population during the civil war and immediate post-war. Keywords:
Primera memoria, Ana Maria Matute, power, authority.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10
1 - O UNIVERSO FAMILIAR E A PRODUÇÃO LITERARIA FEMININA NO PÓS-GUERRA CIVIL ESPANHOLA
1.1 - A Guerra Civil e o impacto no universo familiar ........................................... 15
1.2 - A produção literária feminina no pós-guerra ............................................... 24
2 - O PODER AUTORITÁRIO NA ESPANHA E AS RECORDAÇÕES DE ANA
MARIA MATUTE
2.1 – Uma explicação histórica ............................................................................ 31
2.2 - Ana Maria Matute e a narrativa ................................................................... 37
2.3 - Memórias .................................................................................................... 46
3 - PRIMERA MEMORIA: A REPRESENTAÇÃO DO PODER E AUTORIDADE
3.1 A trama em Primera memoria ........................................................................ 54
3.1.1 El declive ..................................................................................................... 59
3.1.2 La escuela del sol ........................................................................................ 63
3.1.3 El gallo blanco ............................................................................................. 65
3.1.4 Las hogueras ............................................................................................... 66
3.2 Práxedes: a representação do poder e autoridade ....................................... 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 82
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 87
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Introdução
Em contato com algumas produções literárias hispano-americanas,
observamos quanto as leituras direcionadas a essa área são deficientes no
Brasil. Deficiência perceptível, se entendermos que produções advindas de
países latino-americanos, como a Argentina, a Bolívia e o Paraguai, entre
outros vizinhos, onde a língua oficial é o espanhol, não são prioridade em
determinados grupos acadêmicos formadores de professores de literatura
estrangeira. E, se pensarmos na Literatura Espanhola, poucas universidades
têm a formação de um profissional, nesta área específica, cuja carência é
evidente. Na atualidade, com o mundo globalizado não podemos deixar de
conhecer a produção cultural de nossos vizinhos e daqueles que deram origem
a esta conjunção de culturas. Pensando na relevância que o estudo sobre a
literatura espanhola teria para o conhecimento dos estudantes de graduação e
pós-graduação do Brasil, tomei como objeto de estudo uma autora e uma obra
produzida na segunda metade do século XX. Esta obra revela muito da história
e de fatos políticos que ocorreram à época tanto na Espanha quanto no
continente europeu, bem assim na América Latina do mesmo período.
Portanto, minha pesquisa parte desse foco, primeiramente, logo, outros
interesses de natureza acadêmica e profissional emergiram para iniciar o
estudo desta narrativa.
Na Universidade Federal de Mato Grosso, diviso avanço com os
trabalhos voltados para as literaturas estrangeiras, principalmente porque foi na
disciplina “Literatura Ibero-Americana: Século XX”, ainda como aluna especial
no Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, em que estudamos a
Literatura Espanhola produzida por mulheres no período do pós-guerra civil,
com personagens femininas, que conheci excelentes produções literárias.
Nessa mesma linha, observei o desejo dessas mulheres por ocupar um espaço
editorial, que se fazia exclusivo do domínio masculino. Nesse entremeio,
apontou o interesse de organizar um projeto para a linha de pesquisa Literatura
e Realidade Social, na área dos Estudos Literários.
Entendi de igual, transcorridos os estudos de mestrado, que a literatura
impulsiona, com suas diversas funções nos campos histórico-sociais e político-
sociais, várias formas de olhar o mundo, ultrapassa fronteiras e quebra
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estereótipos. Deslumbrada com os diferentes olhares e saberes que a literatura
enseja, a curiosidade como pesquisadora foi aguçada ao conhecer uma
produção feminina espanhola, intitulada Primera memoria (1960), de Ana Maria
Matute. A autora reconstrói, por meio da linguagem memorialística, aos olhos
de uma mulher adulta, sua infância num cenário com imagens cinematográficas
em uma ilha paradisíaca, com uma avó que comanda esse micromundo com
mãos de ferro, ao tempo em que, na cidade se desenvolve a fratricida guerra
civil.
Este tipo de narrativa desponta no intuito de denunciar e, não menos
relevante, no desejo de expor os conflitos de angústia que são sofridos de
maneira individual, refletidos na vida coletiva. Os anos cinquentas, na Espanha,
servem de berço para as narrativas intituladas pelos estudiosos e críticos como
narrativas de pós-guerra, onde se reflexiona, tendo o olhar feminino como
ponto de partida, sobre as sequelas que a violência armada provoca na
população civil.
É importante, neste cenário, analisar os avanços conquistados pelas
mulheres durante o regime republicano na Espanha, sistema político prévio ao
período franquista, bem como as razões pelas quais foram extintos e entender
por que as mulheres eram subjugadas e se dedicaram exclusivamente aos
serviços domésticos e à maternidade. Na mesma linha, compreender que os
espaços físicos onde elas se poderiam mobilizar foram limitados, sofrendo,
portanto, um retrocesso em suas conquistas. Com o horror criado pela luta
fratricida, aparece a voz discursiva unívoca, das mulheres, assentada na
perspectiva crítica de rebater a censura política e social a que eram
subordinadas.
Primera memória − primeira obra que faz parte de uma trilogia que
entrelaça um mesmo fio narrativo é uma novela de grande relevância no círculo
das narrativas de pós-guerra; tendo ganhado o Prêmio Nadal de 1959 na
Espanha. Segundo os estudiosos, a obra aborda questões latentes da
sociedade em que a autora vivia, pois Matute busca, na novela, reproduzir um
tempo de sua adolescência em que vivenciou a guerra civil, testemunha que foi
da violência física e moral que assolava seu país nesse período. Em
complemento Pérez (1983) relata que vozes de críticos da época, quando
questionados sobre Primera memoria, entre eles, Sobejano, opinam que “la
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parte mejor de la trilogía es la inicial y José Domingo concuerda con este juicio
de que la trilogía ofrece, sin duda, su parte mejor conseguida en Primera
memoria (PÉREZ, 1983, p. 23).
Primera memória, portanto é uma narrativa ficcional, do gênero
memorialístico que impressiona por seu caráter de verossimilhança. Nela
observamos configurações metonímicas de traumas, humilhações, revoltas e
silenciamento na vida das mulheres durante o período do pós-guerra civil.
Há uma singular personagem, Matia. Esta personagem, já adulta,
recorda os momentos vividos na ilha com sua avó Práxedes, onde se percebe
que esta exerce peculiar autoridade sobre os membros da família. Ela é
descrita por Matia desde o primeiro capítulo como uma pessoa com traços
físicos e psicológicos fora do comum; é grotescamente comparada com
animais ferozes. Lembra que ela era “forte como um cavalo”, com dentes
parecidos aos de “cão feroz”, olhos coléricos, “mãos de caranguejo”. Em outras
recordações identifica Práxedes como cínica, arrogante e impiedosa, enfim,
uma senhora velha, moradora de uma enorme casa antiga no alto de um
declive, numa ilha onde todos se submetem a seus mandos.
A recorrente presença de Práxedes nas recordações de Matia me
despertou algumas questões ligadas com o contexto histórico da Espanha na
guerra civil. Decidi-me por aprofundar no estudo desta obra, do período em que
aconteceram os fatos da guerra civil, da mesma autora, para entender o porquê
desta feitura narrativa. A autora empresta a voz a uma jovem adolescente e, a
partir da memória desta jovem, se descortina uma história interessante, onde
fatos da história recente e passada do país levam à matriarca da família da
memorialista a atuar com medidas arbitrárias. Em virtudes desses interesses
de feição acadêmica e pelo desejo de conhecer literariamente a estrutura
narrativa da obra, bem como buscar nas entrelinhas os enunciados
escondidos, algumas hipóteses foram levantadas. Sobressaem estas: a
disciplina imposta por Práxedes no universo familiar e na ilha, como um macro
mundo, remete às relações de poder e autoridade do regime franquista? O fato
de que o discurso da memorialista permeia certa angústia, seria indicador dos
traumas que o conflito bélico causou nos seres humanos? Por que Ana Maria
Matute utiliza o gênero memória para dar voz a uma adolescente, que poderia
ser sua própria voz, já que vivenciou muitos fatos da guerra civil? As
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recordações recorrentes de Matia, em relação à avó, poderiam ser uma
metonímia da hierarquia política imposta na Espanha depois da guerra civil?
Práxedes seria uma configuração literária do ditador espanhol que comandou o
país por várias décadas? Nessa direção, a pesquisa tem como foco principal
entender as atitudes de violência que fragmentam os seres humanos,
configuradas na obra mediante ações e símbolos utilizados pela personagem
Práxedes, atitudes que poderiam ser oriundas da decadência do poder e da
autoridade. Na busca pela interpretação, procuramos, através de elementos
narrativos utilizados pela autora, a decodificação do que poderiam representar
esses símbolos e as motivações da imposição de obediência, retratadas nas
medidas autoritárias, no cenário que, sob capa paradisíaca, corria solta a
violência nas relações sociais da ilha.
Como forma de direcionar o trabalho, alguns caminhos foram definidos
no decorrer da pesquisa. Para tanto, coloca-se atenção ao impacto causado
pela guerra civil no seio familiar e na produção literária feminina, a nova função
imposta à mulher decorrente das normas ditadas pela religião e pelo Estado,
entre outros. Em suma, a análise propriamente dita da obra.
Trilhando esses caminhos, organizamos a dissertação em três capítulos,
subdivididos em alguns tópicos que julgamos relevantes para elucidar as
questões propostas. No primeiro, procuramos expor considerações sobre o
impacto da guerra civil nos lares da Espanha desmoronada, e como se dá a
produção literária feminina no imediato pós-guerra. Para esse diálogo,
lançamos mão da ajuda de alguns estudiosos que já se debruçaram sobre o
tema, entre eles Blanco, Aguinada e Rodríguez Puértolas. Recorro às
estudiosas das produções literárias femininas da Espanha do pós-guerra civil,
tais como Galdona Perez, Conde Peñalosa, Nuñez Puente, Martín Gaite,
Janete Pérez.
No segundo capítulo, analisamos como se dá o processo rememorativo,
entre as lembranças e esquecimentos de Matia, no período da guerra civil em
que viveu com sua família na ilha, e a inserção do poder e da autoridade que
se estende para o campo social. No universo de autores, cito Janet W. Perez,
Jose Domingo, Jose Luis Cano, Philippe Lejeune, Maurice Halbwachs, Anna
Caballé, Rhina André, Ecléia Bosi e Nora Catelli, Max Weber, Foucault;
Hannah Arendt; Walter Benjamin, Yves Michaud, entre outros.
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O terceiro e último capítulo está dedicado à análise literária da narrativa
de cunho memorialista, pinçando as marcas do poder e da autoridade que se
manifestam na configuração literária da avó Práxedes, fundadas na perspectiva
da narradora. Buscamos subsídios em Maria Lucia Dal Farra, Antonio Candido,
Cândida Vilares Gancho, Massaud Moisés, Chevalier, Cirlot, para sustentar a
análise, centrando nossa discussão nas relações sociais que permeiam a casa
de Práxedes e suas atitudes com os moradores da ilha. Finalmente umas
conclusões sem ser conclusivas que remetem a nossos juízos de valor respeito
á analise realizada sobre os personagens em diálogo com a bibliografia citada.
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CAPÍTULO I
O universo familiar e a produção literária feminina no pós-guerra civil espanhola
1.1 A guerra civil e o impacto no universo familiar No início do século XX, precisamente entre os anos 36 e 39, a Espanha
enfrenta um violento conflito cujas conseqüências fizeram retroceder o
processo histórico, literário, social e cultural da sociedade espanhola. Esta
caminhava com importantes mudanças políticas e sociais conquistadas no
governo republicano, tais como a separação entre a Igreja e o Estado, o direito
ao voto, a igualdade entre homens e mulheres, os métodos anticonceptivos, o
divórcio, mudanças que contribuíram para entrar em uma nova etapa de
desenvolvimento. O conflito se inicia abertamente em julho de 1936 quando o
exército Espanhol se levanta contra o governo vigente. Puértolas, Aguinaga e
Zavala (1979) descrevem a composição das forças em conflito:
Comenzaba así un típico pronunciamiento militar que habría de convertirse en una guerra civil de tres años. En torno del ejército rebelde se agruparan todos los defensores de la España tradicional: carlistas, monárquicos, latifundistas y grandes capitalistas, católicos de diferentes categorías, falangistas y fascistas, en abigarrado conjunto. Para la defensa de la República se pusieran en pie las fuerzas obreras y campesinas marxistas y anarquistas, la burguesía radical e liberal, los pequeños propietarios y los nacionalistas catalanes e bastos. Ninguno de los bandos era, como puede verse por la enumeración anterior, realmente homogéneo (PUÉRTOLAS, AGUINADA e ZAVALA, 1979, p.9).
Os historiadores afirmam que não havia, em nenhum dos grupos,
homogeneidade na composição ideológica. A luta pelo poder do Estado
deixava a nação debilitada econômica e politicamente, pois todos se
enfrentavam, seja do lado republicano, seja do nacionalista.
O militar estrategista general Francisco Franco se levantou contra o
governo republicano e encabeçou o golpe que duraria três anos. Bem
conceituado entre os governantes totalitários da Europa, buscou alianças entre
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eles para não sofrer surpresas durante o embate pelo poder do governo
espanhol, antes de iniciar o confronto com os republicanos.
A primeira atitude dos governos totalitários europeus para auxiliar
Franco no conflito foi criar um Comitê Internacional de não intervenção,
encabeçado pela Alemanha de Hitler e pela Itália de Mussolini, proibindo a
compra de armas em países estrangeiros. Com esse ato, deixaram o governo
republicano sem armamento na luta contra o exército fortemente armado e
comandado por Franco. Hitler usa a debilitada Espanha como campo de
experiência para testar as novas técnicas bélicas da Alemanha. O resultado
não seria algo menos que a destruição da cidade de Guernica em 1937, tão só
para ilustrar a violência que está sendo usada contra o governo espanhol.
Para não restar nenhuma dúvida de que as alianças eram fortes entre
Franco, Mussolini e Hitler para a derrubada do Estado espanhol em mãos dos
republicanos, o exército franquista é reforçado por número elevado de militares,
tanques de guerra, barcos, aviões com fuzileiros especializados, enviados
principalmente pela Itália e Alemanha.
O governo republicano, por sua vez sem armamento, sem exército
treinado, com aliados distantes a exemplo do México, que enviava poucas
armas e mesmo com o apoio de voluntários antifascistas, o fim era iminente.
Com grande poder bélico, Franco vence os republicanos no início de
1939 e assume o Estado espanhol definitivamente. Terminada a luta fratricida,
em meio aos desastres bélicos, se dá por encerrada a guerra civil. Franco
assume o governo em 1939, iniciando o período que a história do mundo
haveria de registrar como “ditadura franquista” e que terminaria somente em
1975, com a morte do ditador. Os governantes Hitler e Mussolini estavam
ansiosos pela vitória de Franco, não por serem fiéis aliados, mas porque
esperavam receber dele o que devia pelos favores prestados por ambos
durante a guerra civil.
Para Comellas (2002, p. 299), “El régimen de Franco fue una dictadura
si por tal entendemos un sistema autoritario, con supresión de determinadas
libertades políticas y dirigido de forma muy preponderante por una sola
persona”. A seu lado estava sua principal aliada desde o início do conflito, a
Igreja Católica, responsável por exercer o papel social e cuidar da educação do
povo espanhol, ou seja, Franco detinha nas mãos os fios dos aparelhos
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ideológicos necessários para alienar a população: o exército, a Igreja, a escola,
a família.
Os primeiros anos do governo franquista eram mais parecidos com um
sistema fascista. De acordo com Comellas (2002, p. 305), os primeiros anos do
regime franquista “fueron también difíciles, broncos, de gran penuria
económica, que propiciaron un régimen fuerte y autoritario”. A Espanha vive
uma profunda desigualdade social, que, segundo vários estudiosos sobre o
conflito, entre eles Dionisio Ridruejo, citado por Puértolas, Aguinada e Zavala
(1979), que, assim como Comellas (2002), comentam sobre os primeiros anos
do governo franquista, como os piores para a população espanhola. Ridruejo
também aponta a miséria da época.
Los años cuarenta fueron, para la base más amplia y sumergida de la población, años de dolor, hambre, vejación y miedo en un régimen de salvoconductos para viajar y de cartilla para adquirir miserables raciones alimenticias. Fueron años de euforia frívola, ofensiva, en la reducida clase, profundamente vulgarizada, de los mandarines sin respeto y los ricos especuladores (RIDRUEJO, apud PUÉRTOLAS, AGUINADA e ZAVALA, 1987, p.75).
Todas as esferas da sociedade sofreram com a ascensão de Franco ao
poder. A Espanha foi governada de acordo com as tradições da burguesia
católica que impunha a reconstrução, assentada em sua ideologia
conservadora. Os campos familiares, político, social e cultural são marcados
pela destruição advinda do conflito, que no entender da Galdona Pérez (2001),
logo após a guerra civil as cidades foram transformadas em ruínas, o campo foi
devastado, as indústrias ficaram em péssimas condições, os meios de
comunicação esfacelados, os transportes inutilizáveis, e o desemprego
assolava as estruturas familiares que sobreviveram aos horrores que o país
enfrentou.
As relações familiares se tornavam cada vez mais frágeis, os filhos eram
disciplinados duramente, os casamentos estavam desgastados e, em
consequência, os lares se desestruturavam cada vez mais.
Algumas circunstâncias contribuíram para o agravamento das crises no
interior das famílias. Por exemplo, a migração em massa de pessoas do campo
para a cidade, o qual trouxe grandes transtornos por causa da aglomeração de
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pessoas. Igualmente, o desemprego e a fome eram causas visíveis, bem assim
o crescimento da classe média através do acesso às profissões liberais. Enfim,
a miséria se alastrava dilaceradamente na cidade. E num contexto machista, a
busca pela autoafirmação fazia crescer a exploração da prostituição feminina
agravando a destruição das relações familiares.
Observando o decréscimo da população masculina no país pela morte
de jovens milicianos durante a guerra, Franco incentiva a manutenção da
familia no molde patriarcal e religioso, e a procriação deveria ser cada vez mais
acelerada para aumentar a população, principalmente de homens, e fazer da
Espanha uma potência europeia.
Com esse propósito, Franco acredita que a mulher seria a base na
composição para a construção de uma nova sociedade, composta por uma
família idealizada por ele e pela Igreja Católica. Carmem Martín Gaite (1987,
p.17-20), registra que a Igreja assumiu, nos primeiros anos pós-guerra, uma
função repressora na consolidação do autoritarismo de Franco para moldar as
famílias. A família era influenciada não só pelas coordenadas políticas e
econômicas de Franco, mas também por todos os hábitos e comportamentos
determinados por ele e pela doutrina religiosa.
À mulher foi imposto o papel de recompor os lares desmoronados e
diminuídos pela guerra. Para tanto, foram liberados empréstimos financeiros
para núpcias, subsídios e leis de proteção às famílias, incentivando o aumento
de filhos por casamento.
O aparelho repressor religioso foi responsável por sustentar um modelo
educativo, bem como por determinar as vestimentas e o comportamento das
mulheres, rigorosamente cuidados e regulamentados. Os métodos
anticoncepcionais foram extintos e proibidos. Para a Igreja, a natalidade era um
aliado que auxiliava no controle das mulheres: com muitos filhos, elas se
dedicariam exclusivamente à maternidade e ao lar. Núñez Puente (2004)
registra a inclinação deliberadamente machista do sistema:
Para las mujeres del franquismo, la maternidad y el matrimonio no eran, precisamente, una elección sino un único camino. Todo lo que se había conseguido en décadas anteriores se perdió en la intolerante disciplina franquista. [...] Madres y esposas era lo que más necesitaba la dictadura para
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perpetuar un sistema social basado en la familia y en la estructura patriarcal (NÚÑEZ PUENTE, 2004, p.96-97).
A Sección Femenina - instituição que, segundo Gallego Méndez (1983,
24-26) surgiu a partir de um movimento sindicalista feminino universitário que
desejava atuar junto ao partido político, Falange, comandado por José Antonio
Primo de Rivera - contribui a materializar os postulados franco-religiosos.
Segundo a pesquisadora, “en julio de 1934, en la sede del Marqués del Riscal,
se constituyó con cierta formalidad la Primera Sección Femenina […]”,e alguns
meses depois, José Antonio Primo de Rivera, presidente da falange - passou o
comando da Sección a Pilar Primo de Rivera, sua irmã, que atuou
severamente ao lado de Franco e da Igreja na preservação e consolidação dos
valores religiosos para a mulher, na reconstrução da nova Espanha. Para os
dirigentes, o verdadeiro dever delas para com a pátria: consistia em formar
famílias sólidas e alegres. Comentando sobre as ações de comando que
desempenhava Pilar na Secçión Femenina, Gallego Méndez (1983) pontua:
La delegada nacional actuó con gran decisión, reclamando para la Sección Femenina la jurisdicción sobre todas las mujeres del Movimiento, incluidas las de Auxilio Social y las carlistas de la Organización Frente y hospitales. Los principios de jerarquía y disciplina eran defendidos con todo rigor (GALLEGO MÉNDEZ, 1983, p. 52).
