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A tutela constitucional da criança e do adolescente projeções civis e estatutárias – Gustavo Tepedino A relação entre pais e filhos apresenta-se, na atualidade, como processo dialógico, que substitui o anterior estado de subordinação no qual o filho figurava como sujeito passivo de mecanismo autoritário – estático e unilateral – de transmissão de informações. A tutela da criança e do adolescente deve permitir, no curso do processo educacional, que o menor de idade cresça de forma biopsiquicamente saudável, de modo a superar sua própria vulnerabilidade, informar-se e formar-se como pessoa responsavelmente livre, exercendo, efetivamente, a sua autonomia de maneira mais ampla possível. A constituição de 1988 passou por uma enorme transformação quanto à filiação, assumiu relevância especial os princípios da igualdade formal (Art. 5º, CF) e substancial (Art. 1º, III, CF). No direito de família, esses princípios servem para reverter o percurso de discriminação que autorizava, no regime pré-constitucional, a proteção gradual da criança e do adolescente, de acordo com a situação conjugal de seus pais, consagrando-se, então, flagrante exclusão social. De fato, na vigência do Código Civil de 1916, os direitos inerentes à filiação submetiam- se ao estigma da ilegitimidade, sendo considerados filhos legítimos somente aqueles nascidos de relação conjugal, ao qual reservava todos os direitos, sejam existenciais, como direito ao nome, sejam patrimoniais, como os direitos sucessórios. Tal critério legitimados do casamento condicionava-se à presunção de fidelidade da mulher, traduzida pela expressão pater est quid justae nuptiae demonstrant e mater semper certa est . Preponderava o paradigma da paternidade presumida, que levava à assunção do casamento como critério legitimador. Daí a grande relevância, nas relações de família, da isonomia constitucional, traduzida especificamente no art.

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Page 1: A Tutela Constitucional Da Criança e Do Adolescente Projeções Civis e Estatutárias – Gustavo Tepedino

A tutela constitucional da criança e do adolescente projeções civis e estatutárias – Gustavo Tepedino

A relação entre pais e filhos apresenta-se, na atualidade, como processo dialógico, que substitui o anterior estado de subordinação no qual o filho figurava como sujeito passivo de mecanismo autoritário – estático e unilateral – de transmissão de informações. A tutela da criança e do adolescente deve permitir, no curso do processo educacional, que o menor de idade cresça de forma biopsiquicamente saudável, de modo a superar sua própria vulnerabilidade, informar-se e formar-se como pessoa responsavelmente livre, exercendo, efetivamente, a sua autonomia de maneira mais ampla possível.

A constituição de 1988 passou por uma enorme transformação quanto à filiação, assumiu relevância especial os princípios da igualdade formal (Art. 5º, CF) e substancial (Art. 1º, III, CF). No direito de família, esses princípios servem para reverter o percurso de discriminação que autorizava, no regime pré-constitucional, a proteção gradual da criança e do adolescente, de acordo com a situação conjugal de seus pais, consagrando-se, então, flagrante exclusão social. De fato, na vigência do Código Civil de 1916, os direitos inerentes à filiação submetiam-se ao estigma da ilegitimidade, sendo considerados filhos legítimos somente aqueles nascidos de relação conjugal, ao qual reservava todos os direitos, sejam existenciais, como direito ao nome, sejam patrimoniais, como os direitos sucessórios.

Tal critério legitimados do casamento condicionava-se à presunção de fidelidade da mulher, traduzida pela expressão pater est quid justae nuptiae demonstrant e mater semper certa est. Preponderava o paradigma da paternidade presumida, que levava à assunção do casamento como critério legitimador.

Daí a grande relevância, nas relações de família, da isonomia constitucional, traduzida especificamente no art. 227, §6º da CF, que pôs fim ao critério legitimador e impôs a regra da igualdade de direitos entre todos os filhos, independentemente da origem, ratificada pelos art. 20 do ECA e art. 1.596 do CC.

Como se vê, o princípio da isonomia assegura efetiva igualdade entre os filhos no âmbito material e existencial, exigindo, para tanto, tratamento diferenciado de acordo com as particularidades de cada pessoa, no sentido de reduzirem-se as diferenças sociais e culturais no âmbito da filiação. Com a plena igualdade, conclui-se o lento processo evolutivo nas relações de filiação, representando, ao longo do tempo, verdadeira despenalização dos filhos, vítimas de escolhas de seus pais.

A isonomia dos filhos, mais do que simplesmente igualar direitos patrimoniais e sucessórios – o que por si só seria louvável, embora o art. 51 da Lei do Divórcio, a rigor, já o tivesse determinado –, traduz tábua axiológica, com eficácia imediata em face de instituições pública e entre particulares, criando-se o dever de promoção da igualdade de tratamento em todas as situações materiais e existenciais em que se encontrarem os filhos.

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O princípio da solidariedade também assume papel de grande relevo nas sociedade intermediárias, a Lei Maior exige que nos ajudemos, mutuamente, a conservar toda nossa humanidade porque a construção de uma sociedade livre, justa e solidária cabe a todos e a cada um de nós.

