alberto campinho - pedro ii - o Último papa
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Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Alberto da Silva Campinho nasceu
em 1936 em Barcelos.
Diplomado em Filosofia e Teologia,
licenciou-se em Direito exercendo
durante anos o magistério como juiz
desembargador.
Morreu em 2005 em Braga.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Alberto Campinho
Pedro II
O Último Papa
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Ao Albino Luciani —
o Papa Giampaolo —
assassinado pela máfia vaticana!
E, nele, a todos quantos tombaram
na luta por um ideal —
ver o "Rosto de Cristo",
como O viram os cristãos das primeiras comunidades
dos três primeiros séculos
do Cristianismo:
uma Кoivωviα –
uma comunhão de pessoas que vivem neste mundo,
mas como fermento...
que se difunde para levedar a massa!
Como sal...
que se oculta para temperar o alimento!
Uma comunhão peregrina, fiel ao Espírito do Amor,
onde ninguém chama seu ao que lhe pertence,
porque tudo é de todos.
E, nessa vivência caminhante, sofre, dá a vida, como o Mestre,
para transformar o mundo das pessoas
que não amam.
E, transformando-o, o preparem —
sem dogmatismos,
sem fundamentalismos,
nem códigos,
nem anátemas.
Só mesmo
com o Amor,
do samaritano
que vai ao encontro do tombado na berma,
que opta voluntariamente por se colocar na sua rota,
sem indagar da sua identidade,
raça, sexo, posição social ou convicções religiosas —
para a libertação total
de toda a miséria humana,
na Parusia...
incontornável transe vestibular
da "Nova Jerusalém"!...
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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«Naquele dia — diz o Senhor Deus —
farei com que o sol se ponha ao meio-dia,
e cobrirei a terra de trevas em pleno dia.
Converterei as vossas festas em luto
E os vossos cânticos em lamentações.»
Amós, 8, 9-10
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― «BEM PERTO DO TIBRE CHEGA LIBITINA.
UM POUCO ANTES GRANDE INUNDAÇÃO:
O CHEFE DA NAVE PRESO, POSTO NA SENTINA
CASTELO, PALÁCIO EM CONFLAGRAÇÃO» ―
NOSTRADAMUS, II, 93
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I
Tu es Petrus...
Cheguei, vi-o, dilatei a minha essência e gritei — esquecido de que entrava no
vestíbulo celestial:
— Pedro!... O Apóstolo, a quem Cristo confiou as chaves do Reino! Grande alegria
em ver-te assim, deste lado, irmão!
— Ó meu grande amigo, irmão e homónimo! Já terminou tudo lá em baixo? Bem,
pelo excepcional movimento registado hoje nas entradas...
— Acabo de chegar, irmão Apóstolo e de quem fui o último sucessor. Desde já os
meus agradecimentos por tudo o que, cá do Alto, fizeste por mim! Sabes?!... As
dramáticas horas vividas à partida... Nem é bom lembrar!
— Só o meu dever cumpri, irmão, só o meu dever! A Misericórdia Divina comunica
a Sua Santíssima Vontade, e nós, alegres e solícitos — como é timbre de todos os
felizardos habitantes da Cidade de Deus — vamos em auxílio de quem suplica. Mas,
irmão, grande lutador pela salvação da Humanidade, senta-te, descontrai-te, que
estamos para sempre no Amor — coração do Nosso Deus — onde tudo é novo, onde o
nosso ser — o ser de toda a comunidade dos que amam — se enche de alegria, sempre
mais, na intimidade da infinidade deslumbrante! Então, conta-me essa grande viagem, a
viagem das viagens, aquela que só acontece uma vez na vida.
— Não foi fácil, meu Irmão. Já o meu corpo ardia — lembro-me perfeitamente do
último momento da hecatombe, estava portanto ainda consciente das coisas do outro
lado — e a tentação contínua do pai da mentira quase me sugava para ele! Mesmo no
último instante, lutei com o dragão imundo que, de portas escancaradas e dentes afiados
para me devorar, me incitava, raivoso, a entrar. Irmão, senti isso perfeitamente — era a
força do Senhor Jesus que me dava as palavras: «Afasta-te de mim maldito, só a Deus
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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adorarás!» Momentos terríveis, Pedro Apóstolo! Momentos indizíveis! Quanto ao mais,
recordo a dor física horrorosa que senti logo após o clarão que me cegou, o
rebentamento medonho que se ouviu e o calor abrasador que consumia corpos e tudo
assava. A passagem, porém, foi rápida. Diante do trono do Senhor, prestei contas, como
sabes.
— Que foram aprovadas!...
— O Senhor disse-me: «Eis o livro, no qual tudo se encontra escrito!» Recordei-me
então da sentença que, antes, tantas vezes cantara sem apreender o exacto significado
do que dizia — Liber scriptus proferetur... in quo totum continetur!...
Decorriam assim as saudações entre o primeiro Pedro e eu, o segundo Pedro,
quando, no meio de uma suavidade que a humana natura é incapaz de definir, se ouviu
distintamente:
— Então, filho, novíssimo Pedro ou rocha firme que sustentaste o Meu Povo, no
transe mais difícil de toda a sua caminhada até Mim: porque foste fiel no pouco, vem,
entra na grande família dos bem-aventurados que não mais sofrem. Eu sou o Amor! A Luz
da Humanidade que ama! A felicidade sem fim dos que escolheram o Amor! Para
sempre! Como tu e os "cento e quarenta e quatro mil que lavaram suas túnicas no
sangue do Cordeiro"! Para todos preparei uma eternidade de beleza! Pedro Apóstolo,
sempre rude, mas sempre generoso, aqui está para te acompanhar e apresentar à
Humanidade que livre e definitivamente optou pela VIDA sem dor, sem angústia, sem
medo! Vem, novíssimo Pedro, para ti e para toda a peregrinação se abre a Nova
Jerusalém — a cidade da alegria, das avenidas largas para o Amor, dos canteiros
perfumados para receber os bem-aventurados, das praças enormes e perfeitas para a
abundância do gozo que quis para as Minhas criaturas, das belíssimas moradias que
edifiquei à medida de cada uma. Olha, Paulo também está ansioso por te conhecer e
falar. Tens a eternidade por tua conta. Mas há aqui uma Pessoa que, sendo humana, está
acima de todos os humanos, e faço questão de ser Eu a apresentar-tA — Maria, a Mãe!...
A quem te confiaste e a peregrinação...
— Mãe!... Mãe!... Mãe!... Mãe da Cidade Nova!... Da nova Humanidade! Da Paz
Eterna! A Ti, coros de anjos e arcanjos entoam sem fim esta harmonia suave e inebriante.
O meu ser não é capaz de entender toda a extensão da Tua grandeza, Mãe! Mas sinto
força para me unir aos coros celestes e louvar-te para sempre. Mãe que me salvaste em
tanta hora de dor! Mãe da Igreja que foi e da que é, agora, na posse infinda do Criador,
face a face, tal como é! Como quero agradecer-Te, Mãe, por tudo o que deste aos teus
filhos! Perversos, tantas vezes! Mas, logo arrependidos, por Tua intercessão! Mãe
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poderosa! Mãe do próprio Deus — Palavra Eterna, no tempo comunicada à Humanidade
e sua redentora! Sem este Verbo que trouxeste no Teu seio, que teria sido da Criação?
— Filho, último sucessor de Pedro e, como ele, Pedro também. Sei que seguiste
sempre o "meu Evangelho". Lembras-te daquilo que tinha dito nas bodas de Canaã da
Galileia? Que o Nosso Deus te tenha recompensado, isso é para mim e para todos nós
motivo de — se possível — acrescida alegria celestial.
— Agora vejo que não nos comunicamos por palavras. Nem eu teria palavras para
exprimir a transparência desta misteriosa comunicação dos santos que invade a pessoa
humana que vive para sempre o Amor! E só agora compreendo o significado da posição
de Paulo — o grande Apóstolo dos Gentios — relativamente à impossibilidade, naquela
fase da vida, de compreender o que Deus tem reservado aos que n'Ele confiam. Maria, a
Mãe! — a solicitude, o carinho, o extraordinário sentido de entrega! A grande família dos
santos, dos que escolheram o Amor, a alegria indizível, a paz, o conhecimento alargado
da vida e da natureza do nosso Deus! A harmonia, a beleza, a glória! A Natureza Humana
unida à Natureza Divina! Isto é inexplicável!... Como lá dizias, ó irmão Paulo Apóstolo,
«nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram a maravilha que Deus guarda aos que O
amam!»
— O tempo é a medida do efémero. E este já nada significa para nós. Estamos
definitivamente fora do tempo, meu caro. Gozamos a plenitude da vida. O tempo acabou
do outro lado. O espaço que limita desapareceu. Só o Amor é! Que é a nossa Vida...
Amar, amar, sem fim!... A eternidade do Amor. — Era Paulo, o Apóstolo das Gentes, em
seu característico discorrer.
— Se nesta situação fosse permitida uma palavra muito usada lá por baixo nos
últimos tempos, eu definiria o Céu como a globalização do Amor!
— Abre-te, então, meu irmão, enche-te da felicidade que esperaste. Saboreia a
Vida que te é oferecida magnanimamente pelo nosso Deus. O sofrimento acabou. Isso foi
do lado de lá. Quando ainda estava no tempo, levaram-me à cruz, como fizeram ao nosso
Bom Mestre. Por pouco evitei que me crucificassem da mesma forma. E eu não me
achava digno de semelhante paralelismo. Pensei mesmo que o meu assentimento a tal
posição na cruz poderia ser considerado como mais uma negação! E seria a quarta!...
Livra! E o facto é que eu não sabia se em Roma os galos seriam tão lestos no trombone
como os de Jerusalém, avisando-me a tempo das minhas fraquezas. Ouviste muitas vezes
dizer, irmão, que pugnei então para que me colocassem de cabeça para baixo. E é
verdade. Verdade, também, que os carrascos fizeram-me a vontade. Se sofri?! Nem
queiras saber! Bom, mas desde que entrei na posse eterna do Amor... Não digo mais,
pois chegaste, estás na posse da mesma felicidade, da mesma alegria, do mesmo Amor
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— o nosso Deus! Mas, irmão e meu último sucessor, durante o tempo de que a
Humanidade acaba de se despedir — queres saber? — também sofria. Como sofria o
nosso Misericordioso Senhor, ao contemplar a ingratidão dos que O não aceitavam. Tudo
deu. Nada recebeu em troca. Um pouco de gratidão era o mínimo exigível. Quem ama a
sério muito sofre!
—A quem o dizes, irmão, a quem o dizes!...
— Neste sentido, Deus e toda a família celeste também sofriam. E o que mais
custava, irmão, era saber que, perto do local — chamado Vaticano, no Trastevere da
velha Roma — os meus sucessores e teus predecessores fizeram construir a sede de uma
Igreja que chamaram de católica, aí erguendo um sumptuoso templo, a que, contra
minha vontade e sem cuidar de solicitar a minha prévia autorização, deram o meu nome.
E, não contentes com tal caixa de esmolas global (apregoadas como se para mim fossem)
construíram palácios, jardins, belas mansões para a dolce vita! Ah! Irmão, ainda bem que
tiveste a coragem de acabar com o Vaticano. Redimiste, com tal gesto heróico, muitos
séculos em que a barbárie e a hipocrisia quase submergiam os fundamentos da nossa
Ecclesia, aquela Assembleia que nós reunimos na fé do Ressuscitado. Como fez o nosso
Bom Jesus no Templo de Jerusalém, também tu tiveste a coragem de pegar no azorrague.
O cristianismo dos primeiros séculos, aquele que eu preguei pelos difíceis caminhos da
Judeia até Roma, tinha sido apunhalado pelos vícios do Poder! Muitos dos que se diziam
meus sucessores mataram, mandaram matar, esmagaram, vilipendiaram, enxovalharam,
destruíram pessoas amadas pelo Nosso Bom Deus, que por todas deu a Vida! Invocando
o nome santo de Deus e usurpando o meu próprio, optaram incrivelmente pelo espírito
do mundo! Esqueceram completamente o Mestre: «O meu Reino não é deste mundo!...»
Irmão, desde esta posição privilegiada, nada passava despercebido do que do outro lado
acontecia. Houve vozes incómodas que gritaram em tempo (vês, mesmo aí ao lado, a
grande Catarina de Sena, a mulher que desafiou aquele que havia tomado o nome de
Gregório XI, aconselhando-o «almeno fari di lavare il ventre della santa Chiesa»), contra a
aberração de uma Igreja de poder e luxo estar a usurpar o santo nome de Jesus — o
Cristo Redentor da Humanidade, nascido numa gruta e morto numa cruz, no meio de
dois criminosos! Compreendes, irmão Pedro novíssimo, como se sofria ao ver sofrer o
Amor?!. Bom, irmão, deixemos estes lamentos sem sentido agora. Vamos conhecer a
grande Cidade Nova! Olha Paulo! O meu grande amigo Paulo que percorreu o mundo,
amando e sofrendo para a todos levar a Palavra — a Comunicação de Deus à
Humanidade! Olha João, o que do outro lado assistiu a tudo e disse do Verbo coisas que
mais ninguém soube dizer, enquanto o mundo era mundo. Em Patmos, já fisicamente
acabado, ainda tinha forças para escrever aquela maravilhosa verdade: «Deus é Amor!»
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João, «o discípulo que Ele amava». Mais ninguém, no tempo do tempo, teve iluminação
tal para dizer tais coisas!
Mas aqui está também o outro João, o que pregava no deserto e baptizou o Mestre
no Jordão e de quem Jesus disse um dia que «de entre os filhos de mulher, não veio ao
mundo ninguém maior do que ele!»
Paulo, João Batista e João Evangelista juntaram-se a nós, na grande avenida do
Amor. Conversa e mais conversa. Recordações do tempo que cada um teve do outro lado
e que cada um partilha agora com os outros.
— Olha... olha... olha... — Pedro sénior abria-me os olhos para uma infinidade de
apóstolos, santas e santos de todos os tempos, pessoas que, cada uma a seu modo,
souberam amar! A apresentação de Pedro Apóstolo é sem fim.
Entretanto — velho hábito de pescador do mar da Galileia — foi pedindo:
— Conta-me a tua história. A mim e a todos os humanos que aqui vivem a
maravilha do eterno clímax da existência! A grande família celestial vai elevar-se ao ouvir
da tua boca o relato fiel dos últimos tempos.
— Meu irmão, Pedro Apóstolo, obrigado pela tua recepção, pela tua simplicidade,
pelo teu carinho. Sei que sempre estiveste atento aos meus passos, que nada te escapou.
Não ignoro que ouviste os meus constantes apelos, as minhas lacrimejadas súplicas e as
transmitiste fielmente ao nosso Bom Mestre. Acredito que perscrutaste constantemente
o meu coração. Cá, da eterna beatitude da presença inefável do nosso Deus, gravaste
para sempre as minhas ânsias, o meu sofrimento, as minhas lamentações. Mas, se apesar
desse teu conhecimento da existencial beatitude, ainda assim o desejas, vou recordar,
perante esta magna assembleia — plenitude da verdadeira comunhão (de que a Кoivωviα
dos teus tempos de Apóstolo era pura metáfora) da Criação que se reencontra
finalmente e para sempre com a inefável natureza amorosa do Criador — uma história
que não é minha, mas da Humanidade toda que sofreu as dores de parto... da felicidade.
***
— Suponho que sabes, Pedro primeiro e meu irmão, eu nasci num dos mais pobres
continentes do planeta Terra que acaba de se esfumar. Muita riqueza havia, com certeza,
naquela parte do mundo. Mas era toda para os de fora. Os do Norte tinham força e
engenho, mas tinham também o espírito das trevas que os fizeram predadores dos povos
do Sul. Levavam tudo. E o nosso povo? — Perguntas. A gente simples, os humildes, os
nossos anawim... ou encurvados, os que sofriam sem esperança, como os do teu tempo
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nas terras da Judeia, eram objecto de desprezo e continuamente espezinhados pelas
botas cardadas dos apalhaçados generais que os do Norte lá colocavam como seus
capatazes. O meu país — o Brasil — possuidor de imensa riqueza, capaz de satisfazer as
necessidades de todos os povos que aí habitavam e ainda dar aos outros, desde muito
cedo foi objecto da mais desenfreada cobiça por parte de outros povos — os europeus —
vindos do Oriente, do outro lado do mar. Mas, meu irmão, o pior de tudo é que estes
predadores chegaram lá transportando a cruz, símbolo máximo do Amor do nosso Bom
Jesus — Palavra de Deus que quis entrar na Humanidade — o mistério do Criador que
voluntariamente se torna também Criatura. Diziam eles, pela boca dos seus funcionários
(a quem chamavam "missionários") que iam "dilatar a fé". Porém, o mais brilhante de
todos os seus poetas escreveu a verdade, acrescentando àquela vontade dilatadora "o
império"! Não estou a julgar os pobres jesuítas e outros clérigos que se lançaram na
aventura das naus. Provavelmente, os dilatadores — "do império" — faziam-lhes crer que
era justamente a fé o objectivo do empreendimento. Mas o certo é que muita gente
nativa foi espoliada, perseguida e morta, em nome da fé no nosso Bom Jesus. E passaram
séculos e mais séculos, até ao fim, sem que a febre da predação das riquezas do Brasil e
de todo o subcontinente americano amainasse. Já perto do fim do tempo, ainda
alimentava esperanças de que as coisas tomassem novo rumo e os pobres levantassem a
cerviz, com a eleição de um presidente que conhecia, como poucos, a dor da favela. A
sua linguagem era a do Evangelho. Ele anunciava a Boa Nova da salvação aos pobres,
como fizera o nosso Bom Jesus. E prometeu não ser nem permitir mais capataz naquela
terra! Os brasileiros iriam, por uma vez, tomar nas mãos os seus próprios desígnios! Mas,
irmão, tudo estava minado. O dinheiro, o poder, a dominação — o anticristo, afinal! —
eram vícios medulares nos dilatadores. E, como bem sabes do próprio exemplo dado,
infelizmente, por aquele dos doze que entregou o Mestre, o dinheiro e o poder sempre
foram sinónimo de corrupção. Desde o princípio, até ao fim. A metáfora bíblica da
adoração do "bezerro de ouro" estava patente no acto humano de quantos preferiam as
trevas à luz.
Vivia-se um momento de muita angústia, o desconcerto das nações e povos
prenunciava já forte borrasca, os ensaios do terror espalhavam-se por todo o lado,
deixando no ar estranhos odores a carne queimada, quando eu, derrotado nas minhas
tentativas de remar contra a corrente avassaladora do mal — derrotado, mas não
desesperado! —, recebi um telegrama suspeito. Nem queria acreditar! Alguém tinha
sugerido ao velho papa que eu deveria ser candidato ao chapéu cardinalício. (Uma
velharia feita de muita vileza humana com que a história tornou negra a Igreja nascida do
lado aberto de Cristo na cruz e pela qual tu próprio, irmão, foste até à Roma do teu
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martírio. De uma simples denominação dos clérigos que permaneciam ligados a uma
determinada comunidade ou a uma função litúrgica, em breve passou a "dignidade"
eclesiástica, com funções de conselheiros do papa e, no conjunto, o seu senado. Mas,
como sempre acontecia lá por baixo, também a tal "dignidade" começou a ser objecto de
negócio, e assim muito homenzinho sem qualquer dignidade se acoitava por debaixo da
"dignidade" cardinalícia. Também houve santos que aqui estão connosco — e eu próprio
— "submetidos" àquela "dignidade". Mas, em grande parte, lutava-se por ela como
guerra de conquista. Uma vergonha, irmão, uma vergonha, sobretudo porque se tratava
de pessoas que se diziam "servir" a Peregrinação.) No que ao meu caso diz respeito, não
dava para entender a pressa. Então, com pouco mais de quarenta anos, o arcebispo do
Rio tinha de ser já cardeal? Mas porquê? Que querem de mim? Calar uma voz
incómoda?! É isso mesmo. Querem acabar comigo, atrás de uma qualquer masmorra da
Cúria vaticana. Sabes, irmão, a minha vida tinha sido vivida entre o excluído da favela e o
menino ou a menina da rua. Qual a minha reacção? Que deveria responder ao papa
quando me convidasse a deslocar a Roma?
Chegada a notícia oficial, impunha-se uma preparação cuidadosa da viagem. De
oração e penitência me armei. E, cheio de processos e assuntos a tratar na Cúria, voei
para o coração da cristandade. Coração que nem sempre bateu certo, como sabes.
Durante a viagem — muitas horas separavam o Rio de Janeiro da velha Roma —
quis pôr a leitura em dia.
Tu bem sabes, irmão, que nos últimos tempos também surgiram profetas, de voz
cortante, a anunciar os erros do Povo de Deus e dos seus chefes. Chamavam então aos
seus escritos a "Teologia da Controvérsia", mas eram apenas vozes fortes que
começavam a colocar em crise a verdade da autoridade, em conflito aberto (por vezes, a
causar lamentáveis roturas) com a autoridade da verdade. Leonardo Boff, meu patrício
que muito prezava e que muito sofreu, Paul Gauthier, que profetizou em Nazaré, como
operário de voz ardente, aquilo que os chefes não quiseram ouvir. O seu grito mais
profundo fez-se ouvir em Jesus, a Igreja e os Pobres e no seu mais inspirado libelo O
Evangelho sem Padres. Em viagem tão incómoda para mim, nada melhor do que co-
meçar por escutar e assimilar vozes da fé, de profetas dos tempos novos que o eram,
sem dúvida, do Amor ao Povo — espelho do Nosso Deus. Mas também de teólogos da
cátedra, como Bernard Häring (o da moral, que havia estado muito interveniente no
Vaticano II, a pedido do teu sucessor e meu antecessor Paulo VI), Hans Küng (o das
inovações sem medo, também convidado de Paulo VI), Eugen Drewermann (o psica-
nalista que deitara no seu canapé de observação toda a classe clerical, dela fazendo
diagnóstico demolidor), Mr. Gaillot, bispo de Evreux, que ousou afrontar a verdade da
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autoridade e acabou suspenso da missão que lhe haviam confiado — o homem inspirado,
quando disse que «uma Igreja que não serve, não serve para nada!» — e de outros
santos, não canonizados, mas que escreveram "caminhos" de liberdade no Espírito de
Jesus. Todos eles faziam a minha companhia. Amiúde, levantava os olhos e perguntava-
-me como é que podem o Papa e a Cúria romana resolver problemas teológicos ou
disciplinares à cacetada, matar ideias com excomunhões, ou escondê-las, coercivamente,
num qualquer cárcere domiciliário ou entre paredes centenárias de um qualquer
convento medievo? Se há exageros, corrijam-se fraternalmente. Se existem estudos
sérios de gente que vive para o progresso da teologia, que aprofunda constantemente a
Palavra comunicada por Deus à Humanidade, mas que está em desacordo com a verdade
oficial, escutem-se esses irmãos. Talvez tenham razão. Talvez a coragem de os ouvir
venha a mostrar a verdade cristalina das suas conclusões, mesmo que incómodas para a
Cúria. O tempo das fogueiras sagradas, a queimar "hereges" que ousaram discordar
publicamente da verdade da autoridade, estava, de há muito — graças ao Espírito —
ultrapassado. — «Então, só uma atitude é legítima — mudar! Custe o que custar! Caia o
que deve cair! Para que Cristo — e só Ele! — apareça, alevantado, glorificado, bem à vista
do Seu Povo. 'Então atrairei todos a Mim', disse Ele. E Ele é a Verdade! E a Verdade atrai
toda a gente, quando nasce espontânea nos corações que a buscam, livremente, talvez
contra a "autoridade", mas com amor. Ela tem a força necessária para se impor por si
própria. Só essa pode ser a única autoridade admissível na Igreja — a da Verdade!» —
Era, Irmão Apóstolo, a minha consciência atordoada por tantas ideias de mudança que
me era impossível sequer dormitar.
Foi uma viagem cheia de interrogações, de dúvidas, de muita angústia também,
mas de grande recobrar de ânimo, para, em todas as situações, tentar descortinar os
sinais do Espírito e avançar no sentido que Ele sugerir. Doa a quem doer. — «As portas
do inferno não prevalecerão!» — Essa era a minha grande certeza, irmão Pedro Apóstolo
e vós todos irmãos que me escutais, no seio do Amor.
No Vaticano vivia-se triunfalmente, como de costume, essas coisas sem qualquer
significado para o cidadão comum e, particularmente, para o cristão consciente daqueles
tempos conturbados que não tolerava o folclore, o luxo, a corte papal de poder instalada
pelos séculos — oh, irmão, custa-me dizê-lo... — precisamente no mesmo lugar onde tu
mesmo deste testemunho da Verdade, deixando-te pregar numa cruz, mas suplicando
aos carrascos que te colocassem de cabeça para baixo... pois não te sentias digno de
morrer como o Mestre!... Roma ou Babilónia?...
Bom, irmãos, o certo era que, naquela cidade, só os clérigos dos graus superiores e
os magnatas da nova nobreza dos endinheirados davam importância a estes actos papais.
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Um consistório — assim chamavam ao acto de criação de cardeais — era apenas mais um
pretexto para pingues banquetes, almoços, jantares e bailes de gala nas grandes casas,
nas vilas sumptuosas, com muitos purpurados luzidios de ouro e seda — que a si próprios
se intitulavam de "príncipes da Igreja", não da de Jesus, com certeza! — muito diplomata
de rabo levantado (perdão para a expressão pouco celestial) e coloridas faixas de seda na
diagonal das comendas, muito tropa de farda número um — cujo dólmen mal dava para
a exibição das condecorações — muita colónia, muito fraque, muita fraqueza, muita
miséria da miserável vaidade humana que Cristo combatera sem dó nem piedade! Aliás,
irmãos, permiti-me mais um desabafo pessoal (era meu feitio lá em baixo, para me não
deixar submergir), no Vaticano, sentia-se a ausência total do Espírito de Jesus! O "reino
do mundo" — o anticristo — tinha-0 afastado. Como em Belém, agora também em Roma
não havia lugar para Ele!
O acto da criação de um cardeal da Igreja romana, com tantas sedas — capas,
chapéus e barretes, tudo muito exótico e carregado de passamanaria — a que acresciam
os cordões, anéis e cruzes peitorais em ouro, representava o apogeu da vaidade clerical,
o exibicionismo gratuito da sedimentação histórica dessa vaidade, um dos mais curiosos
meios de conservação do tremendo erro que o imperador Constantino impôs à Igreja de
Jesus e que todas as suas cabeças aceitaram de bom grado, ao longo dos restantes
séculos: a transformação do serviço em poder, do servidor em servido, da virtude em
vaidade, do apóstolo em monarca, do "Reino de Deus" em reino das coisas bem
mundanas! A relação de Amor na Igreja de Jesus que sempre se vivera nos três primeiros
séculos de cristianismo e que levou tantos e tantos cristãos às feras do Coliseu era agora
código, era lei, era anátema, como o impunha aquela transformação de Pedro em Caifás
— Sumo-sacerdote, Sumo Pontífice... — da comunhão (Кoivωviα) em divisão (os crentes
no mistério de Jesus tinham agora duas categorias perfeitamente institucionalizadas,
"clérigos" e "leigos" que o código de direito canónico não se esquecia de sublinhar...), da
Assembleia (Ekkλεσiα) dos santos em sinagoga! — «A partir do Século IV da era cristã,
nunca mais houve coragem para erradicar o mal e acabar com a maior contrafacção da
verdade da Boa Nova do Reino!» — Tinha-me segredado o velho franciscano (está entre
nós, felizmente, sempre revestido da sua humildade), Estêvão — homem de grande
envergadura intelectual e não menor estatura moral que, acompanhando-me para todo
o lado, não deixava a estamenha, a oração e o estudo das questões que mais
preocupavam a Humanidade.
Terminado o cerimonial na Capela Sistina, o Papa demorava com cada um dos
novos cardeais algum tempo, em conversa, não só de circunstância, mas sobretudo de
informação pessoal acerca dos projectos para as respectivas dioceses ou, para os que
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ficariam na Cúria, acerca das opções a fazer relativamente aos lugares em aberto.
Chegada a vez do cardeal bambino — como tinha ouvido apelidarem-me e não gostei
nada — a conversa foi toda ela à volta do tema que tanto preocupava o Papa: «Como
anunciar o Evangelho àquela gente pobre das favelas». — Confesso-vos, irmãos, que por
momentos o Papa me dava pena! Não pelo que dizia, mas essencialmente pelo que não
dizia, mas deixava entender. É que parecia notório não ser exactamente o anúncio do
Verbo de Deus aos milhões de deserdados da favela que o preocupava, mas sim o
"perigo"(!) que um "cardeal" corria na vivência desinibida que levava de anos ao serviço
daquela gente, dando voz, a indignação, a vontade de mudança. Com um sorriso franco,
mostrei então ao Papa o meu coração, dizendo que anunciava Cristo aos brasileiros
despojados de tudo, como sempre: fazendo-me próximo de todos aqueles para quem a
miséria da exploração e o sofrimento de tanta injustiça tornara a vida sem sentido. «Aí —
acrescentei — a atitude do samaritano da parábola é a base da minha evangelização!» O
Papa ouviu-me com atenção e parecia impressionado com a minha vivacidade e
determinação. Incitou-me então a prosseguir sem desânimo «esse caminho cheio de
sacrifícios». Mas, por fim, de dedo indicador no ar e voz de comando (lembrei-me então
de ti, Pedro Apóstolo, e das diferenças de quem se dizia teu sucessor): «Não se esqueça,
irmão, de que o amor dos pobres não o deve levar ao marxismo da chamada teologia da
libertação! Cuidado, irmão! O perigo espreita, e cada frase sua, cada atitude que tome
não rodeada de cautelas, será sempre e logo interpretada no pior sentido. Brevemente
se verá a braços com acusações que lhe minarão os esforços de evangelização. Rezo por
vossa eminência, que vive muito próximo da falésia, do marxismo!». Mais tarde, em
audiência ao embaixador do Brasil, o Papa mostrava ainda os seus temores a meu
respeito: «Um apóstolo que meteu no coração a Mensagem Evangélica, comunicando-a
com muito carinho e uma grande coragem! Mas vive paredes-meias com a chamada
'teologia da libertação'. Temos o dever de estar atentos e evitar que caia!» O velho
franciscano, meu leal companheiro pelo mundo e ao qual o diplomata referira a conversa
com o Papa, terá respondido: «Tal como os outros dois predecessores, também este
Papa vive ainda sufocado pelos fantasmas do marxismo. O medo deste homem vestido
de branco prende-se com a apologética versus comunismo.» Mas, como parênteses, deve
ter-se em conta também — para um correcto conhecimento da mentalidade do Papa —
a influência que nele tiveram as teses neoliberais do fundador duma sociedade secreta
que a si mesma se reivindicava de católica e fiel aos preceitos evangélicos e cuja
finalidade seria a santificação dos seus membros pelo trabalho. Foi pela mão do Papa
que, dentro em pouco, os seus seguidores encheriam o Vaticano. Ora, meu irmão Pedro
Apóstolo, toda a gente sabia que a tal secreta era-o de banqueiros e de outros homens
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
17
com ligações a outras secretas que viviam do dinheiro e para o dinheiro. Defendiam as
posições políticas mais retrógradas e opressoras dos povos e, mesmo, da nova religião da
globalização da pilhagem de matérias-primas aos mais pobres. Teologicamente, eram a
vacuidade. A Verdade, para eles, era a verdade da autoridade! Enquanto isso, fizeram
construir na City de Nova Iorque (243 da Av. Lexington) uma bonita torre, onde viviam
muitos dos chefes e onde estabeleceram a respectiva sede. Bom, fechado o parênteses,
concluiu assim o diplomata a sua frontal resposta ao Papa: «E os dois terços da
população mundial que vivem nos patamares da miséria, senhor embaixador? Como
levar-lhes a mensagem de esperança que Cristo meteu no coração da Humanidade,
chamando um Povo-comunhão, para ser seu fermento e sal ao longo dos séculos? Com
palavras de piedosa resignação? Ditas por homens vestidos de sedas, sustentando
cordões de ouro ao peito e apoiando regimes que vandalizam o santuário do Espírito de
Jesus? O Pedro do Rio vive este drama intensamente. No nosso País, senhor embaixador,
mas também à escala planetária. E entrega-se totalmente à tarefa gigantesca de tentar
travar esta avalanche imensa de exclusão social. Quando Cristo prega 'bem-aventurados
os pobres, porque deles é o Reino dos Céus' não está a fazer o elogio da pobreza, da
miséria, que Ele seguramente não quer nem pode querer, porque sumamente injusta,
diabólica, contrária ao Seu Espírito. Mas a ensinar uma verdade extremamente
incómoda, como o é toda a Verdade do Reino: aqueles que tomam consciência da sua
condição de pobres, os que acordam e se vêem a si próprios reduzidos à condição de
anawim, ou encurvados, explorados, oprimidos, necessariamente se levantarão contra
essa condição indigna da pessoa humana e, fazendo-o, serão os bem-aventurados,
porque vão lutar por um outro reino, o Reino de Deus — que a si mesmo se define como
Reino de Justiça, de Amor, de Paz! Ver na luta a que Pedro dá todo o seu apoio e
incitamento "a falésia do marxismo" é grave, é miopia muito acentuada, tanto mais
perigosa quanto é certo residir nos olhos de quem os deveria ter bem escorreitos, para
não suceder que conduza o rebanho para o barranco. 'Se um cego conduz outro cego,
vão os dois cair no abismo' — disse o Mestre. Oremos, senhor embaixador, pelo Papa,
pela Igreja que vive numa terrível encruzilhada da sua longa história.»
— Oremos, sim, padre e meu amigo, oremos!...
Deste "amigo padre", comentaria depois comigo o senhor embaixador: «Um
seguidor actualizado do Francisco de Assis!»
(— A propósito, onde está o Homem do povorello? Que saudava as irmãs flores e o
irmão vento? Quê? Ah! Bem! Desculpa, aqui mesmo ao pé e não me dera conta.
Continuas o mesmo, irmão Francisco!
— No Céu, o Espírito é o mesmo, eternamente. E sempre novo! — Respondeu-me
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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do meio da sua simplicidade.)
Enquanto me demorava em Roma, era convidado para recepções, almoços e
jantares, com que a nobreza romana costumava festejar os eleitos de cada consistório.
Apenas aceitei uma cerimónia breve na embaixada do meu país. Tinha, então, viagem de
regresso marcada para essa noite. Uns dias depois, na catedral do Rio, haveria de me
queixar publicamente contra esta ligação bastarda dos homens do topo da hierarquia
eclesiástica aos senhores do poder. Que hoje significa, em Roma, acima de qualquer
outra região do mundo, poder das máfias, das lojas, dos tentáculos planetários do diabo.
Desde os tempos de estudante na Pontifícia Universidade Gregoriana, aprendera a
abominar esta gente e as suas "alcovas de poder". Como tinha escrito meu pai, num dos
mais violentos libelos contra o exercício do poder no Vaticano, em nome d'Aquele que
ensinou com a mais cortante simplicidade: «Aquele que de vós quiser ser o primeiro, será
o último!» Agora, ao ver com meus olhos e ao sentir na pele os malefícios de tal conúbio
satânico, a primeira coisa que se me impunha, em consciência, era afastar-me. Ao sair de
Roma, meus queridos santos, escrevi uma carta aos cristãos do Rio de Janeiro,
formulando então um propósito muito sério: «combater, por todos os meios ao meu
alcance, qualquer forma de poder instalado na Igreja de Cristo. O cardinalato, para o que
quiseram escolher-me, recebi-o, não como a "dignidade" clerical que lhe está ligada, mas
apenas como um sinal (mais um) daquilo que é preciso mudar na "Comunhão" dos
crentes no mistério de Jesus. Quer queiram quer não. Em nome da fé, do Evangelho que
jurei cumprir e ensinar, seguirei o caminho da reparação dos erros históricos que urge
emendar. Eles não podem persistir. Com a humildade da verdade! Como o nosso Mestre.
Nem que necessário seja, como Ele fizera, expulsar dos templos de hoje toda a turba de
vendilhões que por aí medram à sombra do nome três vezes Santo de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Não espereis, por isso, ver-me alguma vez vestido de sedas escarlates e
cordões de ouro.»
As longas horas da viagem entre Fiumicino e o Galeão, para além do natural
descanso, tinham-me concedido momentos óptimos de silêncio e meditação sobre o
programa da minha vida no, então, meu futuro imediato, ao serviço de todos os cariocas,
mas, muito particularmente, dos mais carenciados. São eles os destinatários imediatos da
Boa Nova do Reino.
No desembarque, aparecera à porta do avião em camisa aberta saudando quantos
quiseram dirigir-se à aerogare para me receber. Os humildes cariocas já se tinham
habituado à simplicidade do meu estilo de vida. De modo que ninguém daquele povão
achava menos séria a minha postura social. Pelo contrário, toda a minha gente louvava o
meu desprezo sistemático pelo formalismo. Não escrevia cartas nem notas pastorais,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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mas, recusadas as então tradicionais vestes cardinalícias, dirigia-me pessoalmente às
diversas cadeias televisivas e falava ao povo. Directamente. Invectivando. Traduzindo
para linguagem do tempo as parábolas de Cristo. E perguntava aos "coronéis" se
achavam justo roubar as terras aos índios, fazer escravos irmãos nossos que têm os
mesmos direitos que nós temos, matar aqueles que se revoltam contra a espoliação?!
Aos esquadrões da morte, responsáveis pela liquidação sistemática de "meninos da rua",
se sabiam quem fizera dessas crianças verdadeiros criminosos do furto e do roubo?! Às
autoridades estaduais e federais, se viviam satisfeitas com o trabalho realizado, se as
grandes fortunas acumuladas por alguns não teriam crescido sobre os cadáveres de
tantos, se as injustiças sofridas por um povo tão bom não os incomodavam?! Se não
ouviam os gritos de dor dos esmagados, dos esfomeados, dos rotos, dos sujos, dos
doentes?! Se o espectáculo da favela não lhes dizia nada?!
— Eh!... Essa aí digo eu, Pedro. Eu sou testemunha! Peço licença a Pedro Apóstolo
e ao meu Pedro do Rio, mas eu também queria falar.
Toda a corte celestial se voltou para o lado, para ver donde saía semelhante voz
forte, mas infinitamente meiga, como sorriso de criança.
— Quem é essa consciência comunicante, irmão? — Pergunto, cheio de alegria, ao
chaveiro do Céu.
— É a voz colectiva dos meninos da rua que tu agasalhaste da intempérie da
maldade, protegeste dos esbirros dos poderosos, adornaste para a glória eterna!
— Belo! Maravilha das maravilhas! Voz colectiva... Permites, irmão Pedro Apóstolo,
que se oiça o que tem para dizer?
— Mas, com certeza, e a vénia do Espírito!
Todos se olhavam, no Amor do nosso Deus. Então, o coro infindo e afinadíssimo
das vozes infantis entoa um cântico de louvor à Santíssima Trindade, cuja beleza ninguém
na Terra conseguiria imaginar.
— Pedro Apóstolo, o que é isto?
— Ouve e já compreendes.
— Toda a Terra — dizia a voz colectiva, com celestial harmonia em fundo — ouvia
os diálogos televisivos do nosso pai-Pedro do Rio, sempre em directo, sem rodeios e
tabus. Desde as então candentes questões da actualidade do diálogo Norte-Sul, da
injusta e escandalosa miséria dos povos do Sul, espoliados das suas riquezas naturais em
proveito dos espoliadores — as multinacionais dos povos do Norte — até aos gravíssimos
problemas da poluição à escala planetária, com imediato reflexo nas apocalípticas
alterações climáticas do planeta e seus ecossistemas, não esquecendo o «crime nefando
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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dos que assaltam e destroem sem piedade e, apenas gulosos do lucro fácil, as florestas
amazónicas e todas as áreas protegidas do globo», o nosso pai-Pedro a todos mostrava o
enorme pecado da humanidade-criminosa e pedia que se arrependessem os predadores,
arrepiando caminho, enquanto era tempo! Pai-Pedro do Rio era voz quente de profeta
apaixonado pelo seu Povo, ensinando e apresentando a visão específica do cristianismo e
sua contribuição para a tentativa global de se inverter a marcha acelerada para o abismo
cósmico. Mas a sua obra predilecta e da qual falava sempre, como exemplo do que todos
podiam fazer para a elevação da Humanidade e para a Paz, éramos nós — os meninos da
rua. Por ele, estamos nós nesta assembleia de santos. Quantas lágrimas Pedro enxugou
nos nossos olhitos tristes e chorosos! A sujidade que ele lavou nos nossos rostos e almas!
O pão que ele nos deu em alimento do corpo e do espírito! As lutas que ele travou, as
ciladas que suportou, as ânsias que sofreu! Tudo por nós, para nos mostrar que em nós
residiam pessoas dignas do Amor! Querem mais? Oiçam, ainda: éramos, então, em todo
o Brasil, mais de um milhão — avançavam as agências. Pedro chamou sociólogos,
antropólogos, economistas, políticos, gente dos sindicatos, das associações de
voluntariado. Foram debatidos em directo na televisão todos os aspectos do problema.
Desde a génese até ao tiro disparado pelos esquadrões da morte. Era urgente fazer
qualquer coisa. — «Chamar, gritar, levantar os braços. Quebrar o tampo da mesa. Dizer
basta! O fenómeno tem soluções. Ou as buscamos — e já! — ou todos por ele seremos
destruídos!» — A voz de pai-Pedro era alarme, continuamente a incomodar. Muitos
foram os que compreenderam o sinal. E a obra das crianças sem tecto, daquelas crianças
que não conheciam os próprios progenitores e acabavam infalivelmente na droga, no
roubo e na morte prematura, começou a dar os primeiros passos. Ao fim de dois anos, só
no Rio existiam já trinta e duas comunidades que davam alojamento, vestuário,
alimentação e educação a cerca de duzentos meninos e meninas. A obra rapidamente se
desenvolveu em todo o país. De todos os lados, sobretudo das grandes metrópoles
brasileiras, vinham pedidos de abertura de "comunidades". Os bispos brasileiros
olharam, por fim, em frente e apoiaram em bloco a obra do "cardeal do Rio". Os
resultados estavam à vista. No curto espaço de dez anos, deixou de haver assaltos nas
ruas e avenidas. Nas delegacias de polícia já ninguém se queixava contra os garotos do
inferno que levavam relógios e anéis dos turistas, sob a ameaça de facas ou pistolas. Os
esquadrões da morte deixaram de gastar munições no abate destas aves que voavam
rastejando, porque ninguém as tinha ensinado a voar para o alto. Agora, sob os cuidados
e a pedagogia de pai-Pedro, as penas das asas cresceram, os músculos tornaram-se fortes
e todos começaram a aprender que estas aves de coração grande ou saem do ninho a
saber voar, ou, na falta de um ninho substituto, acabam sempre, de asas atrofiadas,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
21
caindo então sem hipótese de fuga na ratoeira dos franco-atiradores ou na lama do crime
onde se atolam e apodrecem. E, com elas, era toda a sociedade a feder! O "milagre" de
pai-Pedro correu mundo. Jornais e revistas, televisões e rádios de todo o lado
apregoavam os métodos do arcebispo do Rio. As entrevistas eram solicitadas com muita
antecedência. A todos respondia com cordialidade, explicando que se tratava de um
movimento endógeno das próprias crianças que se assumiam como senhoras de si
mesmas. Nada era proibido naquelas "comunidades" — a que muitos já chamavam
"comunidades Dom Pedro" — «excepto amar sem Amor». — Dizia. «Se um garoto vem,
experimenta a vida comunitária e depois foge, não vamos atrás dele. Lamentamos e
procuramos abrir mais portas, para que os que ficam não fujam.»
— Obrigado, meus irmãos. Como é bom, pela Misericórdia do Nosso Bom Jesus,
poder dar graças ao Nosso Deus, pelas maravilhas que fez, também convosco, meus
amigos desta Comunhão de Amor Eterno que a todos nos envolve. Por mim, gente,
apenas cumpri o dever de semear. E fi-lo até à exaustão. Sentia que não podia parar. Mas
também que não tinha forças para continuar. O médico impunha-me então uma fuga
para longe do Rio e vários meses de repouso absoluto. Mas, como? — Perguntava-me a
mim mesmo?
— Olhe — dizia-me o grande Dr. Cardoso — você tem-me contado maravilhas
sobre Tivoli e sua Villa d'Este. Porque não? Tenho a certeza de que virá de lá
completamente novo.
— Vamos ver, senhor doutor, vamos ver. — Era a escapatória do costume.
Começava, por essa altura, a ter plena consciência dos perigos que espreitavam a
minha missão: aquele tratamento de "pai" pelos meninos e meninas das "comunidades"
poderia estar a ser usado pelo meu subconsciente para exibições gratuitas da vanitas
viciosa; os encómios que os colegas brasileiros (e não só) me teciam eram archotes
acesos que começavam a queimar a minha pequenez; a reverência quente e sincera com
que me distinguiam muitos admiradores de todo o mundo, que me escreviam e
solicitavam uma visita para uma conferência sobre os métodos do êxito conseguido na
pastoral com as "comunidades" dos pequenos sem tecto, incomodava-me porque sentia
por dentro a destruição que operava no meu desejo inicial de ser apenas instrumento nas
mãos do Senhor!
A cerimoniosa e diplomática aleivosia que os colegas do Vaticano me dispensavam
arrasava-me completamente — detestava poder estar a ser motivo de escândalo ou de
inveja para outras pessoas, como eu devotadas ao Evangelho; por fim, mordia-me,
consumia-me como fogo devastador, o fosso que me parecia cada vez mais acentuado e
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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intransponível entre os dois modos de sentir a missão da Igreja. Quando se vivia
instalado, fardado a rigor e couraçado pelos reposteiros dos "palácios apostólicos" ou, no
meio da favela, rodeado de bocas a pedir pão.
Por mim, amigos e santos de Deus, concluía que, se por um lado tinha de fugir do
protagonismo, impedindo por todos os meios que a minha figura fosse usada como
"estrela" que vendia capa de revista, por outro, não podia abandonar um estilo de vida
que considerava — o do Mestre. Fazer-me e viver sempre com o "espírito" dos mais
pobres, fazer-me e viver sempre "próximo" deles, sem fanfarras ou tambores, comendo
com eles, mas evitando a notícia, dando voz às suas vozes, mas longe de microfones e
holofotes, lutando contra os poderes instalados, apenas com as armas da fé no Verbo,
essa Palavra que é Justiça, Amor-Comunicação de Deus à Humanidade. Viver em
autêntica Eккλέσia, ou Assembleia dos crentes em Jesus, sempre caminhante no meio de
um mundo injusto, para o fazer mais justo, mais humano, mais "próximo" de todos os
excluídos, de todos os que sofrem na berma da estrada, era o programa que eu e mais
uma data de fármacos ajudávamos a manter de pé! Para aperfeiçoar e executar na favela
do Rio, onde me levasse a mão do Nosso Bom Jesus. N'Ele confiava firmemente. Como a
criança se agarra à mão da mãe para atravessar o charco, assim eu me segurava na
caminhada que esperava cada vez mais próxima de um disparo de esbirro dos coronéis e
suas máfias de garimpeiros e salteadores. Não! Não tinha ilusões. De resto, a lição
conhecia sempre de cor: «O discípulo não é mais que o Mestre!»
Um facto novo veio, porém, alterar todos os meus planos e programas. No dia em
que tinha as equipas preparadas no terreno para iniciar uma verdadeira revolução na
abordagem da favela, acordei com os sinos das Igrejas a tocar insistentemente a finados.
— «Estranho este toque.» — Pensei em voz alta, enquanto me abeirava da janela do
quarto. Liguei a televisão, e as imagens que vi deixaram-me em estado de choque. Na
praça de S. Pedro, no Vaticano, muita gente se congregava já para escutar uma
"proclamação oficial da morte de Sua Santidade" — observava o locutor de serviço.
— Por favor, a que horas terei avião para Roma? — Perguntava, inquieto, ao meu
secretário.
— D. Pedro, como sabe, os voos transatlânticos partem todos à noite, para chegar
à Europa pela manhãzinha.
— Trata-me então da minha passagem para Roma, esta noite.
Vestindo, na circunstância, um modesto fato escuro, com camisa branca listada de
azul e uma gravata preta, feitas as necessárias recomendações ao meu bispo auxiliar e a
todos os que comigo viviam, dirigi-me para o Galeão, pelo fim da tarde. Estava um pôr-
-do-sol fantástico, como raramente se observa no mar da Tijuca. O vermelho foi-se
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
23
carregando mais e mais, até gerar um negro que poisava nas águas quentes da praia.
Luto? — Perguntava-me. Não, apenas o finar de mais um dia. De resto, o sol nunca se
veste de negro, mesmo por um papa.
O meu secretário, vendo-me sisudo a mais, quis descontrair:
— Já não era sem tempo! — Disse, sorrindo para o retrovisor.
— Desculpe, não ouvi bem.
— Que já não era sem tempo! — Repetiu o Dr. Reginaldo, levantando mais a voz.
— Ah! Está comentando a morte do Papa?
— Então, coitado, já havia muito tempo que arrastava as pernas, nada podia dizer
ou fazer.
— Sim, sim, Sua Santidade sofria muito. — Assim fechava um diálogo que, naquele
momento, me incomodava. A hora era de reflexão. E, por isso, viajava só.
Durante as longas horas de viagem, li tudo o que já sabia sobre os últimos
momentos de vida do Papa, da sua biografia, dos seus gostos pessoais, enfim, de todas as
frivolidades que os jornalistas eram obrigados a fornecer aos leitores, para que estes se
sentissem obrigados a comprar o jornal. Na Terra — toda esta Assembleia santa sabe
disso — até as notícias se vendiam!
No Vaticano, fui recebido pelo colega a quem chamavam o esquisito nome de
"camerlengo", com o cerimonial que lá achavam devido à qualidade de "príncipe da
Igreja" e, ainda, com uma grande cordialidade pela generalidade das pessoas que
gravitavam em redor do Papa ou serviam na sua corte. Não me passavam então
despercebidos certos olhares aleivosos de uns tantos que em surdina e às escondidas iam
tentando minar o que outros mais leais e sinceros iam apregoando, sobre o "imenso
prestígio" do "cardeal do Rio de Janeiro". — «Ninguém duvida, nos apertados corredores
dos palácios apostólicos, de que o brasileiro é um dos sérios candidatos à sucessão no
trono do Pescador!»
— Ouvi, sem querer, numa incursão involuntária numa sala anexa ao gabinete de
um prefeito da Cúria. Por aí comecei a compreender o porquê de muitas coisas que se
sucediam a velocidade vertiginosa naquele dia, como o convite para almoçar com o velho
cardeal incumbido da governação da Igreja no período de vacância da Sede Apostólica,
um dos homens que mais reticências haviam colocado ao meu ingresso no "colégio
cardinalício". O meu espanto mais se aguçou quando vi sentar-se à mesma mesa o
cardeal secretário de Estado — homem dotado de uma visão extremamente afunilada da
Igreja, em tudo coincidente com a estreiteza de espírito dos homens da torre de Nova
Iorque. Os três almoçámos e coloquiámos demoradamente numa dependência do
gabinete de trabalho do Papa defunto, sem que alguém da Cúria, aparentemente, tenha
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
24
notado o evento. Aí, uma coisa ficou assente: que eu adiaria o regresso ao Brasil para
depois dos funerais de "Sua Santidade" e do posterior conclave para a escolha do
sucessor.
Os meios de comunicação, no mesmo dia ao fim da tarde, davam a notícia do
almoço secreto dos três cardeais e logo comentavam que, por exclusão do camerlengo e
do secretário de Estado — ambos de avançada idade —, o brasileiro ocupava a primeira
linha das preocupações dos dois homens mais importantes do Vaticano relativamente à
sucessão. No Brasil, especialmente no Rio, as manifestações de júbilo começavam. — «A
favela desceu à avenida.» — Dizia enfaticamente o locutor da Globo. — «Carnaval em
Julho. O povão volta ao sambódromo» — comentava a Manchete. Os mais moderados
faziam o elogio exagerado e despropositado da minha actividade no meio daquele povo
bom e lembravam a minha — «paixão pelos pobres e, em especial, pelos meninos da rua,
para quem criou uma obra ímpar, baseada na pedagogia do oprimido». Sinceramente,
gostei dessa, porque, com o Vaticano tomado pelos homens seguidores da "pedagogia do
safanão", mais longe me colocavam de qualquer hipótese de ter no conclave os votos
suficientes para ser eleito. Como sempre que me dirigia a Roma, tinha pedido albergue
numa comunidade religiosa da cidade imperial — santos homens que viviam na
conquista permanente da perfeição, da virtude, não como bens pessoais que alindariam
narcisos, mas como betão fundamental do edifício sempre instável das missões que lhes
estavam confiadas em vários continentes, incluindo o meu. — «Aqui — coloquiava o
superior — ou se tem capacidade para amar, para a doação total como o Mestre, até à
morte e morte de cruz, ou não aguentam e vão-se! E nós rezamos por eles. Na casa do
Pai do Céu há muitos lugares e é imensa a variedade dos caminhos que a eles conduzem!
