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Achilles Delari Jr Vigotski e a Pratica Do Psicologo Em Percurso Da Psicologia Geral a Aplicada 2a VersaoTRANSCRIPT
VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO em percurso da psicologia geral à aplicada*
Achilles Delari Junior**
L. S. Vigotski (1896‐1934): criador da teoria histórico‐cultural * **
* Para referência: DELARI JR., A. Vigotski e a prática do psicó‐logo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo. Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão) ** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐mail: [email protected].
“Na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência do novo homem. Sem ela a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta. Entretanto, esta ciência do novo homem será também psicologia. Por isso hoje man‐temos suas rédeas em nossas mãos. Não há necessidade de dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual, como, segundo as palavras de Espinosa, a constelação do Cão se parece com o cachorro, animal ladrador (Ética, teorema 17, Escólio)”
— Lev Vigotski (1927/1991, p. 406)***
Palavras Iniciais Tem sido muito importante no Brasil a contribui‐ção da obra de Lev Vigotski à psicologia da educa‐ção e às práticas pedagógicas de modo geral. As‐sim, predominantemente, sua obra tem sido apre‐sentada e discutida no contexto de cursos de for‐mação de educadores, tanto quanto nas discipli‐nas da formação do psicólogo ligadas aos temas do desenvolvimento humano e das relações de ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso não é despropositado. A educação tem um lugar fundamental na proposta de Vigotski para uma “nova psicologia”. Segundo ele “a educação é a primeira palavra que [a nova psicologia] mencio‐na” (VIGOTSKI, 1926/1991, p. 144). Isso implica mencionar a palavra “educação” numa acepção antropológica, isto é, conceber que só o ser hu‐mano é capaz de educar‐se, de aprender com a experiência histórica das gerações anteriores e assim constituir a sua própria vivência como ser singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos, na família, na escola, nas demais instituições em que se estabeleçam nossas relações com outras pessoas, seja essencial na constituição das fun‐ções psíquicas propriamente humanas, de nossa
SUMÁRIO
Palavras iniciais.............................................................01 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03 1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo (...) .........08 1.3 O método construtivo e a psicologia (...).................10 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐rico‐cultural...................................................................12 2.1 Unidade psicofísica..................................................12 2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13 2.3 Consciência: psiquismo propriamente humano .....17 2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20 2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25 3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐gem histórico‐cultural ..................................................30 3.1 Princípios éticos em sua dimensão prática..............31 3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐ca...................................................................................32 Para continuar o diálogo ..............................................37 Referências ...................................................................38
*** Todas as citações para títulos que na bibliografia consta‐rem em língua estrangeira são de minha autoria exceto Vi‐gotski (1929/1989) e Puzirei (1989a) – cujas traduções do inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐ção que utilizei, será adotada apenas para as obras de Vigots‐ki, com fins didáticos de contextualização histórica, por se tratar da referência principal do texto.
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consciência em especial e nossa personalidade como um todo. Contudo, neste texto pretendo relembrar que Vigotski não produziu exclusivamente uma psico‐logia educacional ou escolar, nem sua teoria se restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e principalmente, de uma contribuição geral à psico‐logia concreta do homem (ver VIGOTSKI, 1929/ 1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐sar a atuação do psicólogo em diferentes contex‐tos práticos, como a promoção de saúde mental: nas práticas sociais comunitárias, nos sistemas públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐lho, entre outros... Tanto quanto em qualquer situação em que se efetivem simultaneamente: (a) relações simbolicamente mediadas entre as pes‐soas, (b) constituição social de sentidos para tais relações e (c) significação para nossa própria vi‐vência no curso desse processo. Trabalharemos aqui com a concepção de que um psicólogo orien‐tado pela abordagem histórico‐cultural, buscando compreender o ser humano na concretude de suas relações sociais, a um só tempo: situa‐o na especificidade delas (na família, no namoro, na escola, no trabalho, na vida comunitária, na luta por direitos civis, no lazer, na atividade lúdica, na criação artística, noutras instituições, etc.); e arti‐cula tais contextos específicos no conjunto sistê‐mico, inter‐funcional, dinâmico e contraditório da personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐vimento histórico. Por um lado, o que há de geral no psiquismo hu‐mano solicita contextualização. Se todo o ser hu‐mano é um constante tornar‐se, aquilo em que nos tornamos demanda situações reais para a realização do nosso devir. Se todo o ser humano é um animal social, o nosso modo de sermos sociais implica relações com outras pessoas que não nos estão pré‐determinadas e só acontecem no pró‐prio ato, por vezes tenso, de se estabelecerem e de se refazerem. Se todo o ser humano é um ser simbólico, o nosso próprio modo de simbolizar as coisas, os outros e a nós mesmos está relacionado à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos sociais criam e recriam para codificar sua experi‐ência histórica e dar‐lhe/impedir‐lhe acesso às novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a significação, como características gerais da vida propriamente humana colocam‐nos, ao mesmo
tempo, a necessidade de compreender o específi‐co de sua realização para cada ser humano con‐creto. Por outro lado, a nossa vivência mais espe‐cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐do com nossos semelhantes. Posto que nossa própria personalidade não tem como realizar‐se e desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐soas, senão mediante processos sociais de signifi‐cação, senão no fluxo de uma gênese histórica. Esta, por sua vez, realiza‐se como um “tornarmo‐nos” humanos, que só acontece em relação com os dois primeiros critérios, mas não pode, para nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite para o dia, exceto no caso mesmo de a própria humanidade deixar de existir. Sendo assim, a a‐bordagem histórico‐cultural não se apresenta aqui como visão “relativista” na qual o homem poderia ser social ou não, simbólico ou não, histórico ou não, dependendo da situação... A caracterização do humano como ser social, simbólico e histórico, compõe um conceito pertinente à constituição ontológica mais profunda e elevada da condição humana, no interior da abordagem teórica à qual estamos nos referindo. Ao mesmo tempo, essa generalidade concretiza‐se em sua dialética com a especificidade da condição singular de cada socie‐dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada classe e grupo sociais, de cada ser humano em particular. Deduz‐se assim que não se trata de uma abordagem que só seria aplicada a um único contexto específico de relações sociais, seja ele a escola, o mundo do trabalho, as organizações comunitárias, as práticas terapêuticas e assim por diante. A psicologia histórico‐cultural busca com‐preender o ser humano, e assim ao seu contexto caberá articular sua condição genérica e vice ver‐sa. Partindo desse princípio, dirigindo‐me, nesse momento, às componentes do grupo de estudos orientado em “Teoria histórico‐cultural (sócio‐histórica) na prática do psicólogo”, buscarei orga‐nizar uma breve introdução à contribuição de Vigotski, principal propositor da teoria histórico‐cultural1 em psicologia. Neste texto introdutório,
1 Segundo Valsiner e Van der Veer (1996) “teoria histórico‐cultural” é um termo cunhado por Vigotski e Luria para de‐
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para fins de exposição, abordarei: (1) princípios éticos em psicologia histórico‐cultural; (2) princí‐pios de psicologia geral numa abordagem históri‐co‐cultural; e (3) orientações gerais à psicologia aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo “para fins de exposição”, pois evidentemente a ética, a teoria e a prática são aspectos simultâneos da realidade humana na qual se dá a construção tanto de uma obra como a de Vigotski quanto a de nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para fins de sistematização e/ou organização, focar‐se mais num aspecto do que em outro, os demais nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐do ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐do prático de viver e relacionarmo‐nos engendra valores éticos. Nossos valores orientam práticas e opções por determinados modos de teorizar o real. Estes, por sua vez, (re)organizam ainda nos‐sas formas de agir e viver. Agindo e vivendo reava‐liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐lidamos valores. Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma de articular os conceitos aqui, tanto mais de modo tão abreviado e introdutório, é uma produção minha com base nas leituras que venho fazendo desde o final dos anos oitenta, articuladas às ex‐periências que tive, às vivências que nelas se cons‐tituíram e às que hoje também me perpassam. Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐cias humanas, não há em teoria histórico‐cultural apenas uma leitura quanto ao significado dos clás‐sicos. Minha orientação geral a qualquer pessoa
nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐lhada, sobretudo, entre 1928 e 1931. Embora não comporte, portanto, toda a obra de Vigotski, serve para designá‐la como uma metonímia da parte pelo todo. O termo “teoria sócio‐histórica da atividade” foi cunhado mais tarde por Leontiev. No Brasil existe uma diversidade de denominações, as quais por sua vez implicam diferenças teóricas e metodológicas na interpretação do autor clássico como: sócio‐interacionismo, sócio‐construtivismo, abordagem sócio‐cultural, abordagem sócio‐histórico‐cultural, etc. Não nos cabe entrar no mérito das disputas por qual denominação seria mais correta ou mais fiel à teoria do autor, pois a diversidade de leituras faz parte do processo social da apropriação de qualquer obra. Adotarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o próprio Vigotski teria cunhado e por ser a mais usada hoje na própria Rússia. Contudo, como diz Vigotski “O mais importan‐te é o significado, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se o significado” (1924/2009, p. 41).
que me pergunte por onde seria melhor começar a ler Vigotski, não pode deixar de ser a de que se comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas se erguem ao redor de qual seria a melhor inter‐pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos a partir de quem os lê, melhor seria avaliar tais leitores a partir dos primeiros. Nem sempre isso acontece na prática – algum grau de leitura intro‐dutória sempre é necessário. Mas saibamos ape‐nas que este texto é um posicionamento de um homem concreto com seus limites e potencialida‐des, que pode e deve ser questionado em seguida, sob o critério da crítica e da leitura do próprio clássico a cujo estudo nos dedicaremos. De toda forma, as escolhas para as leituras a serem reali‐zadas não são neutras, e se orientam pela visão de mundo e pelas características de personalidade social de quem as indica. Tais aspectos serão ex‐plicitados ao longo deste texto, justamente como convite ao diálogo e à composição coletiva. 1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural
“O método, ou seja, o caminho seguido, é visto como um meio de cognição: mas o método é determinado em todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz”
— Vigotski (1927/1996, p. 346)
Quando falo aqui de ética não me refiro aos pa‐drões de conduta que se formalizam em códigos de ética profissional, ou se normatizam em proce‐dimentos solicitados por comitês de ética em pes‐quisa com seres humanos ou animais. Estes são importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao campo dos princípios e valores mais gerais que permitem inclusive formular tais códigos e orien‐tar as normas de comitês como esses. Valores sem os quais eles se tornam destituídos de sentido ou exercidos apenas pelo motivo de fugir‐se à puni‐ção. Fazer ou deixar de fazer algo apenas pelo critério de não ser punido em caso contrário é próprio do que poderíamos chamar de uma “ética fraca”. Uma ética substancial, sobretudo, diz res‐peito à reflexão do homem sobre os valores rela‐tivos ao caráter bom ou ruim de suas próprias ações em termos das conseqüências que elas ve‐nham a ter para nós e para nossos semelhantes. Historicamente, diferentes doutrinas éticas se
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diferenciam, ademais, em termos do que definem como um “bem” a ser buscado e cuja ausência deve ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de um “bem que se quer” do que de uma “punição da qual fugir”. Desse modo as éticas que tiveram como valor e bem maior a felicidade, foram cha‐madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐zer como valor e bem maior se denominaram “hedonistas”. Àquelas que viam na utilidade das ações humanas o bem e o valor maior, pôde‐se chamar de “pragmatistas”. E assim por diante2. Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que se constitui então como seu objetivo principal, sua meta, sem a qual nenhum método pode ser defi‐nido. 1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos3 para um humanismo crítico na abordagem históri‐co cultural. Certamente reduzir cada doutrina ética a uma única palavra é temerário, tanto quanto cabe lembrar que pode haver duas ou mais doutrinas sob uma só categoria geral e portadoras de traços específicos bem distintos – dependendo, por e‐xemplo, do que se define como felicidade, tere‐mos diferentes “eudemonismos”, e assim por diante. Contudo, só levantamos estes exemplos de modo ilustrativo para articular o conceito de ética com o de um “bem” que se busca, que se almeja, que se tem então como valor maior. Trabalharei aqui com a interpretação de que a ética da obra de Vigotski, pautada em princípios marxistas, e como síntese ainda das demais tradições filosófi‐cas e culturais às quais este autor se filia (como o espinosismo ou a própria tradição judaica na qual foi educado4), pode ser adjetivada como “huma‐nista”, lato sensu. Não se trata do mesmo huma‐nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de Jean‐Paul Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐
2 Para um estudo detalhado sobre a constituição histórica de diferentes doutrinas éticas, ver Vasquez (1975). 3 Por “axiologia” entendo aqui apenas “discurso sistemático sobre os valores”, sobre sua hierarquia, sua apreciação e significação. O adjetivo “axiológico” aqui é utilizado apenas com a acepção de “relativo aos valores éticos” e aos juízos que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa atividade vital e de nossa relação com outras pessoas no interior dela. 4 Sobre a influência do judaísmo no pensamento de Vigotski ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008).
pio de tomar o ser humano e a realização de suas potencialidades como um valor que se não for o principal, também não pode deixar de ser consi‐derado como imprescindível e inalienável ao seu projeto em psicologia. Sobretudo, cabe o desta‐que de que, na concepção de Vigotski, as potenci‐alidades humanas só se realizam e se ampliam no âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐dade, com os outros sociais, não sendo seu foco ético uma realização humana apartada daquela de nossos semelhantes, o outro não é impeditivo de nossa liberdade e realização pessoal, mas uma das suas principais condições de possibilidade. Pode‐se interpretar que o valor da humanidade como bem a ser preservado e cultivado, do ponto de vista da ética presente na obra de Vigotski: (a) em primeiro lugar não se traduz como humanismo ingênuo nem liberal; e (b) em segundo lugar, con‐seqüentemente, demanda, frente a outras orien‐tações axiológicas, critérios próprios, como o seu entendimento quanto à superação, à cooperação e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐mino “humanismo ingênuo”, lembre‐se que pro‐priamente humanas não são só as denominadas “grandes realizações”, expressões maiores de criação artística, solidariedade ou luta pela vida e o bem comum. Não basta algo ser humano para ser bom. Também são humanos, ausentes noutros animais, muitos atos de crueldade, degradação da natureza e autodestruição da espécie. Tristes e‐xemplos de ganância, expropriação, intolerância, terrorismo, tortura, genocídio, destruição em massa, dados ora pelo capitalismo fascista ou liberal ora até mesmo por certas orientações no dito “socialismo real”, são, infelizmente, também realizações humanas. Karl Marx dissera ser sua frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano eu considero alheio a mim”. Os males da humanidade fazem parte do que somos, reconhecermo‐nos como humanos é ver bens e males coletivos como algo de que so‐mos todos potencialmente capazes e, em alguma medida, até mesmo responsáveis. A ética huma‐nista que nos importa não elevará qualquer ato humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐centar critérios diferenciadores frente ao huma‐nismo ingênuo, dos quais trataremos adiante. Outro aspecto que solicita critérios para definir de qual humanismo se trata, é o de não confundir toda ética que dá à humanidade valor central,
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com uma visão “liberal” de ser humano. O libera‐lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐se social ascendente com o advento do capitalis‐mo, coloca o “homem no centro” (antropocen‐trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade Média, da “divindade no centro” (teocentrismo). Mas de que “homem” se tratava? Sem nos alon‐garmos, apenas recordemos o que diferentes au‐tores críticos já vêm alertando há algum tempo. O conceito de homem do liberalismo surgido na Europa, com a modernidade, o advento do capita‐lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐légio de certo modelo masculino, branco, euro‐peu, adulto, heterossexual, letrado, proprietário, entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se apresentar a idéia de tal ser humano constituir valor universal, ao mesmo tempo se impunha às mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐ra humana um modelo derivado de interesses particulares, próprios de uma classe social restrita. Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009) é sério crítico do humanismo ocidental moderno hegemônico, entendendo que ele seja uma inven‐ção social questionável tanto quanto o próprio conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu fim próximo. Ademais, o conceito liberal de ho‐mem é, sobretudo, focado na nossa existência individual e na noção de que nossa liberdade é a priori para cada um de nós, algo que “nasce co‐nosco”. Trata‐se da ideologia de que se todos so‐mos naturalmente livres para vender nossa força de trabalho e para prosperar com nossos empre‐endimentos pessoais, o fracasso ou sucesso de cada um será devido exclusivamente aos seus méritos e defeitos individuais. Se a ética humanista que se insinua na psicologia de Vigotski não se pauta no critério ingênuo do homem como ser essencialmente bom, nem no liberal com foco na sua realização individual, quais critérios acrescentar para o valor dado ao humano nessa abordagem, se ela ainda não advoga a “morte do homem”? Na minha compreensão, há pelo menos três ações próprias ao ser humano às quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza só em tese, mas também busca construir através de sua prática social, às quais podemos, de modo conciso, nomear como: (a) superação, (b) coope‐ração e (c) emancipação. A noção de superação em Vigotski, entendida como ato e necessidade de superarmo‐nos, de irmos além dos nossos limites atuais, é ressaltada pelo estudioso russo Andrei
Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e os valores fundamentais presentes em todo o pensamento de Vigotski” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra de Vigotski nos permite identificar nela uma forte “orientação ao ‘supremo’ no homem ou, para dizê‐lo com palavras de Dostoiévski, ao ‘homem no homem’, à sua organização psíquica e espiritu‐al, desde o ponto de vista do que pode ser, em geral, o homem e dos caminhos que existem para este estado possível, dos caminhos que abre, em particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Tal orientação da abordagem histórico‐cultural ao que “podemos ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no sentido de mais elevado, mais avançado, implica, em outras palavras, que se vê o humano tanto como ser apto a ir além de seus limites, quanto como o que só se realiza quando se supera. Con‐tudo, realizarmo‐nos como humanos, é algo que pode ocorrer ou não, em função de dadas condi‐ções materiais, concretas. Uma das principais condições concretas para a superação humana é a cooperação entre as pessoas. Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição como força motriz da superação humana, a tradi‐ção à qual Vigotski se filia discorda de que um ser humano só avance quando outro é sobrepujado ou derrotado. Se aquela visão supõe o “homem como lobo do homem”, e o outro como alguém a temer ou subjugar, esta supõe que até para ser‐mos indivíduos necessitamos a presença e os cui‐dados de outras pessoas para conosco. Se consi‐derarmos o simples fato da fragilidade do “filhote humano” e o tempo que demora para poder ga‐rantir por conta própria a sua sobrevivência, já teremos noção do quanto necessitamos colabora‐ção de alguém para virmos a ser nós mesmos e quanto podemos nos fazer necessários para al‐guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustrado na própria teoria do desenvolvimento da persona‐lidade e das funções da linguagem, do signo, se‐gundo Vigotski. Para ele, a função das primeiras palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐tiva, "expressar emoções", mas primordialmente indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐to da linguagem "é, antes de tudo, um pedido de ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐te, a primeira transposição dos limites da persona‐lidade, isto é, uma colaboração..." (VIGOTSKI, 1931/2000a, p. 338). Ainda assim, a necessidade
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de atuar junto a mais alguém para avançar em nossos potenciais não se restringe a aprendermos a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene, a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐ações em que a superação de nossos limites exige a presença de outrem, mais experiente, que pro‐porcione mediações necessárias e a quem dirija‐mos solicitações. Se desejo aprender uma língua estrangeira, a exercer uma profissão ou a dominar alguma arte, devo recorrer a outros. Mas não se restringe a necessidade de cooperação a obter instrução de alguém mais experiente: também cooperamos com nossos pares, aprendemos com amigos, colegas, familiares. E ainda com as crian‐ças, os mais novos, menos experientes que nós, seja por sua perspicácia, seja por lhes tentarmos ensinar algo – momento talvez em que mais de‐vemos nos superar. Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos do outro, caberia eticamente lembrarmos que para irmos além do que já somos, o outro também é aliado essencial. Contudo, se não somos egoístas por natureza (humanismo liberal) também não somos altruístas por natureza (humanismo ingê‐nuo). A cooperação é condição inevitável para o avanço de nossos potenciais, mas isso não signifi‐ca que toda e qualquer relação social nos permita ir além. De fato, poderíamos ainda acrescentar que nem toda cooperação, sendo para o bem de um dado grupo, necessariamente o é para o bem da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐do a derrota da democracia, liberais podem coo‐perar formando cartéis monopolistas, dizendo‐se democratas, etc. Então, nesses casos, a superação pode estar sendo vista não como um constante processo de todos e cada um desafiarem seus próprios limites e tornarem‐se melhores em al‐gum aspecto de sua personalidade, profissão ou trabalho criativo, mas apenas como uma forma obter mais benefícios pessoais ou corporativos e prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então formas de cooperação em função da restrição do potencial de avanço do outro, e até mesmo em função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐zado poderia ser um exemplo dos mais comuns, e mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐lhante, ainda que num plano político bem distinto – o que têm de similar é a cooperação de um cole‐tivo para a destruição do inimigo como um ganho e uma meta. Desse modo, se nem toda ação con‐junta leva a um aumento de força que tenha em
conta uma cooperação mais generalizada e uma superação mais elevada, cabe articular esses dois primeiros critérios para o humanismo próprio à abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e decisivo: a busca da emancipação humana. Em outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐nutenção da liberdade, no seu sentido mais pro‐fundo e substancial. Dizer que o conceito de liberdade em Vigotski não é liberal poderá confundir o leitor, mas é preciso que se entenda que se trata justamente disso. O conceito de liberdade é uma construção da huma‐nidade que veio sofrendo várias alterações na história do ocidente, desde a antiga polis grega ao ideário da Revolução Francesa e desse ao sonho socialista, nunca plenamente realizado, ou à pro‐posta anarquista auto‐gestionária, também pou‐cas vezes concretizada. Desse modo, carregando origens histórico‐sociais diversas, os sentidos para a palavra “liberdade” também seguem sendo hoje os mais variados. Desde os mais ingênuos aos mais críticos, dos mais idealistas aos mais concre‐tos, dos mais demagógicos aos mais francos, dos mais racionalistas aos mais apaixonados. Quando digo que o conceito de Vigotski não é liberal, refi‐ro‐me ao liberalismo como ideologia política pró‐pria do conceito europeu dominante desde a as‐censão da burguesia como classe hegemônica. Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se o já destacado acima: o conceito liberal de liber‐dade, tanto quando o de humanismo, é pautado fundamentalmente numa concepção individualis‐ta de mundo. A qual, mais das vezes, é sustentada por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐ças individuais são fruto exclusivo da herança ge‐nético‐molecular, e os méritos das pessoas são tratados como dons, capacidades abstratas, com as quais foram agraciadas independentemente de educação social ou desenvolvimento histórico. Supõe‐se, portanto, que um autor como Vigotski, cujas bases filosófico‐metodológicas estão forte‐mente articuladas com uma tradição da ontologia do ser social marxista, não teria um conceito libe‐ral de liberdade ou de emancipação humana. Há dois pontos que cabe destacar no conceito de liberdade/emancipação em Vigotski: (a) trata‐se de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma conquista que se obtém cooperando com alguém e não sozinho.