Criada com a função principal de regulamentar o serviço social feminino
e a educação das mulheres, a Sección Femenina recorria a todos os meios
para inculcar o valor de cuidar do esposo, disciplinar os filhos e zelar pelo
casamento mais: realizava cursos que incluíam, como matérias obrigatórias no
currículo, a religião, a moral, a puericultura, o canto, a música e a educação
física.
Para mostrar tamanha força e poder da presidente da Sección
Femenina, a autora registra, ainda em seu texto, uma parte de discurso de Pilar
Primo de Rivera, inculcando nas jovens mulheres as normas e a disciplina
defendida pelos falangistas.
Camaradas: la paz del Señor sea con vosotras. Ya se ha acabado la guerra [...] precisamente en este momento, a la hora de la victoria, es cuando empieza la obra constructiva de las mujeres de la falange. Ahora es cuando se requiere de
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vosotras más constancia y más disciplina (GALLEGO MENDÉZ, 1983, p. 71).
A dirigente depositava na mulher todas as responsabilidades a tal ponto
que os lares se tornaram verdadeiras prisões para algumas, pois, com o
aumento do número de filhos, ficaram impossibilitadas de sair de casa, vivendo
mascaradas pela hipocrisia do regime. Estavam compelidas ao silêncio.
Silêncio imposto pela religião, pelo sistema político e pelos manuais de
comportamento da Sección Femenina. Deveriam estar bem-arrumadas e
sempre caladas, evitando dizer bobagens ou cometer indiscrições perante seus
esposos.
A sociedade espanhola experimentou, durante o regime, uma série de
mudanças com a implantação de leis, decretos e normas que atingiam
principalmente o público feminino. As pesquisadoras Núnez Puente (2004) e
Galdona Pérez (2001) concordam que a educação da mulher se resumia na
preparação de futuras donas de casa, submissas, religiosas e zelosas. Para as
estudiosas, no referente ao papel desenvolvido pela mulher nesse período, as
mulheres deveriam se aproximar à qualidade de “santas”:
Constituyó la implantación por decreto de lo que hemos denominado una representación histórica, de moral cristiana intachable, en la que la mujer se vio obligada a escenificar su particular ficción de auténtica española, esposa santa y madre (GALDONA PÉREZ, 2001, p.189).
A insensatez nas relações matrimoniais era tamanha, que a mulher
deveria fazer da religião e da família o centro de sua existência. No julgar de
Núnez Puente (2004, p.84), os manuais de conduta e os artigos dos jornais se
caracterizavam pela insistência de separar os interesses da nova mulher
espanhola em relação às outras europeias, que eram feministas e poderiam
contaminar a mente das autênticas e domesticadas espanholas. No que toca
ao comportamento da mulher no lar, à sua postura frente a possíveis aventuras
extraconjugais, Martín Gaite (2001) tece os seguintes comentários:
Si el marido engañaba a la mujer, con tal que lo hiciera sin demasiado escándalo y de tapadillo, lo mejor era hacer como si nada, que no se enterara nadie, para que los hijos pudieran seguir viendo a sus padres aliados en lo esencial, en la tarea de sacarlos adelante a ellos, de enseñarles a amar a la Nueva
21
España, de prohibirles cosas. El padre junto a su madre como un bloque indestructible ante la cual se estrellaba cualquier actitud que no fuera la del respeto (MARTÍN GAITE, 2001, p.21).
Acreditava-se que o homem e a mulher eram seres distintos por
natureza, tanto que deveriam ocupar lugares diferentes na sociedade
espanhola. Consciente que a educação desempenhava a função principal para
assegurar a eficácia dos novos princípios adotados pelo regime, Franco deu
atenção especial para o sistema pedagógico. Os jovens deveriam ser
separados em sala de aula por sexo. Os rapazes eram considerados sujeitos
de autoridade e força, ao passo que elas eram as reprodutoras dos valores
morais. Os rapazes podiam evidenciar a masculinidade com a prostituição, por
sua vez, as moças eram ensinadas a ser “prudentes” diante das decisões dos
homens da casa. As meninas eram ensinadas desde cedo a cozinhar, a ser
úteis nas atividades domésticas, eixo fundamental da política educativa do
regime. Acreditavam que a moça era sentimento e ternura, enquanto o rapaz,
símbolo de inteligência e força.
Gallego Mendez (1983) comenta a autoridade que a Igreja tem imposto
à mulher para sua subordinação, desde que surge como aparelho ideológico:
“La iglesia se ha ocupado desde sus orígenes de confirmar con su autoridad y
de reforzar hasta el límite el papel subordinado de la mujer, la experiencia
colectiva de la dominación” (GALLEGO MÉNDEZ, 1983, p. 139).
Na concepção religiosa, as mulheres eram herdeiras da origem do
pecado; por conta dessa razão, às queriam moldá-las de acordo com a Virgem
Maria e as demais santas eclesiásticas. As que não seguiam o modelo
determinado pela Igreja eram consideradas a própria encarnação do mal; eram
temidas quanto ao próprio demônio, uma reencarnação de Lilith¹, e, por isso,
sua educação era grande preocupação para a Igreja.
______________________________
¹ Conforme a mitologia da criação, Lilith foi, como Adão, feita de barro. Descontente com o companheiro vai embora do paraíso. A sua fuga se converte em expulsão, e os anjos, inconformados com sua desobediência, determinam que a partir de então ela veja milhares de filhos seus mortos, diariamente. Vingativa e com ciúmes de Eva, que nasceu da costela de Adão e vive com ele no paraíso, Lilith retorna ao mundo dos homens, disfarçada de serpente, para fazer mal a Eva e ao seu companheiro. Conhecida como a “grande cortesã” ou “sedutora fêmea da luz”, os filhos que ela teria, inclusive com irmãos sanguíneos, para povoar o mundo, seriam devorados por sua enorme boca, impingindo-lhe a condição de “grande mãe destruidora” que engole o mundo humano inteiro com sua grande boca de inconsciência violência e morte” (BRUNEL 2000, p. 585).
22
Em complemento, a autora arquiva exemplo de ordens emitidas pela
igreja em conformidade com os padrões da tradição da época, na Enciclica à
Espanha, onde Leon XIII pondera:
El varón es el jefe de la familia y cabeza de la mujer, la cual, sin embargo, puesto que es carne de su carne y hueso de sus huesos, debe someterse y obedecer al marido, no a modo de esclava, sino de compañera, es decir, de tal modo que en su obediencia no le falte ni honestidad ni dignidad (GALLEGO MÉNDEZ, 1983, p.141).
No mesmo sentido, Núñez Puente (2004, p. 85) afirma, que “para
sostener este modelo de sociedad, asentada en los pilares de la familia
española y católica, las instituciones eclesiásticas ejercieron una influencia
fundamental”.
É interessante pontuar que, com o extenso combate na recém terminada
guerra, muitos esposos e filhos foram mortos na frente das batalhas e alguns
lares ficaram sem a presença masculina, induzindo as mulheres a
desempenhar não só o papel de mãe zelosa, religiosa, como também o de
provedora do lar. Embora não fosse aconselhável que a esposa dedicada
trabalhasse fora de casa, deveria ocupar-se fundamentalmente da
administração do lar e da criação dos filhos com a ausência do pai. Martín
Gaite (2001, p. 22) registra que, mesmo assim, a disciplina era “la que regía las
relaciones sociales y familiares: en la escuela, la casa, el trabajo, el ejército, la
calle”. Nenhuma delas desafiava a Sección Femenina, por medo da repressão,
mas, com lares compostos somente por mulheres e crianças, a função de
manter a casa passou a ser sua função exclusiva. Desse modo, iniciaram a luta
pela sobrevivência de suas famílias, mesmo desafiando a Sección Femenina.
No desespero da fome, brigavam para conseguir um pouco de comida para os
filhos; o frio era demasiado naquele período e para se esquentarem,
queimavam os próprios móveis. Barranquero e Prieto (2003), citados por
Núñez Puente (2004), registram um testemunho da imposição do racionamento
da comida e da falta desta durante o pós-guerra:
Era una suerte cuando comíamos dos veces al día. Recuerdo una vez que pasamos nueve días sin probar el pan, ninguna clase de pan, ni blanco ni negro. [...] Algunos días no comíamos nada. Mi hermano y yo nos poníamos a llorar de
23
hambre [...] (BARRANQUEIRO e PIETRO, apud NÚÑEZ PUENTE, 2004, p.78).
As mulheres começaram a exercer a função que antes era designada
aos homens, mortos na frente das batalhas, ou porque estavam participando
na luta armada. No pensar de Núñez Puente:
Se desarrolla de esta manera una cierta masculinización de la vida pública que se ve afectada por la ausencia de la figura masculina ocupada en la lucha en el frente, y que fue sustituida por la de una mujer enfundada en los uniformes tradicionalmente masculinos. (NUÑEZ PUENTE, 2004, p. 59-60)
Além de cuidar dos enfermos e crianças órfãs elas passaram a
desenvolver atividades nas fábricas, integradas formalmente com o devido
preparo para um trabalho fora do lar, permitido e indicado pelo regime e por
sua vez, considerado pela Igreja serviço próprio de espanhola digna.
A Igreja, no propósito de manipular e restringir o ingresso da mulher no
mercado de trabalho elabora uma ordem ministerial em 17 de dezembro de
1939 salientando que, mesmo indo para as fábricas, elas deveriam dar
preferência ao cuidado da casa: “[...] es aspiración elevada y legítima de la
política social nacional sindicalista, aplicada al nuevo Estado, acerca de que la
mujer no tiene otra misión que el cuidado especialísimo del hogar [...]
(GALLEGO MÉNDEZ, 1983, p.173).
Há que pontuar: que o mercado de trabalho tem um avanço com a
presença feminina, deixando as mulheres cada vez mais ativas na vida pública.
Mesmo em extremo desespero para alimentar os filhos órfãos de pai, estavam
integradas ao trabalho fora de casa, e isso proporcionaria a elas o que Franco
mais temia, a conscientização, e era preciso se movimentar de alguma forma
para se libertar da repressão imposta por Franco e pela Igreja. Apesar da
intolerância política e da proibição, as mulheres se atreveram a escrever para
estampar como sentiam as dores naquele ambiente hostil em que estavam
vivendo, e algumas se dedicaram a lutar contra a ideologia imposta.
24
1.2 Produção literária feminina no pós-guerra
A formação intelectual da mulher, propriamente dita, não interessava à
Sección Femenina, o importante era moldá-las segundo os princípios cristãos,
e, por isto, aconselhava “no ser nunca una niña empachada de libros, pues no
había nada más detestable que una mujer intelectual” (GALLEGO MÉNDEZ,
1983, p.79). Era relevante que a mulher aprendesse tão somente o que era
determinado pela instituição; tudo que excedia, era considerada oposição à
filosofia franquista. Nesse conceito, uma mulher cheia de leituras,
intelectualizada, era extremamente intolerável aos olhos do regime, longe de
ser aceita pela doutrina.
Durante esse período de pós-guerra, a vida cultural passou por um
esfriamento que repercutiu em todas as manifestações artísticas, um período
de obscuridade, a ponto de ter sido proibida, terminantemente por Franco, a
entrada de obras estrangeiras. Puértolas, Aguinaga e Zavala (1987) concordam
que o fuzilamento do escritor espanhol García Lorca foi o marco da
perseguição do regime franquista aos intelectuais espanhóis, muitos sendo
obrigados a se posicionar politicamente. No entanto, não conformados com a
situação, uns se bandeiam para o lado dos republicanos: “jóvenes escritores
[...] se incorporan, inequivocadamente y en bloque, a la defensa de la
República [...]” (PUÉRTOLAS, AGUINAGA E ZAVALA 1979, p.15). Outros
deixaram a Espanha e se exilaram em países hispano-americanos ou
europeus. Os intelectuais que ficaram não se calaram: eles movimentavam-se,
agitavam e agiam na penumbra da censura, mesmo sabendo que muitos de
seus colegas estavam a favor da política adotada pelo regime.
Nesse período, pela falta de uma produção crítica e analítica da
realidade social, veiculava-se uma produção que ocupou muito espaço nas
prateleiras editorias, dirigida para certo estereótipo de leitoras extremamente
românticas que se perdiam em devaneios e confundiam fantasia e realidade,
pois, se acreditava na incapacidade feminina de pensar e se posicionar
criticamente. Para não poucos dirigentes, elas deveriam ler, consumindo
folhetins, mas deveriam ser vigiadas para que não se perdessem em devaneios
e caíssem em tentação de desobedecer às regras do regime.
25
Nesse ínterim, surge a chamada “novela rosa”, produção de narrativa
feminina com tom conformista, romance sentimental, literatura popular ou de
evasão. Em sua base, nessas narrativas, as mulheres sempre eram dedicadas
ao lar, boas mães e dedicadas esposas. Terminavam sempre com um
casamento, idealizado pelo sistema; teria que ter um final feliz nos padrões
doutrinados pelo regime e pela Igreja. Uma das escritoras que se destacaram
nesta linha foi a romancista é Carmen Icaza, com o romance de maior
veiculação, Cristina Guzmán - professora de idiomas.
As novelas rosa as incentivavam a continuar seguindo o modelo
idealizado para o país. De acordo com De Marco (2002), esse ideal era “ser
educada para Deus, Pátria e família”, povoando a Espanha com varões fortes
para uma possível batalha militar. Por isso, sempre um casamento no final de
cada romance, como estímulo para os enlaces matrimoniais.
No entanto, corajosas, algumas se posicionaram contra a domesticação,
contra a censura, contra a Igreja, advogando a intelectualidade da mulher.
Evidenciavam o desejo de serem reconhecidas publicamente por seus atos
intelectuais e não só maternais. Iniciaram a busca pela emancipação, e a
escrita intimista foi um grande trunfo nas mãos delas rumo à liberdade
intelectual.
Em meio a pressões, censuras, perseguições físicas e intelectuais, o
desejo de pensar criticamente fez com que a mulher levantara a cabeça e
lutasse por ocupar um espaço na vida acadêmica e intectual. No campo
literário se manifestou de maneira evidente, impondo sua identidade feminina e
partindo para manifestar sua independente postura política e criticar a realidade
social. Utilizaram novas formas de falar sobre o eu, sobre sua intimidade.
Escreviam narrativas em primeira pessoa, em forma de diários, cartas,
memórias que aos poucos, ganharam espaço no cenário editorial, até
descentralizar o espaço tradicionalmente masculino.
Umberto Eco (2003), em seu artigo Sobre algumas funções da literatura,
discursa sobre uma série de funções que esta arte assume em nossa vida
individual e para a vida social, e uma das funções se adequaria perfeitamente
ao momento que as mulheres descobriram na literatura: uma forma de refúgio
e alívio ao expressarem seus pesares na escrita. No pensar do escritor:
26
As obras literárias nos convidam à liberdade de interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem da vida. [...] Os textos literários não somente dizem explicitamente aquilo que nunca poderemos colocar em dúvida, mas, à diferença do mundo, assinalam com soberana autoridade aquilo que neles deve ser assumido como relevante e aquilo que não podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres (ECO, 2003, p. 10).
Não cabe a menor dúvida de que os ecos literários fizeram-se ouvir para
o público feminino, que ainda não tinha despertado à leitura mais elaborada,
mais crítica. O entusiasmo se deixou sentir em todos os setores da sociedade,
e as mulheres se dedicaram a expandir suas próprias habilidades artísticas.
Segundo Conde Peñalosa (2002):
A las mujeres ya conocidas en la posguerra se unen muchas jóvenes, completándose la participación femenina en todos los campos del arte, la cultura, y el pensamiento. [...] se hace palpable en el periodismo, en el ensayo en la historia, en la pintura, y en la poesía, en la literatura infantil en el cuento [...] (CONDE PEÑALOSA, 2002, p. 163).
Pressionadas pelos intelectuais, e com o aparecimento da produção
escrita por mulheres, a Editora Destino iniciou um processo de incentivo
cultural e financeiro às produções de pós-guerra, criando o “Prêmio Nadal”,
importante prêmio destinado aos melhores trabalhos. Com esse incentivo, o
núcleo editorial na Espanha recupera grande evolução.
Nesse espaço, a produção literária feminina assume um discurso
diferente ao veiculado na novela rosa e avança com uma postura crítica sobre
a política social vigente, como já dissemos. As coisas corriqueiras do lar
ganhavam outras dimensões. Está expresso nas entrelinhas das narrativas o
pensamento crítico da realidade e suas múltiplas possibilidades de
interpretação. Utilizam-se variados recursos linguísticos para melhor
elaboração das obras que possibilitaram colocar um sentimento especial na
produção. Galdona Pérez (2001) sobre essa postura comenta e pontua:
[…] de sus ficciones emana un realismo crudo que grita literalmente contra aquella España desvencijada por la boca de multitud de personajes hundidos en la desolación. Pero, además, puede intuirse en esas historias una cierta sensación de hastío, probablemente inconsciente, provocada por una
27
situación secularmente injusta para la mujer que se agudizó, si cabe, en aquel marco reaccionario de la dictadura. (GALDONA PÉREZ, 2001, p.95)
A partir de um olhar feminino, e não mais de um masculino, as narrativas
em primeira pessoa ocupam extenso espaço editorial, ao ponto de muitas
escritoras ganharam o cobiçado prêmio “Nadal”, e outros, que foram
estabelecidos pelas editoras no afã de fazer reviver a vida cultural. Conforme
Galdona Perez (2001), as mulheres encontraram na narrativa ficcional um
recurso para decifrar as diferenças sócioculturais entre homens e mulheres.
As narrativas das mulheres surgiam como verdadeiros testemunhos dos
momentos conturbados que viveram na adolescência cercada pela guerra. Na
literatura, elas divisam o canal para evidenciar as experiências do cotidiano que
eram silenciadas e a exaustão da desigualdade social imposta. Através da
escrita feminina deciframos vozes, gritos e sussurros de sofrimentos tomando
caminhos semelhantes entre si. Algumas mostravam a vida cotidiana da classe
média baixa como um micromundo especial da sociedade espanhola. Outras
expunham, com habilidade, o conflito interior vivenciado no interior do lar. Para
Galdona Pérez, (2001, p.98), a catástrofe da guerra foi intensa na vida das
espanholas, de modo que “en aquel momento, la escritura fue, en muchos
casos, un desahogo en el que la sensibilidad de quien escribía no quiso, o no
supo, esquivar los ecos de aquella catástrofe”, e é assim como em algumas
escritoras se evidencia tamanho rancor e hostilidade.
Na maioria das obras, há um desdobramento psicológico das
protagonistas, em que a volta ao passado, em forma de reflexão, é
fundamental para entender o presente. Para Concha Piñero Valverde (2006),
buscar nas lembranças traços da guerra é emocionar a quem viveu tamanha
crise e sofreu junto com o povo espanhol:
Evocar recuerdos de una España que acaba de salir de la guerra civil es mirar hacia un tiempo que puede parecer reciente a la memoria afectiva de quién lo vivió, pero que pertenece a lo que ya llamamos siglo pasado (VALVERDE, 2006, p. 55).
Em síntese, muitos romances do imediato pós-guerra são retrato das
relações familiares alicerçadas nos anos de guerra e o recurso memorialístico
28
não foi usado pela maioria das escritoras de pós-guerra de forma voluntária tão
somente, foi um artifício que encontraram para expor os traumas que o conflito
bélico causou para não esquecer a violência que fragmentou à sociedade.
Cada uma em sua individualidade escolhia gêneros até o momento não
reconhecidos como literários, preferentemente os autobiográficos: memórias,
diários íntimos, confissões, biografias. De Marco pontua:
No campo da literatura, assistimos a mudanças significativas na produção crítica e historiográfica. Os estudiosos das mais diversas tradições literárias passaram a considerar as disjuntivas de gêneros tanto nas sistematizações da historiografia como nos ensaios sobre obra e autor. Hoje é possível ler histórias literárias das obras escritas por mulheres e, sobretudo, uma vasta produção crítica [...] (DE MARCO, 2002, p. 249)
Em razão da censura, algumas autoras escreviam em primeira pessoa,
utilizando a voz das personagens para falar o que jamais poderiam dizer e/ou
escrever com suas assinaturas. De acordo com Dal Farra (1978, p. 57), “o
romance de primeira pessoa se perfaz numa dinâmica entre passado e
presente”, evidenciando dessa forma as impressões mais íntimas. Para Dal
Farra (1978, p. 57), “a finalidade da narração é de resgatar um passado, ainda
nebuloso e inconsciente, para, recuperando-o, poder o narrador lançar-se
inteiro e completo em direção ao futuro”. Em algumas narrativas as
personagens são geralmente protagonizadas por adolescentes com evidentes
e constantes problemas familiares e existenciais, levando-as a refletir sobre a
posição em relação ao mundo em que estão situadas.