É a base da nossa compreensão e do nosso respeito por todas as opções.» — Apesar
disto, soube depois, o nosso superior, Estêvão de seu nome, já antes apresentado,
gostava de estar bem informado sobre os meandros da dolce vita (assim se lhe referia
sempre) dos homens da Cúria. O mosteiro ocupava posição geográfica invejável, ao pé
das Termas de Caracalla, no Monte Célio. Tratava-se, porém, de um velho edifício
medievo, com bastantes marcas visíveis da arquitectura romana. Tinha sido recuperado
no Século XVII e, já nos meus tempos de estudante em Roma, profundamente
remodelado pelos frades que o habitaram até ao fim do tempo. Os frades e os seus
alunos faziam diariamente fila pelas apertadas ruas, desde o Coliseu até ao parque
daquela que era ali considerada a mansão do alívio — a Villa Celimontana —, porque
quem fazia aquele percurso a pé chegava ali e sentava-se, fazendo um forte ufa!... que
precedia uns momentos de descanso e dilatação pulmonar, com ar mais puro,
oxigenando bem o sangue e mirando a cidade ao fundo. Ora, era precisamente neste
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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local — no convento isso era absolutamente vedado — onde o nosso superior Estêvão
(ele sabe que digo a verdade) vinha sentar-se frequentemente e saber as últimas do
Vaticano. Nada lhe escapava. Sempre com a sua voz cava mas discreta, aos seus
"espiões" (irmão Estêvão, releva-me esta pequena brincadeira celestial) exigia sempre
provas, documentos, se possível. — «Eu agradeço todas as informações, mas recuso
bufos. Quero tudo confirmado!» — Não se cansava de repetir aos seus "agentes", fossem
irmãos do seu cenóbio, irmãs de conventos vizinhos ou simples clérigos funcionários da
Cúria que a ele recorriam ou vinham aconselhar-se, no reconhecimento da santidade, do
recato e do bom senso manifestados pelo superior do velho convento. De modo que,
sabendo isto, eu, pessoalmente, não duvidava da veracidade do que me contava o santo
irmão Estêvão. Santo, sim — e ei-lo, como nós, no meio da glória do Senhor — embora
não "canonizado". Então, um dia, sentados no jardim da Villa Celimontana, contou-me o
irmão Estêvão que ainda em vida do Papa, então sobre terra, soube da tramóia que os
curiais fiéis aos chefes de Manhattan preparavam. No fundo, resumia-se a isto: morto o
Papa que lhes dera o topo da notoriedade e o domínio de tudo quanto era Vaticano, o
camerlengo, dizendo-se inspirado por Deus na noite anterior, autoproclamar-se-ia papa e
logo seria apoiado por todos os cardeais da Cúria, em sessão solene que, com tal
objectivo secreto, seria convocada. O conclave seria ultrapassado e tudo continuaria
como antes. A sempre pretendida unanimidade teológica e disciplinar, imposta à força da
masmorra de um qualquer mosteiro, para onde eram enviados os opositores, a verdade
da autoridade, contra a autoridade da verdade, a "ordem", em vez da intranquilidade da
busca, do esforço, da caminhada para Ele — base movediça do pontificado do Papa
defunto — manter-se-ia, para glória e honra do poder da Santa Madre Igreja! Já noite
alta, depois do funeral do Papa, ambos sentados num banco da capela do convento do
Monte Célio, em conversa amena que dificilmente admitiria fronteira entre rezar e
cavaquear, o irmão Estêvão recordava-me com muita tristeza nos seus olhos enormes a
foto que correu mundo e que mostrava o padre Ernesto Cardinal (— Oh Ernesto, estás no
nosso meio, não estás? Sinto-te por aí! — E logo a voz tímida do filósofo escritor se
anunciava do meio da santa Assembleia: — «Sim, pela Misericórdia de Deus, gozo a
felicidade eterna!») — ministro da Educação do governo sandinista da Nicarágua, de
joelhos na placa do aeroporto de Manágua, diante do Papa que acabara de chegar ao seu
país, para uma visita oficial, e que propositadamente o empurrara para lugar discreto,
longe dos holofotes. Pois, nessa fotografia, Sua Santidade — que se vinha reclamando de
ter sido escolhido por Deus para expandir no mundo a devoção à Misericórdia Divina —
aparece-nos de pé, com o braço direito levantado e o dedo indicador firmemente
apontando para o pobre frade-ministro que, de cabeça inclinada para o chão, parecia
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
26
implorar a bênção do Papa para a ingente tarefa que lhe fora confiada, de levar educação
e ciência a um povo que saía de uma das mais férreas e obscurantistas ditaduras do meu
continente. As agências noticiavam, então, que o Papa fora extremamente duro com
Cardinal, por estar a «colaborar com um regime comunista», colocando-o na alternativa:
«Ou sai — e já! — ou suspendo-o imediatamente!» — «Claro que a bondade e a coragem
do Ernesto — concluía o meu interlocutor e superior do convento — impuseram-lhe que
não saísse! E ficou! Ficou, para bem daquele povo e porque era aquela a missão para que
se sentia chamado por Deus, em determinado momento. Por outro lado — interpelava-
-me o irmão Estêvão — conhece bem a história de monsenhor Gaillot, bispo de Evreux? E
a dos teólogos conselheiros do Papa Paulo VI, para o Concílio, aqueles que, como Hans
Küng, Bernard Häring, L. Boff, Paul Gauthier, E. Drewermann e tantos outros se viram
arrojados das suas cátedras, encerradas as suas investigações teológicas e atirados para
os conventos, onde seriam vigiados como toupeiras da verdade... oficial?! Irmão —
concluía o santo superior numa noite memorável — o Vaticano está transformado num
verdadeiro ninho de cascavéis! Sob uma capa de beatitude seráfica, só encontramos
anacondas de mandíbulas bem afiadas para devorar todo aquele que se lhe afigure
preparar oposição aos seus desígnios de dominação. Se isto não é terror...
(— Perdão, Irmão Pedro Apóstolo: e os teólogos da grande tribulação? Onde estão
esses queridos instrumentos de Deus, para a defesa da autoridade da verdade, perante os
que se acomodavam à verdade da autoridade? Esses, sim, homens pregoeiros, nos
melhores areópagos do planeta, da Misericórdia do Nosso Deus, revelado na Sua Palavra!
— Abre os olhos, meu Irmão, e verás a galeria imensa dos que viveram
mergulhados na angústia da descoberta do rosto de Jesus. Daqueles que nas escolas, nas
universidades ou entre os seus irmãos sedentos de verdade, souberam «discernir os
espíritos» — como o nosso Apóstolo Paulo ensinava! — e, contra os instalados dos
sistemas de poder proclamavam a natureza amorosa do Nosso Deus.
— Ah!... Maravilha dos céus, que vejo? Vejo todos os que havia conhecido lá em
baixo e tantos que não cheguei a conhecer. Glória a Deus Misericordioso e justo! Que não
faz acepção de pessoas, mas julga-as segundo a sua rectidão! Mas, Pedro Apóstolo e
irmãos todos da magna Assembleia Celeste, distraí-me da conversa com o nosso querido
Estêvão, lá no banco do parque da Villa Celimontana.)
Perante as revelações bem avisadas que me fazia, respondi-lhe, então, angustiado:
— Oh! Irmão! Como pode ser isso? Estará tudo louco? Não pode ser! É preciso
agir! Fazer qualquer coisa, agir, e de imediato!
— Irmão Pedro — dizia-me em voz muito grave — parece ser verdade o que dizes:
está tudo louco! Estes homens que tomaram conta disto, que fizeram "santos" à força,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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que impediram a legítima discussão teológica, que calaram teólogos do concílio,
remetendo-os ao silêncio das celas conventuais, que suspenderam bispos que ousaram
anunciar o Evangelho de forma incómoda para eles, estes homens, irmão, ligaram-se às
secretas do crime organizado e tudo farão para continuar no poder. Abominatio
desolationis, meu amigo. É o fim!
Pedi imediatamente uma audiência ao camerlengo. Que não — responderam —
que o eminentíssimo cardeal se encontrava com a agenda completamente saturada, na
recepção às legações estaduais e religiosas estrangeiras e nas reuniões preparatórias
para o conclave.
Eu nunca desanimava, irmãos. Sabia que tinha por mim a força da verdade. Como
este Pedro Apóstolo que enfrentara imperadores e sumos pontífices da Judeia, animado
pelo seu exemplo, passei à acção, consciente de que alguma coisa tinha de ser feita
contra o embuste. Percorri universidades, centros de estudos bíblicos e teológicos, falei
com dezenas de pessoas que abriam a boca de espanto à minha afirmação confirmada
sobre os intentos diabólicos dos curiais. Preparei encontros secretos com os cardeais do
terceiro mundo (como lá em baixo se chamava ao conjunto dos países pobres do Sul),
deixando-os boquiabertos com as minhas revelações, sublevei mosteiros, mas,
sobretudo, passei noites em claro, a rezar! Em lágrimas e dor, pedi ao Senhor, pela Mãe
das Dores ao pé da Cruz, pelos méritos deste grande obreiro do Evangelho que tudo
começara na Galileia, do seu companheiro Paulo que muitas vezes naufragou e foi preso
para fazer chegar aos povos a mensagem de esperança e, ainda, de todos os Apóstolos,
de todos os tempos do tempo, que não permitisse.
Vesti-me de saco, jejuei, fiz quilómetros a pé, ao sol e à chuva, juntei nesta
violência ao Céu todos os irmãos e irmãs das várias comunidades do Monte Célio e de
muitas outras comunidades de Roma, do Brasil, de África e da Ásia. Na véspera do dia
designado para a abertura do conclave, quando todas as comunidades dos mosteiros que
havia junto das Termas de Caracalla oravam em voz alta e comigo confiavam no triunfo
do Amor, ouvi uma voz que — compreendo agora — só podia ter vindo da parte do
Nosso Deus eternamente Misericordioso, lembrando-me do que já te tinha dito a ti,
irmão Pedro Apóstolo: Portae inferi non praevalebunt! (As portas do inferno não
prevalecerão!)
Confiávamos! Todos! Mas, o que tínhamos a fazer era a nós que o imputávamos. E
por isso, noite dentro, fizemos passar sigilosamente pelas mãos de todos os cardeais de
fora da Cúria um pequeno rectângulo de papel, contendo duas frases por mim subscritas,
pedindo que cada um escrevesse apenas «non placet» (não aceito) à hipotética
proclamação dos homens da Cúria, assinando o documento, e «placet» (aceito) relati-
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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vamente à convocatória para uma reunião, no mosteiro do Monte Célio, logo que os
primeiros clarões do dia reflectissem no Duomo di S. Pietro.
Convém recordar que no dia do funeral do Papa, durante todo o tempo que
demorou a longa cerimónia, estive continuamente sob o fogo saído dos olhares
indiscretos da bravata das gentes sedeadas na torre da Lexington Avenue, que me
devotava a mais refinada inimizade diplomática. Mas, curiosamente, não aconteceu nada
daquilo que se temia. O discurso do Camerlengo foi, como se esperava, laudatório,
exaltante da pessoa do finado e da "obra" que tinha abraçado e o levara a «tão gloriosos
feitos para bem da Santa Madre Igreja». Nada de novo! Nem outra coisa se esperava de
"odres velhos".
Teriam os curiais desistido do intento à partida de resultado duvidoso ou mesmo
previsivelmente desastroso? Teriam as nossas reuniões e movimentações sigilosas
transparecido para fora dos nossos muros?
Durante os dias de luto oficial que antecedem a abertura do conclave, muitas
foram as reuniões, as conversas dos pequenos grupos de purpurados no pátio de S.
Dâmaso, nos corredores sombrios, na meia-luz das salas forradas de pinturas célebres e
com largos veludos roxos nas janelas, nos jardins do Vaticano, onde suas eminências
podiam passear e cortar na sotaina uns dos outros.
— Olá, colega, como vai? Mas que óptimo aspecto! Os ares de Siracusa mantêm-no
sempre em forma... — era o cardeal de Florença que não podia com o da Sicília, de quem
dizia, pelas costas, ser «um bruto, um mafioso imbecil».
— E como passa o irmão florentino? Sempre bem nutrido. Nutrido e fardado a
rigor! Esse sorriso… prepara candidatura?!
— Candidatura? — Pergunta muito sincera do terceiro do grupo, o arcebispo de
Milão.
— Não dê importância, irmão, o colega siciliano sempre gostou de gozar comigo.
— Mas, afinal, não é o arcebispo do Rio? — Directo, noutro grupo, o colombiano
Arruti, em resposta à campanha do espanhol Trujillo.
— Esse não, colega. Não passa de um "self-full of it..." — Responde o americano
Hollowness, tirando a cachimbada da tarde.
— Aliás — acrescenta o francês — sempre recusou qualquer contacto com a nossa
gente.
— Bom, vamos lá ver — dizia o alemão Conrad que dominava a conversa de um
terceiro grupo mais alargado — quem é que quer ser expulso do Vaticano?
— Então?!... — O arcebispo de Viena queria certezas. Que se avançassem os
nomes.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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— Por mim, continuo a apostar no polaco Bzewsinsky. É a santidade em pessoa e
um grande admirador do outro. Belos tempos! Com ele, «los comunas se f...» — Era a voz
do primaz toletano, cuja santidade da expressão viria a ser posta em causa pelos
restantes membros do grupo.
— Mais um polaco?! Não, por favor! — Rematava o lisboeta Do Rego.
— Só nos faltava cá este!... — Interrompe, em aparte mal-humorado, o francês,
por entre a casquinaria surda dos italianos e espanhóis. — Já se vê: Também é adepto do
carioca?! — Acrescenta o arcebispo de Notre Dame, voltando-se desdenhosamente para
o lado.
E assim por diante decorriam os sagrados minicomícios no Vaticano, que cumpria a
novena do luto oficial. A campanha eleitoral estava a entrar no auge. E, com todas as
eminências disseminadas em pequenos grupos, por aqui e por ali, iam-se debitando as
preferências de cada um, fazendo a pessoal e santa promoção, ou destilando os venenos
mais ou menos ocultos das máfias que jogavam forte no arcebispo de Siracusa, o velho Di
Tronchetto que misturava missas com ópio, tráfico de armas e outras coisas mais de alta
criminalidade que se dizia por lá. — «Um jogo muito baixo, onde a chicana, a delação e o
golpe sujo contra o cardeal do Rio faziam o discurso obrigatório dos bastidores do pré-
-conclave». — Era a informação que me chegava certeira do irmão superior do Monte
Célio, que acrescentava: «Tudo dito e sublinhado com a mais elevada e santa unção. In
nomine Dei?»
— Não! In ordine satanae! — Gritava enérgico, quase encolerizado, o arcebispo de
Buenos Aires, enquanto dava um valente murro na mesa a ponto de fazer saltar os
cinzeiros e as pastas de cada um, na reunião preparatória do conclave. — O nosso irmão
arcebispo do Rio de Janeiro conheço-o eu muito bem. Por ele ponho as mãos no fogo. Só
uma paixão o move: o Amor dos excluídos desta sociedade consumista, dos que mais
sofrem, dos mais débeis, dos sem-voz — primeiros destinatários da mensagem de Jesus!
E aqueles que aqui o atacam o que fizeram? Sim! Cada um diga aqui, diante de Deus e do
Seu Espírito de Amor, o que traz nas mãos? Se hoje fosse o dia do Juízo, como é que cada
um de nós justificaria a vacuidade das respectivas vidas? Como pôs a render os seus
talentos? Quantos esfomeados cuidou? Quantos nus vestiu? Quantos prisioneiros
visitou? De quantos caídos na berma da estrada se fez próximo? De resto, irmãos, o
nosso colega não se encontra presente para se defender das acusações falsas,
santamente verrinosas, mesquinhas e absurdas que nesta reunião lhe têm sido
imputadas, felinamente, através da aleivosia mais refinada, do "diz-se"... e por quem
tinha o especial dever de não cair em tal e tão satânica tentação. E isto, irmãos, tem um
nome — cobardia!
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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— Mas, se aqui não está, não será porque se julga a si próprio mais que os outros?
— Interrompe, agastado, o parisiense Legrand.
— Irmão — continua o argentino Perez-Logano — é sabido, pois foi distribuída essa
informação oficial, que o cardeal De Alcaçuz e Alcantilar recupera de uma queda que lhe
aconteceu na noite anterior.
— Pretextos, pretextos habituais, daqueles que não querem dar a cara, para se
fazerem mais importantes que os outros. — Resposta enérgica e corrosiva do francês que
acrescenta. — Quem me garante a verdade dos factos?
— Eu! Arcebispo de Buenos Aires!
— Com que provas?
— O colega não se chama Tomé?!
— E o colega não é uma nova encarnação do Verbo?!
Perante este diálogo tão elevado... — muito próprio das eminências vaticanas —
em que o cepticismo de muitos mantinha suspensa a respiração dos demais, Perez-
-Logano tira da pasta uma cópia do boletim clínico do hospital que socorreu Pedro na
madrugada daquele dia, onde constava a assinatura do médico do conclave, e, com toda
a calma, coloca-a diante dos olhos do arcebispo de Paris. Depois, sentado, chama o
assessor e pede para telefonar ao superior do convento, para comparecer
imediatamente na reunião.
— Aqui têm o director do convento onde Pedro de Alcaçuz e Alcantilar está
hospedado — faz o argentino, tomando o padre Estêvão pelo braço e introduzindo-o na
sala. — Eminentíssimo cardeal Legrand, faça vossa eminência as perguntas que entender
necessárias para se esclarecer sobre a verdadeira razão da ausência do nosso irmão do
Rio — concluiu.
— Mas quem lhe disse que quero perguntar o que quer que seja? — Era o
parisiense, em voz embargada e notoriamente irritada.
— Mais algum dos colegas quer ter a bondade de questionar o nosso querido
superior geral do convento? — Insiste Perez-Logano que, após alguns momentos daquele
terrível silêncio cortante que começa a fazer sangrar muito cobarde, cresce para a
assembleia pré-conclavista e continua: — Irmão Estêvão, obrigado por este incómodo
que lhe causei. Mas uma vez aqui, diga, por favor, o que aconteceu com o nosso irmão
De Alcantilar, na noite passada.
— O senhor cardeal do Rio, que nos deu a honra de escolher a nossa humilde casa
para se alojar, durante a sua permanência em Roma quando orava ajoelhado frente ao
tabernáculo, cerca das quatro horas da madrugada, deve ter passado pelo sono, um
joelho descaiu do degrau em que se apoiava e caiu, batendo com a cabeça na moldura da
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
31
base do altar. Daí um pequeno golpe no sobrolho direito, do qual escorria sangue,
quando o socorri.
— Vossa reverendíssima também se encontrava na capela, nesse momento? —
Pergunta, com a astúcia de advogado convencido da sua capacidade para enrolar a
testemunha, o arcebispo de Viena.
— Não, eminência, não me encontrava na capela.
— Pois!... — (Vozes dos astutos...)
— Se me permitem — continuou — como sempre faço, antes de me recolher ao
meu descanso, dei uma volta pela casa, de lanterna em punho, para verificar se tudo
estava em ordem ou se algum dos irmãos carecia de auxílio. Entretanto, passando no
corredor onde se situa a capela, ouvi um ruído estranho, como de um tombo de alguém
no soalho de madeira velha. Com toda a diligência, comecei a verificar onde haveria luz
acesa. Nos quartos não havia. Voltei então atrás. Na capela, sim, a porta estava
encostada e notava-se perfeitamente que uma luz frouxa continuava acesa. Entrei e —
qual o meu espanto! — o nosso mais ilustre hóspede estava caído, junto do altar.
Abeirei-me. Tremia de aflição. Mas esta subiu ao rubro, quando verifiquei que D. Pedro
De Alcantilar estava inconsciente e tinha sangue a escorrer-lhe da testa. Chamei a
ambulância e acompanhei-o ao hospital. Permaneci ao pé dele o resto da noite e parte
deste dia.
— Mas era leve o ferimento... — Interrompe Legrand.
— O médico do conclave, chamado imediatamente, achou que sim, que nada de
grave se passara. Porém, aconselhou o arcebispo do Rio a descansar, pois tinha as
tensões muito baixas. De resto, D. Pedro estava de há muito informado pelo médico
pessoal de um possível esgotamento que o espreitava, pois nunca descansava o
suficiente. Já nessa altura lhe tinha sido imposto descanso absoluto, longe do Rio de
Janeiro, que ele nunca cumprira.
— Algum dos colegas quer mais explicações? — Olhava Perez-Logano para todos os
lados da grande mesa oval. — Parece que não. Nosso irmão, pode ausentar-se. Muito
obrigado. Foi de uma oportunidade flagrante. Bem-haja!
Já no fim da tarde, mesmo contra a recomendação médica, levantei-me e fui ao
Vaticano. Desde que me fora dada alta do hospital, tinha passado o resto do dia
recolhido no meu exíguo gabinete de trabalho, dominado por uma maravilhosa estatueta
de pau-preto que sempre me acompanhava — rara representação de Cristo glorificado —
oferta de minha santa mãe, na sua primeira missão na Amazónia. Tinha estudado,
meditado e orado. Mais tarde, em conversa com o superior do convento, tomei
conhecimento da triste atitude dos meus irmãos reunidos em pré-conclave, da terrível
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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falta de seriedade e de "discernimento dos espíritos". Aliás, o nosso irmão Estêvão
caracterizava assim o Pátio de S. Dâmaso, por onde vagueavam e cochichavam muitos
membros do colégio cardinalício: «Nestes dias, o Pátio de S. Dâmaso é o espaço sem
"espaço" ao Espírito!»
O relato do que então se seguiu quero confiá-lo ao meu bom amigo no Senhor, o
irmão Perez-Logano, que era arcebispo de Buenos Aires. Se o Nosso Bom Deus o permite
e o Irmão Pedro Apóstolo aceita, podes comunicar o que viste e ouviste.
— Sabes que a minha memória, ultimamente, não me ajudava.
— Isso era do outro lado, irmão Perez, meu braço direito na corrida contra o
tempo!
— A silhueta inconfundível do arcebispo do Rio, mal aparecera na sala, fez mudos
todos quantos ali se encontravam. Sorrindo, mas com um sorriso que notoriamente lhe
velava muita ansiedade, sentou-se na cadeira que lhe pertencia. Pediu desculpa por não
ter podido acompanhá-los nos trabalhos da manhã e prometeu, da sua parte, tudo fazer
e a tudo obedecer para que o conclave se iniciasse rapidamente e todos pudessem
exprimir livremente as suas opiniões e preferências. Mas lamentou que, sobre uma
simples queda, se tivesse posto a circular a notícia de que «o cardeal-arcebispo do Rio de
Janeiro tinha sofrido um ataque cardíaco, antes do conclave» — «Porquê?» —
perguntava. — «Quem está interessado em assassinar-me? Quem, afinal, quer perturbar
muita gente que, no meu país, ficou perplexa?! Sabem?... Os pequenos da obra choraram
e rezaram. O sambódromo encheu-se, novamente, não para sambar, mas para ouvir a
voz enérgica do bispo auxiliar desmentir a notícia. Irmãos, oremos, para que o Senhor
nos dê a alegria da verdade e que só esta domine os nossos corações! Só a verdade
liberta!» — O verbo de Pedro foi cortante. E ninguém ousou interrogá-lo. Nessa noite, os
cardeais entraram na zona do conclave. Cabisbaixos, a maioria.
Irmão, Pedro Apóstolo, a partir daqui, entrego o relato do exterior ao nosso bem
informado irmão Estêvão que assistiu a tudo e sei que é fiel.
— Roma acordara a correr para a Praça de S. Pedro. Ninguém queria perder a cor
do fumo a sair da velha chaminé da Capela Sistina, resultante da queima dos votos do
primeiro escrutínio. As câmaras de televisão, aos montes por cima da colunata de
Bernini, esperavam — às voltas — esse momento, fazendo grandes planos da pequena
cobertura do tubo metálico que saía do telhado daquele que era, sem dúvida, o mais
emblemático local do Vaticano. Repórteres de todo o mundo ensaiavam os telexes, as
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
33
objectivas, as avenidas da internet, o papel e a esferográfica. Peregrinos e curiosos destas
coisas que enchiam já a meia praça, até ao obelisco central, esticavam o pescoço o mais
que podiam, a fim de não perderem a oportunidade de ver o fumo e tentar o mais difícil
que era, normalmente, a destrinça entre o branco e o preto.
Às dez horas da manhã, em Roma e no mês de Julho, com céu limpo, o sol era
abrasador e fulminava com raios devastadores os olhos de quem se colocava em posição
frontal à Basílica de S. Pedro, tentando espreitar os telhados dos palácios apostólicos. Por
isso, muitos usavam guarda-sóis, outros chapéus de aba larga, e os mais desprevenidos
por estas andanças protegiam a vista com simples pedaços de jornal dobrado em cima da
testa.
Com o andar dos ponteiros do relógio e o bater das horas no sino grande de S.
Pedro, a impaciência instalara-se na maioria dos operadores da informação, não porque
quisessem ir-se embora rapidamente, mas porque começavam a esgotar o palavreado
que prepararam sobre os papabile. E até os taxistas de Roma que costumam estacionar
ao fundo da via della Conciliazione, para saudar com as buzinas dos carros o novo papa,
iniciavam a debandada. Na Piazza, os turistas e os fiéis que não cessavam de engrossar o
caudal, olhavam para o relógio, rezando uns, cantando outros, dando vivas a tudo —
alguns mais exaltados — ou cavaqueando a maioria, geralmente sobre as últimas notícias
transmitidas pelas agências mundiais, pelas televisões e pelos jornais que muitos iam
lendo, sentados em improvisados bancos que transportaram debaixo do braço, pois já
sabiam que a jornada podia ser longa.
Os homens do microfone em punho, seguidos dos que apontam a objectiva da
câmara, sem pedir autorização, para o rosto de quem lhes apetece, aí estavam, "em
directo", para ouvir as impressões e opiniões dos componentes da multidão, a melhor
maneira de entreter a gente e dar folga aos heróicos faladores de banalidades que têm
necessidade de se abastecer de mais alguns disparates para debitar a seguir, de
molharem as gargantas na trattoria mais próxima e — porque não? — também satisfazer
exigências fisiológicas improrrogáveis que é coisa que se faz em todo o sítio, mesmo que
se esteja na Praça de S. Pedro, à espera do anúncio do resultado do primeiro escrutínio
para a eleição de um novo papa.
— Por favor, que me diz sobre este momento que está a viver?
— Não entendo italiano. — Responde uma velha americana, no inglês nasalado do
outro lado do Atlântico.
— Desculpe. Perguntava-lhe o que sente num momento destes. — Voltou à carga o
jovem repórter, agora usando a língua da velha turista, salmodiada como só os italianos o
sabem fazer.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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— Ah! Pois, meu menino — solta a gaiteira americana, tagateando o imberbe rapaz
do microfone — eu cá nem sou católica e isto, para mim, é como beber coca-cola, sabe
sempre bem. Ah!, Ah!, Ah!...
— Sem dúvida, minha senhora! Ah!, Ah!, Ah!... Tem toda a razão! Vechia del
diavolo! — Terminou, em surdina e de nariz à banda, o inexperiente repórter, justamente
quando enorme gritaria se levanta na praça e muitos apontam, com o braço no ar e o
indicador voltado para o tubo da chaminé da Sistina, o fumo que começa a sair. Primeiro,
timidamente. Depois, em grossos rolos negros, a ninguém deixando dúvidas de que o
escrutínio tinha sido negativo. «Oh!...» — Ouviu-se de todo o lado, com o som
descorçoado de um imenso murmúrio de frustração, muito semelhante ao que se ouvia
nos estádios de futebol quando a multidão dos adeptos da equipa atacante reagia a um
potentíssimo remate... ao lado!
Os cânticos, os "vivas", as bandeiras das diversas nacionalidades em agitação
constante, tudo recomeçava, então, pois o dia prometia e, por isso, dali ninguém
arredava pé. As sandes e as latas de cerveja ou de refrigerantes saíam dos sacos de
plástico, pois a hora era de retemperar forças e o calor do meio-dia romano não deixava
ninguém indiferente. A multidão procurava, agora, uma sombra debaixo da colunata e,
enquanto grupos dos mais fervorosos permaneciam de joelhos ou de pé, rezando e
cantando, a maioria estava sentada ou deitada no chão, porque pernas de turista,
mesmo crente e piedoso, também não resistem a longas horas em sentido.
Pelas dezoito horas romanas, estando a praça cheia, agora com novas levas de
turistas, peregrinos ou simples curiosos, novamente a chaminé da Capela Sistina começa
a vomitar mais fumo, mas... também negro. — «Ainda não é desta!» — Diziam os taxistas
que voltavam ao serviço, depois de darem uma espreitadela à Piazza di S. Pietro. A pouco
e pouco, desconsolados, os cânticos vão-se desvanecendo, as bandeirinhas enrolando e
os hossanas emudecendo. A noite cai sobre uma Roma abafada como fornalha que cozeu
a boroa e até os mais crédulos vão procurando lugares mais frescos na periferia.
No interior do conclave, sabia-se da existência de fortes intrigas e divergências
profundas entre os cardeais, isto a julgar pelas meias palavras, sempre ditas à boca
pequena pelos bastidores do Vaticano — as costumadas "fontes geralmente bem
informadas" e bem pagas pelas mais poderosas agências noticiosas do mundo.
Cumprindo os seus "contratos", lá iam passando para o exterior o que sabiam e o que in-
ventavam das escutas que faziam dos murmúrios bichanados pelos corredores mais
próximos das celas cardinalícias. Mas, de tudo o que se ouvia, era possível, depois de
aturada cabalística, dar como certo o facto de haver grave divisão entre o grupo dos
cardeais que pretendiam um papa que representasse a continuidade do poder das hostes
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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da Lexington Avenue, com todo o seu cortejo de mafiosos, banqueiros e reaccionários à
frente do Vaticano, e a outra parte dos cardeais — quase todos os do Terceiro Mundo,
apoiados por um sem-número de teólogos de renome internacional, expulsos das
cátedras pelo anterior papa — que se batiam pela eleição de um sucessor de Pedro que
tivesse a coragem de «lavar o ventre da Santa Igreja», na rude mas feliz expressão da
nossa irmã Catarina de Sena ou de Benicara que nesta eternidade revê a sua coragem e
fé. O impasse estaria assim para durar, pois cada grupo colhia cerca de cinquenta por
cento dos votos e só muito longas e duras negociações poderiam fazer um deles obter os
necessários dois terços para a eleição.
O segundo dia do conclave estava a ficar marcado pelo anúncio de que haveria dois
escrutínios de manhã e dois de tarde, se necessário fosse, para que o conclave
terminasse rapidamente a sua missão. Acrescentava o comunicado assinado pelo
Camerlengo que, «face às condições atmosféricas que se abateram sobre Roma, com
uma vaga de calor de magnitude sem precedentes na história da cidade eterna, não será
razoável exigir aos idosos cardeais a permanência nas celas da área do Conclave por
muito mais tempo.» Os quatro escrutínios do segundo dia, porém, terminaram todos
com fumo negro. E a multidão entusiasmada do primeiro dia, depois cansada no
segundo, começava a abandonar os hotéis e a regressar às suas terras, sem verem o
rosto do novo papa. Nos terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo dias de
funcionamento do conclave, nada de novo surgira que pudesse sequer fundamentar uma
conjectura sobre o tempo que ainda poderia durar a mais secreta assembleia eleitoral do
mundo. Sabia-se — pelas mesmíssimas fontes "geralmente bem informadas" — que o
impasse estaria sem fim à vista, já que se mostravam irredutíveis as posições dos dois
blocos de eleitores. Constava mesmo que, após saturantes e pouco católicas discussões,
o ambiente entre eles era de intolerável agressividade pessoal.
Os fiéis às ordens da City — quase todos os espanhóis, muitos do resto da Europa e
bastantes norte-americanos, apelidados pelos do outro grupo de le domani (pois nunca
decidiam, jogando sempre no cansaço do adversário) — apenas propunham e queriam a
eleição do cardeal siracusano — Di Tronchetto —, profundo admirador do fundador da
secreta. Não discutiam doutrina, disciplina, liturgia, cânones, evangelização. Nada haveria
a mudar. A Igreja apenas carecia de um novo "Pontífice" que continuasse a obra dos
antecessores.
Para os cardeais do outro bloco — que estaria a conquistar adeptos — todo o
"Povo de Deus" carecia de um forte sinal do Espírito.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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«O mundo do Século XXI afunda-se num individualismo grosseiro. As nações ricas
fomentam a guerra entre os povos mais atrasados, vendendo-lhes as armas com que
estes se matam, para lhes levar as riquezas naturais que possuem, ao preço das balas e
do sangue que elas fazem! Populações inteiras do Terceiro Mundo são vítimas de
genocídios horrorosos, de limpezas étnicas de uma brutalidade nunca antes vista na
história da Humanidade, de fome generalizada que ceifa, antes de outras, as vidas de
inocentes que apenas cometeram o pecado de terem nascido naquelas coordenadas. O
tráfico de menores para os chamados paraísos do sexo ou, não raro, para pesquisas
laboratoriais, como se de ratos se tratasse, ou, pior ainda, para as grandes clínicas dos
países ricos, afim de serem "dadores de órgãos"; a passagem de droga que destrói
famílias e mata a nossa juventude; a lavagem de dinheiro sujo, proveniente das
explorações mais ignominiosas do ser humano, tudo é feito hoje com a consciência
tranquila das autoridades nacionais e das instâncias internacionais, dentre elas o próprio
Vaticano que retira despudoradamente desses negócios satânicos chorudos rendimentos
que vão parar aos cofres do IOR. As crescentes emissões de gases poluentes para a
atmosfera, emissões assassinas dos ecossistemas, que já destruíram parte da camada do
ozono que faz a vida do planeta! As grandes potências industrializadas, porém, com o
silêncio cúmplice da Igreja, continuam, desde o início do século, a opor-se, na prática, a
todas as medidas e tentativas de redução das emissões de CO2 — o grande responsável
pela morte do ozono protector da vida. Perante desafios desta magnitude, alguns querem
que a Igreja de Cristo continue apenas preocupada com o próprio umbigo, discutindo
narcisicamente questões litúrgicas, mais uns quantos mistérios do rosário, ah! e
moralidade sexual! As senhoras e as meninas não se podem aproximar do altar. Não se
pode bater palmas, não se pode dançar. Não se pode... não se pode... não se pode. Tudo é
negativo, num mundo que espera sinais positivos de amor, de homens e mulheres que
cheios do Espírito de Deus dêem a vida pelos que choram, pelos esmagados, pelos que
sofrem todas as sequelas de todos os poderes e suas políticas de ambição e de domínio!
Queremos um papa que mude a história! Que seja a voz dos oprimidos! Que esteja bem
no centro de uma nova ordem mundial, assente, na globalização da Redenção que Cristo
ofereceu à Humanidade! E aposte forte numa outra humanidade, que fale a linguagem
do Amor e dele viva efectivamente. Queremos um papa que acabe de vez com todo o
farisaísmo e a hipocrisia do Vaticano. Que expulse os vendilhões do templo, o satanismo
de todas as secretas e o teologismo dos novo ; "doutores da lei"! Que viva o Evangelho de
alto a baixo e mostre a este mundo perverso, a começar pela cúria papal, os encantos do
Amor do Espírito de Deus! Que é Justiça, Verdade e Paz!»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Era uma excerto de um extenso editorial do Jornal do Conclave, posto a circular,
sem se saber por quem, pela Praça de S. Pedro. O texto não vinha assinado, mas,
subjacente aos artigos do autodenominado "grupo de reflexão pela mudança",
responsável pela edição, ninguém duvidava estar, fundamentalmente, o pensamento do
"arcebispo dos pobres", do Rio de Janeiro.
Entretanto, quatro semanas tinham passado desde o início do Conclave. O fumo da
Sistina continuava, porém — como o ambiente mundial — cada vez mais negro... As
grandes potências continuavam surdas aos gritos das mais pobres. Os esfomeados
começavam a avançar em direcção ao Norte. Aqui, a imagem da força era passada em
todas as coordenadas terrestres. As estratégias militares de contenção eram delineadas
ao pormenor, falando-se agora abertamente em cenários de defesa, mesmo com recurso
a armas nucleares. A arma dos fanáticos de qualquer latitude de religião, raça ou língua
— o terrorismo — recomeçava, mas agora com poder de destruição e provocação do
medo generalizado nunca antes visto. Era certo que armas de destruição maciça se
vendiam nos mercados como salsichas. Os mais avisados já ouviam o toque das sete
trombetas. E a Humanidade inteira começava a entender os indícios da globalização do
medo! Um estranho cheiro a absinto sufocava tudo e todos. Sentia-se que a taça estava a
ficar cheia. Que a grande tribulação se aproximava. Mas a besta que a detinha na mão ria
em esgares de loucura, enquanto espumava raiva e espalhava o seu poder sedutor sobre
os incautos seus adoradores. Por seu lado, enquanto a cúpula da Igreja Católica se
debatia entre duas forças aparentemente inconciliáveis, não encontrando maneira de
ultrapassar o diferendo entre dois modos de entender a Mensagem de Cristo para o
mundo do Século XXI, as outras Igrejas cristãs, reunidas em assembleia-geral do Conselho
Mundial, em Genebra, aprovavam uma dramática moção de apelo a todos os cristãos
para que se unissem em oração e serviço em favor da humanidade sofredora e
chamavam a atenção dos governos de todos os países, a fim de não precipitarem
egoisticamente os acontecimentos, com recurso à guerra — muito menos a nuclear —
que significaria, muito simplesmente, o horror do apocalipse e o fim da espécie humana.
No interior da Capela Sistina, contudo, já ninguém ouvia ninguém. O inferno
instalara-se ali e nem o magistral fresco de Miguel Ângelo, mostrando aos conclavistas o
"Juízo Final", era capaz de motivar qualquer esforço para se sair do impasse. As
desencontradas informações diziam que o grupo dos le domani, quase todos muito mais
novos que os do resto do mundo, começavam a cantar vitória com o desfalecimento de
alguns dos do grupo contrário. Esqueceram-se, porém, que estes , provinham de Igrejas
de luta, de fome, de teatros de guerra. Que eram homens treinados para a resistência.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Ao fim de três meses de conclave — caso inédito na bimilenar história da Igreja —
já ninguém ligava às notícias vindas do Vaticano. Os repórteres de quase todos os
grandes meios de comunicação tinham regressado às respectivas bases. O conclave
deixou de ser "caixa", a não ser para motivar chistes brejeiros ou enriquecer o anedotário
dos corredores dos "palácios apostólicos".
Decorria agora o mês de Outubro, e por todo o mundo católico se organizavam
jornadas de oração, peregrinações de penitência, seminários de reflexão, pedindo ao Céu
um novo Pentecostes que, em ardentes línguas de fogo, queimasse o orgulho e a vaidade
que impedia uns quantos cardeais de olharem para além do próprio umbigo e dos
objectivos de poder que alimentavam. Em todos os santuários marianos do mundo
católico se celebravam vigílias, pedindo à «Mãe da Igreja a Sua bendita intercessão para
que à hora das trevas suceda rapidamente a Luz do Espírito de Deus.» Assim terminava
um comunicado distribuído, em várias línguas, às multidões que assomavam a tais locais
de oração.
Ao fim de mais um dia de votações, invariavelmente terminadas com a
comunicação do fumo negro, todo o Centro-Sul da Itália começou a ser varrido por
terrível siroco que lançava ao ar gigantescas nuvens de poeira e miríades de folhas secas
e detritos de toda a ordem. A princípio, ninguém estranhara. Era o início do Outono
romano, em que fenómenos meteorológicos desta natureza são cíclicos. Desta feita,
porém, as coisas depressa começaram a tomar formas estranhamente assustadoras. Em
linguagem mítica, muito em voga lá do outro lado, descreveram assim as horas
dramáticas desse dia: Enquanto Éolo soprava forte do Olimpo sobre toda a criação,
parecendo decidido a arrebatar tudo aos espaços interplanetários e a defenestrar
recheios de casas, humildes ou palácios, não respeitando ninguém, nem os nervos dos
míseros humanos que corriam de um lado para o outro, sem saber o que opor a tamanha
e descontrolada fúria, a divindade dos ventos, num rodopiar estonteante, atinge o colega
Posídon no mais fundo dos mares. Irritado, furibundo, com este despertar nada amistoso
entre senhores da mesma corte, atravessou o Mediterrâneo na sua veloz quadriga,
levanta e agita o tridente à superfície das águas que imediatamente se embrulhavam em
aterradoras vagas que vão engolir as areias das praias e tudo o que nelas existia. Em
dueto demolidor, Éolo e Posídon vociferaram sobre a terra, abriram as respectivas
entranhas e, enquanto um, com seu assobio temeroso, fazia enlouquecer à sua volta
tudo o que encontrava, o outro arrombava tímpanos com a percussão arritmada do
despejo violento de enormes enxurradas de água e do ribombar dos trovões aterradores,
subsequentes ao faiscar de raios sobre os pobres mortais que, atónitos, procuravam sítio
seguro onde meter-se, para fugir a tão inusitada e estonteante belicosidade dos deuses.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Roma, em longos minutos de terror da natureza, tinha ficado totalmente alagada e,
em grande parte, destruída. O tufão devastador e jamais visto nestas paragens não se
contentava em fazer das ruas e avenidas autênticos rios que corriam por entre casas e
jardins, tudo levando à sua frente. Telhados e barracas, antenas de televisão e chaminés,
vidros e pedaços de janelas voaram, durante quase três intermináveis horas sobre a
cidade imperial. Foram muitas as pessoas apanhadas desprevenidas e que não resistiram
a estes objectos estranhos que caíam abundantes dos céus, agora desgovernados por
assustadoras desordens olímpicas. Os bombeiros atravessavam avenidas, ruas e vielas,
com as suas máquinas esquisitas. De pirilampos acesos que reflectiam nas fachadas das
casas, intermitentemente, o amarelo do perigo, ambulâncias autogruas e outras viaturas
de socorro cruzavam-se por todo o lado, com sirenes em gritaria infernal, assim fazendo
aumentar ainda mais a angústia dos sobreviventes que começavam, apenas, a conhecer
todo o horror da catástrofe. Não havia memória, nos anais da cidade da loba, de uma
tragédia com tal magnitude.
Nos palácios do Vaticano, as consequências da funesta tempestade outonal eram
as mais devastadoras. Praticamente, só a basílica de S. Pedro, com a sua colunata
berniniana, estava de pé. Tudo o mais ruiu ou ficou sem telhados. Uma das mais
emblemáticas edificações — a Capela Sistina — onde decorriam os escrutínios do
conclave, sucumbiu totalmente ao peso da muita água caída e das subsequentes
infiltrações nas suas paredes seculares, bem como dos terríveis ventos ciclónicos que
tudo esventraram e atiraram pelos ares. Muitas das mortes aqui ocorridas foram
provocadas por tijolos antigos, telhas e nacos de argamassa, pedaços de madeira de
molduras ou móveis desfeitos que viajavam no espaço como meteoritos desgovernados,
apenas obedientes à fúria dos ventos.
Quando foi possível entrar na área do conclave, a destruição, a morte, a desolação,
os gemidos dos vivos soterrados faziam o espectáculo dantesco que levava qualquer
mortal à comoção violenta, às lágrimas, ao desespero. O velho conde Di Caroso — o
"marechal do conclave" — estendido por terra, junto à porta da Sistina, morrera no seu
posto! Retiradas as pedras, as telhas e a caliça que lhe encobriam parte do cadáver, era
possível, então, verificar como defendeu até ao fim o múnus que lhe haviam confiado.
Deitado de lado, com os membros inferiores encolhidos, enquanto a mão direita parecia
tentar aparar o choque de uma telha na cabeça — que lhe foi fatal — a esquerda
segurava tenazmente a grande chave da porta da Sistina. A abertura tornava-se, então,
extremamente difícil. A língua deslizava perfeitamente nas entranhas da fechadura. Mas
qualquer coisa pelo interior havia, que só a muito custo cedeu à muita pressão feita de
fora. Dizer horror... tragédia... espectáculo macabro... tudo isso são apenas palavras que
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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não conseguiam traduzir os sentimentos de quem, esfregando os olhos, sacudindo a
cabeça, conseguiu distinguir entre a realidade e o pesadelo: cadáveres de cardeais,
apinhados, de punhos cerrados e feridos de tanto bater à porta. A maior parte deles com
sinais de extensos ferimentos na cabeça. Outros, aparentemente sem hematomas ou
ferimentos externos, ali se amontoavam com os demais, simplesmente porque o terror
tinha atingido níveis muito acima das humanas capacidades de corações tão débeis. Em
alguns outros, eram notórios os sintomas de fracturas cervicais, como acontecera ao
cardeal Della Vechia — o mais intrépido defensor da sua própria eleição.
Retirados os mortos, era preciso cuidar dos vivos. Uns, foram transferidos para os
hospitais de Roma que ainda tinham ficado com alguma capacidade operacional. Os
outros, aqueles que tinham apenas ferimentos ligeiros ou se encontravam em estado de
choque, rapidamente foram assistidos por técnicos de saúde no Vaticano.
No dia seguinte, debaixo de um sol ternurento de Outono, como só Roma conhece,
as autoridades investigaram as mortes e a extensão dos danos materiais causados pela
tempestade. Um rol infindo de tristezas. Entre cardeais, arcebispos, bispos,
monsenhores, padres consultores, amanuenses ou simples domésticos, falecidos dentro
dos "palácios apostólicos", contabilizaram-se mais de três centenas de cadáveres.
Edifícios sem tecto ou irrecuperáveis, obras de arte destruídas e museus completamente
arruinados perfaziam valores de cálculo proibido. Os cadáveres foram levados para a
basílica-mãe da cristandade. À frente, os dos cardeais, e a seguir os outros, pela ordem
das próprias dignidades. Quem disse que na morte todos somos iguais?
Muito antes da hora marcada para os funerais, sob o duomo de S. Pedro, a
multidão comprimia-se como sardinha em lata. Fora, era imensa a mole humana coberta
de negro, que enchia por completo a grande Piazza oval do génio de Bernini e estendia-
-se por toda a Via delIa Conciliazione, até perder de vista. Ecrãs gigantes, colocados
estrategicamente por toda a praça e zonas limítrofes, levavam aos milhões de olhos
humedecidos todo o cerimonial que se vivia no interior da basílica, bem junto do "altar
da confissão". Um dos cardeais falecidos no fragor do ciclone tinha sido o camerlengo,
pelo que assumiu o seu posto o vice-camerlengo, Menezes e Costa, arcebispo de Luanda.
Pela primeira vez na história da Igreja Romana fazia as vezes de papa um cardeal
africano. Menezes e Costa era profundamente amigo e admirador de Pedro de Alcaçuz e
Alcantilar que, por seu lado, tinha em muita estima os méritos do arcebispo de Buenos
Aires, Alonso Perez-Logano. Menezes e Costa era um homem de idade avançada, mas
muito jovem de espírito e, sobretudo, um homem afável, bondoso e amante dos pobres,
dos marginalizados, dos excluídos. O arcebispo de Luanda conhecia bem a obra do
arcebispo do Rio de Janeiro, que visitara antes por diversas vezes. Por tudo o que
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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conhecia de Pedro, admirava-o, sobretudo no que ele tinha de personalidade frontal,
pura, cheia de entusiasmo pela erradicação da miséria do seu povo e pela luta contra a
sua exploração. Os dois comungavam uma linguagem de fé autêntica no Deus de Jesus
Cristo, no Seu Espírito de Amor de que ambos faziam alavanca para levar de vencida
verdadeiras batalhas do pão para todo o "muceque" ou "favela". Perez-Logano, embora
um tanto mais novo que Menezes e Costa, era pesadão, mas de uma agilidade intelectual
impressionante. Sempre bem-disposto, com resposta pronta e, por vezes, de uma ironia
fina, mas implacável, o arcebispo de Buenos Aires tinha sido nos últimos anos o maior
consulente e conselheiro de Pedro de Alcaçuz e Alcantilar.
Antes do início do Requiem, Menezes e Costa leu a acta da reunião havida numa
sala anexa à destruída Capela Sistina, na qual participaram todos os cardeais vivos, onde
tinha sido deliberada a suspensão, sine die, dos trabalhos do Conclave. Nessa mesma
acta, os cardeais apelavam a todos os católicos do mundo «para que unam suas orações
às de quantos, na basílica de S. Pedro, sufragam as almas dos que pereceram e pedem ao
Senhor a consolação dos vivos e a força espiritual bastante para que levem, com
brevidade e serenidade, até ao fim a missão de escolherem um novo chefe visível para a
Sua Igreja». Lida a acta dessa importantíssima reunião, o presidente Menezes deu início à
concelebração, tendo por auxiliares Perez-Logano e Alcaçuz e Alcantilar. No momento
oportuno, por indicação do Camerlengo em exercício, tomou a palavra o arcebispo do Rio
de Janeiro, num pódio erguido no transepto onde se alinhavam as urnas das quase — só
no Vaticano — três centenas de mortos da tragédia do dia anterior. Na sua estatura de
atleta, alto, rosto comprido e cabelo muito curto, vozeirão grave, mas sempre sereno,
olhos vivos, mas transparecendo amargor de alma, levantou Pedro, silencioso, os braços,
rodando-se para ambos os lados onde se encontravam os féretros. A comoção atingiu-o
violentamente e não pôde esconder as lágrimas que lhe escorriam abundantes pelo
imenso carão. Sempre envolto em silêncio sepulcral, puxou de um lenço e enxugou
calmamente os olhos. Depois, ainda chorando, mas com perfeito domínio da voz,
começou, sem suportes da memória, um discurso que muitos consideraram ver-
dadeiramente inspirado:
— Louvado seja Deus, irmãos, porque dormíamos e Ele acordou-nos! A vergastada
foi violenta, alguns de nós aqui estão prostrados, para o atestar, mas restamos nós, os
vivos, para o meditar e agir em conformidade. Na história do Povo de Deus, lemos outros
casos paralelos, com os quais se mostra que o Criador muitas vezes se serve da Mãe-
-Natureza para ensinar o caminho à criatura desviada. E nós, irmãos, nós, a quem cabe o
dever de dar à Sua Igreja uma nova cabeça visível, para confirmar os irmãos na fé, nós
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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cedemos à tentação de outras miragens, percorremos caminhos indignos, fora da missão
que nos está confiada, com objectivos certamente alheios à Mensagem Evangélica. E
perdemos muito tempo. Discussões estéreis e fúteis fizeram o dia-a-dia de homens que só
deveriam ter como farol o Amor do Espírito de Deus que quer incendiar o mundo, para
que ele não se incendeie primeiro no ódio e se destrua a si próprio em holocausto
apocalíptico!
A hora que vivemos é de uma gravidade extrema, e os olhos de milhões de seres
humanos estão cravados em nós, à espera de um sinal — de um sacramento de salvação.
Há milhões de bocas esfomeadas que anseiam por uma única coisa: Pão! Solidariedade!
Amor! (Por momentos, a comoção de Pedro impede-o de continuar, leva novamente aos
olhos o lenço branco e deixa-se em curto silêncio, de olhos cerrados). Peço-vos desculpa,
irmãos. Vou continuar. A Igreja, todos quantos acreditam no Deus de Jesus e no Seu
Espírito de Amor não podem mais fechar os olhos... tapar os ouvidos... tentando ignorar
esta realidade. Realidade que dilacera o Coração de Cristo e pela qual seremos julgados.