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Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐vra “liberdade” em preferência à “emancipação”, nem o contrário. Contudo, entenda‐se que ao falarmos em “liberdade” concebemos o processo de permanentemente obtê‐la, e não como um estado ideal que atingido faz cessar a necessidade de buscá‐lo. E por “emancipação”, entenda‐se o mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto “movimento”. O bebê humano é o mais depen‐dente de todos os filhotes conhecidos, o que nas‐ce menos preparado, o que demora mais tempo para atingir a forma adulta, o que precisa mais aquisições do ambiente para justamente poder lidar com ele. Sendo assim, é certo que não nas‐cemos livres, nem autônomos. Portanto, todo um desenvolvimento humano é necessário para con‐quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐to e de ação, ou mesmo independência afetiva. Esse curso de desenvolvimento, na concepção de Vigotski, vai “do social ao individual”. A ênfase é distinta da de autores como Freud e Piaget (ver BRUNER, 2005), para quem a criança é um ser individual que só progressivamente se socializa. Na perspectiva da abordagem histórico‐cultural, nascemos já em mundo social, e só podemos nos manter vivos se em contato com outras pessoas. Assim, pela mediação delas, processualmente, vamos nos diferenciando e nos “subjetivando”, tomando consciência de nossa própria existência, constituindo nosso mundo privado e assumindo um lugar específico no mundo público no qual já estávamos situados desde sempre. Desse modo, não há qualquer liberdade a ser constituída que não passe pela relação com os outros. As próprias regras que, desde pequenos, aprendemos com os adultos e com outras crian‐ças, são condição de possibilidade para o alcance de maior autonomia e liberdade de pensamento, ação e afeto, e não necessariamente impedimen‐to. As modalidades de relação social que sejam impeditivas da autonomia humana não são consi‐deradas, como em outras teorias, algo natural e regra inevitável do desenvolvimento psicológico, mas formas historicamente constituídas que po‐dem predominar ou não. As quais, por sua vez, estão em constante tensão com aquelas relações que proporcionam o avanço para modos mais integrados de compor com o mundo e de obter e exercer maior poder de realização junto a ele. Pensemos apenas no exemplo da brincadeira da
criança, na qual para haver um simples jogo são necessárias regras, mas brincar não só nos pode ser aprazível, como também permitir‐nos ir além do que está posto de imediato frente aos nossos olhos, avançando ao distante no tempo ou no espaço no ato da imaginação criadora. Por fim poderíamos, de passagem, destacar que, em Vi‐gotski, o conceito de liberdade alia‐se ao de von‐tade, o qual por sua vez se traduz pelos atos hu‐manos que envolvem uma tomada de decisão, uma escolha. Diante de duas opções o ser humano necessita um ato volitivo para decidir o que have‐rá de obter (realizar) e o que haverá de perder (deixar de realizar). Nessa decisão, na tensão que ela envolve, está posta nossa possibilidade de superação com relação aos determinantes de cunho estritamente condicionados pelos estímu‐los do meio. Essas ações de escolher, por sua vez, passam por um processo de desenvolvimento ao longo de nossas vidas, que é o desenvolvimento de nossa própria vontade ou “volição”. Em seu estudo sobre o “domínio da própria con‐duta”, Vigotski (1931/2000b) explora mais deta‐lhadamente esses aspetos. Num dado momento, ele retoma Marx e Engels para destacar que “o livre arbítrio (...) não significa mais do que a capa‐cidade de tomar decisões com conhecimento do assunto” (apud VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 300). Desse modo, as decisões mais livres não seriam aquelas que tão somente se toma com base no impulso, no fazer “como eu quero” ou “tudo que quero”, como dito no senso comum – pelo qual a ideologia liberal perpassa. Até porque uma ação tão somente “por querer”, sem que se intuam os motivos pelos quais se deseja, pode não ser tão livre quanto se imagine. Nota‐se que o conceito de liberdade aliado ao processo de tomada de consciência crítica, isto é, de percepção da dinâ‐mica contraditória do real, lembra o conceito es‐pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐ção de paixões tristes, de receios, idéias e afetos, que nos imobilizem, por desconhecermos as cau‐sas reais das coisas. E também por, desse modo, ignorarmos as nossas próprias possibilidades e limitações com relação à transformação ou manu‐tenção do mundo que aí está. Vigotski assume, embora não explicite em quais termos, a identifi‐cação de seus ideais éticos com os de Baruch de Espinosa: “Não podemos deixar de assinalar que nossa idéia da liberdade e o autodomínio coincide
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com as idéias que Espinosa desenvolveu em sua “Ética”” (VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 301). Caberá aprofundar as formulações aqui apresentadas. Mas, articulando indícios e arriscando nossa pró‐pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário emancipatório em Vigotski com a busca social (na então União Soviética) de desenvolver o chamado “novo homem socialista”. Tal noção implicaria a ampliação das capacidades simbólicas e culturais de cada pessoa num contexto societário livre da expropriação de uma classe por outra (ver VI‐GOTSKI, 1930/1994). Isto pode ser sintetizado no dito marxiano sobre o movimento de irmos “do reino da necessidade, para o reino da liberdade”. Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐manidade. 1.2 Contradições enfrentadas pelo psicólogo que se orienta por um humanismo crítico e o critério ontológico da historicidade como recurso perti‐nente Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐tiva histórico‐cultural, tal como lida aqui, implica um movimento de negação dos valores dominan‐tes, bem poderíamos atribuir a tal humanismo o adjetivo de “crítico”. Contudo, apenas o façamos com o cuidado de não substantivar esse adjetivo, para não criar rótulos que mais sirvam para dis‐tanciar pessoas com metas comuns do que para aproximá‐las em projetos de cooperação por um bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐mo”. Até porque “humanista” já fora desde o iní‐cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐rio fundamental para a psicologia de orientação histórico‐cultural. Disse Karl Marx que: “é certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser der‐rocado pelo poder material, mas também a teoria se transforma em poder material logo que se apo‐dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas quando argumenta ad hominem, e argumenta ad hominem quando se torna radical: ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem” (apud CHA‐SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se argumenta “ad hominem”, não aqui no sentido vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐lificando as características pessoais do outro para assim destituir de valor o seu argumento sem,
contudo, mostrar em que tal argumento é falho – recurso muito usado por alguns advogados, jorna‐listas, políticos e pseudo‐intelectuais. Mas sim no sentido mais profundo de argumentar “junto ao homem”, interpelando‐o em sua existência con‐creta, pedindo‐lhe coerência entre palavras e vi‐vências, falando‐lhe de coisas que lhe digam res‐peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”, solicitando‐lhe responsabilidade e tomada de atitude. Evidentemente, para virmos um dia a argumentar assim precisaremos voltar o mesmo recurso para nós mesmos – do contrário, na ética do discurso poderá predominar a ação estratégica sobre a comunicativa5, nos termos de Habermas (1989). De todo modo, se no exemplo de Puzirei o “ho‐mem no homem” é o que se extrai para o mais alto, na fala de Marx é o que se retira do profun‐do, em suas raízes, ou seja, em nós mesmos – animais simbólicos, sociais e históricos. Sendo assim, a realização da emancipação, como con‐quista permanente de maior liberdade será social não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐cionar com outras pessoas para desenvolver sua capacidade de escolher, decidir voluntariamente, mas também por algo mais. O processo social de emancipação humana não é relativo só à emanci‐pação de cada um, mas à de todo o conjunto da sociedade, na construção de práticas democráti‐cas de convívio e de gestão do que é de interesse público. Sabemos, contudo, que em nossa socie‐dade, as restrições são fortíssimas. Nossa demo‐cracia é frágil, nossas instituições não são confiá‐veis. E a ideologia de uma “liberdade” em termos liberais, de jargões como “cada um para si” ou “leve vantagem você também”, é hegemônica. Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto a agir ou não agir, com relação a esse estado de coisas. Se Marx fala do confronto entre arma da crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus politicus” também recorre a termos bélicos para
5 Na ética do discurso de Habermas (1989), o agir estratégico é tido como aquele em que nós argumentamos tão somente para sobrepujar a posição do outro e convencê‐lo, enquanto no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente tendo como objetivo a busca da verdade. Ainda segundo analistas dessa teoria, os dois modos de agir não se polarizam de forma pura e ideal, mas na prática logram influenciar‐se mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou seja, de contradição inter‐constitutiva.
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dizer da liberdade humana: “se numa Cidade os cidadãos não tomam das armas porque estão aterrados pelo medo, não se pode dizer que aí exista paz e sim mera ausência de guerra. A paz não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma Cidade onde a paz é efeito da inércia dos súditos tangidos como um rebanho e feitos apenas para servir merece antes o nome de solidão do que de Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56).
FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS (1) Aleksis Nikolaevitch Leontiev (1903‐1979); (2) Lidia Il’initchna Bojovitch(1908‐1981); (3) Aleksandr Romanovitch Luria (1902‐1977); (4) Serguei Leo‐nidovitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984).
Não é necessário nos alongarmos a‐qui no diagnósti‐ co da sociedade contemporânea, dita “pós‐moder‐na”, também de‐nominada “neoli‐iberal”. Trata‐se de conteúdo cor‐rente nas refle‐xões críticas sobre políticas públicas e as que dedicam‐se a algum tipo de análise das insti‐tuições atuais. Contudo, fica pos‐ta uma tensão en‐tre os valores que são o fundamento da ética da abordagem históri‐co‐cultural, tal como a lemos, e os valores privile‐giados no mundo contemporâneo, de modo geral, mais drasticamente em países periféricos e subal‐ternos como o Brasil. Como agir de acordo com valores como os da psicologia vigotskiana, num país em que tais valores hegemonicamente são tidos como antiquados ou mesmo utópicos, quan‐do não inexistentes ou totalmente ignorados? De fato, o marcador semântico para nós importante nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que é “hegemônico” é predominante, o que mais se destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐rias, mas não é o “absoluto”, não prevalece de modo homogêneo, não existe sem fissuras – as quais podem surgir como contestações organiza‐das, como desobediência civil, ou ainda como fraturas e convulsões de cunho retrógrado. A so‐ciedade na qual foi criada a teoria histórico‐cultural não existe mais, foi derrotada na chamada “Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o
tempo que existiu não chegou a atingir todo o projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja indício justo disso. Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐res soviéticos como Vigotski, Luria, Leontiev, Ru‐binstein, Elkonin e Bojovitch (ver figura 1) vêm cobrar sentido, o ser humano nem sempre é o valor central e, quando sim, geralmente o é em termos liberais ou ingênuos. Nossa atitude não pode ser muito mais que a de distanciamento
crítico. Como disse meu colega o pro‐fessor Luiz Lastória (com. pessoal, 1998), parafrasean‐do Adorno: “Se não há cura, aprofunda o diagnóstico”. Pro‐postas apressadas de “cura”, sem o conhecimento real do que gera os “sintomas” pode implicar fatores etiológicos hiatro‐gênicos, isto é, fa‐tores patológicos gerados pela pró‐pria ação do trata‐mento. O que nos
remete também ao alerta presente em Hipócra‐tes, para quem a missão do profissional da saúde é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐temente, estamos usando termos médicos de modo metafórico, não é esse nosso papel social. Mas trata‐se de uma analogia que pode ajudar‐nos a refletir. Pode‐se a ela adicionar que “diag‐nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐sado. Diagnosticar é, na raiz grega, conhecer “a‐travessando” a realidade, ou seja, desde o pro‐fundo ao elevado, não se trata do sentido vulgar da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐rio compromisso, com o ato de conhecer e com aquele que se deseja conhecer, na relação com o qual passaremos também a nos conhecer melhor, posto que estamos falando de um conjunto social do qual fazemos parte, desde que nascemos. Não são as pessoas com quem trabalhamos objeto de piedade ou caridade, mas sujeitos co‐autores do mesmo processo histórico em que estamos inseri‐dos e que (re)produzimos diariamente.
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Desse modo, em suma, cabe destacar que aos princípios éticos aqui insinuados, comentados, acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐te abordá‐los com mais visibilidade. Trata‐se do princípio da historicidade dos valores. Se nossas relações com as pessoas, nossos modos de simbo‐lizar o mundo mediante a linguagem e de agir sobre ele mediante o uso de instrumentos, se constituem historicamente, o mesmo se aplica aos nossos valores morais, isto é, à nossa ética. Nos‐sos valores se constituem historicamente, e tam‐bém só historicamente podem se consolidar ou se enfraquecerem dando lugar a outros. A história implica contradições e lutas entre projetos políti‐cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐ção a realização e/ou transformação dos nossos valores pode ocorrer. A busca de cooperação em função de superação constante, como conquista de uma mais potente emancipação humana, cons‐titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas é uma interpelação que está posta. Trabalhar ins‐tigados por tal desafio é como assumir um dito que ouvi de Paulo Freire em Curitiba, em 12 de junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer hoje para que o que não é possível fazer hoje seja feito amanhã”. Os limites do possível, segundo Vigotski, se ampliam na relação com o outro6 (ver VIGOTSKI, 1935/1989)7, tanto quanto podem se estreitar dependendo de como nos relacionemos com esse outro e de quem é ele ou pode ser para nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar, se possível, pelas relações mais potencializadoras. Descobrir quando é possível ou não, no mesmo ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio exercício da ética. 1.3 O método construtivo e a psicologia como constitutiva da vida humana Por fim, tendo já falado sobre o critério metodo‐lógico da crítica e o ontológico da historicidade, como suportes para a ética, coloquemos também
6 Sobre a teorização da superação dos limites no desenvolvi‐mento humano ontogenético e microgenético, mediante o conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29. 7 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a data de quando o trabalho teria sido concluído. Trata‐se de uma publicação póstuma, já que Vigotski morreu em 11 de junho de 1934.