Janet W. Pérez (1983), importante estudiosa sobre novelas femininas do
pós-guerra, relata que “los primeros libros de estas autoras, por ejemplo,
presentan una protagonista de edad adolescente, separada física o
espiritualmente de su familia; por eso es un ser solitario” (Pérez, 1983, p.126).
Essas personagens adolescentes, no mais das vezes, simbolizavam um olhar
no passado para explicar o presente e, na sequência, lançar-se ao futuro na
chegada da vida adulta.
A postura normal para essas mulheres era de escutar, esperar e guardar
suas angústias em seu mundo interior. O silêncio destinado a elas não era
imposto só na fala, mas também gestual e escriturário. As produções, por um
29
tempo, ficaram somente no mais íntimo de seus sonhos até ganhar dimensão
editorial. Os sussurros e murmúrios correriam na casa, insinuam-se nos
vilarejos, circulam nas cidades misturadas aos barulhos da violência que
assolava a todos naqueles momentos de dor. Mesmo em situação de
dominação pelo sistema político vigente, sempre se esquivavam das
proibições, preenchendo o vazio de suas vidas através das produções sob os
gêneros autobiográficos, principalmente o memorialístico.
Ao compará-las com as produções masculinas, as mulheres produziam
pouco, mas fizeram a diferença naquele momento. Segundo Conde Peñalosa
(2002), as autoras que mais ficam em evidência por suas obras e por
conquistarem grandes prêmios de literatura foram Carmem Laforet, Ana Maria
Matute, Elena Quiroga e Carmem Matín Gaite, entre outras, pertencentes à
primeira geração de escritoras do imediato pós-guerra.
Essas escritoras têm algo em comum: a maioria começou a produzir
cedo e o recurso memorialístico está presente em suas narrativas. Elas
tiveram, na adolescência, a presença da tumultuosa e devastadora guerra civil,
e a escrita era um refúgio, uma forma de libertação para escapar das dores
porque passaram naqueles momentos. Elas foram, associadas a outras
escritoras da época, alicerce para a construção da literatura de pós-guerra.
No infinito desejo de se expressar, iniciaram a caminhada para uma
literatura de realismo social pelo desejo por denunciar as injustiças, os horrores
físicos e psicológicos que vivenciaram. Segundo De Marco (2002, p.253), há
uma associação de perspectiva crítica pela busca de compreensão de seu
tempo, levando o leitor a uma reflexão sobre a complexidade da era Franco.
As narrativas de pós-guerra não foram esquecidas nem por leitores
comuns, menos ainda pela crítica da época, e Pérez (1983, p.134) recorda que
“las semejanzas entre varias protagonistas de las novelistas más recientes
forman un retrato colectivo de la nueva mujer”, e o que se percebe conhecendo
algumas produções dessas autoras é que elas estavam sempre à frente do
tempo, inserindo nas protagonistas as expressões de seus desejos. Dialogando
sobre as narrativas de cunho histórico e memorialístico, Esteves e Carlos
(2007, p.71) acentuam: “A narrativa evidencia também uma pluralidade de
vozes e de olhares que, por sua vez, questionam os acontecimentos, as
imposições e restrições [...] de todas as ditaduras europeias do momento
30
histórico [...]”, e desde uma postura feminina é o que fazem essas escritoras de
pós-guerra civil espanhola: denunciam e questionam os horrores da ditadura
por meio da literatura.
É interessante pautar que na literatura feminina se registram as marcas
tanto físicas quanto psicológicas do emaranhado de violências a que esteve
sujeita no somente a mulher, se não em geral, toda a sociedade. Para algumas
mulheres a produção literária serviu como refúgio nos dias de angústias, temor
e medos, e através dela emergem registros importantes sobre a disputa pelo
poder que gerou catástrofes inesquecíveis durante e depois da tomada do
governo por Franco.
31
CAPITULO II
O poder autoritário na Espanha e as recordações
de Ana Maria Matute
2.1 Uma explicação histórica
Ao se perguntar sobre as razões históricas, econômicas e políticas que
levaram à implantação de um regime ditatorial na Espanha e ao analisar o
desastre de suas consequências na sociedade, há que se remeter a fatos
importantes que aconteceram desde o início do século no continente europeu −
como a revolução bolchevique − a primeira e segunda guerra mundial. Por um
lado, temia-se perder a riqueza da propriedade privada e por outro, se
procurava por grandes mudanças econômicas e políticas. Essas motivações
fizeram com que os exércitos se organizassem para iniciar violentas
manifestações em defesa dos territórios. A Espanha, governada por um
sistema republicano que tinha trazido mudanças significativas para a
população, transformava também as relações de produção que atentavam
contra a propriedade privada. Franco, um militar poderoso e apoiado pelos
interesses do capital, iniciou as ações contra-insurgentes até tomar o poder em
1939. Foi assim como se iniciou o largo período conhecido como regime
franquista, ou regime de Franco e até ditadura franquista. Franco se converteu
no todo poderoso senhor do território espanhol, usando todo tipo de estratégias
militares, sociais e políticas para se manter, até sua morte em 1975.
Durante esse largo período, o governante controlou a educação, a
cultura, a economia e a sociedade de acordo com suas decisões, na qualidade
de chefe de Estado, com atitude fortemente autoritária e violenta.
Hannah Arendt (2009), estudiosa dos regimes totalitários aponta que
todo governante tem o poder de mando institucionalizado revestido de
autoridade, e esse poder emana de grupos que estejam na mesma linha de
decisões. Não há possibilidade do exercício da autoridade se esses grupos não
são coesos e não concedem autonomia ao governo.
A autora opina que, para ser o governante do Estado e exercer do poder e da
autoridade, há a necessidade, antes, de passar por uma aprovação por meio
de sufrágio ou concessão de um grupo que delega poder no exercício do
32
cargo. Só então se tem a legitimidade do poder. No entanto, observa-se em
alguns casos que, com os governantes de Estados totalitários que se impõem
por golpes de estado, o poder institucionalizado exige reconhecimento
instantâneo e inquestionável.
Quando atentamos para as considerações de Arendt em relação ao
poder institucionalizado, encontramos na atuação do general Franco, galego de
nascimento, que existe concordância entre o que a autora registra com as
ações que ele dirige em função de sua autoridade. Há que lembrar que Franco,
liderando um partido de frente popular e ocupando o cargo de comandante do
exército do governo republicano espanhol, não sem aproveitar do medo e da
desconfiança que os latifundiários tinham de perder suas posses com esse
governo republicano de tendência comunista, ganhou o apoio de muitos
setores para que, juntos, se revoltassem contra esse sistema de governo. Para
tanto, com o apoio dos governos fascistas consolidados no exterior dirigiu o
levantamento armado na busca do poder.
Com avassaladora violência, os espanhóis de tendência liberal e
conservadora se enfrentavam, levando o país a terríveis desajustes sociais,
causados pelas lutas gigantescas no campo e na cidade, desastrosas devido à
violência utilizada pelos grupos em choque.
Na prática da autoridade e do poder, segundo alguns especialistas no
assunto, há uma distinção, porque não é raro que, no exercício da autoridade,
o poder venha quase sempre acompanhado de violência, sobretudo nos casos
em que alguns indivíduos reivindicam para si um tratamento humano perante
as decisões estabelecidas. Durante o período franquista, o autoritarismo foi a
bandeira que determinou as relações de poder, pois as decisões emanavam de
uma única direção, a ponto de se estabelecer um regime totalitário, controlando
qualquer tipo de manifestação contrária à ideologia imposta, garantindo seu
poder através dos diversos meios militares e paramilitares que reprimiam a
população. A luz do que pensa o filósofo Foucault (2004, p. 249), a sociedade é
atravessada por múltiplas relações de poder que não se situam apenas em um
local específico, mas são imanentes ao corpo social. Estas relações atingem a
realidade do indivíduo, inserindo-se e reproduzindo-se em seus elementos
mais específicos nas práticas cotidianas. Para ele, existe um entrecruzamento
de estratégias, normas e decisões à medida que atravessam os discursos e
33
formam saberes. O filósofo afirma que o poder é soberano, com ou sem o uso
da violência.
Na teoria política quando certo número de pessoas concede poder a
alguém para sua representação, este encontra sua legitimidade para agir em
nome do grupo que o concedeu, como no caso das sociedades modernas que
através do sufrágio, legitimam seu representante máximo, que vem a ser o
chefe do Estado. No entanto, na prática a teoria jamais se leva à sua inteira
realidade. Pensemos no alcance do Estado no uso do poder legitimado e da
violência como forma de controle social, e até na manipulação dos indivíduos
para fins subjetivos, que é o caso de Franco na Espanha.
O poder da sociedade ou de todo o corpo político só será legítimo
quando fundado na vontade de todos os indivíduos. A gestão maior é aquela
composta pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só
pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na
dependência de sua vontade. Max Weber opina:
Na prática, há instituições reprodutoras que garantem o cumprimento das normas impostas pelo Estado para que sejam cuidadosamente seguidas e ordenadas; estas instituições consagradas e autenticadas pela sociedade são entre outras a escola, a família, a igreja e as forças armadas. É necessário que a população obedeça às regras e convenções delimitadas por elas, mas, para que obedeçam é necessário que os detentores do poder possuam uma autoridade reconhecida como legítima (MAX WEBER, 2004, p.187-188).
Weber registra os diversos meios que um governante tem a seu dispor
para manter o controle social. Sua autoridade é um caso especial do poder
pela possibilidade de impor a vontade própria e poder apresentar-se nas
formas mais diversas ao comportamento de terceiros. Nessas relações de
imposição de comportamentos haveria numerosas possibilidades de
dominação legitimadas. Por exemplo, a autoridade conferida pela sociedade ao
chefe de família, ou quando o exército e a polícia atuam de maneira repressiva,
funcionando de forma simultânea para manter sua própria coesão e reprodução
de valores que transmitem à sociedade.
Naturalmente, o descontrole social entre a massa será evidente e é
compreensível, se entendermos como Foucault (1999, p.35) que o poder
34
circula incessantemente sem se deter exclusivamente nas mãos de alguém
potencialmente, todos somos ao mesmo tempo detentores e destinatários dele,
como sujeitos ativos e/ou passivos. “O poder transita pelos indivíduos”. Para o
filósofo, assim como para Max Weber (2004), o Estado cria instrumentos de
dominação e controle destinados a suprir ou domesticar os comportamentos
dos divergentes. Instituições como família, igreja, escolas, hospitais, presídios,
consideradas em sua origem para dar proteção ao ser humano, se
transformam em aliados do Estado para controlar e manipular os governados.
Fiquemos ainda com o filósofo
De modo geral, penso que é preciso ver como as grandes estratégias de poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em microrelações de poder. Mas sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam consolidados. (FOUCAULT, 2004, p. 247-249).
Foucault nomeia essas instituições como formas de “Tecnologia
política”, com poderes de manejar o espaço, tempo e os registros de
informações, tendo como elementos unificadores a hierarquia e a forma como
observamos no governo de Franco. Althusser (1980) denomina estas
instituições como Aparelhos Ideológicos do Estado – (AIE), para que funcionem
com a mesma finalidade já exposta por Foucault e Max Weber.
Em uma visão foucaultiana, diríamos que o poder e a autoridade de um
governante não são originários de uma única fonte, como as classes
dominantes, ou mesmo o Estado num ato solitário, se não, seria um exercício
de várias direções, em escala múltipla. Há uma criação de poderes,
conhecimento e saberes envolvendo todos em uma mesma teia, tanto em meio
aos dirigentes quanto nos dirigidos. Na mesma linha de raciocínio, Foucault
alerta que o exercício dessas funções pode se extrapolar e trazer sérias
consequências:
Tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais, sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das regras de direito que o organizam e o delimitam, se prolonga em consequência, [...] consolida-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentos (FOUCAULT, 1999, p.18).
35
No livro Sobre a Violência, de Hannah Arendt (2009, p. 51-53),
encontramos alguns apontamentos de estudiosos no tocante ao assunto sobre
práticas da violência pelos sistemas políticos, destacando que o poder não
pode ser gerado através da violência. Segundo Arendt, a essência do poder
está em ser ele a negação da violência. O poder e a violência correspondem à
habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto. A autora
cita C. Wright Mills, que pensa tal como Max Weber, ao dizer que “toda política
é uma luta pelo poder”, sendo a definição de Estado, para Max Weber (2004), o
domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência legítima, quer
dizer, supostamente legítima. Para ele, o Estado é um instrumento de opressão
nas mãos da classe dominante.
Diríamos que o poder, na concepção dos pensadores citados,
corresponde a duas formas distintas de dominação: para Foucault, o poder-
saber é um elemento central da produção de violência punitiva porque concebe
a violência sempre como uma técnica do poder. Para Arendt, o poder nunca é
propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência
apenas se o grupo se conserva unido. De acordo com as atitudes de violência
que se impunham, poderão surgir controvérsias quando houver
questionamentos em relação ao exercício do poder emanado do Estado.
De acordo com os teóricos citados, a distinção entre poder e violência é
conflitante quando falamos da prática do exercício do poder totalitário que usa
da violência como forma de repressão, pois a violência é constantemente
definida como a manifestação do poder, nas mesmas reflexões que faz a
filósofa Arendt. Segundo a autora, a confusão entre poder e violência vem de
longa data. Desde a antiguidade já se definiam as formas de governo como
formas de domínio do homem: passa pelo surgimento da noção de poder
absoluto do Estado/nação e chega aos nossos dias com a forma do domínio e
repreensão.
Entendemos que as relações sociais são permeadas por diferentes
manifestações de poder, e que, em determinadas situações, a violência está
presente dilaceradamente como forma de repressão e imposição de alguns
regimes, principalmente os totalitários, que se baseiam no terror, na tirania, na
obediência repressora, impostos pela violência tanto física quanto psicológica,
36
No concernente à violência física e psicológica, recorremos a Yves
Michaud (1998, p. 48), para quem a violência militar é dirigida, organizada, e é
a forma menos eficaz de ser empregada, mas, em contraponto, há a violência
civil que se reproduz em todos os meios sociais a todo o momento. De acordo
com ele, “Estas violencias − civiles − consiguen perturbar la paz, producen
angustia, perturbación o escándalo, desencadenan anatemas, incluso si sus
destrozos no son tan grandes como parece” (MICHAUD, 1998, p. 48). O
filósofo pontifica que, para os sociólogos, criminólogos e agentes causadores
da violência, essas manifestações têm traços em comum: provêm de pessoas
que tiveram na infância a presença da violência em casa, transmitida
geralmente pelos pais; indivíduos com renda financeira baixa; pessoas às quais
os vínculos de interação social são limitados; não dominam a linguagem, em
consequência não se expressam e não se comunicam de forma clara. São
indivíduos com dificuldades para lidar com situações complicadas; são
desestabilizados. Para eles, são pessoas com comportamentos primitivos.
Ancoramos nessa reflexão, que a violência civil está impregnada na
sociedade, dentro de nós, e cada vez mais é impossível visualizá–la. Nos
governos totalitários, é escancarada, mas em outros governos é mais
mascarada, de forma que a sociedade a aceita como forma de evitar a própria
violência.
Acreditamos que, quando o Estado nos vigia pelos aparatos eletrônicos
e militares; quando nos cerceia com restrições através dos meios educacionais,
ou quando impõe normas que caminham contra o livre pensar dos cidadãos,
está exercendo práticas de violência para manter aprisionada a população.
Enfim, a sociedade se silencia pelos aparatos militares que saem em defesa do
poder soberano do Estado com formas evidentes e acentuados da violência e
as marcas nem sempre são explicitas, mas se registram implicitamente,
exigindo dos indivíduos um olhar mais aguçado e avaliador dos acontecimentos
à sua volta.
Foi nesta direção que o regime do General Franco consolidou o
totalitarismo na Espanha. Vejamos, senão, os registros das marcas de
violência que se perpetuaram na memória dos espanhóis, especificamente das
mulheres que tinham como função a reestruturação da nação desmoronada
pela guerra civil.
37
2.2 Ana Maria Matute e a narrativa
Partindo do entendimento de que é no contexto dos valores morais e
sociais que se conhece melhor nossa própria vida e que ela adquire significado
próprio na relação com os outros, acreditamos que Ana Maria Matute, mediante
sua extensa produção, possibilita a reflexão sobre a maioria dos
acontecimentos e as consequências da guerra civil, que mostra quanto a
violência psicológica fragmenta a sociedade e qual é o significado da vida
numa sociedade totalmente fragmentada. Antonio Cândido (2006) teoriza,
precisamente, sobre a relação entre autor, vida e literatura:
Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um esforço de um pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma “expressão”. A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma “comunicação” (CÂNDIDO, 2006, p.147).
Em concordancia com Cândido (2006) no que toca ao envolvimento do
autor, obra e público, Galdona Pérez (2001, p.111) acredita que escrever é
como viver em sociedade. É participar do cenário sociotemporal que nos
envolve. Não há produção imparcial, a obra sempre terá indícios de
subjetividade individual que promove e inspira o autor. Na mesma linha de
reflexão María Ángeles Calero, citada por Galdona Pérez (2001), adverte
quanto à “imparcialidade” dos textos, e como estes evidenciam muitas
mensagens alicerçadas na vivência do autor, afirmando que a literatura sempre
foi uma fonte de reprodução da imagem social.
La obra literaria, como cualquier obra humana, no solamente es reflejo del pensamiento individual de su autora o autor, sino que además ofrece claves que nos pueden permitir descifrar el pensamiento colectivo de la época en la que fue escrita o del pueblo en el que surgió. En consecuencia, la literatura es una fuente de información maravillosa y muy productiva para poder reconstruir la imagen que la sociedad occidental ha tenido y tiene de la mujer (CALERO, apud GALONA PÉREZ, 2001, p. 112).
Matute, impregnada de peculiar sensibilidade, inicia sua produção ainda
muito jovem, e algumas de suas obras não ultrapassam as barreiras da
38
censura imposta por Franco. Galdona Pérez (2001) relata que a ousadia era a
marca da autora e revela que suas linhas deixavam vestígios de sua revolta
sobre injustiças observadas na sociedade espanhola. Esta postura custou a
Matute a censura de algumas obras como: Pequeño teatro, escrita quando
tinha dezessete anos, que não foi publicada até 1954 e Luciérnagas,
semifinalista no prêmio Nadal de 1948.
Encontramos grande concentração das obras entre os anos de 1948 e
1971, período em que inicia a escritura da trilogia Los mercaderes, composta
pela novela Primera Memória (1959), na sequência Los soldados que lloran de
noche, e termina com La trampa. Em especial, a presente dissertação se
prende em Primera memoria – obra ganhadora do prêmio Nadal de 1959 –,
escrita de forma singular. Uma inovação no fazer literário, que vai além da
simples arte dos elementos estruturais. Nela encontramos inumeras alusões à
realidade vivenciada pela sociedade espanhola durante a guerra civil e as
sequelas que ficaram intocavéis na memória.
De acordo com Galdona Pérez (2000, p.105-109), nas novelas de pós-
guerra, era freqüente encontrarmos temas que não poderiam sequer ser
pronunciados publicamente, menos ainda escritos. A frente de seu tempo,
Matute inseria em suas produções assuntos proibidos com a função de ativar o
inconsciente dos leitores para uma visão crítica dos rumores a sua volta.
En sus páginas, sin embargo, están planteados con manifiesta osadía temas como el divorcio (Algo pasa en la calle, 1954), el aborto (luciérnagas, 1993), el comunismo (Los soldados lloran de noche) la homosexualidad (Primera memoria, la insolación) o el suicidio (Pequeño teatro) condenados todos abiertamente por la represión franquista (GALDONA PÉREZ, 2001, p. 107).
Matute, no intuito de configurar literariamente a repressão e
desmascará-la, retrata o cotidiano de vidas desvencilhadas pela guerra
fratricida, uma realidade que era maquiada pela repressão do poder e do
regime. Em uma visão crítica e consciente, ela não media esforços para,
através da literatura, mostrar sua posição em relação ao governo vigente.
Recorremos a Vargas Llosa (2002, p. 25) e concordamos com ele
quando afirma que somente a literatura dispõe das técnicas e do poder para
destilar o delicado elixir da vida e a verdade escondida no coração das
mentiras humanas.