— «Afastai-vos de mim, malditos, porque tive fome e não me destes de comer» — disse,
sem tergiversar, Aquele que é perdão, paz e Amor! Por isso, aqui fica o sentir do mais
humilde de todos: que, depois de cumprirmos o dever cristão de dar sepultura aos mortos,
nos reunamos imediatamente nesta basílica e reiniciemos os trabalhos do conclave
suspenso. Sem formalismos desnecessários. E, sem a pompa nem a circunstância
costumeiras de séculos que fizeram do papado a mais estranha corte monárquica da
história, apenas com os olhos postos no Mestre e na Sua Igreja, escolhamos um de entre
nós que aceite reconduzir-nos aos caminhos da Caridade, do Amor! A humanidade inteira
não nos perdoará se não soubermos ser dignos desta hora! Hora das trevas… mas
também hora de muita esperança. Que exige de nós total entrega, sem medos, com
muita coragem, para grandes decisões. Para grandes mudanças! E, certamente, para
muito sofrimento. Entendei a parábola do dia de ontem... e do tempo que hoje faz. O
horror a tragédia... podem estar muito próximos da serenidade, da paz, do Amor! É neste
circunstancialismo prenhe de contradição, denso de tragédia e de esperança, em que os
sinais de Deus gritam forte aos nossos ouvidos e a Sua Luz abre a nossa cegueira, que soa
bem no íntimo de cada um de nós a palavra oportuna e cheia de ternura do Mestre
ressuscitado: — «Filhinhos, tende confiança! Eu venci o mundo!»
A última frase de Pedro ainda não terminara e uma voz de criança irrompe do meio
da multidão que se apertava no interior da basílica, dando vivas a Pedro e terminando
por aclamar «Pedro Papa!»... «Pedro papa!»... «Pedro Papa!»... Imediatamente, àquela
estranha voz se junta um coro imenso, primeiro no interior e logo depois também no
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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exterior, dando vivas a Pedro e aclamando, repetidamente, vibrantemente,
euforicamente, «Pedro Papa!»... Às aclamações seguiram-se as palmas infindáveis, os
vivas a Pedro e à Igreja e, em impressionante uníssono, o cântico «Cristo vence! Cristo
Reina! Cristo impera!»
Pedro descera, perplexo, do pódio. Tomou o lugar na concelebração ao lado do
presidente. Este, de rosto sério, mas muito calmo, apela à multidão que faça total
silêncio por alguns momentos.
O Camerlengo levantou-se e, com ele, todos os outros cardeais e bispos
concelebrantes. Menezes e Costa solicitou que deixassem aproximar-se do altar a criança
que primeiro aclamou «Pedro Papa»! Minutos volvidos em silêncio total, todos olhavam
para os lados, mas ninguém apareceu. O presidente da celebração voltou a pedir à
criança que aclamara Pedro, para se aproximar do altar. Não resultou. Pediu, então, às
pessoas que estavam próximas do local donde tinha saído a voz para se aproximarem.
Ninguém sabia donde saíra a voz. De resto, dizia uma senhora que conseguiu aproximar-
-se mais do altar, «a voz ouviu-se, mas não era de criança ou de adulto... era uma voz
estranha!... Parecia pairar no ar...» Muitos acenaram com a cabeça, confirmando o que
dizia a senhora. Inquiridas, no local, outras pessoas presentes, todas coincidiam na ideia
de que a voz inicial de aclamação de «Pedro Papa»... fora uma voz estranha que toda a
gente na Basílica ouviu bem, mas sem saber de que lado vinha. Menezes e Costa falou
então aos cardeais vivos:
— Estamos aqui, nós, os vivos, para dar sepultura aos mortos. O Senhor, ontem,
interpelou-nos pela tempestade que vitimou tanta gente nesta cidade e arredores. Hoje,
falou-nos pela voz, a princípio estranha e solitária e logo feita multidão anónima, em
magnífico coro de aclamações. Vox populi, vox Dei! Que mais quereis, irmãos? A história
da Igreja regista processos paralelos. A aclamação é uma das formas válidas de sucessão
no serviço de apascentar o rebanho. Por que esperamos para aceitar a voz de Deus? Um
novo Pedro é aclamado por tão significativa assembleia de homens, mulheres e crianças
de todo o mundo, a maior parte sem saber de quem se trata! A hora é de dor — como ele
disse — mas é também de uma fundada esperança. Irmãos, com coragem, neste mesmo
momento ímpar da história, suspendamos a suspensão do conclave e cada um responda
ao desafio presente, pronunciando de imediato a fórmula do voto: Eligo in Summum
Pontificem. Como é óbvio, fica sempre lugar ao voto em branco, para quem, em toda a
liberdade de consciência, não quiser seguir o voto da aclamação popular Mas, se for
aceite maioritariamente, ao menos, o nome de Pedro para a sucessão do Papa falecido, o
Povo de Deus arrancará então decididamente, em marcha por vezes dolorosa, mas
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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sempre confiante para a eternidade do Amor.
Todos os cardeais presentes, mesmo os seis que restavam do grupo dos domani,
um de cada vez, pronunciaram a fórmula, acrescentando-lhe «dominum meum,
cardinalem De Alcaçuz e Alcantilar!» Perez-Logano, circunspecto, mas sempre de olhar
vivo, atento, nada deixando passar, logo segredou ao ouvido do camerlengo em
exercício:
— Nenhum teve coragem para votar em branco.
— Óptimo! — Exclamou em surdina, chorando de alegria, Menezes e Costa.
Uma grande salva de palmas, vivas a Pedro e à Igreja saudaram o fim da ratificação
formal da aclamação popular. O camerlengo coloca-se, então, diante de Pedro e
pergunta-lhe, em voz bem timbrada e audível a léguas: «Aceitas esta escolha dos teus
irmãos e de toda a Igreja aqui reunida para Sua cabeça visível, sucedendo a Pedro, o
Pescador?»
O arcebispo do Rio, que mantinha a cabeça caída no meio das mãos, levantou o
rosto, enxugou as lágrimas e respondeu peremptório: «Se é essa a vontade de Deus, por
forma tão misteriosa demonstrada, que posso eu responder?... Aceito!» O mestre de
cerimónias e protocolo — que já não sabia o que fazer — continuava de mãos no ar,
tentando impedir novas manifestações da assembleia. Mas não foi possível. Dentro e
fora do templo, o ruído das palmas, dos "vivas" e dos cânticos, agora aumentado com as
buzinas dos táxis estacionados à entrada da Praça, foi longo e só os pedidos
insistentemente repetidos pelos altifalantes espalhados por toda a colunata berniniana
conseguiram silenciar aquela electrizada mole sem fim, apinhada por tudo quanto era
sítio da magnífica praça e suas redondezas. O resto do diálogo entre o camerlengo e o
novo Papa continuou com mais esta formalidade:
— E qual é o nome por que desejais ser chamado?
— Pelo meu próprio: Pedro! Aquele que me foi dado no baptismo e explicado
depois por meus pais, com um significado que agora começo a compreender.» — Sorriu,
enquanto os dois homens se abraçavam comovidamente.
— Sereis então conhecido na história por Pedro II— continuou o camerlengo.
— Sim, na história da grande tribulação, irmão, que vai agora começar. Mas o
Amor permanecerá para sempre! — Segredou Pedro ao ouvido de Menezes e Costa.
Seguiu-se a cerimónia da assinatura da acta da eleição e a da obediência dos
cardeais ao novo Papa. Pedro II abraçava a todos com cordialidade, dirigindo a cada um
palavras de incitamento à confiança no Senhor e de pedido de muita oração para que lhe
não faltasse «força para levar a bom porto a enorme barca, cujo leme agora me
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colocaram nas mãos! E que mar revolto teremos nós de atravessar?!» Pedro foi então
apresentado à assembleia, à cidade e ao mundo: «Anuncio-vos uma grande alegria!...» —
Disse, em voz forte e cheia de emoção o camerlengo, por mais alguns minutos presidente
daquela concelebração. Prosseguindo na fórmula usual, acrescentou: «Temos Papa!…
Pedro II será o seu nome!» Este anúncio formal deixou em delírio todos quantos, dentro
e fora da basílica de S. Pedro, seguiam com atenção uma cerimónia que apenas seria a da
grande liturgia da dor pelos mortos e logo se transformou na mais inimaginável apoteose
da alegria dos vivos, com a inusitada continuação de um conclave suspenso e eleição do
Papa por aclamação. Os repórteres televisivo radiofónicos e dos jornais escritos ou
electrónicos faziam os melhores planos, as objectivas não se cansavam de rodopiar
frente aos degraus do altar e os locutores dos directos, sem perceberem nada do que ali
se passava, faziam o impossível por demonstrar que percebiam. Coisa de um "quarto
poder", hoje sem reis nem príncipes! Feito silêncio, o novo Papa subiu então, pela
primeira vez, ao "altar da confissão" — o altar papal, sob o portentoso baldaquino de
Bernini — substituindo, com este gesto e com a colocação da mitra (passando a presidir à
concelebração), a cerimónia da "tomada de posse" — como lhe chamo — uma vez posta
de lado a antiga festa especial da coroação. Primeiro sinal de mudança que não deixou de
ser notado e comentado desde logo pelos mais atentos "vaticanólogos".
A concelebração teve na música do coro da Capela Sistina excepcionalmente
acompanhado pela orquestra sinfónica da RAI, que assim quis homenagear quantos
pereceram na cidade e arredores, vítimas da devastação do ciclone do dia anterior —
uma impressionante riqueza emocional. Previamente, fora acertado que só executariam
alguma partes do Requiem de Mozart. O restante tempo seria para o silêncio tão
necessário numa situação de calamidade pública, como a que se vivia então na cidade de
Roma. Os factos, porém, obrigaram a profundas alterações. «Assim é a vida...» —
comentaria mais tarde Pedro II, recordando aquela tarde, cheia de sinais de contradição.
— «O Espírito de Deus, quando encontra fidelidade no coração dos humanos, deixa-o
alegremente arritmados com Suas desconcertantes intervenções!» — À pressa, os
músicos tiraram das pastas outras partituras e, com um rigor espectacular, executaram,
ao Ofertório, a fabulosa composição de Lorenzo Perosi — «Tu es Petrus...»
No fim, durante a "encomendação" das almas dos defuntos e da liturgia da bênção
dos cadáveres, acompanhada das orações da Igreja, o coro cantou o responsório Libera
me... que a música de Mozart enriqueceu com o tom plangente da mística suplicante do
perdão ao Juiz Eterno. As lágrimas correram então mais uma vez, bem quentes e
incessantes por todos os rostos. Pedro II não se conteve. Chorou também.
Os muitos carros funerários que se alinhavam ao fundo da escadaria receberam as
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respectivas urnas, seguindo cada um para as terras onde deveriam ser inumadas. O novo
Papa, ao cimo da escadaria, lançava a última bênção sobre os restos mortais das vítimas
vaticanas da grande tormenta. Os sinos de S. Pedro agitavam-se inconsoláveis e
marcavam o ritmo da dor. Trinta e dois cardeais e muitos outros bispos, monsenhores e
demais clérigos que trabalhavam nas dependências e chancelarias do Vaticano tinham
prestado contas a Deus. «Liber scriptus proferetur, in quo totum continetur...» — tinha
cantado o coro. E eram precisos bons "advogados", muitas súplicas, para que o eterno
veredicto a cada um fosse propício.
Irmãos, ainda sob a vontade de Pedro do Rio e com a vénia de toda a corte
celestial, quero dizer-vos só mais isto:
No Brasil, a notícia de tudo o que se vivia, minuto a minuto, sob o Duomo de S.
Pedro, em Roma, era seguida, passo a passo, por enormes massas populares, nas suas
casas, nos hospitais, nos centros comerciais, nas unidades fabris, nas ruas e avenidas, nas
cidades e nas aldeias, onde quer que houvesse um receptor de ondas ou feixes
hertzianos, aí havia povo colado ao aparelho. Quando se tornou conhecida a escolha de
Pedro para suceder ao Papa defunto, depois dos episódios caricatos e das anedotas que
iam cobrindo de ridículo as manobras dos conclavistas da Capela Sistina, mas, também,
depois dos acontecimentos trágicos que enlutaram Roma e, particularmente, o Vaticano,
o nome de D. Pedro de Alcaçuz e Alcantilar saltou de boca em boca, atirou-se para a rua,
encheu avenidas e depressa fez o sambódromo abarrotar daquela "minha gente...",
daquele "povão" simples e terno que sabe chorar, como ninguém, a dor da tragédia, mas
também rir e celebrar, como só ele é capaz, a hora de júbilo, o momento de incontido
aleluia!... Que beleza que foi aquele dia! Não era Carnaval, não, o que movimentava essa
gentinha. Era a fé, era o amor, era a esperança, tudo o que de mais nobre sentimento era
depositado na pessoa do novo Papa. Também um pouquinho daquele orgulho
nacionalista, tão compreensível em circunstâncias tais. Mas... deixem lá, que esse não é
pecado, não. Não é qualquer nação que se orgulha de mostrar na sua história este
quadro emoldurado a ouro: «Este o nosso patrício que foi papa!» E, por isso, as vozes da
imensa multidão — «Pedro II!... Pedro II!... Pedro II!...» — gritavam e cantavam a plenos
pulmões, enquanto se erguiam cartazes feitos à pressa e onde se liam frases como estas:
«Pai-Pedro, estamos contigo!»; ou «D. Pedro, em Roma ou no Rio, és sempre o nosso
Pai!»; ou ainda «Pedro II, nosso Papa, nossa alegria, glória do nosso povo!...»
Com estes sentimentos, o povão sambou por largas horas, dando vivas a Pedro, à
Igreja, a Cristo-Rei. No maciço da Tijuca, foram colocadas novas e mais resplandecentes
lâmpadas, holofotes de grande potência que não só davam maior recorte à imagem do
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Cristo-Redentor, como enchiam de mais luz os corações exuberantes da noite carioca. Já
tarde, a convite dos bispos de cada diocese brasileira, o povo cristão reuniu-se em oração
na respectiva catedral e em todo o lado e à mesma hora foi cantado «Te Deum». Desde
então, tudo o que se passava em Roma com o Papa era vivido em todo o Brasil por este
povo maravilhoso como se de acontecimento caseiro se tratasse. Pedro II não se
esqueceu dos seus. E, em sistema de videoconferência, o Papa carioca falava a todo o seu
povo, reunido nas respectivas catedrais.
Pediu-lhes oração, oração, oração. Prometeu-lhes muita dedicação e «uma
surpresa... para breve!» Daqui em diante, na terra do samba e do futebol, não passará
um dia sem que os noticiários de todos os meios de comunicação falem, pelo menos uma
vez, na vinda próxima do Papa brasileiro à sua terra. «Até revista fofoca, toda a minha
gente bota foto de Pedro II na capa...» — comentava o apresentador de um programa de
TV local sobre o efeito Pedro II na imprensa. Mais demolidor se apresentava outro,
referindo que o «Brasil vive ambiente festivo, quase histérico mesmo, causado por esse
terramoto papal chamado Pedro II».
O bispo auxiliar do Rio de Janeiro, presidindo à Conferência dos Bispos Brasileiros,
enviou entretanto a Pedro II uma prenda curiosa: Um DVD contendo as principais
imagens das festas populares e oficiais no Brasil, a propósito da eleição que o colocou na
Cadeira do Pedro Apóstolo. Juntou-lhe ainda uma pasta com os mais interessantes
recortes dos jornais brasileiros, com fotografias e textos referentes aos factos ocorridos
recentemente no Vaticano. O mais expressivo desses retalhos jornalísticos — que
recobria a capa da pasta — era a primeira página de O Globo que, no mesmo dia da
eleição de Pedro, publicou uma edição especial com uma foto do novo papa, a toda a
largura da primeira página, quando ele limpava as lágrimas ao abençoar e olhar
saudosamente as filas de urnas que desciam a escadaria da basílica de S. Pedro, com a
seguinte legenda: «Tu es Petrus...»
— Obrigado, irmão Estêvão. Eu sabia da tua memória e arte de comunicar...
Bom, irmãos desta magna Assembleia, retomo, com a vénia de Pedro Apóstolo, a
narração dos factos e de como aqui cheguei. São factos de uma outra vida minha. Antes,
era o homem do Rio.... livre para amar os meus meninos e meninas das "comunidades"
arrancadas à violência, ao ódio, ao terror. Depois daquele dia em que me colocaram à
frente do Povo de Deus, bom… tereis paciência?
Todas as mentes comunicantes disseram que sim. Ouvir Pedro da grande
tribulação era um prazer celestial — comunicaram.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Recolhido, então, completamente só no meu oratório diante de Jesus, feito
Comunhão de Amor para a Humanidade, «até ao fim dos séculos...», meditava na
verdade daquela foto do jornal carioca. É que, passados apenas dois dias, eu começava a
sentir na pele toda a perfídia humana que contra Pedro se encarniçava. Era Lúcifer
raivoso, a espumar... Eram as portas do inferno escancaradas... Então, pela primeira vez
na vida, tive medo! E orei, como Cristo, no Jetzémani: «Pai, se possível, afasta de mim
este cálice...»
— Tu es Petrus!... — Parecia-me ouvir ainda o eco do maravilhoso coral.
— Pois! — Consolava-me — Mas leia-se a frase completa: «... et super hanc petram
edificabo ecclesiam meam!... Et portae inferi non praevalebunt adversus eam!...» Pois
bem, Senhor, significa que podem grasnar à minha volta, podem regougar ao longe,
como raposas manhosas, podem casquinar todas as tertúlias mafiosas, maquinando a
destruição da Igreja. Podem matar-me, podem lançar todo o fogo do inferno sobre ela...
«Non praevalebunt!...» Essa era a grande certeza. Por isso, Pedro, em frente! Não temas!
E cumpre o teu dever: «Confirma os teus irmãos na fé!...»
Tu es Petrus!...
Eu sentia-o, irmãos. A força do Nosso Espírito impelia-me. E eu, como criança que
sente receio mas que confia abertamente na mão que a sustém, seguia em frente. Que
tempos aqueles, Augusta Assembleia!... Que tempos!... Louvemos o Senhor dos Céus e
de tudo o que possa ainda existir.
E um grande coro se levantou da imensa Assembleia dos irmãos da Eterna
Beatitude: — «Glória! Glória ao Senhor Nosso Deus que tudo criou! Glória infinda ao
Verbo Eterno por quem Deus se comunicou à Criação e a redimiu! E glória para sempre
ao Santo Espírito — Amor do Pai e do Filho — por Quem tudo foi santificado! Glória!
Glória! Glória!»
Quando a celeste harmonia permitiu, cochichei ao ouvido do Apóstolo, sempre a
meu lado: Nunca ouvi coisa assim, irmão! Lá na terra, como sabes, cantavam-se louvores
ao Senhor. Mas, deste modo! Inimaginável!
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II
Tenebrae factae sunt...
— Depois deste momento celestial, que mais posso dizer, meu irmã Pedro
Apóstolo?
— Vais continuar, Pedro II, a deliciar esta Santa Assembleia com os teus relatos dos
últimos tempos. Já vi que tens bons auxiliares. Então podes continuar.
— Bom, uma ordem do Céu não se discute, não é?
— Apenas uma vontade comunicada por toda a Assembleia, sempre presidida pelo
Amor — que é o nosso Deus.
— Assim farei.
— O dia 30 de Novembro era então o meu "feriado pessoal". Em lugar de
champanhe e prendas, consenti, apenas, um livre convívio com todos os cardeais
romanos. Depois do almoço, reuniram-se na biblioteca a meu pedido, pois — disse —
tinha coisas muito importantes a revelar-lhes.
Em ambiente de total descontração, ofereci a todos um saboroso café brasileiro,
acompanhado da tradicional "caipirinha". A caixa dos havanos circulou pelas mãos de
todos e quem quis serviu-se. Sentei-me, fiz uma pausa para que terminassem as
conversas, de sorridente passei a sério e logo a muito sério, carreguei mesmo o
semblante, meu carão pareceu-me ter ficado mais longo, e olhei para todos os presentes,
um a um, demoradamente, enquanto suplicava ao Espírito Santo de Deus que me
colocasse as palavras certas na boca:
— Irmãos: Obrigado pela vossa companhia e pelos gestos de amizade que quisestes
ter para com a minha pessoa no dia do meu aniversário natalício que — digo-vos
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sinceramente — nunca foi objecto de celebração especial, após a morte de meus pais.
Quis esta reunião, hoje, porque aquilo que tenho a dizer-vos é para ficar gravado
na memória de todos, a começar por mim.
Sinto que a humanidade caminha para o abismo. Depois da "morte de Deus", veio a
falência da razão. Agora, sem Deus e sem a razão, vive-se para "curtir". (Desculpai-me o
termo que nasceu carioca, mas depressa se globalizou.) Curte-se o dinheiro pelo poder
que ele dá! Vale tudo para o alcançar. Espezinha-se tudo e todos. Rouba-se, explora-se,
mata-se. E isto, a qualquer nível. Entre nações, este espírito satânico anda por aí
desenfreado. Os países ricos fazem-se cada vez mais ricos, à custa da exploração dos
cada vez mais pobres. Morrem milhões de seres humanos vítimas da fome, de doença,
por todo o lado, sem que isso incomode quem quer que seja. Estamos insensíveis à
miséria da humanidade que se consome a consumir, até as armas com que há-de imolar-
-se ingloriamente, no altar infernal do ódio. As sociedades e os indivíduos tornaram-se
grosseiramente egoístas. Só se pensa em ter mais, possuir mais, para dominar mais!
Curte-se a loucura! Enquanto os iluministas falavam da "morte de Deus", era n'Ele que
pensavam. Era nas coisas do espírito que fundamentavam as suas teorias. Quando era a
razão o objecto dos ataques dos ensaístas do absurdo, era ainda o Homem que pensava.
Agora, nem tempo para tanto há! O frenesim bolsista, os milhões da globalização, a
corrida para o amanhã — que, presumidamente, aumentará os lucros — esgotam a
existência da Humanidade. Porque até aos que menos possuem se lhes comunicou
ardilosamente este vírus diabólico do "ter mais", mais dinheiro, para consumir mais! As
sociedades selvaticamente capitalistas tornaram-se, assim, terrivelmente materialistas.
Onde não há lugar ao espírito! poetas calaram as suas trovas. Já não há quem os oiça! Os
compositores abandonaram as pautas. Só se escuta a melodia do tilintar da moeda. Os
escritores deixaram de lado os seus rascunhos. A literatura, como farol do espírito, não
vende. Resta à humanidade vaguear cega, indiferente, pelo "centro comercial", na
esperança de poder consumir mais! Os génios escondem-se. Os heróis evitam-se. Os
justos são apodados de imbecis! Reina a mediocridade! Que impede a visão do homem,
como rei da Criação. Como alguém que, conscientemente, buscava a harmonia do
universo, olha para o futuro com a confiança de que sabe estar a agir à escala cósmica,
no sentido da maior perfeição da humanidade. Pelo contrário. A mediocridade que se
respira hoje só deixa espaço para aqueles que dormem sossegados, incapazes de ver para
além do ventre e do sexo, de perceber os limites do consumismo, o puro materialismo dos
horizontes. Que avassalou até as mentalidades daqueles a quem seria legítimo exigir-se
uma postura frontal contra a praga mais devastadora da Humanidade. Quão ingénuos se
mostraram aqueles que pensaram ter destruído o materialismo, com a queda do muro de
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Berlim! Afinal, quais eram, na realidade, as sociedades mais materialistas? O inimigo,
irmãos, este materialismo feroz que tudo subverte, que tudo perverte, que tudo atrela ao
seu carro de poder não vem de Leste ou de Oeste, de Norte ou de Sul. Apenas do coração
do homem dos sistemas por ele criados, quando ambos, conscientemente, quiseram
sucumbir perante a mesma tentação diabólica de há dois mil anos, num deserto da
Judeia: «Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares!»
Enquanto isto, que fazemos? Nós que temos a Luz o que fizemos d 'Ela e com Ela? O
sal perdeu a sua força? O fermento estragou-se?
Irmãos, nunca fui pessimista. Nem me sinto profeta da desgraça. Mas hoje creio
que Satã está por aí metido em tudo, a emperrar a máquina... Quereis factos? Aí estão.
Em cerca de mês e meio que levo neste serviço apostólico, tentando consolar os que
sofrem as consequências dolorosas do ciclone e, ao mesmo tempo, procurando definir
uma linha de rumo para a Igreja do terceiro milénio, sofri já sete atentados contra a
minha vida. Deus quis que de todos saísse ileso. Como?! — Parece-me ouvir-vos. Com
toda a rudeza, aí está a descrição, para aqueles de vós que os ignoram.
No dia 13 de Outubro — certamente o mais memorável dia de todos quantos já
vivemos, em que a Sexta-feira de «Parasceve» se juntou à madrugada da Ressurreição,
chorando os mortos e cantando aleluias pela superação das dificuldades dos vivos — eis
que, já muito para além da meia-noite, encontrando-me só, diante do tabernáculo, na
capela privada, alguém me seguia e, notando que o sono começava a vencer-me,
abeirou-se de mim pelas costas. Quando me dei conta, o punhal descia já rapidamente na
direcção do meu pescoço. Aparei o golpe, lutámos os dois, caímos, mas, por fim, dominei
o intruso assassino. O meu secretário e a irmã Florinda apareceram e o homem foi, a
custo, entregue aos guardas mais próximos.
— Mas, Pedro — interrompe o Camerlengo, a provocar o diálogo — já há dados
mais concretos, identidade do agressor, suas ligações.
— Há, Irmão, há coisas muito concretas e reveladoras...
— Reveladoras de quê? — Faz o cardeal francês, visivelmente agastado.
— Reveladoras de quem está por detrás deste e dos outros factos que, se os irmãos
tiverem paciência, continuarei a descrever, prometendo ser breve. Não me obriguem,
todavia, a revelar pormenores sobre factos que estão nas mãos dos investigadores e que
nem eles estão autorizados, por ora, a divulgar.
— Outros? Que outros? — Casquina, ainda, o arcebispo de Paris, investido nas
funções de prefeito da Congregação do Clero.
— Se me permite, irmão, continuo. No dia seguinte, quando conversava a sós com
o nosso Camerlengo, junto à Fontana dell'Aquila, uma bala, disparada, provavelmente do
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interior da gruta, passou de raspão pela minha cabeça, atravessou o chapéu que usava e
foi alojar-se na parede da Casina Pio IV, a cerca de um metro e meio do chão.
— Há testemunhas? — Agora, Di Tronchetto, enquanto expectorava, tentando
aliviar os efeitos de uma profunda inspiração da cachimbada.
— Existe o testemunho do nosso irmão Menezes e Costa e o de diversos vestígios
deixados no local pelo atirador em fuga.
— Vestígios! — Ainda o arcebispo de Siracusa, agora melhor oxigenado e mais
verrinoso.
— Sim, vestígios, irmão! A arma que se lhe prendeu no arbusto e lá ficou na
precipitação da fuga, o projéctil disparado, as impressões digitais na arma, não
constituem vestígios? De resto, o relatório deste caso está concluído e entregue já ao
Procurador
— Ainda bem! — Acrescentou Di Tronchetto. E, em aparte subtil, voltado para o
parisiense — Muito bem entregue...
— O irmão disse...
— Ah!... Nada, nada!...
— Continuo, então. No dia 19 do mesmo mês, seguindo no automóvel, com o
cardeal Righetti, ex-patriarca de Veneza, no dia anterior nomeado secretário de Estado,
fomos abalroados em plena auto-estrada, valendo-nos a perícia do nosso condutor
Martino que segurou a viatura e travou bruscamente. O veículo assassino pôs-se em fuga
acelerada, mas ainda foi possível colher a respectiva matrícula. Sabe-se quem costuma
utilizar este tipo de viaturas muito potentes e em circunstâncias muito semelhantes às
descritas.
— Está a querer sugerir o quê? — Interrompe, colérico, Di Tronchetto.
— Nada, irmão, não sugiro coisa alguma. Apenas disse e reafirmo factos!
— Diga, então, claramente, quem costuma utilizar tais viaturas.
— Pergunta desnecessária, irmão. Quando todos sabemos a resposta, só por má-fé
se questiona. E não gostaria de colocar o irmão arcebispo de Siracusa e outros... em tão
embaraçosa situação.
— Isto é desaforo a mais! — Levantou-se, fumegante, Di Tronchetto, olhando para
os restantes domani. — Sem pedir licença, vou-me embora! — Terminou, agastado.
— Sente-se, irmão, sente-se e acalme-se. A verdade liberta! Tome aí mais uma
caipirinha... — E levantei-me, com a garrafa na mão, inclinando-me para o cálice do
siracusano. Este, num gesto brusco e rude, retira da mesa o cálice e estilhaça-o contra a
parede de mármore, enquanto retoma o seu lugar. Com um simples olhar de compaixão,
procurei serenar os ânimos dos mais exaltados. — Se tiverem então um pouco mais de
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paciência comigo, continuo. No alvorecer do dia 26, ainda em Outubro, cumprindo um
ritual higiénico que vem de longe, preparava-me para beber o habitual copo de água de
uma garrafa que a irmã Florinda colocava sempre na mesinha, junto à janela do quarto.
Ao retirar a cápsula, ouvi uma voz aflitiva dizendo: — «Não!...» Mais aflito fiquei eu. Olhei
espantado para todos os lados, abri a porta do quarto e não vi quem quer que fosse.
Todos dormiam ainda. Quando saí, levei comigo a garrafa com a água. Pessoa da minha
absoluta confiança levou-a a um laboratório para exames. Querem saber o resultado? —
Água adicionada de dose letal de digitalina.
— E a garrafa estava lacrada de fábrica?!... — Entra, agressivamente, o alemão
Hans Reiner.
— Estava lacrada, irmão. Não havia sinal de qualquer fissura na respectiva cápsula.
— Como pode afirmar, então, que a digitalina encontrada com a água tenha sido
dirigida à sua pessoa?
— Eu não afirmei isso. Limitei-me a narrar factos. Mas, se o irmão Reiner quer
mais, aí estão: primeiro, aquela embalagem de água era totalmente estranha. E só o
facto de ser habitual beber água alguns momentos após o despertar pode explicar que
me não tenha apercebido de que se tratava de garrafa e marca nunca antes usadas pela
irmã Florinda. Porque era notória a diferença. Mais, a água que sempre bebi na terra
onde vivia, em viagem e desde que para aqui me mudaram, é e sempre foi importada de
uma fonte amazónica muito especial para mim.
— Julga-se então um miraculado...
— Irmão, não me julgo a mim próprio. Só Um é o Juiz de tudo e todos. Apresento-
-vos factos. Cada um retire deles as conclusões que a respectiva lógica lhe ditar.
— Então… e os restantes?
— Hum?... Ah! Os factos seguintes?! Bem. Na tarde do dia 2 de Novembro romano
chuvoso, quando fui ao cemitério dos capuchinhos concelebrar com os religiosos daquela
ordem, em Santa Maria deli Concezione, sufragando as almas de todas as vítimas das
guerras do nossos dias, descendo a Via Veneto, um encarapuçado, transportado em
potente motocicleta, abeirou-se do nosso carro, disparou uma rajada de metralhadora
ligeira e acelerou, perdendo-se por entre carros e ónibus. O nosso motorista apercebeu-se
a tempo dos intuitos do assassino, guinou bruscamente para a esquerda e as balas foram
cravar-se no tronco enorme de um plátano centenário.
— O motorista apercebeu-se? — Entra, repentino, o arcebispo de Viena.
— Se quiserem ouvi-lo, melhor do que eu, ele explicará o facto.
—Ah! Não! É que podia ter havido mais um milagre — ripostou o vienês, em
surdina, olhando para os restantes do grupo dos domani que faziam caretas uns aos
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outros, tentando evitar uma explosão de riso zombeteiro.
— Irmãos — clamei então em voz forte, ao mesmo tempo que me levantava e
enfrentava o cardeal austríaco — não é esta, certamente, hora mais adequada para
motejo. Sim, para chorar! Enquanto, por todo o mundo, o inferno vomita ódio sobre tudo
o que signifique presença do Espírito da paz, da justiça, da tolerância, do amor entre os
homens, que fazemos nós perante a avassaladora onda de perversão, de maldade, que
pretende atingir agora também a cabeça visível da Igreja?
Ao dizer isto, fixava, um a um, os cardeais opositores. Depois, calmamente, sentei-
-me, prosseguindo no mesmo tom coloquial:
— Algum dos irmãos deseja qualquer esclarecimento sobre o atentado da Via
Veneto, de resto profusamente relatado em todos os órgãos de comunicação social?
Perante os olhares baixos dos domani e o silêncio cortante dos outros, continuei:
— Há dias, foi a 14, indo a caminho de S. João de Latrão, depois de o nosso
automóvel entrar na Via D. Fontana, os dois batedores de segurança foram derrubados
por corda de aço que se levantou transversalmente à sua passagem e, de imediato, uma
potente explosão ocorreu no solo, esventrando-o. E não fora um canino de invulgares
dimensões, que momentos antes se atravessara à frente do automóvel, obrigando o
motorista a virar à direita, em manobra de recurso, a explosão teria ocorrido quando a
viatura passava por cima do local onde se encontrava o engenho.
Todos se entreolharam, mas não houve comentários. Continuei:
— Mais um milagre? Pois, irmãos, interprete cada um o facto segundo a medida da
própria fé. Por mim, como não acredito em acasos, não duvido de que Deus não quis que
a besta me esfolasse nesse dia.
Finalmente, ontem — como é do vosso conhecimento — no auditório
completamente esgotado com peregrinos de diversas nacionalidades, no preciso
momento em que eu deveria ter entrado para a recepção programada, parte do palco foi
pelos ares. O local onde deflagrou o explosivo era aquele onde me deveria sentar. A hora
da minha entrada na sala tinha sido retardada em cerca de cinco minutos, por ter
aguardado fora que me chegassem às mãos uns apontamentos que tinha esquecido no
gabinete. O irmão Perez-Logano foi o portador desses tópicos da comunicação, em
diversas línguas, que afinal não cheguei a fazer.
De todos estes factos, há investigações policiais em curso.
Se ando já com o complexo do atentado? Não, irmãos, não ando. Quando disse
«aceito», naquela tarde memorável em que, por unanimidade, quisestes que fosse eu a
dar novo rosto à Igreja, sabia perfeitamente o que me esperava. Como sabeis, estudei e
vivi em Roma durante quatro longos anos. Meu pai conhecia o Vaticano como poucos e
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deixou-me um "diário" tão demolidor, contendo factos e relatos vivos tão
impressionantes, que não é possível deixar insensível o mais empedernido. Além disso, li e
reli tudo o que se escreveu — meditando, sobretudo, naquilo que se não escreveu —
sobre a morte de João Paulo I! O Albino Luciani, simples como as pombas, mas não tão
prudente como as serpentes, cometeu o deslize que lhe foi fatal de confidenciar
infantilmente os seus passos e intenções a quem lhe era infiel! Conheço os métodos e os
objectivos, irmãos. Nada me espanta. O inferno está de portas escancaradas sobre a
Humanidade. Há irmãos que cederam à tentação do «tudo isto te darei...» e, prostrando-
-se aos pés da “besta”, adoraram-na!
— Ah!... Ah!... Ah!... — Era a resposta, na habitual casquinaria, do agora pequeno
grupo de cardeais que nada tinham retirado dos sinais dos tempos.
— Amigos, de todos os factos que relatei e que — pelo menos em parte —
pertenciam já ao domínio público, é possível, desde já, formular algumas conclusões
lógicas: em todos os casos, o objectivo a atingir era a eliminação física da minha pessoa;
em todos eles, havia o conhecimento exacto do momento e demais circunstâncias em que
eu deveria estar; tal conhecimento só podia ter sido obtido através de pessoa a quem eu
tenha revelado os meus planos e agenda; daqui não era difícil, ao menos informado dos
investigadores, parar na fotografia daquele que passava a informação para a "loja"
executora.
Irmãos, conheço os nomes de todos os clérigos da Cúria que se tornaram membros
de sociedades secretas. Conheço-lhes os rostos e os métodos. Àqueles que ainda
estiverem em condições de redenção, peço-lhes, por tudo o que há de mais nobre, que
voltem atrás, peçam a Deus perdão, façam penitência e vivam corajosamente como
verdadeiros cristãos, até que a morte os surpreenda numa qualquer esquina da rua. Aos
outros, àqueles que — admito —já não possuam coragem para enfrentar a punição do
respectivo código, ao menos interiormente, que tudo façam para que o libelo e o
veredicto final do Eterno Juiz lhes não seja demasiado duro! E não o será, se ao menos
fugirem da violência e de toda a prática criminosa.
A todos aqueles que quiserem libertar-se do pesado jugo das obrigações clericais e
mesmo do serviço que prestam na Cúria dar-se-á carta de alforria, desde que o peçam por
escrito, sem necessidade de alegar razões. Mas, fique bem claro: ninguém me assustará
ou desviará da missão que me confiaram. A história será ultrapassada. O poder do
dinheiro será absolutamente dominado! E Lúcifer e seus sequazes inapelavelmente
esmagados! Ninguém duvide! Por fim, o Amor — o Espírito de Deus e só Ele! — voltará ao
coração da Humanidade e ao centro da vida da Igreja. O homem do terceiro milénio tem
o direito de saber como é belo o Amor! Como é inebriante vivê-lo! Como Cristo — o
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"Primogénito" da nova criação — o viveu: Dando-se! Sem reserva! Até à morte. E morte
de Cruz! Como o viveram as primeiras comunidades cristãs. Dando-se uns aos outros na
alegria da partilha, mesmo diante das feras no Coliseu — o que espantava os próprios
carrascos e seus instigadores. E a liberdade de Cristo libertará a Humanidade!
Irmãos, é preciso proclamar bem alto e em todos os cantos do mundo que o
fundamentalíssimo dogma cristão é o do Amor revelado em Jesus de Nazaré! Que
incendiar o mundo n'Ele e com Ele é a missão da Igreja de Cristo! E, finalmente, que não
foi o homem criado para a Igreja, mas esta é que foi instituída para o Homem!
Irmãos, com muita pena, mas não menos rudeza, digo-vos: quem se escandalizar
com estas palavras pode sair! Mas não aguardarei que caia sobre Roma o fogo destruidor
de Sodoma e Gomorra, para arrepiar caminho. Custe o que custar. Vamos encetar a era
da penitência! De saco e cinza nos cobriremos. E o Amor do Espírito de Deus virá em novo
Pentecostes a consolar os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os que estão
presos da exploração, os pobres, os fracos, os anawim destes tempos de mudança. Vem,
Senhor Jesus! Vem!
Ao pronunciar estas últimas palavras, levantei-me, e comigo quase todos os
cardeais que me escutavam. Então, de braços abertos e olhos voltados para o alto, iniciei
o «Pater Noster...», no que fui acompanhado, em coro, pelos demais que comigo se
tinham levantado. Quatro ficaram sentados e de olhos cravados no chão. Era o que
restava do grupo dos domani. Embora tendo participado na minha eleição, nas
circunstâncias já referidas, sempre contra mim conspiravam. Conhecia-os bem e pelos
nomes. Sabia tudo sobre as respectivas ligações exteriores e a quem obedeciam! Em
comum, tinham o facto de obedecerem cegamente aos comandos vindos com a chancela
de Manhattan ou de alguma ordem de algum chefe de loja italiana com ligações aos
banqueiros do nº 243 da Lexington Avenue. De resto, nessa mesma loja, segundo os
meus investigadores, eram deliberados e planificados os atentados contra a minha
pessoa e escolhidos os respectivos executores. Aliás, dos meus diligentes serviços de
apoio chegavam todos os dias informações muito precisas sobre as movimentações dos
curiais. Até sobre a identidade de quem forneceu ao terrível, mas "venerável", Claudio
Vechio — chefe daquela que foi uma das mais influentes e poderosas lojas romanas do
crime organizado — o estatuto e as insígnias de "cavaleiro do santo sepulcro" e —
imagine-se! — um livre-trânsito que lhe franqueava as portas do Vaticano, por onde
podia passear e devassar tudo o que lhe interessasse. Isto explicava muita coisa que João
Paulo I não teve tempo de conhecer. Mas que ao sucessor nada disto constituía
novidade.
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Depois desta conversa aparentemente desinibida com todos os elementos do
colégio cardinalício, dirigi-me de imediato para o gabinete de trabalho. Chamei
secretamente aqueles em quem podia confiar, porque tinham demonstrado fidelidade e
vontade de comigo começar a grande revolução: eram Menezes e Costa, de Luanda,
Perez-Logano, de Buenos Aires, e Colombano Righetti, de Veneza. Associei-lhes o meu
bispo auxiliar do Rio, o bispo de Manaus e o inseparável e nobre irmão Estêvão que, logo
a seguir aos factos de 13 de Outubro, estava ansioso por me confidenciar que todos os
irmãos estariam em permanente oração pela IGREJA (enfatizava o termo). Tinha
institucionalizado — disse — na capela do velho mosteiro, a adoração eucarística
contínua pela Igreja — e que colocava o seu convento do Monte Célio em permanente
"alerta vermelho". Então, abraçando como podia os meus irmãos colaboradores,
segredei-lhes a minha primeira preocupação: o grupo de trabalho não está completo,
enquanto não for integrado por algumas mulheres. Elas foram as primeiras testemunhas
da ressurreição do Senhor. Antes, quando todos O abandonaram, elas acompanharam-n0
até ao Gólgota e ali aguentaram, de pé, com Maria, o estertor. Só elas sabem o que é o
parto! É tempo de a IGREJA (e acentuei a voz, ao jeito do irmão Estêvão) as ouvir! Elas
terão muito a dizer, muito a ensinar, a dar à luz o Espírito Novo de que toda a
comunidade dos crentes necessita, no arranque desta nova etapa da Peregrinação, a
caminho da "Nova Jerusalém". Esta revelação fez saltar o grupo. De imediato, cada um
soltou a língua e choveram os nomes. Não foi difícil juntar um conjunto representativo
das mulheres dos diversos continentes. (Elas estão aqui. Connosco cantam glórias ao
Senhor, porque fez maravilhas.) As sondagens, os convites, as viagens, os locais de
encontro, tudo foi estudado ao pormenor, para evitar olhares inoportunos... O segredo
da composição do grupo de trabalho era a alma do êxito. O Senhor assim nos
aconselhou. A prudência era, pois, não só regra, como dever. Quando, num dia de
intenso calor romano, estando a cidade a abarrotar de turistas, eu e o irmão Estêvão, lá
do alto do mosteiro do Monte Célio, começámos a lobrigar um grupo muito especial de
mulheres, subindo depressa as veredas, com floridos chapéus e vestidos característicos
dos diversos continentes, elevámos os olhos ao Céu, ajoelhámos e, de braços no ar,
gritámos baixinho: «Obrigado, Senhor, pelo Vosso Espírito!» Apresentadas as credenciais,
sem mais formalismos, a sessão começou:
— Irmãs e irmãos, meus amigos — disse-lhes — não há tempo a perder. Vamos ao
trabalho. Sem medos, mas com toda a discrição e prudência, não deixemos que os filhos
das trevas nos ultrapassem. Nada, mas mesmo nada do que aqui se trata ou planeia pode
ser usado fora daqui! Isto é uma ordem de absoluto rigor! Não teremos outro plenário. Os
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locais de trabalho, por grupos, serão divulgados dia-a-dia. Quem for escolhido para
chefiar cada grupo saberá como fazer chegar ao coordenador-geral as conclusões dos
respectivos estudos. Observai sempre e em tudo a mais rigorosa confidencialidade.
Visitar-vos-ei pessoalmente, sempre que possa. Despistar o inimigo é um dever. Mas
nunca tenhais medo. Trabalhai o máximo que puderdes. E confiai absolutamente no
Senhor! Ele vos precederá sempre nos diversos lugares e tempos de trabalho. Haverá
muito discretas equipas de serviço de vigilância às salas onde decorrerem reuniões,
procurando detectar hipotéticos olharapos. Repito: temos o dever de ser prudentes! O
mandato do Senhor que recebemos é de tal modo imperioso que uma falha nossa seria
imperdoável. Temos de colocar a Luz sobre o candelabro, para iluminar os da casa.
Ocupar-nos-emos, de imediato, na definição das grandes linhas que vão orientar a nossa
acção. Depois, prepararemos os respectivos decretos que marcarão o início da grande
revolução do papado e do modo de entender a missão da Igreja, num mundo que anseia
por sinais.
E o facto é que, de coração aberto ao Espírito, dava-se início a um trabalho árduo
de pesquisa, pelas consultas às conferências episcopais, pela audição de universidades,
de teólogos que tinham sido reduzidos ao silêncio. Durante cerca de dois anos, quando
todos pensariam estarmos a dormir, estas santas e estes santos — não canonizados, mas
que a Misericórdia do Nosso Bom Jesus glorificou logo que deixaram o planeta — não
descansaram: o relatório final das necessidades e das reformas mais urgentes era um rol
de muitas páginas que comigo quiseram discutir.
— Dar de comer a quem tem fome! — Ia eu a começar.
— Exactamente — em coro, os "meus braços" continuaram o meu pensamento —
antes de tudo, é preciso intervir mundialmente no problema da fome. Jesus e a Sua Igreja
têm respostas e os pobres não podem esperar. Quem não tem o mínimo para viver está
desesperado.
— O primeiro objectivo está identificado. Com ele concordo. Como fazer? Reforçar
a nossa presença activa na FAO!
— Pedro — dizia-me Righetti, bom conhecedor do meio — existe pobreza
confrangedora por toda a Itália, mais particularmente no Sul. Há muita gente a passar
fome. De resto, se conseguirmos pôr aquela gente a viver em nível mais digno, teremos
começado a apontar o machado à árvore do mal na região — a Cosa Nostra!
O "plano Righetti" — como ficou conhecida a intervenção especial em Itália — foi
de imediato aprovado. Toda a ajuda seria canalizada através da conferência episcopal.
Mas, aqui, cuidado — lembrava Righetti — todo o cuidado é pouco. Há elementos que
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não estão connosco!
Estêvão atento: «Temos irmãos espalhados por toda a Itália e é possível utilizar as
nossas estruturas e pessoas para o contacto directo com as populações.»
— Irmão Estêvão, sempre oportuno. Obrigado! Ficas encarregado dessa
organização. Em ti, a Igreja confia. Como tu confias no Espírito de Jesus!
— Irmãos — era a vez de Menezes e Costa — o que fazer fora de Itália? O que fazer
para não deixar de lado os milhões de crianças que, em Angola e noutros países de África,
morrem diariamente por falta de alimentação e cuidados primários de saúde?...
— Pedro — ouve-se a voz cava de Perez-Logano — penso que não podemos
distinguir entre as prioridades do Sul de Itália e as dos povos africanos do centro. Mas, se
me é permitido, juntemos a todos estes milhões de seres humanos em risco, outros
tantos da América latina, cuja vida se tornou um inferno. Digamos que a prioridade é de
todos eles!
— Meios, irmãos queridos? Que meios?
— O nosso IOR — sabe Pedro o que isso significa — tem alguns milhões em caixa.
Ninguém me pergunte como foram arrecadados. Mas, além disso, há fortes
investimentos em empresas bem cotadas. — Era o conhecimento afiado de Righetti.
— Podíamos começar por ouvir imediatamente as conferências episcopais desses
países e solicitar-lhes, num curto período de tempo, um relatório sucinto sobre a situação
de cada um e sobre quais os montantes que, para já, acham absolutamente
indispensáveis para acorrer às mais prementes necessidades. As nossas irmãs vão à
frente, cada uma para a sua região, levando às conferências episcopais o anúncio da
revolução e do seu Espírito!
— Irmãos Menezes e Logano, que vos parece da ideia de Righetti?
— Pedro, nosso companheiro e congregador — respondeu o mais velho, Menezes
e Costa — pelo acenar de cabeça, parece-me poder falar em nome de todos: achamos
que se deve executar imediatamente essa ideia. Sem perda de tempo. O mundo que
sofre a Camorra, de há muito espera esses sinais.
A nossa tarefa estava facilitada pelos meios de comunicação. Foram tempos de
mangas arregaçadas, na oração, no estudo das situações, no contacto com as missões
diplomáticas credenciadas, na minha primeira deslocação à sede das Nações Unidas, a
fim de acertar com as autoridades de cada país, com a colaboração das instâncias
internacionais, colocação dos meios disponíveis no terreno.
A propósito dessa deslocação, quero contar-vos um episódio significativo ocorrido
com o secretário-geral da Organização. Quando desci do aparelho que me transportara
de Roma a Nova Iorque, cumprimentei o secretário-geral (que me não conhecia
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
60
pessoalmente) e todas as delegações que quiseram gentilmente deslocar-se ao aeroporto
para me receber. Entretanto, notava que o senhor secretário-geral estava confuso e ouvi-
-o perguntar para o lado, em voz baixa: «Mas o Papa não veio?...» Eu vestia um normal
fato escuro, com gravata e colete, e cobria a cabeça com um chapéu de grossa fazenda
cinza, pois o frio de Nova Iorque a isso obrigava. O abandono definitivo da veste clerical
branca fora consciente, e tinha querido deste modo mostrar ao mundo que o tempo era
escasso para as mudanças. O meu fiel irmão Estêvão — que sempre me acompanhava
para qualquer parte — logo explicou ao senhor secretário-geral da ONU que o Papa era
eu (apontando para mim) e que, doravante, não esperasse ver o Papa cheio de
cerimoniais, porque, «com Pedro II — fez questão de frisar — isso acabou!» O bom
homem que conduzia o maior areópago internacional do concerto entre os povos dirigiu-
-se-me, então, com toda a deferência, pediu desculpa do lapso e deu-me o braço direito
a caminho da viatura que nos transportaria ao grande edifício de vidro. Vim de lá
convencido de que tinha ganho a instituição e que o nosso trabalho e os nossos meios a
colocar no terreno seriam bem recebidos pelas equipas de técnicos à nossa espera.
Foram muitos meses de intensa actividade, nos vários países escolhidos para começar a
erradicação da fome e da doença. Os milhões do IOR desapareceram em pouco tempo.
Mas os apelos aos fiéis de todo o mundo continuaram a missão. As conferências
episcopais dos países com mais carências e de populações em risco tinham o esquema de
distribuição perfeitamente organizado. — «Podemos garantir — dizia-se num relatório da
conferência episcopal de Angola — que nenhum esforço internacional foi parar às mãos
de governantes corruptos... ou dos seus tentáculos. Tudo foi empregue na compra de
víveres que depois eram distribuídos às populações e na aquisição de materiais de
construção, para o início do programa de uma casa para cada família. E como era
enternecedor verificar o entusiasmo com que homens, mulheres e crianças se
entregavam às diversas tarefas de reconstrução ou de construção da sua casa!» — Um
editorial de jornal independente daquele país africano escrevia com acerto que «desde a
chegada de Pedro à Igreja de Roma, tudo aqui começou a mudar… e rapidamente! Em
pouco tempo, a vida mexeu, as crianças e os idosos foram alimentados, as casas
reconstruídas, as escolas começaram a funcionar e até os hospitais ficaram em condições
de poderem receber e tratar doentes. Vieram médicos de todo o lado. Parece que o Céu
olhou para nós!»
A forma "pouco ortodoxa" pela qual tinha sido eleito, a abolição de uma cerimónia
específica de "coroação" — embora sem tiara — e a forma "civil" como me apresentava
— com todas as cambiantes de um arcebispo brasileiro, sempre avesso a formalismos, a
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
61
vocativos e a hábitos medievais sem sentido, como a exclusão de mulheres aos trabalhos
centrais, regionais e locais das diversas comunidades cristãs — haviam feito prever, entre
os analistas, que um outro tufão se aproximava. Este, porém, de características muito
positivas para a Humanidade.
Mas os conspiradores também não estavam parados e não me perdoariam mais.
Incitados pelo "venerável" — receoso da perda de liberdade de manobra no domínio de
um dos mais influentes centros de poder — os quatro domani, a que se juntaram mais
outros três, todos italianos e súbditos do "venerável", iniciaram reuniões secretas, com
vista à montagem de uma estratégia futura, sem falhas, como a anterior. Numa dessas
sessões, realizadas dentro dos muros do Vaticano, com a presença do próprio
"venerável", tudo foi discutido e decidido. Agora, não haveria mais atentados. — «Parece
que o carioca — como era por eles apelidado — goza de qualquer protecção que nos
escapa!» — Tinha dito o chefe. — «Vamos colocá-lo fora da cátedra e expô-lo ao ridículo,
perante o mundo inteiro.»
O plano foi elaborado ao pormenor. Tudo seria feito de dentro para fora. Como
queria o "venerável".
Um facto novo veio acalentar as esperanças dos conspiradores.
Num cinzento e chuvoso dia de Dezembro, recebera eu uma carta estranha a que
fiquei ligado. Nesse mesmo dia, ao jantar, segredei ao amigo Perez-Logano:
— Amanhã, antes que a aurora comece a espreitar Roma, irei fazer uma viagem.
Em segredo, claro. Queres acompanhar-me?