Em virtude de tais circunstancias, o direito de família configura campo de grande expressão do princípio da solidariedade, no qual as formações familiares encontram-se funcionalizadas, na ordem constitucional, à plena realização de seus integrantes. É a pessoa humana o elemento finalistico da legalidade constitucional, e, por isso mesmo, atribui-se à família proteção especial na medida em que a CF entreve seu importantíssimo papel na dignidade humana. O princípio da solidariedade torna-se o fundamento constitucional de imposição de deveres aos pais no exercício da autoridade parental, para que a convivência, externada no processo educacional, se torne mecanismo capaz de estruturar a criança e o adolescente como pessoas com autonomia.

A incidência direta dos princípios constitucionais nas relações familiares assegura a unidade do ordenamento e a prevalência dos valores existenciais sobre os valores patrimoniais, como pretendeu o constituinte.

À luz dos princípios constitucionais antes indicados, há de ser encontrar o equilíbrio entre o exercício dos direitos fundamentais dos filhos e a autoridade parental dos pais, de modo a concretizar a liberdade da criança e do adolescente no processo educacional que atenda às exigências constitucionais de igualdade e solidariedade. Do ponto de vista da capacidade para o exercício de direitos, mais intensa será a atuação dos pais quanto maior a falta de discernimento. Na medida em que, gradualmente, no curso do processo educacional, os filhos adquirem aptidão para valorar e tomar decisões, a ingerência dos pais deve diminuir, de modo a incentivar o exercício autônomo de escolhas existenciais.

As capacidades de entender e de querer afiguram-se expressões de paulatina evolução da pessoa (menor de idade), titular de direitos fundamentais, os quais não podem ser exercidos por outrem, justamente por serem personalíssimos e, como tais, intransferíveis. Assim, não se justifica a manutenção de óbices jurídicos que impeçam seu exercício. A gradativa aquisição de maturidade pelo menor subtrai a justificativa axiológica para se destacar titularidade e exercício nas situações existenciais. Dessa forma, o regime de incapacidades, como expresso no CC, deve ser aplicado de forma irrestrita tão somente às situações jurídicas patrimoniais, vez que seu objetivo primordial é preservar o incapaz no trânsito jurídico patrimonial.

Dessa feita, revela-se necessário examinar, em cada situação concreta em que se encontre a criança ou o adolescente, a existência da maturidade que os possibilite decidir de forma responsável acerca de escolhas que interfiram em aspectos existenciais, tais como guarda, convivência familiar, mudança de nome, entre outras.

Tal construção, que consiste no efetivo reconhecimento da criança e do adolescente como pessoa com (crescente) autonomia, embora passe despercebida pela doutrina brasileira, encontra-se prevista, a rigor, no ECA.

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Na sistemática do estatuto, assim delineada, os filhos não apenas podem opinar, mas devem ser ouvidos pelos pais. Assuntos atinentes à fixação de domicílio familiar, a viagens com os filhos ou à alteração de escolas devem ser decididos com base no interesse de todos os membros da família e, em particular, em consonância com o interesse das crianças, alvo de tutela especial da Constituição, que visa, assim, ao melhor, desenvolvimento de sua personalidade. O filho torna-se, desse modo, como inicialmente registrado, protagonista do próprio processo educacional, o que se traduz em 3 aspectos fundamentais da disciplina normativa. O primeiro é a interpretação do art. 6 do ECA em que a vontade da criança e do adolescente deve prevalecer sobre qualquer vontade, inclusive a dos pais (princípio do melhor interesse da criança e do adolescente). Em segundo lugar, o legislador em diversos dispositivos assegura a participação ativa da criança e do adolescente no processo educacional, autorizando-os a opinar sobre os métodos pedagógicos aplicados. O terceiro aspectos a ser destacado reside na previsão legal de controle específico da conduta dos pais e educadores, com a finalidade de reprimir os atos ilícitos e o abuso de direito. Deve-se, portanto, encontrar o equilíbrio dialético entre autoavaliação e heteroavaliação, “que não mortifique o Pátrio Poder dos genitores e não anule a escolha significativa e de cultura representada pela participação do menor no processo educativo”.

Em definitivo, o processo educacional dos filhos, que encontra fundamento na autoridade parental, visa a conduzi-los à liberdade responsável. E não há liberdade dissociada de outros valores que incidem na construção da noção de autonomia privada e, nessa esteira, na autonomia a ser assegurada ao menor. Por isso mesmo, não se pode definir e delimitar aprioristicamente, fora do caso concreto, o conteúdo da autonomia privada. A autonomia da criança e do adolescente será reconhecida, assim, como determina o Estatuto, considerando sua vulnerabilidade, para que sejam integralmente protegidos e, ao mesmo tempo, a sua capacidade suprida na exata medida do seu décifit de discernimento, de modo a exercerem, pessoalmente, os direitos que lhe forem possíveis, desenvolvimento plenamente suas aptidões e possibilidades.

