adriana de araÚjo soares hospital colÔnia nina …
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIENCIAS EXATAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA CURSO DE HISTÓRIA
ADRIANA DE ARAÚJO SOARES
HOSPITAL COLÔNIA NINA RODRIGUES: sãos e loucos internados
São Luís 2006
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ADRIANA DE ARAÚJO SOARES
HOSPITAL COLÔNIA NINA RODRIGUES: sãos e loucos internados
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.
Orientador: Prof. Msc. Paulo Rios
São Luís 2006
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ADRIANA DE ARAÚJO SOARES
HOSPITAL COLÔNIA NINA RODRIGUES: sãos e loucos internados
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, para obtenção do grau de Licenciado em História.
Aprovada em / /
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________ Prof. Msc. Paulo Rios (Orientador)
______________________________________________________
______________________________________________________
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Aos meus pais, Antônio e Mônica.
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AGRADECIMENTOS
Existem duas pessoas muito especiais para as quais esse agradecimento
poderia ser inteiramente dedicado, caso ele se referisse apenas ao processo de
monografia. São eles: Paulo Rios, meu orientador e Cristina Viana, minha grande
amiga.
Paulo Rios, pela orientação, pelo apoio, pela participação, pela
compreensão e pela dedicação, mas, sobretudo, por acreditar. Por acreditar em
mim, no meu trabalho, na minha capacidade.
Cris... Bem, essa foi um anjo que caiu na minha vida bem no momento
que eu mais precisava. À Cris eu devo 50% deste trabalho. Nem se eu tirasse dez (é
só uma sugestão heim banca?!!) e lhe dedicasse inteiramente, eu me livraria da
dívida que tenho para com ela. Devo horas de estudo, dedicação, preocupação,
participação. Mas além da ajuda que parece óbvia aos olhos dos outros, há um
sentimento de gratidão muito maior, esse só eu sei. O meu muito obrigada é pela
presença, pela companhia nessa solitária caminhada que é a escrita de uma
monografia.
Ainda pela monografia, agradeço à Anne pela avó (risos, muitos risos...),
à Nathália pelo tio, e à Déborah pela mãe (pelo simples fato dela estar bem,e em
breve curada,Graças a Deus). Gabriela e Ulisses, obrigada pela ajuda com os livros.
À minha amada mãe, pelo seu amor e dedicação. E ao meu querido pai,
que soube deixar de ser o marido da minha mãe, sem deixar de ser nosso presente
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pai. Agradeço também à minha irmã Cristina, pelas noites que a perturbei com o
computador ligado e por segurar minhas inúmeras faltas no trabalho. Aos meus
sobrinhos amados, Aline e Gustavo, por sempre me atrapalharem no momento em
que eu realmente precisava de um descanso.
Ao corpo docente da UEMA, não porque eles sejam legais, mas porque
eles são guerreiros, são lutadores, e, não tenho a menor dúvida, amam o que fazem.
Em especial à professora Elisabeth, uma referencia na minha vida sempre que eu
penso em “professor” no sentido mais amplo que essa palavra possa ter.
Aos amigos de verdade que fiz na longa caminhada na UEMA: Natércia
Cristyna, Vanessa Andrade e Bernardo Coelho (são poucos, porém fieis).
A todas as pessoas que direta ou indiretamente participaram da minha
vida nesses anos de estudante universitária: Alexander Miller, Ana Leatrice,
Biwesley, Cássia, Célio, Êxodo Filho, Fabíola, Karenn, João Luiz, Márcia Elaine,
Nielma, Susana, Wesley e todos os outros que por ventura eu tenha esquecido. Por
favor, perdoem a minha memória, que nunca foi das melhores, e agora está prestes
a parar de funcionar. Mas todos estão no meu coração.
E por último, mas acima de todos, obrigada ao meu Deus, por estar ao
meu lado e por não me deixar perder a fé, mesmo quando tudo parecia que não
daria certo. Obrigada Senhor!
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“Privilégio absoluto da loucura: ela reina
sobre tudo o que há de mau no homem.Mas
não reina também, indiretamente, sobre
todo o bem que ele possa fazer?”.
Foucault
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RESUMO
A loucura sempre se fez presente na caminhada do homem, mas partindo do prisma
mítico ao patológico, percorreu uma longa trajetória de críticas, preconceitos e
questionamento. No Brasil, por conseqüência no Maranhão, não poderia ter sido
diferente. Foi a partir do contexto da loucura sob o estigma de exclusão social, que
surge a inquietação para a elaboração deste trabalho. Busca-se mostrar a situação
do louco na Sociedade Maranhense, enfocando principalmente o período de
construção do Hospital Colônia Nina Rodrigues e a sua importância para época.
(1936-1945).
Palavras-chaves: Loucura. Sociedade. Nina Rodrigues.
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ABSTRACT
Madness always became gift in the walked one of the man, but leaving of the
mythical prism to the pathological one, covered a long trajectory of critical,
preconceptions and questioning. In Brazil, for consequence, in the Maranhão it could
not have been different. It was from the context of madness under the stigma of
social exclusion, that appears the fidget for the elaboration of this work. One searchs
to show the situation of the insane person in the Maranhense Society, focusing
mainly the period of construction of the Hospital Colônia Nina Rodrigues and its
importance for the time. (1936-1945)
Keywords: madness - Society – Nina Rodrigues.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10
2 LOUCURA: DA DIFERENCIAÇÃO AO PATOLÓGICO .................................... 12
2.1 Uma breve abordagem histórica .................................................................. 12
2.2 A loucura no Brasil ........................................................................................ 18
3 O LUGAR DO DOENTE MENTAL NA SOCIEDADE MARANHENSE ............. 26
3.1 Família ............................................................................................................ 28
3.2 Igreja ............................................................................................................... 30
3.3 Polícia ............................................................................................................. 32
3.4 Hospitais ........................................................................................................ 34
4 A COLÔNIA DE PSICOPATAS NINA RODRIGUES ........................................ 36
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 44
REFERÊNCIAS ................................................................................................. 47
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1 INTRODUÇÃO
Existem dois campos em que a loucura pode ser encontrada: no campo
patológico e no campo social. Enquanto doença do corpo, da mente, mal patológico,
cientificamente determinada e identificada, tem encontrado avanços na busca pela
cura. Mas enquanto mal social ainda caminha a lentos passos, sempre em percalço
com a incompreensão e o preconceito.
O presente trabalho tem como objetivo conhecer um pouco mais sobre a
loucura em São Luís na primeira metade do século XX. O primeiro hospital para
doentes mentais do Maranhão só foi fundado em 1941, fato que leva à inquietação
por um conhecimento maior sobre o universo dos alienados no Maranhão no período
em questão. A delimitação cronológica do trabalho vai de 1936 a 1945, período em
que o Estado do Maranhão teve como governante o Sr. Paulo Martins Ramos. Esse
corte foi selecionado por enquadrar um período anterior e um posterior à fundação
do Hospital Nina Rodrigues.
Iniciamos nosso trabalho buscando na bibliografia apresentada um
conhecimento teórico sobre a loucura e suas concepções. Assim, apresentamos
resumidamente um breve histórico de como era vista e tratada a loucura ao longo da
história da humanidade, e especificamente no Brasil.
Os olhares da família, da sociedade e do Estado foram as formas
utilizadas como instrumento de análise na busca por um conhecimento maior da
situação dos loucos na sociedade maranhense. Localizar o louco e identificar as
normas, condutas e posturas dentro desses ambientes.
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A seguir passamos a construção do Hospital Colônia Nina Rodrigues com
o objetivo de conhecer o papel da criação deste hospital para a cidade de São Luís,
e precipuamente consultar relatórios oficiais que falam sobre a criação deste hospital
nos mais diversos aspectos: necessidade, disponibilidade, verba, profissionais,
atendimento a um anseio da sociedade, entre outros fatores.
A metodologia aplicada para coleta dos dados levantados foi a pesquisa
bibliográfica, sendo esta compreendida pela revisão de livros, artigos, consulta via
Internet relacionada com o conteúdo, visando a construção de um roteiro teórico
importante sobre o tema.
Foram utilizados também jornais do período como fonte de análise do
ponto de vista da sociedade em relação a tal obra. O uso da História Oral também
foi de relevante importância, pois através das entrevistas utilizadas foi possível
resgatar um pedaço da memória.