o critério do chamado “método construtivo”, tal como concebido por Vigotski, pois elucida um pouco o já falado sobre o “aprofundamento do diagnóstico”, como um ato no qual nos envolve‐mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma, diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐tência social e experiência histórica, no papel de psicólogos que não se desvincula dos nossos de‐mais lugares simbólicos. Vejo esse momento da discussão com um ponto de conexão importante entre os valores gerais e a proposta de atuação do psicólogo que se orienta numa perspectiva histó‐rico‐cultural. Nesse sentido retomo uma discussão já proposta anteriormente (DELARI JR., 2000), na qual me deparava com a trama de inter‐constituição das linguagens teóricas que assumi‐mos com a constituição de nossa própria subjeti‐vidade, consciência e personalidade. De fato, o vínculo profundo dos valores éticos com a prática social e então com a prática profissional com um momento importante dela, em psicologia, está associado ao problema das relações entre o “abs‐trato” e o “concreto”. Para o marxismo não há como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐ção, porque o concreto não é mais só o “empíri‐co”, ou seja, a experiência pela experiência. Para entendermos determinações concretas da reali‐dade é preciso olhar para além do que se apresen‐ta diretamente aos sentidos, ver o que não se mostra, ouvir o que não foi dito, conectar, rela‐cionar, imaginar, interpretar, logo “abstrair”. Nes‐se sentido entende‐se a proposição de Marx de que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma meta elevada, não só ponto de partida eventual. Mas para alcançarmos o concreto, a abstração não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a vida social, com as necessidades e lutas de cada sociedade. Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐ria ao cientista, ao psicólogo crítico, também é certo que nem sempre conseguimos ascender ao concreto. Para Puzirei, o fato de Vigotski dizer que sua “história do desenvolvimento cultural é a ela‐boração abstrata da psicologia concreta.” (1929/ 2000, p. 35) seria como uma “autocrítica” que “não apenas mostra a liberdade e espírito crítico com que ele avaliava sua própria obra, mas tam‐bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento teria formulado um projeto no qual Vigotski “via a ‘linha geral’ do desenvolvimento posterior da psi‐
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cologia histórico‐cultural. Esta tendência poderia significar uma superação radical do ‘academicis‐mo’ na psicologia tradicional” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal projeto para o futuro, visto do tempo de Vigotski, nos interessa hoje no século XXI, embora as condições da psicologia atual não sejam muito melhores que as do período em que a perspectiva histórico‐cultural surgiu. Trata‐se de um projeto que solicita: “um movimento em direção a um tipo completamente novo de investigação, que, em virtude de alguns dos aspectos fundamentais do seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em desenvolvimento, e de exigências fundamentais (derivadas deste último) de seus métodos, a sa‐ber, externalização e análise, deve, ele próprio, ser implementado dentro do quadro organizado de alguma prática psicotécnica, servindo como um órgão necessário que torna possível a projeção, realização, reprodução e desenvolvimento dirigido dessa prática. Esse projeto de reestruturação radi‐cal da psicologia permanece essencialmente irrea‐lizado na história subseqüente da psicologia.” (PUZIREI, 1989a, p. 76)
A psicologia concreta proposta por Vigotski convi‐da, assim, a uma mudança radical em nossa pró‐pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida e conduzida como um componente da própria constituição dos fenômenos ou processos que ela mesma estuda, como ciência, e com os quais ela atua, como profissão. Trata‐se de algo sério, por evidenciar nossa grande responsabilidade. Ao mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐tido de ser coerente com o que a própria aborda‐gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐ção do humano, como ser social, simbólico e his‐tórico. Coerente com seus conceitos psicológicos (teóricos) e metodológicos (meta‐teóricos). Psico‐lógicos como os de que “toda a palavra é já uma teoria”, um modo de generalizar a realidade, e de que a consciência se constitui justamente median‐te o significado da palavra. Metodológicos como o de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste sentido cabe dizer que no começo da ciência esta‐va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita de corpo inteiro, que o humano realiza o específi‐co da sua existência social e histórica, é possível deduzirmos que as palavras de uma abordagem passam, de algum modo, a ser constitutivas das pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐sam a trabalhar. Na medida em que nosso traba‐
lho é também e sempre um trabalho com os ou‐tros, os nossos valores, os valores da abordagem que assumimos justamente por serem condizen‐tes com os nossos ou por sentirmos que podem potencializá‐los, passarão a interagir com os valo‐res de nossos interlocutores, as pessoas com quem trabalhamos, tensionando com eles, numa relação em que nos enriquecemos mutuamente e nos refazemos constantemente, se para tanto houver disposição. Sobre o processo pelo qual nosso trabalho com‐põe‐se com nossa própria personalidade e a da‐queles com quem nele dialogamos, deixo uma última sugestão de reflexão sobre o chamado “método construtivo” em pesquisa psicológica. Vejo‐o como pertinente também para a prática profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐cava, na citação acima, sobre a articulação entre método de investigação e “prática psicotécnica”8. Vigotski diz que “um método construtivo implica duas coisas: (1) ele estuda antes construções do que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐trói um processo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 55). “Construções” aqui está como sinônimo de “pro‐cessos constituídos culturalmente”, aqueles que não são dados pela natureza em seu estado pri‐meiro, mas emergem nela, pela transformação dela mediante a ação humana, planejada, dirigida a metas, visando atender nossas necessidades básicas e as que criamos socialmente, para além delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐co‐culturais, símbolos, instrumentos, modos de usá‐los, relações humanas, papéis sociais, experi‐ências partilhadas, modos de organizar nossas rotinas, procedimentos institucionais ou a contes‐tação deles, enfim. Criações que, ao serem reali‐zadas por nós, realizam ao mesmo tempo o que somos. Trata‐se então de um método de investi‐gação, e porque não dizer de trabalho também, no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐bém os construímos culturalmente, com nossos atos, nossa linguagem e nossa sensibilidade. Tal
8 Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐técnica”, também traduzido como “psicotecnia” (em VIGOTS‐KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐a”, como se tornou comum no nosso contexto cultural. Ao contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente com relação à aplicação prática da psicologia frente às de‐mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no mundo do trabalho, etc.
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concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐rei de que a perspectiva iniciada por Vigotski se orienta para uma superação do academicismo em psicologia. Trata‐se justamente de uma psicologia que não recorre à “assepsia” para lidar com a rea‐lidade de seu trabalho, mas a toca “de mãos nu‐as”, assumindo com ela um compromisso de com‐posição partilhada. Dessa maneira os valores de que falamos aqui estão implicados na ação e no método, orientado às metas que eles definem. E abre‐se para nós o convite para produzir uma prática profissional do psicólogo que pronuncia uma “palavra que realmente significa e é respon‐sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196). 2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histórico‐cultural
“Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐cam o problema da psicologia geral como um problema de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não partem dos filósofos (...) nem dos psicólogos teóricos, mas dos psicólogos práticos, que estudam aspectos concretos da psicologia aplicada (...)”
— Vigotski (1927/1996, p. 203)
O conceito de psicologia geral na obra de Vigotski, tanto quanto na tradição russo‐soviética como um todo, diferencia‐se do conceito escolar de “psico‐logia geral” com o qual comumente lidamos nas faculdades dessa área, e que nos faz lembrar uma série de conteúdos introdutórios superficiais, não necessariamente conectados numa lógica teórica mais abrangente que lhes confira coerência. As‐sim, na psicologia acadêmica que conhecemos, “psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐mico por sobre um território desconhecido, do que como área científica relevante para o nosso trabalho do profissional. Na psicologia soviética o significado da palavra é distinto. Psicologia geral é o campo da ciência psicológica que trata de seus fundamentos, de seus princípios articuladores mais profundos, das categorias meta‐teóricas que visam organizar a discussão, como: o “objeto de estudo”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de análise” necessária para e investigação; e o “modo de proceder” a própria análise, ligado às interven‐ções sobre a realidade que ele comporta. Com inspiração nessa orientação, como eu já disse em outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐ta do psicólogo não é sinônimo de saber “introdu‐
tório” ou “abreviado” sobre cada aspecto da vi‐vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas o que implica uma visão articulada e profunda do conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐fundamento desses princípios se desenvolverá com o nosso estudo posterior, tendo em vista a prática social do psicólogo e os princípios éticos que a orientam. Organizei a exposição aqui se‐gundo os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐de psicofísica; (2.2) Princípio da determinação da consciência pela existência social; (2.3) Princípio da consciência como psiquismo propriamente humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐ciência mediante unidades; (2.5) Princípio da compreensão do psiquismo humano mediante sua gênese. 2.1 Princípio da unidade psicofísica Segundo Serguei Rubinstein “O princípio da uni‐dade psicofísica é o princípio mais importante da psicologia soviética” (1972, p. 40). Estamos habi‐tuados a formar a partir da palavra “psicofísica” a imagem do trabalho de laboratório com os aspec‐tos fisiológicos do funcionamento mental humano ou animal. Contudo, aqui o significado do termo posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐fico e de orientação genérica. Lembremos que “psikhe” para os antigos gregos era o “sopro vi‐tal”, nosso “impulso de vida”, “aquilo que nos move”, e depois para alguns também “alma” ou “mente”, e que “physis” denotava a natureza, todo o mundo natural. Intuiremos então que uma unidade entre o psíquico e o físico é a uma inte‐gração entre o que chamamos de funções mentais e a natureza como um todo. Dito de outro modo, nada na psique humana é considerado, nessa a‐bordagem, como “sobrenatural”, “sobre‐huma‐no”, substancialmente distinto do que compõe o âmbito tangível e inteligível do real. No que a perspectiva histórico‐cultural vai numa direção diferente de grande parte das psicologias surgidas no final do século XIX e desenvolvidas ao longo do século XX, as quais trazem fortes traços do dua‐lismo mente e corpo, psíquico e físico, herança platonista e cartesiana. O mesmo monismo, des‐tacado por Rubinstein, aparece também em Vi‐gotski, para quem “a psique não aparece isolada do mundo ou dos processos do organismo nem por um milésimo de segundo” (1926/1991, p.
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150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐posição, pois já entrou para o senso comum aca‐dêmico o conceito de que “o homem não é um ser biológico, mas sim social, cultural, histórico”. Tal oposição, embora esteja correta no seu sentido mais geral, não pode ser tomada ao pé da letra. Posto que sem a materialidade corporal, sem nos‐sos órgãos vitais, sem nossa existência material, também não há ser humano algum. O que a frase acima significaria, se apresentada de um modo mais criterioso, é que “a constituição biológica do homem é de tal ordem que ela não basta a si mesma e exige dele que disponha de recursos para além de seus traços orgânicos hereditários”. O animal Homo sapiens precisa recorrer a outros de sua espécie para realizar a sua existência, para fazê‐lo utiliza‐se de mediações próprias a uma dada cultura, criadas, transmitidas e desenvolvi‐das historicamente. O bebê humano não desen‐volve funções psíquicas superiores sem a media‐ção do outro e da cultura, linguagem e instrumen‐tos. Mas também, por mais meios culturais que déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐co para isso. O princípio da unidade psicofísica marca filosofi‐camente que somos uma totalidade psíquica e física, mental e corporal, biológica e cultural. E esses pares não jogam seus papéis complementa‐res como “substâncias” opostas de modo antagô‐nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só existem um em relação ao outro, contradizendo‐se e compondo‐se mutuamente, na medida em que juntos formam uma só realidade. Trata‐se, assim, de aspectos, momentos, modos de ser, de uma mesma substância, uma mesma unidade dinâmica, extremamente complexa e contraditória que é a realidade material – a totalidade da exis‐tência em suas múltipas determinações e diversos planos de organização. É interessante, nesse sen‐tido, o resgate de Vigotski à obra de Espinosa, ao valorizar o papel do corpo: “até hoje ninguém definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem que seria impossível deduzir apenas das leis da Natureza, uma vez considerada exclusivamente como corpórea, as causas das edificações arquite‐tônicas, da pintura e coisas afins que só a arte humana produz, e que o corpo humano não con‐seguiria construir nenhum templo se não estivesse determinado e dirigido pela alma, mas eu já mos‐trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o
corpo e o que concluir do simples exame de sua natureza” (apud VIGOTSKI 1925/1999, p. IX). É difícil para nós, habituados ao dualismo platônico e cartesiano presente na formação do psicólogo, concebermos isto: como pode um corpo produzir obras de arte? Como pode um ser humano produ‐zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐ma” que o guie? Mas entendamos apenas o se‐guinte: não se trata de que autor nos veja criando realidades culturais como se fôssemos “autôma‐tos”, sem imaginar, conceber, projetar, sem o ato de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo monismo de Espinosa entender que “o corpo age, pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐bém o sentir, das emoções mais básicas às mais sutis, tais quais as de cunho estético. Não preci‐samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐tural, insondável, inexplicável, incompreensível, para que nos reconhecermos capazes de realiza‐ções culturais diversas, no interior das leis dialéti‐cas da própria natureza, no sentido amplo da pa‐lavra, da qual não estamos isolados “nem por um milésimo de segundo”. Nesse princípio se apóia o posterior quanto às relações entre consciência e existência, sobretudo entendida como existência social. 2.2 Princípio da determinação da consciência pela existência social No tópico anterior destacamos que não estamos alienados da natureza, não somos seres sobrena‐turais, supra‐ordenados, reinando sobre toda a criação. Precisamos pertencer à natureza para nela poder viver e virmos a entender que estamos vivos, que morreremos. Fenômenos físicos são necessários para existir vida na Terra, fenômenos biológicos são constitutivos da vida humana, se não por inúmeras condições orgânicas, que seja tão somente pelo falto dela ser ainda “vida” – “bios” (βίος ). Mas a isto cabe acrescentar que o nosso modo de realizar um momento da realidade material da qual fazemos parte tem sua especifi‐cidade, sua singularidade, seu modo particular de ser e devir. Considerando a formação social da consciência como tema fundamental para a psico‐logia histórico‐cultural, podemos articular que não apenas somos parte viva da natureza, como tam‐bém nosso modo específico, distintivo de realizar nosso lugar dentro dela, ao mesmo tempo, nos
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diferencia das demais formas de seres naturais. Um traço marcante para tal distinção está no fato de que o homem é, como diz Aristóteles, “zoon politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐ção biológica nos dá bases para que isso ocorra: por um lado, pela fragilidade do nosso filhote que para se desenvolver e garantir sua própria exis‐tência demanda mais alguém com quem interagir por tempo prolongado; por outro, pela grande complexidade de nosso aparato neurofuncional, que nos permite a utilização complexa de instru‐mentos e signos e nos demanda que eles sejam utilizados para que nosso próprio cérebro se de‐senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐ção sistêmica. Sem entrarmos no mérito da dis‐cussão evolutiva sobre como essas características vieram a surgir gerando os primeiros seres huma‐nos, o fato é que somos animais para os quais a existência sobre o planeta não é possível sem as relações sociais. As quais por sua vez são media‐das pela linguagem, produto da própria prática humana e que se materializa na cultura e se transmite e se transforma de geração para gera‐ção. Sendo o homem frente à natureza não um “impé‐rio dentro do império”, como critica Espinosa (1979), mas um momento singular de realização dela, o pensamento marxista indica assim uma relação de determinação da consciência pela vida, entendida como vida social. No seu texto “A cons‐ciência como problema da psicologia do compor‐tamento” Vigotski diz que “a existência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37)9. Ele está parafraseando Marx e Engels em “A ideologia alemã”: “Moral, religião, metafísica e todo o res‐tante da ideologia e suas formas correspondentes de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐to de sua independência. Elas não têm história nem evolução; mas os homens, desenvolvendo sua produção material e seu intercâmbio material, alteram, a par disso, sua existência real, seu pen‐
9 Cito aqui versão russa apenas porque nessa passagem, a edição brasileira (VIGOTSKI, 1925/1996) contém um erro também presente na edição espanhola (VIGOTSKI, 1925/ 1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a experiência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/1996, p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI, 1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie) determina a consciência”.
samento e os produtos deste. A vida não é deter‐minada pela consciência, mas esta pela vida. No primeiro método de abordagem, o ponto de par‐tida é a consciência tomada como o indivíduo vivo; no segundo, são os próprios indivíduos vivos reais, tal como são na vida concreta, e a consciên‐cia é considerada unicamente como consciência deles" (MARX & ENGELS, 1983, p. 172 – grifo meu). Os aspectos ideológicos, culturais, não teri‐am história autônoma, posto que, são produções da existência humana, não existem independen‐temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que poderíamos acrescentar “o sentimento é o ho‐mem sentindo” ou “a atividade é homem agindo”, são movimentos nossos, são processos e não en‐tidades com vida própria. Quem toma consciência, sente e age é o homem. Mas quem é homem? Nessa abordagem, o homem, como já foi dito é um “ser social”. Digamos que só nesses termos podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o que ele é”. Dizer que o homem é um ser social requer ainda algumas especificações, pois há muitos sentidos e muitos modos de existir do social. Essa discussão, como as demais já levantadas, não se esgota aqui, mas para uma organização introdutória eu gosta‐ria de destacar apenas cinco planos articulados e interdependentes da existência social com os quais podemos trabalhar em psicologia histórico‐cultural, embora outros possam ser acrescentados e alguns deles tenham sido mais abordados que os demais nas obras de Vigotski às quais tenho aces‐so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐ais institucionais; (c) relações sociais grupais; (d) relações sociais intersubjetivas; (e) relações soci‐ais no plano do indivíduo, na dinâmica e estrutura de sua personalidade. Nas obras de Vigotski que tive oportunidade de ler, desses cinco pontos os três que mais se destacam e se explicitam são as relações sociais de classe, as intersubjetivas e aquelas no plano do indivíduo em sua personali‐dade social. Pensar na articulação com esses pla‐nos o papel dos grupos e das instituições é um desafio importante e atual, de todo modo isso não poderá se dar, nessa abordagem, sem integração com os demais processos, aos quais nos detere‐mos aqui. Em primeiro lugar a abordagem de Vi‐gotski a relação entre a formação e/ou desenvol‐vimento do psiquismo e a pertença do indivíduo a
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uma dada classe social não é mecanicista. Se a pertença de cada um de nós a uma classe nos deixa as marcas das práticas e da ideologia pró‐prias a ela, o que cada ser humano particular in‐ternaliza não são só os traços da formação coleti‐va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐ções pertinentes à luta entre classes no seio da sociedade como um todo. Vigotski, no seu texto “A transformação socialista do homem”, de 1930, entende que “do mesmo modo pelo qual a vida de uma sociedade não re‐presenta um todo singular e uniforme, e a socie‐dade é subdividida em diferentes classes, assim também, durante um dado período histórico, não se pode dizer que a composição das personalida‐des humanas represente algo homogêneo e uni‐forme, e a psicologia deve levar em consideração o fato básico de que a tese geral que foi formula‐da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão direta: confirmar o caráter de classe, a natureza de classe e as distinções de classe que são respon‐sáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas que são encontradas em diferentes sistemas sociais, têm sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐ra da psicologia humana naquele período históri‐co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sendo as rela‐ções sociais heterogêneas a formação da persona‐lidade também não será homogênea, assim para compreender os conflitos próprios à nossa consti‐tuição psíquica, cabe contextualizá‐los no âmbito dos conflitos sociais mais amplos que organizam as condições de nossa existência, e dos quais par‐ticipamos inevitavelmente, como dirigentes ou subalternos, como opressores ou oprimidos, como expropriadores ou expropriados, na vivência clara de cada papel desses ou na mescla de posições concomitantes ou alternadas entre um e outro, de modo consciente ou não consciente. A sociedade é heterogênea tanto quanto a personalidade, mas também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐cesso pelo qual se dão as transições recíprocas entre relações sociais de classe e relações sociais de um homem singular consigo mesmo. A relação entre indivíduo e sociedade não é de simples có‐pia ou repetição mecânica. Há transformações de um plano a outro. Isso coloca questões para a psicologia. Pois não basta saber que determinada pessoa é de classe trabalhadora ou burguesa para disso deduzir sua
personalidade, seu modo de agir, sentir e pensar, os significados e sentidos que atribui para o mun‐do, para os outros e para si. Senão vejamos o que diz também Vigotski em outro texto: “Queremos comparar o operário com o burguês. O fato não consiste como pensava W. Sombart, em que para o burguês o principal seja a avareza, em que tenha havido uma seleção biológica de pessoas avaras para as quais o fundamental é a mesquinhez e a acumulação. Admito que existem muitos operá‐rios mais avaros que os burgueses. A essência da questão não consiste em que o papel social se deduz do caráter mas em que, a partir deste, cria‐se uma série de conexões caracterológicas. Os traços sociais e de classe formam‐se no homem a partir de sistemas interiorizados, que nada mais são do que os sistemas e relações sociais entre pessoas trasladados para a personalidade” (VI‐GOTSKI, 1930/1996, p. 133). Não há um tipo de personalidade hereditariamente dado que tenda a ser pertencente a uma classe ou outra por suas aptidões inatas, isso é o mais óbvio, embora não menos verdadeiro. Mas também, e tão importan‐te quanto, cabe destacar que não há relação iso‐mórfica entre a pertença de classe e a formação do caráter e personalidade de cada um. Isso é mediado por relações complexas no seio de cada interação intersubjetiva que vamos estabelecendo em meio aos grupos de que fazemos parte, na família, na escola, nas práticas religiosas, nos cír‐culos de amizade, nas relações de trabalho, e as‐sim por diante – nos quais podemos conviver com classes distintas e apreender junto a elas também distintos modos de agir, sentir e significar, não sempre de todo condizentes com os interesses históricos de nossa própria classe social. Portanto, ao critério de relações sociais de classe, cabe a‐crescentar na perspectiva da teoria histórico‐cultural ainda o critério das relações intersubjeti‐vas, mediante as quais, modos de conversão das práticas sociais públicas em práticas simbólicas privadas são constituídos e postos em movimento. Como destacado por Melo (2001), duas contribui‐ções importantes da psicologia de Vigotski podem ser trazidas ao diálogo quando precisamos ampliar o conceito de relações sociais para além do de “relações sociais de classe”, mesmo este sendo fundamental. Trata‐se de: (a) sua formulação so‐bre a “lei genética geral do desenvolvimento”; e (b) sua formulação sobre a “psicologia do drama de papéis sociais”. A lei genética geral do desen‐
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volvimento, também conhecida como “lei da du‐pla formação”, geralmente é identificada na obra de Vigotski nos seguintes termos: “Um processo interpessoal é transformado num processo intra‐pessoal. Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro no nível social, e depois, no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmen‐te para a atenção voluntária, para a memória lógi‐ca e para a formação de conceitos. Todas as fun‐ções superiores originam‐se das relações reais entre indivíduos humanos” (VIGOTSKI, 1930/ 1989a, p. 64)10. A personalidade, dirá o próprio Vigotski (1931/2000a) não se pode confundir com cada função particular, nem é a mera junção arit‐mética de todas, mas uma síntese de ordem supe‐rior na qual o conjunto tem propriedades singula‐res e leis específicas com relação ao funcionamen‐to das partes isoladas. Nesse sentido é mais im‐portante o homem que tem essa memória, essa imaginação ou essa inteligência, do que tais capa‐cidades que o homem tem. Mas a personalidade como um todo também se desenvolve do interp‐síquico para intrapsíquico. Ora, resta deduzir que o desenvolvimento de cada pessoa no conjunto de suas relações com outras não pode se restringir a apenas uma só classe, um só grupo, uma só rela‐ção de pertença. Múltiplas possibilidades de cam‐pos interpsicológicos podem se estabelecer para cada um. Tal mulitiplicidade de relações intersub‐jetivas pode ser abordada teoricamente a partir dos conceitos de papel social e drama de papéis sociais. Nas suas anotações de 1929, depois chamadas pelos editores de “Psicologia concreta do ho‐mem”, Vigotski dialoga, entre outros, com o pen‐sador marxista francês de origem húngara Geor‐ges Politzer (1903‐1942). Este, em dado momento de sua pesquisa, na qual fazia a crítica da “psicolo‐gia abstrata”, dos clássicos do século dezenove, e o elogio de uma nascente “psicologia concreta”,
10 Os editores da coletânea na qual o texto citado foi editada, no Brasil intitulada “A formação social da mente”, dizem ser os quatro primeiros capítulos retirados de “O instrumento e o signo” – livro de 1930. Contudo, o conteúdo do capítulo é muito semelhante ao encontrado em “A história do desen‐volvimento das funções psíquicas superiores” – livro de 1931. Manteremos 1930, confiando nos organizadores da obra (COLE, JOHN‐STEINER, SCRIBNER e SOUBERMAN, 1989).