A comunidade familiar, informada pelo valor fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), assume o dever constitucional de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a promoção de seus direitos fundamentais e, em conseqüência, de sua dignidade (Art. 227 da CF), afastando-se do paradigma da sociedade hierarquizada, característica do CC/16 para transformar-se em sociedade democrática.

Todos esses dispositivos constitucionais, que homenageiam a participação igualitária dos cônjuges e filhos, diluindo o poder decisório em detrimento da coersão formal da família (que constituía, no sistema anterior, a paz doméstica), associados aos §§ 3º e 5º do art. 226 da CF, que asseguram proteção constitucional às uniões estáveis (não fundadas no casamento) e ao divórcio, comprovam a tese de que, na legalidade constitucional, a realização do indivíduo tem supremacia sobre a instituição matrimonial e de que o conceito de unidade familiar não mais se confunde com a unidade matrimonial, sendo esta instrumento para a tutela da pessoa humana.

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No âmbito dos direitos fundamentais assegurados à criança e ao adolescente, destaca-se o papel primordial da autoridade parental e da guarda dos filhos no caso de pais separados. Daí se-ter procurado, nos últimos anos, tornar ambos os pais corresponsáveis pela educação dos filhos, mesmo após a separação, para além das atribuições (poderes, faculdades, direitos e prerrogativas) predefinidas, valendo-se, nessa esteira, das noções usuais em países estrangeiros, como a guarda compartilhada e alternada.

Todavia, essa posição deve ser vista com cautela, seja em razão da insuficiência do Poder Judiciário em assegurar a efetividade do compartilhamento de responsabilidades com base na mera atribuição da guarda, seja pelo risco de se subestimar o instituto da autoridade parental, o qual, no direito brasileiro, mostra-se abrangente e persistente, apto a vincular os genitores a uma série de deveres que não se extinguem com a separação e independem da atribuição da guarda.

Ou seja, de um lado, o enfoque exclusivo da guarda muitas vezes revela-se infrutífero para o interesse da criança e do adolescente, já que o comprometimento dos pais depende de fatores comportamentais dificilmente suscetíveis de controle pelo Judiciário.

A autoridade parental no Brasil trata-se de situação jurídica subjetiva existencial, caracterizada pela atribuição aos pais do poder de interferência na esfera jurídica dos filhos menores, no interesse destes últimos e não dos titulares do chamado poder jurídico. Os pais adentram na esfera jurídica dos filhos não nos interesses próprios, mas no interesse dos filhos, as pessoas em cuja esfera jurídica é dado ingerir.

A despeito de tal distinção teórica, a autoridade parental tem sido mal enquadrada, dogmaticamente, na figura do direito subjetivo, o que acaba por restringir a atenção doutrinária às relações patrimoniais – concernentes à administração dos bens e à prática de negócios jurídicos –, ou a seu momento patológico – nos casos de extinção ou suspensão da autoridade parental. Perde-se de vista, assim, sua função primordial, de natureza existencial, apta a deflagrar a responsabilidade de ambos os genitores no processo educacional dos filhos, independentemente de quem os tenha em sua guarda.

Na concepção contemporânea, portanto, a autoridade parental não pode ser reduzida nem à pretensão juridicamente exigível, em favor dos seus titulares, nem a instrumento jurídico de sujeição (dos filhos à vontade dos pais). Há de se buscar o conceito de autoridade parental na bilateralidade do diálogo do processo educacional, tendo como protagonistas os pais e os filhos, informados pela função emancipatória da educação.

A confusão conceitual gerada pela utilização acrítica da categoria do direito subjetivo gera conseqüências graves. É que a estrutura do direito subjetivo (que contrapõe posição de vantagens opostas) responde à função de tutela de pretensões do seu titular, oferecendo o ordenamento mecanismos processuais coercitivos, de modo a tornar eficaz a exigibilidade do interesse tutelado em face do sujeito passivo, vinculado ao cumprimento do dever a ele correspondente.

Page 5: A Tutela Constitucional Da Criança e Do Adolescente Projeções Civis e Estatutárias – Gustavo Tepedino

A convivência familiar, também denominada direito de visitas, constitui-se em importante instrumento de concretização do princípio da solidariedade e da igualdade, pois consolida a convivência entre pais e filhos após o fim da conjugalidade dos pais, com o escopo de manter os vínculos afetivos e, principalmente, dar continuidade ao exercício dos deveres inerentes à autoridade parental, como determina o art. 1.632 do CC.

Tânia as Silva Pereira sublinha a necessidade de se assegurar o direito de visitas de parentes, notadamente a visita dos avós, “dentro de um contexto maior de fortalecimento das relações familiares, na solidariedade que deve existir entre seus membros”. No mesmo sentido, observa-se que “a figura dos avós surge como corolário maior do relacionamento entre pais e filhos, como colaboradores indispensáveis na proteção e criação de seus netos sempre levando em consideração a carinhosa dedicação e, muitas vezes, a oportuna colaboração dos avós na criança e manutenção dos netos, principalmente na época atual, em que a mãe é obrigada a ausentar do lar para trabalhar fora’.