39
Mejor aún, es un medio para manifestar en el mundo, un malestar que a veces es personal y a veces no. El mundo no funciona bien, y aunque tu vida personal sea feliz, el exterior te atañe, entra por debajo de las puertas, te agrade y te agrede y te incita a levantarse contra él [...] La literatura es, en realidad, una protesta y una gran pregunta sobre la vida. (GALDONA PÉREZ, 2001, p. 108)
Nos aparentes enganos da literatura não há nenhum engano. Nesse
mesmo fio de discussão, Matute, em uma entrevista³ citada por Galdona Perez
(2001), declara que escrever para ela é uma forma de estar no mundo.
Nas novelas da autora em apreço, o leitor é transportado para um
mundo de ficção, multifacetado num espaço de sonhos, fantasias e
recordações da guerra, ainda que o tempo tenha passado. Neste sentido,
Vargas Llosa (2002, p.21) afirma que, “cuando leemos novelas no somos los
que somos habitualmente, sino también los seres hechizos entre los cuales el
novelista nos traslada”. Somos contaminados pelas entrelinhas da obra e cada
vez mais nos envolvemos em questões das quais antes não tínhamos
conhecimento ou não faziam parte de nosso campo de entendimento.
Em efeito, o público leitor e os críticos que receberam essas produções
qualificam Ana Maria Matute como a melhor romancista do pós-guerra, quão
grande é a qualidade de sua produção que, por diversas vezes, fora premiada
e traduzida a diversos idiomas.
Buscamos nos comentários de vários críticos que recepcionaram as
obras de pós-guerra e aqueles sobre a autora, dentre eles Antonio Vilanova,
citado por Galdona Pérez (2001), que acredita ser Matute “Una brillante
revelación en el campo de las letras [...] una de las figuras más vigorosas y
originales de la joven novelística española” (Vilanova, apud Galdona Perez,
2001, p.103). Já Janet. W. Pérez, estudiosa sobre as Novelistas femeninas de
la postguerra española (1983) opina:
_____________
³ Declaração de Ana Maria Matute em uma entrevista para Alicia Redondo Goicochea, diretora da revista Compás de Letras que editava produções de críticos sobre as novelistas espanhóis e nessa edição as reportagens seriam sobre a autora e suas obras em 1994. (Galdona Perez 2001, p.108)
De todas sus novelas, se destacan dentro de su producción las tres que se conocen en integrado en su conjunto bajo el título de Los mercaderes. Este conjunto, integrado por
40
Primera memoria (1960), Los soldados que lloran de noche (1964) y La trampa (1969), es ampliamente reconocido por la crítica como su obra maestra. (PERÉZ, 1983, p. 19).
Ainda sobre Los mercaderes, José Luis Cano observa que “la trilogía
quedará como una de las obras más bellas y punzantes de nuestra novelística
contemporánea”. (Cano, apud Perez, 1983, p. 19). Atráves de um imaginário
lirico, sensível e emocionante, as narrativas de Matute combinam denúncia
social e mensagens poéticas ambientandas com frequência no universo
infantojuvenil no período da guerra civil. No entanto, a qualquer tempo
observamos nas entrelinhas estereótipos do conservadorismo e arbitrariedades
cometidas por pessoas detentoras de algum tipo de poder e/ou autoridade.
Matute recorre ao que Walter Benjamin chama de musa das narrativas,
a memória, como primícia para registrar suas experiências, articulando com o
leitor um pacto de confiança da coisa narrada. Para tanto, ela mergunlha nas
recordações para preencher de vida seus personagens. Benjamin, a esse
respeito, alude que “ assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como
a mão do oleiro na argila do vaso” (Benjamin,1994, p. 205). O leitor é
convidado a se libertar da leitura superficial e única, insinuando as várias
outras formas de interpretação a partir das ambiguidades articuladas em cada
parágrafo traçado de suas novelas.
Benjamin (1994, p. 211) abre uma discussão sobre a internalização das
dores entre o passado e o presente, o que nomeia de reminiscência¹. Para ele,
“funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em
geração”. A partir daí podemos entender que Matute filtra suas reminiscências
e insinua, de forma sutil, pistas para que o leitor busque em suas vivencias a
interação para com a produção literária a qualquer tempo entre o passado e o
presente. Por sua vez, a memória, pressupõe a narrativa das experiências
vividas entre diferentes gerações. Toda literatura é uma forma de memória, o
vínculo com o passado é o motor de qualquer narrativa.
_________________
¹ Recordação de um tempo passado, é, em certo sentido, uma internalização do evento: por assim dizer, o evento está em mim e não a alguma distância de mim, no espaço e no tempo. Mas, para recordar um evento eu devo, na época do evento, tê-lo internalizado e adquirido uma lembrança dele que pode ser mais tarde relembrada; essa lembrança é menos internalizada por minha recordação do que externalizada dragada de minha memória. (Benjamin, 1994, p.207)
41
No entanto, só quando falamos em literatura memorialista, ou em
memórias, vem à tona o universo autobiográfico ou confessional. A narração
em primeira pessoa acentua o tom confessional e autocrítico numa forma de
aproximação e semelhança com o leitor.
A memória, sendo um gênero, é mais complexa, não exatamente
marcada pelo retorno ao passado, mas pela fidelidade ao vivido, guiada por um
desejo futuro, composta por lacunas, silêncio, rasuras e esquecimentos,
levando a autora a mostrar grande habilidade com a literatura ficcional. São os
chamados gêneros intimistas, formas narrativas em primeira pessoa,
consideradas como menores, que seguiram seu curso apartado das altas
literaturas. É um espaço de fuga que o homem solitário encontra para se
refugiar e contar aos demais seus problemas individuais, que, na maioria das
vezes, não são individuais, e sim coletivos.
É perceptível o controle que Matute exerce na voz que emana da
personagem narradora, voz essa que eclode somente a título de empréstimo
para expressar as angústias e decepções vivenciadas por ela no período da
guerra. Em relação à postura do narrador, Dal Farra salienta:
Se o romance deve dar a impressão de que a vida está sendo representada em toda sua totalidade intensiva, a ação deve estar localizada no passado e o narrador – enquanto controlador da estória – não pode estar confinado ao lugar de seu discurso. Ele manterá os olhos abertos para os dois lados do tempo, adquirindo a flexibilidade necessária para se mover num circuito de ida e volta entre os três elementos temporais: passado – presente – futuro. [...] Deste modo ele confere ao leitor um encadeamento dos fatos, doando-se como guia, como a mão que orienta o caminho na manipulação da organicidade épica (DAL FARRA, 1978, p. 22).
Em um impulso de inquietações no incessante devaneio cronológico, a
memorialista estabelece uma relação com o leitor através de um tom quase
que biográfico.
Compreendemos que as produções literárias nunca são um todo
imparcial, sempre o autor deixa pistas de sua subjetividade individual, e o que
se percebe é que, em algumas obras de Matute os vestígios deixados são
demasiado evidentes. São marcas de uma infância cheia de traumas
42
familiares, sociais, mescladas com os conflitos bélicos de uma Espanha
destruída pela guerra fratricida.
Em um jogo discreto e seguro, ela utiliza a máscara da narrativa em
primeira pessoa, fazendo com que o texto ganhe destaque com a veracidade.
É interessante ressaltar que, quando usa a primeira pessoa, o gênero é
costurado com base num único olhar vivenciado e experimentado e que o autor
deseja nos convencer de seu único ponto de vista. O que, para Bosi (1978), é o
aprofundamento do autor e sua máscara narrativa.
Haveria, ainda, no romance de primeira pessoa, um aprofundamento da relação entre o autor e sua máscara narrativa. [...] O caráter de estrita proximidade, de quase- identificação, que amarra o autor à ótica da primeira pessoa é, de certo modo, contrabalançando pelo maior grau de consciência ficcional, logo de distanciamento, que essa forma de narrar propícia. [...] o ponto de vista de primeira pessoa é aquele que acende mais rapidamente à consciência do caráter criador, construtivo, do texto narrativo (BOSI, apud DAL FARRA, 1978, p 12).
Para Bosi, às vezes, o modo de formar uma personagem é inovador, ao
mesmo tempo em que um desvio explicativo pode ser meramente ideológico,
ou vice-versa. É assim como ingressar na narrativa de Matute, é penetrar numa
aventura que permite desvendar algumas reflexões, fábulas e proezas; o leitor
é levado até o infinito com a fusão entre o histórico e literário que a memória
permite realizar.
Os modelos de mulher determinados por Franco, no sentido de ser
obediente ao esposo, destinada à maternidade e aos cultos não foram
esquecidos por Matute em suas obras. A presença desses traumas do
comportamento está implícita nos ambientes e na alma de algumas
personagens, o que não nos surpreende, pois escrever é lembrar a tragédia
nacional, seria o mesmo que reviver as marcas do passado. Conforme Sartre
(1989, p.18), “o escritor é um falador; designa, demonstra, ordena, recusa,
interpela, suplica, insulta, persuade e insinua”. Matute insinua suas impresões
e persuade o leitor em suas narrativas. Para Sartre (1989, p.22), a “função do
escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar–se
inocente diante dele”. Para o filósofo “ser escritor não significa somente dizer
certas coisas, mas além de dizê-las, o requinte do escritor é escolher o modo
43
como elas são ditas”. E para Matute dizer o que pensa em relação à situação
em que a Espanha vivenceu utiliza do recurso memorialístico. Com uma
linguagem discreta e sutil, evidencia e alterna aspectos violentos e
angustiantes da realidade no período da guerra.
Quando se considera o ponto de vista do narrador na primeira pessoa,
deve-se levar sempre em conta o que é visto por ele e o que ele não vê e o que
o levou a não enxergar para que o leitor não seja submetido às manobras do
escritor.
De acordo com Sartre (1989), a escritura e a leitura são duas faces de
um mesmo fato histórico, e a liberdade à qual o escritor nos incita não é uma
pura consciência abstrata de ser livre para ele, cada livro propõe uma
libertação concreta a partir de uma alienação particular. Este o pensar deste
autor:
Existe em cada um, assim, um recurso implícito a instituições, a costumes, a certas formas de opressão e de conflito, à sabedoria ou à loucura do dia, a paixões duráveis e abstenções passageiras, a superstições e a conquistas recentes do bom-senso, a evidências e ignorância, a formas peculiares de raciocinar que as ciências puseram em moda, que aplicamos a todos os campos: a esperanças, temores, hábitos da sensibilidade, da imaginação e até mesmo da percepção; enfim, aos costumes e valores recebidos, a todo um mundo que o autor e o leitor têm em comum (SARTRE,1989, p. 57-58).
Na linha de raciocínio de que nenhuma memória é só do indivíduo e não
se mantém impermeável às lembranças dos outros, e que a memória do
homem é constitutivamente social, histórica, cultural e simbólica, então a
memória do narrador no aspecto social seria ainda mais forte. Concordamos
com Galdona Pérez (2001) quando diz que o tempo só aguça os
questionamentos do escritor, causando dúvidas e inquietações em seus filtros
memorialísticos.
Sin embargo, el tiempo es algo más que un simple aliado a la memoria. Con el tiempo cambian las personas y cambian las ideas, y mientras determinadas premisas afianzan su solidez, otras comienzan a ser presa de dudas, sospechas, cuestionamientos... Es así como aprenden a convivir y combinarse, en el incesante devenir cronológico, la memoria y
44
el olvido, la presencia y la ausencia, la palabra y el silencio. Es así como empieza a sustituirse la verdad por pequeñas verdades cotidianas […] (Galdona Peréz, 2001, p. 30).
Compreende-se então que Matute usa de todas as habilidades
particulares para explorar, na literatura, o desvendar da memória de cada uma
de suas personagens. Enquanto narra, o memorialista vai buscando traços que
foram esquecidos, mas não apagados pelo tempo, e entra em um processo de
presença e ausência de suas recordações.
A forma memorialista permite o relato de uma experiência de vida
intimamente envolvida com os acontecimentos histórico-sociais. Como gênero
literário, tem forma híbrida de expressão, essencialmente destinada ao registro
de fatos verídicos, pode ser um discurso documental, testemunhal ou ficcional
sendo caracterizada fundamentalmente por uma dualidade; aproxima-se ou se
afasta tanto da ficção literária quanto da realidade histórica. Ela é um rico
instrumento nas mãos de Matute, que, através das personagens, mostra suas
alegrias, frustrações e os conflitos existenciais.
Como bem discorre Vargas Llosa (2002), em uma sociedade onde o
desejo dos governantes é controlar desde as ações dos homens até seus
pensamentos, a memória é um ponto de partida para a fantasia, é um
trampolim para a imaginação, recordações e intenções que se misturam num ir
e vir, e cabe ao narrador enfeitiçar os leitores. Em outro ponto reforça:
En una sociedad cerrada el poder no solo se arroga el privilegio de controlar las acciones de los hombres - lo que hacen y lo que dicen - ; aspira también a gobernar su fantasía, sus sueños y, por supuesto, su memoria. En una sociedad cerrada el pasado es, tarde o temprano, objeto de una manipulación encaminada a justificar el presente (VARGAS LLOSA, 2002, p. 26).
Na obra, Primera memória, objeto de nosso estudo, encontramos um
diálogo contextualizado dos traumas da infância da memorialista e vai até a
conturbada chegada da adolescência. O ir e vir das lembranças deixa pegadas
que permitem, ao leitor, visualizar nas entrelinhas a verossimilhança entre a
vida da protagonista e a autora (Matia e Matute).
Na novela em análise, Matute mostra ser uma escritora extremamente
engajada nos problemas sociais, nas injustiças e na fragilidade do homem em
45
ser facilmente aniquilado pelas atrocidades do regime totalitário. Percebe-se a
indignidade e revolta por ser submetida e censurada pelas imposições de um
regime ditador que é reproduzido em muitos dos lares espanhóis, e é muito
bem recebida pelo público e pelos críticos.
Segundo Cândido (2006, p. 31), comentando sobre o artista e a obra,
não convém separar a repercussão que a obra causou; para ele, a arte é uma
comunicação inter–humana, e todo processo de comunicação deve pressupor
um comunicante, no caso o artista; um comunicado, a obra, e um
comunicando, que é o publico, sendo essas comunicações as expressões de
realidades profundamente radicadas no artista. Continua explanando:
[...] a) o artista age sob impulso de uma necessidade interior, orienta–o segundo os padrões de sua época, b) escolhe seus temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio. [...] a arte é um sistema simbólico de comunicação inter–humana [...] (CÂNDIDO, 2006, p. 31)
Entendemos, com Andréa Cristina Martelli (2007), que os conflitos
vividos são encerrados na esfera do presente, mas, quando nos lembramos de
um fato, não existem limites, recordamos muitas coisas que vieram antes e
depois; fatos que nos levam a outras lembranças guardadas ou esquecidas.
Até objetos reencontrados nos lugares que aconteceram em algum evento num
contexto remoto, nos recordam uma maneira de ser em comum de muitas
pessoas, e, quando analisamos esse contexto, lançamos nossa atenção a cada
uma dessas partes, é como se dissecássemos um pensamento em que se
confundem as contribuições de cada grupo à nossa memória. Para os
acontecimentos narrados, não há uma única versão, as narrativas são
inconclusas.
46
2.3 Memórias
Nenhuma memória é só do indivíduo e não se mantém impermeável às
lembranças dos outros. Se a memória do homem é constitutivamente social,
histórica, cultural, simbólica, as lembranças na memória do narrador nesse
aspecto social literário, devem ser ainda mais fortes. Ele tem a função de narrar
não só sua experiência, mas também a do meio em que ele vive. Não há
sobrevivência sem memória: ao mesmo tempo em que narra, ele se dobra
sobre o exercício de lembrar e esquecer. E no entendimento de Pierre Janet,
citado por Le Goff em História e Memória (1996):
Considera que o ato mnemônico fundamental é o comportamento narrativo que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois é a comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo (FLORES, apud LE GOFF,1996, p. 424-425).
A arte de contar, de narrar, transcende as questões teóricas e as
sociedades sempre contaram com a conservação da memória pelas quais
razões de perpetuar suas memórias. Dessa forma, os grupos mantêm suas
memórias coletivas, para que as próximas gerações possam conhecer, através
das lembranças, eventos que o tempo apaga, mas são registrados pela arte.
No processo da memória, o esquecimento é uma necessidade para a
sobrevivência de algumas recordações, deixando o leitor em dúvida, seguindo
um percurso de confiança e desconfiança. Para tanto, concordamos com Bosi
(1994, p. 68) quando afirma que “a narração da própria vida é o testemunho
mais eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória”.
Consideramos então que Matute vai além do simples narrar, constrói apoiada
em suas recordações um diálogo com o leitor, busca interação entre o público
e a obra. E no mesmo fio de expressão, Martinelli (2007, p. 7) afirma que a
“memória provoca o surgimento não só de lembranças organizadas por uma
temporalidade única e linear ordenando os acontecimentos, não é um sentido
único de verdade, e sim de reminiscências que rompem a sucessão
cronológica dos fatos”. Seria a ressignificação das experiências vividas, um
cenário ocupado por indivíduos onde se mistura o passado e o presente, não
47
caracterizado exatamente como saudosismo, nem como repetição do que
passou. Seria a busca pelo olhar crítico do presente para o futuro.
Tzvetan Todorov exemplifica, em seu texto Los abusos de la memória
(2000 p. 26), que a memória é um trajeto de idas e vindas: “La memoria no es
sólo responsable de nuestras convicciones sino también de nuestros
sentimientos”. Para ele, evidenciar as experiências do passado na intenção de
reinterpretar a imagem que se tem de si e dos outros pode ser dolorosa se não
o fizermos com os devidos cuidados, para não deixar que o presente seja
regido pelo passado.
É interessante ressaltar que Matute é extremamente delicada ao
deslindar sobre as recordações da guerra civil em sua infância. Suas
lembranças servem como fios para que na tessitura, em especial na novela
Primera memória, provoque no leitor a inquietação à desconfiança em relação
às mensagens que são embutidas nas entrelinhas da produção. Ela converte o
passado no princípio para o presente que para Todorov (2000, p. 31) seria a
associação que a mente busca para garantir a própria identidade, por isso
busca explicação nas analogias de suas recordações.
Quando discutimos a volta ao passado, a semelhança entre a história e
a memória é inevitável, por se tratar de um mesmo objeto; o passado, mas,
apesar das aparentes semelhanças, tomam posições diferentes.
Com a capacidade de assegurar manifestações sobreviventes de um
passado distante, separado do presente pelo tempo, a memória se difere da
história. A história encontra diferenças, ao passo que a memória produz
semelhança. Em concordância com Halbwachs,“Memória histórica pressupõe a
reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada
sobre o passado reinventado, de outro lado a Memória Coletiva magicamente
compõe o passado.” (2006, p. 13). Longe de ser sinônima, a memória é vida
um fio vivido no presente eterno, trazida por grupos vivos, em permanente
evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, enquanto que a
história é a reconstrução problemática e incompleta do que não é mais.
De acordo com Halbwachs (2006, p.72-101) quando as lembranças de
um acontecimento não têm mais como suporte um grupo “ [...] o único meio de
preservar essas lembranças é fixá-los por meio escrito em uma narrativa, pois
os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pensamento morrem”. Para
48
o autor, somente através de um trabalho extremamente minucioso de memória,
pode-se redescobrir a imensidão de detalhes, grandes ou pequenos, que
acreditavam estar perdidos para sempre no passado de uma geração.
Nesse sentido, nossas lembranças emergem junto com a das outras
pessoas e se originam de situações sociais. Lembramos e esquecemos como
membros de um grupo e conforme os lugares que neles ocupamos ou
deixamos de ocupar. Dessa forma, relaciona a memória à participação em um
grupo social, em uma comunidade efetiva, de forma que, quando nos
lembramos, deslocamo-nos de um grupo para o outro em pensamento.
Considerando uma visão social, imaginamos quanto a memória do indivíduo
depende das palavras do outro, das histórias lidas ou contadas, das obras de
arte, tanto pelo contexto em que estão inseridas como por serem produções
históricas.
Conforme Philippe Lejeune (1994, p.10-11), o que caracteriza a
autobiografia é a identidade entre narrador e autor, expressada através do
pacto autobiográfico estabelecido com o leitor, espécie de declaração do
escritor para o leitor. A autobiografia seria principalmente uma narrativa com
perspectiva retrospectiva, cujo assunto tratado é a vida individual, que implica
necessariamente a identificação entre autor, narrador e personagem.
Recorremos a Remédios (1997) para pontuar sobre a fragilidade do
romance de memória, que considera quanto é frágil a delimitação entre
romance autobiográfico e autobiografia, e observa que a autobiografia pode ser
considerada ato literário e daí ficcional:
[...] quão difícil se torna também delimitar a literatura confessional às fronteiras entre autobiografia e diário intimo, ou entre autobiografia e autoretrato, ou ainda entre autobiografia e memórias (REMÉDIOS, 1997, p.13).