fala do seu conceito de “drama” e lança‐nos uma espécie de provocação: “O teatro deve imitar a vida? A psicologia, para escapar de uma tradição milenar e para retornar à vida, talvez deva imitar o teatro” (POLITZER apud GABBI JR, 1998, p. XII). Isto se relaciona ao conceito moderno de “dra‐ma”, pois se na antigüidade clássica essa palavra está relacionada aos textos que podem ser repre‐sentados no teatro, como “ação”, seja ela trágica ou cômica, na modernidade ela implicará princi‐palmente o conflito. Conflito entre algo de trágico e algo de cômico, e assim uma expressão mais fiel “da vida como ela é” – não como a de “deuses” e “heróis” (típicos das tragédias), nem como de seres “grotescos” ou “inferiores” (típicos das co‐médias), mas como a de “seres humanos”. Essa “vida como ela é”, em suas múltiplas determina‐ções, no choque entre diferentes papéis sociais possíveis para uma mesma pessoa real, seria o drama pertinente à psicologia concreta. Vigotski usará um exemplo fictício de um magistrado que deve julgar a própria esposa. Nessa situação críti‐ca ele vive ao mesmo tempo dois papéis: o de juiz que condena e o de marido que absolve. Em cada caso há uma hierarquia diferente de funções men‐tais, no primeiro a racionalidade tenta prevalecer sobre a afetividade, no segundo a hierarquia se inverte. Desse modo não se sabe o que prevalece‐rá e podemos dizer que nesse confronto surge uma “suspensão” ou “epokhé”, uma recorrência à dúvida, uma abertura ao imprevisível e ao mesmo tanto a demanda de uma ação deliberada, volitiva. A “psicologia dos papéis” de Vigotski convida a refletir sobre como eles se entrelaçam solicitando, possibilitando, ou impedindo, adiando, tais ações deliberadas. “O papel social (juiz, médico) deter‐mina a hierarquia das funções: isto é, as funções mudam a hierarquia nas diferentes esferas da vida social. Seu choque = o drama” (VIGOTSKI, 1929/ 2000, p. 37 – grifos na fonte). De todo modo, o foco está dado no fato de que em nós diferentes direções para a ação são possíveis em função de nossa inserção nas relações sociais que marcam nossos papéis (pai/filho; professor/aluno; subal‐terno/dirigente; livre/cativo; etc.), e com isso vi‐vemos um conflito com o qual se tecem nossos próprios sentidos para a vida. Tal conflito é tanto entre significados divergentes dos papéis opostos, quanto entre os sentimentos, conceitos e valores a eles amalgamados: “O drama realmente está repleto de ligações de tal tipo [conflitivo]: o papel
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da paixão da avareza dos ciúmes, em uma dada estrutura da personalidade. Um caráter divide‐se em dois (...) O drama realmente está repleto de luta interna impossível nos sistemas orgânicos: a dinâmica da personalidade é o drama (...) O dra‐ma sempre é a luta de tais ligações (dever e sen‐timento, etc.) Senão não pode ser drama, isto é, choque dos sistemas. A psicologia ‘humaniza‐se’” (VIGOTSKI, 1929/2000, 34‐35 – grifos na fonte). Podemos interpretar que a psicologia histórico‐cultural “retorna à vida” como quisera Politzer. Tal “humanização” da psicologia apresenta‐se assim como objetivo da proposta de Vigotski tanto no sentido axiológico (ético) como no epistemológico (científico). Para passarmos então das determina‐ções da consciência e personalidade humana pela nossa existência social mais geral, às suas dimen‐sões mais particulares, notamos que há media‐ções, transições e complexidade, interpõe‐se o intersubjetivo, e na sua realização concreta per‐cebe‐se o drama da vida humana. Nele se for‐mam, se desenvolvem, nossas funções psíquicas e a consciência como momento propriamente hu‐mano de organização das mesmas, de estrutura‐ção de nossa ação e pensamento, de vivência du‐plicada de nossos próprios sentimentos. É do que trataremos no próximo tópico. 2.3 Princípio da consciência como psiquismo pro‐priamente humano É bastante conhecida, e nem por isso deixa de ter valor, a chamada oposição de Vigotski a duas ten‐dências clássicas em psicologia, no final do século XIX e início do XX: o “mentalismo” e o “compor‐tamentalismo”. Segundo ele, ambas deixam de estudar cientificamente a consciência. A primeira porque a vê como importante, mas inexplicável a não ser pela apreensão direta de quem a vive. A segunda porque entende ser a consciência um fenômeno sem importância para a compreensão do comportamento que deveria ser explicado por fatores externos diretamente observáveis. Vigots‐ki sugere que este estado de coisas na psicologia é crítico, pois se está deixando de lado justamente o que diferencia o psiquismo humano do psiquismo animal, nossa consciência, nossa capacidade de observarmos a nós mesmos, como somos capazes de observar a outra pessoa, dentre as característi‐cas que nela podemos reconhecer. Tratarei aqui, de modo resumido, alguns pontos pertinentes ao conceito de consciência como psiquismo propria‐
mente humano: (a) consciência como conheci‐mento partilhado; (b) consciência como vivência de vivências; (c) consciência como reflexo e refra‐ção da realidade; (d) consciência como processo cognitivo e afetivo; (e) consciência e sua relação com os processos não conscientes. A noção de consciência como “conhecimento par‐tilhado”, advém da própria origem da palavra. Tanto em russo quanto em português, a etimolo‐gia remete ao latim “conscientia”, que dentre suas várias acepções, comporta tanto a idéia de “co‐nhecimento comum a muitos” (“co‐conhecimen‐to”), quando a de “reflexão, capacidade de distan‐ciamento” (“meta‐conhecimento”). Em Vigotski, as duas coisas estão intimamente ligadas. Sobre‐tudo, por a consciência só poder vir a existir em função de relações sociais, tal como dissemos acima. Ele afirma, a respeito deste tema, que é “impossível relacionar‐se diretamente consigo mesmo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 61), mas ape‐nas indiretamente, uma vez que “eu sou uma re‐lação social de mim comigo mesmo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 67). Além disso, utiliza de modo ilustrativo a alegoria de Pedro e Paulo, elaborada por Marx e Engels, a qual é retomada na íntegra em nota de Andrei Puzirei: “Ao simplesmente referir‐se à pessoa Paulo como alguém semelhan‐te a si próprio, a pessoa Pedro começa a referir‐se a si próprio como a uma pessoa. Mas até Paulo, como o todo de sua corporalidade paulina, torna‐se, para ele, uma manifestação da espécie ‘ho‐mem’” (MARX e ENGELS apud PUZIREI, 1989a, p. 74). Assim, a atribuição de características ao ou‐tro, no campo “interpsíquico”, cria as possibilida‐des de que as atribuamos a nós mesmos, como que num espelho sem o qual não podemos obter nossa própria imagem, já que não somos capazes de nos enxergamos por completo sozinhos. Ao mesmo tempo, há algo ainda mais abrangente: a capacidade de reconhecer ao outro e a si mesmo como componentes do gênero humano, numa identificação de quem somos nós em diferencia‐ção aos outros seres no mundo. O outro nos no‐meia primeiro, mesmo antes de nascer já pode‐mos ter um nome escolhido por nossos pais, de início as crianças podem se referir a elas mesmas do mesmo modo, pelo próprio nome, em terceira pessoa. Mas o ato de referir‐se ao outro como alguém que tem nome próprio poderá lhe possibi‐litar então perceber que também tem nome pró‐prio e que ele pode ser designado por um prono‐
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me pessoal singular na primeira pessoa: “eu”. O compartilhar o processo de comunicação e de significação sobre as posições das pessoas nas relações umas com as outras, permitirá a emer‐gência da consciência tal como determinada pela existência social. Podemos a esta noção acrescentar a de consciên‐cia como “vivência de vivências”, ou “experiência de experiências”, conforme a tradução. A “vivên‐cia” (uma tradução para “perejivanie”11), como veremos a seguir é uma unidade da relação “per‐sonalidade e meio”, uma unidade da consciência. Mas a consciência como tal, assim como é desdo‐bramento do conhecimento sobre o próprio co‐nhecimento, é ainda uma vivência duplicada. Não só viver por estar vivo, como vive ou sobrevive um animal, mas ter a experiência vital com relação ao próprio ato de viver e todas as implicações que ele comporta. Isso não significa exatamente um ato de domínio total sobre tudo que se passa em nos‐so viver, desde as sensações gerais que emanam dos órgãos dos sentidos (exterocepção), ou das nossas estimulações internas (propriocepção e interocepção), até os movimentos pelos quais se organiza a própria lógica de nosso pensamento. Não se trata de uma onisciência de nós mesmos, mas o sentir a experiência presente para nós mesmos, seja ela de qual fonte for, mesmo que não tenha ainda um nome preciso que a defina. Nossa apropriação do mundo e de nossos próprios estados corporais estará posta para nós não como algo que nos é totalmente estranho. Mas como algo com o que, ao nos estranharmos e perce‐bermos o peso de sua singularidade, poderemos, ao mesmo tempo, nos identificarmos e sentirmos como nosso. Vivo a emoção de passar por uma situação social intensa, de dor ou prazer, de ale‐gria ou tristeza, de esperança ou de medo, de frustração ou de realização, isso por si já é único. Mas, enquanto vivo, experiencio ainda o sentido
11 A palavra russa usada por Vigotski e outros autores como Rubinstein e Vasiliuk é “переживание” – “perejivanie”. Ela tem várias traduções, como: “experiência”; “experiência emocional”; “experiência vital”; “vivência”; “emoção”; “afli‐ção”; “provação”; dentre as principais. Eu adotarei “vivência” como na edição espanhola das “Obras Escolhidas” de Vigots‐ki, apenas por ser uma palavra que traz em si um radical para “vida”, e “perejivanie” em russo tem a ver com o verbo arcai‐co “jivat’”: viver. Não é necessariamente a mesma concepção de “vivência” da psicologia “fenomenológico‐existencial”, embora haja espaço para esse diálogo.
próprio dela para mim – naquela situação social dada num “aqui e agora”, mas também na memó‐ria posterior do já vivenciado, ampliação, redução, reinvenção do tempo‐espaço originário da vivên‐cia em si. Deste ponto, podemos nos ater à dupla caracteri‐zação da função da consciência como “reflexo e refração da realidade”. Na concepção de Vigotski a consciência é mediada pela linguagem, a lingua‐gem não é tida como sua mera forma de expres‐são exterior, mas como sua própria “substância” constitutiva, aquilo que lhe dá “corpo”. Falamos em “corpo” de modo metafórico, mas lembramos da poesia de Osip Mandelshtan citada por Vigots‐ki: “esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu pensamento, privado de sua substância, volta ao reino das sombras” (apud VIGOTSKI, 1934/1989c, p. 103). Sendo então a consciência um processo semiótico, ou seja, constituído por signos e signifi‐cação, podemos trazer para a compreensão dela a orientação de Bakhtin (1992) para quem todo signo “reflete e refrata a realidade”. Isto é, a lin‐guagem e, portanto, a consciência, são ao mesmo tempo capazes de nos proporcionar um espelho (reflexo) do real, fiel às suas contradições objeti‐vas, quanto de nos proporcionar imagens diver‐gentes (refratárias) destas mesmas contradições. Antes de me confrontar com a obra de Zaporojets (2002), importante colaborador de Vigotski, eu vinha compreendendo o duplo aspecto reflexi‐vo/refratário da consciência como análogo à no‐ção de “consciência como processo cognitivo e afetivo” (ver DELARI, 2000, p. 80‐103). Ocorre que para Rubinstein (1972), o aspecto cognitivo da consciência está em ser sempre “consciência de algo” (implicando a compreensão de uma dada realidade objetiva) e seu aspecto afetivo consiste em ser sempre “consciência da alguém” (sendo relacionada às suas necessidades e motivações subjetivas). Meu engano estava em pensar que sempre o aspecto emocional estivesse envolvido em uma “refração” do real, em dar um colorido particular à nossa leitura de mundo, que fizesse com que não déssemos conta da especificidade concreta do objeto apreendido, mesmo que esse objeto fosse uma ação nossa. Com a leitura de Zaporojets (2002) fui levado a repensar. Pois segundo ele, as emoções também têm a função de refletir a realidade, não são ape‐nas um modo irrealista de lidar com o mundo. É
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possível compreender isso quando um medo nos livra de situações desagradáveis, ou quando um sentimento de solidariedade nos permite estabe‐lecer alianças como alguém em função de um bem comum, ou quando um sentimento de responsabi‐lidade para com a fragilidade da vida de um bebê nos impulsiona a estarmos mais atentos no cuida‐do com ele. Assim o eixo refração/reflexão pode ter uma relação combinatória com o eixo afec‐ção/cognição, mas não são sinônimos. Diríamos por ora, que as emoções como aspecto inalienável da consciência e como mediadas pela linguagem, podem assim tanto refletir quanto refratar o real, e a cognição do mesmo modo. Podemos ter emo‐ções que não condizem com a realidade como uma cólera com quem não nos fez exatamente um mal efetivo, assim como podemos ter cognições que não condizem com a realidade, como uma teoria da conspiração de que o homem nunca chegou à lua. De todo modo, fica apenas registra‐do que a consciência em Vigotski não é um pro‐cesso de natureza exclusivamente cognitiva ou racional, e a emoção no homem é momento fun‐damental da formação de seu psiquismo: "O afeto é o alfa e ômega, o primeiro e o último elo, o pró‐logo e o epílogo de todo o desenvolvimento psí‐quico" (VIGOTSKI, 1932/2006, p. 299). Está então presente desde as formações sistêmicas mais bá‐sicas, como o choro de um bebê, às mais comple‐xas e sutis, como a responsabilidade moral para com a vida desse mesmo bebê que chora. Um suposto ser humano exclusivamente racional não poderia ter uma visão realmente realista do mun‐do, estaria alheio às possibilidades de composição que nos proporcionam mais ou menos avanço, potência ou impotência, prazer ou dor, alegria ou tristeza. Por fim, muitas vezes ligado ao tema das emo‐ções, vem o problema da “consciência e sua rela‐ção com os processos não conscientes”. Creio que já esteja claro que “consciência” em Vigotski tem um papel muito diferente que o chamado “consci‐ente” em Freud, sobretudo o da primeira tópica que é tido apenas como algo superficial e sem importância, uma “ponta do iceberg”. Quanto à segunda tópica não cabe nos pronunciarmos aqui, embora à consciência nela também não caiba alguma atribuição muito maior do que a de lidar com pressões de diferentes fontes. Mas se a me‐táfora histórico‐cultural fosse também com o gelo poderíamos dizer que a consciência em Vigotski é
mais como o turbilhão de água e gelo produzido quando um navio quebra‐gelo singra um mar gla‐cial. A consciência não está num lugar, num “to‐pos”, não é “tópica”, ela está mais para um movi‐mento, uma dinâmica, um poder de realização, como se pode deduzir dos parágrafos anteriores. Entretanto, a consciência não é tudo em nossa personalidade, mesmo para a psicologia histórico‐cultural, até porque não é a consciência que reali‐za o trabalho do homem, mas o homem que reali‐za seu trabalho conscientemente e ao fazê‐lo não pode estar consciente de todos os aspectos de sua ação, o que se ocorresse nos levaria a um colapso. O processo de agir conscientemente implica uma dialética com aspectos não conscientes da ativi‐dade. Segundo Vigotski na realização de um de‐terminado ato, “a atividade da consciência pode seguir rumos diferentes” (1934/1989a, p. 78)12. Tal foco não pode deter‐se todo tempo num só objeto, e não pode de modo algum deter‐se ao mesmo tempo em todos os objetos de seu campo de atuação e percepção. A própria análise do pen‐samento esquizofrênico leva Vigotski (1933/1987) a afirmar que a descontinuidade da consciência constitui‐se em uma de suas funções saudáveis, ou seja, para um pensamento crítico com relação ao real, é necessário “mudar de assunto”. Um pensamento cujo foco fosse indefinidamente o um mesmo tema discreto, ínfimo, insignificante, não seria o de uma consciência saudável. Ora, no fluxo de nosso pensamento não temos todo o domínio de como transitamos de uma associação a outra, a própria motivação para cada mudança de assunto nem sempre está clara para nós. Tudo isso já é sabido, porém cabe dizer que aqui não será de forma alguma esquecido ou ignorado, embora não nos apressemos em encontrar causas ocultas ou explicações míticas para como isso se dá. Como procurei destacar em outro lugar (DE‐LARI, 2001), Vigotski vê as formulações teóricas de Freud sobre o tema inconsciente como demasiado biologizantes, reconhecendo o mérito deste autor mais na formulação de boas perguntas do que nas
12 É sabido que o livro “Pensamento e linguagem” é uma junção de textos anteriores, feita por Vigotski em 1934, mas só os capítulos 1 e 7 são de 1934, os demais são de anos anteriores. Como no momento não tenho as datas dos de‐mais capítulos, os que forem citados aqui levarão a data original também de 1934. Posteriormente corrigirei essa imprecisão.