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2 LOUCURA: DA DIFERENCIAÇÃO AO PATOLÓGICO
2.1 Uma breve abordagem histórica
A loucura acompanha o homem desde os primórdios da civilização, pois
ela não está no mundo, é algo que pertence ao próprio homem. Como dizia Erasmo
de Roterdam (2000) é “Patrimônio universal da humanidade”.
No entanto, até chegar ao sentido patológico que hoje se conhece,
percorreu uma longa trajetória. Na antiguidade clássica era vista como algo divino,
místico, pois através dos devaneios do homem permitia o acesso a verdades
divinas.
Na sociedade medieval a loucura passa a ser externada através das
produções artísticas, como a pintura, a literatura, o teatro, o que possibilitava a
criação de um mundo onírico e a partir destas poder-se-ia abstrair alguma
mensagem, ora referindo-se a loucura como estado de devaneios, paixões,
insensatez, ora utilizando essa temática como recurso de crítica, como fez
1Rotterdam em Elogio da Loucura lançado em 1509, que ao invés de uma simples
exaltação da loucura como poderia se supor a partir do título, apresentou-se também
como um instrumento de sátira aos ideais burgueses que principiavam.
Igualmente na literatura erudita a Loucura está em ação, no âmago mesmo da razão e da verdade. É ela que embarca indiferentemente todos os homens em sua nau insensata e os destina à vocação de uma odisséia comum [...] (FOUCAULT, 2000, p.14).
1 Desidério Erasmo, conhecido em todo o mundo por Erasmo de Rotterdam.Sua obra mais célebre é Elogio da
Loucura,escrito na Inglaterra em 1509, em que trata da loucura como energia criativa das ações humanas.
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Neste período era comum a entrega dos loucos aos mercadores, para
que fossem transportados por navios e abandonados em outras cidades. Essas
“Naus dos Loucos” , como ficou conhecida essa circulação de loucos, não tinha uma
explicação sistemática, apenas apresentava-se como um mecanismo de retirada de
pessoas suscetíveis à vagabundagem e/ou estrangeiros que se encontravam nas
cidades.
Os loucos tinham uma existência facilmente errante.As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos (FOUCAULT, 2000, p.9).
É válido destacar que ainda na idade média algumas experiências
insensatas passaram a representar simbolismo do mal, ou seja, a loucura como
sinônimo de possessão demoníaca (PESSOTI, 1994).
Já na Idade Média existiram lugares para detenção dos alienados, mesmo
antes da construção de hospitais específicos para sua reclusão, no entanto não
existia a prática de recolhê-los. Eles faziam parte da vida cotidiana da idade média
eram familiares a seu horizonte social (FOUCAULT, 2000). O louco neste período
goza de uma certa liberdade e passa ao ambiente social como o diferente.
Entretanto somente a partir do séc XVII que a loucura foi suscitada como
reações de divisão, exclusão, purificação. É quando surge no horizonte da loucura a
concepção de internamento. Segundo Foucault (2000, p.99) “o internamento dos
alienados é a estrutura mais visível na experiência clássica da loucura”.
A partir do século XVII surgem na França e na Inglaterra e posteriormente
multiplicam-se por toda Europa, os chamados Hospitais Gerais. Apesar de tidas
como origem dos hospícios, devido à sua característica de enclausuramento, estas
instituições ainda passam longe do conceito que hoje temos da palavra hospital, pois
estas quase nada ofereciam de sentido médico. Ao contrário de algumas instituições
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que chegaram a existir na Idade Média e que esboçavam o início de uma forma de
assistência aos loucos, mesmo que de forma localizada e não sistemática, os
Hospitais Gerais surgiram para atender a outro tipo de demanda. Não tinham como
alvo sequer doentes, que dirá loucos!. “Em seu funcionamento, ou em seus
propósitos, o Hospital Geral não se assemelha a nenhuma idéia médica”
(FOUCAULT, 2000, p.50). No entanto sua importância para a história da psiquiatria
se remete ao fato de que foi a partir desse momento que o louco se viu apartado da
sociedade de forma sistemática.
Foram instituições criadas pelo Estado com o objetivo de combater os
males sociais de então, visto que o aumento da linha de pobreza e da mendicância
chegou a um ponto que não era mais possível ignorar.
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. [...] Como medida econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integra-se ao grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade (FOUCAULT, 2000, p.78).
A incapacidade para o trabalho (pelo menos para a concepção de
trabalho exigida pela sociedade vigente), conseqüência da doença, fazia com que os
loucos se enquadrassem no perfil dos indivíduos aos quais não era mais permitido o
convívio social por inúmeros e diferentes motivos, de acordo com a causa que levou
cada um para dentro destes hospitais. Observa-se aí um fator econômico
preponderante, porém não exclusivo.
Os Hospitais Gerais atenderam também a uma necessidade de exclusão
que derivava de inadequação às normas de comportamento de uma sociedade que
optou por – na expressão popular - “varrer para baixo do tapete” todos aqueles que
de alguma forma não se encaixavam em um modelo já pronto e acabado e sobre o
qual não havia espaço para diferenças.
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Uma ordem absolutista, monárquica e burguesa e um projeto de tornar as cidades mais habitáveis, removendo do caminho das boas famílias e dos homens de negócios e ocultando-lhe dos olhos a massa amorfa de mendigos, vagabundos, sem-teto, maltrapilhos, aleijados doentes incuráveis, criminosos, herejes, prostitutas, libertinos, sifilíticos, alcoólatras, jovens perdulários, esposas molestas, moças violadas, velhos demenciados, toda gente idiota e louca. (BARRETO, 2003, p.123)
Porém, o louco ainda não era observado exclusivamente sob o ponto de
vista clínico, a preocupação maior como ressalta Resende (2000, p.23) era funcionar
como “uma rede comum de repressão à desordem, à mendicância e a ociosidade”.
Estas afirmações são confirmadas pelo fato de não haver nenhum tipo de
acompanhamento médico aos loucos, era preciso que estes apresentassem “outra
doença”, além do distúrbio mental para que fossem visitados por um médico.
Até final do século XVII estas instituições carregavam, de forma
mascarada, mecanismos para proteger a sociedade dos chamados anti-sociais.
Afinal, função curativa na verdade não existia, pois os loucos eram sujeitos a
isolamento, espancamentos, privados de se alimentar, torturados de forma
generalizada e indiscriminada.
Outra importante característica destes hospitais era seu caráter de
coerção moral associada à idéia de trabalho. Depois de um longo período servindo
apenas como abrigo à ociosidade, a partir do século XVIII os Hospitais Gerais vão
adquirir uma característica fortemente funcional, implantando a obrigação ao
trabalho a quase todos os seus habitantes. Desenvolveram-se em seu interior
oficinas e manufaturas que serviam como ocupação aos doentes, e que chegaram
inclusive, a funcionar como reguladores de mão-de-obra em períodos de crise da
economia.
Ao final do século XVIII a loucura passou a ser analisada sob o prisma
psiquiátrico, tal fato decorre principalmente da influência dos movimentos
revolucionários como a revolução francesa com os seus ideais de liberdade,
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igualdade e fraternidade, os pensamentos iluministas, a declaração dos direitos
humanos que acabaram influenciando uma melhoria nos tratamentos hediondos a
que eram submetidos os loucos.
A loucura passa a ser fundamentada cientificamente, ou seja, passa a ser
estudada como doença mental e conseqüentemente com possibilidade de cura e
reintegração do “indivíduo doente” na sociedade. É nesse cenário que se destaca a
figura de 2Pinel, através do chamado tratamento moral que visava, como diz
Resende (2000, p.25), separar os loucos de seus “colegas de infortúnio e passariam
a receber tratamento psiquiátrico”.
A separação a que se refere o autor é pelo fato dos loucos estarem
inseridos no mesmo cenário dos mendigos, prostitutas, delinqüentes e outros
elementos que não compartilham do mesmo grau de especificidade daqueles. E a
partir de então, os doentes mentais foram transferidos para um lugar específico, com
a criação dos manicômios e passaram a receber tratamentos direcionados.
Esses tratamentos foram chamados de tratamento moral e podem ser
melhor resumido na concepção de Amarante (apud RESENDE, 2000, p.26): “A
grosso modo o tratamento moral é a utilização conveniente da disciplina, onde todos
os aspectos que compõem a instituição asilar concorrem para este fim”.