Geralmente, a falta de correspondência entre o íntimo e o exterior
determina o ponto de partida para tecer a meditação que, de uma maneira ou
de outra requer o feito de escrever. Pensar memórias na contemporaneidade
vai além de um simples recordar, as experiências são rememoradas de várias
formas às fronteiras do real e do ficcional. Elas surgem como artifício, não para
estabelecer limites, mas para permitir que as experiências continuem a ser
narradas.
49
Para o indivíduo que vê o mundo com criticidade e coerência, o desejo
de se responsabilizar não é por ele, mas por todo o bem da coletividade a sua
volta. Sobre os acontecimentos que permanecem na memória de um grupo,
Halbwachs afirma :
[...] são as repercussões, não o acontecimento, que entra na memória de um povo que passa pelo evento, e somente a partir do momento em que elas o atingem. Pouco importa que os fatos tenham ocorrido no mesmo ano, se esta simultaneidade não foi observada por seus contemporâneos. Cada grupo localmente definido tem sua própria memória e uma representação só dele de seu tempo (HALBWACHS, 2006, p. 130).
Na contemporaneidade, o culto à memória nem sempre serve para
lembrar as coisas boas, às vezes são recordações que causam angústia, nos
entediam, e escrever sobre essas lembranças, alegria e/ou dor alivia o
momento outrora passado, mas não curado. O memorialista utiliza o passado
com visão de presente, permite que seja feita uma reflexão dos momentos
vividos, ora recordado, ou seja, uma forma de compartilhar eventos felizes de
um período que não volta mais, em momento algum, senão nas linhas traçadas
pela memória.
Manter um diálogo consigo por meio das escritas pode ser uma espécie
de resposta à solidão que ronda o ser humano, desde os tempos mais remotos,
na tentativa de afugentá-la. O status de escrever num papel na primeira pessoa
tem o ar de confidência, nele se deposita confiança para contar a vida íntima
como se fosse para um amigo, um interlocutor, solitariamente. A redigir o que a
literatura confessional chama de diário, o autor conta, escreve, ri e chora dias
em suas paginas diarescas. O movente desse artifício literário seria a
curiosidade, o desejo humano de conhecimento que pode se transformar numa
busca obsessiva por uma individualidade perdida ou ameaçada. É a
expectativa que deixa o leitor curioso em saber detalhes da intimidade do
possível narrador.
O ser humano não é capaz de viver só da imaginação, não bastam
obras teatrais, filmes, livros de histórias, não há como viver quando tudo a
nossa volta parece ser puramente ficcional. As obras autobiográficas, cartas,
diários e memórias são recursos que nos fazem acreditar que vivemos a
50
intimidade do outro, é algo que aguça a curiosidade, o prazer ao descobrir o
desconhecido.
É por meio da linguagem que os relatos memorialistas são construídos,
a partir de escolhas − silêncios, lembranças, imprecisões − é comum que nos
textos memorialistas haja imprecisões, tanto quanto imagens desconexas.
Cabe a escrita com recursos memorialísticos salvar as inexatidões que o tempo
causa na memória. Lembrar e esquecer fazem parte do cotidiano de cada
indivíduo. No concernente às imprecisões da memória, Todorov alerta para que
sejamos criteriosos na seleção de nossas memórias
como la memoria es una selección, ha sido preciso escoger entre todas las informaciones recibidas, en nombre de ciertos criterios; y esos criterios, hayan sido o no conscientes, servirán también, con toda probabilidad, para orientar la utilización que haremos del pasado. (TODOROV, 2000, p. 17)
Para Todorov (2000), há certas lembranças, que devem ser expressas
como dever, quando indispensáveis a testemunhar momentos de grandes
tragédias a um indivíduo ou a determinados grupos.
O memorialista seleciona, por meio das fragmentações como pelas
elipses, o que julga ser importante e como deve ser divulgado para seu leitor,
e, essa recuperação do passado é indispensável, não significando que o
passado deva agir sobre o presente. A função da memória, seja individual seja
coletiva, não é somente reter, mas também filtrar as informações que serão
passadas para gerações vindouras.
A narrativa memorialista talvez seja um desejo primário do ser humano
em conhecer seu passado, alimentada pela perda inevitável dos
acontecimentos presentes. Esse desejo é quase que um dever, uma obrigação
de quem não se satisfaz com a recusa da tradição. Seria preciso um exercício
para recordar datas importantes, festividades, acontecimentos que causaram
traumas ou momentos de extrema felicidade. Essas lembranças não são
naturais, necessitam de esforço para lembrar e esquecer, e sem vigilância do
lembrar e esquecer a história não existiria. As informações memorialísticas vão
além da história, assumindo dimensões psicológicas, íntimas e subjetivas.
Seria meio ficção, meio história, um lugar de refúgio, um universo marginal que
permite a manifestação atualizada do passado.
51
Como gênero literário, a memória é estudada amplamente nos dias
atuais, na intenção de compreender a sociedade a partir de traumas individuais
e/ou coletivos. O gênero seria uma forma de narrar histórias de um ponto de
vista mais pessoal, acolhido por um olhar individual, partindo para a
coletividade, com destaque ao senso crítico e histórico que um narrador dá
para sua história.
É o que se infere com a análise de Anna Caballé sobre a literatura
autobiográfica em Narcisos de Tinta (1995):
A partir del Renacimiento sigue tratándose de conocerse, si, pero ahora ya no para hallar el camino de la Gracia sino por el placer del análisis personal, de la introspección y, con frecuencia, para ofrecerse a la admiración del prójimo [...] (CABALLÉ, 1995, p. 32)
Para ela, em toda obra literária, seja qual for sua classificação, sempre
haverá um pedaço do Eu como expressão de uma realidade subjacente, “toda
literatura es pues literatura del yo: nuestra vida es, como sabemos, una
inmejorable fuente de escritura (Caballé, 1995, p. 38).
Falar de si mesmo é uma prática constante do ser humano. Ele fala de si
nas cartas endereçadas aos amigos distantes, aos amores proibidos, fala-se de
doenças, de grandes e pequenos traumas. Quando se trata de narrativas na
primeira pessoa, especificamente o gênero memórias, em que o autor é o
narrador e a personagem, há uma tendência em acreditar que a narrativa é
verdadeira, e se confirma com um pacto entre o autor e o leitor nas entrelinhas
da obra literária. Os romances intimistas ganham créditos na visão do leitor por
se identificar com a história de vida de cada um, que, conforme Dal Farra
(1978), as narrativas devem dar a ideia de veracidade com toda intensidade ao
ser narrada, e seu autor deve ter o máximo de controle sobre sua obra para
deixar claro na ida e vinda dentro de suas narrativas,
Se o romance deve dar a impressão de que a vida está sendo representada em toda a sua totalidade intensiva, a ação deve estar localizada no passado e o narrador, enquanto controlador de sua história, não pode estar confinado ao lugar de seu discurso. Ele manterá os olhos abertos para os dois lados do tempo adquirindo a flexibilidade necessária para se mover num circuito de ida e volta entre os três elementos
52
temporais; presente, passado e futuro (DAL FARRA, 1978, p. 22).
O ato de contar, narrar de acordo com o gênero memória, implica que o
autor esteja em um momento de extrema reflexão, pois a escrita do Eu é um
ato reflexivo. Sabemos que há variedades de estilos e formas de autor para
autor, o que faz com que suas obras sejam conhecidas. Mas, em relação à
memória, diríamos que em todos eles existe algo de muito comum: as obras
são acentuadas, com olhar constante ao passado, e todos os autores impõem
total domínio do que está sendo escrito. Em caráter representativo, expomos o
que sobreviveu de forma imprevisível a nossas vontades, aquilo que retemos
no inconsciente e nos comoveu mesmo que tenha sido uma comoção só por
alguns instantes. Caballé (1995, p, 89) registra-o em discussão com Gilles
Deleuze sobre a memória e entende que as memórias “involuntárias” aparecem
como “signos sensíveis”, como objetos, cores, paisagens, sabores, fenômenos
da natureza. Já a memória “voluntária”,
más distante y objetiva que busca, de algún modo, su vinculación con el tiempo “histórico” para identificar-se con la memoria colectiva de una época, un ambiente unos personajes,... es la más explotada por la literatura autobiográfica y también por los medios de comunicación. (CABALLÉ, 1995, p. 89)
Para ela, o esquecimento é acidental e involuntário. Pode ser favorecido
pelo excesso de informação. Isso significa que o esquecimento está muito
ligado ao acaso. Este não pode ser programado, é impossível esquecer
voluntariamente.
Em quase todos os espanhóis haviam necessidade de deixar por escrito
a experiência que passaram nos conflitos sociais e bélicos, sendo
protagonistas dos fatos ocorridos ao logo da guerra civil. A intenção dessas
pessoas era relatar, manifestar, esquecer as transformações que ocorriam na
Espanha, sejam do meio econômico, científico, familiar, literário. Ao redor disso
a preocupação com a forma ou gênero memória não era desconhecida por
esses escritores, que, na maioria foram exilados por motivos políticos da
época. Nesses textos, os narradores penetraram em si mesmos, na busca por
recordações e experiências passadas. Hoje, através dos críticos literários,
53
sabemos que todos esses diários e cartas são material autobiográfico. As
produções literárias a partir de uma perspectiva subjetiva do eu, rompendo o
silenciamento existente entre eles durante longo período. Os memorialistas
escreviam de forma denunciante para desmascarar o regime político da época,
e todos se apoiaram nas experiências vivenciadas naquele período.
O movimento de (des) estabilização de sentidos tem relação com suas
reflexões sobre o homem no mundo, sobre o tempo que passa entre o
acontecimento do evento, e a reflexão sobre o momento passado por cada ser
em determinada situação.
A Espanha estava naquele momento partida, e as obras autobiográficas
aumentaram progressivamente, tanto no interior do país como no exílio.
Sobressaem nas escritas de memórias as recordações da infância dos
escritores. Fenômeno relevante nesse tipo de literatura contemporânea é que
as editoras lhe exploram a boa acolhida, e muitos livros foram publicados a
com base nessa experiência pessoal. A necessidade de dar testemunho de
suas angústias, expor o que tinha de mais íntimo, que sinonimizava com suas
frustrações diante do que acontecia na Espanha, fez com que muitas obras
fossem escritas no exílio. Era facilmente observada nas linhas descortinadas
pelas obras memorialísticas, lhes tolhia a angústia de viver no exílio e a
lembrança dos episódios que acompanharam a adolescência de vários dos
autores. No recurso memória era possível contar suas experiências, falar dos
desejos reprimidos, expor o que o regime franquista não permitia, e a literatura
foi o caminho encontrado por grandes intelectuais da época, refém daquele
sistema, para externar suas denúncias.
Ao utilizar o recurso memorialístico, a literatura espanhola abriu espaço
num cenário escasso e precário no mercado editorial. Naquele momento,
descortinar as experiências vivenciadas ao longo das trajetórias, era o que os
autores faziam de melhor e de mais real na Espanha.
54
CAPITULO III
Primera memória: a representação do poder e autoridade
3.1 A trama em Primera memoria
A trama da obra Primera memoria é um sutil desvendamento de
peculiares situações que se deram durante o início do governo franquista e a
aliança com a autoridade da Igreja Católica. A narrativa vem recheada de
questões interessantes, se analisadas no contexto histórico aonde, para o povo
espanhol, só restava o silêncio. Ana Maria Matute, socorrendo-se do gênero
memória cria a personagem Matia, adolescente modesta e simples que em
nada desconfia da vida na cidade e do que acontece em seu entorno. Adulta,
vai lembrar, com postura crítica e reflexiva, sua infância na casa da avó, em
detalhes.
Primera memoria não tem um narrador onisciente, uma vez que a
memorialista relata somente o que viveu o que estava ao seu redor, e o
sentimento que sente hoje como adulta. As reflexões e as observações são
sucintas algumas vezes. Outras, ricas em detalhes. Sua estrutura está dividida
em quatro capítulos interligados um ao outro, marcados por descobertas sobre
a morte, o amor, o ódio e a traição.
Antonio Cândido em A personagem de ficção (1985) comenta que, em
um desenvolvimento novelístico os três elementos centrais −o enredo,
personagem e as idéias− são um conjunto de técnicas que só estão
intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem elaborados, tal como
pode ser observado nesta obra de Ana Maria Matute. O crítico revela:
A personagem é um ser fictício. [...] No entanto a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer então que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste ( CÂNDIDO,1985, p. 54).
55
Matia, a memorialista, parte com suas lembranças do local onde viveu
sua infância. Uma ilha paradisíaca, onde o brilho do sol é constante, cercada
por jardins verdejantes, flores coloridas. Gaivotas bailam no ar. No topo, bem
no alto de um declive, está localizada uma enorme e velha casa. Nesta casa,
mora Práxedes, sua avó, senhora viúva com mãos enrugadas e manchadas,
dedos com ossos salientes, cabelos brancos, usuária de roupas simbolizando
luto eterno. De apetrechos, usa um anel velho e sujo de brilhante, um binóculo
repleto de safiras falsas, o qual serve de observador do seu micromundo nos
dias de solidão e clausura. Ainda que seja forte, a ponto de se assemelhar a
um cavalo, segundo o dizer de sua neta, mantém um bastãozinho de bambu
para se apoiar. Por ser de bambu, quando resvala no solo, o som é temido por
todos à sua volta.
É neste ambiente que Matia, pré-adolescente, neta de Práxedes, dá
asas a suas recordações e nos transporta aos acontecimentos em sua vida
durante o período que permaneceu nesse lugar onde o sol brilhava e o silêncio
imperava.
Ao ser expulsa de um colégio religioso, órfã de mãe, pai lutando na
guerra ao lado dos republicanos, a avó Práxedes foi a responsável por adotá-la
com a difícil tarefa de discipliná-la em seus moldes religiosos e conservadores.
Toda a trama se passa num exercício de lembrar e esquecer os momentos
vividos na ilha. A princípio descreve Borja, primo e filho da tia Emilia, com
traços de mau-caráter, mentiroso e ladrão. Já Emilia era uma autêntica
espanhola enclausurada no seio do lar, à espera do esposo general, do lado
dos militares nacionalistas.
Antonia é a governanta da casa, com muitos anos de servidão para a
matriarca, é mãe de Lauro, rapaz que não conseguiu terminar os estudos no
seminário e volta para a ilha, servindo de capacho para os netos de Práxedes.
Manoel, responsável pelo afloramento da paixão em Matia, filho de Los Taronjí,
família discriminada por todos na ilha, que acreditava no triunfo dos
republicanos.
Há um descortinar na vida de Matia, enquanto está na ilha. Atravessa
momentos de descobertas, sustos, desejos, inquietações, manifestações de
revolta que são interiorizados. Porém, não entende que sua permanência na
56
ilha se deve ao desenrolar da guerra e à mão de ferro com que sua avó
comanda todo o entorno da ilha.
A memorialista lembra as agressões verbais da avó com os
empregados, a cumplicidade do padre com a imprudência da avó em relação
ao filho da Antonia, a indiferença com que trata os Los Taronjí quando vai à
igreja na crença de ser uma dedicada serva de Deus, e se revolta por este
comportamento, mas internaliza suas reflexões.
Num ápice da trama, Borja, seu primo, descobre que não é filho do
esposo da mãe, e sim de uma paixão retraída que a mãe nutre desde a
adolescência por Jorge de Son Major, colono da ilha, e desta feita seria irmão
de Manoel, a paixão de Matia.
Num ato de covardia, com a intenção de prejudicar Manoel e se vingar
de Matia, mente para o padre da igreja que o ajuda a simular para a avó uma
fantasiosa história em que Manoel seria um ladrão. Como consequência da
história contada por Borja, Práxedes, detentora do poder e da autoridade na
ilha, sentencia a ida de Manoel para o reformatório, sem direito a defesa. Matia,
num ato de desespero, se tranca em seu mundo e adormece, tentando
esquecer mais uma arbitrariedade de Práxedes na vida dos colonos.
No intuito de despontar algumas semelhanças entre muitos aspectos
narrados pela memorialista Matia e a vida de Matute, recorremos à pagina
oficial de Matute na internet, clubescritores/matute/home. html, acessado em
1/3/10. Aí encontramos relatos de sua vida traumatizada pela guerra civil.
Revela ter sido uma adolescente cheia de conflitos existenciais. Essa
semelhança entre Matute e Matia, a protagonista, atualiza o passado
promovido pelo discurso da narrativa, que assume um sentido crítico ao
articular a experiência individual e coletiva num mundo ficcional da novela de
pós-guerra.
Em uma das entrevistas para o site clubescritores/matute/home.html, a
autora conta que, na infância, quase morre com uma infecção e passa por
graves crises de saúde, até ser enviada a Mansilla de la Sierra, para viver com
os avós. Por um tempo estudou em um colégio religioso em Madri, aspecto
este interessante porque essa fase de sua vida parece ter sido transferida para
a obra Primera memoria. Conferimos isso quando Matia recorda que, “desde
los nueve a los catorce años, atraída y llevada de un lugar a otro, de una a
57
otras manos, como un objeto, no podría dejar de entender mi desamor y
rebeldía de aquél tiempo” (Matute, 2007, p.16). A memorialista narra seus
dissabores na infância e relata que estudou em um colégio religioso tal como
Matute, tendo sido expulsa por agredir uma subdiretora: “fui entonces
expulsada de Nuestra Señora de los Ángeles por haber dado una patada a la
subdiretora [...]”(p.16).
A autora é filha de pai catalão e mãe castelhana, a segunda dos cinco
irmãos. Lembra que a ausência de carinho materno foi constante em sua vida.
Seu pai estava constantemente em viagens, mas, ao retornar ao lar contava
histórias fantásticas. E em um desses retornos, ela conta que o pai trouxe um
boneco, e ela o nomeou Gorogó.
O significativo é que Matia, a memorialista da obra, é órfã de mãe, e é
possível que a ausência que a autora sentia da mãe, em Primera Memoria, é
reelaborada com a morte da mãe da personagem Matia “mi madre murió cuatro
años atrás y Mauricia – la vieja aya que me cuidaba – estaba impedida por una
enfermedad; mi abuela se hacía cargo definitivamente de mi, estaba visto”
(MATUTE, 2007, p.17). As histórias fascinantes que seu pai contava são
inseridas, naturalmente na vida da memorialista. Por exemplo, no quarto onde
dorme com sua avó, recorda seu mundo imaginário, assim como a autora fazia
quando o pai chegava de viagem.
Habituándome a la penumbra, localicé uno a uno, los descachados de la pared, las grandes manchas del techo, y sobre todo, las sombras enzarzadas de la cama, como serpientes, dragones, o misteriosas figuras que apenas me atrevía mirar (MATUTE, 2007, p. 17).
O boneco Gorogó, presente que Matute ganhou do pai em um dia
qualquer de seu retorno ao lar, é presença marcante e constante em Primera
memoria. O boneco é uma espécie de amuleto que acompanha a memorialista
ao longo de sua trajetória: “Menos mal que lo llevé conmigo, escondido entre el
jersey del pecho, mi pequeño Negro de trapo – Gorogó, Deshollinador” (p 18).
Os amalgamas são gritantes entre a vida de Matia e de Matute, no
decorrer do período da guerra civil espanhola. Desde o nome da personagem
está presente o nome da escritora. Observa-se que MATIA está inserida dentro
do nome de ANA MARIA MATUTE, basta que juntemos as três primeiras letras
58
do último nome MAT às duas últimas do segundo nome IA para que formemos
MATIA. O que faz deduzir que a autora nos convida a seguir suas pistas e
decifrar o que há por trás das entrelinhas dessa trama. Ponhamo-nos de
acordo com Vitor Manoel Aguiar e Silva:
O nome é um elemento importante na caracterização da personagem, tal como acontece na vida civil em relação a cada indivíduo. [...] O nome da personagem funciona frequentemente como um indício, como se a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, ideológico, etc.) da personagem fosse motivada intrinsecamente (SILVA, 1982, p. 673).
Na novela, as intenções de Matute se incorporam às lembranças da
memorialista, e não é por acaso que a novela tem como pano de fundo, o que
sucede ao redor da guerra civil espanhola que perpassa pela sociedade.