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respostas que dá a elas. Por exemplo, elogia a dúvida que se pretende responder com a hipótese da “pulsão de morte”, dizendo não ser caminho fácil, mas “uma trilha alpina sobre os abismos para aqueles que não padecem de vertigens” (VIGOTS‐KI, 1991, p. 303). Mas não vê aí resposta apropria‐da e enfatiza que “a ciência também tem necessi‐dade desses livros: livros que não descubram ver‐dades, mas que ensinem a buscar a verdade, ain‐da que não a tenham encontrado” (idem – p. 303). Certamente, a obra do próprio Vigotski como de outros clássicos que conhecemos é também as‐sim, muitas vezes mais instigante nas perguntas do que conclusiva nas respostas. Desse modo, aceitando constatações comuns e o valor das dú‐vidas que elas nos trazem, é interessante lembrar também um tema talvez menos comum. Trata‐se do problema da relação dos conteúdos e modo de operação da consciência com os seus motivos e sua orientação, os impulsos que animam e as me‐tas a que se dirigem nossas ações. Para Vigotski, como para Freud (ver VIGOTSKI, 1925/1999 e 1930/1987,), não há emoção inconsciente: não tenho como estar triste sem me entristecer, nem alegre sem me alegrar. A emoção é sempre um fato real e presente à consciência tal como desen‐volvida socialmente. Contudo, posso estar triste ou alegre, incomodado ou satisfeito, sem ter co‐nhecimento claro do motivo que me levou a estar. É uma idéia simples, mas importante, que nos conduzirá a discussões posteriores. Por ora, cabe‐ria apenas destacar que não temos domínio de todo o conjunto de relações sociais nas quais se constitui nosso drama de papéis, e os conflitos que lhes são próprios, mas a significação que da‐mos às coisas, aos outros e a nós mesmos, é cons‐tituída no interior de tais relações cuja totalidade nos escapa. Só isso já nos dará o que pensar, se concebermos o que não nos é consciente como tão social, histórico e cultural quanto nossa cons‐ciência, em sua dialética com ela. Poderíamos a isso acrescentar, portanto, a contribuição de Ba‐khtin (2004) de que a natureza mais profunda de nossos conflitos é essencialmente ideológica (va‐lorativa) e não biológica (instintiva), tal qual em outras abordagens. É quanto às motivações e ne‐cessidades sociais, aos valores ideológicos, i.e., próprios a uma “visão de mundo”, que nos per‐guntamos: quais as forças motivadoras dos nossos atos, como tomarmos consciência delas? Cabe lembrar que o tema da vivência se articula a
essa discussão. Segundo Vigotski: “toda vivência está respaldada por uma influência real, dinâmica, do meio com relação à criança. Desde este ponto de vista, a essência de toda a crise reside na rees‐truturação da vivência interior, reestruturação que radica na mudança do momento essencial que determina a relação da criança com o meio, isto é, na mudança de suas necessidades e moti‐vos que são os motores de seu comportamento. O incremento e a mudança dessas necessidades e apetências é o aspecto menos consciente e volun‐tário da personalidade e à medida que a criança passa de uma idade a outra, nascem nela novos impulsos, novos motivos ou, dito de outro modo, os propulsores de sua atividade experimentam um reajuste de valores. O que antes era essencial para a criança, valioso, apetecível, faz‐se relativo e pouco importante na etapa seguinte” (1933‐34/2006, p. 385 – grifo meu). No curso de nosso desenvolvimento nossas prioridades mudam, e não temos total domínio quanto ao acontecimen‐to dessas mudanças, pois ocorrem no enlaçamen‐to de linhas biológicas e culturais, que não criamos em absoluto e com as quais vamos criando a nós mesmos em nossas vivências. Isso não só na onto‐gênese com suas crises, mas também no interior de diversas outras crises próprias à nossa relação tensa com e na realidade física, biológica e social da qual somos componentes e compositores, mas não necessariamente de modo confortável ou harmonioso. Isto por ser a vida drama e drama ser conflito, por definição. Investigar o tema das ne‐cessidades, impulsos, motivos e, sobretudo, valo‐res, na dialética consciência/inconsciente torna‐se tarefa árdua e necessária para o desenvolvimento futuro da perspectiva histórico‐cultural. Tarefa para cujo cumprimento o suporte reside nos pró‐prios princípios comentados brevemente até aqui, ainda que seu desfecho nos ultrapasse. 2.4 Princípio da compreensão da consciência me‐diante unidades Podemos, portanto, definir consciência de dife‐rentes e complementares maneiras, como: “co‐nhecimento partilhado” (co‐conhecimento); “pro‐cesso reflexivo” (meta‐conhecimento); “vivência de vivências”; “ato de reflexão e refração”; e ain‐da “síntese afetivo‐cognitiva”. Mas cabe notar ainda que nada disso é dado para o homem de modo imediato, instantâneo. Trata‐se de caracte‐rísticas de nossa existência que se adquirem no
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curso de nossas relações com os outros, que se modificam ao longo do desenvolvimento biológi‐co‐cultural, com o suporte de distintas mediações. O conjunto das funções da consciência, não só em suas características gerais, mas também na articu‐lação das funções mentais, como memória, aten‐ção, vontade, percepção, raciocínio, e a própria linguagem que proporciona relações inter‐funcionais, é um todo complexo, dinâmico e sis‐têmico, semanticamente estruturado. Não temos como apreendê‐lo de modo direto, nem instantâ‐neo. A consciência de alguém só se nos dá a ver por pistas, indícios, processos de exteriorização que por sua vez já transformam o que antes de serem realizados estava posto na esfera privada do psiquismo dessa pessoa. Não podemos ter acesso direto ao ser do outro, tampouco temos acesso direto ao nosso próprio ser, mas indireto, mediado por palavras que com mais alguém a‐prendemos. Vigotski aborda esse problema não pela via da postulação de um incomunicabilidade a todo custo de um ser humano com outro, isto é, não pelo chamado “solipsismo”. Mas por uma via indireta. Não se pode dizer que não somos capa‐zes de estudar o átomo tão somente porque não podemos vê‐lo, que só o poderíamos estudar se ele nos afetasse os órgãos dos sentidos. Assim também não se pode abdicar do estudo da cons‐ciência, o que há de especificamente humano em nosso psiquismo, por não termos acesso direto a ela. Toma‐se um caminho indireto, aborda‐se o objeto de estudo mediante suas manifestações, e com apoio delas se busca reconstruir sua gênese. Nesse contexto, pode‐se colocar em pauta a dis‐cussão sobre as chamadas “unidades de análise”. A unidade, para Vigotski, diferente dos “elemen‐tos”, contém de modo condensado as principais contradições do todo. Como uma célula viva pos‐sui as funções principais de um ser vivo completo, como o processo de produção de valor de troca possui as contradições principais da economia capitalista. Contudo, se a célula pode ser uma unidade da biologia, e a produção de valor de troca uma uni‐dade da economia política, qual seria a unidade de análise da psicologia, para o estudo da consciên‐cia? Toda uma discussão sobre o método científi‐co se ergue em torno disso, em outras abordagens temos diversas unidades. Na própria psicologia marxista soviética, há mais de uma formulação e nem todos concordam sobre qual deveria ser essa
peça chave na compreensão da mente humana. Mas, atendo‐nos por enquanto apenas ao próprio Vigotski, entendamos que há duas formas princi‐pais dele mesmo compreender a unidade para a consciência, uma unidade que é tanto no sentido de como a consciência existe mesmo, se constitui, quando simultaneamente no sentido de como se a pode estudar. No campo das relações entre “per‐sonalidade e meio” essa unidade é a “vivência” (“perejivanie”13), no âmbito das relações entre “pensamento e linguagem” essa unidade é o “sig‐nificado da palavra”, “palavra significativa” ou simplesmente “palavra”, considerando que só pode ser palavra se tiver significado. No meu en‐tendimento não são “instâncias” separadas, pala‐vra e vivência compõem‐se mutuamente: com a palavra eu digo o que vivenciei; com a vivência minha palavra tem realmente o que dizer. Contu‐do, o campo das relações “personalidade e meio” não pode deixar de nos parecer mais vasto, posto que meio social está ainda em composição com o meio biológico e o físico, posto que a personalida‐de não envolve só o que é consciente, mas tam‐bém o que não é. Ainda assim, será só mediante a linguagem que esse campo vasto poderia deixar de ser apenas algo “em si” e tornar‐se também “para si”, isto é: não só existir como tal, mas tam‐bém para alguém, significando‐lhe algo, fazendo‐lhe algum sentido. Desta forma, o menos vasto não é de importância ontológica nem metodológi‐ca menor. Porém, pela ordem da exposição, co‐mentemos primeiro algo sobre a vivência como unidade e em seguida sobre o significado. Um dos principais momentos em que Vigotski discute a questão da vivência como unidade afeti‐vo‐cognitiva foi em uma comunicação oral sua, cuja transcrição posteriormente recebeu o título de “O problema do ambiente” (VIGOTSKI, 1935/ 1994)14. Ali Vigotski procura destacar que a influ‐ência do meio social sobre a criança não é absolu‐ta, mas relativa ao seu momento de desenvolvi‐mento e a assim à sua vivência. Isso não se aplica só às crianças, mas o exemplo prático trabalhado pelo autor é o de três crianças com dificuldades no processo educativo, que haviam presenciado o adoecimento da mãe, por alcoolismo, e todas as 13 Confira a nota “11”, p. 18. 14 Aqui também, a fonte só fornece o ano da primeira publi‐cação, mas não a data de quando o trabalho teria sido conclu‐ído.
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conseqüências desse processo nas relações dela com elas. O que ele argumenta é que com uma influência do meio relativamente estável, a doen‐ça da mãe, as crianças vieram a apresentar atitu‐des bastante diversas. O mais novo desenvolve “sintomas neuróticos”, subjugado pelo horror acaba por entrar em “estado de depressão com‐pleta e desamparo”. O segundo experimenta um “complexo de mãe‐bruxa”, no qual “o amor pela mãe e o terror pela bruxa coexistem” (VIGOTSKI, 1935/1994, p. 340), o que o levava a um compor‐tamento contraditório, como quando pediu para ser levado para casa, mas logo demonstrou terror quando se voltou a tocar no assunto. Por fim, o terceiro tinha habilidade mental limitada, mas “mostrou sinais de maturidade precoce, seriedade e solicitude” (VIGOTSKI, 1935/1994, p. 340), as‐sumindo um papel de “adulto da casa” e cuidando dos demais. Vigotski entende que “era uma crian‐ça cujo curso do desenvolvimento normal foi vio‐lentamente cindido, um tipo diferente de criança” (1935/1994, p. 341) cujos interesses não eram simples como os próprios de sua idade. Seriam esses alguns exemplos clínicos de vivências dife‐rentes, momentos de desenvolvimento distintos, mas, acima de tudo, sínteses diversas entre os momentos de desenvolvimento e as influências do meio social. Cabe ao psicólogo histórico‐cultural investigar e compreender tais vivências e não ao meio como índice absoluto, nem à bagagem gené‐tica como índice absoluto. Outro exemplo, dado por Vigotski no mesmo texto, de cunho mais geral, é o da influência da linguagem dos adultos sobre as crianças. Posto que o modo como os adultos falam uns com os outros na presença da criança, a estrutura gramatical, o vocabulário, etc., não é distinto para uma criança pequena, para uma pré‐escolar, uma escolar, etc., contudo a influência é distinta em cada momento. O processo de desen‐volvimento importa para a compreensão de como o meio social pode influir sobre a criança. Embora o desenvolvimento não seja uma força isolada, mas já um processo auto‐determinado geral que sintetiza tanto a influência do meio, quanto da herança. Tal idéia será apresentada talvez de mo‐do ainda mais dinâmico em outro texto do autor, também proveniente de uma conferência minis‐trada em Moscou, que se intitulou “a crise dos sete anos” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006).15
15 Já citado anteriormente para discutir a questão das mu‐
Nessa conferência o autor disse claramente: “po‐demos assinalar (...) a unidade para o estudo da personalidade e o meio. Em psicologia e psicopa‐tologia essa unidade se chama vivência. A vivência da criança é a aquela simples unidade sobre a qual é difícil dizer se representa a influência do meio sobre a criança ou uma peculiaridade da própria criança. A vivência constitui a unidade da persona‐lidade e do entorno tal como figura no desenvol‐vimento. Portanto, no desenvolvimento, a unida‐de dos elementos pessoais e ambientais se realiza em uma série de diversas vivências da criança. A vivência deve ser entendida como a relação inte‐rior da criança como ser humano, com um ou ou‐tro momento da realidade. Toda a vivência é vi‐vência de algo. Não há vivências sem motivo, co‐mo não há ato consciente que não seja ato de consciência de algo. Entretanto, cada vivência é pessoal. A teoria moderna introduz a vivência como unidade da consciência, isto é, como unida‐de na qual as possibilidades básicas da consciência figuram como tais, enquanto que na atenção, no pensamento não se dá tal relação. A atenção não é uma unidade da consciência, senão um elemen‐to da consciência, carente de outros elementos, com a particularidade de que a integridade da consciência como tal desaparece. A verdadeira unidade dinâmica da consciência, unidade plena que constitui a base da consciência é a vivência.” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006, p. 383). Nas funções psicológicas isoladas (atenção, pensamento, me‐mória, percepção), não se poderia ter uma síntese mais fiel do conjunto da ação da consciência. A vivência não é só o que pensamos, ou para o que estamos atentos, mas o ato integral do homem de pensar, atentar, sentir, lembrar, perceber, um dado momento de sua existência, produzindo sentidos para ela. Nessa direção, entendemos que a mediação da linguagem está presente na vivên‐cia como um dos modos de buscarmos compre‐ender a dinâmica da consciência da qual a vivência é uma unidade viva essencial. Assim, por um lado, a vivência é, como vimos, uma unidade cognitivo‐afetiva de interpretação e sentimento do real na qual a consciência realiza sua potência e ao mesmo tempo, portanto, uma unidade “personalidade e meio”, uma vez que a consciência também poder ser definida como “a
danças dos motivos, necessidades e valores na página 20.
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relação da criança com o meio” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006, p. 386). Por outro, a consciência enten‐dida como referente também a uma relação entre a linguagem e o pensamento terá como sua uni‐dade o “significado”, que é ao mesmo tempo um fenômeno da comunicação social e da organização sistêmica das funções mentais. Não é um tema de compreensão simples. Poderíamos imaginar que a linguagem fosse um aspecto do meio, e o pensa‐mento um aspecto da personalidade – para falar‐mos de modo didático sobre pares distintos que se inter‐relacionam. Assim, como nem tudo que é meio é linguagem, e nem tudo o que é personali‐dade é pensamento, seria uma distinção apenas quanto ao grau de abrangência. Contudo, como não se trata só de “combinação” ou “interação” entre os pólos distintos, mas de inter‐constituição e integração dialética, a divisão “{meio (lingua‐gem)} <‐> {personalidade (pensamento)}” é im‐precisa e insuficiente. Por quais motivos? Primeiro porque o ser humano faz parte de seu próprio meio e “seu meio nunca é externo para ele” (VI‐GOTSKI, 1933‐34/2006, p. 382), depois porque a própria personalidade já é definida como “o social em nós” (VIGOTSKI, 1931/2000, p. 337). Ou seja, ela não é algo independente, pré‐existente às relações com o meio que pela pressão ou permis‐são dele apenas “é modificada”, ou “modelada” como uma massa passiva antes indiferenciada que toma forma pela ação de uma força exterior. Dito de modo metafórico, a personalidade não seria como uma marionete de uma peça de teatro, sob o controle de uma manipuladora “sociedade”, seria mais como a encarnação do ator situado com relação aos demais na performance do drama da vida social, com toda tensão e conflito que ele envolve. De modo análogo, embora não idêntico, a lingua‐gem também não pode ser considerada como algo totalmente “externo a nós”. Quando eu ouço al‐guém falar, as suas palavras existem, por um lado, independentemente de mim: (a) de meu corpo, na materialidade sonora delas, como ondas, como energia que se propaga, etc.; (b) de minha vonta‐de, na sua especificidade semântica como posição ideológica de alguém, com história própria, que não se subordina à minha, mesmo que para falar‐me sempre leve em conta minha possível réplica. Por outro lado, nesse mesmo ato de ouvir, a lin‐guagem só se realiza: (a’) se é produzida em mim uma materialidade neurofisiológica que sustenta
minha audição e transpõe sua codificação para as áreas cerebrais correspondentes; tanto quanto (b’) se eu, além disso, atribuo sentidos para o que o outro pronuncia, no próprio ato de dirigir a ele minha réplica, com aprovação e/ou rejeição, com algum juízo de valor. Pensando assim, como dizer se a linguagem é algo do meio social ou de nós mesmos? Não seria ao mesmo tempo de ambos, até porque somos parte desse meio que não nos é externo? Não seria um fenômeno de “interface”? O mesmo ocorre ao falarmos com alguém: falo produzindo o signo de meu convite à réplica ao outro, mas a um só tempo ouço o que falo como que vindo de “fora”. O signo possui tanto “rever‐sibilidade” (pode originar‐se de mim e dirigir‐se também a mim) quanto “simultaneidade” (pode existir ao mesmo tempo em mim e não apenas em mim). O fenômeno ocorre em nossos cérebros, mas também para além deles, em ligações que Luria chamou de “extra‐corticais”. As fronteiras “interno” e “externo” na linguagem se diluem. Que dizer então do pensamento? Talvez, em com‐paração com os termos já comentados (personali‐dade, meio, linguagem), seja aquele ao qual mais comumente possamos atribuir uma característica privada, íntima, “interior” – pois “como saber realmente o que outra pessoa está pensando?”. Mas também o pensamento é fenômeno de inter‐face. Em primeiro lugar, porque para pensarmos é preciso pensar “sobre algo”. Não há pensamento “puro”, sem imagens, sem impressões, sem influ‐ências, sem voltar‐se à compreensão de alguma coisa que não seja só ele mesmo. Em segundo lugar, porque também é preciso pensar “de algum modo”. Não há pensamento sem modos de orga‐nizá‐lo, sem formas de construir um argumento, mediante recursos retóricos que se voltem ao convencimento e/ou à busca de consensos, etc. E tais modos de organização também não nascem conosco, precisamos aprendê‐los em práticas partilhadas com outras pessoas. Contudo, não por uma oposição externo‐interno, mas pela própria complexidade dos fatores envolvidos nas relações de constituição mútua entre pensamento e lin‐guagem, a noção do significado da palavra como unidade dessa relação se faz importante. Justa‐mente porque uma palavra significativa é tanto algo que pertence às relações sociais quanto aos processos de generalização do real próprios ao funcionamento do pensamento.
