Águas de janeiro

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Page 1: Águas de Janeiro

Janeiro – Bruno Gonçalves

Encontramo-nos pela última vez em uma tarde de verão de dezembro. Era um dia lindo e quente. A temperatura beirava os quarenta graus. Eu não aproveitava tão bem as tardes de verão como naquele dia. Embora o calor fosse um dos coadjuvantes daquele cenário escaldante, pude encontrar alegria ao mergulhar de encontro às pequenas ondas nas águas geladas de uma praia tranquila. Eu aproveitei cada fração de segundo na companhia de alguns amigos com os quais comprei carne para assar um delicioso churrasco. Parecia uma festa. Molho, farofa, arroz, maionese, churrasco e coca-cola também completavam a festa em meu estômago. Estava sendo difícil conter tanta alegria em um sorriso que mal cabia em meu rosto bronzeado. Uma conversa saudável e recíproca nos fazia gargalhar e cantar.

Mas foi aí que ela chegou como um penetra estraga prazer de minha diversão, fechando o tempo, acabando com o meu sorriso, desfazendo nossa festa, esbravejando contra nós com fúria e rancor, convidando-nos inconvenientemente a guardarmos nossas coisas e retirar-nos da praia sem poder aproveitar as últimas horas antes do anoitecer e o sol que ainda brilhava.

Entramos no carro. Fui encarando-a com rancor e desgosto até chegarmos a casa, contendo em meus pensamentos uma grande discussão que nos aguardava. “Que atrevimento! Como pôde acabar com nossa diversão na cara de pau? Sua descarada! Me deixou envergonhado na frente de meus amigos; sem reação. Você não tinha o direito!”

E assim chegamos a um acordo, mesmo que eu não quisesse chegar a tal. O que eu queria mesmo era voltar à descontração. Eu a encarei como quem havia deixado por menos. Não insisti na discussão porque sabia que desentendimentos não nos levaria a lugar algum, até porque com elas não se pode discutir. Temos que nos conformar com elas do jeito que são e, apesar de tudo, entregar-lhes a razão; mesmo quando está obvio o seu erro.

Ela preparou as malas, ainda nociva, no entanto mais calma. De vez em quando ainda soltava alguns murmúrios inteligíveis. Guardou tudo. Foi-se rua afora sem se despedir. Deixando-me ressentido ao ver sua partida, buscando em mim mesmo compreender que talvez um dia eu pudesse precisar dela. Partiu horizonte afora até que eu não pude mais enxerga-la.

Ela acabou com o meu lazer, mas pensando bem, evitou que eu gastasse meu dinheiro inconscientemente. “Cá entre nós, ela é uma excelente administradora, menos quando está irritada.” Ela era uma ótima companhia para sessões de cinema em casa. Tínhamos uma relação muito amigável.

Enfim, eu estava a sós. Pensei ser apenas passageiro. Mas ela não me visitou no Natal. Não me desejou feliz ano novo. Me fez comprar novos aparelhos. Arrancou cada suspiro de cada dia, inclusive a de muitos outros. Deixou-me num aperto. Numa encruzilhada de temperaturas febris. Não pagou a conta d’água. E ainda mandou que secasse meu poço artesiano. Me fez ficar sem banho algumas vezes e sem escovar os dentes também. Por fim me deixou sem energia.

Page 2: Águas de Janeiro

Então decidi fazer as pazes com ela. Lancei-me no chão quente e vaporoso, enquanto os raios solares causavam queimaduras em minha pele. E, de alguma forma, ela me ouviu. Porque, mesmo depois de tudo, vi nuvens ao longe. E lá estava ela, para minha alegria, matando saudades: a chuva. Desabando outra vez sobre mim. E juntos dançamos loucamente... Até que eu descobri sua farsa. Tratava-se de uma vingança. Dia seguinte acordei remoído por um forte resfriado.