Em uma descrição minuciosa e amarga, são traçados os aspectos físicos
e psicológicos das personagens. Em um exercício de analepse, do lembrar e
esquecer próprios da memorialista, conhecemos em especial a Práxedes, avó
matriarca, autoritária, que obriga parte considerável nas recordações da
memorialista, no recordar a casa da avó como um verdadeiro covil. De acordo
com André, em seu artigo Dos matriarcas de familia: el ocaso del poder y el
bienestar financiero (2009), a atenção maior de Matia, desde o primeiro
capítulo, é descrever a avó Práxedes:
Los recuerdos se registran desde la perspectiva de una mirada adulta para mostrarnos a los miembros de la casa en sus características físicas y psicológicas, trazando el perfil detallado de cada uno, pero se detiene en describirnos a su abuela paterna, Práxedes, quien comandaba el micromundo familiar con mano de hierro. Desde que inicia el primer capítulo la figura de la abuela se describe en sus trazos físicos [...] (ANDRÉ, 2009, p. 1898).
A complexidade de seu caráter e as peculiaridades físicas de Práxedes
aguça a curiosidade de qualquer leitor, e nossas impressões, na qualidade de
leitoras, foram determinantes para analisar em particular essa personagem
como objeto de configuração do poder e da autoridade, peculiares do regime
franquista.
59
Cada capítulo do romance é nomeado com palavras que referenciam um
acontecimento vivenciado pelas personagens, quando não um prenúncio de
fatos na vida da memorialista de Primera memoria.
O primeiro capítulo, El declive – a descida –, está alicerçado nas
recordações do espaço físico da ilha, da casa de uma família de classe média
alta em decadência.
O segundo capítulo, La escuela del sol – a escola do sol – referencia as
descobertas, as novas experiências da memorialista: a paixão aflora, a
paisagem ganha cores, o sol é mais brilhante, o desejo de se aventurar sem
medo é mais forte na narradora.
O terceiro capítulo, El gallo blanco – o galo branco –.O galo é
universalmente símbolo solar. É também considerado, nas lendas africanas,
símbolo do segredo, o que vem ao encontro dos assuntos pincelados de forma
sutil, como o homossexualismo, as fugas de Matia e Borja das garras da avó.
O quarto e último capítulo, Las hogueras – as fogueiras –, é o desfecho
do destino das vidas das personagens. Práxedes é a responsável pelas
impressões que a memorialista tem do mundo dos adultos, cruel e
incompreensível. De uma forma minuciosa, entreabrimos cada um dos
capítulos.
3.1.1 El declive
El declive está dividido em seis itens menores. As primeiras recordações
remetem à apresentação das personagens em seus aspectos tanto físicos
como psicológicos, o encontro com Práxedes, a chegada na ilha, e a incrível
descrição da solidão diante da mediocridade em que a família vivia.
A descrição da descoberta de alguns sentimentos se mistura ao
desencanto de um mundo adulto, em meio ao conflito bélico que era silenciado
por sua avó, conservadora, na hipocrisia de fazer todos acreditarem que tudo
estava sobre o controle dos nacionalistas, mesmo que para isso se executem
ações autoritárias. É o declive da classe, dos sentimentos, do poder financeiro,
da autoridade e dos valores morais naquela sociedade. Matia recorda:
Nos aburríamos y nos exasperábamos a partes iguales, en medio de la calma aceitosa, de la hipócrita paz de la isla. Nuestras vacaciones se vieron sorprendidas por una guerra
60
que aparecía fantasmal, lejana y próxima a un tiempo, quizá más temida por invisible (MATUTE, 2007, p. 15).
A memorialista da ênfase nas descrições, detalhando minuciosamente –
permitida redundância – os dissabores com as atitudes no comportamento de
seu primo Borja, que, para ela, era semelhante ao de sua avó. Os dois primos
estavam atravessando a adolescência com momentos de descobertas, mas, ao
contrário de Matia, o primo conseguia manipular com sabedoria os
sentimentos, sabendo usá-los de forma conveniente. “No sé si Borja odiaba a
la abuela, pero sabía fingir muy bien delante de ella. Supongo que desde muy
niño alguien le inculcó el disimulo como una necesidad” (p.15). Os adjetivos
usados por Matia para descrever as pessoas à sua volta são geralmente
negativos, expressando sentimentos de revolta e angústia em conviver com
tamanha falsidade: “fingía inocencia y pureza, gallardía, delante de la abuela,
cuando en verdad – oh, Borja, tal vez ahora empiezo a quererte –, era un
impío, débil y soberbio pedazo de hombre” (p.15). Já para falar da tia Emilia se
socorría de palavras suaves, no diminutivo, como se estivesse sentindo pena
por conviverem juntas num mundo cruel e impiedoso: “Con frecuencia, tía
Emilia bostezaba, pero sus bostezos eran de boca cerrada: solo se advertían
en la fuerte contracción de sus anchas mandíbulas, de blancura lechosa, y las
súbitas lágrimas que invadían sus ojillos de pálpebras rosadas” (p.15).
Percebe-se, nas recordações de Matia, que o medo aparece de
constante nas descrições, como algo que fazia parte de um tempo passado
imediato, que, no entanto, assombraria por longo tempo. Lembra que, ao
tempo em que é expulsa do colégio religioso, sua vida nunca mais seria a
mesma, e pincela de cinismo o que a vida lhe reservava com a frase num
discurso direto da fala de sua avó. “− Te domaremos − me dijo, apenas llegue
a la isla” (p.15). A fala da avó está quase sempre descrita com discurso direto,
e suas impressões estão impregnadas de reflexões da mulher adulta que narra
desde sua infância. “Me parece que tuve miedo. Acaso pensé que estaba
completamente sola y como buscando algo que no sabía” (p.17). Da mesma
maneira, os sentimentos são desfilados de forma confusa e mesclados.
Confusão considerada normal, na fase de travessia da adolescência para o
mundo adulto.
61
Nas primeiras recordações, pressentia que algo iria acontecer naquele
lugar onde fora levada pela avó - a paradisíaca ilha - que marcaria sua vida.
La abuela me llevó al pueblo, a su casa. Qué gran sorpresa cuando desperté con el sol, y me fui, descalza, aún con un tibio sueño prendido en los párpados, hacia la ventana. Cortinas rayadas de azules y blanco, y allá abajo el declive (días de oro, nunca repetidos, el velo del sol prendido entre los troncos negros de los almendros, abajo, precipitadamente hacia el mar.) Gran sorpresa, el declive. No lo sospechaba, detrás de la casa, de los muros del jardín descuidado, con sus oscuros cerezos y su higuera de rasos plateados. Quizás no lo supe entonces, pero la sorpresa del declive fue punzante y unida el presentimiento de un gran bien y de unos dolores unidos (MATUTE, 2007, p. 19).
Os fragmentos são pontilhados ora com mágoas, ora com saudades,
mas embebidas da análise de uma mulher adulta.
A presença da guerra é evidenciada para reforçar que o clima de férias
para a família não havia terminado e que, portanto, permaneceriam na ilha por
tempo indeterminado. “En plenas vacaciones estalló la guerra. Tía Emilia y
Borja no podían regresar a la península [...] Borja y yo, sorprendidos, como
víctimas de alguna extraña emboscada, comprendíamos que debíamos
permanecer en la isla no se sabía por cuánto tiempo” (p.20). A guerra é
apresentada como responsável pelo clima de instabilidade em toda a ilha e no
seio dos lares espanhóis.
Nota-se, nos vestígios pontuados, que há uma admiração pela soberbia
que Borja exerce igual à sua avó, até passar a imitá-la em alguns momentos
com Lauro, filho de Antonia, a criada da casa. Observa-se que a crueldade
também estava impregnada nas atitudes dela para ser aceita por Borja. “– Cura
rebotado – le decíamos. Yo imitaba en todo a Borja” (p 24).
A curiosidade está à flor da pele, as incertezas rondam seu sono, a
dúvida é constante. A inquietação por não entender certas coisas do mundo
adulto, principalmente por não saber as razões pelas quais Lauro temia tanto a
seu primo, “[...] y otra vez, y otra vez me pregunté por qué razón le temía tanto
a un mocoso de quince años” (p.25). Pero a mi, Lauro el chino, no me temía
como a Borja [...] (p.26).
62
As recordações são delicadas e sensuais quando o assunto é Manoel,
adolescente com dezesseis anos, que mora com a família em um pedaço de
terra da ilha, que a faz despertar para um sentimento ainda não conhecido.
Era Manuel el muchacho que salía detrás la barca, no cabía duda; era aquélla su espalda inclinada al suelo [...] era su nuca escuro color moreno, del bronco color de sol sobre el sudor [...] había sol en el dorado de su pelo quemado, seco por su fuego, en franjas como de cobre [...] sus ojos, negros y brillantes, donde resaltaba la córnea casi azul. Unos ojos distintos a los de cualquier otro. Era alto y corpulento para su edad (MATUTE, 2007, p. 39-40).
Matia lembra que conheceu a dor da morte num misto de desprezo e
covardia, em que a impunidade estava presente. Com uma frase metafórica
registra: “La gaviota se calló, y en aquel gran silencio (era de pronto como un
trueno mudo rodando sobre nosotros) me dije: Ese hombre está muerto, lo han
matado”. A incerteza fica no ar. É inevitável que, diante de tantas surpresas o
espanto a absorva de imediato. “Estaba sorprendida. Había oído muchas cosas
y visto, pero aquello era real. Estaba allí un hombre muerto (p.45) [...]. Num
gesto desesperador, tenta esquivar de todas as descobertas, mas ao mesmo
tempo se sente presa e curiosa.
Em meio a tantas confusões de seus sentimentos, ela só tinha certeza
de que “Algo me impedia obrar, pensar por mi misma. Obedecer a Borja,
desobedecer a la abuela: ésa era mi única preocupación, por entonces” (p. 45).
Era aterrorizante pensar em viver somente para obedecer. Mas naquele
momento, fazendo um paralelo macro, na Espanha a obediência valia a própria
sobrevivência. Mas, pulsava a curiosidade: “La tía Emilia hablaba muy poco.
Ella y su marido eran para mi entonces, como un misterio que no podía
comprender” (p.58).
A tristeza também passeava pela vida da memorialista, pois se sentia
vigiada, perseguida, acossada, assim como o povo espanhol estaria sentindo a
vivência da guerra. “Tristísima imagen aquella – la mía –, de ojos asustados,
que era talvez, la imagen misma de la soledad” (p. 66).
Em geral, podemos dizer que, em El declive, são desfolhados os
sentimentos, as descobertas, os temores que permeiam a vida da memorialista
63
e da avó Práxedes, responsável que foi por tantas inquietações e revoltas que
desestabilizaram a neta Matia.
3.1.2 La escuela del sol
La escuela del sol está subdividida em cinco partes, todas de muita
relevância para a integração da obra .É o único capítulo que não se inicia com
a descrição de Práxedes, e sim com as sensações líricas de uma ilha
paradisíaca, numa mistura de prazer e angústia.
O desejo desafiador por aventuras fala mais alto; o medo parece ser
algo mais distante: “Las tempestades no me asustaban” (p 79). Assim, o
capitulo é aberto com uma frase em tom afirmativo, como se estivesse a
espantar todos os seus fantasmas e a desafiar a avó, mesmo correndo o risco
de castigo.
As paisagens são mais acentuadas, e é perceptível a repetição de cores
e tamanhos que formam um mundo único, subjetivo e lírico, a ponto de o leitor
se transportar na imaginação para a ilha, El declive.
En la isla conocí el sol, que hacía temblar las flores en el jardín de Guiem, que atravesaba la niebla para convertirse en un fuego húmedo y lento evaporándose sobre los cálices de las flores. Las flores de la isla eran algo insólito. Nunca vi flores tan grandes ni de tan vivo color [...] Estas flores, en cambio, como nacidas de las piedras, lo dominaban todo: el aire, la luz, la atmósfera. Me parecía tan raro que nacieran allí, de aquel suelo, en todas partes: el sendero, en el declive, junto el puso de nuestra casa, con su dragón cubierto de musgos y hierros forjados, rojos de orín (MATUTE, 2007, p. 80).
Dentre a beleza das flores surgem os vestígios de que, em outros
tempos, a casa fosse um lar de prosperidade e harmonia, que, no entanto,
nesse momento a ferrugem deteriorava o que restava na casa. E, nas
lembranças da memorialista, as impressões da casa e da família é que muitas
coisas mudaram e que não havia mais prosperidade, senão deteorização dos
sentimentos execráveis, e desejo por manter um status que havia muito tempo
terminado.
No meio dessa avalancha de recordações também todos os medos
também parecem fugir, no desejo de experimentar, desafiar tudo que era
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proibido: fumar, beber e ultrapassar as fronteiras que os homens impunham. A
avó ocupa um lugar de destaque com sua perspicácia de custódia:
La abuela me miraba los dedos, por sí aún estaban manchados de tinta. Acercaba su gran nariz a mi boca para oler si había fumado, antes mastiqué furiosamente un caramelo de menta, de los que guardaba (MATUTE, 2007, p. 93).
Neste lugar paradisíaco onde as flores embelezam o ambiente, os
sentimentos negativos também afloram e o repúdio é uma das primeiras
manifestações negativas que a memorialista sente ao lembrar as atitudes da
avó. Mais uma vez Práxedes é responsável por esse sentimento, chegando a
desejar sua morte. “En aquellos momentos la odiaba no podía evita-lo.
Deseaba que se muriese allí mismo de repente y patas arriba, como los
pájaros. Con bastoncillo de bambú me reseguía la espalda y me golpeaba las
rodillas y los hombros” (MATUTE, 2007, p. 105).
Através de algumas passagens, verifica-se o deslizar do tempo dentro
da trama ao chegar a contar dois anos. Inicia-se com as férias, estendidas pela
chegada da guerra, passa pelo mês de agosto: “Recuerdo que hacía mucho
calor, estábamos a últimos del mes de agosto” (p.111).
Nesse espaço, o sentimento de afeto incontido, inocente, pelo sexo
oposto aflora, mas o poder exercido por Práxedes o transforma em sentimento
de medo.
[...] al mirarme aquel muchacho (quien nadie estimaba en el pueblo, hijo de un hombre muerto por sus ideas pecadoras) me sentí ridícula, insignificante [...] no supe qué más decir. Sólo mirarle y quedarme − de pronto me daba cuenta − con una mano incongruentemente extendida hacia él, notando lo insólito de mi presencia: la nieta de la vieja Práxedes [...] (MATUTE, 2007, p. 116)
Só o fato de ela ser parente de Práxedes causa medo e repulsa nas
pessoas. E o revoltante é saber que não querem amizade com a neta da
temida matriarca. “No quiere ser amigo mío – me dije: tiene miedo de la abuela.
“Creo que no lo consentiría” (p. 119).
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3.1.3 El gallo blanco
Nesta parte, a referência a acontecimentos da história política recente e
atual marcam, nas entrelinhas dos atos, fatos e falas, por exemplo, uma ação
grotesca de um livro encontrado por Borja na casa do avô, relatava a vida dos
judeus, reproduzida com naturalidade pelos meninos, como um acontecimento
divertido.
Era de ver cómo prendían en el fuego sus carnes, cómo las llamas lamían sus entrañas: cómo se rasgaba su vientre en dos, de arriba abajo, con un brillo demoníaco, y…, decía el libro que Borja encontró en la habitación del abuelo. Explicaba como ardían vivos los judíos. Aquélla era a misma plaza donde ocurrieron, siglos atrás, aquellas escenas (MATUTE, 2007, p. 140).
As cenas eram reproduzidas pelos meninos com fogueiras na ilha,
queimavam bonecos de palha para simbolizar os judeus, gritavam e
cantarolavam em volta das labaredas altas e brilhantes.
As lembranças destes fatos em meio a outras similares da guerra civil
são a explicações claras pelo qual a família se refugiava na ilha, causa da
constante vigilância da avó no comportamento de todos na ilha.
Ao lembrar que as flores começam a morrer, e o sol é cinza, a autora
reproduz esteticamente que a guerra faz suas vítimas, e a beleza da vida
acaba com a violência da guerra, “se murieran casi todas las flores” (p.156).
Práxedes sinaliza o horror que a guerra traz, mas na ilha reina o silêncio.
A la hora del desayuno los periódicos de la abuela crujían entre sus garras glotonas, y el bastoncillo resbalaba el suelo una y otra vez, como una protesta. Su anillo gris despedía reflejos de cólera. _ Horrores y horrores, hombres enterrados vivos... [...] Ciudades bombardeadas, batallas perdidas, batallas ganadas. Y allí, en la isla en el pueblo, la espesa y silenciosa venganza (MATUTE, 2007, p. 156).
Os temas censurados na época são pincelados nos jornais, embora as
mudanças na vida econômica, política e social sejam perceptíveis na vida de
cada personagem, assim como são perceptíveis as mudanças do clima na ilha.
A vida das personagens se desencadeia na ficção influenciada pelas decisões
tomadas por Práxedes, tal como a sociedade espanhola obedece às ordens da
alta hierarquia política.
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3.1.4 Las hogueras
Neste último capítulo, dividido em três partes, desde as primeiras linhas
Práxedes é comparada com animais ferozes. As descrições se remetem a ela
de maneira excêntrica e grosseira. Matia lembra pormenores de suas atitudes
autoritárias, com expressões ridículas de mando que causavam repulsão e
ressentimento. Recorda quando descobriu que os netos foram à casa de Jorge
de Son Major e, irritada, transforma-se em um verdadeiro monstro.
_ ¿Por qué fuiste a Son Major? Su voz sonó quieta y uniforme, como de costumbre, pero me parece que estaba colérica. [...] Los ojos de la abuela, como dos peces tentaculares, nos observaban crudamente (MATUTE, 2007, p.179).
Revemos na memória a fúria da avó, quando ela, Matia, não se
enquadrava nas molduras de uma espanhola tradicional e, enfurecida, grita:
“¡Yo, a la edad de Matia, ya tenia cuatro o cinco pretendientes! (p.184). A avó
observava o crescimento físico de Matia, o rosto, o cabelo, o corpo, não
esquecida que os atrativos físicos eram certeza de um bom matrimônio. Neste
capítulo também patenteia a impiedade de Práxedes com quem desobedeça a
ela.
Finalmente o frio chega, o natal se aproxima, os dias findam com
rapidez. Era o primeiro natal da família de Práxedes em meio à guerra. Após as
festas de final de ano, muitas coisas obrigavam promessa de mudanças, a vida
naquela ilha tomaria outro rumo. À noite da ceia, todas as pessoas importantes
da cidade se faziam presentes na casa de Práxedes em El declive, incluindo o
pároco do lugar.
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3.2 Práxedes: a representação do poder e autoridade
Desde os primeiros traços da narrativa, as recordações de Matia
referentes à Práxedes são apresentadas com adjetivos pejorativos
surpreendentes. As descrições, os vestígios das lembranças são marcados por
amargura e ressentimento pelas comparações grotescas que faz da avó.
Mi abuela tenía el pelo blanco, en una ola encrespada sobre la frente, que le daba cierto aire colérico. Llevaba casi siempre un bastoncillo de bambú con puño de oro, que no le hacía ninguna falta, porque era firme como un caballo (MATUTE, 2007, p13).
Seguindo os passos memorativos de Matia, visualizamos que Práxedes
é alguém assustada e vigilante, mora numa ilha isolada do mundo. A casa,
grande e velha ocupa lugar privilegiado no alto de um declive. Após as
refeições se posiciona na janela com seus arcaicos binóculos como se
estivesse assustada e a qualquer momento pudesse ser atacada. Observa tudo
e a todos, como se estivesse aquartelada, e esta seria sua função, de guardiã,
vigiando a aproximação de algo ou alguém. Sempre pronta para a defesa, em
caso de invasão. Nesse sentido conseguimos vê-la como animal escondido em
sua madrigueira.
Después de las comidas arrastraba su mecedora hasta la ventana de su gabinete; y desde allí, con sus viejos prismáticos de teatro incrustados de zafiros falsos, escrudiñaba las casas blancas del declive, donde habitaban los colonos. O acechaba el mar, por donde no pasaba ningún barco, por donde no aparecía ningún rastro de aquel horror que oíamos de labios de Antonia, el ama de llaves. (MATUTE, 2007, p.14)
Possivelmente a avó esperava notícias da guerra, ou a invasão da ilha,
quando não o início e/ou fim dela própria, pois, estava ali refugiada da violência
da guerrilha da cidade. No entanto:
Empapados de calor, aburrimiento y soledad, ansiosos de unas noticias que no acababan de ser decisivas, la guerra empezó apenas hacía mes y medio, en el silencio del aquel rincón de la isla, en el perdido punto en el mundo que era la casa de la abuela [...]. (MATUTE, 2007, p.14).
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Nessa atitude vigilante, autoritária e arbitrária, Práxedes ostenta os
resíduos do que foram símbolos de riqueza e de poder: o bastão, as safiras, os
brilhantes, entre outros.