— Irei contigo para onde quiseres. Tu es Petrus... — Concluiu a rir.
— Eu sabia. Mas, diz-me, podes conseguir, ainda esta noite, duas passagens para
Siracusa, no primeiro voo matinal?
— Eu conheço um patrício que trabalha numa agência de viagens aqui em Roma e
que é pessoa da minha inteira confiança. Vou telefonar-lhe.
— Com toda a discrição...
— Pedro, eu sei o chão que piso. Isto está tudo armadilhado. Contudo, podes
confiar. Por ti, ao colo não te levo, porque és mais forte que eu, mas deitar-me-ei no
chão, para que passes por cima, incólume.
— Sim... Então, trata disso e, logo que esteja tudo preparado, avisa-me.
— Às ordens de Pedro, a quem obedecer é um privilégio.
— De poucos.
— Não concordo. Pedro é como a nuvem de fogo, no Êxodo: ilumina os que
caminham para a terra prometida e devora aqueles que o perseguem! — Concluiu, com
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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certa ênfase, o amigo Perez-Logano.
Às cinco da manhã seguinte, bem abafados com gabardinas e cachecóis, chapéus
enterrados até às orelhas, luvas e guarda-chuvas nas mãos, subíamos os dois a escada
para bordo da aeronave que, dentro de momentos, iria rolar na pista de Ciampino,
pronta a fazer-se aos céus cinzentos de um Outono benigno, mas húmido em excesso.
Nem a Logano revelara o que me levava, assim, tão inesperada e secretamente, a
Siracusa, nem o ex-arcebispo de Buenos Aires me questionava sobre o assunto. Aliás,
Perez-Logano conhecia-me de há muito e de mim sabia o suficiente para poder pensar
que, quando tomava decisões íntimas, sempre o fazia por imperativos de consciência, por
vezes bem misteriosos, aparentemente acima da estrita racionalidade. Admirava-me e eu
sabia que ele comunicava a outros essa sua admiração, tendo-me como um «homem
extraordinário, mais ainda pela obra que realiza, sem toques de clarins, sem holofotes
atrás, sem prévias e bem planeadas 'homenagens espontâneas'»... — «Quem convive o
dia-a-dia com Pedro sabe que os seus passos são imprevisíveis!» — Diria, mais tarde, em
conversa com Di Tronchetto, a propósito da pergunta do arcebispo de Siracusa sobre os
motivos da inesperada visita.
O tempo de viagem tinha sido aproveitado para um frutuoso diálogo sobre os
grandes pecados da Humanidade: a indiferença dos poderosos perante as condições de
vida dos sem-terra no Brasil, os pobres camponeses em toda a América Latina que são
obrigados a cultivar coca para sobreviver, sob o mundo infernal dos grandes cartéis...
«que matam quem se lhes opuser...» — terminava Logano. Pois — acrescentava eu — «e
a situação caótica dos espoliados das guerras africanas e asiáticas, os marginalizados dos
consumismos, dos totalitarismos da globalização, mas, sobretudo, os gritos aflitivos dos
esfomeados que estão a levantar-se em armas contra uma civilização cristã do mais
absurdo liberalismo materialista e de valores caducos, onde campeia o desrespeito pela
pessoa humana, pelos seus mais sagrados direitos e, pior, se se trata de crianças que não
têm neste mundo quem delas cuidem — um mundo inteiro de bocas a pedir pão e
justiça». Eu sabia, irmão Perez (— Estás na nossa Assembleia santa, que eu já te vi,
discreto como sempre foste na vida do outro lado.), eu sabia que estava perante um
grande humanista e, sobretudo, perante um cientista humilde, um franciscano puro que
nunca deixou a estamenha, um homem de fé irradiante e de um ardor incansável na
execução das missões que lhe eram confiadas. E segredava-lhe: «Irmão, vamos
pressionar a Organização das Nações Unidas. Através dela, vamos fazer tudo o que
pudermos para acabar com esta situação intolerável e verdadeiro pecado contra o
Amor!»
Em Siracusa havia sol. O melancólico sol outonal da Sicília. Mas também o mais
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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belo do mundo, quando se aninhava nas águas calmas de Palermo.
Os dois ilustres desconhecidos caminhavam apressadamente para a catedral. O
encontro com Margaritta — a mulher que tinha escolhido para as grandes tarefas da
comunicação e da discreta colaboração com Logano — aconteceu aí. Depois da oração,
percorremos demoradamente a Igreja diocesana e saímos. Margaritta, sorridente,
embora vergada ao peso dos seus setenta e bastantes, aponta-nos um estranho veículo
que nos levaria ao encontro com o arcebispo de Siracusa.
—Viva, meu caro colega. Muito gosto em ver o mais famoso "príncipe da Igreja" —
Faz Logano, cumprimentando ao cimo da escadaria do palacete o cardeal Di Tronchetto
— um homem abrutalhado, mau carácter, ostentando riqueza que, para muitos
sicilianos, estaria ligada à rede da criminalidade organizada da Cosa Nostra.
— Perez!... Que belo ver-te também fraterlino. Como estás?
— Muito bem, grande "príncipe".
— Em Siracusa? A estas horas matinais?
— Exactamente.
— A que devo a honra de tão nobre visita?
— Nobre, sim, meu velho, mas não é a minha. Nobilíssima, se quiseres, é a visita de
Pedro, o incansável apóstolo, sucessor do outro Pedro, o chefe dos apóstolos, escolhido
por Jesus, na Galileia, há mais de dois mil anos.
— Não brinques comigo. Pedro? Em Siracusa? Às nove da manhã? Essa não!
— Então desce.
— Mas...
— Sem mas... Desce já, porque Pedro aguarda-te naquele táxi e, como sempre, não
quer gastar tempo com salamaleques. — Quase imperou Logano, agarrando Di
Tronchetto pelo braço e começando a descer a escadaria.
— Que se passa? — Fez o velho arcebispo de Siracusa, apreensivo, ao ouvido de
Logano.
— Sei tanto como tu. — Responde, muito sério, o companheiro de Pedro. —
Ontem, ao jantar, pediu-me para o acompanhar hoje a Siracusa e para arranjar duas
passagens no primeiro voo. Foi o que fiz. Visitámos a catedral, rezámos e viemos para
aqui. Nada mais sei.
— Este papa-carioca desconcerta toda a gente. — Terminou o diálogo cochichado,
já bem perto do transporte.
Pedro abandonou a viatura, foi ao encontro do "irmão" Di Tronchetto e abraçou-o,
dizendo:
— Peço-lhe desculpa, irmão, mas tinha o maior empenho em que nos
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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acompanhasse. Vamos fazer uma visita a um seu diocesano e não quero que o seu
arcebispo esteja ausente.
— Diocesano? Qual é a personalidade desta pobre terra que merece a visita de
Pedro? — Fez Di Tronchetto, arrancando um sorriso amarelo.
— Pobre gente, diria melhor. Ora leia esta carta.
Di Tronchetto leu e releu vagarosamente um simples papel já gasto, onde mal se
compreendiam umas quantas letras mal alinhavadas. O ruído do motor do táxi, em
subida ao bairro do castelo, era o único elemento perturbador de um silêncio que já
perturbava.
— É mais um extremismo dos muitos comunas que por aí pululam e que não
sabem outra coisa senão ameaçar, mostrar os dentes — casquina, fazendo saltar o
umbigo, o arcebispo siracusano, enquanto me devolve a carta que lera.
— Um extremismo? — Interroguei, quase irritado com a maquiavélica
interpretação do cardeal. — Então — continuei — o grito de um homem mergulhado na
dor, na miséria, sem uma luz que lhe diga por onde sair ou caminhar para longe de uma
situação de angústia mortal que não buscou é para o irmão — pastor deste rebanho —
um extremismo de "comuna"? De facto, tal interpretação mostra bem que temos
concepções diametralmente opostas sobre a realidade social que nos cerca e sobre a
missão da Igreja, no meio da Humanidade sofredora. — Terminei, em aparte, guardando
o papel da carta.
— Pronto!... Seja!... Mas será uma carta deste tipo motivo bastam para fazer
deslocar Pedro de Roma a Siracusa? Por esta ordem de motivações, os mil quatrocentos
e quarenta minutos de cada dia não chegarão a nada para tentar aparecer a todos os
gritantes da dor deles "aldeia global"! — Rosnou, mal-humorado, o cardeal da Chiesa No-
tra.
— Não se apoquente, irmão Di Tronchetto — dizia eu, com toda calma e voltado
para trás. — Vamos cumprir a missão que o Espírito nos confiou. Se me pergunta o
porquê desta deslocação, também eu lhe não saberei responder satisfatoriamente. O
facto é que não tenho pressa. Nem ficarei intrigado, se nunca o vier a compreender.
Procuro, apenas seguir a Voz do Amor. E essa é a razão dos meus passos. De resto, Cristo
não esperava pelo rebanho. Ia, Ele mesmo, ao seu encontro! E se um ovelha se perdia. —
O Irmão conhece bem a parábola. De outra vez, olhando a multidão dos que
acompanhavam, havia já três dias, disse para os que estavam mais próximo: «Tenho pena
desta gente. São como rebanho sem pastor!»
Este parágrafo irritou Di Tronchetto. Confesso que não houve qualquer intenção no
paralelismo. Só depois me dei conta que à situação siracusana o verbo evangélico
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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assentava como luva de cirurgia. O arcebispo estrebuchou, tossiu forte, ficou apopléctico,
mas nada disse.
Perez-Logano mantinha-se reservado. Olhou-me de soslaio, para se certificar da
expressão mímica, denunciadora dos sentimentos que me atravessavam, mas continuou
como vinha, ao longo da viagem, ao lado do arcebispo de Siracusa: sempre calado.
Margaritta ia dando ao motorista as indicações que tinha sobre a situação geográfica da
casa, num dos bairros mais degradados, bem no caminho das catacumbas de S. João.
Na rua indicada na carta, procurava-se agora o número da porta. Com a ajuda do
carteiro que iniciava o seu giro, foi a tarefa simplificada e pudemos, finalmente —já sem
o agasalho, pois o sol estava quente —, subir as escadas de acesso a um terceiro andar
esburacado, por onde saíam e entravam enormes ratazanas, esvoaçavam nuvens de
moscas de todos os tamanhos e já não havia mais cantos para segurar as teias espessas
que aranhas e aranhões iam pacientemente deixando atrás de si, como festões gratuitos
de tão pobre festa da vida.
— Quem é? — Gritou uma voz rouca de mulher, ao sinal que Pedro fez na porta.
— É Pedro de Alcantilar — respondi, sorrindo para os dois cardeais que me
acompanhavam. Margaritta tinha ficado no carro.
— É quem?... — Fez a mulher, sentindo-se, agora, mais perto.
— Pedro de Alcantilar, minha senhora. Pode abrir, se faz favor, pois queremos ver
o seu marido.
A mulher abriu apenas três dedos, espreitando pela frincha. Mal deu com os olhos
no enorme rosto de Pedro, correu para dentro, tirou de uma gaveta da cozinha o jornal
que na véspera pintara involuntariamente ao entornar o copo do rosso, mas onde ainda
era bem visível uma foto do rosto de Pedro a toda a largura da primeira página, e saltou
para a sala onde se encontrava o marido, gritando no mais tresloucado alvoroço:
— Ó homem, é ele!... Ele veio!... Ele veio!...
— Ele, quem?... Se estás outra vez a troçar de mim, Maria Campanella, olha que
desta é que não escapas. Eu mato-te! — Vociferava Lorenzo, arrastando-se na esteira,
com as mãos pelo chão, o ferroviário que ficara sem pernas, havia vinte e dois anos,
quando um comboio lhas trucidara no momento em que retirava do meio dos carris uma
criança que se havia perdido da mãe e por ali tinha ficado a brincar...
— Ó homem, o Papal... Ele veio! — E a mulher tentava abotoar à pressa uma blusa
escura de tão suja e alinhar a farta cabeleira desgrenhada que se não lembrava de ter
visto água nos últimos tempos.
Ainda o jornal viajava de mão em mão, entre o homem e a mulher, quando eu,
com os dois cardeais, pedindo licença, entrávamos, acalmando Lorenzo que não
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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acreditava no que a mulher dizia.
— Como vê, meu caro Lorenzo, aqui estou, em pessoa, para o ajudar — disse, com
voz de confiança e um sorriso de bondade que busquei tradutor de quanto me ia na
alma, ao ver a miséria que ultrapassava o que tinha lido na carta que o homem sem
pernas me enviara.
— É o novo Papa? O Pedro II? Mas não vem vestido de Papa?!
— Ó homem, mas não vês que é ele? — Insistia a mulher, apontando-lhe, de novo,
a fotografia do jornal.
— Sim, Lorenzo, sou eu. Nunca ouviste dizer que não é o hábito que faz o monge?
Olha, estes são o teu arcebispo de Siracusa e o meu ajudante Perez-Logano.
— Está bem, mas, então, mostre-me a carta que lhe escrevi — responde Lorenzo,
ainda intrigado com aquela estranha figura de papa.
— Aqui está ela, Lorenzo, não duvides. Sou eu mesmo. A tua carta foi lida e relida.
Por isso já está a ficar gasta.
Entreguei então ao homem sem pernas o sobrescrito que ele mesmo redigira e
mandara a mulher colocar nos correios de Siracusa, enquanto Maria Campanella se
desfazia em desculpas: «Este homem é assim, senhor Papa!... Não acredita em ninguém.
Ameaça toda a gente. Olhe, um calvário! É o que eu tenho!...» — Dizia, em lágrimas.
Quando abriu o envelope e viu o papel que ele bem conhecia, mas agora com
algumas palavras e frases sublinhadas a vermelho, Lorenzo levantou os braços, agarrou-
-me com veemência as duas mãos, beijou-as e regou-as com lágrimas de arrependimento
de tanta incredulidade.
— Perdoe-me, senhor, nunca ninguém me ligou. Porque havia o Papa de vir a esta
miséria e, ainda por cima, vestido como um homem qualquer? — Fez o aleijado,
acalmando-se e enxugando as lágrimas.
— Lorenzo, vim porque tu me chamaste e fizeste-me sentir a tua dor.
Enquanto o ferroviário reformado à força mais apertava contra o rosto "as mãos
do Papa", curvei-me para o abraçar, sentado na esteira. E, nesse preciso momento —
maravilha indizível! — o pedaço de criatura cresceu para mim, agarrou-se-me aos
ombros com quanta força tinha e encostou ao meu o seu rosto regado em lágrimas de
contentamento. Uma força irresistível percorreu-lhe as artérias. — Explicou, depois.
Lorenzo sentiu qualquer coisa muito estranha a segurá-lo. E uma voz interior que lhe
segredava: «Levanta-te!» A mulher, de olhos esbugalhados e ouvidos escancarados,
seguindo boquiaberta os movimentos e as palavras do homem, quando viu que ele se
levantara sozinho, escachou os maxilares quanto pôde, deitou a mão direita aos lábios e,
com os cabelos em pé, caiu inânime. Salvou-a da quase certa cabeça rachada o braço
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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poderoso de Perez-Logano. Ao verificar o sucedido, Lorenzo deixou-me e correu para a
mulher, esquecido das pernas. Reanimada, ajudei Logano a entregar Flávia a Lorenzo. Os
dois abraçaram-se e beijaram-se, sob o meu sorriso complacente, o encantamento de
Perez-Logano e a mal dissimulada acrimónia do velho arcebispo siracusano.
Aceitei o pobre café que me ofereceram. E conversei, durante alguns minutos, com
o casal, pedindo-lhe que não me agradecessem a mim, mas a Jesus Cristo, o Senhor da
vida, que sempre ouviu os que n'Ele crêem. Depois, entreguei-o aos cuidados espirituais
e assistenciais do prelado diocesano. Mas, antes de partir, quis que Margaritta ficasse a
conhecer o casal e as suas necessidades. A nossa "Priscila" — como já lhe chamava
Logano — ficou e tomou notas. E partimos. Em silêncio. Não sem primeiro recomendar a
todos que guardassem segredo sobre tudo o que em Siracusa se passara naquela manhã.
Ainda o táxi rolava a caminho do aeroporto local e já a rádio oficial dava a notícia da
«visita relâmpago de Pedro II à cidade de Arquimedes, onde se deslocara bem cedo, para
dar pernas a um pobre reformado dos caminhos-de-ferro que havia mais de vinte anos as
tinha perdido, ao salvar da morte uma criança que brincava na linha, no momento em
que se aproximava um comboio». O locutor de serviço acrescentava que todo este caso
estava envolto em grande mistério, mas — prometia — «será objecto de investigação e
posterior divulgação em futuros serviços de notícias».
Já acomodados na aeronave que nos transportaria a Roma, confidenciava a Perez-
-Logano o meu horror à notícia, pois alguém não cumprira o pacto de silêncio. Mais
incomodado ficaria, porém, quando a hospedeira de bordo me entregara um vespertino
antecipado, com a primeira página totalmente ocupada com a fotografia do meu rosto e
a "caixa" gigantesca: «Milagre em Siracusa!» E, em subtítulo: «Pedro II dá pernas a
Lorenzo!»
Já em Roma, Perez-Logano comprou as edições da tarde que comentavam o
acontecimento do dia. No táxi, de caminho para o Vaticano, o motorista — sem saber
que transportava o Papa — não tirava o ouvido da rádio que comentava incessantemente
os factos ocorridos em Siracusa, acrescentando-lhes verdadeiros delírios fantasiosos que
nada tinha a ver com a realidade.
— Os senhores já ouviram esta?... — Inquiria o taxista dos dois passageiros clientes
que seguiam no banco traseiro, muito silenciosos.
— Esta, quê?... — Retorqui, imediatamente, procurando dissimular, o vulcão que
me consumia as entranhas.
— Esta… a do Papa que foi a Siracusa, sem ninguém saber, e curou um homem que
há mais de vinte anos não andava, porque não tinha pernas!
— E, agora, ficou com pernas?
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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— É o que dizem.
— Olhe, se isso é verdade, sorte dele!
O diálogo com o taxista terminou por aí. Mas, pelo espelho retrovisor, o homem
esforçava-se por achar coincidências a mais com o rosto cuja fotografia vira em todos os
vespertinos...
No Vaticano, os cardeais estavam reunidos naquela que chamavam a "basílica-mãe
da cristandade", para me receber. Alguém, contra minha vontade, dera ordens para uma
congregação geral. Que poderia eu fazer? Uns, certamente, estariam ansiosos por saber
da minha boca tudo o que sucedeu naquele dia, em Siracusa, e sobre o que já tinham lido
e ouvido. Outros, porém — certamente uma minoria, mas perigosa — de língua afiada
para me censurar. Aqueles, esperariam o primeiro momento para aclamar o "Papa
desconcertante", o "homem transcendente", como já corria no léxico dos mais
entusiastas jornalistas romanos. — «Aparece aqui... desaparece a seguir... deixando
rastos de mistério na sua passagem. Um homem, no mínimo, estranho!» — Comentava
prudentemente o mais avalizado jornalista do Corriere della Sera. Para o órgão oficial do
Vaticano, L'Osservatore Romano, os factos ocorridos em Siracusa, estranhamente ou
talvez não, tinham sido completamente ignorados, mas, num editorial verrinoso do
mesmo dia, chamava-se a atenção para «os perigos que o romano papado corria, ao ser
exposto ao ridículo de certas condutas infantilizadas que dirigentes ignorantes das
realidades e da história da Santa Sé estavam a assumir e com isso prejudicando o
prestígio da Igreja Católica no mundo».
No meio dos cardeais, bispos e monsenhores e de todos os clérigos assalariados
dos diversos departamentos dos "palácios apostólicos" (uma expressão cuja contradição
interna me fazia tremer), comecei por ouvir, sempre de pé e olhos vivos e atentos a
todos os movimentos, as mais felinas catilinárias do grupo dos obedientes ao
"venerável". De resto, qual magna prostituta sentada no lugar santo... não se coibiram de
convidar para a cerimónia o homem mais asqueroso da época, o chefe supremo de todas
as lojas do crime organizado, em Itália, que fizeram sentar em lugar de destaque, ao lado
do altar-mor, sob o baldaquino de Bernini. Vendo, mas evitando fixá-lo — como Cristo
diante de Herodes — apelei a todas as minhas forças interiores para manter a mesma
serenidade, recebendo as aclamações da maioria que me incitava a caminhar em frente.
A todos agradeci a presença e as palavras que tiveram a gentileza de me dirigir. Sem
nunca citar o editorial do jornal que deveria, em princípio, «estar com Pedro», respondi a
todas as questões colocadas por uns e por outros, relevando o pensamento evangélico
de que «quem se não fizer pequenino, não terá assento no Reino dos Céus.» E mais. Se o
mundo dos homens de hoje foge da Igreja, é a Igreja que deve ir atrás deles. — «Fazer-se
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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ao mar...» — na bela expressão do bom Papa João que todos recordamos em memorial
de muita ternura. Para concluir, adverti os presentes que «ridículo e perigoso para a
missão da Igreja no mundo era tentar manter a todo o custo estruturas anquilosadas,
prateleiras cheias de poeiras de séculos, realidades e histórias de outros tempos que,
longe de dizerem aos cidadãos da "aldeia global" o que quer que seja no plano do Amor,
são, antes, insustentáveis contratestemunhos da mensagem que às comunidades cristãs
incumbe transmitir».
Então, o "papa desconcertante" aproveitou a reunião do colégio cardinalício e o
momento alto da polémica gerada pelos factos ocorridos em Siracusa, que por muito
tempo continuariam a fazer correr tinta, para anunciar:
— Espero, irmãos, que ninguém se escandalize: vamos em frente na tarefa de
reformar a Igreja de Jesus, da cabeça aos pés!... O tempo do Édito de Milão passou. O
tempo das grandes catedrais passou. O tempo dos anátemas de Trento passou. O tempo
do prestígio ou do poderio da Igreja passou. O tempo dos Médicis, dos Bórgias, da
pompa, da corte pontifícia, passou. O tempo dos príncipes da Igreja passou! O tempo das
dignidades eclesiásticas passou. O tempo do clero, da classe clerical, dos benefícios,
prebendas e nepotismos passou. O tempo das simonias, mais ou menos encobertas,
passou. O tempo de um cristianismo sem fé passou! O tempo do tempo do inferno está
quase a passar!... Porque começou o tempo das lágrimas! Da penitência! Do saco! Das
novas catacumbas! Dos hodiernos coliseus! Mas, também, irmãos, de um cristianismo
com o Evangelho de Jesus no coração. De um cristianismo do Amor que gera cristãos que
dão tudo e a própria vida para que outros a tenham!
Irmãos, ai daquele que se escandalizar. Não terá lugar no tempo do tempo do
Senhor! — Que está próximo!
Por isso, a todos peço que se definam: ou estão com Pedro ou contra Pedro! A hora
que se aproxima é de grande dor e angústia. Mas também de inabalável esperança...
Amanhã serão assinados decretos de uma importância vital para a marcha de toda a
Igreja, deste Povo Escolhido em Cristo Jesus que quer voltar a ser sal, fermento, a
transformar a vida de toda a Humanidade. A Redenção oferecida pelo Nosso Bom Jesus
há cerca de dois mil anos não caiu em desuso, não passou de moda. Cristo continua unido
à nossa Humanidade e levou-a consigo para o Céu, no dia da sua Ascensão. Os tempos
presentes são de alta responsabilidade para nós. Tudo fazer para que todos amem como
Ele amou, eis a nossa meta. Que voltará a correr sangue de cristãos, às mãos de esbirros
do crime organizado do império de Satã, estou disso convencido. Que muitos serão
mortos, por professar que só o Amor de Jesus salva a Humanidade, não duvido. Que
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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muitos outros sofrerão perseguições sem conta, despojados de seus bens, abatidos em
atentados terroristas, só por quererem viver como Jesus, amando e ensinando as pessoas
a serem tolerantes, amigas umas das outras, solidárias com as que sofrem, já o Nosso
Bom Jesus o profetizara. Mas, enquanto nos é concedido o dom do tempo, irmãos, vamos
em frente! Custe o que custar! Os pobres gritam! E nós estamos em posição privilegiada
para fazer ouvir a sua voz, mesmo à escala planetária. Quem não quiser avançar
connosco é livre de ficar para trás. Mas a todos os que nos quiserem acompanhar, nesta
hora de dor e esperança, eu digo: não vos prometo facilidades, nem honrarias que este
mundo dá, nem dinheiro, nem favores ou troca de influências, mas muito trabalho,
sofrimento sem medida. No fim, porém, está garantida muita alegria. A oração e a
consolação do nosso Deus são as nossas armas. E temos sempre a certeza do Nosso Bom
Mestre: «Não temais, Eu venci o mundo!»
Para isso, depois de muita oração e estudo, da audição das conferências episcopais
de todo o mundo, estou em condições de vos anunciar e, por vosso intermédio, a todo o
mundo:
1 — Convocar-se-á imediatamente um novo Concílio Ecuménico,
2 — Nomear-se-á uma comissão que trabalhará com os representantes do Estado
italiano na elaboração de um documento-base que substituirá a Concordata em vigor; a
Santa Sé ou a Cidade do Vaticano — como Estado criado pelo ficcionismo do direito
internacional, que assim consagrou a partilha de poder entre o Papa e sua corte, por um
lado, e a Itália, por outro — acabará;
3 — Alargar-se-á a comissão que já trabalha no processo da extinção do I0R; não
haverá mais "banco do Vaticano" — uma vergonha para a Igreja, um contratestemunho
do Evangelho de Jesus. — Todos os bens da Igreja serão colocados ao serviço da
humanidade! Primordialmente, daqueles povos que mais sofrem as injustiças, a fome, a
miséria, a ausência total da tábua dos direitos humanos. É no Amor — não de palavras,
mas efectivo, feito de obras — à Humanidade que faremos os nossos investimentos;
4 — Nomear-se-á a comissão que tratará da extinção da Cúria , lançará as bases de
um organismo muito simples de verdadeiro serviço ao povo de Deus, à escala universal;
5— O consistório será extinto, não havendo por isso mais nomeações de
cardeais;
6— O Sínodo dos bispos verá alargada a sua participação no trabalho apostólico
de Pedro, respeitando as autonomias legítimas dos costumes e tradições locais, desde
que compatíveis com a manutenção da unidade essencial da fé e disciplina;
7 — A todos os teólogos — homens e mulheres — afastados das suas cátedras e
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
71
que mantêm a sua ligação de fé com a Igreja de Jesus, dirijo um veemente apelo para
que, nesta hora de tantas dificuldades, preparem os respectivos memorandos sobre tudo
aquilo que, em seu livre entendimento, acham que o concílio deve debater e alterar, seja
no esclarecimento do dogma, na abertura da Igreja aos povos do sofrimento ou nas
reformas disciplinares;
8— As conferências episcopais de todo o mundo serão solicitadas para enviarem, o
mais rápido possível, através de qualquer meio de comunicação, mesmo correio
electrónico, a relação de bens existentes para o serviço das respectivas comunidades,
destrinçando bem aqueles que podem alienar-se, sem prejuízo para os serviços; o seu
valor será dirigido à satisfação das mais prementes necessidades sociais das mesmas ou
de outras comunidades, com as quais desejamos partilhar o que temos;
9 — Todos os excedentes ao mínimo necessário — onde os houver — serão
canalizados para as conferências episcopais que mais necessidades sentem no
atendimento aos pobres das respectivas regiões;
10— Depois de ouvidas as conferências episcopais de todos os países,
institucionalizar-se-á o dia mundial e regional da partilha e da oração pelos que ainda
sofrem os horrores da guerra e da fome.
Eis, irmãos, o decálogo das medidas que urge levar por diante, na tarefa gigantesca
que me confiastes de renovar a face da Ecclesia, como Povo de Deus, Rosto do Senhor,
tão belo, mas tão desfigurado pelos nossos pecados. Somos um povo que caminha neste
mundo em direcção a uma pátria nova. Sabemos o que queremos e que o que queremos
não está neste mundo! Mas no peregrinar deste povo, precisamente em momento ímpar
de tão longa marcha, quase a atingir a montanha santa, há os que olham para trás e, não
raro, perdem-se na contemplação dos reinos terrenos. Muitos abandonam a caminhada,
muitos outros arrastam penosamente as pernas, e um sem-número parece ter a cabeça e
o coração longe do objectivo sublime que Cristo nos traçou: «Vinde, benditos, possuir o
Reino que vos está destinado!» Volto a repetir-me: que ninguém se escandalize. Mas que
todos pensem, antes, que chegou a hora — e é esta! — em que ninguém tem o direito de
ficar a olhar para o umbigo, para os privilégios que pode perder, para as cebolas do
Egipto. Porque o maná que o Senhor fará cair saciará a todos em abundância. — «Não
temais, filhinhos, Eu venci o mundo!...»
Seguiu-se um período de pedidos de esclarecimentos, no qual todos puderam
precisar as questões que a anunciada reforma "petrina" como ficou conhecida — iria
arrastar.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
72
— E as obras necessárias para a recuperação dos "Palácios Apostólicos" arruinados
pelo temporal? — Perguntou, finalmente, um do grupo dos damani que se mantinham
mudos e surdos.
— Meu irmão, já se fez o possível para que não chova nas cabeças das pessoas.
Quanto ao resto, não vamos "investir" em palácios. Como referi, a nossa preocupação
fundamental é a causa dos pobres, dos excluídos — todos aqueles que vivem em
tugúrios, sem alimentação suficiente, sem assistência na doença, sem roupa para se
cobrirem e morrem diariamente na miséria, porque não há quem olhe para eles!
Deixemos os palácios aos palacianos. Os palácios representam o passado, irmão! E nós
estamos profundamente comprometidos com o presente. E este é sofrimento, é dor, é
miséria e morte, que nós podemos e temos o dever de impedir que avance! Nesta hora, o
Povo de Deus que optou pelo Amor exige outro investimento.
Perante esta resposta, os do grupo entreolharam-se, meteram os olhos aos
sapatos e cerraram a boca.
Esquecido de outros compromissos, respondi, ainda, pela noite dentro, a todas as
perguntas, sem evasivas e com todo o rigor.
Os opositores, porém, não desarmaram. Logo após a minha saída, reuniram
secretamente em casa do chefe, não longe do Vaticano, jurando executar o plano
aprovado pelo "venerável". As medidas anunciadas pelo Papa eram demais!
«Insuportáveis!» — Diziam. «Este homem enlouqueceu. Quem se julga ele? Aquilo
representa a destruição da história! Não o permitiremos! A revolução está em marcha?
Vamos à luta! Antes que seja tarde!»
— Irmãos no eterno Amor do Nosso Deus: o nosso irmão Estêvão — meu
companheiro fiel de todas as andanças pelo mundo — é capaz de ser mais expressivo que
eu na rememoração dos tempos que se seguiram. Compreendam... É que são coisas
muito duras — as que vivi, do outro lado! Com a permissão do nosso Bom Jesus e a vénia
do irmão Pedro Apóstolo, proponho que o ouçamos.
— É, meus queridos, sempre que possa ser útil à narração, podeis servir-vos da
minha humilde pessoa. Então, escutai:
Pedro II voava para qualquer parte do mundo onde os povos o chamavam. Sem
fanfarras, charangas ou charamelas, sem guardas de honra ou desfiles militares, sem
salamaleques protocolares, sem ósculos no betão das placas de estacionamento das
aeronaves, sem vestes exóticas, o Papa aparecia, como qualquer viajante — como Cristo,
em seu tempo, aparecia, aquando das suas viagens pela Galileia e pela Judeia — apenas
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
73
animado de uma grande fé no que de sublime existe no coração de cada homem.
O anúncio de que todos os bens da Igreja seriam colocados ao serviço da
humanidade sofredora e injustiçada, gritado por todos os microfones do mundo, caiu
bem nos ouvidos dos chefes e dirigentes dos povos. E, bem depressa, o prestígio
internacional de Pedro II se afirmou à escala planetária. Mas o inferno assim não o
entendeu. E jogou a cartada que lhe faltava, no ódio contra toda e qualquer limpeza da
Igreja: enxovalhar o Papa, retirando-lhe credibilidade e legitimidade, era plano
maquiavélico que só a "grande prostituta" poderia ter parido! Pretendia-se, na confusão,
enfraquecer todas as suas iniciativas.
Nos jornais e revistas da especialidade fofoca, nos programas televisivos e
radiofónicos de todo o mundo, em que se faz a "realidade virtual", começou — muito
sub-repticiamente, a princípio — uma campanha organizada de mentira, acerca de tudo
o que dizia respeito a Pedro. Desde visitas que o Papa andaria a fazer de noite, sozinho, a
lugares esconsos e a pessoas da vida, até "milagres" que operava, a torto e a direito, ao
sabor dos caprichos pessoais e das notas que lhe metiam no bolso, de tudo — da
falsidade mais soez, da aleivosia mais nojenta, da perfídia mais safada — se serviam para
ridicularizar a pessoa de Pedro II que, quando se deu conta da sementeira, já os frutos da
sendeirice mafiosa enchiam as tertúlias dos intelectuais de pacotilha, as atelanas
cantadas ao banjo pelos ceguinhos das baiucas, as mesas dos cafés, as barracas listadas
da praia... A campanha estava lançada, tudo foi pormenorizadamente programado e
executado e, agora, era uma questão de ritmo — acelerar ou abrandar, conforme a linha
e a perícia do maquinista. Allegro ou Moderato, de harmonia com a satânica partitura ou
as opções do infernal maestro.
Numa segunda fase, editoriais de grandes periódicos de todo o mundo encenavam
hipóteses de explicação para aquilo a que já chamavam o "caso do Papa". Teóricos da
intelectualidade do serralho opinavam, então, sobre os "cenários" possíveis — obrigar
Pedro II a renunciar ou avançar imediatamente com um processo de interdição.
De nada valeram as quase diárias entrevistas de Pedro às grandes cadeias
televisivas de todo o mundo, aos serviços noticiosos da internet, às pregações dos bispos
e padres obedientes à autoridade de Pedro II, nem as chamadas de atenção das
conferências episcopais e até os apelos de inúmeros chefes de Estado e de Governo que
tomavam a defesa do Papa, que estava a ser vítima de uma campanha orquestrada com
muito excremento do diabo. A "grande prostituta" abrira as pernas. E muitos eram os
incautos que não resistiam à tentação. Quando, por fim, parecia madura a seara e o
vento soprava a favor, entrou de rompante a terceira e última fase do plano — a
"eleição", pelos domani, de um novo Papa! Dinheiro não lhes faltava. Podiam "encenar" à
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
74
vontade. Os banqueiros de Deus — leia-se, da baixa nova-iorquina... — não se faziam
rogados.
Pedro encontrava-se em Brasília a presidir à cerimónia de abertura do Concílio
Ecuménico. Cardeais, bispos, religiosos, padres, teólogos de todo o mundo ali estavam
para ouvir a mensagem de Pedro a chamar a atenção para «a cizânia que o inimigo
colocara no meio da sementeira do trigo». Pedro, aliás, nunca se referira directamente à
campanha que contra ele estava abertamente em curso. Agora porém, com um vigor
inusitado, Pedro esclareceu ponto por ponto a mentira, a sanha, a pulhice de muitos
media ao serviço das máfias e dos interesses de grandes grupos e organizações
criminosas. Foi um discurso longo mas muito bem recebido por todo o mundo cristão e
por todos os homens de boa vontade que esperavam uma palavra de Pedro. E ela veio,
acutilante, cáustica, conhecedora da situação e dos remédios urgentes a aplicar.
Reunido nessa noite com a maioria dos bispos e teólogos, na exótica mas
imponente catedral de Brasília, Pedro soube da atitude «lamentável e a todos os títulos
condenável» dos domani que ficaram em Roma para o atraiçoar pelas costas. Em ilegal e
ilegítimo miniconclave, tinham feito "eleger" um outro papa — o cardeal Di Tronchetto,
de Siracusa, um dos que se havia recusado a viajar para o Brasil, a pretexto de trabalhos
"inadiáveis". Di Tronchetto aceitara de imediato a "eleição", tomando o nome de João
Paulo III! E, jurando fazer voltar a Igreja ao «esplendor e rigor» de outros tempos, tomou
como medida de efeitos imediatos a publicação de um pseudodecreto destituindo Pedro
II, por «manifesta incapacidade»! Mais: no mesmo "decreto" declarava nulas as
respectivas constituições, bulas e demais documentos disciplinares, bem como a
convocatória do Concílio de Brasília, ao qual negava qualquer legitimidade decisória e a
amplitude de ecumenicidade de que se arrogava.
Logo começaram as vassalagens e os protestos de obediência ao Papa legítimo —
Pedro II — por banda de todas as conferências episcopais e chefes de Estado de todo o
mundo, enquanto ao antipapa João Paulo III chegavam mensagens da «fanfarronice de
uma minoria de sectores ligados ao fundamentalismo pregado desde a torre rosada de
Manhattan que, em ligação com os duros das várias máfias italianas e internacionais,
defendiam a concepção de uma Igreja vocacionada para o poder, para o culto do chefe,
sustentada pelos senhores da alta finança, sempre apoiantes de regimes políticos
retrógrados, conservadores e fascizantes das chamadas direitas ou ultradireitas
mundiais, com tentáculos nos mais importantes centros de decisão, norte-americanos e
europeus, sempre avessos a qualquer cheiro de liberdade, de mudança, de novo espírito
de concórdia e paz entre os homens, assente no Amor que Cristo veio difundir no seio da
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
75
Humanidade.
Sei, meus irmãos, desta infindável Assembleia do Nosso Deus, que o nosso querido
Pedro do Rio ficou ferido de angústia para sempre. Naquela noite, não dormiu. A
diferença de fusos horários levava-o a ficar toda a noite à escuta de novos
desenvolvimentos da crise em Roma. Juntamente com Perez-Logano, Menezes e Costa e
Colombano Righetti, Pedro orava e escutava as notícias vindas do outro lado do
Atlântico. E tomou uma decisão: feita hora de descanso em Roma, viajaria com os três
cardeais amigos ao encontro dos rebeldes e tentaria uma solução para o caso que já
estava a «fazer sangrar dolorosamente o Rosto de Cristo». O Concílio continuaria os seus
trabalhos e, na manhã seguinte, em Brasília, faria distribuir à imprensa um breve
comunicado, no qual apelaria à unidade dos cristãos de todo o mundo em redor do
legítimo sucessor de Pedro Apóstolo e solicitaria aos cardeais rebeldes que
reconsiderassem a atitude que tomaram, depusessem toda a contumácia e pedissem
perdão ao Senhor de Misericórdia, para que, na chegada de Pedro II, estivesse criado o
ambiente propício a um diálogo frutuoso, conducente à paz na Igreja, suporte
incontornável da paz entre as nações.
Para além desta referência à «chegada de Pedro», nada mais se sabia em Roma
sobre como e quando o Papa regressaria ao Vaticano. Mas, logo nos jornais afectos ao
antipapa se desencadeava uma nova campanha de calúnias, não só contra Pedro, mas
também contra os seus mais directos colaboradores. A linguagem usada era de uma
agressividade manifesta e, à partida, indiciava uma recusa prévia de qualquer diálogo
entre as partes.
No aeroporto de Leonardo da Vinci, Pedro foi recebido por alguns diplomatas
acreditados em Roma e pelo próprio presidente italiano a quem o Papa comunicara o
desejo de se encontrar a sós, imediatamente após a chegada. Pedro permaneceu, cerca
de uma hora, numa das salas VIP da aerogare, conversando com as mais destacadas
figuras da Igreja e do Estado italiano. De todos ouviu promessas de fidelidade e de
reconhecimento absoluto da legitimidade de Pedro, como verdadeiro Papa da Igreja
Católica. Das autoridades italianas recebeu, ainda, a promessa de tudo fazerem para
circunscrever os efeitos demolidores do epifenómeno "João Paulo III" dentro dos limites
da cidade, limitando a acção e a propaganda dos seus seguidores.
Alguém espalhara, no Vaticano, às primeiras horas da manhã, a notícia de que
Pedro II já se encontrava em Roma. Quando o táxi parou junto à porta de entrada para os
museus, a Praça de S. Pedro mostrava-se já cheia de cristãos, turistas ou simples
curiosos, ávidos do sensacionalismo das últimas horas. Pedro não encontrou qualquer
resistência até à chegada aos aposentos que ocupava, agora na ala norte. Tudo estava
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
76
em ordem e ainda ninguém se atrevera a violar o espaço privativo e as coisas pessoais de
Pedro. Então, acompanhado dos três cardeais indefectíveis, Pedro ajoelhou e orou diante
do altar da Eucaristia, por quarenta longos minutos. (Quarenta... — o número bíblico que
marca o tempo de preparação de Cristo para o afrontamento do diabo.) Com as mãos
segurando o seu imenso carão, era manifesto que o Papa chorava. Os acompanhantes
não resistiram à emoção quando Pedro se voltou para eles e lhes pediu que rezassem os
quatro, em voz alta, a oração que Jesus fez ao Pai, no horto de Jetzémani: «Pai, afasta de
mim este cálice...»
A agonia, a quatro, teve para todos um extraordinário efeito catártico e
reconfortante. Todos ouviram, então, nitidamente, uma voz estranha, cava, vinda
ninguém soube donde: «A hora é de dor, Pedro, mas passará! Não temas! Vai em frente,
confirmando teus irmãos na fé!»
Pedro olhou estupefacto para os três amigos. Eles acenaram com a cabeça e
sorriram. Pedro perguntou-lhes: «Ouviram?» Ao que todos responderam: «Sim, Pedro,
ouvimos!» Mas ninguém perguntou quem falara… e donde falara.
Dirigiram-se, a seguir, para a loggia da basílica de S. Pedro. O Papa apareceu de
rosto muito triste, revestido de pluvial e estola, com a mitra na cabeça. Ao seu lado, os
cardeais, de romeira pela cabeça, em sinal de luto. Com voz forte que ecoou na colunata
de Bernini, fazendo tremer as estátuas dos santos e o enorme obelisco central, Pedro II,
depois de saudar os peregrinos que o vitoriavam constantemente, pediu silêncio, e o
silêncio fez-se. Falou então assim:
— Irmãos, aqui estou, nesta secular catedral de Pedro Apóstolo, levantada sobre o
lugar onde ele glorificou a Deus, deixando-se pregar de cabeça para baixo numa cruz,
para vos dizer que também eu — seu indigno sucessor — estou pronto a sofrer o mesmo
suplício ou aquele que Deus quiser reservar-me, para vos manter firmes na fé em Jesus —
Nosso Redentor e Senhor. Não sou mais que o Mestre, pregado no madeiro e morto no
Gólgota, por Amor de toda a Humanidade. E não sou mais que o primeiro Pedro, aquele
homem simples, mas de uma fé inquebrantável, que mereceu de Jesus o ciclópico encargo
de conduzir o rebanho dos crentes no Amor feito Homem até à Sua e por nós ansiada
Parusia. Não é, pois, o medo da morte que me traz apavorado! Mas sim o calafrio
causado pela faca da desunião que espetaram nas costas da Igreja! À traição! Como
outrora fizeram ao Mestre! O Amor une, aperta-nos contra o peito, faz-nos alegres e
confiantes na vitória final, na paz que Cristo quis ver instaurada em toda a terra. O ódio
quebra a união, produz a desconfiança, o confronto, a guerra. O nosso Bom Deus, o Deus
de Jesus Cristo, o Deus do Amor, não poderá deixar impunes as anacondas que destilam o
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
77
mortífero veneno do ódio entre nós! Que triste espectáculo estamos a dar ao mundo,
nestes tempos de descrença generalizada, com estas sementes de guerra. Mais de dois
mil anos passados sobre a oração de Jesus ao Pai — «Que todos sejam um...» como é
possível que irmãos nossos se rebelem contra Pedro e, por interesses inconfessáveis, mas
sempre alheios àquela Mensagem de Amor que nos incumbe difundir por toda a
Humanidade, estejam a fazer — consciente ou inconscientemente — o jogo de Satanás, o
príncipe das trevas, que jurou vingança e eterno ódio ao Criador! Quem ama une. Quem
odeia divide. Quem trabalha pela unidade é de Jesus Cristo, Nosso Senhor, é do Reino da
Luz. Quem promove a desunião é do diabo, é do opressor, é do reino das trevas. Não há,
irmãos, meio termo, nem alternativa!
Vamos trabalhar, irmãos, vamos orar pela unidade de todos os cristãos. Que nada
neste mundo nos afaste deste caminho! Vinde Espírito Santo! Vinde Pai dos pobres!
Vinde, luz dos corações! Aquece o que está frio! Rega o que está árido! Lava o que está
sujo! Cura o que está doente!
Pedro ajoelhou-se e rezou com todos os peregrinos que se apinhavam na grande
praça oval. No fim, perguntou-lhes, encorajado e com voz potente:
— E vós, irmãos, com quem estais?
— Com Pedro! — Gritaram demorada e repetidamente.
— Sede, então, portadores desta fé... difundi e vivei a unidade.
Foi em perfeito delírio que a multidão aclamou Pedro, por longos minutos. Ele teve
de regressar à loggia por diversas vezes, abençoando todos os que o aclamavam.
Naquela noite, enquanto Pedro permanecia em oração na sua capela privada, na
loja, os domani não obtinham maioria para uma deliberação que desejavam obter: a
morte imediata de Pedro! Depois da antecipação deste e do espectáculo que dera,
perante a grande multidão que o vitoriara, em extremos de carinho e emoção pública, os
rebeldes, mesmo contra a vontade do chefe, queriam a sua eliminação física. O
"venerável", porém, não estava de acordo e concluiu a reunião extraordinária, afirmando
que quem promovesse qualquer atentado contra a vida de Pedro seria considerado
inimigo do plano traçado. «Com as consequências respectivas...» — Frisou muito
expressivamente isto, segundo as minhas fontes.
Pedro, entretanto, desenvolvia esforços no sentido de se encontrar rapidamente
com o antipapa, o cardeal Di Tronchetto. Mas este, entronizado em Latrão, escapava-lhe.
Um grupo de trabalho, presidido pelo cardeal Righetti, ficou encarregado de tratar de
todas as questões emergentes desta complicada situação. As portas do Vaticano estariam
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
78
de vigilância redobrada para que nenhum dos rebeldes tivesse ali entrada. Pedro fez
mesmo questão de, antes de embarcar de novo para Brasília, se encontrar pessoalmente
e pela segunda vez com o presidente da República Italiana, pedindo-lhe os seus bons
ofícios, no sentido de as forças policiais evitarem qualquer tentativa de perturbação da
ordem pública, mesmo dentro da muralha leonina. Na viagem para o aeroporto, Pedro
solicitou ao motorista que o conduzisse antes para Latrão. Foi Perez-Logano que
abandonou o táxi e pediu ao guarda do palácio autorização para falar com o cardeal
rebelde, auto-intitulado "João Paulo III". Resposta do guarda, um gorila de fato preto e
óculos escuros: «Sua Santidade não se encontra aqui». Pedro deixou então uma
mensagem em envelope cerrado, onde dizia apenas: «Irmão Di Tronchetto, peço-lhe, por
tudo o que de mais sagrado há na vida, pelos valores evangélicos da humildade, da
verdade, do Amor com que Cristo nos uniu na mesma tarefa de implantar no mundo o
seu Reino, que abandone a sua atitude de rebeldia, que não a sinto contra mim, mas
contra o nosso Mestre, verdadeira cabeça da Igreja, pela qual orou ao Pai, pedindo ex-
pressamente para que todos sejam um! Vou, novamente, a caminho de Brasília, onde o
Concílio prossegue a sua obra de reflexão e regeneração. O seu lugar está em aberto. E,
acredite, irmão, será grande a alegria de todos, da Igreja inteira, quando o vir ocupar esse
lugar. Abraça-o, cordialmente, Pedro.»
Indiferente a tudo e a todos os apelos ao bom senso, Di Tronchetto, numa
cerimónia em Latrão, apenas concorrida pelos curiosos e sequazes do "venerável", fez-se
coroar, à antiga, com uma riquíssima tiara pontifícia usada por Gregório VII. Durante o
cortejo, na catedral de S. João, foi transportado numa brilhante e dourada sédia
gestatória, entre dois flabelli — espécie de mosqueteiros gigantes, ornados de plumas
brancas de avestruz —, com toda a pompa e magnificência de outros séculos. No
discurso que fez, breve e sempre interrompido por ataques de tosse tabágica, distribuiu
anátemas e excomunhões a rodo para todos quantos não obedecessem aos respectivos
decretos. Solenizou a destituição de Pedro, proclamou a nulidade das deliberações do
Concílio de Brasília e anunciou a convocatória de um novo Concílio em Trento... ― o
"Trento II".
Os meios de comunicação social mais atentos ao epifenómeno do último antipapa
da história da Igreja Romana, vaticinavam um futuro negro para a cristandade e para o
mundo. «É óbvio o confronto entre o Amor e o ódio!» — comentava-se, amiúde, nos
mais influentes e atentos meios de comunicação. Em Pedro II, cuja legitimidade era reco-
nhecida pela generalidade dos católicos e chefes de Estado do mundo, viam o Amor. Em
João Paulo III apenas viam a ilegitimidade, a raiva, a vaidade, o ódio, a crapulice de todas
as secretas. Mesmo os governos de regimes mais musculados e com políticas mais
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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liberalizantes tinham dificuldade em reconhecer qualquer legitimidade ao antipapa. Este,
entretanto, tudo fazia para se afirmar, quer como chefe da Igreja de Roma, quer como
condutor mundial dos povos. Nunca, porém, se aventurara a uma saída de Roma, como
papa.
L'Oservatore Romano e a potente Radio Vaticana difundiam contínuas diatribes
contra Pedro. Colombano Righetti, em telefonema para Brasília, perguntava a Pedro se
desejava o silêncio forçado dos dois meios de comunicação do Vaticano. Pedro
respondeu-lhe com o Evangelho: «Deixai crescer tudo, o trigo e a cizânia. No dia da ceifa,
meu Pai os separará. Então, o trigo irá para os celeiros, enquanto o joio será lançado ao
fogo». Righetti conseguiu, ao menos, levar o antipapa a aceitar dar ordens aos directores
daqueles meios de comunicação, para se absterem de tomar partido por um ou por outro
e de usarem linguagem menos própria, numa referência aos excessos verbais cometidos
nos últimos dias contra Pedro. — «Se a caridade de Cristo é o nosso lema e objectivo,
irmão, não parece bem que os meios de comunicação social possuídos pela Igreja
estejam eles próprios a fomentar a divisão e, pior, usando linguagem que só serve o
descrédito de quem a produz.» — Era um período de uma das muitas cartas que Righetti
trocava com o antipapa. O irmão Colombano sabia perfeitamente a quem se devia a
truanice.
Em Brasília, Pedro falou aos conciliares reunidos na catedral, depois de uma
recepção calorosa, em que se vitoriou o Papa legítimo e se condenou o «triste
espectáculo da fractura da unidade que alguns estão a dar ao mundo e, com ele, a
macerar o rosto de Cristo!» Enquanto Pedro caminhava para o altar, gritava-se em
delírio: «Pedro vencerá! Pedro vencerá! Pedro vencerá!...» O coro cantava, em grande
polifonia: «Tu, es Petrus... et portae inferi non praevalebunt adversus eam...»
— Irmãos — disse, em voz plangente, mas forte — é com o coração amargurado, a
garganta sufocada e os olhos em lágrimas que vos trago a notícia mais triste da minha
vida e que o é também, certamente, para toda a Igreja: Irmãos nossos que tinham o
especial dever de não cair na tentação diabólica da fractura da unidade do corpo de
Cristo acabam de consumar, em Roma, o novo Calvário do nosso Bom Jesus. Em
inexplicável farsa conclavística, fraudulenta e condenável sob qualquer ponto de vista,
fizeram "eleger", dentre eles, um outro "papa" — um antipapa! Horror, meus irmãos,
horror é o que eu sinto, neste transe difícil da vida da Igreja. Eu sei que não é nova, na
história, a situação. Mas profundamente lamentável é que ela se repita no século XXI,
terceiro milénio da era de Cristo. Tempo em que seria legítimo pensar que factos destes
estariam para sempre arredados da vida daqueles que se dedicaram um dia à missão de
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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testemunhar o Amor de Deus à Humanidade. Depois do Vaticano II, meus irmãos, parecia
inimaginável que tal viesse a acontecer Mas aí está a demonstrar que o inferno
escancarou as suas portas para vomitar ódio contra tudo o que tem o sinal da Cruz. Cruz
que é sinónimo de Amor sem limites, de perdão a quantos se arrependem dos seus
crimes, de paz para quem ama sinceramente e se dá, como Ele, até ao fim. Temos a
certeza de que Satanás não vencerá! Mais: o Verbo de Deus é cortante — O príncipe do
mal já está derrotado! Mas temos o dever de tudo fazer para que, na derrota final, não
arraste consigo aqueles que foram marcados com o sinal daquela Cruz — sinal mais...
daquele Amor! Isso sim, irmãos, é nosso dever intransmissível, e ai de nós se o não
cumprirmos rigorosamente, com todas as forças, com todo o empenho e entusiasmo,
mitigando, nesta hora dolorosa, as dores, o sofrimento da Igreja de Jesus.