Nos hospitais e manicômios, os doentes mentais deveriam ser
submetidos a um processo de reeducação, de aprendizado, respeito às normas e
regulamentos, ou seja, ter disciplina e abandonar comportamentos considerados
inconvenientes.
É certo que as mudanças surgidas no tratamento das doenças mentais a
partir da célebre imagem do médico Philippe Pinel, libertando os loucos de suas
2 Philippe Pinel, médico francês e pioneiro no tratamento dos doentes mentais.
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amarras, constituíram-se em um marco para a psiquiatria, e esse momento foi por
muitos anos apontado como o marco divisor que transformou a história da
psiquiatria. Tais mudanças serão imediatamente sentidas pela população realmente
doente de Bicêtre3 (que se pese aqui que grande parte dessa população não era de
fato, de doentes mentais), a partir desse momento, de fato, haverá uma busca pela
cura, ou pela melhoria na qualidade de vida dos loucos.
No entanto, as medidas adotadas por Pinel passaram a não ser vistas de
forma satisfatória, pois apesar de os loucos terem sido libertados fisicamente,
continuaram a ser submetidos a procedimentos médicos pouco eficientes.
A mudança é ainda mais radical do que parece. A figura trágica e cósmica com que a loucura havia navegado na stultifera navis , embandeirada com as insígnias da quimera do mundo a deslizar entre brumas pelos rios e canais que cortavam a Europa renascentista, submete-se a uma consciência crítica que a aprisiona nos dispositivos disciplinares em que é desnudada ao olhar médico, que a observa, descreve, classifica, constrói para ela uma cartografia e lhe prescreve um destino. Cria-se assim um “campo asilar puro” em que a assepsia médica liberta a loucura de toda contaminação que deixou colada em sua superfície uma secular percepção concreta para aprisioná-la em suas formas mais abstratas, objetivas e inocentes. (BARRETO, 2003, p.125).
Com o transcorrer do tempo o tratamento de Pinel passou a ser
interpretado de maneira contrária à proposta inicial, pois as instituições passaram a
impor aos doentes ordem e disciplina que não tinha a intenção de curá-los, mas de
proporcionar uma melhoria à própria instituição. É válido destacar que existe uma
corrente de autores que questiona a eficiência deste tratamento quanto à cura dos
doentes mentais.
No século XIX, os indivíduos considerados loucos continuavam em
manicômios, e a procura por essas instituições para o seu isolamento aumentara
consideravelmente, inchando a população internada. As medidas físicas e higiênicas
a que eram condicionados, passaram a ser questionadas cientificamente.
3 Nome do Hospital Geral francês em que o médico Pinel implantou as primeiras mudanças na forma de
tratamento dos doentes mentais.
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Ainda no século XIX, com o avanço médico no campo da neurologia e
assuntos relacionados à área psiquiátrica, a questão da loucura deixa de ser vista
essencialmente como elemento de diferenciação, de desorganização e passa a ser
analisada como patológica, mas, no entanto sem a devida assistência psiquiátrica
necessária. Buscou-se uma visão mais orgânica da loucura, utilizando-se de
tratamentos físicos, mas ao contrário do que se poderia pensar, não houve um
avanço no sentido da cura e/ou tratamento, pois passaram a utilizar-se de atos
violentos e excludentes aplicados aos doentes.
Na concepção de Resende (2000, p.29), “a assistência psiquiátrica
mergulha novamente no longo sono do período pré-pineliano, e não considero
exagero afirmar que deste pesadelo só começará a despertar na época da segunda
grande guerra”.
Percebe-se que em pleno século XX, a loucura ainda não era tratada com
o devido respaldo, e somente a partir da segunda guerra mundial que surgiram
movimentos de transformação da ordem vigente e busca pelo bem estar social do
doente mental.
2.2 A loucura no Brasil
Assim como na Europa, a loucura surge no cenário brasileiro como
elemento de transtorno social e empecilho econômico. No entanto, vale ressaltar
que os fatores da emergência da loucura são coincidentes, mas o contexto
econômico, social, político e cultural tem as suas peculiaridades e diferenciações.
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Haja vista que no século XVI já existiam na Europa alguns asilos, característicos do
período que Foucault (2000), chamou de a grande internação, e no Brasil somente
nos primeiros anos do século XIX surge a necessidade de criação de lugares
específicos aos loucos, mas somente em meados do mesmo século que será criado
o primeiro manicômio brasileiro.
Em ambos os casos, o doente mental, que pôde desfrutar, durante longo tempo, de apreciável grau de tolerância social e de relativa liberdade, teve esta liberdade cerceada e seu seqüestro exigido, levado de roldão na repressão a indivíduos que, por não conseguirem ou não poderem se adaptar a uma nova ordem social, se constituíram em ameaça a esta mesma ordem (RESENDE, 2000, p.29).
O desejo por lugares adequados para acolher os insanos continua
embasado na questão social, pois o intuito era recolhê-los dos centros urbanos, e
das Santas Casas de Misericórdias que já se encontravam insuficientes e impróprias
para a demanda. No Brasil, o surgimento dos hospícios atendia muito mais a uma
necessidade de exclusão social do que econômica. A crescente urbanização e o
desenvolvimento das cidades baseada num referencial europeu fez com que a
presença dos loucos em meio à sociedade não atendesse aos parâmetros exigidos.
Isto porque a loucura no Brasil do século XVI a início do século XIX era vista,
mormente, como problemática social, onde os loucos eram assim considerados em
virtude de “comportamentos inadequados”, como palavras, gestos, trajes, atitudes,
hábitos (ENGEL, 2001).
A ênfase na loucura como problema social se faz necessário em virtude
do empirismo existente na identificação e tratamento da mesma, uma vez que ainda
não existia a psiquiatria científica. A atitude existente era a de segregação dos ditos
loucos do espaço urbano. “[...] No Brasil o doente mental faz sua aparição na cena
das cidades, igualmente em meio a um contexto de desordem e ameaça à paz
social [...]” (RESENDE, 2000, p.30).
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Até então, faziam parte do convívio social brasileiro e gozavam de certa
liberdade, sendo encaminhados para as cadeias públicas ou para Santa Casa de
Misericórdia aqueles considerados desordeiros e ameaçadores da tranqüilidade das
pessoas, onde eram submetidos a tratamentos paliativos, pois a polícia tinha um
caráter meramente coercitivo, recolhendo os loucos temporariamente e depois os
devolvendo ao seu local de origem.
Em virtude da incoerência nos cuidados com os loucos e na situação de
lotação que as instituições que até então eram designadas para atendê-los, serviu
de propulsão para a construção de um local específico para o seu recolhimento.O
ano de 1830 representa o início da necessidade de existência de locais de
internamento para os doentes mentais no território brasileiro, neste ano foi criado o
asilo permanente no terreno que posteriormente fora levantado o que viria a ser
definitivamente o primeiro hospício brasileiro.
Não seria exagero considerar que a necessidade de surgimento de tal
instituição fora influenciada pelos movimentos relevantes para medicina brasileira
que começaram a partir de 1830, com a criação da Sociedade de Medicina do Rio
de Janeiro e a fundação das Faculdades de Medicina nas cidades de Salvador e do
Rio de Janeiro (ANTUNES, 1998).
“A recém-criada Sociedade de Medicina engrossa os protestos,
enfatizando a necessidade de dar-lhes tratamento adequado, segundo as teorias e
técnicas já em prática na Europa” (RESENDE, 2000, p.38).
A necessidade de dar-lhes tratamento adequado, como frisa o autor, traz
consigo afirmações implícitas, e por vez contraditórias, pois coexistem o intuito de
retirar os doentes mentais das ruas para proteger a população e colocá-los em
locais apropriados com a intenção de curá-los e amenizar a situação que vinham
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submetidos anteriormente.
A inauguração do Hospício de D.Pedro II, no Rio de Janeiro em 1852 é
tida como o marco no assistencialismo á saúde mental no Brasil. Como mencionado
anteriormente, até então as instituições que se encarregavam desta tarefa eram as
Santas Casas de Misericórdia, que ainda continuaram administrando tal setor, visto
que a direção do hospício era subordinada à Santa Casa.
O Hospício fora construído em terreno afastado do centro da Cidade, com
o objetivo de proporcionar paz aos doentes, mas na verdade como bem salienta
Engel (2001), o afastamento dos centros urbano visava proporcionar tranqüilidade
aos doentes e aos próprios cidadãos, ficando estes longe da agitação dos
desatinados.