Em busca de encontrar o significado de algumas dessas peças,
verdadeiros símbolos recorremos a Jean Chevalier (1982), pois para ele “a
expressão simbólica traduz o esforço do homem para decifrar e subjugar um
destino que lhe escapa através das obscuridades que o rodeiam”
(CHEVALIER, 1982, p.3). Os símbolos, em seu entender, seriam uma espécie
de fio de Ariadne que guia e incita o leitor a descobrir novos caminhos.
Em um mesmo discurso sobre simbologia, Cirlot (2005) afirma: “‘[...] o
símbolo é ao mesmo tempo um veículo universal e particular. Universal, pois
transcende a história; particular, por corresponder a uma época precisa”
(CIRLOT, 2005, p.12). A avó e seus aditamentos simbólicos transcendem o
simples significado porque remetem à história recente da Espanha, a guerra e
suas consequências.
Lembremos que Práxedes mora em um lugar isolado, silencioso, uma
ilha. Como já acentuamos, nas lembranças da memorialista correspondia um
lugar belo e assustador. De acordo com Cirlot, “a ilha é um símbolo de refúgio
contra o assalto ameaçador do inconsciente, um ponto de força, isolamento, de
solidão e de morte” (CIRLOT, 2005, p 307). Fiquemos com Chevalier:
Ilhas paradisíacas são também aquelas que os mitos chineses situam no mar oriental e que tantos imperadores, ludibriados por charlatões, procuraram em vão alcançar com seus navios. Ora, sabe-se muito bem que elas só podem ser alcançadas pelos que sabem voar, pelos imortais [...] é o reino do espírito, o sitio da Grande Paz [...] (CHEVALIER, 1982, p. 501).
Nas recordações descritivas de Matia em relação a ilha, El declive, em
uma perspectiva simbólica, acreditamos estar bem próximos de uma sociedade
em conflito, onde os dirigentes, charlatões, procuram o poder, podemos nos
remeter à Espanha, recuada, refugiada, isolada do resto do mundo. Práxedes
faz da ilha verdadeira fortaleza para quem está dentro e para quem está de
fora, vigilante a todo instante.
Se veía, sí, que en la isla estábamos como perdidos, rodeados del pavor azul del mar y, sobre todo, de silencio. Y no pasaban
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barcos por nuestras costas, nada se oía ni se veía: nada más que el respirar del mar (MATUTE, 2007, p. 101).
Além de evidenciar o silêncio assustador, é perceptível que à ilha
ninguém chegava e nem saia sem as ordens de Práxedes. Atentemo-nos para
os detalhes mencionados no entorno de Práxedes. Pelo que Matia descreve:
ela estava arruinada, em completa decadência. Não se tratava de decadência
exclusivamente financeira, mas também emocional e psicológica. Matia lembra,
por vezes diversas que a avó dizia estar arruinada, o que lhe causava um mal-
estar, a ponto de ingerir inúmeros comprimidos a cada momento, na tentativa
de restabelecer as forças. No entanto, no entender de Matia, não adiantava,
seus olhos permaneciam com olheiras, a evidenciarem cansaço e fadiga.
A menudo le oíamos decir que estaba arruinada, y a decirlo, metiéndose en la boca alguno de los infinitos comprimidos que se alineaban en frasquitos marrones sobre su cómoda, se marcaban más profundamente las sombras bajo sus ojos, y las pupilas se le cubrían de un gelatinoso cansancio ( MATUTE, 2007,p.14).
Práxedes necessitava demonstrar energia física, bem-estar financeiro,
como força de temperamento para a imposição de suas ordens e caprichos, e
para o comando de suas decisões, pois sobre ela girava a vida em El declive,
principalmente no núcleo familiar. Não se preocupava em nada com as
consequências de suas ordens na vida dos que lhe obedeciam. Segundo André
(2009). Práxedes permanece na ilha como substitutiva do papel autoritário,
herdado do esposo militar.
La principal razón por la cual Práxedes está refugiada en la isla, distanciada de donde ocurren los embates, es por el temor a perder la autoridad que heredó del marido militar y ser blanco de la violencia de la guerra, por sus ideas sobre la guerra y los republicanos (ANDRÉ, 2009, p.1899).
Nas lembranças de Matia, o velho e o sujo estão atrelados à luxúria que
a avó ostentava, antes de sua decadência. Desde os acessórios que usa e
veste até os objetos da casa e a mobília, tudo é constantemente nomeado
como velho: “En el índice y anular de la derecha le bailaban dos enormes
brillantes sucios.[...] Y desde allí, con sus viejos prismáticos de teatro
incrustados de zafiros falsos […] (p. 13). La radio, vieja y llena de ruidos (p 20).
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Ésta es una isla vieja y malvada. (22). Ao reportar ao velho, por não raras
vezes, entendemos que há tempos tudo permanece estático, sem uso,
abandonado. Nada é restaurado e está deteriorado pelo tempo. É notório que
Matute não falaria em velho em um sentido, tão somente. Entendemos, ao
fazer a leitura na perspectiva histórica, que o velho e sujo nos remete ao
Estado espanhol que estava falido, bem como à destruição evidente no campo
e na cidade, por força do confronto entre os patriotas na guerra civil.
Algo, além da decadência da casa e dos móveis, chama a atenção: o
interesse que a memorialista tem em nos mostrar determinados acessórios
usados pela avó. São acessórios que referenciam a opulência da classe
abastada, presente na Espanha de outrora. São símbolos de continuidade e da
persistência. Seja exemplo o anel de brilhante que, segundo Cirlot, “como
todas as figuras redondas e fechadas é um símbolo da continuidade, da
totalidade, servindo até mesmo como aliança para conquistas futuras”
(CIRLOT, 2005 p. 78). Diríamos que por ser redondo, fica circunscrito a seu
mundo, tendente a não partilhá-lo. Por ser fechado impede a entrada do novo
preso sempre ao ranço da sua vontade.
Chevalier traz argumentação semelhante. Cirlot, se a compararmos à
lenda de Salomão, dado que este supunha que a sua sabedoria fosse devida a
um anel: “Esse anel seria o símbolo do saber e do poder” (CHEVALIER, 1982,
p. 55).
Não se trata de simples anel. É um anel com brilhante, que normalmente
é uma jóia de sobrado valor econômico e emocional, reluzente sempre,
radiante. Mas esse que a avó ostentava, estava sujo, o que nos leva a acreditar
que Práxedes representaria o símbolo de poder decadente, do poder que está
fugindo das mãos, ao qual ela se agarra cegamente, mesmo sabendo que, com
uso da força e da autoridade nada se consegue. O brilho estava se apagando
com a sujeira. Deparamos no decorrer do texto passagens em que a palavra
brilho e seus derivados se fazem notar com frequência. No entanto, não é um
brilho radiante. Ele se apresenta com opacidade, escuro, turvo e nebuloso,
possivelmente aludindo à caducidade do poder e da autoridade.
[...] se veía un pedazo de cielo gris y muy brillante […] Encogió las piernas como un gazapo, las rodillas levantadas, brillando a la luz pálida [...] el mar brillaba verde pálido, tan quieto como
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una lámina de metal [...] A lo largo de los tobillos de Borja brillaban los granos de arena, como trocitos de estaño. […] Había algo que flotaba en el calor, en los mosquitos brillantes, […] La frente de Mónsen Mayol aparecía rodeada de gotitas brillantes, como una corona. […] Luego, en el patio, nos reunimos alrededor de una mesa donde brillaba el cristal de las copas (MATUTE, 2007, p. 26-74).
Notamos que a cor cinza e o estanho estão próximos a ofuscar esse
brilho. Acreditamos seja a ascensão do poder de governar, que estava em
constante ameaça, possível de se manter que não através do exercício da
violência e da força bruta, tal como aconteceu durante o regime franquista. O
brilho ofuscado pelo passar do tempo se reflete nas safiras dos binóculos de
teatro que a matriarca usara para vigiar a ilha: “sentada en la mecedora en el
salón de cuero negro con clavos dorados, la abuela enfilaba sus gemelos de
raso amarillento con falsos zafiros y jugaba a mirar” (MATUTE, 2007, p. 31).
Vejamos que a permanente vigilância não é feita por um simples
binóculo. O de Práxedes era velho e incrustado de safiras falsas, pedras
preciosas sem valor algum, fraudulentas. A safira autêntica, de outra parte, é
uma pedra de alçado valor financeiro, joia de ostentação de poder econômico.
Seu brilho ofusca o brilho do diamante. Práxedes não tem pedras autênticas
em seus binóculos, antes pedras falsas, como falsos são os enganos, as
relações socio-políticas dos dirigentes que querem ascender ao poder com
meios hipócritas. Recorrem todos os mecanismos desleais para confundir à
população. Práxedes quer ainda aparentar prosperidade financeira, mas, a
decadência moral também se oculta na falsidade das safiras.
Agora vejamos as definições do azul nas palavras de Chevalier (1982).
No afirmar que a safira é uma pedra celeste por excelência, carrega ela todo o
simbolismo do azul. A cor do mar, do céu infinito, da intimidade. Compararmos
esse significado da cor azul com fragmentos do texto, que não só aparecem no
tom da safira. São igualmente recorrentes em outras lembranças de Matia,
como nas “Cortinas rajadas de azul e branco [...] Borja vestía unos pantalones
de dril azul [...] Mosén Mayol jugueteaba distraídamente con una opa de cristal
azulado con iníciales opacas […] tenía los ojillos azules, con la cornea rosada
[…] ( MATUTE, 2007,p.19-58), pensamos que podemos correlacionar essa
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tonalidade com a historia recente da Espanha. Ainda em relação á cor azul,
Chevalier (1982) evidencia que é a mais fria e mais profunda das cores:
O azul desmaterializa tudo aquilo que dele se impregna. É o caminho do infinito, onde o real se transforma no imaginário. [...] é o caminho da divagação e quando escurece, de acordo com sua tendência natural, torna-se o caminho dos sonhos (CHEVALIER, 1982, p. 107).
É de causar inquietação as repetidas vezes com que alude á cor azul na
memória de Matia, pois, para Chevalier, é o caminho para o infinito. Podemos
atribuir que infinitos são os sonhos de grandeza e de poder autoritário que
almejam os nacionalistas. Poderia constituir uma crítica irônica, velada, ao azul
esverdeado dos olhos de quem dirige o sistema nazista na Europa desse
momento, um alerta para a imposição de um sistema similar, enfim, pode aludir
ao infinito mundo da guerra que destrói tudo quanto encontra a seu passo.
Caminhando nos vestígios memorialísticos de Matia, voltamos para
Chevalier, o qual pontua que, para o cristianismo, a safira simboliza ao mesmo
tempo a pureza e a força luminosa do reino de Deus, o que poderia remeter à
ambivalência da personalidade de Práxedes, usando os princípios cristãos por
conveniência exclusiva, se esquecendo que a humanidade precisa de refugio e
segurança.
Dentre os outros objetos usados por Práxedes, o bastão de bambu com
cabo de ouro é o que mais nos instiga, aguçando a curiosidade por estar
presente na memória de Matia e a menção dele em vários momentos. De
acordo com as recordações da neta, ela era forte como um cavalo, e não
necessitava usar um bastão para se apoiar “Llevaba siempre su bastoncillo de
bambú con puño de oro, que no le hacía ninguna falta, porque era firme como
un caballo” (MATUTE, 2007, p.13). No entanto, usava-o com astúcia e audácia
para impor respeito e medo, para indicar a obediência que se devia cumprir.
O bastão é de bambu. Bambu, um tipo de planta que tem como
característica ser resistente y pesada, não quebra com facilidade, acobertando
um brilho peculiar. Segundo o dicionário de símbolos, o bambu desempenha
variáveis funções nas crenças de diversas culturas, mas o importante é que
vem ao encontro de nossa expectativa de análise por conta de seu significado:
“[...] o bambu é utilizado para afugentar as más influências; [...] em função de
seus estalidos secos que sua madeira produz [...]” (Chevalier, 1982, p.118). O
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bastão que a avó usava era tanto resistente que ela o jogava na parede, batia
no solo e o objeto não quebrava. O som, contudo, era ouvido de longe pelos
moradores da casa. Na personagem, bastão e caráter estão entrelaçados pelo
barulho que produzem e o medo que ocasionam.
Pesquisando sobre bastão, deparamos com a revista Morashá, que, em
2002, publicou um artigo baseado no conto “Le bâton de moise”, lengendes et
contes de Juift Grund, em que faz referência da trajetória bíblica do cajado de
Moisés. No artigo é descrito que o cajado provinha da árvore do conhecimento;
era feito de safira e, no entendimento cristão, traduz objeto usado por Moisés e
por Davi, instrumento que é usado na imposição da autoridade (p. 2).
Segundo Chevalier (1982), o bastão aparece na simbólica sob diversos
aspectos e em culturas variadas, e é compreensível se entendermos que o
inconsciente criador do homem e de seu meio tem uma função profundamente
favorável à vida pessoal e social. Para ele, na antiga China, o bastão
“principalmente de madeira [...] desempenhava um papel de grande
importância: servia por ocasião da chegada do ano, para expulsão das
influencias nefastas” (CHEVALIER, 1982, p. 124). E, de acordo com o outro
estudioso das culturas e seus símbolos, Cirlot (2005, p.117), o bastão, na
mitologia grega, foi usado por Édipo para matar a Laio, seu pai, identificando o
bastão como uma arma real e mortal. Diante das inúmeras definições,
acreditamos que Práxedes o utilizava de diversas formas, principalmente para
impor autoridade, atribuir obrigações, exigir respeito, aplicar castigos e obrigar
a obediência. Enfim, com o intuito de mostrar poder para entender que ela
produz o comando da família e da ilha.
Práxedes faz da ilha um micromundo onde sua autoridade é soberana a
todos. Matia recorda também a firmeza e frieza com que a avó se dirigia aos
outros e ao castigo que impunha pela desobediência às suas ordens, bem
como o medo que infundia com seus agudos questionamentos:
La abuela nos miró a los tres con dureza: primero a Lauro el Chino, luego a Borja y por último a mí. ¿_Dónde estuvieron ustedes hasta tan tarde? ¿_Cómo no dijeron que salían de casa? Antes que el Chino pudiera contestar, ella solía reprenderle de una manera fría, sin mirarle a la cara, como si se dirigiera a otra persona […] El Chino escuchaba y asentía con la cabeza
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débilmente. Junto a la puerta, Antonia permanecía quieta inexpresiva, con los ojos fijos y los labios apretados. […] Imaginaba su corazón golpeando fuerte bajo el vestido negro, cada vez que la abuela reprendía a su hijo, pero estaba tan quieta e impávida que parecía no oír nada, ni ver la cabeza inclinada de Lauro. Mi abuela, sentada en su sillón, hablando con dureza, masticaba una de sus innumerables grageas medicinales (MATUTE, 2007, p 56-57).
É interessante observar, na narrativa de memória, que Matia se lembra
que o amigo mais próximo de Práxedes era o pároco da ilha; amigo que
exercia muita influencia sobre ela, tal qual a aliança que a Igreja manteve com
Franco em sua função ultraconservadora e a determinação conjunta de
especificar funções para o sexo feminino: “A su lado, majestuoso como
siempre, se sentaba Mosén Mayol el párroco de la colegiata” (MATUTE, 2007,
p. 57).
Para compreendermos um pouco melhor a dimensão da autoridade, que
tanto é imposta por Práxedes, na intenção de manter-se como matriarca da
família, substitutiva do patriarca militar, recorremos novamente a Hannah
Arendt (2009) e a suas reflexões sobre o assunto: “[...] o poder, ao que tudo
indica, é um instrumento de domínio, assim nos é dito, deve a sua existência a
um instinto de dominação”. E se sustenta em Sartre, Voltaire e Max Weber
para registrar que
[...] um homem sente- se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento de sua vontade. O que lhe dá um prazer incomparável. O poder, disse Voltaire, consiste em fazer com que os outros ajam conforme eu escolho, ele está presente onde quer que eu tenha oportunidade de afirmar minha própria vontade contra a resistência dos outros (ARENDT, 2009, p. 52)
Ainda, à luz de Arendt (2009, p. 53), atentando com as atitudes
imperativas, se entende que sem o comandar e o obedecer não há poder.
Para ela, a essência do poder é o comandar.
De volta à ilha de Práxedes, observamos, nas recordações de Matia,
que entre a figura da avó e o regime franquista, algo há de muito comum: seus
desejos são impostos a todos como ordem. Para Matia, as pessoas temiam a
avó por suas possíveis reações impiedosas, por isso, a obedeciam a qualquer
custo.
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A fotografia do avô militar, esposo de Práxedes, por sua fisionomia e
expressão que apresenta, imaginamos que era detentor de grande autoridade,
pois sua presença, ainda que no papel, é marcante, como se estivesse
presente fisicamente na sala, comandando e aprovando as atitudes de
Práxedes; mantendo a ordem e a proteção na ilha.
Encima de mi abuela y de Mosén Mayol,en su gran cuadro, estaba el abuelo, con su uniforme de algo importante – nunca lo supe de fijo, aunque supongo me fue repetido muchas veces […] Ellos: el abuelo y tío Álvaro, estaban en la sala casi físicamente […] (MATUTE, 2007, p. 57).
Ao lembrarmos a história dos fatos que acontecem na Espanha, a nível
político e social, e que repercutem na vida da ilha, por força da semelhança,
vem à memória a imposição dos novos valores que Franco, por mandato,
competiriam à mulher. Entre outros, a função de ser o esteio da reestruturação
da Espanha no pós-guerra. A ela cabia manter o casamento, ser boa mãe, ser
zelosa e nunca reclamar, como registramos em paginas atrás. Para tanto, no
regime franquista a Sección Femenina cuidava dos moldes que a mulher devia
seguir, incluindo suas vestimentas. Na casa de Práxedes essas regras
deveriam ser seguidas fielmente, até mesmo pela matriarca, a começar de
suas vestimentas. Estas, conforme as lembranças de Matia abarcam modelos
ultrapassados, geralmente escuros e com franjas até o queixo, que formavam
um aspecto grotesco da figura humana. Nas palavras hiperbólicas da
memorialista:
El escote de su vestido enmarcaba pliegues y frunces en torno a su garganta, ceñida por una cinta de terciopelo. Desbordando la cinta, en su cuello se formaban también pliegues y frunces hacia la barbilla. Parecía hecha con un apretado nudo alrededor del cuello: de un lado la cabeza, de otra el cuerpo, como dos bolsas; de una materia la cabeza, de otra el tronco (MATUTE, 2007, p. 57).
As recordações de Matia, a respeito de sua avó, não são nada
agradáveis quando se trata de lembrar a família, por variados motivos.
Práxedes desejava que Matia obedecesse a suas ordens, na intenção de torná-
la uma mulher para se casar; ela acreditava que a neta necessitava de um bom
casamento e ficava enfurecida quando a neta aparecia cheirando a cigarros e
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bebidas oferecidas pelos meninos. “Una de las cosas más humillantes de aquel
tiempo, recuerdo, era la preocupación constante de mi abuela por mi posible
belleza. Por una supuesta belleza que debía adquirir, fuese como fuese”
(MATUTE, 2007, p.104), preparando-a como a un animal para ser vendido pelo
melhor preço.