Vamos, por isso, irmãos, cobrirmo-nos de saco e cinza… e orar, orar muito ao
Senhor de todos os corações, para que sugerindo aos rebeldes a consciência do mal que
estão a causar à Humanidade e a vontade de arrependimento, com o consequente
arrepiar do caminho errado que empreenderam, volte a reinar a unidade pela qual Ele
próprio tanto pediu ao Pai. Não sairá da minha boca qualquer anátema. Peço aos irmãos
conciliares que sigam este meu desiderato. Estamos aqui para aperfeiçoar e não para
cortar. Por amor tudo sofreremos, certos de que Deus aceitará o nosso sacrifício em
redenção dos que erram. A todos os presidentes das comissões peço especialmente que
dediquem ao fenómeno alguma reflexão, para que, posteriormente, em reunião conjunta
de todos, saia uma posição conciliar de apelo aos rebeldes.
Apelo veemente de toda a Igreja, no sentido de cessarem imediatamente todas as
acções fracturantes da unidade. E se a situação permanecer, após o termo deste Concílio
— o que Deus afaste — peço, desde já, a todos os irmãos no episcopado que
empreendam nas respectivas dioceses jornadas de oração e de reflexão pela unidade da
Igreja e cessação da contumácia dos rebeldes.
Finalmente, peço-vos, irmãos, que acelereis os trabalhos das diversas comissões,
redigindo documentos conclusivos sobre as mais diversas matérias, sempre em linguagem
simples e que se sinta impregnada do Espírito Santo de Deus: O Amor Eterno do Pai e do
Filho!
Depois de um dia de intenso trabalho com todas as presidências das comissões
conciliares, Pedro, mais uma vez acompanhado do cardeal, Perez-Logano, volta a Roma.
Os dois homens quase não falaram durante as longas horas de viagem. A leitura e o
Rosário fizeram a companhia nocturna do Papa e do adjunto.
Às primeiras horas da manhã do dia seguinte, ainda o sol mal espreitava pelos
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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vidros do duomo de S. Pedro, já o táxi abrandava a marcha, ao chegar à porta de entrada
para os museus do Vaticano.
Aí, Pedro e Logano encontraram o primeiro sinal do endurecimento da situação. A
porta estava trancada. Nem um guarda para a abrir, mesmo depois de instantes e
prolongados toques na campainha. No pátio de S. Dâmaso, também tudo fora encerrado.
Experimentada a porta secreta, dois guardas impediam a entrada fosse a quem fosse.
Pedro, aí, não, se conteve. Passou por entre eles, como Cristo no Templo de Jerusalém,
pelo meio dos vendilhões. Adiante, uma patrulha de guarda suíça quis cumprir as ordens
que tinha. Mas, consultado o comandante, este apressou-se a franquear a entrada a
Pedro, ajoelhando-se, beijando-lhe o anel do pescador e pedindo perdão pelo
espectáculo. Aconselhou, porém, Pedro a desistir do confronto com o antipapa, pois ele
tinha tomado posse, na noite anterior, dos aposentos privados do Papa e estava rodeado
de homens possantes e armados até aos dentes. Pedro sossegou o bom comandante da
guarda e fez sinal a Logano para avançar. Os dois homens subiram a escadaria,
atravessaram a sala e tomaram o ascensor. Quando a porta automática se abriu, dois
canos de metralhadora ligeira, uma de cada lado, apontavam para os ilustres e agora
"estranhos" visitantes. Pedro fez que não viu e, logo seguido de Logano, avançou em
direcção aos seus aposentos privados. Um ruído de disparos em seco fez-se ouvir
repetidamente, por detrás dos "visitantes" inoportunos. Estes, dobrada a esquina do
pequeno corredor e quando se preparavam para entrar no gabinete de trabalho do Papa,
anexo à sua biblioteca pessoal, encontraram um verdadeiro batalhão de homens de fato
negro e óculos escuros, de armas automáticas em punho, barrando-lhes o caminho. (—
Peço vénia ao Senhor de todos os exércitos, de toda a cidade santa, ao nosso Deus de
Amor, Bondade e de toda a Misericórdia e a Sua Excelsa e nossa Mãe Maria, de toda a
Assembleia dos bem-aventurados, para a transcrição exacta da linguagem infernal que
urdiu os diálogos que se seguiram. Só assim se poderá compreender o vómito de Satanás
perante a presença de Pedro.)
— Nem mais um passo ou um gesto! — Grita o chefe da força...
— Irmão... — Ia o Papa a falar, com a voz embargada, mas cheia de serenidade.
— Irmão, o caralho! — Interrompe o gorila, chefe dos gorilas. — Meia volta e toca
a abandonar imediatamente o local! Não me obriguem a desfazê-los em merda!
— Mas… eu sou o Papa!...
— Você aqui já não é nada. O nosso papa — João Paulo III, legítimo sucessor de
João Paulo II— está ali dentro, em reunião, e não quer ser importunado. Ouviu? Então,
não há mais explicações. Vou contar até três. Se me desobedecer, os meus homens
disparam!
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Pedro fechou os olhos, recolheu-se em rápida e profunda oração e,
imediatamente, de olhos semicerrados, perante o espanto dos gorilas, seguiu em frente e
abriu a porta do gabinete. Neste momento, um repetido som de armas que não
disparam, encravam, desencravam, mas não vomitam metralha, é sentido pelos dois
homens que avançam. O gabinete estava remexido, tudo de pernas para o ar. Seguem
para a biblioteca. Aí, a porta estava fechada. Pedro introduz a chave e abre
repentinamente. Apanhados de surpresa, todos se levantam, enquanto quatro gorilas,
estrategicamente colocados, um a cada canto, aponta as armas para os intrusos.
— Vá! Disparem!... Ou que esperam?... — Ouve-se, em voz rachada de tabaco e
álcool. Era o "venerável" que presidia à reunião...
— E que estamos nós a tentar fazer, desde que estes aqui entraram? Veja como
ficaram as putas das metralhadoras! — Era o chefe a tentar uma explicação para o facto
de as armas terem ficado todas encravadas.
— Mas que merda de arsenal é que compraram? Eu já trato da saúde do Corleone
V... Aquele cabrão, nem sequer sabe honrar o nome! Filho da puta... Já meteu mais uns
cobres ao bolso, comprando merda e fazendo-me pagar ouro! Eu já lhe digo...
Terminada a frase, o "venerável" maneja com rapidez a arma de defesa que traz
sempre no estojo debaixo do sovaco esquerdo, a coberto do casaco, com lenço de seda e
tudo. Mas a própria arma também não funciona. Puxa e repuxa a culatra, carrega e
descarrega, engatilha e desengatilha, mas... nada! A pequena maravilha da técnica de
matar que lhe tinha custado uma fortuna em Nova Iorque desta vez também não
funcionou. — «Afinal, a merda também atingiu a do chefe...» — fez o gorila-mor ao
ouvido do ajudante. Os dois sorriram lá por dentro...
Pedro nem deu importância às armas, nem à fétida casquinagem do "venerável".
Olhou em redor. Eram cerca de vinte pessoas sentadas à mesa. Obedecendo, porventura,
a uma qualquer lei de "quotas" de mulheres, estavam ali umas dez, no meio de uns
quantos velhos caquécticos, mas muito fumegantes. Dentre eles sobressaía a figura do
geronte ex-arcebispo de Siracusa, agora travestido — e muito mal, diga-se — de papa!
Uma sotaina branca, com faixa amarela e um solidéu branco, mal acabado e sujo.
Quando viu Pedro e Logano atrás, o velho Di Tronchetto meteu a cara entre as mãos e
disse qualquer coisa que ninguém entendeu. Pedro, logo que o palavreado soez do
"venerável" terminou, levantou os braços e tentou, junto do antipapa, arrastá-lo para
fora e dialogar. Não o conseguiu, porém. Di Tronchetto agarrou-se à cadeira e as cortesãs
meteram-se logo ao meio. Nesse momento, o fotógrafo de serviço disparou. Pedro
estava, então, inclinado para Di Tronchetto, mas com duas mulheres de seios
semidesnudos a seu lado tentando segurá-lo. Esta fotografia correu mundo, via net e,
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depois, através de todas as televisões, jornais e revistas, sempre acompanhada de
rodapés e comentários disparatados e soezes. Vendo que nada conseguia, Pedro
convidou Di Tronchetto para uma oração em conjunto. O antipapa, porém, não se
moveu. Até que, ao sinal do "venerável", os gorilas agarraram violentamente Pedro e
Logano e puseram-nos fora da porta.
Com o auxílio velado do comandante dos "suíços", Pedro permaneceu alguns dias
escondido, mas activo, no interior dos "palácios apostólicos". Sempre acompanhado de
Logano, Pedro veio a descobrir que a sede da "loja" se tinha mudado para ali. As reuniões
eram permanentes. E — cúmulo!... — a elas compareciam, às vezes, altas figuras do
Estado italiano, membros do governo, generais, comandantes dos carabinieri, etc. As
confidências de Pedro com o Presidente da República... Afinal... «Meu Deus — orava
Pedro, em silêncio — como é possível que toda esta gente esteja vendida ao império de
Satã? Senhor, agora vejo claramente a 'abominação da desolação, sentada no lugar
santo'...»
Quanto mais Pedro avançava com Logano nas investigações, mais chocado ficava
com o que via: prostitutas de todas as classes passeando-se livremente pelos corredores;
armazéns de armas e munições, encaixotadas e prontas a seguir pelo heliporto para
qualquer parte do mundo; montes de pacotes de coca, de heroína, de cannabis... que ali
eram procurados, de noite, para exportação, com a ajuda dos serviços estaduais. Pedro,
por momentos foi acossado de tal acesso de ira que confidenciou a Logano: «Vamos
mandar pelos ares este paiol do inferno?» Logano sorria e acalmava: «Pedro, quem sou
eu para te dar conselhos?! Mas a hora de Deus ainda não chegou. Deixa a "grande
prostituta" alargar mais as suas pernas de imoralidade. Que trafique, onde deveria ser
lugar de oração! Que espalhe o fedor do enxofre por todo mundo. Não há autoridade do
Estado; não existe polícia que não esteja corrompida; e também já não há justiça de
"mãos limpas". Todo podrido, Pedro, todo podrido!... Só o dinheiro manda. Só o
excremento do diabo impõe obediência. No momento certo, porém, todo o seu império
sucumbirá! Temos a promessa de Cristo. Ele não falha! Fujamos daqui, Pedro! Enquanto
é tempo. E dediquemos a nossa atenção àqueles que ainda acreditam que Jesus é o
Senhor!»
Pedro deixou uma carta escrita para ser entregue pelo comandante dos "suíços" ao
antipapa. E partiu, com Logano, para Brasília. Durante a viagem nocturna, antes de
adormecer, Logano viu Pedro a chorar continuamente. Num gesto de caridade, Logano
pediu um café e ofereceu-o a Pedro. Este aceitou e agradeceu. Depois, dormiram ambos,
por algum tempo. Pois foram acordados pelo comissário de bordo que lhes entregava um
telegrama recebido minutos antes. «Lamento informar bomba, a bordo stop Se não te
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safares desta bom para todos stop Tronchetto». Brincadeira de mau gosto ou não, o
certo é que o B777, que as autoridades de Brasília tinham colocado ao serviço de Pedro,
se preparava já para uma escala imprevista no aeroporto de Santa Cruz de Tenerife.
Umas horas depois, todos chegavam ao Galeão, sem qualquer problema, para além
do natural sobressalto. No aeroporto do Rio de Janeiro, Pedro reuniu, a sós, com o
Presidente da República Federativa do Brasil. Da conversa de cerca de uma hora nada foi
revelado à comunicação social. Mas Pedro diria mais tarde, em conferência de imprensa
havida durante o voo para Brasília, que a grave situação internacional foi tema
dominante dessa conversa e, como não podia deixar de ser, que «o Senhor Presidente
quis ser informado de todos os pormenores dos esforços em curso para fazer terminar a
embaraçosa situação de bicefalia da Igreja Católica».
No Concílio, Pedro foi mais uma vez recebido com entusiasmo e, perante o
plenário de todas as comissões, fez um relato circunstanciado de todos os seus passos
em Roma. Ao referir o estado em que encontrou a Basílica de S. Pedro e os edifícios do
Vaticano, agora albergando prostitutas, centros de narcotráfico e verdadeiros armazéns
de armamento ligeiro e pesado, com seus paióis de munições, o Papa não pôde simular
as lágrimas que lhe corriam abundantes pelo rosto e a comoção que lhe embargava a
garganta. Foi com grande custo que se ouviu Pedro revelar, em dor e angústia:
— A abominação da desolação está sentada no lugar santo. Lugar santo que é, não
só o lugar onde Pedro Apóstolo verteu o seu sangue por Cristo, mas — e sobretudo — o
"Coração do Homem"! Irmãos, preparemo-nos, com fé e muita confiança no Senhor, para
o sofrimento que há-de vir. A juntar à crise da Igreja, as nações, os povos do planeta
também não se entendem. Os alimentos que sobram aos ricos são deitados ao lixo e é
daqui que os pobres os vão tirar para aguentarem uma existência infra-humana. Os ricos,
em lugar de ouvir os clamores dos pobres, fecham-se no seu egoísmo feroz e preferem a
ameaça das armas. Os pobres do Sul gritam por justiça. Os do Norte tapam os ouvidos e
preparam os obuses... Mas ninguém vencerá ninguém pela guerra. A solução dos grandes
problemas mundiais está no Amor não nas políticas de ódio e guerra! A humanidade só
encontrará a felicidade amando-se como Cristo amou a humanidade. Isto está tudo
errado, irmãos. Os chefes de Estado nunca se entenderão senão no Amor! As cimeiras
serão sempre infrutíferas se não assentarem definitivamente no Amor, na solidariedade,
na partilha, na compreensão, no perdão. Depois, as organizações internacionais do crime
têm minadas todas as condutas do entendimento humano. Há mísseis com ogivas
nucleares por aí à venda, a boiar em cascos de submarinos, prontos a serem disparados a
qualquer momento! E há loucos que detêm todo o poder de os fazer explodir quando
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quiserem! Irmãos: está na hora de alijarmos definitivamente séculos de história. Acabar
com certos preconceitos de grandeza do papado. Para que o mundo veja em nós, apenas
e só, os anunciadores de um outro Reino — o Reino de Deus que é de Justiça, de Amor e
de Paz! Onde os pobres, os humildes, os excluídos têm lugar antes de todos! Para que o
mundo sinta que não queremos mais que ser continuadores da missão do Amor. É preciso
orar! Orar muito, como o Senhor no Jetzémani, para que todos sejam um! Para que o
Amor — Espírito Santo de Deus — emprenhe todos os actos dos dirigentes dos povos!
Despojai-vos, irmãos, de tudo o que é do mundo. Vistamo-nos de saco e cobramo-nos de
cinza, como fizeram os habitantes de Nínive. Façamos penitência! Talvez o Senhor nos
oiça e nos perdoe! Talvez a Sua Infinita Misericórdia nos faça passar incólumes a porta
estreita.»
O discurso de Pedro deixou todos os conciliares verdadeiramente prostrados. E
todos se questionavam: o que fazer?
Com a concordância de Pedro, o plenário decidiu enviar a Roma uma delegação
oficial, chefiada pelo presidente de todas as comissões, o cardeal Menezes e Costa, tendo
como adjunto Colombano Righetti que lá permanecera. Pedro aconselhou os membros
da delegação a fazer profunda vigília de oração e penitência, pois iam «enfrentar
verdadeiros demónios». Que se vestissem de serapilheira e cobrissem de cinza as
cabeças. «Nos corações, apenas uma imagem, um objectivo, uma finalidade: Cristo! E a
unidade do rebanho!...»
Enquanto os conciliares se recolhiam ao estudo e à elaboração dos projectos das
conclusões das matérias já discutidas e consensualizadas, Pedro reuniu com Logano, a
quem convidou para uma especial jornada de oração e penitência. Pedro de Alcaçuz e
Alcantilar procurava o momento para se recompor psiquicamente, dirigindo-se em
peregrinação ao local onde passou vários anos da vida, com os pobres índios e simples
caboclos das margens do Solimões, sítio onde estavam sepultados os mais autênticos e
queridos missionários que conhecera: os próprios pais.
Pela calada da noite, tomaram o avião para Manaus. Aqui os esperava a mulher
brasileira que, em Roma, havia sido escolhida para coordenar, naquela região, os
trabalhos da revolução em curso. Salomé se chamava e tinha em estatura física a
dimensão da inteligência e do coração: enorme! Ainda o sol mal espreitava por entre a
densa folhagem dos gigantes amazónicos e poucos eram os gritos das araras, já o
helicóptero do governador de Manaus, transportando Pedro, Logano e Salomé, poisava
lentamente no terreiro fronteiriço à Igreja de S. José de Nigaci, agora transformada em
grande catedral de tábua e folhas de palmeiras. Em frente, no mesmo lugar onde
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estavam as campas de Teófilo de Alcantilar e de Dina de Alcaçuz, erguia-se, agora, um
curioso mausoléu, sempre adornado pelos aborígenes daquela zona amazónica que
jamais cessaram de os chorar. Havia vários anos que eram invocados popularmente pelo
sugestivo nome de "os santos missionários dos pobres".
Ali se juntavam, todos os dias, multidões de peregrinos que, de toda a Amazónia e
mesmo do resto do país, vinham confiantes no milagre. Era a cura de maleitas de
humanos ou até de animais, era a conciliação de um casal desavindo ou o reencontro de
familiares perdidos. Os autocarros chegavam fumegantes, a estuprar a virgindade da
selva, carregados da gente pobre das malocas que tinha ouvido falar nas virtudes e na
santidade do casal missionário. Porém, depois de conhecida a notícia de que o filho que
deixaram se tornou no novo Papa de Roma, a devoção aos "santos" de S. José de Nigaci
não cessou de crescer. Assim, quando o heli sobrevoou a terra vermelha, muita gente foi
obrigada a afastar-se do centro da praça, por causa da imensa nuvem de poeira
levantada pela agitação súbita do vento à superfície, à medida que as enormes pás do
rotor do aparelho em movimento se aproximavam lentamente do improvisado heliporto.
Salomé foi a primeira a abandonar a aeronave, logo seguida de Pedro e Logano,
ambos em calça e camisa, mas tendo a cobrir-lhes todo o corpo, da cabeça aos pés, uma
túnica de serapilheira escura, que fechavam e levantavam um pouco, com a mão, à
frente, para que não tropeçassem. Ninguém os reconheceu. Ao vê-los sair do aparelho,
muitos pensaram tratar-se de altas figuras do Estado, disfarçadas, pelo que cada um
seguiu a sua peregrinação, de acordo com o próprio itinerário.
Conversando em surdina, depressa chegaram os três ao monumento construído
pelos índios. Era um mausoléu em forma de pirâmide, feito em tijolo-burro da região,
terminando num vértice pontiagudo, sobre o qual se formava uma base em globo que
sustentava uma enorme cruz, feita com duas catanas de grandes dimensões,
atravessadas uma sobre a outra. Na fachada, uma pequena porta, sempre guardada por
dois índios armados de vistosos terçados e em posição de sentido, tendo as cabeças
aureoladas das suas tradicionais e bem plumadas acanitaras. Por cima da porta,
desenhado em raríssima e enorme placa de xisto, estava um painel em que se viam bem
esculpidos os traços dos rostos de Teófilo e de Dina, olhando sorridentes uma infinda
multidão de outros rostos que se levantavam para o alto.
Sem retirarem o véu da serapilheira, Pedro e Logano aproximaram-se das
sentinelas, fizeram-lhes uma vénia, e Pedro falou-lhes no dialecto aborígene: «Quem
guardais?» A voz e o rosto inconfundível, mais descoberto por uma inoportuna lufada de
vento, fizeram os dois índios prostrarem-se por terra, beijando a mão de Pedro. O mais
alto exclamou rapidamente: «D. Pedro, guardamos os túmulos dos nossos santos
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missionários e vossos pais, fundadores desta terra!»
Pedro apertou mais a serapilheira sobre o rosto e agradeceu em lágrimas a
informação prestada. Avançou com Logano para o interior. Salomé precedia-os, sempre
solícita, agora no abrir caminho. Duas estátuas jacentes, representando Teófilo de
Alcantilar e Dina de Alcaçuz, encimavam os respectivos sarcófagos. Ao centro da parede
do fundo, uma estreitíssima janela de catedral gótica permitia a entrada de ar e de um
raio de sol que parecia fazer sorrir os rostos das estátuas. À cabeceira dos sarcófagos
existia um pequeno altar de pedra da região, onde era possível celebrar a Eucaristia. O
restante e apertado espaço estava coberto de pequenos e grandes ramos de flores de
todas as espécies que há no seringal, de coroas de verdes da selva, aqui e ali tecidos com
as mais aromáticas flores tropicais. Delas pendiam fitas de seda que recordavam os
nomes das terras das peregrinações e respectivas datas.
Pedro, a custo, levando Logano pelo braço, conseguiu ultrapassar a fila de
peregrinos que dava a volta aos sarcófagos e caiu de joelhos à cabeceira das estátuas.
Inclinando o rosto, sempre coberto pela serapilheira, chorou silenciosamente durante
longo período. Com os braços estendidos sobre as estátuas jacentes e enquanto Salomé
fazia sinais para que a pequena multidão observasse rigoroso silêncio, Pedro orou, em
voz carcomida pelo sofrimento dos últimos dias, mas bem vibrante, de forma a ser
ouvido por quantos se preparavam em longa fila para entrar no mausoléu dos "santos
missionários":
— Papai! Mamãe! Volto junto de vós, não para vos chorar! A glória que o nosso
Bom Jesus vos reservou não é para chorar, mas para festejar. Mas eu estou triste! Papai!
Mamãe! Ouvi-me! Estou muito triste, sim, por aquilo que o demónio vem fazendo à
Igreja, ao Povo de Deus, por quem Cristo deu a vida, há precisamente dois mil anos! Neste
momento terrível para a criação, quando mais se fazia sentir a necessidade do exemplo e
da palavra de Jesus, levada ao coração de todos os humanos pela vivência do Amor,
Belzebú semeia a discórdia, o ódio, a ganhuça miserável, a sede de destruição da própria
humanidade, arrastando com ela toda a criatura dos três reinos da natureza. E até
algumas das pessoas que deveriam ser agora exemplos vivos de abnegação, de entrega
ao serviço das comunidades cristãs, profetas do Reino da Vida, do Amor e da Paz, se
transformaram em horríveis serventuários dos agentes do diabo! Papai! Mamãe! O
centro histórico da cristandade virou casa de maldição, do crime, do lenocínio, da
prostituição, do tráfico de droga, do contrabando de armamento de qualquer espécie,
mesmo de armas químicas e biológicas de destruição maciça!... O próprio templo que é
símbolo da unidade de todos os cristãos, aquele que leva o nome do primeiro papa — o
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Pedro Apóstolo que ali verteu o sangue por Amor a Cristo e à Humanidade por Ele
redimida — está agora ao serviço de cerimoniais satânicos do crime organizado. Um
horror, papai e mamãe! Um horror! Que mais me esperará nesta vida? A vossa
intercessão junto de Deus, para que me dê força nesta hora difícil, é tudo o que vos venho
pedir! Eu sei que Ele nada pode fazer, se o homem O não quer amar! Se prefere as trevas
à Luz! Mas, papai e mamãe, por favor, com toda a corte celestial a pedir... muita coisa
poderia mudar. Acredito que a liberdade humana é um dogma, dos mais relevantes nas
páginas que traduzem a Mensagem do Verbo Encarnado. Mas, como Abraão, acredito
também que a vontade humana pode ser tocada, e, como em Nínive, até o rei pode
cobrir-se de saco e sentar-se nas cinzas, ao ouvir a palavra de Deus, transmitida pelo
profeta Jonas.»
Ainda Pedro não terminara a oração e um vento nada usual naquelas paragens
começa a fazer levantar enormes ondas de poeira avermelhada que tolda os raios de sol
ardente que, a meio do dia, naquela época do ano, costumava ser esplendoroso e
imperturbável. Ao forte zumbido do vento, veio juntar-se uma saraivada incrível,
fenómeno completamente alheio à meteorologia das paragens amazónicas. Sem se
vislumbrar no horizonte qualquer cúmulo, daqueles que fazem a noite mais cedo
anunciando tenebrosa borrasca, rebenta um violentíssimo estoiro de trovão que faz cair
por terra lamacenta todos os peregrinos de Nigaci. Outros se seguiram, aterradores,
como potentes engenhos explosivos, a deflagrar sobre uma cidade a destruir, em guerra
inimaginável.
Poucos minutos depois, o granizo esgotou-se e, das enormes bolas de gelo vindas
das alturas que encheram todo o recinto, começaram a desabrochar as mais belas flores
que jamais ser humano algum houvera contemplado. Mais que os campos holandeses
cheios de tulipas, mais que uma estufa pejada de orquídeas, mais que um enorme
canteiro de amores-perfeitos, ondulando o cetim das pétalas violáceas e amarelas ao
primeiro beijo da aurora, o terreiro de S. José de Nagaci ficou irreconhecível da beleza
mais bela da cor suave e infinitamente variada de todas as flores do universo. O perfume
que exalavam era de tal modo inebriante que não houve peregrino que se não tenha
levantado imediatamente e perguntado, ainda assustado, «o que é isto?...» e «que
perfume é este?...»
Pedro, Logano e Salomé, que permaneciam ajoelhados e silenciosos durante a
extraordinária e incompreensível tempestade, ao sentir o bulício dos peregrinos dentro e
fora do mausoléu, levantaram os olhos e depararam com uma luz indescritível que
poisava em feixes coloridos sobre os túmulos, luz que, a pouco e pouco, se transformou
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em nuvem de uma transparência luminosa, mostrando nitidamente o casal missionário a
agasalhar crianças e idosos com a própria roupa do corpo, a alimentá-los com o pão que
levavam para o almoço e a curá-los das chagas e doenças que os afligiam. Ao mesmo
tempo, uma voz dotada de uma suavidade nunca ouvida dizia: «Assim fizeram estes,
seguindo o exemplo que lhes dei. Assim deveis vós fazer também. Pedro, faz assim. E
ensina toda a Igreja a fazer o mesmo. Os dias de Satanás estão a acabar. Não tenhais
medo! Eu venci o mundo!» Seguiu-se um magnífico coral de vozes tão leves, entoando
harmonias de tal enlevo, que Pedro, Logano e todos quantos se encontravam dentro do
mausoléu ficaram por momentos sem saber onde estavam e que ambiente era aquele
que os envolvera. Salomé, reagindo à sua maneira, levantou-se e juntou a sua voz à dos
anjos que viu (disso deu testemunho) rodeando os túmulos e cantando a beleza da
criação. Quando terminou a harmonia celestial, Pedro e Logano olharam para a porta e
viram uma grande multidão ajoelhada num campo atapetado de flores de todas as cores
do arco-íris, batendo palmas e gritando «viva Pedro, viva Pedro, viva Pedro!»
Os missionários jesuítas que presidiam à missão e não sabiam da presença de
Pedro naquela hora e local, tendo ouvido dizer o que acontecera, ainda aterrorizados
pela tempestade de todo inexplicável, acorreram ao mausoléu. Muitos romeiros
contavam, então, cada um a sua versão dos acontecimentos. Tudo muito pouco em
relação ao que na realidade Pedro, Logano e Salomé viram e ouviram. Na pequenina
Igreja da missão, onde ainda se viam retratos do professor Teófilo e da médica Dina, com
descrições dos feitos mais relevantes da vida que ali viveram a ensinar, a alimentar e a
curar os índios, toda a gente sem terra, sem pão, mas com esperança, Pedro reuniu com
os missionários, pedindo-lhes que anotassem tudo o que de extraordinário acontecesse
naquela terra ou fora dela, com relação ao casal missionário ali sepultado. À multidão
solicitou o mais rigoroso silêncio sobre o que tinham observado. Acrescentando: «Não
são os milagres que mudam as consciências, mas sim os nossos exemplos de fé!»
Quando regressaram a Manaus e o helicóptero aterrou na praça da catedral, Pedro
ficou boquiaberto com a euforia da multidão que ali acorrera, tendo à frente o velho
arcebispo que, vestindo também uma túnica de serapilheira, incitava as crianças a agitar
as bandeirinhas e todo aquele povão a aclamar Pedro. Um grande coral misto entoava,
entretanto, com toda a solenidade e convicção: «Tu es Petrus! ...»
Na catedral de Manaus, Pedro presidiu a uma concelebração eucarística, dando a
palavra, no momento próprio, a Salomé. Nascida no meio amazónico, tinha na alma a
cultura da simplicidade cabocla, mas possuía também o verbo fácil e afiado da sabedoria
de uma fé inquebrantável, aliada a uma inteligência superior que desenvolvera nas
universidades do Rio, de Lovaina e de Friburgo. Salomé era mulher de vontade forte e
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decidida. Mas era mãe de grande coração. Agradeceu, comovida, a deferência e, em
nome de Pedro II, testemunhou como o "nosso Papa" tinha vindo a S. José de Nigaci,
privadamente, como qualquer outro romeiro, em visita aos túmulos dos pais, e como,
afinal, tudo se havia transformado num acontecimento que lhe traria a força que já
faltava para continuar a acreditar na unidade da Igreja de Cristo. Referindo-se aos factos
extraordinários por si mesma verificados junto ao mausoléu de S. José de Nigaci, Salomé,
chorando de entusiasmo, pediu a Pedro que não impedisse a sua divulgação, pois bem
poderiam contribuir para a coesão eclesial. A terminar, em atitude de grande emoção,
ofereceu-se para ir a Roma «testemunhar a força do Espírito perante a incapacidade dos
contumazes. Quem sabe se, como em Nínive, a maldade, a perfídia humana será vencida
e, pelo triunfo do Amor, todos se unirão de novo e todos serão um?!»
O arcebispo de Manaus, já conhecedor dos pormenores dos factos relatados pelas
televisões e rádios, agradeceu a Deus a visita de Pedro e terminou com a frase que se
tornaria refrão e bandeira por todo o Brasil e em todo o mundo: «Pedro, não vaciles, o
Céu está contigo!»
Por longos minutos, a multidão presente gritou o refrão, com entusiasmo
contagiante.
No final da Eucaristia, Pedro, sustendo a custo as próprias lágrimas, falou:
— Irmãos, a palavra de mãe Salomé foi certeira, foi a voz da fé e do entusiasmo de
quem sabe porquê e em Quem crê! Quem disse que as mulheres destes tempos de
mudança não estão preparadas para assumir responsabilidades próprias na Igreja de
Jesus? Vede o exemplo desta grande mulher e sabereis porque foi escolhida para nossa
directa colaboradora. Digo-vos, irmãos, aqui em Manaus — terra onde vivi momentos de
grande emoção e alegria —, que é esta a hora de deixar de vez o androcentrismo de
séculos na direcção da marcha do Povo para a Nova Jerusalém e escutarmos
atentamente — nós, os homens — o que o Espírito de Deus tem para nos dizer, pela boca
daquelas irmãs, cuja vida profética é alerta constante para os perigos da caminhada. Há
coisas, irmãos, que só a mulher é capaz de entender e de explicar convenientemente. Só
ela pode ser MÃE! Só ela sabe dar a mão à criança que salta na rua, inconsciente quanto
aos perigos que a espreitam, mas inteiramente confiante de que está segura! Jesus — o
Deus Redentor da Humanidade — assumiu, no seio de uma MULHER, a natureza humana
de que carecia para poder responder como homem aos desafios da Redenção anunciada
logo após o primeiro acto de rebelião e, a seguir, pelos profetas. Depois dos primeiros
dois séculos de cristianismo, em que as mulheres tiveram sempre papel importante no
anúncio da Boa Nova, elas foram infelizmente esquecidas. Não o serão doravante!
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Prometo-vos, aqui, solenemente! Meus pais, se aqui estivessem connosco hoje teriam,
certamente, uma das maiores alegrias da sua vida terrena. Qual de nós pensara já nas
imensas potencialidades de uma embaixada de pessoas como mãe Salomé, na solução da
gravíssima crise que se abateu sobre a Peregrinação deste Povo? O Concílio vai dar um
salto qualitativo enorme, também neste ponto, repondo a situação dos primeiros séculos
da Caminhada. O androcentrismo não tem, na Eккλέσiα, qualquer fundamento! É estéril,
é negação do Evangelho de Jesus! Irmãos, a hora é grave de mais para desperdiçarmos
valores essenciais no anúncio corajoso do "Reino"! Vamos todos rezar e rezar muito para
que o Espírito de Deus nos mostre sempre o melhor caminho a seguir, para o bem de
todos e de toda a Humanidade. O Concilio vai debater a questão levantada por Salomé. E
o que for decidido, na fidelidade absoluta ao Espírito, assim se fará. Por agora, volto a
insistir irmãos, oremos sem cessar ao Senhor que nos pode mostrar e iluminar as
veredas...
Noite cerrada, Pedro regressa a Brasília. O Concílio esperava-o. Era incontável a
multidão que enchia a belíssima catedral e todo o espaço envolvente. Os altifalantes
anunciaram a entrada do Papa. Foi o rastilho que fez explodir de alegria toda a minha
gente. Palmas sem fim, cânticos e vivas, hossanas e louvores ao Senhor acompanharam a
difícil caminhada de Pedro até ao altar-mor. Quando pôde levantar a cabeça e ver o
enorme painel que haviam colocado por detrás, com o dito refrão lançado pelo arcebispo
de Manaus poucas horas antes — «Não vaciles, Pedro, o Céu está contigo!» — Pedro não
resistiu. A emoção daquele dia foi demais... E voltou a chorar! À muita tristeza da hora,
juntava-se-lhe, agora, no coração, a imensa alegria do momento. Quem poderia resistir?
Pedro foi informado das dificuldades sentidas em Roma pelo irmão Menezes e
Costa e respectiva delegação conciliar que não conseguira, ainda, falar com Di
Tronchetto. O papa voltou-se, então, para a assembleia e verificou que todos os bispos,
teólogos, religiosos e religiosas e muitas pessoas do povo vestiam a túnica de
serapilheira. Com os braços levantados e a sua voz de trovão, disse apenas:
— Irmãos, muito obrigado por estarem aqui, a esta hora, esperando um romeiro da
Amazónia... Cada um faça a romaria que entender possível, dentro do respectivo
enquadramento familiar Mas façam todos qualquer coisa! A hora continua a ser de
grande gravidade para todos. Crentes ou não, todos têm o dever de estarem atentos aos
sinais destes tempos que atravessamos e de fazerem o que puderem para ultrapassar a
crise. E que fazer, irmãos? — Amar! Ser bom. Amar! Os que não amam não são de Cristo!
E esses já estão condenados! Porque preferiram o ódio de Satanás ao carinho do Amor
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
92
Misericordioso de Deus! Irmãos, àqueles que puderem, peço que passem esta noite, aqui,
comigo, prostrados aos pés do nosso Bom Jesus, em contínua vigília de oração e
penitência! Quem sabe se não nos perdoará... e toque o coração dos que fazem a
discórdia? Quem sabe se, amanhã, as notícias nos dirão que cessou a contumácia, e a paz
e a união reinam, de novo, entre os irmãos?»
A noite foi grande na catedral de Brasília. Pedro mandou que a assistência aos
doentes e mais fragilizados que quiseram passar ali a noite fosse reforçada. E ordenou
que a todos distribuíssem café. Assistidos os corpos pôde o espírito manter-se alerta.
Jornada inesquecível — diziam uns. Noite santa — afirmavam outros. Horas preciosas —
lhes chamou Pedro, na homilia que pronunciou às primeiras horas da madrugada. As
televisões e muitas rádios brasileiras transmitiam em directo da catedral de Brasília.
Meios de comunicação de massas de todo o mundo não cessavam de referenciar os
passos mais importantes de Pedro, com particular destaque para os "fenómenos
estranhos" ocorridos na Amazónia, onde o Papa fora em visita privada aos túmulos dos
pais. E todos se referiam ao "milagre" da nuvem transparente e da voz suave que falara
com Pedro. Interrogavam-se romeiros e ouviam-se comentários e opiniões.
Em Roma, nada disto passava despercebido. A delegação conciliar ponderava tudo,
recebia instruções directamente de Pedro e aguardava o melhor momento para agir.
Entretanto, o Concílio decidira já, de harmonia com o desejo do Papa, enviar Mãe Salomé
para Roma, onde reuniria as colaboradoras das diversas regiões de Itália. Todas sabiam o
código do local. Depois, ficariam integradas na delegação conciliar de Menezes e Costa.
Do outro lado, um gabinete de homens da Camorra — agora aliada da Cosa Nostra
— anotava e trabalhava todas as notícias vindas do outro lado do Atlântico, transmitindo-
-as, depois, à secretaria do antipapa. Aqui, os "veneráveis" das respectivas "lojas", em
estreita união com os santos banqueiros da secreta da Lexington Avenue, analisavam
tudo e levavam ao conhecimento do velho Di Tronchetto que se limitava ao habitual
«Placet». Di Tronchetto deixara de presidir às reuniões das assembleias das lojas.
Também no Vaticano já ninguém se importava com ele. Prisioneiro dos respectivos
aposentos, apenas lia os jornais, via as televisões e, algumas vezes ao dia, recebia
delegações das várias máfias instaladas nos "palácios apostólicos". Aqui, na chamada
"Torre de Bórgia" — descobriram as primeiras emissárias secretas da delegação conciliar
— estava agora instalada uma requintada mansão, onde prostitutas mais qualificadas
atendiam altas personalidades da política, dos meios financeiros, das forças armadas e do
próprio clero. No chamado Palazzo Belvedere, do lado oposto, o movimento nocturno de
homens que entram e saem, carregando grandes camiões que se dirigem ao aeroporto
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
93
ou aos portos do Adriático, era quase permanente, só abrandando e desaparecendo com
as primeiras claridades da aurora.
Transmitindo tudo a Pedro diariamente em relatórios electrónicos, o presidente da
delegação conciliar terminava o deste dia assim: «Tenebrae factae sunt!» (As trevas
envolveram toda a terra). Acrescentando:
«Ninguém aqui na delegação, porém, desespera. Ninguém caminha às escuras.
Temos a Luz que nos enviaram pelas nossas irmãs Salomé, Margaritta, Vicenza, Paola,
Giovanna.»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
94
III
Sic Deus dilexit mundum!...
— Continuo?...
— Se não estás cansado, irmão Estêvão, preferia. Claro, se o nosso irmão Pedro
Apóstolo e toda a Assembleia concordarem.
— Pela Misericórdia de Deus, quem fala em cansaço no Céu?
— Bom, o período que se seguiu foi difícil, muito difícil mesmo. Acompanhei Pedro
por todo o lado. E era para mim óbvio que ele pressentia o apocalipse. E isso trazia-o
ansioso em extremo!
E digo-vos, com a alegria que nos envolve, que me custou muito vê-lo sofrer. O
sofrimento de Pedro era o meu sofrimento! Mas, ao mesmo tempo, foi muito gratificante
e motivo de perfeição para mim ver a coragem e a constância de Pedro no Amor à Igreja,
ao seu Povo que via sofrer mais que ele e, muitas vezes — confessava com amargura —,
não podia consolar.
O reconhecimento da autoridade do antipapa tinha sido, a nível mundial, de muito
reduzida expressão. As representações diplomáticas eram as creditadas por Pedro II e só
a ele se mantinham fiéis. Nenhum governo dos povos, de resto, tinha praticado qualquer
acto modificativo da respectiva situação.
Os meios de comunicação afectos ao autodenominado João Paulo III, porém, não
cessavam de lançar veneno para o ar e para o papel, ora seduzindo, por um lado, ora
esgrimindo anátemas e excomunhões, por outro. Pedro II, já fulminado por incontáveis e
muito "canónicas" penalidades, agora que fora conhecido o "milagre" da Amazónia, era
ameaçado de morte pela fogueira, se continuasse «a cavilar com suas embustices
medievas». — Como se lia em L'Oservatore Romano.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
95
Até os menos fanáticos bispos seguidores das ordens da secreta sedeada na baixa
de Manhattan, apoiantes do antipapa — sobretudo espanhóis, polacos, bastantes
alemães, austríacos, franceses e alguns portugueses e italianos — não acharam piada
nenhuma a tal ameaça. Nas respectivas dioceses, saíram críticas veladas ao modo como o
"processo romano" estava a ser conduzido. Quando se tornou público, todavia, que o
endurecimento da posição de João Paulo III era ditado pela assembleia dos "veneráveis",
instalada no Vaticano, não poucos bispos que, a princípio, se haviam rebelado contra
Pedro começaram a rever essa posição e, pouco a pouco, a recusar a obediência ao
antipapa. Simultaneamente, na secretaria do Concílio, em Brasília, chegavam as primeiras
cartas de bispos que pediam perdão a Pedro e à Igreja e prometiam fidelidade inteira e
sem reservas ao «legítimo sucessor do Pedro Apóstolo». Alguns houve que tiveram a
coragem de aparecer pessoalmente diante de Pedro II e da assembleia conciliar, cobertos
de saco e cinzas, pedindo humildemente perdão. No dia seguinte, porém, todos eles
apareceram mortos, cada um em sítio diferente, mas todos com bala no palato.
Todos estes acontecimentos eram circunstanciadamente noticiados por todo o
mundo, com imagens televisivas arrepiantes e comentários das mais diversas tendências.
Numa coisa, porém, todos estavam de acordo — com a óbvia excepção dos órgãos
dominados pelos homens que se movimentavam no interior da muralha vaticana —, as
organizações secretas do crime tomaram conta do poder, ameaçando não somente as
estruturas religiosas da Igreja Católica, mas o próprio Estado Italiano. Este já não agia,
não havia governo, as instituições desmoronavam-se de dia para dia, a justiça parara, as
escolas fechavam, porque só o crime organizado mostrava a sua lei!...
Pedro, mais uma vez em segredo, voou para Roma, sempre acompanhado do seu
inseparável "vice" — Perez-Logano. Instalara-se em casa de um amigo, no refúgio do
insuportável Verão romano — as cercanias de Tivoli. Aqui recebia secretamente a
delegação conciliar que trabalhava à socapa, bem mais próximo do centro das operações
mafiosas. Volvidas duas semanas de estadia sigilosa na Sintra romana, Pedro II aparece
no primeiro canal da RAI, em hora de grande audiência, entrevistado por três dos
melhores jornalistas mundiais em assuntos religiosos e do Vaticano, num programa de
grande surpresa que vinha sendo anunciado, mas sem levantar a ponta do véu sobre o
que se passaria. Pedro vestia a túnica de serapilheira que o cobria da cabeça aos pés,
trazendo ao peito uma cruz com o crucificado, tudo em madeira escura e toscamente
trabalhada — oferta dos índios amazónicos —, pendente do pescoço por um cadeado de
flores secas, colhidas na missão de S. José de Nigaci. O seu enorme carão triste, mas
sereno, emprestava à cena um ar denso de incontestável seriedade.
Ao som do «Cristus vincit...» e do «Tu es Petrus...», o programa começou por
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
96
mostrar uma curta reportagem, algumas cenas desconhecidas do grande público e que
salientavam a enorme simplicidade da vida do papa Pedro II e a ternura que se
desprendia das suas palavras. Entrevistas com algumas das mulheres que tinham sido
colocadas pelo Concílio nos mais diversos serviços de direcção da Igreja; com Lorenzo —
o homem de Siracusa que não tinha pernas e andou... com a mulher dele que não se
cansava de apregoar que Pedro era um santo; com um guarda-costas do "venerável" que,
agora, arrependido, aparecera a explicar toda a cena das pistolas que emperraram, no
dia em que Pedro entrou nos seus aposentos do Vaticano, depois da ocupação pelo
antipapa; com o arcebispo de Manaus, com os romeiros de Nigaci que presenciaram o
espectáculo misterioso da tempestade de granizo e trovoada e explicaram como as bolas
de neve se transformaram em flores, deixando o terreiro como o mais belo prado do
Maio europeu, coisa nunca vista naquelas paragens amazónicas; e, finalmente, com Pe-
rez-Logano, o homem que deixara a Sé de Buenos Aires para se tornar no companheiro
fiel do Papa e no seu mais íntimo confidente. Logano deu a sua visão de todos os
acontecimentos que lhe havia sido dado observar e viver, terminando por afirmar que Di
Tronchetto era vítima das forças infernais que tinham assaltado o Vaticano, fazendo
agora do lugar onde Pedro Apóstolo dera a sua vida pela Igreja nascente o centro das
mais hediondas actividades criminosas. Que, pessoalmente, não tinha dúvidas em
classificar esse diabólico sistema de poder assente no dinheiro obtido através de tais
métodos de verdadeiro anticristo, pois o "reino" agora proclamado pelos homens do
poder em Roma se encontrava exactamente nos antípodas do Reino de Deus, tantas
vezes anunciado e depois explicado e instaurado no coração dos crentes, pela morte e
ressurreição de Jesus.
Pedro ouvira tudo silencioso, de olhos caídos sobre as mãos que se cruzavam em
cima da mesa, dando-o as câmaras sempre em cena, compondo, de quando em vez, o
capuz da serapilheira que lhe cobria a cabeça.
Terminada a série de entrevistas prévias, foi o momento de Pedro II falar. E não se
fez rogado. Sempre muito sério e triste, o Papa respondeu a todas as perguntas que os
três jornalistas lhe faziam. Historiou a crise da sua eleição, o modo correcto como todos
os cardeais exprimiram a sua vontade e o ataque que, logo na noite seguinte, foi
deliberado e executado contra a sua pessoa, visando eliminá-lo fisicamente. No
momento, porém, em que ia começar a explicar toda a sanha com que fora brindado,
desde início, pelos cardeais que sempre se opuseram à sua eleição, mas que não tinham
tido a coragem para o exprimir no momento próprio, entra em cena um indivíduo com
modos de tresloucado e tenta disparar uma metralhadora ligeira contra Pedro. Foi detido
imediatamente pelos seguranças, não sem primeiro puxar o gatilho várias vezes e em
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
97
diversas direcções. A perigosíssima arma, porém, ficou muda, para espanto de todos.
Nesta altura, um potentíssimo engenho explosivo mandava pelos ares a torre da antena
da RAI, ficando os telespectadores sem emissão para o resto da noite.
Pedro e Logano eram aguardados, na periferia dos estúdios, por Menezes e Costa e
mais dois delegados conciliares que tudo haviam preparado minuciosamente, contando
mesmo com a hipótese de um atentado. Quando viram pessoas a sair em correria e
grande confusão, logo se aperceberam de que algo estava errado. Pedro e Logano, com a
túnica de serapilheira debaixo do braço e chapéus de aba larga enterrados até às orelhas,
conseguiram correr no meio da confusão e já estavam dentro do veículo do meio,
quando Meneses e Costa e a — agora motorista — Margaritta, fora, davam passos
inquietos, esticando o pescoço, em busca das figuras que deveriam transportar a Tivoli.
Foi o motorista do carro da frente — um dos delegados conciliares, arcebispo auxiliar de
Roma e bom conhecedor do meio — que apontou a Meneses e Costa para o interior do
carro. De imediato os três automóveis, seguindo pelas vias menos conhecidas à
velocidade possível, saíram de Roma. Na primeira barreira policial que encontraram, à
saída da cidade, foram todos identificados e os carros revistados. «Nada de anormal» —
disseram os polícias uns aos outros — e os três Punto seguiram viagem. Mais três
operações STOP antes de chegarem a Tivoli. De modo que, quando atingiram a casa onde
se hospedavam Pedro e Logano, já estes tomavam um tranquilizante chá de tília. Pedro,
tentando superar a angústia, sorri, abraça Menezes e Costa e beija Mãe Margaritta,
dando-lhes os parabéns:
— Ó homem, olhe que essa de nos deixar na Termini foi genial. Viajámos em
segunda, no meio de noctívagos bêbados que nos tomaram por estrangeiros... E era
verdade!... Mas ninguém nos incomodou.
— Caso contrário, não estaríamos todos aqui, agora... A polícia está dominada
pelas máfias que controlam tudo, desde o chefe do Estado até à mais insignificante
instituição. E agora até o Vaticano!...» — Terminou, com uma lágrima no canto do olho.
— Não duvido, irmão! Ninguém duvida. Mas não vamos gastar tempo em
lamentações. A estratégia para amanhã?
— Durante a viagem contactei diversos amigos de confiança. — Respondeu pronto
o arcebispo auxiliar da diocese de Roma. — De modo que, se Pedro quiser, a abortada
entrevista da RAI poderá continuar agora na antena da rádio nacional, numa altura em
que toda a gente se prepara para sair para os empregos e, em casa ou no automóvel, não
perde o programa da manhã.
— Parece-me boa ideia. — Avançou Pedro. Só que, parece-me, não se deve passar
por cima da gente simpática da RAI. De resto, a situação impõe todas as cautelas. E não
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
98
há tempo suficiente para preparar as coisas com segurança.
— O problema foi também colocado — retorquiu o arcebispo. — Em alternativa,
seriam convidados os mesmos jornalistas e o pessoal necessário da televisão, para
continuar o programa, fora de Roma, em local, dia e hora apenas conhecidos por nós que
aqui estamos.
Logano advertiu para a necessidade de escolher um cenário artificial, neutro, onde
qualquer identificação fosse impossível. Depois, participantes e técnicos, a partir de certa
altura do percurso, deveriam ser conduzidos para aí, de olhos vendados.
Pedro escutou todas as opiniões. No fim, bebendo uma nova chávena de chá, disse
da angústia que o invadia por sentir ter sido colocado numa situação de marginalidade,
mas também da alegria imensa que o enchia por ter a Igreja que agia, então, como nos
primeiros séculos do cristianismo — como toupeiras das estacas do império de Satã.
«Vamos em frente, irmãos, confio em vós, confio na vossa prudência, mas também na
vossa audácia. Deus está connosco. Ele vence!»
No dia combinado, os homens da rádio e da televisão compareceram. Estava-se
próximo de Cassino. Era uma área de serviço da A2 e o pequeno veículo branco lá estava,
com o motorista de serviço — o arcebispo auxiliar de Roma, feito turista das Américas —
encostado à traseira, fingindo ler o La Stampa. Após os cumprimentos formais e a
verificação das identidades, o motorista do mini branco, conforme acordado, vendou os
olhos do pessoal, enquanto os seus ajudantes revistavam bolsos e forros, buscando
eventuais meios de escuta electrónica. Os carros das estações emissoras de rádio e de
televisão, sem qualquer identificativo, foram então conduzidos por pessoas da confiança
do arcebispo que seguiram no encalço do mini. Numa quinta, perto do Monte Cassino, o
portão abriu-se ao primeiro sinal da chegada. Os carros entraram, e logo se fechou o
portão. Para Margaritta e para as outras mulheres do grupo nada podia ficar ao acaso.
(Quem disse que as mulheres não sabem guardar segredos?...) Foram, como sempre, de
uma eficiência e circunspecção à altura do momento e suas exigências. Uma densa
vegetação encobria uma pequena casa do feitor da propriedade. Nenhum heli
descobriria a casa, os carros, muito menos as pessoas. Foi numa pequena sala, sem
móveis, apenas algumas cadeiras, paredes brancas e pavimento de madeira antiga, que a
entrevista com Pedro continuou.
O «Papa legítimo» — como agora o apelidavam — falou desinibidamente sobre
todas as questões que lhe quiseram colocar. Sobre os últimos acontecimentos, disse
apenas que não tinha medo de morrer. — «Sei que, como qualquer mortal, a minha vez
há-de chegar. Não irei, porém, quando os homens quiserem, mas sim e só quando Deus
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
99
achar que cumpri a minha missão». — Acentuou, referindo-se aos muitos atentados já
sofridos contra a sua pessoa.