No entanto não é válido dizer que é neste período que se inicia uma
política voltada para os doentes mentais no país, o que de fato só ocorrerá no século
XX. A abertura do D. Pedro II inaugura um período de produção quantitativa, mas
não qualitativa na história da psiquiatria no Brasil. Até o final do século XX serão
dezesseis hospícios abertos. Havia urgência na construção dos novos hospícios.
Porém tanto o D. Pedro II quanto os demais hospícios abertos até o inicio do século
XX continuaram a dar prosseguimento ao tipo de tratamento precário e a-científico
que vinha sendo utilizado nas Santas Casas.
A grande alteração processada com a inauguração de um hospício é que
a partir de agora eles não estavam mais misturados a todo o tipo de doente, porém
não ía muito além disso, visto que não havia ainda uma aplicação sistemática do
saber médico ou a utilização de tratamentos psiquiátricos nestas instituições.A
realidade é que o poder médico dentro destes hospitais ainda era muito restrito, as
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mais importantes decisões ainda eram tomadas pelas religiosas que administravam
os hospitais. Conforme Resende (2000, p.40)
A premência e a preeminência da função saneadora dos primeiros hospícios dão às origens da assistência psiquiátrica brasileira um aspecto bastante peculiar, qual seja, o da precedência da criação de instituições destinadas especificamente a abrigar loucos sobre o nascimento da psiquiatria, enquanto corpo de saber médico especializado
Enquanto a direção destes hospícios esteve a cargo de instituições
religiosas, sobretudo das Irmãs de Caridade, ainda observa-se a aplicação de
tratamento moral como alternativa de cura. Somente a partir da tomada de controle
dos hospícios pela classe médica é que se inicia o período de desenvolvimento de
uma psiquiatria científica no Brasil.
Dada essa mudança, do empirismo ao científico, ainda em fins do século
XIX a questão da assistência psiquiátrica nos hospícios brasileiros encontrava-se
embaraçosa, talvez em virtude de uma política administrativa ineficiente por parte
dos dirigentes destas instituições. No entanto, não cabe a este trabalho entrar na
seara das suposições acerca de tais problemas, e sim mostrar a realidade do
período.
É fato que os doentes mentais já se encontravam em locais específicos,
mas ainda careciam de recursos e tratamentos eficientes e humanitários. Somente
no início do século XX pode-se falar em mudanças na assistência psiquiátrica
brasileira. Mas, o termo “mudanças” deve ser entendido, aqui, no sentido restrito,
pois a situação dos alienados não fora resolvida por completa, e sim atenuada. Haja
vista que ainda existiam lugares do território Brasileiro, no qual se inclui o Maranhão,
que não apresentavam instituições para cuidar adequadamente dos seus doentes
mentais.
É neste período que se destaca a figura de Oswaldo Cruz, que assume a
direção da Saúde Pública da Capital da República, e a do psiquiatra Juliano Moreira.
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A nomeação destes dois profissionais pelo então Presidente da República Rodrigues
Alves, em 1903, representará o início de profundas mudanças na saúde pública,
bem como na assistência psiquiátrica do país. O primeiro ficou incumbido de
promover o saneamento geral das cidades, e ao último coube a missão de recolher
e acolher os “frutos” dessa higienização urbana, assim como tentar recuperá-los.
Na busca por artifícios que tentassem recuperar esses doentes e
recolocá-los na sociedade, alguns tratamentos especializados foram utilizados como
práticas terapêuticas, dentre eles se destacam a criação das colônias agrícolas nos
hospícios, em que o trabalho passa ser uma ferramenta relevante.
Pode se dizer que o labor apresentar-se-ia como referencial de entrada e
saída nos hospícios, pois em alguns casos os loucos eram retirados do convívio
social por serem considerados ociosos, ou seja, passou a se associar a patologia
com o não trabalhar, bem como, um bom desempenho nessas oficinas poderia
representar o visto de saída do internamento, mecanismo através do qual
possibilitaria a volta e adaptação dessas pessoas à coletividade.
A criação de colônias agrícolas como preferencial dentre estas práticas
terapêuticas está associada, como afirma Resende (2000, p.48), a “decantada
vocação agrária da sociedade brasileira”. Assim é que grande parte dos hospícios
existentes no país aderem às colônias agrícolas como instrumento de suas práticas.
Mas havia uma contradição no caminho tomado por estas instituições, contradição
esta que será responsável pelo declínio da utilização das colônias com função
terapêutica, até o seu fim, já no final do século XX.
Ocorre que estas se apresentavam como uma reprodução, obviamente
com as suas devidas proporções, de uma economia que já não era vista como
reflexo da conjuntura econômica do Brasil.
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A realidade para qual os doentes seriam devolvidos à sociedade já não
era mais a mesma. E isso acabou por inviabilizar a utilidade de tal projeto.
A contradição básica residia no fato de que os doentes seriam devolvidos a uma nova realidade externa (ao asilo) que, já na época, estava longe do modelo idílico de sociedade rural apregoado por Júlio Prestes. A nova e dinâmica lavoura cafeeira exportadora paulista pedia braços, é certo, mas é duvidoso que o hospício pudesse lhe oferecer o material humano eficiente e disciplinado de que necessitava (RESENDE, 2000, p.52).
Sob estas circunstâncias é que as colônias agrícolas implementadas por
Juliano Moreira e tão difundidas pelos demais estados do país foram aos poucos
desaparecendo. Assim, os hospícios voltam ao seu antigo modelo baseado na
dicotomia “recolher-excluir”, em que aos loucos só restava ficar confinado no asilo,
onde tinham acompanhamento médico, mas poucas opções de práticas
terapêuticas.
É nesse cenário que é inaugurado, em 1941, o Hospital Colônia Nina
Rodrigues em São Luís. Assim como a tendência nacional, o Nina também vai se
apresentar à população como uma opção de recolhimento e assistência de loucos
até então inexistente, porém com as limitações de uma instituição que atendia sim a
uma necessidade de recolher, no entanto, não ia conseguir, pelo menos em um
primeiro momento, fazer muito além disso.
A partir da década de 60 o país vai assistir a uma transformação, dessa
vez realmente estrutural, na assistência à saúde mental. E apesar do período
encontrar-se fora da delimitação temporal por nós estipulada, é importante destacar
o quanto este período foi importante, sobretudo sob dois aspectos: a melhoria do
atendimento, buscando adaptar-se aos avanços alcançados na medicina no campo
da saúde mental e a extensão do atendimento psiquiátrico à classe trabalhadora.
Essas transformações decorrem do processo de terceirização dos
25
serviços psiquiátricos às instituições privadas. A partir de 1964 elas vão se
multiplicar pelo país, aliviando os entupidos hospícios públicos e oferecendo um
atendimento mais humano aos pacientes. Pacientes esses que agora não vem
exclusivamente das ruas, não são apenas indigentes ou abandonados pela família.
São trabalhadores amparados por direitos trabalhistas que lhe asseguram essa
assistência.
É esse modelo de assistência que prevalece até hoje no Brasil, e apesar
de apresentar inúmeras falhas (a corrupção nas instituições, por exemplo) e não ser
ainda um referencial ao menos tem um alcance social relativamente amplo. Só é
pena que não tenha conseguido (e talvez não tenha conseguido porque nunca tenha
tentado) acabar com o mais cruel dos problemas que afeta um doente mental: o
preconceito.
26
3 O LUGAR DO DOENTE MENTAL NA SOCIEDADE MARANHENSE
Na 1ª metade do século XIX, o Brasil já começava a se preocupar com a
sua estruturação urbana, através da administração das cidades, dos seus espaços,
elementos físicos, hábitos e costumes dos indivíduos da sociedade, enfim buscava-
se uma civilização idealizada nos moldes das sociedades européias.
Nesse contexto, a organização urbana fundamentava-se principalmente
na necessidade de gerir de forma racional a aglomeração de pessoas que se
encontravam nos centros urbanos, visando evitar a incidência de moléstias. Como
pode ser ratificado nas idéias de Schwarcz (1995, p.34), que diz que o objetivo era
implantar uma “racionalidade científica para os abarrotados centros urbanos”,
pretendendo “eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza”.
Em São Luís, somente a partir da 2ª metade do século XIX, que se
identificam as primeiras tentativas de organizar o espaço público urbano, haja vista
que as atenções eram muito voltadas para o 4setor econômico. No entanto, as
iniciativas eram basicamente destinadas para o centro da cidade, onde se
encontrava a elite, visando uma melhor prestação dos serviços públicos e por
conseqüência disciplinar o comportamento dos indivíduos.