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Na palavra, o seu som ou traço escrito não são um fenômeno que se esgote em sua própria existên‐cia imediata, não são apenas uma “coisa” entre outras no mundo, que só pode nos afetar como estímulo aos nossos órgãos sensoriais. Ao contrá‐rio, na palavra, o som ou traço estão ali designan‐do ou significando algo que não eles mesmos, para além deles e que, mediante eles, de alguma maneira, torna‐se presente. Se alguém diz: “cho‐verá”, a palavra evidentemente não é a própria chuva, mas ela é capaz de nos indicar o que pode vir a acontecer. Se eu digo: “estive em Campinas”, também meus signos não têm sentido senão ao possibilitar a outrem posicionar‐se frente ao que digo, perguntando que fui fazer lá ou sugerindo que não lhe importa o assunto, por exemplo. As‐sim, a linguagem para significar demanda que seu componente sensorialmente presente remeta a algo que não está necessariamente presente no campo perceptivo. Seja por nossas palavras reme‐terem a algo distante no tempo e/ou no espaço: a chuva (aqui, mas depois); Campinas (lá e antes). Seja pelo dito/escrito não poder traduzir‐se por imagem sensorial tão nítida, mesmo acontecendo aqui e agora: a apreensão pela proximidade da chuva; a satisfação pela lembrança da viagem, etc. A palavra pode nos transportar à experiência da chuva ou da viagem, não apenas por ser feita de som ou traço, em si, mas por ter um “significado”. Chamemos de “significado” o processo de genera‐lização que nos permite vincular som/traço (signi‐ficante) com aquilo a que ele se refere (referente). Seja esse referente algo conversível em represen‐tação sensorial em nossa imaginação – como nu‐vens escuras carregadas para a chuva ou a dispo‐sição de estrelas junto à Lua num começo de noite em Campinas. Seja ele algo mais dinâmico e/ou abstrato – como os sentimentos de apreensão ou satisfação com relação à experiência vivida ou por viver. O significado, portanto, não é nem o objeto em si, nem o som/traço em si, mas a nossa ação semiótica em realizar algum modo de articulação entre os dois. Uma só palavra pode remeter e remete a diferentes objetos: a palavra “homem” não se refere somente a “este” ser humano que aqui vejo e nomeio, ela se torna para mim um conceito geral, aplicável mesmo para pessoas que ainda não vi ou jamais verei. Vigotski (1934/1987; 1934/1989b; 1934/2001) fala do significado como uma generalização ou um conceito. E a palavra não é palavra se não tem esse poder de generali‐zação, esse poder de remeter a outras realidades
que não são ela mesma, mas que mediante ela, de diversos modos, são evocadas, desde os mais sin‐créticos, desorganizados, aos mais conceituais, sistemáticos e ordenados. Por este motivo, dentre outros, o “significado” pode se tornar unidade de análise para as relações “pensamento e lingua‐gem”, unidade para a compreensão da consciên‐cia. Trata‐se, portanto, de um tema essencial na obra de Vigotski, e também repleto de desdobramen‐tos impossíveis de retratar detalhadamente aqui. Neste momento, como algo a retomar em segui‐da, vale destacar que junto ao conceito de signifi‐cado situa‐se o de sentido, o qual para Vigotski é uma “região” mais ampla da significação, sendo o significado só “um potencial, que só pode ser rea‐lizado na fala viva, e na fala viva o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido” (Vigots‐ki, 1934/1987 p. 276). A noção de sentido em Vi‐gotski também é social. Não se trata exatamente de que apenas o significado seja social e o sentido pessoal. Essa é uma forma de pensar, não é incor‐reta, mas também não é de todo precisa. Se para haver sentido é necessário haver linguagem, e se o sentido é algo próprio da linguagem não pode deixar de ser um processo tanto pessoal quanto social. Contudo, o que leva alguns autores a cate‐gorizar o sentido como algo predominantemente “subjetivo”, pode ser o fato de que o sentido im‐plica uma singularidade mais evidente para o nos‐so modo de sentir e compreender cada palavra, cada signo. O sentido atribuído por cada pessoa em particular para uma mesma “chuva”, para uma mesma “viagem”, cujo significado já múltiplo permite a composição de regiões semânticas par‐tilhadas, tende a ser ainda mais diverso e multifa‐cetado. O sentido é potencialmente único, no limite “intransferível” em sua totalidade, plasma‐do possivelmente à própria vivência singular de cada pessoa, um acontecimento que não se repe‐te. Ainda assim, não é totalmente precisa a afir‐mação de que ele não seja social em sua origem e funcionamento. Por um lado, porque para se fazer tão impar e multifacetado, o sentido comporta em sua realização já toda a trajetória de vida de al‐guém, na qual, junto aos outros, se constitui sua “visão de mundo” (ou ideologia, lato sensu) e está implicado o desenvolvimento de sua personalida‐de, social por definição. Por outro, porque sua definição envolve o reconhecimento de uma ten‐são constitutiva do processo de significação que
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realiza, tensão essa inerente ao drama de papéis sociais assumidos por cada pessoa, e ao ato afeti‐vo‐volitivo necessário para situar‐se nesse drama, assumindo papéis e posições, confrontando moti‐vações e necessidades concorrentes, transfor‐mando‐as em outras nesse mesmo ato, realizando escolhas imprescindíveis para a vida seguir seu curso. De qualquer maneira isso não diminui o lugar do significado, pois não está isolado da construção do “edifício” do sentido. Não é uma modalidade peri‐férica da significação, mas uma unidade que pode permitir‐nos compreender os campos mais am‐plos do sentido, da vivência e da própria consciên‐cia. De fato palavras como “chuva” e “viagem”, podem produzir inumeráveis efeitos de sentido, formações de sentido, em função de quem está falando, para quem, por quais motivos, com quais orientações, de que modo, com relação a quais referentes, e assim por diante. Contudo, o fato de haver um acordo social relativo à constituição dos campos semânticos para tais palavras, isto é, com relação que modalidades de generalização elas mais comumente são postas a produzir, não é impeditivo da singularidade dos sentidos, mas também uma das suas condições de possibilidade. O mesmo se pode dizer para quando é necessário nos fazermos, em meio a toda diversidade inesgo‐tável dos sentidos, entender por alguém, dizer‐lhe algo que posicione nossas motivações e necessi‐dades, nossas orientações e propósitos, nossos compromissos e valores, mesmo sendo eles algo tão nosso, tão privado, tão íntimo e intransferível. Assim tanto a difusão dos significados em senti‐dos, quanto a condensação dos sentidos em signi‐ficados, são momentos dialéticos de um mesmo processo que é a significação, ou a mediação se‐miótica, ambos os termos tomados em sua acep‐ção mais abrangente, como produção de significa‐dos e sentidos mediante o signo, mediante a pala‐vra como signo humano por excelência, seja ela falada, escrita ou gesticulada. Por fim, o tema da unidade de análise em Vigotski, do significado da palavra como unidade de análise é correlato ao da “palavra significativa” como “microcosmo”. Se‐gundo este autor: “A palavra se relaciona com a consciência (...) como a célula viva com o orga‐nismo, como o átomo com o cosmos. (...) A pala‐vra significativa é o microcosmo da consciência humana.” (VIGOTSKI, 1934/1989d, p. 208 – grifo na fonte). Quanto a esta passagem devo destacar
dois pontos: (a) certamente que a palavra não pode tomar todo o lugar da consciência, como célula e átomo não são mais importantes que organismo e cosmos; mas também (b) como uni‐dade viva ela não é algo simplesmente “utilizado” pela consciência de tal modo que pudesse de al‐guma maneira tornar‐se “dispensável”, ao contrá‐rio, a totalidade não se realiza sem sua unidade constitutiva. 2.5 Princípio da compreensão do psiquismo huma‐no mediante sua gênese histórica (origem e de‐senvolvimento) Discorremos no tópico anterior sobre duas unida‐des possíveis para a definição da própria existên‐cia da consciência (critério ontológico) e para a definição de como analisá‐la, compreendê‐la (cri‐tério metodológico). Discorrendo brevemente sobre o lugar do conceito de “significado” em Vigotski, pudemos tocar no tema das relações pensamento e linguagem, e das relações sentido e significado. Contudo, tal exposição fica devendo ainda a alusão a uma proposição que Vigotski considera um ponto central em sua teoria sobre as relações entre pensamento e linguagem. Refe‐rindo‐se a estudos realizados por seu grupo, diz que eles: “mostraram que tomando o significado da palavra como uma unidade do pensamento verbal nós criamos o potencial para investigar seu desenvolvimento e explicar sua característica mais importante nos vários estágios de desenvolvimen‐to. O resultado principal deste trabalho, contudo, não é esta tese por ela mesma, mas uma conclu‐são subseqüente que constitui o centro conceitual de nossa investigação, qual seja, a conclusão de que o significado da palavra desenvolve‐se. A des‐coberta de que o significado da palavra muda e se desenvolve é nossa maior e fundamental contribu‐ição à teoria do pensamento e da fala. É nossa principal descoberta, uma descoberta que tem nos permitido superar o postulado da constância e imutabilidade do significado da palavra que garan‐te os fundamentos das teorias anteriores do pen‐samento e da fala” (VIGOTSKI, 1934/1987, p. 245‐245 – grifo na fonte). O desenvolvimento do signi‐ficado das palavras é tratado ao longo de todo o livro “Pensamento e linguagem” (VIGOTSKI, 1934/1987; 1934/1989b; 1934/2001). Há duas formas importantes pelas quais tal processo de desenvolvimento é abordado: uma é o estudo dos “conceitos artificiais”, outra é o estudo da relação
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entre os “conceitos cotidianos e os científicos”. Sem entrar em detalhes, do primeiro tipo de estu‐do se deduziram três grandes modalidades de organização dos significados e/ou da relação pen‐samento e linguagem: (a) sincretismo (aglomera‐ção); (b) pensamento por complexos (associa‐ções); (c) conceitos propriamente ditos (sistemati‐zação). Para a criança pequena predomina a pri‐meira, para o adulto a última, mas ao longo do tempo ou num mesmo período elas se combinam também. Nada impede que nós adultos tenhamos compreensão sincrética de assuntos novos ou difíceis de aprender, nem que procedamos por associações assistemáticas ou pré‐conceituais em alguns temas. O segundo tipo de estudo foi o que procurou investigar as relações entre conceitos “cotidianos” e “científicos”. Disto se tiraram as conclusões gerais de que: os conceitos cotidianos avançam do concreto para o abstrato com ajuda dos científicos; já os científicos avançam do abs‐trato para o concreto, com ajuda dos cotidianos. É algo semelhante o que pode se passar com um grupo de estudos. Agora este texto pode estar abstrato, mas com ajuda dos exemplos cotidianos que vão surgir nas discussões eles poderão se tornar mais potentes, mais concretos, mais capa‐zes de aplicar‐se à vida, à profissão, e de ajudar a organizá‐las. Isso será retomado constantemente. Por ora, apenas nos cabe deduzir que se a unidade para a análise da consciência humana é um pro‐cesso que se desenvolve, a própria consciência também não permanece imutável ao longo de nossas vidas. Desenvolver‐se é uma propriedade fundamental da consciência tanto quanto de sua unidade de análise. Ela se transforma não só quanto aos seus conteúdos, objeto de sua ação e simbolização, mas também quanto aos seus mo‐dos de organizar‐se, em sua dialética entre forma e conteúdo. A consciência transforma‐se, desen‐volvesse‐se ao longo de períodos sucessivos dife‐renciados, passa por transições críticas entre eles e se constitui, num momento atual (sincrônico) de seu funcionamento, da articulação entre suas aquisições anteriores e seu potencial futuro, em relação com os outros. Do mesmo modo, com respeito a todo psiquismo humano, a abordagem histórico‐cultural, busca compreender sua forma‐ção social como processo de desenvolvimento, auto‐determinado e inter‐determinado, múltiplo, complexo e que não se dá de modo linear, mas “revolucionário”, na dialética entre linhas “evolu‐
tivas” e “involutivas”. Tal processo envolve, por‐tanto, avanços e retrocessos, períodos de aquisi‐ções gradativas, acúmulos quantitativos, mas também momentos de crise que podem rumar para pontos de culminância nos quais se realizem sínteses dialéticas, pontos de virada, guinadas, saltos qualitativos, nos quais as nossas motiva‐ções, orientações e valores se modificam, inver‐tem‐se, subvertem‐se ou convertem‐se em ou‐tros, como vimos anteriormente16. Dito isso, po‐demos destacar ainda, brevemente, mais alguns princípios metodológicos gerais que caracterizam a orientação da teoria histórico‐cultural para a pesquisa das funções psíquicas superiores, isto é, propriamente humanas, mas que no nosso ponto de vista são de valor primordial também para a prática profissional como um todo. No capítulo 5 da coletânea “A formação social da mente”, são apresentados por Vigotski (1930/ 1989b), três parâmetros básicos para pesquisas psicológicas que se proponham a compreender seu objeto de estudo do ponto de vista de sua gênese, sua origem e desenvolvimento histórico: (a) a análise de processos e não de objetos; (b) a explicação dinâmico‐causal e não apenas a descri‐ção; e (c) investigar processos aparentemente “fossilizados” mediante a reconstituição da sua origem viva. O parâmetro “a” nos sugere que as funções psíquicas, assim como o homem no qual a síntese viva delas se realiza, não podem ser trata‐das como “coisas” que tão somente se possa me‐dir ou pesar, como algo estático e imutável. Fun‐ções psíquicas não são objetos, mas potências, modos de agir, sentir e pensar, cabendo conside‐rá‐las sempre em seu movimento, nas transfor‐mações que as tornaram aquilo que são, e que já as estão tornando aquilo que serão. Uma apreen‐são instantânea de qualquer manifestação psíqui‐ca isolada da processualidade da atividade huma‐na, não poderá ser suficiente para compreender a dinâmica que a gerou, tampouco aquilo que agora ela é e pode vir a ser. Isso conduz ao parâmetro “b” que indica, em Vigotski, uma diferenciação entre “explicar” e apenas “descrever”. Para expli‐car também é preciso descrever, mas esse é um movimento insuficiente para a explicação. Descre‐vendo superficialmente uma baleia podemos igua‐lá‐la a um peixe, ou falando das características