Pedro falou, depois, das terríveis nuvens negras que se avolumam nos horizontes
da Humanidade. Sobre a fome, as doenças e as epidemias incuráveis, apesar de todos os
esforços da ciência, mas, particularmente, sobre a injustiça na distribuição dos recursos à
escala planetária. Dos milhões e milhões de seres humanos privados do essencial para
um mínimo de dignidade na vida e da criminosa abastança de uns tantos que tudo têm,
gastando somas incalculáveis em orgias, luxos e ostentações injuriosas à humanidade
sofredora e, por fim, em armamentos e sistemas de defesa, perfeitamente inúteis,
perante a ameaça nuclear. Sobre esta, recordou a situação de tais armas de destruição
maciça, hoje à mão de qualquer energúmeno internacional. Como, de um momento para
o outro, alguém pode carregar no botão vermelho e accionar a última hecatombe da
humanidade, o fim da vida sobre a terra e a pulverização do planeta!
Ao falar sobre a situação no Vaticano, Pedro chorou impressionantemente,
fazendo o mais emocionante apelo ao cardeal Di Tronchetto para que afaste a
contumácia, peça perdão ao Deus de toda a Misericórdia e não faça sofrer mais o povo
cristão. Depois, mostrou conhecer toda a gravíssima situação instalada nos chamados
"palácios apostólicos" e confessou-se disponível para dialogar com todos quantos
estivessem de boa fé. «Com o inferno, porém, não há diálogo possível!» — Concluiu.
— Mas quem é o inferno com o qual não dialogará? — pergunta, por fim, um
jornalista mais irónico.
— Todos aqueles homens e mulheres que cumprem as obras de Satã — resposta
pronta de Pedro.
— Como conhecê-los?
— Precisamente pelas suas obras. Quem semeia o ódio neste mundo? Quem
alimenta a guerra? Quem oprime o fraco, o indefeso? Quem promove a injustiça? Quem
busca apenas e só o dinheiro, o poder, a qualquer custo? Quem trafica droga? Quem
mata? Quem rouba? Quem calca diariamente os mais invioláveis direitos humanos?...
Esses são os fiéis de Satã. E com eles não há diálogo possível. Mas os seus dias estão a
terminar!...
— O que quer dizer?
— Que a vitória final é do Reino de Deus — Reino de santidade e de graça, Reino
de verdade e de vida, Reino de justiça, de Amor e de Paz! E contra Ele nada podem os
servidores de Satã... que é o pai de toda a mentira.
— Está, então, optimista?
— Neste fim da luta, com certeza. Nunca duvidei, nem duvido. Mas não assim,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
100
quanto àqueles aos quais tenho o dever de guiar, de tentar evitar que caiam nas ciladas
de Satã. Muito trabalho me espera, muitas lágrimas e angústias. Mas tudo suportarei,
«n'Aquele que me conforta!...» — Terminou, com a citação de Paulo de Tarso.
As despedidas foram rápidas e os homens da televisão e da rádio foram levados do
local como lá entraram — de olhos completamente vendados. Retomaram os comandos
das respectivas viaturas numa área de serviço da A24, cerca de L'Áquila.
A entrevista foi para o ar no dia seguinte, conforme o acordado, primeiro na rádio
e, à noite, na televisão.
No Vaticano, os homens de Tronchetto explodiam de raiva. A torre das emissões
da RAI já estava operacional, e todo o mundo pôde assistir às lágrimas de Pedro II e aos
veementes apelos à paz, à concórdia entre os povos, à justiça, à solidariedade, como
forma única de evitar a implosão da Humanidade e o aniquilamento do planeta. Ninguém
resistiu às lágrimas de Pedro, sobretudo quando apelou ao antipapa para afastar a
contumácia da sua posição ilegítima, causadora de tantos sofrimentos ao povo de Deus.
De todo o orbe católico, anglicano e de muitas confissões cristãs e não cristãs e da
grande maioria dos chefes de Estado do mundo surgiram mensagens de afecto e de
encorajamento a Pedro II, para que prossiga os seus esforços, nos caminhos da paz e da
solidariedade entre os povos. Dos católicos, especificamente, começaram a chover no
Concílio mensagens de arrependimento de alguns bispos que haviam estado com
Tronchetto e protestando a sua fidelidade a Pedro. Milhares e milhares de mensagens de
todas as latitudes e longitudes eram diariamente recebidas no secretariado do Concílio,
via postal, telefone, telégrafo, correio electrónico e mesmo através de programas
especiais das televisões, das rádios e de muitos órgãos da imprensa escrita, todas de
apoio a Pedro II e de desagrado pela ocupação ilegítima do Vaticano.
Pedro, entretanto, com Logano, depois de algumas peripécias para frustrar as
intenções das máfias que o procuravam ainda em Itália, voara já para Brasília, onde um
enorme mas discreto aparelho policial o resguardava de toda a investida das secretas do
crime organizado.
Mais uma vez recebido em triunfo pela assembleia conciliar e muito povo, na
catedral de Brasília, Pedro continuou a pedir as orações e a penitência de todos os
cristãos, «para que a hora de dor se transforme numa eternidade plena de alegria!...» —
Disse. Dirigindo-se especialmente aos bispos e demais responsáveis conciliares, além de
pedir ainda mais celeridade nas discussões dos documentos a aprovar, sobretudo através
de um método rigoroso que impeça a perda de tempo em discussões inúteis, solicitou-
-lhes encarecidamente que abandonassem, «em definitivo, toda a forma burguesa de
pensar e de viver». — «Uma renovação do espírito, segundo o rigor evangélico,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
101
parabolicamente ensinado por Jesus, na imagem tão certeira da simplicidade das aves do
céu... exige-se a todos os que receberam o carisma do serviço eclesial!» — Acrescentou.
A todos os cristãos do mundo, pediu enfaticamente que continuassem as preces ao céu,
organizando vigílias de oração e penitência pela Igreja e para que ela seja farol a iluminar
todos os povos. Falando, por fim, «aos chefes de Estado e a todos os poderosos e ricos
do mundo», Pedro pediu com toda a alma que olhassem para os povos que não têm que
comer, que não sabem o que é a alegria de viver, por falta de alimentos essenciais, por
falta de saúde, de ensino, de condições mínimas de vida. — «Irmãos, organizai-vos em
correntes de solidariedade — solicitou com os braços elevados e as lágrimas nos olhos —
abri os vossos corações e os vossos bens ao sofrimento alheio! Para que vos servirá a
riqueza, se amanhã os esfomeados vos saquearem e destruírem os vossos palácios e
impérios tão efémeros? Olhai, sobretudo, para os povos da África, da América do Sul, da
Ásia! Fazei qualquer coisa e já! Amanhã será tarde!» Não esquecendo o conflito entre
judeus e palestinianos — «vala aberta para receber constantemente cadáveres de ambos
os povos e pecado da humanidade que fecha os olhos ao genocídio mútuo.» — Pedro II
assumiu o tom de voz mais plangente que se lhe conhecia, anunciando aos conciliares e
ao mundo algumas das tentativas já implementadas no terreno, no sentido de acorrer às
mais gritantes necessidades dos palestinianos que morrem de fome e de lutas fratricidas
e pedindo aos chefes dos dois povos que aceitassem, de uma vez por todas, uma
negociação de boa-fé, para uma solução razoável do conflito. — «Rezo constantemente
ao Deus de Jesus de Nazaré, que é também o Deus de Abraão, que vos dê a coragem de
fazer a paz!» — Terminou, caindo de joelhos e prostrando-se por terra em oração, no
que foi seguido por todos quantos enchiam a catedral. Tudo isto era transmitido em
directo, por várias cadeias de televisão e rádio brasileiras, para todo o mundo. As
palavras de Pedro e o seu gesto de homem desprendido, sempre albergando a túnica de
serapilheira, pedindo a regra da humildade de Cristo a todos os bispos e cristãos do
mundo inteiro caíram bem em todos os corações rectos. A oração e o silêncio na imensa
catedral constituíram veemente testemunho, de uma autenticidade impressionante.
A fama de Pedro corria mundo. A entrevista da RAI, os gestos de abnegação e as
palavras cortantes de sinceridade e amor pelas populações de todo o orbe fizeram mais
em poucos minutos do que todas as embaixadas, todos os sermões, colóquios ou
cimeiras. Crentes e não crentes, muita gente houve que levou muito a sério as palavras
de Pedro. Muitos chefes de Estado começaram a chegar a Brasília, para se encontrarem
com Pedro II.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
102
Entretanto, no Vaticano, as dissensões entre os "veneráveis" da "Camorra" e da
Cosa Nostra entre si e de todos com Tronchetto começavam a dar sinais de que algo
estaria a mudar... As pressões eram muitas e de todos os quadrantes mafiosos mais
recatados. Não estariam a cair no engodo das facilidades os senhores da alta e suja
finança mundial? A ânsia de globalizar o poder e o dinheiro que o suporta, a
esquizofrenia do tudo possuir — e já! — não lhes estaria a toldar o entendimento? Os
erros acumulavam-se, e alguém os pagaria. Segundo o código dos "padrinhos".
Sabia-se que Tronchetto se recusava, entretanto, a assinar documentos
importantes para o tráfico. O antipapa teria entendido o gueto em que se metera?
Encurralado entre a vaidade pessoal e um mais que certo projéctil disparado no palato,
qualquer dia... qualquer noite... por um qualquer verdugo de fato preto e óculos escuros,
a soldo de um qualquer "venerável", fumando "habanos", Tronchetto — como todos os
vaidosos — prefere a vaidade. E, de traição em traição à própria consciência, vai cedendo
às exigências, cada vez mais aberrantes, dos novos patrões do Vaticano. Agora, até lhe
impuseram que, todos os domingos, descesse à Basílica de S. Pedro, para celebrar, com o
fausto quase imbecil dos recuados tempos do esplendor renascentista, a missa em latim
e a bênção urbi et orbi... Com uma única diferença: na magnificência de outros tempos, a
nobreza fora substituída pela mais ridícula bacoquice dos homens fortes das secretas que
desfilavam à frente da sédia gestatória, barrigudos e fumegantes, de chapéus pretos
enterrados até às orelhas e os casacos profusamente medalhados pelas inúmeras
comendas que Tronchetto lhes concedera com a mais ampla prodigalidade. Quanto ao
objectivo destas manifestações... bom, é certo que todas as esmolas caídas nas caixas de
"S. Pietro" eram de imediato ensacadas para os cofres das lojas, sob a estrita ordenança
do conselho dos "veneráveis". Relativamente às demais, nomeadamente àquelas que os
homens de fato preto e óculos escuros extorquiam, mesmo pela violência, aos poucos
mas sempre néscios peregrinos da praça elíptica, parece que estaria cada um autorizado
a amealhar directamente para os respectivos bolsos. Esclareço o «parece»: havia notícias
desencontradas. Segundo os meus informadores — sempre fidedignos — o conselho dos
"veneráveis" exigia que toda a receita fosse parar ao respectivo banco, devendo a cada
um dos "cobradores" o caixa descontar uma pequena comissão. Mas — nunca pude
apurar isso com certeza — havia rumores de que o antipapa teria dado ordens para que
os seguranças encarregados dos peditórios nas celebrações realizadas na Piazza fizessem
seus os proventos das colheitas. E teriam sido tais ordens, dadas à revelia dos
"veneráveis", que estariam na base do primeiro grande conflito entre Di Tronchetto e a
corte.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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Menezes e Costa, porém, dirigindo o grupo de delegados do Concílio, continuava a
sua missão com muita coragem e persistência. O grupo mudava frequentemente de
alojamento e fraccionava-se em dois ou três, conforme as necessidades, pois os esbirros
dos "veneráveis" não desistiam de os perseguir. Nas localidades onde havia suspeitas de
se encontrarem os delegados conciliares, a cobardia dos atentados bombistas não
cessava de alarmar toda a Itália, espalhando terror, sangue e morte entre populações
indefesas e inocentes. Desde Milão a Palermo, passando, sobretudo, pela cidade e
subúrbios de Roma, não havia aglomerado populacional, estrutura social ou
equipamento público que não tivesse sofrido os efeitos devastadores da acção
indiscriminada dos beleguins das secretas.
O Concílio, entretanto, tinha informações seguras de que um grupo terrorista de
vários homens de uma das piores famílias mafiosas americanas que dominava grandes
outras da Rússia e, juntas, espalhavam o terror pelos países do Leste Europeu, agora
associadas a grupos extremistas e fundamentalistas do Islão que já tinham subvertido
toda a ordem social na América e se propunham levar a guerra ao coração da
cristandade, tinha chegado ao Galeão. O Brasil inteiro estarreceu com a notícia. Brasília,
principalmente, levou-a muito a sério e, a breve trecho, era uma cidade policial, armada
ostensivamente. As autoridades não queriam, de modo algum, que acontecesse qualquer
mal ao Concílio e especialmente a Pedro II.
A catedral fechou ao público e as imediações foram cercadas de cordões policiais e
militares verdadeiramente intransponíveis. Tudo e todos estavam sujeitos a rigoroso
controlo, como no mais rigoroso dos serviços de vigilância nos embarques
aeroportuários. Detectores de metais foram montados em todas as entradas. E mesmo
os carros que transportavam os conciliares e o próprio Pedro não escapavam às
apertadas malhas da fiscalização.
Em todo o Brasil as forças de segurança e militares entraram em alerta máximo.
Hotéis, residenciais, pensões, apartamentos turísticos, parques de campismo, tudo ficou
sujeito ao apuradíssimo árgus policial e ao faro dos cães-polícia, procurando identificar
pessoas armadas, americanos do Norte, europeus de Leste ou outros grupos de
estrangeiros, cujo porte levantasse suspeitas, sobretudo se chegados nos últimos dias. As
barreiras nas estradas e saídas das auto-estradas eram constantes e muito duros os
agentes fiscalizadores. Caças de combate e helicópteros armados sobrevoavam
constantemente a cidade.
O parlamento federal, entretanto, fez publicar uma lei de excepção que punia com
a pena máxima todo aquele cidadão que albergasse em sua casa estrangeiros, sem que
as respectivas identificações fossem comunicadas no prazo máximo de vinte e quatro
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
104
horas aos serviços estaduais competentes. Na mesma dura penalidade incorreriam todos
quantos tivessem agido em co-autoria, material ou moralmente, no mesmo tipo de
crime.
No décimo segundo dia destas medidas extraordinárias de segurança, quando toda
a população da cidade capital da República já reclamava maior liberdade de movimentos
e se mostrava enfadada com a presença de Pedro e do Concílio, às quatro horas e
cinquenta minutos, Brasília — a formosa — estremeceu até à raiz, como que sacudida
por violento abalo telúrico, com o ruído imenso e as ondas de choque destruidoras de
uma potentíssima deflagração que mandou pelos ares grande parte da exótica catedral e
devastou as suas periferias.
Pedro e todos os conciliares haviam decidido na véspera que ninguém pernoitasse
nas imediações da catedral que, ao fim dos trabalhos do dia, fora completamente isolada
e os conciliares distribuídos por hotéis e outros alojamentos condignos, mesmo longe da
cidade. Por seu lado, Pedro II tinha viajado para Manaus, onde teve conhecimento da
notícia. — «Satã está raivoso!... Sente que é chegado o fim do seu reinado de ódio, de
terror e de morte!» — Comentou com o seu companheiro Logano e com o arcebispo da
capital amazónica. — «Irmãos, com a oração fervorosa, o jejum, a caridade e a
persistência dos apóstolos dos primeiros tempos da Igreja, vamos enfrentá-lo!
Corajosamente! Que ninguém tenha medo! Só nos acontecerá o mal que for fruto da
nossa miséria, da nossa pouca fé!» Acrescentou.
Interrompendo a viagem programada, Pedro regressou de imediato a Brasília, a
consolar os irmãos e as autoridades do Estado.
O Concílio — já na fase terminal da votação das conclusões traduzidas em decretos
— pôde continuar, sem perda de tempo, em edifício apropriado, cedido pelo governo.
Pedro aí permaneceu trinta e três dias, acompanhando de perto as votações e
promulgando todos os textos que lhe foram apresentados; em alguns, porém, com
emendas pessoais que achou mais aconselháveis, «no sentido de uma expressão mais
incisiva da essência da missão da Igreja num mundo em ebulição — a libertação de todo
o ser humano de todos os cativeiros que o oprimem, de todas as explorações que o
degradam, de toda a miséria que o destrói. Tal libertação é fruto das armas da Caridade!
Do Amor!» — Lia-se, num comunicado distribuído à imprensa.
O encerramento do Concílio Ecuménico de Brasília constituiu uma impressionante
festa da fé e da união de toda a Igreja com Pedro. Numa praça pública, enorme multidão
desafiou as ameaças das máfias. Com estandartes das diversas organizações religiosas e
cívicas, jovens de todo o mundo, vestidos com as respectivas cores nacionais, entraram
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
105
na praça, vindos de diversos pontos e formando dezasseis filas muito vivas de cor e
agitação. Chegados ao centro, cada jovem subiu para o lugar previamente determinado,
numa enormíssima escadaria em cone, aí levantada para o efeito, levando os do vértice
os estandartes mais coloridos que inclinavam para fora. Quando todos ocuparam os
respectivos lugares, foi enorme a explosão de alegria de toda a incontável multidão que
se comprimia na praça. É que, formada, não por vigas de betão armado, mas pela alma
que erguia corpos de jovens, em movimento e vida, apareceu — como por milagre — ali
plasmada aos olhos humedecidos de todos, a bela concepção dos dezasseis montantes
parabolóides da catedral de Brasília, agora destruída. Em rodapé, formado por um cordão
de meninas agitando bandeirinhas verde, azul e amarelas, lia-se em enormes caracteres
inscritos numa faixa larga que as meninas seguravam e faziam girar, muito lentamente, à
volta da base do cone humano: «Podem destruir edifícios... A nós, a nossa fé, ninguém
destruirá! Nós somos o Templo de Deus!»
Comentando este pormenor significativo do arranjo da praça para as celebrações
do encerramento do Concílio, os mais avisados jornalistas de todo o mundo concordavam
num facto: a pesporrência estúpida das secretas e a cobardia mais ignóbil dos seus
esbirros já estão condenadas. A juventude mundial, presente em Brasília, julgou toda a
organização criminosa e o veredicto foi demolidor!
Pedro apareceu, como sempre, vestido da túnica penitencial que adoptara nos
últimos tempos. Todos os conciliares, em enorme cortejo saído do Palácio do Congresso,
o imitavam. Muitos populares adoptaram oficialmente o mesmo vestuário. Quando
todos ocuparam os respectivos lugares, a cena era impressionante na sua simplicidade e
rudeza.
Antes da concelebração da Eucaristia e depois de invocado, de joelhos em terra, o
fogo do Amor Divino — o Espírito Santo de Deus — teve lugar a solenidade da
promulgação de todos os decretos aprovados, nos quais era aposta, agora, a assinatura
de Petrus secundus... Foi o momento mais alto de toda a jornada conciliar que, em menos
de dois anos, conseguiu estudar e reunir consensos sobre questões dogmáticas e
disciplinares, sempre julgadas de capital importância para a caminhada do povo cristão,
num mundo tão carente de esperança. A expectativa era muita e de todos os cantos do
mundo choviam mensagens de confiança.
— Que não saiu frustrada?!... — Interrompeu Pedro Apóstolo.
— Não, irmão Pedro I, o Povo escolhido pelo nosso Deus sentiu nas decisões
conciliares de Brasília as vergastadas do Espírito. E o terreno estava preparado. Crentes
ou não, todas as pessoas de boa vontade esperavam da Igreja de Jesus uma palavra nova,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
106
uma práxis outra que cortasse radicalmente com séculos de miopia, de poeira, de poder.
— E o concílio disse essa palavra e mostrou tal práxis?!
— Sim, grande Apóstolo dos Gentios, o concílio foi a resposta pronta às muitas
interrogações de uma Humanidade angustiada.
— Podes resumir, irmão Pedro novíssimo, se não é pedir de mais?
— Com o beneplácito da Trindade do Amor em que mergulhamos e a vénia de toda
a corte dos santos, meu grande Paulo de Tarso, vou tentar uma síntese das principais
decisões conciliares de Brasília que mudaram a Igreja de Jesus — de regresso às
catacumbas.
Um imenso coro de assentimento deu a voz a Pedro.
— Irmãos, todo o trabalho de pesquisa dos homens e mulheres que tomaram
assento na aula conciliar se fundamentou na busca exaustiva de respostas novas aos
muitos problemas deixados em aberto pelo anterior concílio ecuménico, nomeadamente
na sua acertada definição da Igreja. Como se lembram, tinha sido dito — e bem — que a
Igreja de Cristo é o Povo de Deus. Mas, desta inspirada asserção, ninguém teve a
coragem de retirar as necessárias consequências. Pior, o poder que se fizera em séculos
de traição à Boa Nova do Reino, logo inverteu a lógica revolucionária do Espírito que
parecia rebentar com velhas mentalidades de domínio, para impor a mais absurda e
anacrónica prática reaccionária do monopólio da "Verdade"! O Evangelho de Jesus foi
subvertido!
— Irmão Pedro último, peço vénia pela interrupção, mas toda esta grande
assembleia dos santos é testemunha de como eu sofria ao ver, cá do alto, como o Povo
estava a ser conduzido, não raro, à bastonada.
— A quem o dizes, Irmão Pedro Apóstolo! A quem o dizes... Partia-me a alma a dor
que sentia ao verificar o nascimento de novas "verdades oficiais" e, claro está, de novos
"guardas" de tais "verdades", de novos inquisidores, novíssimos Torquemadas, sempre
prontos a mandar para a fogueira (havia, então, novas e mais sofisticadas maneiras de
"queimar" os "hereges". Tudo se fez, irmão Pedro Apóstolo, para inverter a marcha do
Espírito, iniciada com o Concílio Ecuménico Vaticano II. O que de mais puro, mais
genuinamente evangélico produziu aquele Concílio, foi propositadamente esquecido ou
abertamente subvertido. O Irmão Pedro Apóstolo sabe o que se trabalhou na feitura de
um "novo" Código de Direito Canónico, para que até as mais cândidas expressões dos
textos Conciliares do Vaticano II fossem abolidas. Primeiro, sempre me interroguei se a
Comunhão dos crentes em Jesus tinha de ser regida por um "código"!? Depois, a ser
verdade que algum acervo de normas práticas deveria existir, apenas como instrumento
do melhor acerto do passo de todos na "Caminhada" para a Jerusalém Celeste, tudo
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
107
deveria ser reduzido a essa finalidade, evitando o erro de jurisdicizar o AMOR.
— E o tal "novo" Código foi recebido pela "Comunhão Peregrina" como?
— Um aborto, meu Irmão, um nado-morto, porque lhe faltava o sopro do Espírito.
Aquele que se fizera sentir nos textos saídos do Vaticano II. Só para dar uma ideia do
modo como a Comunhão Peregrina reagiu à publicação do tal "novo" código, peço vénia
à imensa e celestial Assembleia dos Santos, para citar uns contemporâneos (Peter Hui-
zing/Knut Wall) que escreveram numa revista do meu País: «O Código baseia-se numa
eclesiologia da societas perfecta que era não somente estranha ao Concílio Vaticano II, a
que o Concílio contrapôs a imagem da Igreja peregrinante, como Povo de Deus. Parece-
-nos que esta imagem estática da Igreja nasceu dum puro receio, do receio de qualquer
forma de mudança e evolução. O conceito de poder potestas é empregado de modo, por
assim dizer, inflacionário e muito especialmente sempre que se trata da posição jurídica
do Papa. Onde ficou a imagem da colegialidade? As novas instituições eclesiológicas do
Vaticano II foram a cada passo repelidas de forma absolutamente intencional ou foram
mutiladas de modo a tornarem-se lamentavelmente irreconhecíveis. Pensamos que o
novo Código não fala uma linguagem que atinja os homens da nossa Igreja.»
— O anticristo meteu-se decididamente nas mentalidades que dominavam os
"Palácios Apostólicos" (nem se davam conta da contradição dos termos...)
— Por mim, Irmão Pedro Apóstolo, nunca tive dúvidas. E, por isso..
Bom, com a Vossa permissão, continuarei. O Concílio de Brasília, reunindo os
melhores teólogos de ambos os sexos, vindos de todos os cantos do mundo,
independentemente das suas conhecidas posições acerca da liberdade na investigação
teológica, rezou muito — a Trindade Santíssima do Amor sabe quão duros foram aqueles
momentos... — trabalhou com os olhos na Comunhão Peregrinante e com o coração
aberto ao Espírito, como vós, Pedro Apóstolo, no Cenáculo. E a primeira decisão de fundo
foi a reabilitação do Espírito do Vaticano II. Partindo da constituição conciliar Lumen
Gentium, sobre ela trabalhou no sentido da sua melhor compreensão e prática pelo Povo
de Deus. Esta expressão — tão bela e tão significante — foi propositadamente objecto de
muita reflexão e aprofundamento. Do esforço de todos, da oração constante e
humildade de quantos, fora e dentro da basílica, participavam na inesquecível jornada
que empurrou a Humanidade para o Alto, foi possível chegar à definição de um princípio
basilar de orientação futura:
«Na Igreja de Cristo, entendida como Povo escolhido por Deus, em constante
peregrinação para a Nova Jerusalém, não há lugar a outra autoridade que não a da
Verdade!»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
108
Daqui se partiu para um conjunto de reflexões-paradigma que ficaram assim
consignadas na acta conciliar:
a) O único Sacerdócio da Nova Aliança é o de Cristo Nosso Senhor que, para revelar
seu Espírito de Amor à Humanidade, se entregou voluntariamente à morte e morte de
Cruz! De tal sorte que a ninguém — dentro da Assembleia (Eккλέσiα) dos que foram
baptizados no seu sangue — é legítimo usar nomes ou arrogar-se formas de exercício dos
serviços por Ele instituídos, que tenham ou suscitem ligações a qualquer tipo de poder ou
de dominação, dentro da mesma Ecclesia; Ele escolheu propositadamente nomes tirados
da vida comum das pessoas, nomes propositadamente civis ou profanos que nada tinham
que ver com o vocabulário religioso judaico ou pagão — como επiσкoπos, o bispo, aquele
que supervigia, πpεσβυτεpos, presbítero, o ancião (na fé...) e Δiαкоvos, o que serve à
mesa... — para designar esses serviços;
b) Este sacerdócio, único admitido na Nova Aliança, admite-se que, por reflexão
teológica posterior, haja sido considerado como qualidade de toda a Assembleia dos
baptizados que, pelo Espírito de Jesus, se oferece continuamente em sacrifício — no
trabalho, na alegria e na dor — ao Deus do Amor que a todos congrega, conforta e dá
alento para a caminhada até ao fim dos tempos;
c) Nem no texto, nem no contexto da revelação de Jesus à Humanidade é
compreensível uma afirmação de séculos de "magistério" que reclama a existência de um
"sacerdócio ministerial" na Igreja. O sacerdócio neotestamentário — de que o outro era
apenas metáfora — é uno e único e, por consequência, indivisível em diversos graus,
Cristo Jesus deixou em Pedro e nos apóstolos e, neles, aos seus sucessores, serviços que
cada um exerce segundo os seus "carismas"! Não ministérios, conceito que, não sendo
bíblico, é produto de uma reflexão posterior e não deixa de pôr os seus problemas
(citando o teólogo Hans Küng). As palavras relativas a "ministério" no Novo Testamento
são evitadas, quando relacionadas com as funções eclesiais: na verdade, exprimem uma
relação de domínio. Pedro, no seu serviço à comunhão dos crentes, congrega e confirma
os diversos serviços dos que têm de ensinar, santificar, etc. (bispos), mas estes nem são
inferiores a Pedro, nem este se pode considerar alguma vez superior ao colégio apostólico
ou episcopal. Pedro Apóstolo tinha a consciência da sua missão e, nunca por nunca, no
seu exercício se arrogou qualquer tipo de poder ou de chefe, como topo de uma pirâmide,
a submeter às suas opiniões as razões dos bispos ou da restante Eккλέσiα; Pedro Apóstolo
é testemunha de que a sua infalibilidade lhe advém da assistência do Espírito de Verdade
em favor da comunhão, afim de que esta não siga o pai da mentira; Pedro Apóstolo, tal
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
109
como resulta dos Actos, apenas admitiu uma autoridade — a da VERDADE: «Somos
homens como vós!»;
d) Considera-se, por isso, abuso — a extirpar do léxico da nossa Кoivωviα
(comunhão eclesial) o emprego de palavras que traduzam essa realidade de domínio, as
quais Cristo excluiu expressamente da prática de todos os que a Ele e ao Seu Povo se
entregaram na obediência ao Espírito de Jesus — "Hierarquia" (santa soberania...),
"Sumo Pontífice", "Santo Padre", etc. — termos ligados a uma ideia de poder, ainda hoje
dominantes no seio da Cúria romana, mas que teremos de fazer um grande esforço de fé
para os considerarmos linguagem de um passado errado e do qual este concilio pede
perdão à Humanidade;
e) a função ou serviço confiado a Pedro — «confirma os teus irmãos...» não tem, no
contexto ou na letra do Evangelho, qualquer conotação de poder, de dominação, sendo,
por isso — e só!—, um serviço de direcção;
f) Jesus instituiu o "serviço" à comunidade dos crentes que confiou aos Apóstolos e,
nestes, aos bispos — os επiσкoπos - e, depois, aos anciãos — os πpεσβυτεpos, ou
presbíteros — por eles escolhidos; serviço tríplice, na sua função de pregação, de direcção
da comunidade e de assistência, aos quais Paulo chama "dons de Deus" ou "carismas";
Assim, é a Pedro e aos bispos — como legítimos sucessores dos apóstolos — que cabe o
especial serviço de implementação, em cada época, dos meios necessários e mais
adequados ao cumprimento do mandato que Jesus lhes confiou: «Ide por todo o mundo,
pregando tudo o que vos ensinei...»;
g) Deste modo, também a existência de uma classe sacerdotal ou cultual, ou de um
"sacerdócio ministerial", não pode continuar numa eclesiologia que se queira
fundamentada na Revelação; não significa isto que o sacramento da ordem fique
esvaziado de sentido. Ele continuará, com o sentido que Cristo lhe assinalou — «vistes o
que Eu fiz... assim deveis vós fazer uns aos outros...» — como sinal do dom de Deus à
Humanidade de "servidores" desta, enquanto peregrina para a Jerusalém Celeste. Mas
não pertence ao património da revelação que tais servidores se constituam em "classe"
social que os distinga dos demais cidadãos, crentes ou não no mistério de Jesus;
h) A Cúria Romana é uma instituição da história da Igreja, exercendo o colégio dos
cardeais apenas a função de conselheiros e assistentes do sucessor de Pedro Apóstolo que
a eles nunca fica vinculado; a transformação das pessoas suportes dessa função curial em
"corte" de uma "Monarquia Pontifícia" é um erro histórico que a nós incumbe reparar;
este Concílio pede perdão a Deus e à Humanidade pelo triste espectáculo que alguns
homens da cúria romana deram, durante séculos, em contradição com o Espírito de Jesus
exaltado na cena do "lava-pés", na última ceia, apropriando-se de um serviço e
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
110
transformando-o em poder! E a eles — seus titulares — em "príncipes", intitulando-se,
mesmo, "príncipes da Igreja";
i) A função ou serviço dos bispos à Кoivωviα (comunhão dos crentes) — é,
principalmente, o de ensinar. Em união com Pedro, os bispos, como sucessores dos
apóstolos, mais que ninguém, devem viver o Evangelho, tê-lo no coração, para que o
possam comunicar com verdade aos irmãos da grande comunhão;
j) Neste esforço permanente de comunhão entre a cabeça e os membros
encarregados de transmitir a Mensagem de Libertação a toda a Humanidade, ninguém
pode fazer uma exigência selectiva de assistência do Espírito de Jesus. Este não actua
mecanicamente, mas exige de todos os que quiseram um dia ser seus instrumentos na
transmissão da Sua Mensagem — Verbo de Deus à Humanidade — que se esforcem, que
oiçam os teólogos, os cientistas e todos os que com o seu labor podem contribuir para
esclarecer; de um ponto de vista humano, o estado da questão a decidir;
k) O chamado "magistério da Igreja" é, afinal, a comunhão de esforços de todos
para o bem comum. Aí, sim, para que a verdade a que chegaram — depois de esgotarem
as ciências — não seja a vontade de um grupo humano, mas a vontade de Deus, legítima
é a invocação do Espírito que tudo santifica e afasta o pai da mentira;
l) Deste modo, a infalibilidade de Pedro outra coisa não é que a prometida
assistência do Espírito de Jesus, para que sua proclamação nunca seja havida como a
verdade da autoridade..., mas sempre e só apareça ao Povo de Deus, como a autoridade
da verdade! Não é a pessoa de Pedro que conta, mas sim o serviço que presta à
comunhão dos santos. E, na prestação desse serviço — visto que o faz voluntariamente e
por vocação de Deus —, tem o dever de saber «discernir os espíritos» e dizer com toda a
humildade de João, o Baptista: — «a mim importa, apenas, ocultar-me», para que só a
Verdade do Espírito de Jesus seja visível a toda a Comunhão caminhante!;
m) Porque há "espíritos" — e cada vez mais, em nossos dias — que nada têm que
ver com o Espírito de Jesus. Pior que se lhe opõem frontalmente. E existem mesmo no
coração de pessoas de boa vontade. Os exemplos de Pedro Apóstolo — caindo na
tentação de repreender Jesus por lhes ter dito que ia sofrer obrigando Cristo a chamar-lhe
nada menos que Satanás, pois o espírito de Pedro só via pelo funil humano; e dos
apóstolos que pediam fogo sobre os samaritanos que O não receberam, levando o Senhor
Jesus a repreendê-los severamente, porque não sabiam de que espírito eram;
n) A Igreja — todo o Povo de Deus, nele incluídos os seus servidores — nunca pode
perder de vista que não está «do lado de Deus» contra a Humanidade, tentando baptizá-
-la! Mas tem de agir sempre como estando no seio da Humanidade perante Deus! Só o
Espírito de Jesus lhe pode dar a força de fermento e de sal… para transformar — sem
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
111
pressas, sem atropelos, sem imposições, sem medos, sem angústias, sem certezas
absolutas — a mesma Humanidade. Respeitando carinhosamente o ritmo, as fraquezas e
os percalços da Humanidade ou seus grupos e pessoas concretas;
o) O único magistério admissível na Igreja, neste sentido de respeito pelo homem e
seus ritmos (culturas, tradições, ideosincrasias...), e que, do mesmo passo, respeita o
Espírito de Jesus, é-nos apresentado por esta fórmula dada por João XXIII, um dos
sucessores de Pedro Apóstolo que mais dele se aproximaram: «Saltei da barca e, sobre as
ondas, caminho ao encontro de Cristo que me chama. A Igreja deve renunciar a suas
certezas, deve abandonar a segurança da barca... e caminhar decididamente sobre as
ondas. Chegará a noite, a tempestade, o medo. Porém, é esse o seu caminho, do qual não
pode retroceder. A Igreja está chamada para ir ao encontro do mundo».
Aqui chegados, apenas de olhos cravados no objectivo da constante e serena busca
da autoridade da Verdade e tentando, com toda a peregrinação, encontrar nela o Espírito
de Jesus, o Concílio, tendo à sua frente Pedro II, sucessor do Primeiro Pedro — o
Apóstolo — e a quem confiou todo o seu labor, tomou as seguintes deliberações,
julgadas, na unanimidade dos votos, como verdadeiras "línguas de fogo" a guiar a
caminhada futura do Povo de Deus:
1. A Cúria Romana é extinta, continuando, porém, todos os serviços em função,
com a finalidade única de garantir a transferência dos processos para um novo serviço de
apoio a Pedro que vai ser implementado de forma simples, nas proximidades da cidade de
Roma;
2. A partir de agora, não haverá, pois, mais nomeações de cardeais. Os ainda
existentes poderão requerer a respectiva jubilação ou, como bispos, a sua nomeação para
dioceses em vagatura e nas quais ainda se sintam úteis ao serviço do Povo de Deus;
3. As funções de conselho de Pedro, para as diversas matérias, passam para os
bispos que exercem funções pastorais em Roma, aos quais se juntarão os presidentes das
conferências episcopais, segundo os momentos e as necessidades;
4. As expressões de cunho sacral que ao longo da história referenciaram o poder na
Igreja, no sucessor de Pedro Apóstolo, nos bispos e presbíteros — "Santa Sé", "Santa
Igreja", "Santo Padre", "Sumo Pontífice", "Soberano Pontífice", "Cúria Sagrada",
"Hierarquia", "Santa Hierarquia", "clero", "padre", "sacerdote", "sacerdócio ministerial",
ou similares, as quais, não sendo bíblicas e impondo perspectivas erradas da existência de
um poder, uma relação dominial de alguns sobre a caminhada histórica do Povo de Deus
para o Reino anunciado por Jesus — relação, de resto, sempre vigorosamente afastada e
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
112
repudiada por toda a Sua Mensagem — são abolidas e definitivamente proibido o seu
futuro uso em quaisquer circunstâncias, pregação ou documento emanado de todo o
serviço eclesial;
5. Por consequência, a distinção histórica e jurídica entre "clérigos" e "leigos" é
abolida de todos os usos da Comunhão Peregrina, onde cada um exerce a sua função,
conforme o respectivo carisma; pretende-se, com isto, a restauração do exemplo das
comunidades apostólicas, onde, na expressão de Paulo, «seguimos o Senhor que se fez
Homem, em tudo igual aos outros homens, excepto no pecado»;
6. Os bispos são escolhidos pelas respectivas conferências episcopais, de entre os
presbíteros ou anciãos que melhores provas tenham dado de humildade, dedicação e
saber no serviço, no discernimento dos espíritos e na capacidade de doação aos que
sofrem, depois de ouvida a respectiva comunidade cristã, segundo processos a
estabelecer localmente, sempre no respeito pelos costumes e tradições de cada
comunidade; a ratificação dessa nomeação pertencerá a Pedro, em união com todos os
bispos e cristãos que nela participaram;
7. Todos os cristãos, independentemente da raça, sexo, estado, instrução, profissão
ou capacidade económica, podem prestar à Comunhão Peregrina o serviço presbiteral,
segundo o respectivo carisma, desde que, para tanto, se sintam chamados pelo Espírito
Santo de Deus e hajam demonstrado na vida individual, familiar, profissional e social
serem pessoas de uma confiança ilimitada em Jesus; a escolha de qualquer cristão para o
serviço presbiteral da Igreja será efectuada por um processo de consultas a todos os
cristãos da comunidade onde a sua falta se faz sentir, sendo critério de idoneidade o
tratar-se de verdadeiro ancião (anciã) na fé e no testemunho que dá da entrega ao
serviço de toda a Comunhão; a ratificação da nomeação pertence ao bispo ou bispos da
respectiva diocese, depois de concluído o processo referenciado;
8. O diaconato ou quaisquer outros serviços, nas comunidades cristãs onde as
respectivas funções sejam reclamadas, podem ser conferidos a pessoas, dentro das
mesmas coordenadas, que para cada serviço estejam vocacionadas e para ele sintam o
respectivo "carisma";
9. Seja qual for o serviço que preste à comunhão dos crentes, a nenhum servidor é
permitido o uso de vestes ou insígnias que o distingam das demais pessoas. Como nos
Apóstolos que seguiram o Mestre, a única distinção admissível é a do exemplo de
santidade das suas vidas e o do Amor que praticam para com toda a Comunhão;
10. A todo o servidor na caminhada do Povo de Deus que, não auferindo
profissionalmente ou de outra fonte rendimentos capazes do próprio sustento e — sendo
caso disso — do respectivo agregado familiar, as comunidades cristãs, em espírito de
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
113
partilha, cuidarão da forma localmente mais prática de ir ao encontro das necessidades
daqueles que vivem a entrega ao respectivo serviço;
11. Os bispos que presidem a comunidades de crentes no mistério de Jesus cuidarão
da instituição de formas de solidariedade entre os servidores do Povo de Deus, de forma
que a nenhum falte o necessário para uma vida condigna, quer durante o tempo em que
exercem a respectiva função ou serviço, quer em situações de incapacidade por doença
ou idade;
12. Este Povo que caminha para a Cidade de Deus será sempre uma pequena
porção da humanidade, mas inserida activamente no seu seio, como o fermento na
massa, ou o sal no alimento, tentando, por dentro dela, discretamente, transformá-la
pelo Amor — Espírito Santo de Deus — que é doação, entrega total ao outro, sem nada
esperar em troca;
13. Assim, ser cristão é, primordialmente, ser peregrino interventivo pela partilha,
testemunha viva desse Amor ou activista incansável da Sua difusão no coração da
Humanidade, não tanto pelo que diz, mas essencialmente pelas obras que realiza ao
serviço dos irmãos, na caridade;
14. Não se trata, deste modo, de um privilégio, mas de uma tremenda
responsabilidade, como nos vem sugerido pelas parábolas do fermento e do sal. Todo
aquele que aceitou o baptismo de Jesus sabe de antemão que é pelas obras de Amor que
a Humanidade será julgada. E, assim, é impelido a difundir esse conhecimento, para que
não haja surpresas, no dia do Juízo Final; é no surgimento de uma nova Кoivωviα — de
uma comunhão outra — ao modo dos primeiros séculos da Era Cristã, em que todos
partilham uns com os outros o que têm e são, que este Povo dará, hoje, o mesmo
testemunho, levando o nosso mundo a dizer, como ontem, «vede como eles se amam!...»
Neste sentido, o Concílio proclama que Deus está na Base! E que é esta o suporte do
tabuleiro da ponte para a globalização pela intercomunicação do Amor!... — O único
instrumento capaz de salvar a Humanidade da globalização do ódio!
15. De futuro, por isso, será cada comunidade cristã a julgar se determinada pessoa
é digna de receber o baptismo, tendo como critério apenas as provas dadas de
empenhamento na vivência e na difusão do Amor-doação-entrega-total à humanidade,
sobretudo nas pessoas dos mais pobres, dos marginalizados, dos excluídos desta
sociedade; é na vivência familiar de tal empenhamento que as crianças se prepararão
para assumir essa mesma responsabilidade.
Seguem-se, depois, meus irmãos da Cidade de Deus, as páginas que referem as
"ORIENTAÇÕES NO CAMPO DA MORAL".
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
114
— Fruto de grandes e acesas discussões em Brasília, suponho, irmão Pedro
Novíssimo...
— É verdade, irmão Pedro Apóstolo. Os tempos eram difíceis. Até onde poderia ir a
Mensagem do nosso Deus, na interpretação dos nossos conciliares, homens de grande
sentido de doação ao Povo e de coragem na mudança, do que eram "odres velhos"...
Durante muitos séculos a Igreja tomou como impróprias de um cristão atitudes vitais que
só cada um, no uso da sua liberdade e no esclarecimento da própria consciência, estaria
em condições de validar. Chegou-se a um tempo em que a sexualidade humana era
considerada tabu por banda de muitos hierarcas da Igreja e, na prática, o centro da
chamada "Teologia Moral". E a sociedade, fortemente laicizada, respondeu a um sombrio
pan-pecado (tudo é pecado) com um desinibido e libertino pan-sexualismo (tudo é
sexo...)
— Perante esses extremos, que fazer?
— Irmão Pedro Apóstolo, foi preciso muito trabalho, muita oração e muita
coragem, para que do Concílio saísse um conjunto de orientações (não é um código...) ao
Povo de Deus em Peregrinação que não podia parar ou estagnar no pântano da
indiferença de muitos, do medo de outros e da lubricidade geral. Era preciso, sobretudo,
deixar bem claro que a VIDA HUMANA é inviolável, tanto desde a sua concepção, como
através de toda sua existência, até ao fim. Eis, então, o que ficou aprovado:
a) A inviolabilidade da vida humana, enquanto obra do Amor Eterno, e a sua
dignidade incomensurável, advinda do facto da sua participação nessa torrente inefável
que, saída das mãos de Deus, atravessa a história e atinge a sua plenitude no fim do
tempo, quando regressa à origem e contempla, sem reservas e sem tempo, esse mar
imenso da Bondade e da Ternura divinas, exige que todos os povos do mundo se dêem as
mãos e, num gesto sem precedentes, acabem de uma vez por todas com o ódio e a cobiça
que fazem as guerras e com os arsenais das armas que as alimentam;
b) A destruição de todos os armamentos e a reconversão das indústrias da guerra
serão objectivos prioritários da missão da Igreja, no contacto com os chefes das nações,
de modo que a todos tente convencer da necessidade urgente de investir essas somas em
acções humanitárias, a dar de comer a tantos milhões de seres humanos que não têm o
indispensável para o seu sustento, a dar um tecto a quantos vivem ao relento, a vestir a
nudez de muitos, a curar tantos que sofrem doenças e epidemias curáveis e a instruir, nas
letras e na vida, muitos outros dos quais ninguém ainda se aproximou a dizer: Queres?
Vem comigo. Mostrar-te-ei a beleza da vida!
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
115
c) Todos os cristãos estão obrigados, a exemplo do Mestre, a tal aproximação...
Sem ela, é inócua a fé no Deus de Jesus Cristo! Está morta! — No dizer de Paulo. Assim,
lutar, neste campo, por todos os meios ao alcance da Igreja, é para ela imperativo
constitucional, pois, no seu cumprimento, se materializa a verdadeira razão da sua
própria existência no seio da humanidade; não mais o luxo e a ostentação em pessoas
que servem a comunidade dos crentes, porque tudo será investido no cumprimento das
obras de misericórdia;
d) Promover o diálogo e a solidariedade entre todos os povos, de modo a afastar o
perigoso fosso entre os do Norte — mais ricos — e os do Sul — mais pobres —, é, assim,
consequência daquele imperativo do qual a Igreja se não pode afastar, sem traição ao
Espírito do Seu Fundador;
e) Empregar toda a sua energia para que a globalização se não faça à custa de
mais e mais feroz exploração dos pobres, que podem ficar privados de todos os meios de
defesa contra os abusos dos grandes senhores das multinacionais do capital, é,
igualmente, corolário do referido dever cristão da aproximação samaritânica,
transportada para os nossos dias;
f) Entrar, activamente, em todas as formas de denúncia das arbitrariedades
cometidas pelos poderosos contra a qualidade da vida e seus ecossistemas e em
movimentos de informação e formação de todos os habitantes do planeta, no sentido de
os consciencializar para a gritante necessidade de tudo fazerem para não poluir nem
destruir os recursos naturais da Criação, é, ainda, um inalienável dever de todo o cristão e
de todas as suas comunidades;
g) É no escrupuloso cumprimento destes deveres que todo o cristão se assume
campeão dos direitos humanos e defensor da vida em colectividade;
h) No plano da individualidade, para além do estrito dever de acatar os ditames da
consciência e das normas sociais de respeito por todos os direitos da pessoa humana,
relativamente à vida intra-uterina, a Comunhão Peregrina de quantos esperam entrar por
Jesus Cristo, na nova Jerusalém, lutará sempre, com a mensagem evangélica no coração,
para que os mesmos princípios de inviolabilidade e de dignidade de todos os seres
humanos lhe sejam aplicados, por forma a que quem for concebido no seio materno
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
116
possa vir a este mundo, sem atropelos aos seus fundamentais direitos,
independentemente da parcela de tempo que já leve de existência embrionária;
i) A vida humana é dádiva do Criador mesmo quando a fertilização utilize meios
laboratoriais por impossibilidade de uma normal fecundação; mas nunca poderá estar
dependente do arbítrio ou de indiscriminada manipulação de células vivas, mesmo com
fins de elevada relevância social, pois os clones humanos — como pessoas — têm os
mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres de todas as demais criaturas
humanas; e nunca por nunca se pode pensar numa existência de segunda, sem liberdade,
pois sujeitas a um destino predeterminado de simples cobaias ao serviço de interesses
alheios e, eventualmente, inconfessáveis;
j) A sexualidade humana, como complexo de elementos psicofisiológicos e
anatómicos definidores do ser homem ou mulher, é obra do Criador que assim quis
associar as próprias criaturas à imensa alegria do Seu acto supremo e misterioso de
expansão da Sua Divina Essência — o Amor; toda a doutrinação que não respeite este
princípio não é seguramente inspirada nos textos da Nova Aliança e atenta contra a
própria natureza dessa incontornável Festa da Vida que Deus imprimiu no coração da Sua
Criatura;
k) Como tal, a sexualidade humana ou é vivida dentro destes parâmetros —
expansão do Amor criador, realização suprema de todo o ser humano, permanente festa
da vida — ou se transforma numa perversão sem regresso, não só pela turpitude da
exploração comercial que escraviza homens e mulheres, mas também pelos degradantes
níveis de irracionalidade que atinge;
l) Para quem vive a sexualidade dentro daquelas metas finalísticas do Acto Criador,
nenhuma interferência é legítima, pois só o juízo da consciência recta de cada um pode
ditar a norma do agir, em cada momento, para que as expressões de doação mútua
brotem espontaneamente de dois corações em festa;
Disse-vos, irmãos desta magnífica e na terra impensável Assembleia de Santos, que
vos mostraria as mais relevantes medidas tomadas pelo Concílio de Brasília. Ora, depois
das actas que se reportam à doutrina, vem, por fim, o decreto que define a revolução
empreendida, porque exigida por todas as comunidades cristãs e não-cristãs, mas
atentas ao fenómeno da coerência entre a moral que se prega e a que se vive:
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
117
«A existência do Vaticano, como Estado dentro de outro Estado, não tem hoje
qualquer sentido apostólico, opõe-se aos princípios fundamentais da Boa Nova do Reino
de Deus e é motivo de não poucas preocupações pastorais e mesmo de algum escândalo
entre as comunidades cristãs; assim, vistos os estudos efectuados pela comissão especial,
por este Concílio e acolhendo as sugestões e a boa vontade das autoridades italianas.
Este Concílio Ecuménico de Brasília DELIBEROU — sendo esta decisão
simultaneamente publicada, na parte em que lhe diz respeito, pelo Estado Italiano, em
seu órgão oficial:
1. É revogada a Concordata entre a então chamada "Santa Sé" e o Estado Italiano;
2. Em sua substituição, será celebrado entre Pedro II, como sucessor do Primeiro
Pedro-Apóstolo e, por isso, como entidade responsável máxima de todo o serviço eclesial
— por um lado —, e o Presidente da República Italiana e o Ministro das Relações
Exteriores do Governo Italiano — por outro — um simples convénio, pelo qual, sem
prejuízo de continuarem sedeados em Roma os serviços essenciais da Igreja, são
entregues ao património do Estado Italiano todos os bens imobiliários do Vaticano e de
CastelGandolfo que deles cuidará e manterá acessíveis ao público, obrigando-se à sua
reconstrução e classificação no plano do património museológico do País, nele incluído a
chamada Basílica de S. Pedro e respectiva praça berniniana, sem prejuízo de estes dois
espaços continuarem a ser o ponto de encontro por excelência de todos os cristãos e não-
-cristãos do mundo inteiro que ali acorram para celebrar livremente a sua fé ou proceder
a reuniões ou encontros de pessoas de boa vontade que buscam a paz e a concórdia entre
os povos;
3. Em contrapartida, o Estado italiano coloca à disposição da Igreja-Comunidade-
-Cristã que se revê na sucessão do serviço de Pedro um edifício moderno, na periferia de
Roma, para sede dos respectivos serviços centrais, reconhecendo a esse local um estatuto
de "legação especial", semelhante ao das legações diplomáticas — uma especial
imunidade — sendo, ainda, da responsabilidade do Estado italiano a manutenção de um
serviço de segurança eficaz, quer à pessoa de Pedro, quer às instalações dos serviços
sedeados no país; no plano internacional, caberá ao Conselho de Segurança das Nações
Unidas deliberar o reconhecimento dessa imunidade à pessoa de Pedro e às suas
representações (conferências episcopais) nos diversos países, observado princípio da
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
118
igualdade, relativamente aos chefes e delegações de outras confissões religiosas, de
acordo com a respectiva Carta e demais normas do Direito Internacional;
4. Com toda a veemência e caridade cristã, com o coração nas mãos, lágrimas nos
olhos e muita dor na alma, todos os bispos do mundo, com Pedro à frente, pedem aos
irmãos que em Roma se refugiaram em situação ilegal e contumaz, apropriando-se dos
imóveis e de outros pertences do Vaticano, para fins inconfessáveis e que a consciência
cristã universal e o mais simples bom senso reprovam, que deponham a contumácia,
olhem de frente Cristo crucificado, vejam o sangue por todos derramado e n'Ele
encontrem motivo seguro de arrependimento que os leve a regressar à casa do Pai,
dizendo como o filho pródigo da parábola: Pai, perdoai-nos, que pecámos contra Ti e
contra o Céu!... A todos o Concílio garante que outro gesto lhe não caberá, senão o do pai
enternecido que a todos abraçará e mandará fazer uma grande festa...