Percebe-se que tanto no âmbito nacional quanto local, a finalidade
embutida nessas ações de estruturar e organizar os centros urbanos está adstrita a
concepção de preservação da integridade física e moral dos indivíduos que integram
setores específicos da sociedade. Daí surge a necessidade de afastar tudo que
pudesse proporcionar doenças e perturbação da ordem.
4 A Sociedade Brasileira de um modo geral estava voltada para a agro-exportaçãos, principal atividade
econômica. (PALHANO, 1998)
27
Eram considerados como empecilhos todos aqueles que estavam à
margem, alheios a sociedade, como os bêbados, prostitutas, mendigos,
vagabundos, criminosos, etc e que deveriam ser recolhidos e afastados por
representarem um perigo iminente.
É nesse cenário que a loucura começa a se destacar como entrave ao
processo de estruturação urbana, visto que os loucos não ocupavam um lugar no
espaço produtivo da sociedade, ou seja, eles não trabalhavam, não produziam, não
estavam inseridos no sistema capitalista que ordenava as relações econômicas
vigentes. Assim como representavam uma ameaça à manutenção da ordem social,
na medida em que suas atitudes não eram condizentes aos padrões de
comportamento da época.
Diante desse quadro de inadequação social e econômica é que surgem
indagações sobre a localização do louco na sociedade maranhense. Onde estavam?
Para onde iam? De onde vinham? Como eram vistos? Com que instituições podiam
contar? São questionamentos com respostas incompletas em alguns casos e
complexas em outros. Documentação tais como relatórios oficiais de hospitais,
delegacias de polícia e entrevista foram utilizados, e na busca por estas respostas
escolhemos, alguns espaços como campo de estudo.
28
3.1 Família
Por uma questão de lógica a busca por este “lugar” do doente mental na
sociedade maranhense deve partir do conhecimento do que ocorria dentro do
ambiente familiar dos loucos. Decerto que este trabalho é bem mais difícil do que se
possa imaginar, pelo menos em algumas camadas da sociedade. Por se tratar,
ainda no século XX, de uma doença excludente, silenciosa, e até em algumas
situações, vergonhosa, a loucura vai permanecer guardada (ou diria escondida) da
visão da sociedade em geral, pelo menos por parte das famílias mais abastadas da
cidade.
Ao caracterizar a relação familiar brasileira com a loucura ainda no século
XIX, Resende (2000, p.31) diz: “as famílias mais abastadas, estas escondiam em
casa seus doentes em quartos próprios ou construções anexas especialmente
levantadas; se violentos ou agitados também contidos ou amarrados”.
Não seria irreal supor que a São Luís do século XX ainda agisse da
mesma forma, bem como também outros Estados ou regiões. Isto porque a
realidade do quadro de saúde pública no Brasil não sofreu grandes alterações pela
passagem do século. Até então não havia uma política voltada para a Saúde Mental
no país.
O que houve foi o crescente número de instituições destinadas a acolher
estes doentes e retirá-los das ruas, conforme vimos no capítulo anterior. No
momento, o que nos cabe salientar é que diante da ineficiência do sistema de
saúde, as famílias que tinham uma boa condição financeira optaram por tratar por
29
conta própria seus doentes. Os hospícios eram instituições que atendiam a uma
classe social de poder aquisitivo bem menor.
Já os doentes mentais que pertenciam às camadas populares, esses
eram facilmente localizados. Em três ambientes especialmente: vagando pelas ruas,
nos hospitais ou nas delegacias de polícia. A falta de recursos e de conhecimento da
forma de lidar com esses doentes fazia com estes estivessem em constante “estado
de passagem” de um a outro ambiente destes citados.
No livro de ocorrências da chefatura de polícia da capital encontramos em
28 de outubro de 1940, um louco de nome Hilton Amorim Pedrosa Caldas, que se
encontra ali recolhido a pedido de seu irmão, Sr. Bernardo Pedrosa Caldas, ambos
residentes no Jôrdoa, subúrbio de São Luís.
Casos mais graves também podem ser encontrados como o do louco
Altino Venino dos Santos, que, ao fugir do Hospital do Lira, dirigiu-se até sua casa,
na Vila Operária, e assassinou sua esposa, D. Doraléia Souza Santos.
Não nos cabe aqui, fazer juízo de valor sobre o real motivo que levou o
Sr. Bernardo Caldas a mandar recolher seu irmão a uma delegacia de policia ou o
que levou o Sr. Altino a assassinar sua esposa, até porque são insuficientes as
informações a que temos acesso. O que atrai estas pessoas ao nosso campo de
trabalho é o fato de serem elas identificadas meramente como “loucas”.
O verbo utilizado para tratá-las era recolher. Recolhe de casa, leva pra
delegacia. Recolhe da delegacia ou da rua, leva para o hospital. Sai do hospital,
volta para a rua, de onde será novamente recolhida. E assim sucessivamente, neste
ciclo que no fundo não levava a lugar algum. O importante não era para onde ía, e
sim que saísse, que deixasse de importunar. Que sumisse ao horizonte daqueles
que viam com preconceito, que não gostavam, ou que simplesmente não entendiam.
30
3.2 Igreja
A trajetória do tratamento aos loucos no Brasil está historicamente
relacionada à Igreja, especificamente “às religiosas”. Como já vimos no capítulo
anterior, era a elas que cabiam os cuidados com os doentes nos hospitais, e foi sob
seus cuidados que esteve também em São Luis, os doentes que eram
encaminhados à Santa Casa de Misericórdia, conforme podemos observar do
relatório de 1937: “Estes (os alienados) estão sob a vigilância de uma religiosa e
quatro empregados”.
Além da efetiva participação enquanto instituição, também estava
presente no cotidiano das pessoas, visto que no período mencionado, inicio do
século XX, a Igreja Católica ainda tinha uma presença e uma importância muito
grande junto à sociedade.
Dona Ozita5 relembra das embaraçosas situações pelas quais viu sua
mãe passar junto aos padres, em decorrência da doença de uma tia que morava em
sua casa e que tinha como “alvo” de seu distúrbio a igreja. A referida tia se chama
Joana. Dona Joana, como todos as chamavam, tinha vindo do interior para se tratar
de uma “doença ruim”, como diziam seus pais, e que de fato ela nunca soube qual
era. Foi perdendo o juízo aos poucos e acabou nunca voltando para sua cidade.
Chegava a passar até dois dias sem aparecer em casa.
D. Joana tinha fascinação por igrejas, ficava vagando pela cidade atrás de
missas, assistia tantas quantas podia. Diziam os vizinhos que ela havia
enlouquecido de tanto rezar. Era beata, nunca havia se casado e passava os dias na
5 Entrevista realizada pela autora com a senhora Ozita Câmara dos Santos, em 03 de dezembro de 2005.
31
igreja. Nos dias de “acesso”, gritava, proclamava salmos, mal-dizia ou bem-dizia
aqueles que participavam da missa.
Então, o padre mandava chamar a família de Dona Joana, que ia ouvir os
sermões deste, sempre pedindo que a família a mantivesse longe da igreja durante
as missas, pois apesar de ser vista como uma mulher de comprovada fé, ela estava
“perturbando demais”. Mas como mantê-la longe? Se bastava uma piscada de olhos
para que ela fugisse e novamente e voltasse a vagar pelas ruas da cidade em busca
da “palavra da salvação”?
Segundo a Igreja Católica, não é o preconceito que a afasta dos loucos.
Há uma explicação embasada em uma postura de racionalidade exigida da Igreja
àqueles que participam dos rituais católicos.
Conforme explica Frei Rogério6, da Paróquia do Carmo, todos os
sacramentos da igreja, com exceção do batismo, requerem uma tomada de
consciência por parte dos participantes. Por isso a posição de não estender os
rituais da igreja para os loucos.Comunhão, casamento, confissão, entre outros são
rituais que exigem que a pessoa saiba exatamente o que está fazendo. “A hóstia
não é uma bala que entregamos assim, como a uma criança”, explica o Frei. “É
preciso que a pessoa saiba a importância daquele ato”.
Tal explicação também se aplica à participação nas missas. Neste caso,
havia duas situações: a primeira, de recomendação à não participação, visto que,
segundo o Frei, a missa é um diálogo entre celebrante e participantes, e sendo
assim há a necessidade de haver consciência para que este diálogo não seja vazio.