16 Ver página 20.
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externas de um morcego, poderemos igualá‐lo a um pássaro. Mas do ponto de vista de sua origem, baleia e morcego são os mais próximos um do outro do que dos pares similares em sua aparên‐cia. Vigotski recorre à contribuição de Marx, para quem “se as aparências coincidissem com a es‐sência, a ciência não seria necessária”. Assim ex‐plicar é buscar a essência, e a isso só se chega pela compreensão da gênese, origem e desenvolvi‐mento. Quanto ao parâmetro “c”, trata‐se tam‐bém de algo que se desdobra do dito anterior‐mente. Contudo, o foco está em que pode haver comportamentos, hábitos motores ou intelectu‐ais, modos de organizar talvez nossos próprios sentimentos, que tenham se tornado já tão auto‐máticos, aparentemente tão “naturais”, que não percebamos que tiveram uma origem histórica, social, cultural, mediada. Assim a tais organizações “cristalizadas” do funcionamento psíquico, Vigots‐ki nomeou com a metáfora do “fóssil”. Um fóssil é algo sem vida que trás as marcas de que algo vivo esteve ali antes e lhe deu origem. Contudo trata‐se de algo apenas aparentemente sem vida. O papel do psicólogo é reconstituir a origem media‐da e viva desses processos tornados “imediatos” e “sem vida”. Na fusão desses três parâmetros reside a análise “genético‐causal”. Ela estuda processos e não só objetos. Busca as causas e não só os efeitos, a explicação e não só a descrição, a essência e não só a aparência, bem como o vivo e não o fossiliza‐do. Ela o faz pelo recurso ao estudo da gênese. Uma última consideração sobre a abordagem dos fenômenos pela gênese, ou, se preferirmos, por sua história, é a de que há, pelo menos, quatro planos (ou domínios) genéticos, conceitos de his‐tória, encontrados nas pesquisas de Vigotski, por parte de seus estudiosos contemporâneos (ver WERTSCH, 1985; e SCRIBNER, 1985). Aqui os no‐mearemos como: filogênesse; sociogênese; onto‐gênese; e microgênese. A filogênese define‐se como história do desenvolvimento da espécie. Esse domínio diz respeito ao longo processo evo‐lutivo pelo qual viemos a surgir como espécie com traços distintivos decisivos para a organização biológica que possuímos hoje. Organização neces‐sária, mas não suficiente para nos desenvolver‐mos como indivíduos, já que se trata justamente de uma constituição orgânica de grande plastici‐dade e abertura às transformações próprias da cultura. Vigotski (1931/1989) ressalta que do pon‐
to de vista da espécie todos os grupos culturais possuem o mesmo aparato e, portanto, o mesmo potencial para desenvolver o que qualquer ser humano é capaz de desenvolver. As diferenças entre os sucessos ou insucessos dos povos nada teriam a ver com os indivíduos que os compõem terem menor ou maior capacidade orgânica para desenvolver este ou aquele aparato simbólico ou técnico. Chamaremos de Sociogênese a própria história do desenvolvimento dos diferentes gru‐pos sociais, ou seja, a história no sentido mais específico do termo, a história humana. Certa‐mente, mesmo pertencendo todos os seres hu‐manos à mesma espécie, as sociedades têm suas características culturais distintas, seus códigos peculiares, seu próprio domínio da técnica e da linguagem. Assim também uma mesma cultura, ao longo do tempo, terá sua própria trajetória, sua tradição específica, avanços e retrocessos, sua formação política, seus inimigos e aliados, seus conflitos internos e com outros povos, seus dispo‐sitivos de controle e suas lutas por emancipação, e assim por diante. Certamente, ao longo desse longo tempo histórico, formas de significar o mundo são desenvolvidas, modos de educar os mais novos, tanto quanto. De modo que a forma‐ção social do psiquismo individual também decor‐re das propriedades esse plano genético, embora não sejam coincidentes. Chamamos de ontogênese a história do desenvol‐vimento do ser humano singular. Trata‐se do pro‐cesso histórico que compreende todo o tempo de vida de uma pessoa, de um indivíduo, de um ser único. Para Vigotski “de nenhuma maneira (...) a ontogênese repete de alguma forma ou reproduz a filogênese ou constitui seu paralelo” (1931/ 1989, p. 93). Não repete basicamente pelo motivo de que ao surgirem os primeiros representantes adultos da espécie Homo sapiens, havia ainda adiante deles todo o desenvolvimento histórico das civilizações e culturas humanas por se dar. Enquanto que a criança em seu desenvolvimento ainda não é um adulto em termos biológicos, mas já está imersa numa cultura com todo seu acúmu‐lo simbólico e técnico disponível para ela – fun‐dindo‐se seu desenvolvimento biológico com o da apropriação dos meios culturais que a sociedade lhe fornece. Num exemplo prosaico, poderíamos imaginar que para a humanidade ter chegado ao domínio da tecnologia que permite criar os com‐putadores teve que passar por um longo avanço
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técnico, desde o domínio do fogo, à siderurgia, à eletrônica, etc.. Entretanto, é bem provável que a uma criança seja primeiro permitido usar um mouse ou teclado de micro‐computador do que lidar com um fogão de cozinha ou uma churras‐queira. A ontogênese do psiquismo humano não repete as mesmas etapas pelas quais a humanida‐de passou, justo por nossa capacidade de intera‐girmos desde crianças com um mundo cultural já constituído – com instrumentos, técnicas e siste‐mas de linguagem que jamais descobriríamos ou criaríamos sozinhos numa só geração, dos quais podemos nos apropriar no tempo de apenas uma vida humana, com ajuda de outras pessoas já inse‐ridas na cultura, e das práticas sociais nas quais ela se organiza. O tema da ontogênese está articu‐lado ao da periodização do desenvolvimento. Muito se discutiu sobre Vigotski conceber ou não o desenvolvimento em termos de “fases”, por tal conceito em geral ser muito ligado à idéia bastan‐te criticada de uma “universalidade”, ou caráter “trans‐cultural”, das mesmas fases, cuja explica‐ção remeteria, via de regra, à determinação bioló‐gica no sentido restrito do termo. É certo que Vigotski não concebe fases do mesmo modo que Piaget ou Freud, contudo também é certo que assume a existência de distinções qualitativas entre os diferentes momentos de vida do indiví‐duo. Vigotski não apresenta termos como “perío‐do sensório‐motor, pré‐operatório, operatório concreto e operatório formal” (Piaget), nem como “fase oral, anal, fálica, período de latência e fase genital” (Freud). Em geral nota‐se que ele fala em termos mais prosaicos como “crianças pequenas”, “crianças pré‐escolares”, “crianças escolares”, “adolescentes”, “adultos”. Mas tais termos não ganham, digamos um estatuto de rótulo fixo para cada idade, e cada idade não deixa de ser com‐preendida em função das relações sociais que lhe são predominantes e com as quais estão articula‐das as principais mudanças no desenvolvimento. Como as relações afetivas com os pais para as crianças pequenas, a brincadeira para as pré‐escolares, a escolarização para as escolares, a eleição de um projeto de vida para os adolescen‐tes, a atividade trabalho para os adultos, por e‐xemplo. De qualquer maneira, cabe lembrar o já dito anteriormente, quanto ao ser humano ser componente das próprias relações sociais que o impulsionam para novos patamares de desenvol‐vimento. Além disso, um delimitador para as mu‐
danças qualitativas no desenvolvimento ontoge‐nético, pode ser encontrado no conceito de “crise de desenvolvimento”. Segundo estudiosos de sua obra, Vigotski indicou que “o processo de involu‐ção domina sobre o de evolução durante os perí‐odos etários de ‘crise’. Contudo, cada ‘crise’ tem seu próprio ‘ponto de culminância’ (kulminatsion‐naia totchka) que é o locus no qual a síntese dialé‐tica se completa” (VALSINER e VAN DER VEER 1991, p. 9). Além disso, “os pontos exatos de início e fim das crises não podem ser noticiados de mo‐do exato, mas os períodos durante os quais as transformações atuais das estruturas psicológicas têm lugar podem ser definidos por causa de sua aparência desorganizada e natureza caótica. Seis períodos de crise no desenvolvimento da criança foram sublinhados por Vigotski: aquele da idade dos recém‐nascidos, o primeiro, o terceiro, o sé‐timo, o décimo terceiro, e o décimo sétimo anos. É durante estes períodos que a emergência de níveis mais elevados de organização psicológica têm lugar” (VALSINER e VAN DER VEER, 1991, p. 8). Tais pontos de “culminância” podem ser vistos como pontos de “mudança de rumo” e não como um ápice que atingido estabeleceria pleno equilí‐brio, total ausência de tensão, suspendendo o drama da existência humana. Justamente pela visão de alternância nas relações de predominân‐cia entre as linhas e fatores de desenvolvimento, e não um avanço de simples superação progressi‐va linear, cabem ainda algumas considerações com relação à “ontogênese”. Leitores contempo‐râneos dos conceitos de Vigotski sobre este domí‐nio genético ressaltam não haver “modelo ideal” de desenvolvimento a ser atingido por todas as pessoas. Tampouco a criança é vista como “ape‐nas alguém que ainda não atingiu esse modelo”. Cada momento de nossas vidas, singular no tempo e espaço, tem seu próprio valor, seu modo de ser e significar, suas motivações e necessidades. Con‐tudo, também vale lembrar que Vigotski estava ocupado em pensar uma educação, uma interven‐ção social sobre o desenvolvimento que contribu‐ísse para a conquista e manutenção de uma vida tão saudável e autônoma quanto possível. Por certo, se não há “modelo ideal” de desenvolvi‐mento, “etapa final” preconcebida a ser necessa‐riamente atingida, também não é qualquer moda‐lidade de relação social que se incentiva, como aquelas mais coercitivas e limitantes que a injusti‐
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ça social, a intolerância e o abuso de poder im‐põem a muitas pessoas, inclusive às que têm me‐nos força física para se defender. Ter clareza de que o ser humano sempre se desenvolverá de algum modo, atribuirá sentidos às coisas, mesmo que sofra severas adversidades, não é o mesmo que assumir um relativismo de que todo e qual‐quer modo de as pessoas conviverem com as ou‐tras seja igualmente desejável e aceitável do pon‐to de vista de nossos valores éticos e nossa visão de mundo. Por fim, o termo microgênese refere‐se à história do desenvolvimento de processos psíquicos parti‐culares de dada pessoa junto a outras num inter‐valo de tempo relativamente curto. Por exemplo, o aprendizado de regras necessárias para solucio‐nar um problema lógico‐matemático novo, a com‐preensão e uso de táticas até então desconheci‐das para se participar de um jogo de estratégia, o ato de emocionarmo‐nos com a leitura de um livro ou uma peça de teatro, podem envolver processos microgenéticos. Pois funções psíquicas estão em jogo na aprendizagem de regras ou procedimen‐tos assim como na fruição da obra de arte. Diga‐mos, ainda, que atos de “tomada de consciência” com relação a um conceito relevante para nossa atuação profissional, a direitos nossos como cida‐dãos ou ainda à concepção quanto aos nossos cuidados com a saúde, também podem ser vistos como “ponto de culminância” de processos mi‐crogenéticos. Trata‐se, por assim dizer, da onto‐genênese “em ato”, realizada no tempo presente, e “em potência”, abrindo caminhos para a aquisi‐ção do novo, num futuro próximo17. Não é algo
17 O avanço do desenvolvimento humano em termos ontoge‐néticos e microgenéticos pode ser conceituado, em Vigotski, como relativo à chamada “zona blijaishiego razvitia”. Termo que literalmente pode ser traduzido como “A zona do desen‐volvimento mais próximo”, mas que tem ganhado diferentes traduções para fins editoriais, como: “zona de desenvolvi‐mento proximal” (da trad. americana); “zona de desenvolvi‐mento próximo” (da trad. espanhola); “zona de desenvolvi‐mento imediato” (da trad. brasileira de Paulo Bezerra); e “zona de desenvolvimento eminente” (da trad. brasileira de Zóia Prestes). Em Vigotski, a ZBR indica a “distância” entre o desenvolvimento “real” (posto em jogo pela pessoa em sua atividade individual) e o desenvolvimento “potencial” (emer‐gente da atividade partilhada da pessoa com alguém mais experiente que lhe proporciona mediações necessárias para extrapolar seus limites individuais) (VIGOTSKI, 1935/1989). Para Leontiev (1989) na ontogênese há mudanças na “ativi‐dade principal”, que não é a que ocupa necessariamente mais
“instantâneo”, pois gênese envolve duração, pro‐dução e não “criação do nada”. Mas subentende‐se que inscreva‐se num tempo relativamente bre‐ve, articulado com processos concomitantes. Co‐mo nos domínios citados antes, o foco principal não é a culminância, mas o próprio processo. Con‐tudo, na ontogênese as crises de idades podem dar talvez mais visibilidade sobre o curso geral do desenvolvimento. A investigação dos diferentes momentos de um processo microgenético parece mais exeqüível se notamos que a ontogênese é um processo que dura o tempo de toda uma vida e por vezes só a vislumbramos retrospectivamente. Por outro lado, a microgênese, por sua dinâmica e simultaneidade de diferentes aspectos inter‐funcionais em jogo, também coloca dificuldades se pretendemos noti‐ciar seu exato surgimento, seus diferentes e des‐contínuos momentos constitutivos (avanços, re‐trocessos, mudanças) ou sua exata “conclusão”, ponto de culminância ou “mudança de rumo”. Como a vida é ininterrupta e as conquistas e per‐das anteriores estão sempre envolvidas no modo de funcionamento atual, nem sempre será possí‐vel discernir claramente tal gênese. Ainda assim, os processos microgenéticos emergem como im‐portante objeto de pesquisa e talvez também foco de atuação profissional. Estudiosos vêm desenvol‐vendo a chamada “análise microgenética” como aporte metodológico rico em possibilidades. Vol‐taremos a esse ponto em breve. Por ora, estes são os princípios teóricos básicos em psicologia geral de orientação histórico‐cultural que nos coube destacar. Em seguida trataremos de refletir sobre sua ligação bem como a dos princípios éti‐cos com a reflexão sobre a atuação do psicólogo.
tempo, mas aquela com a qual se relacionam as principais mudanças no desenvolvimento. O jogo de papéis na idade pré‐escolar, e a instrução na idade escolar, são exemplos de atividades principais. Pode‐se relacionar a ZBR com tais ativi‐dades: o jogo gera ZBR (VIGOTSKI, 1933/1989), o processo de ensino‐aprendizagem escolar gera ZBR (VIGOTSKI, 1935/ 1989). Ademais, as relações afetivas com a mãe para o bebê e os sonhos com um projeto de vida para o adolescente tam‐bém são considerados fonte de ZBR (VALSINER, com. pessoal, jun. 1992).
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3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa abordagem histórico‐cultural. “O princípio da prática e sua filosofia se impõem uma vez mais: a pedra que foi rejeitada pelos construtores, esta veio a ser a pedra angular”18
— Vigotski (1927/1996, p. 346) O que vem por último na exposição não é o menos importante, e pode fazer‐se a pedra angular de todo nosso trabalho, sem a qual sua arquitetura se torna frágil. Cabe dizer, contudo, que na cons‐trução de um edifício teórico é preciso evitar tan‐to excessiva flexibilidade, quanto excessiva rigi‐dez. A primeira, para não abrirmos mão daquilo sem o que nossa visão de mundo em nada se dife‐renciará do senso comum ou da alienação. A se‐gunda, para não nos afeiçoarmos a certas formu‐lações dogmáticas, que tudo devem “explicar”, às quais tentemos fazer a realidade se adequar para não contradizê‐las. Não é para isso que devem servir as teorias, senão para permitir compreen‐der a própria realidade, tanto quanto possível, como ela é, mesmo que não seja como imaginá‐vamos ou desejávamos que fosse – e é a isso que chamamos de “crítica”. É um desafio colossal pen‐sar a dimensão prática de todo e qualquer enunci‐ado teórico, e nenhuma abordagem em psicologia é ainda hoje capaz de fazê‐lo sem deixar alguma lacuna ou forçar a situação. No entanto, o modo possível de articular os princípios com a prática não há de ser o de tudo operacionalizar previa‐mente, o de tudo colocar em termos de técnicas ou procedimentos especificamente desenhados para toda e qualquer situação imaginável – tiran‐do do profissional a capacidade de analisar criti‐camente as situações diversas e formular seus próprios planos de trabalho para agir com relação a elas. Como há muito se tem tido, nos cursos de psicologia, “não estamos numa profissão que para tudo tenha receitas de bolo”. Ou hoje se diria “não temos para cada relação humana um algo‐ritmo computacional”. Mas essa é apenas parte da verdade. Pois também está claro que não dar qualquer orientação sobre a atuação prática e simplesmente dizer ao profissional que ele deve
18 Vigotski está deve estar se referindo ao Salmo 117, ver. 22 (para os judeus salmo 118). O mesmo verso que é retomado numa fala de Jesus, narrada no Evangelho de Mateus, cap. 21, ver. 42.
“usar a sua criatividade”, certamente não é a ati‐tude mais correta. Como diz Vigotski (1930/1987), a imaginação tem como sua fonte a realidade e a experiência acumulada. Deixar tudo ao critério de um abstrato “ser criativo”, sem necessidade de pesquisar, estudar, passar por experiências ante‐riores, pode nos condenar a só repetir o já apren‐dido sem necessidade de ciência alguma. Corren‐do o risco de ficar‐se no senso comum e, por fim, propor o que poderia ser feito sem que estivés‐semos lá, sem que a psicologia como ciência fosse necessária. Assim nos colocamos diante de um desafio, não podemos fornecer um algoritmo, mas também não podemos nos omitir de pensar sobre a ação, discutir a ação, formular exemplos de mo‐dos possíveis de agir. O caminho que adotei aqui é intermediário entre a teoria e a técnica. Não pro‐porei para cada princípio teórico anterior uma técnica que o realiza, pois isso seria demasiado artificial, sem o contexto da atuação de cada pes‐soa. Mas, ao mesmo tempo tentarei traduzir os princípios de psicologia geral em breves reflexões sobre atitudes necessárias ao agir do psicólogo que se orienta pela abordagem histórico‐cultural em psicologia, tal como a concebo hoje, neste momento histórico. Reflexões que o convido o leitor a fazer e refazer comigo. Façamos, então, um exercício de pensar as diretri‐zes de ação profissional do psicólogo condizentes com cada um dos princípios éticos e teóricos cita‐dos antes já aqui neste texto.
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PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA I ‐ Princípios éticos O psicólogo pode trabalhar: 1 ‐ Critérios axiológicos: * Orientando seu método por suas metas
a) O valor da superação * Em função de metas que vão além dos limites individuais atuais das pessoas e
dos seus próprios – participando da produção de “zonas de desenvolvimento proximal”19.
b) O valor da cooperação * Propondo modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns con‐tribuam para a superação dos limites dos outros e as dos outros para a superação dos de cada um.
c) O valor da emancipação * Sugerindo, proporcionando e participando de atividades que permitam às pes‐soas ampliar os limites de sua autonomia, sua capacidade de compor, de superar criticamente superstições, de propor alternativas e engajar‐se ativamente em ações para concretizá‐las.
2 ‐ Critério ontológico pa‐ra a ética:
* Dimensionando suas metas no horizonte dos limites e possibilida‐des históricos
d) A historicidade dos valores * Avaliando criticamente a possibilidade de agir em conformidade com seus prin‐cípios e a tensão que isso envolve. * Não utilizando meios contrários aos fins a que se propõe. * Sabendo que fins sem meios que os realizem tornam‐se fins inócuos. * Compreendendo as contradições presentes no espaço de intervenção entre o que joga a favor dos potenciais humanos e o que os restringe. * Compreendendo que tanto propor o inalcançável, quanto apenas repetir o já alcançado são ações que geram frustração. * Propondo, portanto, desafios condizentes com as possibilidades concretas de transformação da situação social, no momento histórico dado. * Lembrando, por fim, as palavras de Paulo Freire de que “devemos fazer o que é possível fazer hoje para que aquilo que não é possível fazer hoje seja feito ama‐nhã”...
3 ‐ Critério metodológico para a ética
* Agindo como um componente constitutivo da própria realidade na qual se está intervindo.
e) A intervenção como constru‐ção
* Encaminhando sua própria atuação profissional como processo de mediação que participa da construção das situações sociais às quais que se propõe a enten‐der e sobre as quais pretende agir – situações não existentes até a efetivação dessa mesma mediação. * Percebendo, portanto, sua própria ação e consciência como processos que se transformam juntamente com a realidade social sobre a qual se intervém, fazen‐do parte dela também, tendo assim a transformação de si mesmo como um obje‐tivo profissional e ético.
19 Conferir nota “17”, p. 29.
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PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA II ‐ Princípios de psicolo‐gia geral
O psicólogo pode trabalhar:
1 ‐ Princípio da unidade psicofísica
* Entendendo mente e corpo como aspectos da mesma realidade complexa e contraditória, que é a existência humana concreta. * Dialogando com outros saberes que permitam compreender melhor essa totali‐dade e suas condições de possibilidade.
2 ‐ Princípio da determi‐nação da consciência pela existência social
* Sendo psicólogo do homem concreto, que em sua existência social se faz cons‐ciente, e não apenas “psicólogo da consciência ou do inconsciente” de um ho‐mem, nem “psicólogo das funções mentais” de um homem. * Atuando na identificação e compreensão da multiplicidade de fatores que com‐põem a vida social da qual a consciência humana emerge e na qual ela cumpre função. * Entendendo o próprio ser humano como componente de sua existência social, não sendo ela externa a ele. * Situando seu foco de ação com as pessoas na articulação dos diferentes modos de existir do social frente aos quais/no interior dos quais suas vivências se consti‐tuem (classes, instituições, grupos, intersubjetividade e indivíduo). * Elegendo as táticas possíveis em cada plano da existência social, assim como priorizando os planos em que transformações mais eficazes sejam exeqüíveis no momento histórico dado em função das condições disponíveis. {por exemplo: tra‐balhar com indivíduos não é deixar de trabalhar com o ser social, etc., nem sem‐pre se pode intervir com o mesmo peso com relação a todos os planos de articu‐lação da existência social} * Identificando, registrando e buscando compreender a dinâmica geral do drama de relações e papéis sociais próprios dos diferentes espaços intersubjetivos, gru‐pais, institucionais, de classe e ainda de gênero, de etnia e de geração. Drama esse que, com suas regras próprias de prescrição e performance de papéis sociais, implica redes de ações partilhadas, complementares e/ou antagônicas, que cons‐tituem a própria produção situada, contextualizada, de mediações simbólicas nas quais cada pessoa, como ator social, se constitui – se limita, se delimita e se po‐tencializa.
3 ‐ Princípio da consciên‐cia como psiquismo pro‐priamente humano
* Privilegiando ações que viabilizem a potencialização das funções psíquicas pro‐priamente humanas, ou seja, aquelas nas quais o homem se realiza como tal e que são a um só tempo: (a) voluntárias – que exigem tomada de decisão; (b) conscientes – que exigem pensar sobre o pensamento, sobre a emoção e a ação; (c) mediadas – que exigem recorrer à linguagem; e (d) de origem social – que implicam modos de participação de um outro e de ver a si mesmo como um ou‐tro.
a) Consciência como conheci‐mento partilhado
* Sendo um organizador e participante de situações em que as pessoas comuni‐cando‐se com demais (sobre o mundo, sobre os outros, sobre si mesmas) possam ir reorganizando seu modo de agir e também sua própria consciência do real e de si. * Possibilitando ações em que a linguagem partilhada entre as pessoas trate de situações relevantes, do ponto de vista vital, para as pessoas envolvidas, desco‐lando‐se das formas mais automatizadas e imediatas de entendimento e senti‐mento para a realidade, desarticulando‐as e permitindo o surgimento de novas e mais potentes formações de sentido.
b) Consciência como vivência de vivências
* Produzindo e dando visibilidade a situações em que a comunicação social permi‐ta um ato de “espelhar” a ação, a fala e a emoção de cada um, proporcionando uma relação de suspensão, estranhamento e distanciamento necessários para a tomada de consciência da situação vivida junto com outros e junto a si mesmo.