5. Neste sentido, aguardar-se-á o tempo razoável para que as conversações com o
grupo de irmãos que se rebelaram contra Pedro dêem esses almejados frutos de
ressurreição; porque tais bens passam, a partir de agora, para a posse do património do
Estado Italiano, a ele incumbirá fazer, esgotado esse prazo e todo o processo de
aproximação, o que tiver por conveniente, com a finalidade de recuperar e classificar
esses imóveis e seus recheios como espaços museológicos do País e, como tais, abertos
aos visitantes.
Em consequência:
6. É extinto o Instituto para as Obras Pontifícias (IOR), sendo os respectivos bens
distribuídos pelas conferências episcopais, para financiamento de projectos de
solidariedade julgados prioritários para minorar o sofrimento e os atrasos estruturais das
populações mais carendadas dos respectivos países ou dos países que mais necessidades
lhes fizerem sentir em cada ano;
7. As chamadas "Nunciaturas Apostólicas "são extintas, considerando-se, de futuro,
representações da cabeça da Igreja apenas as conferências episcopais, sendo o respectivo
presidente o responsável pelas relações internas — com Pedro — e externas com o Estado
respectivo;
8. Os presidentes das conferências episcopais são eleitos democraticamente pelos
respectivos pares;
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
119
9. Os seminários, como instituições de formação do extinto clero, terminam nessa
função, devendo reconverter-se em centros de aprofundamento da fé e do testemunho
evangélico no mundo, abertos a todos os cristãos que desejem preparar-se melhor para o
serviço das comunidades cristãs;
10. Os actuais membros do extinto clero que o desejem, podem solicitar ao
respectivo bispo ou a Pedro — conforme se trate de presbíteros ou bispos — a
exoneração de funções e dispensa dos respectivos votos, afim de melhor se encontrarem
consigo próprios e, em profunda reflexão e oração, escolherem livremente o estado civil
em que querem viver e servir;
11. O único distintivo que socialmente identifique o servidor da comunidade cristã
será, doravante, a sua conduta de vida em harmonia com as regras básicas de
simplicidade e caridade evangélicas;
12. São abolidos da prática da Igreja central ou local todos os títulos honoríficos ou
para-funcionais, como os de "monsenhor" e de "cónego", solicitando este Concílio aos
actuais titulares que, voluntariamente, renunciem a todas as conexas formas e sinais de
identificação do respectivo título, de ostentação e / ou privilégios;
13. Fica suspenso o chamado "Código de Direito Canónico". Um comissão nomeada
por este Concílio vai estudar a melhor redacção para as regras de procedimento dos
membros da Peregrinação — regras muito simples e sempre cheias do Espírito que paira
sobre esta Assembleia — tendo somente em conta que, sendo o Evangelho o único Código
da nossa caminhada, tudo o resto só pode ser instrumento de perfeição de situações
concretas, para que nenhum dos caminhantes se perca...
— Irmãos, peço novamente ao nosso querido fraterlino Estêvão e com a vénia
desta Assembleia de Deus que continue o relato do que se seguiu. Ele, melhor do que eu,
tem memória sólida e expressão fluente para contar tudo, mesmo aquilo que, a mim,
passou de lado. E a voz que o Nosso Deus lhe deu é verdadeiramente celestial.
As inebriantes vozes do coro dos anjos e santos, com o calor do Espírito Trinitário,
fizeram-se ouvir, então, em sinal de aprovação da proposta de Pedro. E logo a voz suave
do fraterlino:
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
120
— Bom, irmãos, todos os documentos conciliares, com a assinatura promulgatória
de Pedro, foram lidos, em voz pausada, através de potentes altifalantes que faziam ecoar
a voz pelo Planalto, num dia de perfeita paz da natureza. Sol amazónico, translúcido, céu
de um azul encantador, miríades de aves de todas as espécies e feitios que há no maior
pulmão do mundo, cantando cada uma seu salmo de louvor ao Criador e esvoaçando por
cima das cabeças da multidão, em sobressalto, pois nunca tinham visto por aquelas
bandas juntas tantas cabeças e instrumentos coloridos em agitação permanente. O
silêncio da multidão só era cortado por palmas, por vivas a Cristo Redentor e a Sua Mãe
Aparecida, a Pedro e à Igreja, como aconteceu quando o leitor anunciou o fim do Estado
do Vaticano, do clero, dos cardeais, das sedas escarlates em homens que apenas
deveriam vestir o escarlate do sangue de Jesus pela Humanidade, como Ele se
esfarrapando pelos pobres, pelos injustiçados, pelos sem tecto... e da possibilidade de
todos os cristãos, sem discriminação de sexo — desde que chamados pelo Espírito de
Jesus e comprovado o respectivo carisma — puderem dedicar-se ao serviço do
presbiterado e, consequentemente, do episcopado, num tema que vinha sendo muito
caro a todos os brasileiros, cujas comunidades cristãs estavam à beira da ruptura por
falta de quem presidisse à celebração pascal da partilha do Pão Eucarístico! Aí, a
assembleia espalhada por todo o Planalto vibrou de entusiasmo e ficou por minutos
dando largas à sua alegria e satisfação. Mas, no ponto em que a cassete acabou e o meu
pobre gravador de frade do Monte Célio... se desligou automaticamente, um grupo de
jovens de um sector próximo do palco onde se desenrolavam as cerimónias irrompia
agora com vibração completamente entusiástica em vivas a Pedro, à Igreja, ao Espírito
Santo de Deus. A multidão, logo contagiada, fez o Planalto estremecer com uma salva de
palmas como jamais alguém no mundo presenciou ou ouviu. Os vivas, os cânticos e, por
fim, o «Christus vincit...», seguido do «Tu es Petrus...», produziram tal emoção colectiva,
que logo obrigaram Pedro a levantar-se e, erguendo os braços para agradecer e acalmar,
arrastou a mole imensa ao mesmo gesto e, de braços bem alevantados — como via os de
Pedro —, vitoriava, em delírio, tudo o que acabara de ver e ouvir.
De lágrimas abundantes escorrendo pelas faces e com a emoção bem expressa no
rosto, perante o espectáculo grandioso que enchia o Planalto, uma das teólogas que mais
trabalharam na preparação dos documentos finais, segredou ao ouvido de Pedro:
«Irmão, este foi, na verdade, um Concílio em que o Espírito Santo pôde falar!...»
Pedro sorriu condescendentemente, ajoelhou-se e prostrou-se no palco, coberto
da serapilheira, preparando-se para dar início à celebração eucarística. Depois, olhando
para o lado e vendo Leonardo Boff — o teólogo seu patrício que sempre admirou —
ajoelhado e chorando também, aproximou-se dele, repetiu-lhe o dito da irmã teóloga e
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
121
acrescentou, em notório ar de contentamento: «Sim, irmão, por isso é que eu penso: —
Que maravilha este grande "dogma" revelado pelo Deus de Jesus Cristo — o da Liberdade
Humana!... Quando o Homem quer ser recto, justo, confiante, com ânsia de verdade, o
Espírito de Jesus superabunda na distribuição dos bens! Louvemos o Senhor, irmão!»
Depois, voltou ao seu lugar e ficou em silêncio e recolhimento. Todos quantos ali
estavam e o espaço o permitia seguiram o gesto de Pedro. E, durante longos minutos,
fez-se silêncio absoluto no Planalto. Só ao entusiasmo incontido e incontível dos gorjeios,
em longínqua sinfonia, das aves todas que tem o céu que cobre a infindável chã
amazónica era permitido violar uma ordem espontaneamente imposta e aceite por
todos. Depois, num conjunto polifónico impressionante, com a suavidade e a beleza
musical de uma composição celestial, ouviu-se o coro, acompanhado da orquestra
sinfónica, entoar as estrofes do hino « Veni, Sancte Spiritus, et emite coelitus lucis tuae
radium... Veni Pater pauperum... Veni Lumen cordium... Veni Dator munerum... Lava quod
est sordidum... Riga quod est aridum... Fove quod est frigidum... Sana quod est
devium!...» («Vem, Espírito Santo, e emite um raio da Tua luz celestial... Vem, Pai dos
pobres... Vem, Luz dos corações... Vem, Dador de todos os bens... Lava o que está sujo...
Rega o que está árido... Aquece o que está frio... Cura o que está doente!...»)
No momento da homilia, Pedro, de pé, diante da maior assembleia que até então
tinha visto, agarrado a um cajado de pastor, feito de pau-preto e encimado por uma
tosca imagem de Cristo ressuscitado, obra dos caboclos de S. José de Nigaci, na querida
Amazónia dos pais, começou assim, com todo o vigor de uma voz robusta mas
suavemente inconfundível:
— Irmãos, todos vós que amais e viveis o Espírito de Jesus que é um Espírito de
Amor: — Aleluia!... Aleluia!... Aleluia!... Porque o mundo estava surdo e ouviu-nos!
Porque o Nosso Senhor Jesus abriu os ouvidos a toda a gente! Bendito seja o Senhor do
Céu e da Terra, porque fez maravilhas! E querem maior maravilha do que esta que esta-
mos a viver? Então, numa altura em que o inferno tenta vomitar sobre nós todo o
potencial de iniquidade de que é capaz o Espírito de Deus congregou-nos neste Planalto
do mundo, para lhe respondermos com toda a coragem de quem confia no Senhor: Não
tentarás ao Senhor Teu Deus? Que não são os impérios deste mundo que buscamos, que
decididamente estamos aqui a dizer não à vaidade e ao poder, que apenas nos importa a
comunhão com os irmãos e de todos com o Nosso Bom Deus?!...
Irmãos, o que este Concílio aqui acaba de dizer ao mundo é que só o Amor salva! Só
a partilha é capaz de levar a Humanidade à paz! Mas que a partilha exige
desprendimento dos que possuem os bens. E que só os que confiam no Senhor se atiram à
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
122
agua! Vede, irmãos, com as reformas que foram anunciadas, não pretendemos, não
pretende a Igreja-Comunhão-de-Deus causar escândalos, levar à cena peças es-
pectaculares, para que nos aplaudam. O que ficou aqui decidido é, antes de mais, um
acto de humildade, ao acabar com o erro e dele pedir perdão a todas as gerações que nos
precederam. A história assistiu a muita miséria sentada no lugar de Pedro Apóstolo!
Nestes tempos de rápida mudança e de aceleração da história, o Espírito de Jesus que
invocámos e buscámos deu-nos essa perspectiva das necessidades dos que não têm pão...
E o Concílio decidiu-se pela entrega, pela partilha de tudo o que a Igreja acumulou
indevidamente ao longo dos séculos da sua velha história. Para alimentar quem tem
fome, para dessedentar quem morre de sede, para vestir quem anda nu e esfarrapado. E,
também, para arrancar, como exemplo forte, um grande movimento internacional de
partilha, de forma a que os ricos ponham ao serviço dos pobres o que conquistaram, nem
sempre com legitimidade e humanidade. Deixámos as sedas e os privilégios, despimos as
honrarias e as grandezas deste mundo... para vivermos como o nosso Mestre que não
tinha sequer onde reclinar a cabeça! Porque a Igreja não vive para si, mas para ser
fermento que levede a massa que todos os povos hão-de comer. Medo do terrorismo?
Não, irmãos, não temos. O terror só nasce onde impera o ódio. Onde há povos
espezinhados pelos impérios. Não, a nossa luta será pelo fim dessa visão da Humanidade.
A nossa luta é por uma paz assente no Amor do Espírito de Jesus — única via da Justiça e
da Verdade. Da Verdade, sim, irmãos! Não da verdade da autoridade, como até agora se
viveu. Mas da autoridade da Verdade, como se tentará viver! Caminharemos sobre as
ondas, provavelmente muito alterosas. Mas a nossa fé será a nossa prancha. Parti,
irmãos, parti para as vossas terras, levando convosco este fogo do Espírito. Alimentai-o
com as vossas boas obras. Partilhai sempre com os mais pobres o que tendes. Ninguém
chame seu ao que lhe pertence e tudo seja feito de todos. O inferno será derrotado,
quando vir que nos amamos! Esta é a nossa revolução! A nossa violência! A violência da
Boa Nova! E, nos dias de dor, nunca esqueçais, irmãos, aquilo que o Senhor disse:
«Filhinhos, confiai em mim, Eu venci o mundo!»
Para todos aqueles que continuam a ousar desafiar a Bondade e a Misericórdia
infinitas do Nosso Bom Jesus, negando-se a qualquer diálogo com os nossos irmãos
emissários deste Concílio, ousamos nós também rezar, pedir insistentemente ao Senhor
que domina os corações, implorar ardentemente para que se afastem da loucura dos
infernos, deixem de vez a fractura que estão a causar no Rosto Santo de Deus, peçam
perdão e se salvem. A eles, também, se dirige o apelo final deste Concílio: Irmãos, tende
confiança... e a certeza: «As portas do inferno não prevalecerão!...»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
123
Já perto da noite, quando o frio amazónico começava a tolher os mais
desprevenidos, as palmas aqueceram por muito tempo o ambiente do Planalto que, em
milhões de anos, nunca tal presenciara. No dizer de um dos melhores cronistas do
Concílio de Brasília: «A Amazónia foi a grande metáfora do Amor!...»
— «Assim Deus amou o mundo!...»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
124
IV
Meretrix magna Babiloniam corruit...
No Vaticano, Di Tronchetto, que se fechara no gabinete, acompanhara emocionado
em frente ao televisor o desenrolar da cerimónia em Brasília. Bem refastelado numa
ampla poltrona, grosso charuto havano fumegante na mão esquerda, mesinha ao lado,
com variedade de digestivos, águas minerais e máquinas prontas a produzir a bebida que
mais lhe agradasse, o antipapa, ao ouvir as decisões do Concílio sobre o fim do Vaticano,
começara a sentir-se apopléctico e convulso. — Mais um espresso, generosamente
batizado com grappa... — pensou — seria o bastante para afastar aquele estado. Assim
fez. No fim, acende novo havano. Psicologicamente, a situação parecia estar sob
controlo. Mas, quando nas imagens que lhe chegavam de Brasília, através do plasma
gigante que os "veneráveis" lhe prodigalizaram, vê Pedro em grande plano, coberto de
serapilheira, prostrando-se e, com ele, toda a assembleia de mais de dois milhões de
pessoas, em silêncio perturbante, terminado alguns minutos depois pela invocação
soleníssima e quase misteriosa do Espírito Santo de Deus, o velho arcebispo de Siracusa
não resistiu. Começou a soluçar, cada vez com mais violência. Entre expectorações e cada
vez mais sôfregas fumaças tiradas ao havano, sobreveio-lhe uma tosse de rebentar o
peito e fazer saltar os olhos. Logo a seguir, vieram os suores frios, uma dor aguda a
apertar-lhe o lado esquerdo do tórax, a respiração a encravar-se na garganta. Di
Tronchetto prostrou-se, também, mas para não mais se levantar.
Os "veneráveis" que na sala ao lado faziam as contas dos negócios sujos da noite
anterior — quantos blindados roubados aos russos, quantos mísseis vendidos aos árabes,
quanta cocaína e heroína traficadas para Amesterdão e Zurique, quantas esmeraldas,
rubis e safiras creditadas em Nova Iorque, quantas mulheres a render em Hamburgo,
Berlim, Paris, Lisboa, Londres, Roma, Istambul, Moscovo, nos confins da Ásia ou das
Américas, quantos meninos e meninas vendidos para os paraísos do sexo — tendo-se
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
125
apercebido de ruído estranho, acorreram ao gabinete do "seu" papa, rebentaram a porta
a pontapé e verificaram que estava morto. O televisor continuava ligado e a transmitir,
em directo de Brasília, a Eucaristia, estando Pedro II no momento da homilia, a pedir a
Deus perdão para a rebeldia de quantos ousaram fracturar a unidade da Igreja...
— O caralho!... (— Esta e subsequentes citações dos diálogos entre os filhos das
trevas que ocupavam o Vaticano são, naturalmente, impróprias para esta Assembleia
celestial, mas era assim o inferno daquela gente, e parece-me importante não dever
omitir nada, a fim de se compreender como os acontecimentos decorriam a uma
velocidade de queda no abismo, prenúncio sensível do fim...) — gritou encolerizado o
"venerável" mais barrigudo, enquanto desferia um soleníssimo coice no aparelho, onde
se via, de Roma, tudo o que se passava no Planalto. O enorme televisor ainda sambou em
cima dos pés, mas acabou por tombar, fumegante, até estoirar e incendiar o aposento,
cujos cortinados e tapeçarias ardiam tão rapidamente como feno seco em dia de vento
do Adriático. Os homens de mão apareceram imediatamente, armados de extintores,
mas o "venerável" barrigudo fez-lhes sinal para não actuarem, enquanto ordenava, na
linguagem própria da sua honorabilidade de comendador do santo sepulcro: «Deixem
arder essa merda!...»
— Mas... chefe, o morto... — Apontava para o cadáver do antipapa.
— É mesmo essa merda que deve arder. — Casquinou o "venerável", por entre a
tosse convulsa, por causa dos fumos — o do charuto e o... "dessa merda"... a arder!
— Vamos imediatamente para outro lado! — Ordenou o "venerável" barrigudo a
todo o conclave já reunido para dar sucessão ao rebelde, cujo corpo ardia, agora,
juntamente com as tapeçarias, os óleos, os brocados, as mesas, as cadeiras e os vernizes.
Nem se incomodaram que o fogo depressa tenha alcançado a riquíssima biblioteca do
papa, mesmo ao lado, começando a destruir impiedosa e irrecuperavelmente exemplares
únicos de valor incalculável. Na ala oposta, os padrinhos debatiam-se entre duas
correntes — ou travestir um deles de "papa"... ou chamar a esse lugar um dos poucos
clérigos que ainda lhes eram fiéis. Venceu, por fim, a corrente mais moderada.
— Mas quem? — Inquiria o "venerável" lingrinhas, sempre armado com dois
terríveis pistolões à cintura e mais outros dois nos sovacos, sustentados por correias de
couro de boi.
— Ora, quem?!... O espanhol, já se vê! — Responde prontamente o barrigudo,
sempre armado nos dedos queimados por eterna ponta de havano.
— Qual espanhol?... — Faz o lingrinhas, de olhar retorcido para o candeeiro do
tecto.
— O da secreta dos banqueiros de Nova Iorque, já se vê — resposta pronta do
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
126
chefe. — Uns carinhas tortas de santaneiros... mas por dinheirinho e poder são piores
que todos nós juntos. Cuidado com eles! Se nos apanham distraídos, logo os veremos
sentados nos nossos lugares! Cuidado, repito.
— Então não percebo — insiste o lingrinhas. — Se os tipos só querem dinheiro e
poder, como é que vamos colocar um deles à nossa frente?
— Este merdas é mesmo burro... — comenta, para a banda, o barrigudo,
meneando a cabeça, com ares de quem se prepara para zaragata. Mas, de imediato,
acalmando o lingrinhas, mestre no manejo dos pistolões, que já deitava a mão direita ao
sovaco esquerdo. — Então tu não vês que nós só queremos quem dê a cara ao público,
fazendo crer que é o papa? Ele só faz o que nós lhe mandarmos. Não lhe damos espaço
para mais.
E votaram todos no espanhol.
Era um bispo relativamente novo, mas muito vaidoso, cheio de tiques nervosos e
gostos esquisitos. Sempre bem perfumado com os melhores produtos de Grasse que a
"irmã" Consuelo lhe enviava, D. Alonso Melilla lbañes, que exercia funções de chefia na
torre rosa do 243 da Lexington Avenue, admirador e muito devoto do santo fundador,
adorava a vida faustosa e a companhia dos endinheirados e poderosos.
D. Alonso aceitou a "eleição" dos padrinhos, claro está. E, com a mesma perfeição
com que vestia a indumentária violácea de bispo, aparecia então diante do conselho dos
"veneráveis", vestido de sotaina branca, romeira branca, faixa de seda branca à cinta,
solidéu branco na nuca, sapatos brancos, meia branca e um grande anel de ouro no
anelar direito, gravado com o símbolo da Cosa Nostra e o escudo do Vaticano.
Só nesta altura, porém, é que o conselho dos "veneráveis" se deu conta de que era
preciso anunciar ao mundo a morte do "papa", para poder entronizar o outro. Correram
então à ala oposta, a ver em que estado se encontrava o cadáver. O fogo lavrava, cada
vez com maior violência, em toda a zona dos aposentos papais, estando mesmo a atingir
o que ainda restava da Capela Sistina. Escadas de bombeiros estavam já lançadas pela
parte de fora, mas ninguém ainda combatia o incêndio, perante o espanto de milhares de
pessoas que acorreram à Praça de S. Pedro, logo que as sirenes dos autotanques e
demais carros de combate às chamas cruzaram Roma a gritar, espalhando o alvoroço por
toda a população. Junto às escadas, centenas de bombeiros, prontos a subir e a intervir,
discutiam acaloradamente com indivíduos fortes, de fato negro e óculos escuros que lhes
apontavam os canos de metralhadoras ligeiras, afirmando que tinham ordens internas
para não deixar apagar o incêndio. Aparece, entretanto, o comandante operacional dos
bombeiros a dar ordens de "destroçar". Carros e pessoal voltaram aos respectivos
quartéis, enquanto o fogo destruía já e para sempre a obra-prima de Miguel Ângelo — o
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
127
"Juízo Final" e os demais frescos do tecto da Capela Sistina que tinham resistido à
borrasca do dia anterior a Pedro II.
— Eh!... Esta merda arde depressa! Onde isto já vai!... Ó Mani, ó Pirró, ó Bari, vinde
cá, caralho! Então não há quem apague este inferno, porra?! — Gritava o barrigudo, com
os outros atrás, tapando o nariz com o lenço.
— O chefe disse para não apagar...
— Pois disse, minha besta, mas era só os aposentos da "merda", ou será que tu
não entendeste, meu estúpido?!
O desgraçado do gorila-mor nem teve tempo de treplicar. Uma bala certeira no
lado esquerdo do tórax deixou-o prostrado com a palavra atravessada na língua e a
metralhadora no chão, à espera que o seguinte na hierarquia tomasse posse dela.
— Atirai-o aí para o meio do fogo! — Ordenou, com frieza de cascavel, o barrigudo.
— Chamo os bombeiros, chefe? — Perguntou o número dois a tremer.
— Não é preciso bombeiros, meninos. Vamos a isto.
O barrigudo tira o casaco, dá ordens para abrir as bocas-de-incêndio, estender as
mangueiras, trazer todos os extintores distribuídos por todos os corredores do palácio.
Toda a gente foi mobilizada e até o novo antipapa, em camisa, despejava água contra o
tecto da Capela Sistina, precisamente quando a última língua de fogo devorava o que
ainda restava de "A Criação".
Ao fim de algumas horas, o incêndio estava extinto, mas as toneladas de água
atirada sem planificação nem perícia tinham danificado irremediavelmente obras de arte
de valor incalculável, não só naquele piso, mas em todos os inferiores.
A população que não arredara pé da elíptica praça berniniana pensara que os
bombeiros tinham decidido atacar o fogo pelas traseiras. E quando notaram que as
chamas se extinguiram, começaram a debandar. Foi então que numa única rádio romana,
controlada pelos homens da Camorra, apareceu uma voz feminina a anunciar, «em nome
das autoridades do Vaticano» que «o papa João Paulo III sucumbira no incêndio que esta
noite deflagrou nos seus aposentos e se estendeu rapidamente a outras dependências do
palácio apostólico». Acrescentava que, na mesma catástrofe, perdeu a vida também «um
dos guardas pessoais de sua santidade».
No dia seguinte, a mesma voz convidava «todos os católicos» para se juntarem na
Praça de S. Pedro, a fim de «prestarem as últimas homenagens ao papa que soube
conduzir os negócios da Igreja Católica no melhor sentido e no respeito pela tradição».
A quantos estrangeiros se interrogavam sobre muitas coisas incompreensíveis em
toda esta história, como a fuga dos bombeiros, após acesa discussão com os gorilas
armados à entrada do Pátio de S. Dâmaso, a ausência de qualquer aparato policial na
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
128
área do fogo, a omissão de pronúncia de quaisquer autoridades sobre a tragédia,
respondia um velho taxista romano, encostado ao seu cansado Fiat: «É assim a Itália,
amigo! Aqui mandam os padrinhos. Desde o Presidente da República ao mais pequeno
funcionário, toda a gente lhes obedece. É a lei da vida. Instinto de sobrevivência.»
Aos funerais do arcebispo de Siracusa, compareceram alguns colegas que não se
encontravam em Brasília. Para espanto de todos, o bispo espanhol D. Alonso
apresentara-se travestido de papa e a presidir à liturgia. Dizia-se eleito pelo "conclave do
Vaticano" na noite anterior, devendo ser "coroado" no Domingo seguinte. Ah! E mais:
que adoptara o nome de João Paulo IV...
Os homens da Cosa Nostra e da Camorra tinham conseguido silenciar toda a
informação vinda de Brasília, de modo que os romanos e a generalidade dos italianos só
podia saber o que se passava do outro lado do Atlântico através de estações de rádio
estrangeiras e emissões televisivas por satélite. Nos bastidores do Concílio, porém, as
terríveis notícias iam chegando a Pedro, por artes de Meneses e Costa e dos seus
colaboradores.
Em Brasília, era o dia das despedidas de quantos, ao longo de vários meses, tinham
dado o seu melhor para uma rápida conclusão dos trabalhos do Concílio Ecuménico.
Pedro estava visivelmente satisfeito ao falar, de manhã, a todos os conciliares.
Quando, porém, se preparava para iniciar a despedida de cada um dos bispos e
teólogos participantes, Logano entra na sala, apressado, com ar de muita perplexidade e
diz qualquer coisa ao ouvido de Pedro. O rosto de Pedro mudou instantaneamente: ficou
tenso e muito triste. Depois de alguns minutos de silêncio, pediu a todos um pouco de
paciência, pois queria comunicar-lhes factos ocorridos na noite anterior em Roma, factos
de uma tal gravidade que o obrigavam a partir imediatamente para Itália. Aguardava,
porém, um comunicado da delegação presidida por Menezes e Costa. E, enquanto
esperavam a chegada do expediente, por telecópia, solicitou a todos os presentes que, ali
mesmo, rezassem pela alma de Di Tronchetto, falecido em circunstâncias não
esclarecidas, bem como pelo fim da situação dolorosa que se estava a viver nos palácios
do Vaticano e na Igreja de Cristo.
Alguns minutos mais tarde, o comunicado chegou, acrescentando à notícia da
morte do antipapa, outros factos de não menor gravidade, como a do incêndio que
devorou os aposentos do papa e tudo o que ainda tinha ficado de pé na Capela Sistina,
após o temporal, e — pasme-se! — a da escolha, pelas máfias, para suceder ao rebelde
siracusano, do bispo espanhol D. Alonso de Melilla Ibañes — que a si próprio se inti-
tulava "o papa do século". O telex da delegação chefiada por Menezes e Costa atestava,
por fim, que D. Alonso assumiu o significativo nome de João Paulo IV.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
129
Pedro leu o texto perante a assembleia em voz pesarosa e disse, em lágrimas:
— Irmãos, o calvário da Igreja continua! O Senhor nos acuda! Parti, irmãos, para as
vossas Igrejas locais e fazei tudo o que estiver ao vosso alcance, para que todo o Povo de
Deus sinta esta segunda crucificação do Mestre como em sua própria carne e, comigo,
chore... e, comigo, ore... sem cessar, comigo force o Misericordiosíssimo Coração de Jesus
para que, com a intercessão de Maria, Sua Mãe e Mãe da Igreja, nos conceda a graça do
perdão, do arrependimento sincero e da unidade e da paz da Sua Igreja. O mundo dos
pobres, dos que sofrem na pele as injustiças de regimes opressores e corruptos, não se
compadece com este tipo de atitudes fraccionárias e de mau gosto dos homens do crime
organizado que sublevaram e mantêm em rebelião alguns cristãos que o inferno cegou,
para que não vejam a realidade. Irmãos, é preciso dizer ao mundo que a fraude instalada
em Roma nada significa para o êxito da missão de Pedro. Que o opróbrio cairá sobre os
que na cloaca se meteram e aí, voluntariamente, se mantêm. Que, se todos quiserem,
com a força do Espírito, tudo será renovado. Vamos em frente, irmãos! As portas do
inferno nada poderão contra a Igreja. Se tudo o que fizermos levar o selo da doação aos
que sofrem, o selo do Espírito de Jesus, nada temos a temer! É preciso que todos se dêem
conta de que em Brasília morreu um império. E que os respectivos "súbditos" começam a
aprender a obedecer apenas à autoridade da Verdade! Os povos vão reconhecer a nossa
acção pela Humanidade, se virem em todos — bispos, presbíteros e demais servidores da
Comunhão Peregrina —pessoas que deixaram os pergaminhos de outrora e se viraram
exclusivamente para as misérias alheias. Pessoas que se fazem próximas dos que sofrem,
que lhes tratam as feridas, que lhes dão de comer; que as curam das doenças, que as
elevam à dignidade de filhos de Deus! Ide e rezai, ide e trabalhai, implantai nas vossas
dioceses as reformas de Brasília — o Espírito de Jesus — que vos levará a trocar
definitivamente e em qualquer circunstância as sedas pela estamenha, os sinais de poder
pelos instrumentos de entrega arrojada e voluntariosa aos humildes, a morte para o
espírito deste mundo... pela vida que nasce deste Espírito e vos conduzirá, com o Povo de
Deus, para a Verdade da Vida Eterna. Irmãos, vivei como Paulo nas suas atribulações,
mostrando sempre que é Cristo e só Ele o vosso viver e que nesse viver de entrega, de
Amor, quereis incendiar o mundo dos corações de boa vontade! Então, a crise actual será
breve, as portas do inferno não mais vomitarão sobre a Humanidade a sua mentira e as
convulsões de hoje se transformarão em paz, porque ninguém pode o que quer que seja
contra o Espírito Santo de Deus! — Concluiu.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
130
Logano foi instruído no sentido de comunicar imediatamente à delegação em
Roma — que, terminado o Concílio, passava a "Comissão para a Unidade", dependente
directamente de Pedro II — para continuar os contactos oportunos em ordem ao diálogo
e para preparar o alojamento provisório do Papa e dos serviços necessários. O regresso
de Pedro a Roma ficaria dependente da existência de condições mínimas de segurança e
funcionalidade.
Menezes e Costa era um bom diplomata. E tudo estaria preparado dentro de
poucos dias. Um prédio onde Pedro se alojaria com a respectiva equipa, bem como a
segurança pessoal de todos os seus companheiros e de todas as pessoas ligadas aos
serviços essenciais foram conseguidos secretamente, em negociações com alta patente
do exército italiano, conhecido pela sua luta feroz contra o poder das máfias. Um
aquartelamento desactivado, fora de Roma, era o local escolhido para nova sede dos
serviços do papa. O local era ermo e nada denunciava a nova função do edifício. Os
contactos com o exterior seriam efectuados exclusivamente por telefones celulares e por
satélite, para o que se instalaram de noite, nas traseiras, os meios técnicos julgados
necessários. O batalhão de soldados das forças especiais para ali destacados fora
conveniente e secretamente preparado. Quem violasse a lei do sigilo sobre o que ali
estava a ser guardado seria julgado em conselho de guerra e, se condenado, seria
imediatamente fuzilado.
Righetti partira logo para a capital italiana, juntando-se à delegação papal. Como
bom conhecedor do terreno minado pelas máfias, o ex-cardeal logo preparou Mãe
Salomé para um diálogo telefónico com Alonso, tentando convencê-lo a não tomar posse
de um cargo para o qual sabia bem estar prenhe de ilegitimidade. Do outro lado do fio,
apenas a recusa em alterar o programa do domingo seguinte. Que não havia nada a
fazer, uma vez que «o Concílio tomou decisões ilegais e, por isso, não se lhe devia
obedecer». Que estava a respeitar a história. E que, de futuro, não queria mais conversa
sobre o assunto. Salomé insistiu. Que não, que não era assim. Que o bispo D. Alonso
tinha perfeita consciência de que estava, apenas, a seguir ditames diabólicos do poder
das secretas do crime organizado. Nada feito, porém. O homem desligou.
A Comissão para a Unidade, agora reforçada com a presença de Righetti, não
baixaria os braços, nem a voz, nem a força das suas convicções.
«É preciso que Pedro venha depressa!» — Dizia Mãe Margaritta, insistindo na ideia
de Salomé tentar, por todos os meios legítimos ao alcance da Comissão, obter uma
entrevista com D. Alonso. — «Sabem, irmãos, ela tem dons de muitos desconhecidos...»
Salomé sorriu e os restantes membros bateram palmas.
Assim, enquanto uns preparavam, ao pormenor, a chegada de Pedro, as Mães
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
131
Margaritta e Salomé minariam, como toupeiras, o terreno do Vaticano.
Menezes e Costa, com Righetti e o arcebispo auxiliar de Roma, iria, por seu lado,
tentar encontrar os meios disponíveis, para iniciar uma sistemática campanha de
esclarecimentos à população romana e a todas as legações diplomáticas, para se
absterem de qualquer diálogo com o novo antipapa, mesmo que por ele convidados para
qualquer cerimónia pública no Vaticano. Por outro lado, insistia-se para que o governo da
República Italiana tomasse medidas para encerrar os palácios anexos à Basílica de S.
Pedro, para sua reconstrução, remodelação e classificação como museus, já que lhe
pertenciam, de pleno direito, depois do convénio assinado por Pedro II e pelo Presidente
da República, bem como pelo ministro das relações exteriores, em representação do
governo italiano.
No dia em que Pedro chegara, secretamente, a Roma, depois de muitas hesitações
dos políticos, de ordens e contra-ordens, um coronel do exército italiano, cujo nome
agora vou revelar a esta Assembleia da Cidade Santa — chamava-se Massimo Cristiano —
comandando um corpo especial de tropas e com o auxílio dos mais destacados membros
da guarda suíça, à paisana, bem conhecedores do meio, movimentou forças, pela
madrugada, formando cerco a toda a muralha do Vaticano. Às primeiras horas da manhã,
potentes altifalantes instalados em carros de assalto lançaram o ultimato: «Atenção,
pede-se a todas as pessoas que estão dentro dos edifícios do Vaticano que saiam
ordeiramente para a rua, de mãos cruzadas na nuca e em silêncio, pela única porta
aberta para o efeito — a porta de entrada para os museus, na muralha, lado Norte.
Ninguém correrá perigo se obedecer às ordens do comando que cerca o território.»
Os soldados que, fortemente armados, tinham por missão identificar, um a um,
todos quantos aparecessem àquela porta, esperaram cerca de uma hora para que
começassem a sair algumas pessoas. Entretanto, o comando ia repetindo de cinco em
cinco minutos a mesma ordem, acrescentando «dentro em pouco, abrir-se-á fogo contra
alvos já seleccionados».
Cerca de duas horas depois do primeiro aviso, no heliporto, começou a
movimentar-se, empurrado por quatro homens, um pequeno aparelho que, de imediato,
com hélices em movimento, se preparava para abandonar o local. Foi imediatamente
metralhado pelo fogo das baterias camufladas sobre a muralha e explodiu. Os quatro
ocupantes ficaram irreconhecíveis.
Mulheres, muitas prostitutas, alguns funcionários e bastantes clérigos obedeceram
à voz do comando. Identificados, eram levados em camiões do exército para
interrogatórios.
Faltava, porém, o grosso da coluna que se sabia armado até aos dentes. Alguns
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
132
vultos espreitavam por entre os cortinados das janelas, mas logo se retiravam se
notassem estarem a ser fotografados.
Já perto do fim da tarde, o oficial comandante das forças sitiantes dá um último
prazo a todos os que não haviam ainda abandonado os edifícios do Vaticano: «Dentro de
dez minutos, começará o fogo e os palácios serão tomados pela força!»
Ninguém mais apareceu. Expirado o prazo, o fogo pesado começa a vomitar
metralha sobre os jardins, cobrindo o assalto das tropas. Um ou outro gorila que
apareceu a fazer frente foi logo dominado. Mais adiante, quando os soldados se
preparavam para tomar a Rádio Vaticano, uma enorme explosão mandou pelos ares o
edifício e estilhaçou os vidros da Casina Pio IV. Esta incendiara-se de seguida,
provavelmente por efeito de algum pedaço de material em chama, projectado pela ex-
plosão. Cinco soldados italianos e vinte e três gorilas da guarda pessoal dos "veneráveis"
pereceram na explosão.
O contingente foi reforçado pelos soldados que flanqueavam o Átrio das Quatro
Portas e as tropas avançaram rapidamente para o interior dos museus. Só que aí
depararam com uma resistência que não esperavam: um outro esquadrão do mesmo
exército defendia a entrada no palácio papal. Os comandantes das duas forças
parlamentaram segundo as regras. Mas, sem resultado. Cada um exigia do outro a
rendição. Sem mais. O comandante da força sitiante procurou então ganhar tempo,
simulando diversas diligências e contactos. Era sua intenção distrair o inimigo. Mas
quando fez sinal para atacar foi o fim. Os edifícios estavam completamente minados e o
rastilho ligado a um enorme paiol de munições, no Cortile delIa Biblioteca. Alguém
carregou no botão antes do tempo. O efeito foi o de uma detonação de uma
potentíssima bomba de muitas toneladas de explosivos.
A população romana — que já acorrera à Praça de S. Pedro, aquando da primeira
explosão — ao sentir semelhante rebentamento que abalou a cidade inteira e arredores,
ficou apavorada e as sirenes dos bombeiros, os carros da polícia e do exército a
atravessar ruas e avenidas e a engarrafar todo o trânsito, fizeram o resto. O clima do
terror, do medo, do atentado, da destruição e da morte instalou-se por todo o lado.
Foram mortos todos os soldados dos dois contingentes beligerantes, todos os
"veneráveis", seus gorilas e demais pessoal das máfias que dominavam o Vaticano,
destruídos todos os edifícios, palácios, museus, bibliotecas e a própria basílica de S.
Pedro ficou quase irreconhecível. Depois de dominados os incêndios, apenas se
conservavam de pé meia fachada e parte do duomo, restos das paredes laterais e o "altar
da confissão", com o baldaquino de Bernini completamente intocado, como se nada lhe
tivesse caído em cima.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
133
O Presidente da República Italiana desapareceu. O governo evaporou-se. E os
chefes militares, divididos entre o grupo dos mafiosos e daqueles que há muito
desejavam uma Itália livre do crime organizado de todas as secretas, logo se apoderaram
do aparelho de Estado, tentando, cada um a seu modo, a conquista de adeptos e o
ensaio da contagem das espingardas... A guerra civil era, agora, a realidade cruel de uma
Itália, em grande parte dominada pelas organizações do crime e do terror. Muitos
fundamentalistas islâmicos, vindos de vários países asiáticos e do Norte de África,
juntaram-se ao caos instalado e todos os dias havia assaltos, explosões, atentados a
pessoas inocentes… tudo impune! Nem lei nem ordem! A Itália era, então, um País a
saque, sob o império das máfias, agora unidas sob o comando do "grande imperador",
com trono assente do outro lado do Atlântico! Só então se soube, em todo o mundo, o
que era e quem era este "imperador", dotado de um poder verdadeiramente luciferiano.
A Comissão da União Europeia marcou uma reunião para o dia seguinte, para avaliar a
situação. Daí saiu uma decisão: realizar, no curto espaço de quinze dias, em Bruxelas,
uma cimeira de chefes de Estado e de Governo, com a seguinte agenda: discussão da
situação em Itália e das medidas a tomar para auxiliar um Estado Membro em crise.
Antes de prosseguir o relato dos últimos tempos do tempo, permiti, irmãos, todos
participantes da glória dos justos, que vos revele algo mais da personalidade e da visão
do último Papa, o que faço com seu aceno de permissão. Estávamos sentados — eu e o
arcebispo do Rio — naquele lugar que ele classificou já de "mansão do alívio" — a Villa
Celimontana, onde se situava o convento. Havia um jardim bem tratado, com bancos de
pedra para o visitante descansar, dispersos por entre miríades de pétalas das mais
variadas e fortes cores. Em tal recanto se juntavam duas características essenciais que o
tornavam, para mim e para Pedro, uma autêntica metáfora do Céu: ar puro e silêncio. Ali,
era possível ouvir a alma...
Na conversa que precedeu a resolução de avançar com uma estratégia de
abortamento da tentativa das gentes da secreta dos santos banqueiros de Manhattan
fazer aclamar um dos seus como papa, mesmo antes de realizado qualquer conclave,
Pedro, sempre de olhos postos no horizonte que ultrapassava Roma, dissertou por longos
minutos, em voz cava e dolente, sobre aquilo que ele considerava os "sinais do fim".
Depois de me recordar as palavras do Mestre sobre o estertor dos últimos dias da
Humanidade, o arcebispo do Rio mostrou-me realidades sobre as quais eu ainda não
tinha reflectido. A certa altura, interrompeu subitamente o discurso, esfregou os olhos
com as duas mãos e continuou:
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
134
«Sabes, irmão e meu amigo Estêvão, dois impérios se degladiam até à morte: o do
dinheiro e o da fome! O primeiro tem exércitos poderosíssimos. O segundo tem biliões de
seres humanos deprimidos. E sabes o que acontece sempre em qualquer depressão? Na
hora de pico, explode. Um terço da humanidade detém a riqueza. O resto vegeta. Este
resto, constituído por dois terços da população mundial está a tomar consciência do seu
real poder. O pico da depressão está a ser atingido. O confronto já começou. Lembras-te,
irmão, dos acontecimentos que sacudiram o outro lado do Atlântico? E de como reagiram
os donos desse império? Loucos, letalmente loucos! Os frutos estão à vista. Aquilo que
chamaram de "terrorismo", como objectivo a eliminar com bombas, renasce das cinzas!
Parecem cogumelos em dia de tormenta. Os biliões de famintos de todo o mundo estão à
beira da grande explosão. E porque não há quem os oiça, a explosão será o fim da
Humanidade e do planeta. Duvidas? Olha, irmão, para a quantidade de armas, mesmo
nucleares e biológicas, ao dispor de qualquer fanático. E mais: olha para as mãos de
quem detém o poder, no império do outro lado. Por isso te digo, irmão, a Igreja de Cristo
tem de sofrer um forte abanão! Para que acorde para a realidade de um mundo à beira
do abismo! Não podemos continuar a olhar para o umbigo. A grande assembleia dos que
acreditam no Deus revelado em Jesus Cristo tem de tomar consciência destas realidades,
para deixar a segurança da barca e atirar-se ao mar revolto, estendendo bóias de
salvação aos náufragos que as queiram usar.»
Retenho esta lição do então arcebispo do Rio, para concluir agora que a visão dele
estava correcta. A conciliação entre os dois impérios foi de todo impossível, apesar dos
esforços do último Papa. Judeus, apoiados pelo império do outro lado e por toda a
panóplia de banqueiros do mundo descendentes do tronco de David, arrotavam poderio
e ódio contra o inimigo — o segundo império — então imbecilmente apelidado de "eixo
do mal".
Os povos da fome, conscientes da força da razão que lhes assistia, uniram-se num
único objectivo: pulverizar a arrogância do império de Satã. Assim, no conflito
palestiniano, os filhos de Israel nunca aceitaram a proposta do bom senso, formulada por
Pedro II, secundada pelo secretário-geral das Nações Unidas e por muitos chefes de
Estado do mundo inteiro, para que Jerusalém — a cidade santa, terra de profetas, para as
três religiões monoteístas em presença — se tornasse numa urbe desmilitarizada,
património de toda a humanidade, a ser colocada, então, sob a administração de um
conselho municipal nomeado e supervisionado pela ONU e no qual tivessem assento
membros eleitos por judeus, palestinianos de obediência corânica e por uma delegação
de cristãos, nomeada por Pedro II e pelos dirigentes das ortodoxias ali implantadas. Se,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
135
para os palestinianos, a proposta era negociável, para o orgulho dos primeiros era
intolerável!
Depois de imensas reuniões e cimeiras, nada se avançou. A não ser no número de
mortos das mais violentas e cruéis batalhas de destruição mútua. Os anos passaram e
não havia já sensibilidade mundial para a situação. As movimentações de tropas judaicas
levavam por diante a apropriação de terras, com a construção de um muro de betão e
arame farpado, expulsando os palestinianos dos seus territórios e a destruição
sistemática das suas casas. Em nome do combate ao terrorismo, os helicópteros de
combate com a estrela de David metralhavam diariamente bairros de palestinianos, na
Cisjordânia ou na faixa de Gaza, matando indiscriminadamente homens, mulheres e
crianças e reduzindo a escombros os respectivos tugúrios. A raiva palestiniana, por seu
lado, contagiava povos vizinhos. E, de repente, a velha Jerusalém, sobre a qual Jesus
Cristo chorou, estava a saque. Mesquitas, sinagogas e templos tão caros ao cristianismo,
como a Basílica da Natividade, a Igreja do Santo Sepulcro ou a do Dominus flevit eram
palco de confrontos demolidores. Pouco a pouco, a cidade voltava aos tempos da
destruição romana. Os ódios cresciam entre os dois povos e a máquina satânica de
destruição não parava. De ambos os lados aumentavam os meios de guerra e o desejo de
genocídio mútuo.
Os apelos à contenção e ao bom senso vinham de muitos chefes de Estado e de
Governo. A Europa, preocupada com o próprio umbigo que já quase nem se enxergava,
deixou de se preocupar — «Aumentemos o terror sobre a Europa e sobre a América —
lia-se numa curta mensagem em árabe, descodificada por uma agência noticiosa de
Roma — Tornemos-lhes a vida insuportável. Quando já não souberem o que hão-de
fazer, entraremos triunfantes pelas suas terras, pilharemos os seus haveres e empurrá-
-los-emos para o mar.»
Exércitos asiáticos e africanos realizavam manobras conjuntas, com meios
humanos, logísticos e de ataque nunca antes vistos. As ameaças, a princípio veladas, mais
agressivas depois, apareciam em quase todas as televisões dos países islâmicos, desde o
arquipélago malaio, até ao Médio Oriente e ao Norte de África. Os meios de comunicação
social do planeta davam conta das movimentações, dos encontros, das cimeiras, dos
discursos dos mais altos dirigentes mundiais, incitando à guerra uns, travando a escalada
outros, mas adivinhava-se que ninguém estava a medir as consequências trágicas para a
humanidade de um acto tresloucado.
Pedro Apóstolo fez-me sinal. E, voltando-se para o último dos seus sucessores:
— Estavas mesmo perdido, meu caro irmão!... Era muito para um homem só...
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
136
— Não, irmão Pedro Apóstolo, eu estava até bem acompanhado. Não esqueças os
verdadeiros Dons de Deus que sempre eram para mim Logano, Menezes e Costa e o de
Veneza, o vivaço Righetti. E conheces também a valia das nossas irmãs que, em boa hora,
consegui colocar no terreno.
— Foste, nessa altura, tentar uma assembleia-geral da ONU. Como foi isso e que
resultados?
— É verdade, irmão, achei que o tempo urgia, os sinais do fim dos tempos
pareciam-me evidentes e só os dirigentes mundiais estavam ainda a olhar para as cebolas
do Egipto. Foi tudo muito bem preparado. Agia, agora, em coordenação perfeita com as
conferências episcopais, cujos presidentes eram os meus representantes junto dos
respectivos governos e povos. Como se tratava de pessoas conhecedoras dos res-
pectivos meios, tendências e entrega no ardor da fé e, por outro lado, homens de altas
qualidades de inteligência, bom senso e de uma dignidade por todos reconhecida, era
mais fácil levar as questões às pessoas certas, dentro dos governos de cada nação.
Preparadas, então, as pastas no esconderijo que me reservaram nos subúrbios de
Roma, longe dos olhares das máfias e seus esbirros que me faziam, ainda, em Brasília,
recebi, na noite antes de partir para Nova Iorque, um velho amigo oficial dos exércitos
libertadores, garantindo-me uma guarda discreta mas eficaz até Nice — para onde
viajaria de comboio — e, daí, seguiria guardado por experientes militares franceses à
paisana, num voo especial para a sede das Nações Unidas. Meneses e Costa
permaneceria em Roma, tentando levar por diante o seu trabalho de toupeira antimáfia,
sendo agora acompanhado de Righetti e Estêvão que tinha, no seu convento do Monte
Célio, montada uma autêntica bateria de frades em voluntário jejum e oração contínua,
pedindo à Misericórdia Infinita do Senhor Jesus a protecção e os resultados positivos
para o mundo da intervenção de Pedro II no areópago das Nações. A eles se juntavam as
nossas irmãs servidoras que no mundo inteiro tinham tudo em verdadeiro estado de
alerta máximo.
A recepção que me foi dispensada no átrio do Palácio de Vidro foi discreta. Assim
fora previamente combinado, por causa dos muitos telefonemas anunciando atentados.
Uma vez na sala das sessões, recebi os cumprimentos, mais ou menos calorosos,
de todas as legações presentes que me pediam para mediar os conflitos aqui e ali,
falando-me especialmente do problema Israelo-árabe, do terrorismo e a psicose colectiva
da guerra, como meio de resolver os problemas da Humanidade, particularmente no
subcontinente asiático.
Quiseram que fosse eu o primeiro a usar da palavra. Imaginem o que sentia…
diante daqueles homens e mulheres com os olhos e a esperança ou, pelo menos, alguma
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
137
expectativa, estampada nos rostos.
Começando por agradecer a todos os presentes a gentileza de esperarem ouvir a
voz de um não poderoso — que, em Brasília, se despojara voluntariamente e com ele
toda a Igreja que dirigia, de toda a forma de "poder", como contrária ao Espírito do seu
Fundador — (ao que estalou na grande sala enorme salva de palmas que me comoveu às
lágrimas), disse-lhes também que, ao contrário dos meus antecessores, Pedro II, já não
era chefe de Estado, porque o Estado do Vaticano acabara. Que, como Cristo, havia dois
mil anos, pelas terras da Judeia e da Galileia, apenas me considerava aquilo que na
realidade era, por eleição do meu povo crente e fiel ao Espírito de Jesus — um servidor-
-coordenador de toda a actividade e sentir da Igreja, espalhada por todo o mundo e com
a responsabilidade máxima de conduzir este Povo de Deus para a Jerusalém Celeste, ou
seja para a posse definitiva da felicidade eterna, no Amor do Nosso Deus. Finalmente,
acentuei que a nossa única arma, neste combate difícil contra as forças do mal, era a
força das nossas convicções no Amor que salva, no Amor que redime, no Amor que
transforma.
— Quererá a Humanidade entender-se — continuei, agora com grande firmeza e
determinação — desejará a Humanidade a verdadeira Paz? Irmãos, um único caminho
vos anuncio: o do Amor! Amar sem medida... é a única medida do Amor de Deus à
Humanidade. Substituir a lógica do terror, pela lógica do Amor, eis o remédio de que
precisamos. Palavras!... Palavras!... Palavras!... — Parece-me ouvir de alguns sectores.
Meus queridos irmãos, membros como eu desta Humanidade sofredora e à beira do
abismo total: aqueles de vós que já tiveram tempo de ler e reler os textos produzidos pelo
Concilio Ecuménico de Brasília, todos firmados por mim, sabem perfeitamente que o que
vos digo não fica em bonitas palavras de circunstância. Não quero — nunca quis — a
hipocrisia dos eufemismos. Por mim e por nós, na Igreja de Cristo, demos e
continuaremos a dar o exemplo da inversão da lógica, de que, agora, não ficaremos em
palavras de discurso clerical. O clero acabou. Para que só a voz do homem de hoje possa
falar e ser entendida como a voz da Verdade. A única autoridade agora reconhecida na
Igreja de Cristo: a autoridade da Verdade. E qual é a verdade destes tempos de terror? É
que os povos ricos pilharam e continuam a pilhar as riquezas dos pobres! Resultado: os
ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres! Por nós, irmãos, já
fizemos aparecer no terreno acções destinadas a inverter tal situação: acabámos de vez
com o famigerado IOR (que não passava de um banco do Vaticano, onde se lavava
criminosamente dinheiro sujo!) Com o punho cerrado em cima da mesa, dissemos,
claramente, NÃO! A Igreja de Cristo foi centro de Poder? — Pois, de ora em diante, essa
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
138
Igreja acabou! Cobrimo-nos de saco e cinza. Pedimos perdão à Humanidade pelos
desvarios de uns tantos. Pegamos no azorrague e corremos os vendilhões. Agora, é tempo
de purificação, de pegar nos bens acumulados e distribui-los pelos mais carenciados,
estejam onde estiverem, pertençam à raça que pertencerem, sejam deste ou daquele
credo. Onde houver um homem, uma mulher ou uma criança sofredora, aí estaremos com
a solicitude do Espírito de Jesus que nos mandou cuidar do rebanho. Todos os bens
existentes nas Igrejas locais e na Igreja de Roma, tudo será distribuído pelas conferências
episcopais, nossas representantes em cada país, para financiar projectos de ajuda aos
mais carenciados: na fome, na saúde, na educação, no crescimento e no desenvolvimento
psicofísico e social. As prestações pecuniárias que o Estado Italiano se obrigou a pagar
pela transferência de todos os bens do Vaticano para a posse da cidade de Roma e seu
governo, terão todas a mesma finalidade. Mas, atenção: a nossa lógica exige que, mesmo
para financiar os custos das minhas viagens e da minha vida e bem assim da dos irmãos
que comigo se entregam ao labor da causa deste Povo que nos foi por Deus confiado,
faremos como Paulo Apóstolo: trabalharemos com as nossas próprias mãos. Não nos
será, hoje, necessário recorrer à manufactura de tendas, mas não faltará quem nos dê
trabalho digno com salário justo para vivermos humildemente, sem constituirmos
encargo para os nossos irmãos. Só assim entendemos o serviço à comunidade. Como?