6 Entrevista realizada pela autora com o Frei Rogério, da Paróquia de Nossa Senhora do Carmo, em 07 de Janeiro de 2006.
32
Somente em casos mais graves, quando há perturbação da ordem é que
se providencia que o individuo seja expulso da igreja. No caso de Dona Joana, a
posição da igreja, de afastamento total se dá por um motivo de problema de
convivência com os demais.
3.3 Polícia
Por ser a polícia o órgão responsável pela manutenção da paz e da
ordem de uma cidade, não haveria como não relacioná-la a este tema, visto que os
loucos estavam sempre a “perturbar esta paz”. À polícia cabia recolher os loucos
das vias públicas e encaminha-los ao ambiente mais propício diante da situação:
casa, hospital ou delegacia.
Na maioria dos casos, o ambiente policial era apenas uma “passagem”,
os loucos ficavam lá por um curto período de tempo, algumas horas, até que era
encaminhado de volta à sua casa ou a um hospital. Era a sintomática do louco que
definia este local. As reclamações, em sua maioria tinham como motivo a
perturbação da ordem, somente quando o caso apresentava maior gravidade o
louco ficava detido.
No livro de registro de ocorrências da chefatura da policia referente ao
mês de outubro de 1940, foi encontrada uma queixa contra um louco de nome
Grigorio Emiliano da Luz, que estava a promover “distúrbio” em via pública. A
solução dada ao caso foi à sua captura pela polícia civil e seu posterior recolhimento
33
à Santa Casa de Misericórdia. O mesmo ocorreu com duas loucas que se achavam
a vagar pelas ruas próximas ao destacamento da penitenciária na mesma data.
Observa-se uma certa freqüência nas queixas referentes à “perturbação
da ordem” que envolviam loucos na cidade.O caso do “louco” Grigorio está
registrado no dia 26/10, já no dia 28/10 encontramos duas ocorrências relacionadas
com loucos e no dia 30/10 mais uma.
Percebe-se que o recolhimento dos loucos, das ruas, das suas famílias,
e/ou qualquer outro lugar em que se encontravam perturbando, para as delegacias,
não era a melhor solução, pois a polícia não sabia como tratá-los corretamente.
Dessa forma se via a instituição em situações constantemente embaraçosas.
Recolhia o louco diante de um quadro que gerasse perigo à sociedade, mas o que
fazer em seguida? Somente diante de uma queixa grave havia motivo para manter o
louco sob custodia da policia, e o caso seria enviado para o juiz. Mas em geral eram
queixas relacionadas com desordens e acabavam sendo solucionadas pelo próprio
delegado.
Apesar de vasta bibliografia nos levar a crer que a polícia agia com
violência para como os doentes, isto não foi comprovado em nossa pesquisa. Na
maioria dos casos, observa-se um certo olhar de pena, de comoção; mas não de
violência. Os loucos eram vistos como coitados, mas não como infratores da lei.
Esse contato com os loucos fazia com que, em alguns casos, a polícia
tomasse para si uma responsabilidade que não lhe pertencia. Não é preciso ir muito
longe para imaginar que tipo de problemas essa situação poderia causar. E isso era
sentido, inclusive, pela própria polícia:
34
Hospício de Alienados Não possue o Estado um instituto da natureza deste titulo e somente um deposito de dementes e loucos no “Isolamento do Lyra”, sob os cuidados da Diretoria Geral de Saúde e Assistência e guarda de praças de Policia Militar. O prédio é impróprio ao fim a que serve e,além disso, não comporta o elevado número dos indivíduos que em desequilíbrio mental precisam da assistência médica e social. Em conseqüência dessa lamentável lacuna, vê-se a Policia em sérios embaraços para recolher os dementes e loucos que são remetidos do interior ou apresentados nesta capital, sendo obrigada a manter certo número em cubículos da Penitenciária, onde vivem enfurecidos como feras, sem que um raio de assistência hospitalar própria ali penetre para suavizar o sofrimento delles, ou para diminuir a nossa revolta, ou a nossa commiseração [...] Se o edifício, velha cadeia medieval, que aqui é denominado por Penitenciaria, é um atentado ao significado gramatical, imagine-se ele funcionando, também como casa de alienados [...]. É um assunto que está, como tantos outro, a reclamar a boa atenção do Governo Maranhense (MARANHÃO, 1937a, p.12).
É uma instituição do Estado preenchendo uma lacuna do próprio Estado,
como conseqüência da ausência de um lugar apropriado para acolher esses doentes
de forma digna e tratá-los adequadamente.
3.4 Hospitais
Diante da inexistência de um hospital específico para os loucos, ficava a
Santa Casa de Misericórdia encarregada oficialmente desta assistência, isto se dava
através de uma verba que o governo destinava ao tratamento dos alienados.
Mediante um suprimento que lhe paga o governo do Estado, continua a Santa Casa a se encarregar da assistência dos alienados. Estes estão sob a vigilância de uma religiosa e quatro empregados alojados no compartimento térreo do hospital, onde encontram diversos cubículos para os casos de emergência. (MARANHÃO, 1937b, p.6).
Havia também um local de nome Lira ou Lyra. A menção a este local
aparece com freqüência em alguns documentos, sem que, no entanto seja
explicado de que tipo de instituição se tratava ao certo. Sabe-se apenas que
35
também era visto como um local inadequado para o tratamento aos alienados. No
Relatório do Te. Cel. Chefe de Polícia, Dr. Faustino dos Santos Silva, de 1937,
consta haver no depósito de Lyra, 39 loucos. No Relatório da administração de 1940
o Interventor do Estado Paulo Ramos cita: “Os loucos considerados perigosos eram
recolhidos á Penitênciária e os inofensivos á Quinta do Lira, que também não estava
em condições de recebê-los”.
Apesar da verba paga pelo governo, a assistência aos alienados era cada
vez mais precária nos hospitais. Os avanços da ciência médica na área da
psiquiatria, as mudanças de concepção na forma de tratar os doentes, a falta de
recursos e capacitação específica fazia com que a própria Santa Casa admitisse a
sua ineficiência perante o tratamento aos alienados.
Das providências sugeridas, uma já pertence as cogitações de V.Excia – a melhoria da instalação dos infelizes loucos, que não devem e nem podem continuar asilados nos cubículos situados num comportamento térreo do Hospital. Felizmente V.Excia., conhecendo a situação dos desditosos insanos, pensa em construir breve o Hospício dos Alienados do Maranhão, já tendo levantada a planta do espectro do edifício (MARANHÃO, 1938, p.25).
Os hospitais que existiam agiam apenas de modo paliativo, recebendo
estes doentes que eram em muitos casos abandonados por suas famílias e
mantendo-os sob sua tutela, mas sem haver, no entanto, uma política voltada para a
melhoria na qualidade de vida destas pessoas.
36
4 A COLÔNIA DE PSICOPATAS NINA RODRIGUES
Fonte: Maranhão (1941, p.120)
Figura 1 – Hospital Colonia “Nina Rodrigues” – (para psicopatas)
“Inaugurada a Colônia de Psicopatas – O que foi a brilhante solenidade
de domingo nos” Dois Leões “– O Dr. Valdomiro Pires fezo elogio do Interventor
Maranhense – Justo preito a memória de Nina Rodrigues” (JORNAL O GLOBO,
1941, p.1).
Foi com grande júbilo que a notícia da inauguração da Colônia foi
divulgada nos meios de comunicação de São Luís, conforme pode - se observar no
título da reportagem do Jornal O Globo acima.
Apesar da exaltação pela construção do Hospital, este serviu apenas para
atenuar o problema dos loucos na sociedade maranhense, que como mostrado no
37
capítulo anterior encontravam-se “abrigados” em lugares impróprios. Mas, será que
o Hospital Colônia Nina Rodrigues fôra apropriado?