Na época, o casamento era forma de adquirir status e poder
dependendo das posses e do nível social do homem, importando pouco se a
mulher fosse alfabetizada ou não. Fundamental era a beleza física e sua
religiosidade. Práxedes tinha como objetivo arranjar um bom casamento para a
neta com a intenção de perpetuar o conservadorismo espanhol. Lembremos
que o interesse pelo matrimônio, como uma das medidas autoritárias para que
nascessem filhos homens, foi determinada pelo autoritarismo franquista com a
vênia da Igreja Católica. Matia lembra com ódio e em tom irônico o discurso
cotidiano da avó:
La abuela se preocupaba mucho por mis dientes, demasiado separados y grandes, y por mis ojos. __ ¡Dios mío, a esta criatura se le desvía el ojo derecho! Le preocupaba mi pelo, lacio hasta la desesperación, y le preocupaban mis piernas: __ Estás tan delgada… En fin, supongo que es cosa de la edad. Hay que esperar que te vayas transformando, poco a poco .De aquí a un par de años tal vez no te conozcamos. Pero que temo que te pareces demasiado a tu padre. […] me obligaba a andar y a sentarme, me miraba las manos y los ojos. […] Criticaba el color tostado de mi piel y las pecas que me nacían, por culpa del sol, alrededor de la nariz. __Dios mío, qué desastre: boca grande, ojos separados… __ Levanta los hombros, la cabeza… En aquellos momentos la odiaba, no podía evitar-lo. Deseaba que se muriese allí mismo […] Con el bastoncillo de bambú me reseguía la espalda y me golpeaba las rodillas y los hombros. (MATUTE, 2007, p. 105)
Lembremos novamente a postura de Franco e à Igreja no intento de
moldar a mulher para a reconstrução da nova Espanha e a fundação da
Sección Femenina, instituição criada para materializar a ideologia
conservadora, com a função de regulamentar o serviço social e a educação
das mulheres. Cotejando fatos e situações, encontramos em Práxedes a fiel e
maior reprodutora dessas doutrinas, quando inculca na jovem Matia a
necessidade de se preparar para um possível casamento. O que em outro
77
momento, já havia feito com sua filha Emilia. “Tía Emilia, decía ella, no fue
hermosa, pero si rica y se casó con el tío Álvaro, hombre al parecer, importante
y adinerado” (MATUTE, 2007, p. 104). Matia se lembra da tia como uma
mulher inútil, silenciosa, despersonalizada, enroscada em uma monotonia e
nunca contrariando a avó:
Con frecuencia tía Emilia bostezaba, pero sus bostezos eran de boca cerrada: sólo se advertían en la fuerte contracción de anchas mandíbulas, de blancura lechosa, y en las súbitas lágrimas, que invadían sus ojillos de párpados rosados. Las aletas de su nariz se dilataban, y casi se podía oír el crujido de sus dientes, fuertemente apretados para que no se abriera la boca de par en par, como las mujeres del declive. Decía, de cuando en cuando: Sí mamá. No mamá. Como tú quieras mamá. (MATUTE, 2007, p. 15)
A memorialista recorda que o silêncio era soberano na ilha; sua avó
nunca era contestada, os colonos da ilha e os membros da casa grande só
obedeciam. A desobediência aos mandos de Práxedes era encarada como
uma forma de se revelar y afrontar a autoridade maior, e portanto, quem
contrariasse suas ordens deveria ser severamente punido. Ninguém era
poupado da imposição autoritária de Práxedes.
Na ilha, todos eram manipulados conforme ordens e desejos da avó. As
pessoas eram instrumentos, objetos, que, depois de usados eram descartadas.
Desde Antonia, sua serviçal de muitos anos, que aceitava no mais
absoluto silêncio o destino traçado a ela e a seu filho Lauro, que foi
violentamente castigado por desobedecer aos mandos da avó.
Antonia tenía la misma edad que la abuela, a quién servía desde niña. La abuela le casó cuándo y con quién le pareció bien. Al quedarse viuda, siendo Lauro muy pequeño, la abuela la volvió a tomar en la casa, y al niño lo enviaron primero al Monasterio, donde cantaba en el Coro y vestía sayal, y luego al Seminario. (MATUTE, 2007, p. 22)
Ferozmente contrariada pelo fato de Lauro ter saído do seminário sem a
batina de padre, Práxedes o designa para ser a escolta acompanhante dos
netos, enquanto estavam refugiados na ilha. Lauro, constantemente, era alvo
da ira violenta de Práxedes, de Borja e também de Matia, que reproduziam
78
todos os atos praticados pela avó. Matia lembra com consciência de culpa suas
atitudes de adolescente mimada com Lauro:
El chino se callaba de pronto y se pasaba el pañuelo por la frente. Parecía que el hablarnos de los mercaderes lo hiciera con la única furia permitida a su cintura doblada de sirviente. Borja se impacientaba: Sigue, Chino. […] - Estoy cansado, señorito Borja…la humedad me acentúa la afonía… yo… -¡No te calles! Y Borja le apoyaba la mano en el pecho, como para empujarle […]. No éramos buenos con él […] __ Cura rebotado, le decíamos. Yo imitaba en todo a Borja. (MATUTE, 2007, p. 23)
A violência e a humilhação usada pelos meninos era imitação fiel do que
Práxedes estava acostumada a exercer, sem necessariamente ser fisicamente
com todos. Nesse intuito, buscamos, outra vez, na filósofa Arendt (2009) para
uma explicação para entendermos essa reprodução de violência.
A violência aparece como o último recurso para conservar intacta a estrutura do poder contra contestadores individuais. [...] é como se a violência fosse o prérequisito do poder, e o poder nada mais que uma fachada, a luva de pelica que esconde a mão de ferro ou mostrará ser um tigre de papel (ARENDT, 2009.p. 64).
Para Arendt (2009 p. 81), a violência pode ser justificável, mas nunca
será legítima; acredita que ela possa advir da raiva, que pode ser irracional, e
isso valeria para qualquer outro sentimento humano. “Não há dúvida de que é
possível criar condições sob as quais os homens são desumanizados”.
Em relação às pontuações sobre a raiva e a violência afirmadas pela
filósofa, encontramos nas recordações de Matia a constante desumanização da
avó, a ponto de uma configuração zoomórfica, pela grosseria com suas
atitudes violentas e ferozes:
[...] era firme como un caballo […] pesada como una rinoceronte en el agua, jadeando, con su cólera blanca encima de la frente […] La abuela sonreía, enseñando los dientes caninos, cosa poco frecuente […] me parece que estaba colérica. Los ojos de la abuela, como dos peces de tentáculos, nos observaban crudamente […] la miraba el Chino, con ojos que parecían dos cangrejos retrocediendo hacia alguna extraña playa. […] Sentí sus ojos en los míos, físicamente, como dos hormigas recorriendo mis niñas, mi córnea dolorida. (MATUTE, 2007, p. 13-183)
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A memorialista, inconformada com as atitudes da avó, a zoormofiza para
demonstrar quão grande e irracional são as atitudes tomadas por ela quando
alguém a desobedece. Além de desumanizá-la, a neta a descreve, com uma
gradação semântica, como uma velha grotesca e indesejável, hipócrita,
dissimulada e arrogante em suas ações. No concernente a isso Arend, (2009,
p. 85) afirma “que os homens vivem em um mundo de aparências, e ao lidar
com ele, dependem de manifestações, a usar a dissimulação da hipocrisia”. De
acordo com ela não poderíamos chamar esses comportamentos de racionais.
A hipocrisia e a dissimulação estão cotidianamente presentes nas
atitudes autoritárias de Práxedes como nas do neto Borja, como se o poder de
enganar, persuadir, mentir, falsear fosse questão de herança. E, se
atentarmos, são as mesmas situações que acontecem na Ilha: o esposo militar
comandava a ilha e após seu falecimento, passou-a para as mãos de
Práxedes. De conseqüência será repassada a Borja, que já demonstrava em
suas atitudes a continuidade da autoridade e da tradição.
Confirmamos a evidência da falsidade da dissimulação acorrentada à
impiedade violenta de Práxedes em duas situações recordadas por Matia. A
primeira é quando Práxedes ordena cruelmente que o pároco encaminhe Lauro
para a frente de batalha na guerra, ciente do problema da cegueira que tem o
filho da empregada, e que de imediato morreria no confronto.
La abuela nos reclamaba, a Borja y a mí, para decirnos: __Lauro incorporará al frente, el mismo día en que vosotros vayáis al colegio. __Pero ¿no decíais que no era apto? So sorprendió mi primo, tiene mal los ojos… por eso no lo echaron del Seminario. __Ahora eso no importa, dijo la abuela […] Y así fue, pues, un mes más tarde, lo mataron (MATUTE, 2007, p. 199- 205).
A segunda ocorre quando Borja não admitia que Matia pudesse ser
amiga confidente de Manoel, seu provável irmão e inimigo: simula um roubo e
coloca a culpa no rapaz. Para ausentar-se de uma culpa total, Borja, assentado
em pura hipocrisia, busca apoio no pároco para enganar a avó, que
sentenciaria a vida do pobre Manuel. Este clama pelo perdão da avó:
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__Abuelita vengo a pedirte perdón. Me he confesado ya, pero quiero que tú también me perdones. No podría confesarte a ti… Yo… abuela… Y empezó a llorar. __Vamos dijo la abuela. […] Borja descubrió su cara. Una cara que yo no vi, pero sabia sin lágrimas. Y dijo de un tirón: __He abusado de ti, te he engañado… Te estuve robando. Te he robado dinero, mucho dinero, y… […] Y quisiera recuperarlo y devolvértelo. Pero no puedo, ya no lo tengo. […] Perdóname, abuela, he sufrido tanto. ¡Dios mío, lo he pagado tan caro! Me tenía en sus manos, me amenazaba con venir a decírtelo si no le entregaba más y más… No pude aguantar más. Di media vuelta y escapé. […] Una gran cobardía me clavaba al suelo. […] Le mandaban a buscarlo (MATUTE, 2007, p. 207-208).
A grande farsa de Borja funcionou: enganara o pároco e a avó, para
satisfazer seus caprichos, não se incomodando com as conseqüências que a
atitude causaria na vida de Manuel e da sua família.
Socorrendo-nos dos teóricos mencionados ao longo da pesquisa, tais
como Foucault, Benjamim e Arandt, entre outros, é valido salientar que Matute
em Primera memoria vai além das palavras descritas. Seu texto está recheado
de ações que poderiam representar o autoritarismo do governo franquista. De
início, a memorialista desfila a personagem Práxedes, não por Matute, mas por
uma criação sua, a narradora memorialista Matia, que, de forma grosseira,
animalesca e violenta, descreve a avó que comanda um micromundo que gira
em função de suas medidas e seus caprichos. Analisando o contexto histórico
social da Espanha, recordamos a figura do ditador Francisco Franco e a série
de decisões que foram tomadas em seu regime, com vista a estabelecer uma
ordem e sustentar uma ideologia.
No marchar da obra, somos induzidos, através de objetos simbólicos
usados por Práxedes, a experimentar as sensações de medo pela
agressividade das medidas ilógicas e violentas usadas nas relações familiares
e sociais, como forma de garantir a permanência do controle da ilha. Mas, nas
descrições de Matia, o controle que exerce a avó Práxedes está escorregando
por suas mãos, é impossível deter o decorrer do tempo e a dialética mesma
das relações sócias. Daí o singular nome que Matute atribui à ilha, El declive.
Tudo remete a á perdida da energia vital, ao deterioro das relações, ao decair
da autoridade. Nada se sustenta pela imposição, além do que o declive não
81
está remitido unicamente à força física; a família está em completa decadência
financeira, assim como a casa velha da avó, com móveis desmoronando por
falta de manutenção, corroída pelas traças, cupim e ferrugem, mas, o mais
importante, a sociedade pervaga em declive e os valores morais se opacaram
junto a com miséria.
Práxedes encarna um poder em destruição, em decadência, que poderia
ser uma versão feminina do militarismo, do nazismo, das idéias obsoletas, a
reencarnação do marido militar com seu poder de mando, mas de um poder
decrépito, tanto quanto maiores sejam as medidas usadas para mantê-lo.
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Considerações finais
Fundada em um olhar perspicaz sobre a realidade social vivenciada no
desfecho da guerra civil espanhola, Ana Maria Matute nos conduz, através da
narrativa da memorialista Matia, a conhecer o esfacelamento que o conflito
bélico e um governo totalitário causam nos seres humanos e na estrutura social
de um país.
O romance Primera memoria se reveste de um caráter denunciativo
materializado no tom confessional, atribuído à narradora Matia, à recordação
das atitudes violentas e grosseiras da avó na relação cotidiana com a família e
com os moradores da ilha. Estas atitudes de Práxedes se fazem semelhantes
no tratamento, no imperativo de conseguir obediência, na vigilância
permanente e na forma sigilosa de observar, no tratamento aos trabalhadores
da casa, se cotejadas com as medidas tomadas pelo governo espanhol durante
e logo depois de terminada a guerra civil.
O discurso narrativo é arquitetado nos fios da memória de Matia, que
descreve as personagens da trama como seres psicologicamente instáveis,
alguns infelizes, imersos na própria solidão e sem perspectivas de mudanças,
vítimas de uma matriarca cruel e desumana, a avó Práxedes. Por
descobrirmos, tão só em uma leitura superficial, que esta avó podia configurar
a força bruta de uma ditadura, propusemo-nos analisar como se deu o impacto
causado pelo conflito bélico no núcleo familiar e no campo literário feminino no
pós-guerra civil, levando em consideração a nova função que a mulher deveria
desenvolver na sociedade espanhola, requerida por Franco e pela Igreja
Católica.
Por esse motivo indagamos se as recordações da neta em relação com
à avó poderiam ser uma metonímia da hierarquia política vigente na época.
Igualmente, quais as dimensões foram afetadas decorrentes da violência e da
imposição da autoridade nas relações humanas.
Assentados a isso, indagamos se as pistas e vestígios, visualizados
através dos recursos de memória utilizados por Matute, aludiriam à
configuração literária de Práxedes que impõe o poder e a autoridade no espaço
micro da ilha, com o imponente poder de Franco no espaço macro da Espanha.
83
Elucidamos as primeiras hipóteses com as leituras sobre a crítica
literária feminina das novelas de pós-guerra, dizente do papel desenvolvido
pela mulher no regime ditatorial, em meio a outras questões mencionadas ao
longo da discussão.
Para contextualizarmos o momento vivenciado e arquivado pela
memorialista, abordamos algumas questões referentes ao início da guerra civil
com Puértolas, Aguinaga e Zavala (1979), historiadores que nos conduziram a
entender como a sociedade espanhola vivenciou o conflito fratricida. No
entendimento dos historiadores, os grupos se enfrentavam tanto dos lados
republicanos quanto dos nacionalistas, criando espaço para a destruição em
massa das cidades e do campo.
Seguimos com Comellas (2002), a fim de divisar luzes que contribuíram
a compreendermos o governo totalitário de Franco.
No intuito de enriquecer a discussão, buscamos demonstrar qual a
função que a mulher desempenhava e como deveria ser sua conduta nesse
período. Nas revisões críticas a partir de um olhar feminino, as pesquisadoras
dialogam sobre a mesma afirmação: “a mulher era o pilar na ideologia
franquista para a construção do modelo ideal de família, na reconstrução da
nova Espanha”. Refugiadas em seus lares e revoltadas com a situação,
algumas mulheres iniciaram a escrever, de forma tímida e discreta, burlando a
censura, mas sem deixar de aludir à situação sociopolítica. Dessa forma, ia
ganhando espaço no terreno literário. Em nosso trabalho, sobrelevamos
algumas escritoras que obtiveram reconhecimento após um enfrentamento com
os cânones masculinos veiculados a época.
Aos poucos, a primeira geração de escritoras do pós-guerra entreabriu
caminho para a produção literária denunciativa. Dentre as escritoras,
agraciamos Ana Maria Matute, consagrada, por manifestar em suas narrativas
talentos inconfundível para a elaboração estética, mas também por sua
determinação e significativo engajamento político.
Para as outras questões acreditamos responder, não sem recorrer a
fatos históricos e abordagens teóricas, aos estudos de alguns filósofos sobre o
poder e sobre a autoridade e seu entrelaçamento nas relações humanas,
principalmente nas sociedades governadas por regimes totalitários, como é o
caso do regime que dilacerou a Espanha até 1975.
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Traçamos um panorama histórico do que acreditamos contribuir para
compreender as causas das violentas lutas pelo poder em alguns países da
Europa. Entendemos que, para o exercício e manutenção do poder e da
autoridade, o governante necessita de aprovação por um grupo, pois o poder é
transitável em todas as esferas da sociedade. Tal como se mostram as
relações familiares na esfera de Práxedes: todos na ilha são subordinados a
ela.
Fechamos a discussão com a afirmativa de que é impossível apartar o
autoritarismo da violência quando se fala em governo totalitário a semelhança
do de Franco, que usou o terror para reprimir os seus governados. Nessa linha,
observamos que o terror da violência está internalizado nas pessoas que a
vivenciaram de alguma forma, durante e após a guerra.
Em Primera memoria, Matute utiliza o recurso memória para compor a
obra, e será Matia aquela que lembra e conta, mostra e denuncia
acontecimentos perversos, ficcionalizados pela qualidade literária da autora,
fatos vivenciados por ela em sua pré-adolescência no período da guerra civil,
fazendo da personagem a porta-voz dos traumas da sociedade espanhola não
omitindo sobre seus silenciamentos, manipulações, traições e hipocrisias.
A memória, para a escritora, é o fio condutor tendente a buscar
lembranças vivas e esquecidas, para tecer a estrutura de uma sociedade onde
os lares foram desvencilhados por atitudes violentas dos chefes de famílias
e/ou pelos dirigentes políticos. Entendemos a memória, aqui configurada, como
gênero literário criado para narrar histórias em tom confessional, a partir de um
ponto de vista mais pessoal que incorpora a coletividade com postura crítica.
A personagem Práxedes, como mostramos, em tudo e por tudo indicava
ser a configuração literária do poder e o autoritarismo. A autora utiliza diversos
recursos literários para identificar essa mulher em sua expressão grotesca, em
seu físico animalesco, em sua vestimenta ultrapassada, em suas atitudes
despiadadas e sem possibilidade de se revelar a seus mandatos. Um
verdadeiro monstro com figura humana. Desta forma se configura a violência,
o desejo de poder e de obediência irrestrita, no importando os meios para se
manter e secularizar. O recurso memorialistico usado pela autora para
ficcionalizar um período obscuro da história espanhola da luz para entender a
miséria humana que assolou a sociedade. Todos os personagens que Matute
85
construiu, cada um em seu papel, remetem aos diversos setores que foram
aniquilados física e psicologicamente, sem poder ter alguma possibilidade de
escolha. Práxedes, a matriarca, é a alegoria da força, da violência e do poder
deshumano. As ricas descrições da ilha e dos personagens contribuem para
que nos situemos no mesmo lugar isolado e nos sintamos parte da historia
para viver, gozar e sofrer, ao lado de Matia, cada experiência que hoje lembra
revoltada e nostálgica. As descrições cheias de nebulosidade e de revolta
também nos remetem às oscilações do caráter da matriarca.
Ao discorrermos sobre o espaço físico onde está situada a casa da avó:
uma ilha com jardins verdejantes, flores coloridas, árvores frondosas com um
sol, ora brilhante ora cinza, também nos lembram as alterações do estado de
espírito da narradora bem como estariam sinalizando o estado de espírito da
vida dos adultos.
A autora nos impressiona com as imagens de um lugar propício para
viver uma história poética, ao relatar que há uma enorme casa, bem no alto de
um declive, banhada pela brisa do mar, toda cercada por um verde sem igual.
Descrições detalhadas que poderiam ser reproduzidas em quadro com cores e
formas baseadas nas lembranças da memorialista, mas, em nossa análise,
apontamos que a história se passa em meio à guerra civil espanhola e essa
ilha de aparência paradisíaca é uma alusão a prisão, a um país isolado sem
contato com o resto do mundo. Nela só entrava e saía o que a censura da avó
permitia, tal como Franco fazia na Espanha.
Percebemos que comportamento dos colonos perante a matriarca e a
relação entre os outros membros da família era de mando e obediência.
Práxedes se considerava a proprietária da vida dos colonos: julgava,
sentenciava e condenava no simples prazer de satisfazer suas vontades.
Franco tinha a Igreja a seu favor. Com Práxedes não era diferente. Na ilha, era
representada por Mosen Mayol, o pároco, aliado principal da matriarca. As
atitudes violentas e autoritárias da avó eram repudiadas por Matia, mas em
momento algum nem ela nem os colonos ousavam desafiá-la, prova do
silenciamento imposto pela matriarca.
Desde o princípio, a avó é configurada como um ser zoormofizado, e
essa imprudência animalesca é demonstrada nas relações com os membros da
família, todas recordadas por Matia.
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Como futura mulher a ser traçada nos moldes conservadores, a
memorialista traz a lembrança momentos em que era obrigada pela avó a se
comportar em conformidade com os moldes requeridos pelo regime, no intuito
de barganhar um casamento rico e conservador. Há que lembrar, também que
com a finalidade de doutrinar e manipular as pessoas, Práxedes, se socorre
sempre à frases de mando e obediência no trato com sua família. O
autoritarismo era o meio de que se valia na intercomunicação presente na
Espanha e na ilha, com o poder centralizado em um único dirigente.
Finalmente podemos dizer que num micro espaço familiar se configura
literariamente um macro regime totalitário, e o que se pode observar de
característico: se baseia no temor, na tirania, na obediência cega, e a violência
caminha ao lado do poder para impor a ordem desejada pelo governante.
Ana Maria Matute, com Primera memoria, ganhou lugar de destaque no
campo das letras por ocupar espaço numa sociedade onde o domínio era
masculino, tradicionalista e conservador. Ela referencia parte da história social,
política e das relações humanas, em que a violência era usada para
manutenção de uma sociedade tradicional.
Fechando, concluímos que Matute reproduz, através da literatura, a
imagem de Práxedes, uma matriarca asquerosa, grotesca, impiedosa, viúva
−velha e forte como um cavalo −, está configurada com atitudes semelhantes
as tomadas regime ditatorial franquista. Nesse caminho eleva o romance a uma
produção em que literatura e realidade social se complementam para estetizar
o comportamento humano e inumano.
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