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c) Consciência como reflexo e refração da realidade
* Atentando para que na sua própria consciência e na daqueles com quem atua, tanto se “reflete” uma imagem do mundo real (já que toda consciência é “consci‐ência de algo”), quanto se “refrata” essa mesma imagem (já que toda consciência é “consciência de alguém”, ou seja, permeada pelas necessidades e orientações desse alguém). * Percebendo e lidando com a contradição dialética de a consciência tanto ser poder de ação e compreensão quanto limite para agir e compreender – de forma a não tratá‐la nem como impotente nem como onipotente no plano da transfor‐mação da realidade.
d) Consciência como processo cognitivo e afetivo
* Considerando que a compreensão que as pessoas têm da realidade não é ape‐nas intelectual, mas nuançada por afetos, os quais compõem a realidade concreta do homem consciente. Que a compõem não só como algo que pode atrapalhar sua visão mais crítica da realidade, mas também como algo que permite que tal visão se construa – se houvesse uma consciência totalmente desprovida de afeto, ela não teria como lidar de modo realista com o mundo. * Não operando no sentido da simples contenção dos processos afetivos como garantia da emergência de ações eficazes e adaptadas, mas no da potencialização das emoções propriamente humanas necessárias para a ampliação da capacidade das pessoas de comporem com o mundo, com mais bem estar e alegria. * Com atitude de empatia em relação às emoções do outro, no sentido de que mesmo as causas das emoções sendo imaginárias, as próprias emoções continua‐rão sendo reais e merecem consideração e respeito. * Com atitude também de distanciamento com relação às emoções do outro, no sentido de que, mesmo elas sendo reais, isso não quer dizer que se tenha claro o que as está motivando. Além do que, sermos totalmente impregnados pelas emo‐ções do outro não sempre os ajudará a lidar melhor com elas.
e) Consciência e o problema dos processos não conscientes
* Tendo conhecimento da dialética entre as funções da consciência e sua nega‐ção, não só pelo fato de que para saber de algo não é possível saber de tudo a um só tempo, como também pelo fato de que, como diz Vigotski “mesmo sabendo exatamente como agir, podemos agir de modo diferente” – pois nem sempre conhecemos as motivações das nossas ações, sentimentos e pensamentos ou dominamos a disposição deles/para eles em nós. * Proporcionando momentos de simbolização, comunicação e ação partilhada que permitam tomada de consciência quanto aos motivos até então não evidentes e amparando, na relação com o outro, as dimensões afetiva, cognitiva e volitiva constitutivas desse ato simbólico. * Desmistificando tanto para si quanto para aqueles com quem se trabalha (na medida em que se tornem crenças despotencializadoras do desenvolvimento da autonomia humana) as noções animistas dos processos inconscientes (tomados como forças com vida própria) e valorizando o homem como a unidade vida de suas funções mentais conscientes ou não.
4 ‐ Princípio da compre‐ensão da consciência me‐diante unidades
* Tomando diante das realidades sociais e pessoais com as quais se vai trabalhar uma atitude de investigação e compreensão crítica sobre sua origem e funciona‐mento, sob o foco de fenômenos particulares (unidades) que as constituam e possibilitem uma visão integrada e sistêmica do psiquismo humano como um todo.
a) Consciência e relações Personalidade Meio = a vivência como unidade...
* Buscando formas de compreender e estar sensível às vivências (experiências vitais dinâmicas e singulares) das pessoas, as quais no curso e na situação social de seu desenvolvimento proporcionam uma síntese dialética dos traços caracte‐rísticos de formação da sua personalidade com as influências de todo o meio social, do qual a própria pessoa também faz parte. * Estabelecendo oportunidades e recursos de simbolização pelos quais tais vivên‐cias sejam partilháveis e presentes ao diálogo das pessoas com os outros e com
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elas próprias. * Procurando não destituir as vivências de seu caráter de acontecimento, isto é de processo único, incomparável, irrepetível, no qual o homem se engaja literalmen‐te “em pessoa”, como personalidade social concreta, numa condição em que nenhum outro pode estar em seu lugar. * Procurando, ao mesmo tempo, não fechar as vivências no campo do insondável, incompreensível e impossível de ser partilhado ou recriado. * Buscando para si, como profissional responsável, e para o outro, como interlo‐cutor essencial, recursos para visualizar as conexões entre experiência acumulada histórica, social, e pessoal (auto‐biográfica), com as vivências no “aqui e agora” e suas marcas na memória de cada um, tanto quanto contribuindo para a reorgani‐zação do caráter dessas conexões na direção de mais saúde e autonomia.
b) Consciência e relações Pensamento Linguagem = o significado da palavra como unidade...
* Tomando uma atitude de dedicação sistemática à compreensão dos múltiplos significados da palavra do outro, como síntese dialética da linha do desenvolvi‐mento da fala com a do pensamento, tomando tal síntese em suas diferentes variações funcionais e etapas de desenvolvimento, como mediação por excelência para a gênese da consciência, tanto quanto como suporte à articulação inter‐semiótica com outras formas de significação verbais e não verbais. * Mantendo atitude de respeito ao universo vocabular, sintático e semântico do outro, aos gêneros discursivos próprios das diferentes situações e grupos sociais com os quais está habituado, sem negar‐se a contribuir sempre que possível para a ampliação desse universo, reconhecendo que ao fazê‐lo também amplia o seu o seu próprio. * Procurando, assim, compreender os significados de suas palavras tanto como múltiplos e inesgotáveis, quanto como passíveis de designações objetivas tangí‐veis, desde que articuladas às condições de produção das trocas dialógicas em que tais palavras se inserem. * Compreendendo que o significado mais objetivo das palavras não esgota toda a dinâmica da produção de sentidos que implica ainda o todo de sua visão de mun‐do e sua personalidade. * Pautando‐se na orientação de Vigotski de que para compreender o significado das palavras é preciso ainda buscar compreender o pensamento e/ou o seu sub‐texto, e que para compreender o pensamento cabe ainda buscar saber das moti‐vações e da esfera afetivo‐volitiva de quem pronuncia tais palavras. * Criando situações de comunicação social e ação partilhada contextualizada, nas quais indícios desses diferentes modos de funcionamento dos processos de signi‐ficação possam ser colhidos, interpretados e devolvidos ao fluxo do diálogo com as pessoas envolvidas.
5 ‐ Princípio da compre‐ensão do psiquismo hu‐mano mediante sua gêne‐se histórica (origem e de‐senvolvimento)
* Orientando sua prática com uma permanente atitude investigativa com relação ao funcionamento, a estrutura e a origem mais próxima e mais distante das vivên‐cias e processos de significação que se articulam e/ou se chocam na constituição social da personalidade daqueles com quem se está trabalhando.
a) Compreender os processos psíquicos pela sua gênese:
* Entendendo que para compreender o desenvolvimento de alguém se passa ao mesmo tempo a participar dele, já que saber do desenvolvimento não se restringe a registrar uma anamnese, assim como a história da humanidade não se restringe ao nosso passado.
i. Não estudar objetos fixos, mas processos
* Buscando demover de si e daqueles com quem se trabalha a pré‐concepção de que uma doença, um sintoma, uma capacidade, uma habilidade, um preconceito, um sentimento, um conflito, uma lei, uma determinação institucional, um gesto ou um sentido, a visão de mundo de alguém ou os traços de sua personalidade, sua consciência, sua inteligência e seus sistemas afetivos, sejam algum tipo de
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objeto estático, algo pronto e acabado, que sempre esteve ali daquele modo e assim sempre haverá de estar. * Portanto, não vendo esses processos como “coisas”, como “entidades”, como algo que tão somente se classifica, se mede ou se enquadra, se tria, se usa, se descarta, se conserta ou reforma, mas como movimentos produzidos por seres humanos vivos, concretos. * Agindo com relação a tais processos entendendo‐os como tais, portanto com cautela no estabelecimento de juízos, e com compromisso para com a própria constituição social dos mesmos – como sob a orientação de Aristóteles de que “só em movimento é que um corpo mostra o que é”. * Produzindo técnicas sistemáticas para obtenção de pistas que permitam com‐preender e atuar com relação ao psiquismo humano na sua processualidade, por mais focais que precisem ser as intervenções.
ii. Não ficar nas aparências, mas buscar a essência
* Estando atento para o fato de que dois processos aparentemente idênticos podem ter origens bem diferentes, e de que processos com origens semelhantes podem não dar a vê‐lo, por na aparência mostrarem‐se diferentes. {válido para os mesmos exemplos dados logo acima, uma doença, um sintoma, uma capacidade, etc.}
iii. Olhar o já cristalizado pelas marcas de sua origem viva.
* Estando atento para o fato de que algo hoje já tido como automático, natural, cristalizado, simples de fazer, ou simples de dizer que não pode ser feito, teve também um processo histórico de constituição que o trouxe até esse estado, processo esse cujas marcas de vida anterior podem estar cristalizados no que parece sem vida, como ocorre no caso de um “fóssil” (“comportamentos fossiliza‐dos, diz Vigotski”).
iv. Lançar mão da análise gené‐tico‐causal
* Conhecendo a metodologia de pesquisa da investigação da mente humana pro‐posta pela abordagem, para lançar mão de seus recursos como aporte aos pro‐cessos diagnósticos da realidade e de compreensão da realidade durante o pró‐prio trabalho de intervenção, com isso subsidiando avaliações futuras e reorienta‐ção da prática. * Permitindo situações de interação nas quais se produzam, em diferentes mo‐mentos no tempo, processos nos quais novos recursos simbólicos sejam introdu‐zidos para dar conta de uma tarefa significativa (num processo educativo para prevenção de doenças, por exemplo – a apropriação dos conceitos não se dá de modo instantâneo), tendo assim dimensão da origem de novas formações ampa‐radas pela utilização/apropriação desses recursos. * Buscando, portanto, compreender as causas dos processos por intermédio do acompanhamento sistemático de sua origem (gênese) tal como ela se dá em sua própria intervenção sobre ela.
b) Compreender a articulação de diferentes planos genéticos ou históricos
* Entendendo que em teoria histórico‐cultural quando se fala de “história” consi‐dera‐se tanto o seu conceito mais geral de processo dialético de constituição processual do real, quanto de história no sentido estrito ou história da humanida‐de. Procurando ampliar os princípios anteriores para os diferentes planos e domí‐nios do conceito de história.
i. Filogênese ou história do desenvolvimento da espécie
* Tomando conhecimento do fato de que nossa espécie tem tanto limites quanto possibilidades, que a evolução é um processo que continua em curso, mas que por hora ainda somos “Homo sapiens”. O que significa entender que temos tam‐bém determinações biológicas e não somos onipotentes com relação a elas, tanto quanto entender que a própria espécie é provida de aparatos biológicos, em ge‐ral, e neuro‐funcionais, em particular, que permitem e solicitam a mediação do outro e da linguagem para seu desenvolvimento efetivo e potencial.
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ii. Sociogênese ou história do desenvolvimento dos diferentes grupos sociais
* Procurando sistematicamente compreender a história da sociedade na qual se está inserido assim como o estão as pessoas com quem se vai trabalhar – no sen‐tido geral das lutas que a compõem, tanto quanto no sentido específico das narra‐tivas sobre a cultura dos grupos e setores sociais específicos dentro da configura‐ção societária mais ampla. * Agindo com relação às pessoas como sujeitos do processo de constituição cole‐tiva de sua história tanto quanto como constituídos por relações que vão além da interferência de suas vontades individuais.
iii. Ontogênese ou história do desenvolvimento do ser huma‐no singular – envolve a questão da periodização.
* Assumindo que compreender sobre desenvolvimento ontogenético e seus perí‐odos não é só para quem “lida com crianças”, mas que todo ser humano para ser tal como é hoje e para poder ser algo distinto amanhã, só o pode fazer com base nas conquistas e incompletude de seu desenvolvimento anterior. Com as sucessi‐vas crises que esse processo envolve (não só na adolescência, como às vezes se imagina, mas em toda a ontogênese), com o modo particular pelo qual tais crises são vividas de acordo com a relação que cada um estabelece com o contexto no qual se desenvolve e realiza seu constante “tornar‐se humano”. * Sendo um agente que participa do processo de desenvolvimento do outro, por intermédio de sua intervenção, cooperando com ele, nas suas atividades –dirigidas a metas, dotadas de sentido e significados pertinentes à sua vivência e sua história,. * Sendo, sobretudo, um “organizador do meio social” que proporciona as media‐ções necessárias para que o desenvolvimento se dê. Lembrando para o trabalho do psicólogo o mesmo que Vigotski fala para o trabalho do educador, ou seja: “quem educa, não é apenas o professor, mas sim o meio social educativo”, o pro‐fessor é só o seu organizador. Assim também quem pode promover um desenvol‐vimento psicológico tão saudável quanto possível, não é apenas o psicólogo, é um “meio social promotor de relações saudáveis”... Ao psicólogo cabe um papel de organizador desse meio social.
iv. Microgênese ou história do desenvolvimento de processos psíquicos particulares de uma dada pessoa ou grupo num intervalo de tempo relativa‐mente curto.
* Atuando como partícipe da produção, formação, constituição conjunta de pro‐cessos psíquicos particulares (como a resolução de um problema cognitivo; como a transformação catártica de um dado sistema de afetos; como a aprendizagem de um conceito novo; como uma tomada de decisão quanto a um tema de impor‐tância vital; como a tomada de consciência de modos de agir prejudiciais à própria saúde; ou como a tomada de consciência de capacidades que até então não se entendia ter ou não se valorizava como aptas a promover ações eficazes sobre o real, sobre o outro e sobre si...). Compreendendo sua emergência relativamente rápida não como algo mágico ou mecânico, mas como fruto de uma articulação com os demais domínios, ou planos, genéticos envolvidos na totalidade do desen‐volvimento psíquico das pessoas, em sua constituição como tais.
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Para continuar o diálogo Foram expostos alguns princípios éticos, outros em psicologia geral e feito um breve exercício de reflexão sobre a atuação de um psicólogo genera‐lista a partir de tais princípios. Feito isto, só nos cabe relembrar a necessidade de fazermos nossa própria leitura de referências clássicas disponíveis em psicologia histórico‐cultural, tanto quanto dos estudos mais recentes que procurem assumir al‐guns dos desafios que as primeiras nos colocam. Justamente no confronto dessas linhas introdutó‐rias traçadas aqui com a densidade dos textos mais complexos e profundos, é que este trabalho ganhará sentido e cumprirá sua função social pri‐meira: convidar à leitura de Vigotski e seus cola‐boradores. Se retomarmos a citação de Vigotski, em epígrafe neste texto, nos depararemos com uma constatação talvez paradoxal, mas bastante instigante, desafiadora. Ele nos diz que “a nova psicologia”, aquela que tem na dialética um prin‐cípio geral organizador, “se parecerá tão pouco com a atual, como, segundo as palavras de Espi‐nosa, a constelação do Cão se parece com o ca‐chorro, animal ladrador” (VIGOTSKI, 1927/1991). Como vimos, ele mesmo reconhece que sua “his‐tória do desenvolvimento cultural é a elaboração abstrata da psicologia concreta.” (VIGOTSKI, 1929/ 2000, p. 35). E assim a constituição de uma psico‐logia concreta de orientação histórico‐cultural, sobre a base de uma epistemologia materialista dialética, não é pressuposto para o avanço da história da psicologia, mas objeto de busca, algo por ser criado ao longo dessa mesma história. Por certo, os psicólogos do século XXI têm, cada qual, suas próprias leituras dos clássicos, seus próprios projetos, necessidades e aspirações. Cedendo ou não às conveniências da ideologia política neolibe‐ral e/ou da dita “pós‐modernidade”, expressão cultural importante da primeira, estão todos ocu‐pados de constituir seus próprios espaços de in‐terlocução, mesmo para resistir àquelas forças hegemônicas. Trata‐se de um mundo complexo o nosso, povoa‐do de composições diversas e formas de luta e resistência nem sempre convencionais. Não se pode, portanto, tomar Vigotski ou qualquer autor como um oráculo, fonte explicações absolutas e verdades definitivas, que se segue como dogmas. Cabe lê‐lo em sua radicalidade, naquilo que suas palavras nos vêm interpelar ainda hoje em tom de
desafio, fazendo‐nos sentir até um tanto antiqua‐dos em nossas idéias e práticas, lançando‐nos um convite ao futuro. Ao depararmo‐nos com a ne‐cessidade de produzirmos o que ainda não há, é emblemática a imagem do trabalho do poeta ela‐borando versos que atinjam seus leitores do modo mais fecundo. Como Carlos Drummond: “Eu pre‐paro uma canção / em que minha mãe se reco‐nheça (...)” – uma linguagem na qual as pessoas se vejam como tais, tão crítica e afetuosa que faça “acordar os homens” e “adormecer as crianças”. A busca de uma psicologia concreta, reivindicada por Politzer em analogia à arte, é também a da produção de um discurso no qual a humanidade se reconheça, em que as vozes das pessoas te‐nham lugar eqüipolente, não sejam sobrepujadas e mortificadas pelas categorias teóricas. Em geral a psicologia parece falar de muitas coisas: de pro‐cessos mentais, de determinações inconscientes, de contingências de reforço, mas poucas vezes fala de “pessoas”, tampouco “com” elas. É uma crítica que não deve ser feita só apontando erros alheios, mas, sobretudo, como “autocrítica”. Não somos ainda a “constelação” pretendida, somos mais como o “animal ladrador”. Nossa psicologia, certas vezes, é também um saber que “ladra, mas não morde”, que promete, mas não cumpre. Co‐mo no discurso já vulgarizado do “compromisso social”, que não sempre orienta práticas correla‐tas. Ou se alia a ideologias como a da “morte do homem” e/ou do desprezo para com qualquer consistência epistemológica, satisfazendo‐se em mudar de referências ao sabor da conjuntura e/ou com reduzir sua função social a “produzir efeitos”. Tais atitudes apontam talvez para uma “morte da psicologia”, tida como sem objeto nem método próprios, sustentada como instituição só por inte‐resses corporativos de agências formadoras e entidades de classe. Contraposta a tal tendência hegemônica está a psicologia histórico‐cultural de Vigotski com seus valores éticos, seus princípios de psicologia geral e sua vinculação com a cons‐trução de uma psicologia aplicada coerente com eles. Convidar o leitor ao diálogo sobre esta busca, e a assumir um papel social ativo dentro dela, de modo crítico e criativo, foi o nosso objetivo aqui. Achilles Delari Junior Umuarama, 17 de fevereiro de 2009.
Última revisão em 07 de junho de 2009. Passará por revisões posteriores. Produção voluntária e independente.
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