Em 1939 Paulo Ramos adquiri o primeiro dos dois terrenos que serão
utilizados na construção da Colônia. O terreno da “Quinta Dois Leões”, no subúrbio
da capital, como era de praxe aos hospícios no Brasil, foi comprado por 30:000$000
(trinta contos de réis) do Sr. Tito Carlos de Almeida em março daquele ano. Poucos
dias depois, em 25 de março de 1939, é assentada a pedra fundamental que dará
início às obras. Até então, apesar de ter iniciado por conta própria tal projeto, o
interventor ainda esperava contar com o auxílio do governo federal para dar
continuidade a este, conforme Diário Oficial (1939a, p.20):
Jubilosamente comunico inclito chefe acabo de lançar pedra fundamental futura colônia de psicopatas S.Luiz que, como o leprosário Bomfim, constituía uma das mais velhas e maiores aspirações da minha terra afim de melhorar situação pobres insanos ora recolhidos estabelecimentos condenados psiquiatria. Conto indispensável valiosa contribuição Governo Federal para esse empreendimento de vulto e de incalculável alcance humanitário, endereçando neste momento o meu caloroso apelo ao benemérito Chefe da nação e amigo devotado do glorioso Estado que dirijo.
Tal auxílio do Governo Federal de fato nunca veio e a obra acabou sendo
executada com recursos exclusivos do governo estadual. Um processo
relativamente rápido. O edital de concorrência é publicado em 31 de outubro de
1939 e em 15 de janeiro de 1940, menos de três meses depois o contrato de
construção é divulgado. Leão, Ribeiro & Companhia Ltda., empresa do Rio de
Janeiro é contratada para execução da obra.
Pelo projeto inicial seria apenas um pavilhão, mas atendendo à
recomendações do Departamento Nacional de Saúde Pública, algumas
modificações foram inseridas no projeto inicial, dentre elas a mudança no número de
pavilhões de um para seis. Conseqüentemente, o terreno adquirido não foi o
suficiente, o que levou o governo a comprar outro terreno, desta vez a chácara
38
“Carmem”. Essas alterações vão acarretar um maior ônus aos cofres públicos,
sendo que o crédito inicialmente aberto para a obra necessitará de suplemento, o
que ocorrerá em 28 de Dezembro de 1939.
Considerando que o governo aceitou a proposta de Leão, Ribeiro & Cia. Ltda., que satisfaz todas as exigências do edital da concurrência pública e é a mais favorável aos interesses do erário, na importância total de Rs 767:000$000 (setecentos e sessenta e sete contos de réis); Considerando que se faz, portanto, necessário suplementar o crédito primitivo de 300:000$000 (trezentos contos de réis) DECRETA: Artigo Único – Fica suplementado, de Rs 507:500$000 (quinhentos e sete contos e quinhentos mil réis) para vigorar o exercício de 1940, o crédito aberto pelo decreto nº 73, de 9 de junho último, para a construção da Colônia de Psicopatas do Estado do Maranhão; revogadas as disposições em contrário (DIÁRIO OFICIAL, 1939b, p.43).
Pelo contrato assinado entre construtora e o Estado, as obras deveriam
iniciar-se num prazo de quinze dias a contar da data de assinatura do contrato
(28/12/1939) e deveria a colônia estar pronta em 300 dias consecutivos, estando a
empresa sujeita a multa pelo atraso na entrega da obra. Levando-se em
consideração a data de inauguração da colônia, podemos constatar que se houve
atraso, este não foi significativo.
Desta forma, foi inaugurado em 25 de março de 1941 o primeiro hospital
psiquiátrico do estado do Maranhão, que contava com uma estrutura de seis
pavilhões assim divididos: um para a administração, um para serviços gerais
(lavanderia, cozinha, dispensa e refeitório), dois para os loucos calmos (um para
cada sexo) e dois para os loucos agitados (um para cada sexo). Havia ainda um
projeto de ampliação do hospital para atender tuberculosos e também aos
chamados “loucos sórdidos”, no entanto isto não chegou a se concretizar.
De forma a reconhecer e homenagear o médico maranhense Raimundo
Nina Rodrigues, que foi um estudioso dos distúrbios mentais de grande renome
nacional, foi a Colônia de Psicopatas nomeada de “Colônia Nina Rodrigues para
Psicopatas”. Tal determinação consta em decreto do Diário Oficial (1941, p.17):
39
Considerando que o notável conterrâneo, de saudosa memória, dr. Raimundo Nina Rodrigues, constitui um dos riores da classe médica brasileira que dignou através de uma luminosa trajetória, na cátedra da faculdade de medicina da Baia e no meio cientifico nacional; Considerando em uma das mais brilhantes etapas da sua atividade profissional e cientifica foi precisamente a desenvolvida em prol dos doentes mentais, o que não deve ser esquecido pelas gerações que lhe sucederem; Considerando que a denominação de Nina Rodrigues á nova Colônia de Psicopatas de São Luiz representará a um tempo, testemunho de reconhecimento e preito de admiração a quem se tornou credor da veneração dos seus compatrícios, DECRETA Artigo Único – fica denominada ‘Colônia Nina Rodrigues para Psicopatas’, o hospital-colônia construído pelo governo do Maranhão no lugar Dois Leões, subúrbio de São Luís, revogadas as disposições em contrário.
Conforme observamos no capítulo anterior, a criação de um hospital
desta natureza era uma reivindicação antiga do diversos setores da sociedade.
Atendia às necessidades de pessoas pobres, que não sabiam como lidar com seus
doentes, e os deixavam a vagar pelas ruas da cidade. Atendia a uma necessidade
da elite que, preocupada com a urbanização e limpeza das cidades, via com bons
olhos uma forma de exclusão definitiva e oferecida pelo próprio Estado. Atendia às
necessidades de órgãos do governo (saúde e segurança pública) que não tinham
mais como sanar tal lacuna e atendia a uma forma de satisfação social para com a
nação, visto que o Maranhão era o único entre os principais estados do nordeste
que ainda não ofereciam um serviço psiquiátrico à sua população.
Enquadrando-se um modelo de assistência que prevalecia no Brasil na
década de 40, o Nina Rodrigues vai se apresentar como um hospital que atende
principalmente à população de baixa renda. A maior parte dos doentes internados
vinha dos subúrbios, alguns eram recolhidos nas ruas pela polícia, e outros eram
oriundos do interior do Estado. Estes últimos acabavam sendo abandonados por
suas famílias, que de volta à sua cidade de origem mantinham um ritmo de visita
cada vez menos freqüente.7
7 Entrevista realizada pela autora com a funcionária do Hospital Nina Rodrigues, Lindalva Ferreira Garcês, em 07 de Novembro de 2005.
40
No ano de sua inauguração, a Colônia vai dispor de um número limitado
de funcionários, segundo o Jornal O Globo de 18 de março de 1941, serão apenas
seis: Dr. Benedito Metre (médico e diretor), José da Silva Gasparinho
(administrador), e os enfermeiros: Zulmira Costa, Manoel da Conceição Pereira,
Guilherme Braga e Hermenegildo Amaral. Sendo que os três primeiros participaram
de curso de aperfeiçoamento na Colônia de Psicopatas do Rio de Janeiro.
No entanto, no orçamento do Estado de 1941, o detalhamento do quadro
de funcionários diverge da informação divulgada pelo jornal em alguns aspectos, tais
como: a existência de enfermeiros e de um administrador. Enfermeiros, de fato só
constarão no orçamento a partir de 1944, até lá serão apenas serventes, atendentes
e serviçais. Enquanto que o cargo de administrador, este não existia.
O que nos leva a considerar a hipótese de que a “impressionante
realização do governo Paulo Ramos” – como publicou O globo – ainda não dispunha
de um aparato profissional qualificado quando da sua fundação.
Quadro de Pessoal 1941 1942* 1943 1944 1945 Diretor 1 1 1 Zelador 1 1 1 1 1 Atendente 2 2 2 2 2
Pessoal Fixo
Servente 1 1 1 1 1 Médico psiquiatra contratado 1 Atendente 1 1 3 Porteiro 1 1 1 Servente 2 3 4 Serviçal 6 6 7 Enfermeiro 1 1 Médico 1
Pessoal Variável
Auxiliar Escritório 1 TOTAL 5 4 15 17 23
*Não existe detalhamento do pessoal variável para este ano
Fonte: Adaptação da autora baseado nos orçamentos para os exercícios de 1941 a 1945.
Quadro 1- Quadro de Pessoal
O que o Quadro 1 nos mostra que desde de 1941 até 1945, último ano de
governo Paulo Ramos, houve um considerável aumento no número de funcionários
41
na Colônia. No entanto, refere-se a um crescimento quantitativo, e não qualitativo.
Atendentes, serventes e serviçais são funcionários que apenas continuam a agir de
modo paliativo no que se refere ao tratamento dos loucos. Não há, por exemplo, no
quadro de funcionários, aumento no número de médicos, apesar do número de
atendimentos ser cada vez maior com o passar dos anos.
Acompanhando o crescimento do número de funcionários, verifica-se o
crescente aumento dos gastos do governo para com a Colônia, e uma diversificação
nas despesas, como discriminado no Quadro 2 a seguir:
DESPESAS 1941 19428 1943(Cr$) 1944(Cr$) 1945(Cr$)
PESSOAL FIXO* 16:320$000
16:320$000 33.000,00 33.000,00
51.600,00
PESSOAL VARIÁVEL* 8:400$000
29:760$000 18.969,00 26.400,00
69.000,00
ALIMENTAÇÃO -
100:000$000 100.000,00 100.000,00
150.000,00
MEDICAMENTOS -
13:440$000 18.000,00 25.000,00 40.000,00
DIVERSOS -
2:400$000 4.400,00 6.000,00 1.000,00
VESTUÁRIO - - 10.000,00 10.000,00 20.000,00
COMBUSTÍVEL - - - - 5.000,00
MATERIAL GRÁFICO - - - - 3.000,00
MATERIAL PERMANENTE - - - - 20.000,00 DESPESAS NÃO ESPECIFICADAS - - - - 10.000,00
TOTAL 24:720$000 161:920$000 184.369,00 200.400,00 369.600,00
*Discriminados no Quadro 1
Fonte: Adaptação da autora baseado nos orçamentos para os exercícios de 1941 a 1945
Quadro 2 – Demonstrativo Financeiro de Despesas
Baseando-se nos dados financeiros obtidos a partir da leitura dos
orçamentos, infere-se que o Nina Rodrigues cresceu enquanto instituição. Os
valores repassados pelo governo tornam-se cada vez maiores, o que atesta a
8 Em novembro de 1942 houve uma mudança de moeda, o Réis foi substituído pelo Cruzeiro. Cada 1 mil réis equivale a 1 cruzeiro.
42
importância que a Colônia passa a ter para a saúde do Estado.
Mas o questionamento a ser feito diz respeito a melhoria na qualidade de
vida dos doentes. O que os dados demonstram é um aumento na infra-estrutura. O
Nina Rodrigues capacitava-se no sentido de abrigar cada vez mais pacientes, mas
não buscava agir de forma a transformar a realidade destes.
O único item fornecido no orçamento do Estado diretamente relacionado
ao tratamento da loucura enquanto doença é o dos remédios, em que se observa
expressivo aumento. Mas não há ainda neste período a implementação de práticas
terapêuticas em busca da reintegração dos doentes à sociedade. O tratamento da
doença mental nesse período era baseado na prescrição de medicamentos e
atividades de convulsoterapias e insulinoterapias (Quadro 3) que eram voltados para
questão sintomática em si e obtenção de resultados imediatos.
1941 1942 1943 Doentes Hospitalizados 102 148 161 Receberam alta/curados 26 67 47 Movimento de Doentes
Receberam alta/melhorados 20 55 57 Curativos 1.024 1.190 1.138 Peq.Intervenções Cirúrgicas 5 28 Injeções 2.399 2.385 3.466 Fugas 11 4 Convulsoterapias 1.342 1.838 Insulinoterapias 560 541
Atividades Hospitalares
Óbitos 15 17 17 Exames Clínicos 23 19 74 Receitas prescritas e atendidas 28 17 92 Trabalhos de Ambulatório Injeções aplicadas 126 269 430
Fonte: Adaptação da autora baseado no relatório referente a Administração de 1941 a 1943
Quadro 3 – Demonstrativo Médico do Hospital Nina Rodrigues
Não entraremos no mérito da eficiência dessas práticas, visto que não
nos cabe. Aos nossos contemporâneos olhos, parece absurda, por exemplo, a
utilização de eletro-choques, mas essa era uma prática recorrente na época. Era o
que pregava a medicina de então. Nosso questionamento parte no sentido de
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compreender o que de fato foi implantado na busca pela melhora dos doentes.
O Hospital Nina Rodrigues cumpre seu papel de recolher, abrigar e
oferecer os recursos disponíveis na área da medicina, mas é duvidoso o caráter de
cura de um tratamento que apenas agia no sentido de amenizar os sintomas da
loucura. Assim cabe questionar que fatores eram levados em consideração no
momento em que um paciente era considerado curado.
Nos Relatórios do Hospital Colônia Nina Rodrigues constam dados que
remetem a uma distinção entre doentes curados e doentes melhorados, no entanto
não há explicação que esclareça tal diferença.
Seria considerado curado aquele que conseguisse se adequar às normas
da sociedade? Aquele que não mais fosse capaz de perturbar a ordem vigente? Foi
a inadequação às normas e a perturbação da ordem o que levou grande parte dos
pacientes pra dentro do Nina Rodrigues.
O problema é que ante a idealização de um hospital psiquiátrico houve
uma estranha inversão de valores, que reside no fato de que os doentes não são
encaminhados a um hospício com o objetivo de serem curados ou protegidos, mas
sim no sentido de curar ou proteger a sociedade.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória da loucura ao longo da história da humanidade percorre
caminhos que estão necessariamente ligados ao preconceito. Decerto que nem
sempre com o sentido de exclusão, mas sempre como o diferente. Antes mesmo do
período da Grande Internação (FOUCAULT, 2000) havia um olhar da sociedade
sobre o louco que o diferenciava dos demais, era o olhar da incompreensão.
Essa incompreensão atravessou séculos e foi ao longo dos anos se unindo
aos mais diversos sentimentos, tais como medo e vergonha, para por fim resultar na
principal característica que envolve a loucura: a exclusão.
A noção de “peso social” que fez com que a sociedade optasse por
enclausurar os loucos e os igualar a vagabundos, vândalos e delinqüentes
permanece como uma marca que acompanha a doença até os dias atuais. O
Estado, tomando a liderança deste processo de segregação, manteve a freqüente
postura de agir de forma a proteger os normais.
Descobertas na área da medicina e a humanização do tratamento fizeram
com que novas formas de lidar com a doença fossem incorporadas aos métodos que
vinham sendo praticados, o que representou um grande avanço na melhoria na
qualidade de vida dos doentes.
Porém na prática do sistema de saúde brasileiro tais mudanças nem sempre
foram acompanhadas de realizações concretas. Durante muito tempo o Estado
ainda verá no simples recolhimento das vias públicas a forma de manter o problema
da loucura sob controle.
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É nesse período e atendendo a este modelo de saúde pública, que será
inaugurado em 1941 o Hospital Colônia Nina Rodrigues, primeiro hospital
psiquiátrico do estado do Maranhão. Até o ano de sua criação os indivíduos
considerados loucos tinham a sua liberdade tolhida e eram encaminhados à Santa
Casa de Misericórdia ou às cadeias públicas juntamente com presos tidos como
delinqüentes e criminosos. Nesse período a loucura já se apresentava como doença
mental, mas não era tratada como tal, já que os doentes eram recolhidos das vias
públicas principalmente com o intuito de proteger a sociedade dos eventuais males
que porventura viessem causar.
O mérito da criação do Nina Rodrigues reside no fato de que realmente houve
uma melhora no que se refere às estruturas físicas destinadas a acolher os loucos.
O hospital tirou doentes das ruas e os acolheu num ambiente onde eles estavam
longe dos perigos de se conviver em sociedade quando se tem uma doença vista
pelos outros com tanto preconceito.
Mas será esse o objetivo de uma instituição psiquiátrica? Meramente
recolher? O problema consiste no fato da loucura não ser vista como uma simples
doença. Mas a loucura é uma doença. E como tal tem que ser acompanhada e
tratada pelos médicos responsáveis. Mas não é contagiosa, e se não é, por que
tanto medo? Por que afastar, por que isolar?
Enquanto o Estado continuar a agir de maneira segregacionista, não haverá
descobertas na ciência, implantação de novas práticas terapêuticas ou construções
de grandes estruturas que mudem a forma como os loucos são vistos pela
sociedade. Isso porque acima destes fatores está o preconceito. E contra este
somente uma profunda mudança de mentalidade, que parta da desconstrução da
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idéia de que a loucura é uma doença diferente das demais, que exige a separação
do meio social.
Por isso é válido manter a continuidade dos estudos referentes à loucura.
Porque o entendimento do “outro” constrói uma ponte rumo ao fim do preconceito. O
conhecimento aproxima e transforma realidades.
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