Algum de vós parece querer interpelar-me? (Era o representante do governo chinês.) Faça
o favor, irmão, coloque a sua questão, com a vénia do senhor presidente da mesa e de
todos os presentes.
— Quer dizer V. Ex.ª — titubeava o chinês, num inglês pouco arrumado — que,
doravante, vai com os seus colaboradores trabalhar cada um no seu oficio, para ganhar o
salário com que viverão? Então as esmolas dos crentes não vão alimentar os vossos vícios
e preguiça, os vossos luxos e poder? E que sabem vocês fazer de produtivo para a
sociedade? Quer responder?
— Respondo, meu irmão da Humanidade que habita o maravilhoso País que é a
China, mas dividindo a resposta em três partes, quantas as questões que me colocou:
1. Vamos, a exemplo de Paulo Apóstolo, trabalhar com as nossas mãos. Significa
isto, no mundo de hoje, que vai cada um de nós trabalhar naquilo para que tem
preparação profissional. Eu, por exemplo, sou médico, licenciado e doutorado pela
Universidade de Fortaleza, no Brasil. Por isso, no meio onde vivo, exerço e exercerei a
medicina, em favor daqueles que a mim recorrerem. Destes, se alguns tiverem dinheiro,
pagarão os honorários do médico. Com justiça. Se não tiverem, o médico perdoá-los-á.
Escusado será dizer que, daquilo que recebermos do nosso trabalho, pagaremos, como
qualquer cidadão, os nossos impostos para o bem comum!
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
139
2. As esmolas dos crentes em Jesus não mais alimentarão vícios, preguiças ou luxos
e poder. Segundo os decretos do Concílio de Brasília, todo o irmão servidor do Povo de
Deus que o faça, será julgado e, se condenado, será expulso do serviço, até que, fazendo
penitência e mostrando-se arrependido, dê provas de estar possuído de uma vontade
nova de servir em Espírito de Verdade.
3. Terceira e última questão que me colocou: todos sabemos fazer qualquer coisa
de produtivo — como diz — para a sociedade em que vivemos. Dou-lhe somente mais
dois exemplos, das pessoas que directamente comigo trabalham na condução do Povo de
Deus pelos caminhos da Verdade e do Amor: o irmão Perez-Logano, argentino, embora a
idade dele lhe permitisse ter uma subvenção de reforma para viver continua a trabalhar
como professor de Direito numa universidade italiana e, através de trabalhos científicos
que escreve, a honrar a cátedra que deixou em Buenos Aires, quando sentiu o
chamamento de Deus e se escondeu por detrás da humilde estamenha com que ali o
vedes. O segundo, o irmão Menezes e Costa, também de idade avançada, continua a
fazer o que sempre fez para ganhar a vida: trabalhos em pau-preto africano, verdadeiras
obras de arte que são vendidas em qualquer mercado mundial, sob as iniciais que agora
vos divulgo: MnC. Se isto não acham V.Ex.as trabalhos produtivos... (A frase não foi
concluída. De pé, incluindo o delegado chinês, toda a Assembleia Geral das Nações
Unidas aplaudia e dava vivas a Pedro!) A muito custo, pude, por fim, continuar: —
Irmãos, se as minhas palavras, secundadas pelas acções já implementadas no terreno,
vos merecem credibilidade, se à lógica da guerra é urgente opor a lógica da Paz, se esta é
fruto do Amor que afugenta os resquícios do ódio, se este tem origem na clamorosa
situação de desigualdade na distribuição das riquezas, à escala planetária, então, irmãos,
é forçoso, é urgente que nos sentemos à mesma mesa e aí, falando claro, busquemos as
soluções que o problema impõe: — dividir por todos o que é de todos! Chamemos-lhe a
Globalização do Amor! É isso o que a Humanidade precisa. Quero, para tanto, convidar-
-vos — a vós todos os chefes de Estado e de Governo dos Países do Mundo para uma
conferência a realizar em Brasília, com o seguinte lema: ―"Pelos pobres do mundo — as
Nações estão Unidas!" Iniciaremos a época do pós-liberalismo egoísta, faremos nascer a
da partilha, no Amor, onde não mais se gastarão milhões em armas para destruir e sim
em instrumentos para produzir. Onde ninguém mais chamará seu ao que tiver produzido,
porque tudo é de todos. Então o mundo terá compreendido a Mensagem de uma criança
nascida numa gruta de Belém, há cerca de dois mil anos! Então o mundo dos homens, das
mulheres e das crianças de hoje vos louvarão, vos baterão palmas, inscreverão os vossos
nomes na história, porque tivestes a coragem imensa de criar um mundo novo!
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
140
— Grande discurso, irmão! Como foi recebido?
— Olha, meu irmão Pedro Apóstolo, creio que com entusiasmo pelos mais
pobres...
— Mas não arrancou uma enorme salva de palmas por toda a plateia?
— É verdade que sim. O resultado, porém, viu-se, depois, em Brasília. Alguns
meses depois, tendo havido uma preparação intensiva a todos os níveis e em todos os
países, tivemos lá a presença dos dirigentes dos países africanos — não de todos... — de
alguns de maioria islâmica, de outros de obediência ortodoxa, mas sempre mais
preocupados com o meu protagonismo... e domínios, do que com o fundo das questões a
solucionar. De resto, do primeiro império, tivemos alguns delegados, sem poderes para
decidir o que quer que fosse, em matérias sensíveis, como a da distribuição das riquezas
e do aprovisionamento das matérias-primas que pertencem aos pobres. Irmão, o mundo
dos ricos estava já demasiado empedernido e denegrido pelas faúlhas do inferno! O
dinheiro e o poder que ele dava eram o seu deus! Adoravam-no, como os judeus fizeram
com o bezerro de oiro! Por ele, tudo faziam: escravizavam, espezinhavam, matavam!
Quando saí de Brasília, acompanhado de alguns dirigentes europeus — almas boas que
compreenderam o nosso apelo, mas faltava-lhes a força para levar por diante uma
efectiva prática de partilha — tive a nítida sensação de mais uma batalha perdida! O
"grande imperador" tudo tinha subvertido. Os apalhaçados dirigentes desses povos já
nada podiam fazer. De resto, todos eles eram escolhidos pelos homens do poder do
dinheiro. E com eles partilhavam o bolo nas multinacionais, entretanto transformadas em
sociedades do crime, porque este compensava. Só no mais poderoso conjunto de Estados
dos últimos tempos do tempo existiam milhares de centros de decisão e acção infernal
que ditavam suas ordens ao governo. E os respectivos titulares que as não cumprissem
tinham os dias contados. Irmãos, o inferno tinha vomitado sobre a Humanidade redimida
pelo Nosso Bom Jesus toda a baixeza das suas entranhas. É claro que havia, ainda,
pessoas boas, rectas, honestas, que entendiam a situação e queriam fazer qualquer coisa.
Mas, na prática, era impossível atingir resultados, a não ser na ajuda pontual a povos da
fome, através de organizações não-governamentais e, em parte, de algum pessoal ao
serviço de departamentos das Nações Unidas.
— Obrigado, irmão, meu homónimo e último sucessor nos cuidados com o Povo
Redimido, pelos teus esclarecimentos à nossa Assembleia. Se permites, o nosso atento
irmão Estêvão, a quem peço desculpa pela interrupção, pode continuar o seu relato dos
últimos tempos.
― Com a vénia dos Pedros, mais a condescendência da Assembleia dos Santos,
continuo.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
141
De regresso ao seu esconderijo romano, após uma viagem atribulada entre o Rio e
Zurich, seguida da cansativa viagem de comboio até à Termini, onde o aguardava o bispo
auxiliar de Roma, com o seu Punto branco e velho, Pedro andou alguns dias perdido
entre papéis e passos sem nexo. Righetti, sempre atento, aconselhou-o a uma ida ao
médico. Era para todos nós que com ele trabalhávamos intensamente muito claro que o
seu sistema nervoso estava a dar provas de cansaço. Ele mesmo, consciente da realidade,
retirou-se, outra vez, para as cercanias de Tivoli. Perez-Logano também não andava nada
bem. Foi com Pedro. De resto, a terapia fundamental de que careciam era a mesma, e a
companhia que ambos se faziam mutuamente tinha, aí, um valor importantíssimo. Valia a
todos a minha saúde de ferro e a das irmãs Salomé, Margaritta, Vicenza e — agora,
também — Paola, que chegara do Sul com notícias encorajadoras, as quais me auxiliavam
no despacho e executavam as directivas do também cansado Righetti. Cancelavam audi-
ências e respondiam às muitas solicitações das conferências episcopais e dos governos
que directamente queriam uma palavra com Pedro II. E como eram eficazes e corajosas
essas irmãs sem sono!
Quase três meses durou a cura de Pedro II (não a de Logano, cujo mal era bem
pior) em Tivoli. Foram, além de tudo, meses por ele mesmo considerados importantes
para o repensar de tudo o que se acumulava no tabuleiro das expectativas criadas. O
Concílio de Brasília tinha despertado uma enorme vaga de esperança. Também de
contestação. Mas, esta, já era esperada. Os sectores mais reaccionários da Igreja Romana
e, um pouco por todo o lado, sobretudo nos domínios do "grande imperador", onde os
bispos se tinham habituado ao poder e aos privilégios correlativos, mas não ao fim do
Vaticano, com tudo o que ele representava, ao fim da classe clerical e suas alcovas e, por
fim, ao regresso às catacumbas, resistiram sempre, enquanto puderam, a qualquer
intenção de alguém lhes tocar na barriga. Alguns houve, mesmo, que expediram
inqualificáveis parelhas. Mas perante a situação mundial que se agravava, com a
globalização do terrorismo e o constante rufar dos tambores de guerra — dança macabra
que cada dia era acelerada pelos meios de comunicação social ao serviço de presidentes
e dirigentes idiotas e vesgos de tanta ânsia de dinheiro e poder —, foram muitos os
bispos que começaram a entender que a guerra era irracionalmente desejada pelos seus
líderes, como forma de aniquilar países e povos inteiros, para lhes ficar com as riquezas
e, assim, não só deixaram de hostilizar as reformas do Concílio nas respectivas dioceses,
como, até, pediam eles próprios a presença de Pedro em concílios provinciais, para
estudar maneiras de pôr em prática, em diálogo com os potentados económicos
multinacionais, modos de fazer chegar aos mais pobres os financiamentos que tardavam.
É curioso que foi precisamente durante esses dois ou três anos em que se
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
142
discutiam por todo o lado, e especialmente nos fóruns mais credíveis das nações, formas
práticas de financiar projectos de eliminação da fome, da miséria, das doenças, da falta
de habitação condigna nos vários países do então chamado Terceiro Mundo, que os
ataques de terror estiveram suspensos. Os meus secretos informadores, em contacto
com as mais diversas organizações que tinham por missão espalhar o terror no coração
dos países ricos, diziam-me que todas essas organizações tinham acordado em dar o
benefício da dúvida à acção da Igreja de Pedro que lhes estava a merecer um juízo de
credibilidade.
O tempo passava, porém, os anos esgotavam-se uns atrás dos outros e, de
concreto, o que se havia conseguido era realmente muito pouco, tendo em conta o que
havia para fazer! É certo que as conferências episcopais dos países mais carenciados
tinham recebido verbas substanciais para tentar mudar as respectivas situações de fome
e miséria. Mas, como todos se lamentavam, o que recebiam não passava de gota no
oceano quase infinito de carências em toda a linha. Na emergência, Pedro lançou mão de
"mensageiras da paz" que iriam percorrer todos os países do primeiro império, como
mendicantes, pedindo aos Estados e às grandes empresas ajudas substanciais para a
erradicação da fome. A ideia resultou, em boa parte. Mas o produto não era suficiente.
As organizações do crime iam perdendo a paciência. Primeiro, deixaram anúncios —
pequenas explosões, em lugares onde não deveriam causar vítimas. Ninguém os quis
ouvir. Os sinais passam-nos sempre ao lado, quando nos incomodam. O melhor é
esquecê-los e dizer que não passam de brincadeiras de mau gosto. É! Só que nós
tínhamos informações muito precisas de que os ataques mundiais em grande escala
recomeçariam. Lançámos imediatamente, pelo canais próprios, avisos à navegação.
Finalmente, Pedro gritou como louco, uma vez mais, perante a Assembleia Geral das
Nações Unidas, sem que para tanto haja sido convidado. Julgaram-no histérico e
conduziram-no para fora da sala. Pedro protestou veementemente e, durante dois dias,
fez-se examinar por peritos médicos ao serviço da ONU. Todos, por unanimidade,
atestaram a perfeita saúde mental do Papa. Pôde, então, entrar e falar livremente na
Assembleia Geral. Disse, então, aos representantes dos países ali reunidos que estava
disposto a aceitar todas as humilhações, como Cristo as tinha recebido, calado, diante de
Pilatos, mas que, se não decidissem, em oito dias, dar sinais muito concretos de querer
efectivamente solucionar de vez os problemas da Palestina e da fome nos subcontinentes
da América Latina, da África, da Coreia do Norte e da Indochina, o caos instalar-se-ia no
mundo e toda a actividade económica seria paralisada.
— Reacções?...
— Irmãos, mais uma vez as de sempre: «Bom, o senhor é um homem de boa
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
143
vontade, está convencido da sua missão e tenta levá-la avante por todos os meios, mas
tenha calma, que as coisas se resolverão por si mesmas e com o tempo.»
Lembro-me de que Pedro saiu daquela assembleia repetindo o gesto que o Nosso
Mestre mandou aos discípulos fazerem em tais circunstâncias: sacudiu ostensivamente o
pó dos sapatos à porta da sala. E corremos os dois para um táxi que nos transportou ao
aeroporto. Então, voámos directamente para Frankfurt. Era a única hipótese. À chegada,
soubemos do horroroso ataque perpetrado contra o centro histórico de Londres, com
enorme devastação em pessoas e bens! Segundo as informações desencontradas que
corriam em Frankfurt, às primeiras horas da manhã, quando toda a gente se apressava
para entrar nos empregos, um pequeno míssil transportando pequena carga nuclear —
possivelmente disparado de submarino rápido, do alto-mar — caiu sobre a city com
enorme fragor e bola de fogo e fumo que fizeram lembrar Londres sob o ataque dos
aviões nazis. Mais tarde, o Financial Times disse ter recebido uma mensagem em árabe
reivindicando o atentado e ameaçando com novos actos destruidores da economia
inglesa, caso a política do governo de Londres se não afastasse da do "grande
imperador". O arcebispo de Frankfurt recebeu-nos com um misto de grande efusão e de
tristeza, e os três dirigimo-nos à catedral. Aí, orámos por longo tempo. Pedro,
aproveitando a circunstância de se encontrar em território alemão, foi ao encontro do
chanceler chefe do governo, por quem tinha bastante admiração. O governante mostrou-
-se muito preocupado pelo que acontecera em Londres, pois — disse — há já estimativas
muito elevadas sobre o número de mortos e feridos nos escombros do centro da capital
britânica. Garantiu, porém, que da parte do governo alemão, o orçamento do país iria
incluir uma percentagem significativa do PIB, para acorrer às situações mais aflitivas do
Terceiro Mundo. Prometeu, ainda, que tudo faria com os demais chefes do "primeiro
império" para se avançar com a ideia de um estatuto definitivo de neutralidade para a
cidade de Jerusalém, tentando superar a única dificuldade ainda existente entre as partes
no conflito.
Em segredo e com disfarce profundo, Pedro e Righetti, acompanhados das irmãs
Salomé e Margaritta e por mim próprio, dirigiram-se a Roma, a fim de verificar in loco o
estado da situação e delinear a estratégia de uma grande jornada de oração na
devastada Piazza di S. Pietro, no dia de Pentecostes. Um horror. Da basílica nada ficou de
pé. Dos edifícios ao lado e da própria colunata berniniana que ladeava a praça elíptica,
apenas escombros, montanhas de entulho, imagens de pedra completamente desfeitas.
Um pavor!
Ficou entre nós assente que, apesar de tudo, seria aquele o lugar para a celebração
do Pentecostes, custasse o que custasse. Caminharíamos, para isso, com a determinação
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
144
de Pedro Apóstolo sobre as águas ao encontro do Mestre. — «Será ali que convocaremos
os cristãos do mundo inteiro. Será ali que diremos às máfias e aos senhores da guerra
que já estão condenados! Será naquele lugar santo e conspurcado que o Espírito de Jesus
irá falar mais alto que as armas. Será ali que o templo de Deus — os corações dos
homens, das mulheres e das crianças de boa vontade — será elevado aos céus, lavrando
a condenação de Satã e seus súbditos, todos os que operam nas trevas do crime! Todos
os filhos do diabo! Todos os esgares do inferno!» — Era a conversa directa aos ouvidos
de cada um.
— O irmão Estêvão — imagino — teve muitas dores de cabeça, para organizar essa
jornada e, sobretudo, a segurança das pessoas.
— Irmão Pedro Apóstolo, foi o arranque para a libertação! Tinha a intuição de que
o último dia do Pentecostes (e eu não sabia que seria o último...) se transformaria em
qualquer coisa semelhante ao primeiro, acontecido havia cerca de dois mil anos em
Jerusalém. Tu, irmão, é que sabes como foi esse dia um do Pentecostes, o nascimento da
Igreja. Só que, comigo, tratava-se do nascimento, sim, mas da Jerusalém Celeste!
— Se sei!... Todos ficámos baralhados com a força e a ciência que, de repente,
começámos a sentir e as línguas dos povos de todo o lado que sabíamos falar! Bom, mas
deixa lá isso, porque esta Assembleia já o sabe. Diz-nos como foram esses meses de
preparação.
— Gostaria que fosse o nosso companheiro Righetti a falar disso, pois foi ele quem
mais de perto liderou os trabalhos de planeamento e, depois, de execução.
— Eu não era homem para conversas. Por feitio, gostava mais de fazer. Mas,
agora... e se é Pedro que mo pede e esta assembleia já dá sinais de me querer ouvir, os
Céus escutarão a minha humilde voz, porque assim mo consente o Amor.
Em discursos transmitidos quase diariamente por um canal de televisão pirata,
Pedro chorava a destruição do Vaticano, mas chorava ainda mais o clima de terror
instaurado em Itália e um pouco por todo o lado, com dirigentes das nações a vomitar
ódio em cada discurso que proferiam, completamente esquecidos e indiferentes às
promessas de trabalhar pela paz, feitas diante de Pedro, na sala da Assembleia do pa-
lácio de vidro em Nova Iorque. Posso testemunhá-lo aqui: Pedro era um homem robusto
fisicamente, mas espiritualmente tinha personalidade de leão! As suas convicções
afloravam-lhe à epiderme e ficava chocado por não poder abrir todas as portas ao Amor
de Jesus, para fazer feliz uma Humanidade que se abeirava perigosamente da
hecatombe. Sem se fazer convidado, Pedro voou para Londres, apresentando
condolências ao governo e ao povo britânico. Do mesmo modo, aparece em Bagdad,
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
145
solicitando aos serventuários do primeiro império um encontro urgente. Que não, que
nada havia a discutir com o Papa de Roma, pois, também ele, na pessoa do seu
antecessor, tinha estado contra a guerra de ocupação do Iraque. Pedro II insistiu, mas
quando viu o que se passava na terra de Abraão, limpou novamente o pó dos sapatos e
partiu para Jerusalém. O chefe do governo judaico também não o quis receber. Três dias
aí demorou Pedro, enviando emissários, dizendo que trazia boas novas de paz. Mãe
Salomé foi convincente na sua habitual diplomacia dos sorrisos. O governo de Jerusalém
acedeu, por fim, em enviar ao hotel onde nos hospedáramos uma delegação chefiada por
um alto funcionário do ministério das relações exteriores. Quando ouviram, porém,
contar a história do domínio do mundo pelas secretas do crime, riram-se da
"ingenuidade" de Pedro e mandaram-nos embora. Pedro protestou energicamente e,
mais uma vez, limpou o pó dos sapatos. — «Estamos, irmãos, nos domínios do primeiro
império. Ninguém o esqueça!» — Disse ao grupo, pesaroso, a caminho de Belém. Aqui,
fomos recebidos prontamente pelo chefe dos palestinianos e seu governo que acolheram
de bom coração as notícias sobre os esforços de Pedro II para solucionar rapidamente o
conflito de muitas décadas. Pedro contou o sucedido em Jerusalém. Não se admiraram os
palestinianos. Sempre superiores a todos, sinais destes passam-lhes ao largo. Com a
ajuda do governo palestiniano, Pedro tentaria arrastar o homem sensato da Síria. Os dois
deram um salto a Damasco. A três, foi posto em marcha um plano para convencer Israel
a negociar a paz. Nada conseguiram. Para os judeus, a paz assentaria no reconhecimento
de grande parte das conquistas sobre os palestinianos e a indiscutibilidade de Jerusalém
indivisa, sob a total soberania de Israel e como capital do país. Durante a viagem de
regresso a Roma, Pedro, profundamente abatido, quase sempre de olhos cerrados, via-se
que chorava e orava.
— A grande prostituta desfez Babilónia.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
146
V
Veni, Domine! Veni!...
Esgotado, cansado, mas não vencido, Pedro II chegou a Roma, mais uma vez em
segredo. Não havia tempo a perder, nem para chorar sobre batalhas passadas.
Novamente arregaçou as mangas e reuniu com todo o seu grupo de toupeiras do
império. — «Querem afastar-me da empresa que o Senhor me impôs de chamar os
homens à razão. Mas não me calarei. Enquanto as forças me assistirem, continuarei a
gritar... até ao fim! Terei, acaso, feito já todas as diligências possíveis, para tentar levar os
chefes dos povos ao império do bom senso, do Amor e da Paz?...» — Disse-lhes, em tom
de grande e carinhosa emoção, lembrando o discurso do Mestre na última ceia. A
"equipa das catacumbas" respondeu com novos planos.
As imagens televisivas tinham mostrado (durante a sua ausência em Londres e no
Médio Oriente) Pedro diante da fachada da Basílica e prostrado frente ao "altar da
confissão", orando e chorando copiosamente sobre os escombros. Estas imagens corriam
mundo, através de quase todas as cadeias televisivas que atravessavam o espaço. Depois
apareciam as imagens de Pedro sobre os escombros da city londrina, orando com os
chefes espirituais britânicos. Por fim, eram imagens horrorosas dos massacres, dos
desencontros de Pedro, dos tumultos, da guerra civil no Iraque, da pesporrência do
governo judaico, da conferência com o novo chefe dos palestinianos — «um homem
bom, com quem é possível chegar a consensos!» — diria mais tarde — e dos inúteis
esforços feitos pelo presidente da Síria.
Ao ter conhecimento desta contínua peregrinação de Pedro, a consolar os que
sofrem e a dar força aos homens de quem pode depender o apaziguamento da crise
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
147
mundial, gente de todas as condições sociais acorre aos templos, repetindo o gesto de
Pedro. Organizam-se mais prementes e dramáticas jornadas de oração e penitência pela
Paz. Bispos, presbíteros e demais servidores do Povo de Deus vestem-se de saco, jejuam,
juntando-se ao povo na prece pública pelo entendimento entre os povos e pela Paz.
Os chefes espirituais de outras religiões juntam-se a Pedro na oração pela
concórdia universal. Esquecem-se divergências históricas entre as diversas confissões
cristãs. Cristãos das diversas ortodoxias orientais, de todos os quadrantes das Igrejas da
reforma e de toda a catolicidade dão-se as mãos e por todo o orbe celebram encontros
de oração pela paz, donde saem veementes apelos aos dirigentes de todos os povos do
planeta, para que façam o mesmo e abram os respectivos corações ao bem supremo da
Humanidade.
A Pedro, porém, estava reservada, ainda, uma outra prova — uma das mais difíceis
que já teria suportado. Ao chegar ao esconderijo romano, Meneses e Costa entregou-lhe
um sobrescrito lacrado:
— Ninguém já ouve ninguém. O inferno vomita ódio. E faz sentir os seus esgares. A
maior parte dos meios de comunicação está nas mãos dos idólatras do diabo. Que, por
eles, vai incendiando a seara. O assalto ao dinheiro torna-se no objectivo essencial da
existência humana. Tudo se sacrifica ao seu império. Programas televisivos incitam a
juventude ao prazer, ao sexo, ao dinheiro. As mais abomináveis perversões sexuais são
agora exibidas em público, entram sem licença em todas as casas, chegam ao consciente
de qualquer pessoa, de qualquer idade, como se de comportamentos recomendáveis se
tratasse. Nem as crianças inocentes são poupadas. A pedofilia é, agora, um comércio. A
indústria do sexo é promovida, como vestuário de qualidade para os endinheirados.
Psicotrópicos são oferecidos a quem quiser experimentar momentos de fuga à realidade.
Ninguém respeita ninguém. E todos vilipendiam todos. Filmes e mais filmes saem em
catadupas a ensinar a matar, a torturar, a estuprar, a sugar o sangue dos inocentes. A
violência sai dos ecrãs e entra no quotidiano social. E à violência dos indivíduos
respondem as sociedades e os Estados com a mais aviltante e desproporcionada violência
do poder. Nem os acordos internacionais para salvar o planeta são já respeitados. É,
seguramente, o período mais conturbado da história do homem sobre a terra. A
humanidade, à escala cósmica, parece ter enlouquecido. Pedro, desculpa, mas vou partir.
Não te faltará a força do Senhor Jesus. Continua a tua missão de confirmar os teus irmãos
na fé! Até breve! — Perez-Logano».
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
148
Pedro vê-se então privado do seu inseparável braço direito, companheiro de tantas
horas de trabalho, de amor pela Humanidade. Pedro ficou mais triste. Mas mais
determinado no combate contra a miséria social e contra o perigo dos loucos dirigentes
deste mundo. Pediu-me, com toda a simplicidade, banhado em lágrimas:
— Aceitas substituir Logano?
— Não posso fazer outra coisa! — Respondi-lhe, com um sorriso de confiança,
dando-lhe um forte abraço.
Deu-me, então, instruções sobre aspectos organizativos da grande jornada do
Pentecostes que se aproximava e partiu em nova correria contra o tempo à volta do
planeta, tentando convencer as autoridades a impedir o uso da força para modificar a
situação. Desta vez apenas levou consigo o nosso irmão Estêvão, a quem, por isso, passo
a palavra.
— O Senhor dá-me o Seu alento, Righetti. Por isso, aceito continuar.
Fomos recebidos com frieza, em Pequim, com muitas vénias em Tóquio, com
aberta hostilidade em Jerusalém, com desdém na Rússia, com aparente satisfação na
Austrália, na União Europeia, com fé e empenho na América Latina e em boa parte do
continente africano, com muitos sorrisos amarelos, na central do primeiro império —
sorrisos que logo mudaram em aberta hostilidade, quando Pedro condenou, sem rodeios,
todas as políticas armamentistas, todo o terrorismo, «mesmo o de Estado», quando se
usa implacavelmente a força dos exércitos, para ocupar territórios indefesos e toda a
degradação do ambiente, «sobretudo por aqueles países que nem sequer respeitam os
tratados internacionais a que se obrigaram». O grande imperador tomou, então, a
medida que esperávamos: expulsou-nos, dando-nos vinte e quatro horas para
abandonarmos o seu território.
Regressados secretamente a Roma, eu ia fazendo o que podia para que a presença
na cidade e na Piazza di S. Pietro, no dia de Pentecostes, de muitos milhares de
peregrinos de todo o mundo fosse uma demonstração, não só da vitalidade da fé em
Jesus Cristo Redentor, mas da mais forte resposta aos senhores da guerra e do crime
organizado. O arcebispo auxiliar de Roma que não descansava e percorria a cidade vezes
sem conta por dia, depois do jantar, ia dizendo, com o desânimo estampado nos lábios:
«Irmão, sente-se no ar que respiramos um intenso cheiro a ódio!... em vez de estrelas no
céu, acho que é visível a olho nu uma autêntica loucura cósmica! Que nada parece poder
curar!» Que mais Pedro conseguirá fazer?...
Em Itália, a guerra civil intensificava-se. Palermo, Siracusa e quase toda a Sicília
eram, então, terras onde já se respirava a liberdade dos homens antimáfia; em Nápoles
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
149
e, no geral, a Sul de Roma, havia violentíssimos combates, mas como as populações
aderiam e ajudavam os movimentos contra a tropa da Camorra, era consolador verificar
que os libertadores ganhavam terreno; a Norte, com a excepção de Milão, onde o que
restava das famílias mafiosas ia espalhando terror, em atentados a políticos e
magistrados, as coisas permaneciam aparentemente calmas. Entretanto intensificavam-
-se as acções religiosas pregadas pelos bispos, segundo o desejo de Pedro. Em todos os
países onde existiam fortes tentáculos mafiosos surgiam também escaramuças nos
respectivos exércitos. A exemplo dos italianos, todos começam movimentos de
libertação contra as sociedades do crime. E as guerras civis espalham-se por todo o lado.
Pedro procurava, agora em Itália, encontrar-se com os mais influentes políticos e
com os chefes das facções em conflito. Aos cristãos pedia muita oração e penitência. A
estação de televisão pirata, agora com lugar em satélite, continuava a difundir os apelos
do Papa e todas as suas movimentações, nos caminhos da Paz.
No dia em que visitava os campos onde se travavam as maiores batalhas, perto de
Nápoles, tentando socorrer os mutilados e assistir os moribundos, Pedro, envergando
uma túnica branca e trazendo na mão uma enorme cruz iluminada para ser vista de
noite, tomba sob o fogo cruzado dos obuses. A metralha atingiu-o no braço esquerdo que
voou desfeito como farelo. Com um pedaço da túnica, Pedro consegue suster a
hemorragia e caminhar por entre os mortos. Mas, quando se dirigia, sozinho, para uma
ambulância do exército fiel, foi sequestrado por um grupo de terror. Vendaram-no,
arrastaram-no para sítio escuro e fizeram-no sentar em qualquer coisa que Pedro logo
percebeu não ser cadeira. Pelo cheiro nauseabundo, era óbvio tratar-se de uma tábua de
latrina. As horas passavam e a correria do sangue do braço estilhaçado não dava sinais de
obedecer aos esforços de garrote. Pedro rezava com toda a alma, como Pedro Apóstolo,
in vinculis, confiava. E, noite avançada, quando tudo à volta parecia calmo, a frágil e tosca
porta de madeira do imundo cubículo escavado numa barreira cede a um simples
empurrão e Pedro, febril, cambaleando, sai dali acompanhado por alguém que não
conhece, mas a quem também não pergunta quem é. Pedro sente que a seu lado
caminha alguém que conhece bem o meio. Quando começa a dar sinais de não aguentar
a caminhada, o companheiro cobre-o com uma grande capa e levanta-o com o braço
direito, correndo, quase voando, por sobre montes e vales. Encontrado um velho camião
da tropa, o companheiro de Pedro põe-no em marcha e conduz a alta velocidade até
Roma. Pedro, tendo perdido muito sangue, entra na clínica inconsciente. Entregue à
equipa médica, o companheiro desapareceu. Mais tarde, o aparecimento em Roma
daquele veículo militar que tinha sido abandonado, havia vários anos, por inoperacional,
deu azo a desencontradas teorias. Pedro foi operado, com êxito, ficando, porém, sem o
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
150
braço. A notícia deixou perturbada a cristandade e, em geral, todas as pessoas de boa
vontade. Muitos lembraram, então, uma velha profecia de uma revelação particular da
Virgem a um trio de pequenos pastores, no início do século XX, em que se previa que
«um bispo vestido de branco» tombaria e caminharia pelo meio de um campo de
batalha, consolando os moribundos e ajudando os feridos.
Sem interlocutores válidos, Pedro lança pela televisão avisos directos aos exércitos
em presença. Ou param as armas ou será o caos. — «Os ventos que sopram de Leste são
terríveis. No Médio Oriente, está, de novo, tudo a ferro e fogo. Chefes judaicos, ao ver os
seus homens morrerem aos montes, debitam no ar ameaças directas de destruição
maciça... e, no terreno, novos meios materiais de guerra convencional vão enchendo de
cadáveres Jerusalém, Ramalah, a Faixa de Gaza. Nem Belém foi poupada. Mas porquê?»
— Perguntava, indignado. Mas ninguém lhe respondera. No dia seguinte, a pequena
cidade de tantos encantos espirituais, o símbolo mais belo da união de Deus com a sua
Humanidade, a metáfora do lobo e do cordeiro bebendo juntos a mesma água do
Jordão... foi pura e simplesmente riscada do mapa da Palestina. Mas, porquê?... «Que
mal fazia um pobre berço de palha e uma criança recém-dada à Humanidade?...» —
Interrogava, em toda a sua simplicidade, o velhinho monge que, durante mais de setenta
anos, fora guardião daquele lugar santo. E morreu, sem que alguém lhe tenha
respondido.
O cúmulo da loucura vem agora dos lados asiáticos: a China acabara de invadir a
Formosa. Os fumos dos gigantescos incêndios eram visíveis desde Tóquio a Manila.
Nuvens de terríveis gafanhotos metálicos despejavam, desde a madrugada, toneladas e
mais toneladas de bombas sobre a ilha. As defesas foram heróicas, mas por pouco
tempo. As forças de Pequim semearam a morte por todo lado. Taipé já não existia.
Para cúmulo: umas horas depois, os exércitos da Coreia do Norte cercam Seul.
Aqui, como em Taiwan, há combates violentíssimos e a ambos os lados acorrem
"marines" das bases e porta-aviões do primeiro império sedeados na área. A fúria das
hostes chinesas não olha a meios para destruir toda a resistência dos ilhéus. A ameaça de
utilização de armas químicas e de destruição global deixa de ser velada. A brutalidade
dos homens de Pyongyang sobre o Sul deixa a comunidade internacional e as Nações
Unidas em estado de choque. O grande imperador aconselha cautelas, mas vai dizendo
para não brincarem com o fogo. Uma ameaça a que os chineses logo responderam com
um novo ensaio nuclear que fez estremecer todo o continente e ainda parte da Europa,
até Moscovo.
No Norte de África, o fundamentalismo muçulmano dominava agora todos os
países que se não cansavam de mostrar os dentes aos europeus e americanos. Em aliança
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
151
com os demais servos de Maomé nos países do Médio Oriente, todos os dias exibem
poderio militar, capaz de «arrasar judeus e todos os infiéis», segundo o texto de um telex
enviado a uma das maiores agências noticiosas europeias.
Pedro, curado, agora sem um braço, fez a sua última viagem pelo mundo, na
companhia de Mãe Salomé e deste vosso servo. Insistia com as autoridades, suplicava o
abandono dos projectos de destruição, implorava, em nome da Humanidade, o fim da
ganância e do ódio entre as nações e os povos. Durante mais de dois meses, esteve
ausente de Roma. Reuniu com todas as conferências episcopais da cristandade. Em todo
o lado, promoveu novas jornadas de oração e penitência. Pregou a humildade e o espírito
de pobreza. Mas aos pobres deixou a certeza de que lhes assiste o direito à indignação e
à luta contra todos os espoliadores. Das dádivas que recebia de países ricos, Pedro ia
distribuindo, por aqui e por ali, dinheiro a instituições que no terreno cuidavam dos
esfomeados, dos estropiados e de todas as vítimas das guerras. Em todo o lado deixou
viva a chama do Amor. Amor por todos os humanos, amor por todas as culturas, amor
pelo planeta Terra que muitos teimam em matar, destruindo os seus ecossistemas. —
«Todos os seres vivos morrerão em pouco tempo, o próprio planeta se desintegrará, se
nada se fizer para o salvar da poluição que acabará por destruir as mais elementares
condições de vida!» — Apelava diante das mais diversas autoridades. E muitos foram os
dirigentes mundiais que acreditaram, porque viam em Pedro II um Papa diferente, sem
palácios, sem guardas, sem pompas, sem riquezas... Muitos recordavam, então, o que
leram e ouviram: «Não são os milagres que mudam as consciências, mas o que formos
capazes de fazer, em obras de amor, pela humanidade! O grande milagre é a nossa
capacidade de amar!»
Guardado por uma força especial, reaparece em Roma, no dia do Pentecostes, a
concelebrar com todos os bispos italianos e com aqueles estrangeiros residentes em
Roma uma Eucaristia de Acção de Graças, no "Altar da Confissão", sob o famoso
baldaquino de Bernini, rodeado de escombros. Uma enorme multidão — como Roma
nunca antes vira — espalhada pela Praça de S. Pedro e por cima da montanha de ruínas
daquilo que foram os jardins, os palácios e a basílica vaticana, partilhou com o Papa as
suas alegrias e grandes tristezas. Rezou-se, cantou-se, invocou-se o Divino Espírito Santo
de Deus, para que desça, em novo Pentecostes, sobre a Humanidade, trazendo-lhe a Paz
do seu Amor Misericordioso. E Pedro II, depois de historiar a angústia dos últimos meses
nas viagens efectuadas em busca da paz, do Amor entre todos os povos do planeta, fez
um dramático apelo a quantos combatem, semeando a dor e a morte, no Médio Oriente,
na Itália, nos mares da China e da Coreia e em qualquer parte do mundo: «Deixem a
Humanidade viver! Deixem de destruir e matar! Não mais o império do medo! Não mais
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
152
o império de Satanás! O Amor vencerá!
Nas ruínas da Basílica e da Praça de S. Pedro, a distribuição do Pão Eucarístico aos
participantes foi acto que demorou muito tempo. Aos cânticos e às preces sucediam-se
minutos de um silêncio estranho. Parecia que toda a assembleia mergulhara em êxtase.
O sol atingia o seu ponto mais alto, naquela manhã quente de Junho. O calor desse dia
estava mesmo insuportável.
Ao pronunciar as palavras finais «Ide em Paz...», no preciso momento em que o
sino grande de S. Pedro iniciava as doze badaladas do meio-dia, Pedro deu um lancinante
grito, caindo fulminado e, com ele, todos quantos se encontravam na cidade e nas
periferias. Na sua frente, uma luz intensíssima rebentou-lhe os olhos. Um horroroso e
inaudito estrondo, um rebentamento sem fim, um ronco de morte e desolação,
prolongado no tempo e nas colinas, nos montes, nas serras, nos vales e nos mares abalou
e devastou imediatamente toda a região. Então, uma enormíssima coluna de fumo negro
e detritos cósmicos que se levantava do chão, lá para os lados de Ostia, formando no
topo uma cúpula de gigantesco cogumelo, por segundos, foi ainda vista, com os cabelos
em pé, por muita gente horrorizada que logo começou a tombar inerte, sob as
violentíssimas ondas de choque destruidoras e da imensa nuvem de poeira radioactiva
que cobriu e incendiou a cidade inteira e seus arredores, tudo reduzindo a cinzas, em
poucos segundos. Momentos depois, no Norte e no Sul da Itália rebentaram mais ogivas
nucleares, vindas provavelmente do Norte de África e do Médio Oriente. Do primeiro
império e de todas as suas bases mundiais, partem imediatamente foguetes, com ogivas
múltiplas, que vão estender a destruição e a morte a todos os continentes. Cruzam-se
com os que da Ásia partem em direcção às Américas e à Europa. Das ilhas nipónicas,
ainda conseguem disparar alguns foguetes para Washington. Eram contas velhas que os
japoneses faziam questão de saldar. As ogivas russas, orientadas para terras do "novo
mundo", não chegaram a sair dos silos. Rebentaram todas em casa. A Israel também
ainda sobrou tempo para carregar no botão nuclear e dirigir cumprimentos à Síria, ao
Irão e, claro está, aos palestinianos. Esqueceram-se, porém, que, com as terríveis ondas
de choque e as poeiras radioactivas que deixaram os desertos sem areia e os mares todos
mortos, mesmo antes de receberem iguais mimos dos fiéis de Maomé, estavam a
autodestruir-se. Coisas de judeus. Nunca ninguém os entendeu!...
E a velha Jerusalém que todos reivindicavam ficou em pó! E a Roma, de que todos
se orgulhavam, ficou em pó! E Pequim, que todos temiam, ficou em pó! E Moscovo, em
que reinavam todas as máfias, ficou em pó! E Washington, que a todos desprezava, ficou
em pó! E Londres, Berlim e Paris, que todos adoravam, ficaram em pó!... Todas as
cidades, vilas e aldeias, o orbe terrestre, de Norte a Sul, de Este a Oeste, tudo ficou
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
153
reduzido a um gigantesco montão de escombros a arder.
O mar levantou-se em ondas que chegavam aos céus. A violenta evaporação das
águas, qual efeito de gigantesco alguidar onde tomba um infernal braseiro, provocou um
ruído ensurdecedor que rebentou tímpanos e aumentou o terror de um dia assim. A
voracidade dos mares sobre a terra era terrivelmente devastadora. Nunca ninguém viu
coisa assim, desde que o homem foi criado.
A elevadíssima temperatura atingida no planeta tinha secado o mar. E o mar
acabou. E com ele os peixes e todos os monstros marinhos. E todos os corais. E toda a
flora maravilhosa! E toda a vida que havia debaixo das suas águas. O vapor salgado das
águas dos oceanos que já não eram misturou-se com as negras nuvens de poeiras
radioactivas para acabar com o que restava do cosmos.
Tudo morreu! Em estertores horrorosos.
Os que exploravam morreram a explorar;
Os que esmagavam morreram a esmagar;
Os que não pagavam salários morreram sem os pagar;
Os que entesouravam morreram a entesourar;
Os que roubavam morreram a roubar;
Os que defraudavam morreram a defraudar;
Os que fornicavam morreram a fornicar;
Os que faziam gala das próprias perversões morreram nos seus esgares de idiotas;
Os que traficavam morreram a traficar;
Os que mentiam morreram a mentir;
Os que vomitavam fel morreram com fel na boca;
Os que odiavam morreram a odiar!
Mas...
Os que amavam morreram a amar!
E um cântico, nunca antes escutado por qualquer humano, se levantou suave,
inebriante, sobre os escombros fumegantes. Dizia: «Benditos os que tingiram as vestes
no sangue do Cordeiro e amaram Sua Humanidade!»
A desolação da devastação total era, agora, a única certeza.
Toda a glória humana caiu!
Todo o poder ruiu!
Todas as teorias, todas as filosofias, todo o maquiavelismo humano se calou. Para
sempre.
Toda a catedral gótica, todo o monumento construído com o suor de escravos,
todo o castelo, toda a arte de todos os tempos, tudo acabou! Toda a vida desapareceu.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
154
Num ápice!
Dos gregos e dos troianos, dos persas e dos egípcios, dos babilónios e dos assírios,
dos ugaritis e dos incas, dos romanos e dos godos, de todos os povos e reinos que
existiram sobre a terra, ninguém mais falará! Não ficou ninguém para falar!
O tempo parou!
A história acabou!
O próprio sol morreu. A noite chegou mais cedo no último dia da Humanidade.
Nem a lua foi mais o símbolo da beleza romântica a iluminar corações
apaixonados. Não mais pôde mostrar a sua cara cheia de bonomia e tolerância.
E até os restantes astros que havia no sistema solar e em todas as galáxias
acabaram por andar aos encontrões, esmurrando-se, partindo-se, pulverizando-se, num
universo desfeito, num cosmos fumegante, em aceleração máxima para o nihil.
O reino das trevas dominava uma precária existência, dum crucificissent, enquanto
Satanás e seus sequazes consumavam a crucificação global da Criação.
Era meio-dia, ainda, quando parou o relógio da torre de uma pequenina Igreja de
Punta Arenas, no extremo Sul do Chile, no preciso momento em que sucumbia o último
ser humano que ainda resistia ao apocalipse do último Pentecostes. Na sua simplicidade,
compreendeu os sinais dos tempos e, enquanto as suas carnes se consumiam em chagas
e dor, provocadas por queimaduras que nada poderia curar, deitado de costas no chão
da casa que já não era, sentindo a derrocada de tudo à sua volta e o enorme calor que
tudo incendiava e reduzia a cinzas, abriu pela última vez os olhos e, distinguindo
perfeitamente que nem o relógio, nem a torre, nem a igrejinha, nem a aldeia existiam já,
balbuciou, muito a custo, de braços levantados para um céu escuro e sem estrelas... todo
em ruínas de fumo e poeiras: «Vem, Senhor Jesus! Vem!...»
Eu — o humilde Estêvão do Monte Célio — a quem a graça de Deus concedeu
ainda tempo para ver a minha Terra.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
155
VI
Ecce nova facio omnia...
A imensa Assembleia da Cidade Santa bateu palmas, cantou e deu glória a Deus,
quando terminaram os relatos dos últimos dias da Humanidade. Depois, fez-se silêncio
total. E por toda a Assembleia da Nova Jerusalém, ressoou a voz do Amor:
— Pedro Apóstolo, conduz agora até junto do Trono da Trindade o teu irmão e
novíssimo Pedro e, com ele, todos os que vieram da grande tribulação.
— Senhor, eu não sou digno!...
— A dignidade tem-na quem a vestiu, Pedro! Foste fiel na missão que a Igreja te
confiou, lutaste até ao fim das tuas forças para a todos encaminhar para esta Jerusalém
Celeste, a Cidade Santa — de que a outra fora apenas metáfora —, e que, desde toda a
eternidade preparei para todos os que, livremente, se decidiram pelo Amor. Deste
testemunho forte do mesmo Amor que o Nosso Verbo levou à Humanidade! Lavaste a
muitos no Sangue do Cordeiro! Vês, agora, esta multidão imensa que te acompanha? É
justa a recompensa que te está reservada! Vem receber a coroa de glória que atribuímos
a quem voluntariamente deu tudo! Ultrapassaste a barreira da primeira etapa da Vida...
estás agora do outro lado! Não vês a luz, a claridade imensa que te ilumina, a ti e a todos
os santos?
— Vejo, sim, meu Senhor e Meu Deus!
— Sim, Pedro, vês o que nunca te fora dado ver, porque as primeiras coisas
passaram... e os teus olhos estão agora libertos das trevas da finitude.
— Vejo, sim, AMOR INFINITO, a claridade que não cega mas atrai e consola, o
nosso Redentor, o Ressuscitado, o Senhor Jesus sobre imensa nuvem branca, formada
por multidão de anjos, a afastar d'Ele os que não quiseram amar... e a convidar todos os
outros — os que amaram e, amando, inscreveram os seus nomes no livro da Vida — a
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
156
entrar no Reino, da VERDADE que viveram, da JUSTIÇA que praticaram!
— Sou Eu, Pedro! Sou Eu, irmãos vindos da grande tribulação!
Sim, sou Eu — VERITAS — o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim de todas as coisas,
o Verbo de Deus! Por esta Palavra Eterna, tudo foi criado. E n'Ela, a criação foi redimida.
Por Ela, foi reduzido a cinzas o reino das trevas. Satanás não mais terá poder algum sobre
aqueles que mergulharam suas túnicas no sangue do Cordeiro.
À ordem do Senhor todo Luz e Misericórdia, Pedro Apóstolo levou-me — a mim e a
toda a Peregrinação que acabara de chegar ao cimo da Montanha — a ver a magnitude
da beleza que Deus dispensou a quantos O amam e, amando-O, amam os irmãos. Vi
então, como João em Patmos que já não é, «um novo Céu e uma nova Terra, porque o
primeiro Céu e a primeira Terra haviam desaparecido e o mar já não existia. Vi a cidade
santa, a nova Jerusalém que descia do Céu, de junto de Deus, bela como a esposa que se
ataviou para o seu esposo».
E ouvi, como João em Patmos que já não é... uma voz forte que dizia: «Não haverá
mais morte, nem prantos, nem gritos, nem dor, porque as primeiras coisas passaram».
— É esta a era das coisas novas. Que nunca mais terá fim!
Então perguntei ao Senhor:
— E o que vai ser daquele montão de cinzas que ficou do outro lado?
— Não te preocupes. Nunca leste: «Eis que faço novas todas as coisas?»
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
157
VII
Visionem vidi...
Tinha trabalhado até altas horas. Ao deixar pela primeira vez o meu querido povo
do Rio, tinha o especial dever de ordenar o trabalho que recairia sobre o mais velho dos
meus bispos auxiliares, de sorte que nada ficasse ao acaso. Antes de me deitar, pedi o
registo telefónico de despertar: às oito horas! Tudo programado para sair pelas dez,
depois de visitada a casa-mãe da obra dos meninos da rua. O sono que dormi, porém,
nem foi longo, nem reparador. Bem pelo contrário. Depois de um turbilhão onírico que
me manteve em suspenso durante o tempo nocturno em que estive deitado, caí num
sono profundo, às primeiras horas do dia. De forma que não ouvi o telefone pelas não sei
quantas vezes que terá tocado. Só o sol quente do Rio foi capaz de me acordar, quando
começou a bater-me forte no rosto. Inquieto, o meu auxiliar dispunha-se, então, a abrir a
porta com o duplicado da chave, quando ouviu o ruído do salto que dei para fora da
cama, esfregando os olhos e abrindo a janela.
— D. Pedro — gritou, aflito, do outro lado — são quase dez horas e o voo para
Roma parte do Galeão, às onze! Há, por aí, alguma coisa de errado?
— Meu querido Irmão — disse, abrindo a porta — nada de errado... não sei...
talvez não!... Sei lá, foi um enorme pesadelo, um sonho terrível, como nunca me
acontecera na vida. Nem quero lembrar! Não ouvi o despertador. Mas tens a certeza de
que ainda consegues deixar-me no aeroporto em tempo?
— Tem mala aviada, papéis em ordem, tudo pronto?
— Ó meu amigo, sabes como eu sou quando viajo: não me deito de véspera sem
primeiro passar revista a tudo o que hei-de levar. Tudo. Esta mala está pronta a seguir
para o carro. Se me fizeres o favor. Só aguardas cinco minutos e estarei no meu lugar.
A caminho do aeroporto, dei conta ao meu bispo auxiliar de algumas cenas
terríveis do meu pesadelo e fiz-lhe as últimas recomendações.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
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— O meu arcebispo tem mesmo necessidade de repouso absoluto. Lembre-se
daquilo que o psiquiatra lhe disse: «está à beira da depressão!»
Já no aeroporto, aguardando embarque, recebi mensagem classificada de
"confidencial" de um amigo do Vaticano que me dava conta: — «Papa muito mal. Stop.»
Por momentos ainda hesitei. Viajo para Tivoli? Não?... E o médico depois que me
vai dizer? E que direi eu à minha consciência se entretanto o meu estado piorar?
Última chamada dos senhores passageiros do voo Varig 1319, para Roma: «devem
dirigir-se imediatamente para a porta número vinte e três».
— Olha, meu caro bispo auxiliar, vou! Tivoli é o meu destino secreto. Só tu sabes
onde me encontrar. Telefona-me sempre que for julgado necessário. De resto, vou
cumprir à risca os mandamentos do Dr. Cardoso: «Ligar à terra!»
— Mas… e essa da mensagem? Se o Papa, entretanto...
— Estarei perto dos acontecimentos. Cuida do nosso rebanho. Que nenhuma
ovelha se perca. Quanto ao mais, sempre assim foi, sempre assim será — a um Papa
segue-se outro Papal...
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Pode o meu arcebispo descansar. — E,
em aparte — que bem precisa...
— Como? — Os dois homens despediam-se, já na plataforma de embarque. Mas
Pedro, intrigado com a última frase do auxiliar, ainda se volta para trás: — Olhe,
pensando bem, aquilo que eu tive esta noite não foi pesadelo, não... Eu tive uma visão!...
— «Visionem vidi...»
— Uma visão?... — Perguntava, ainda, D. Arcílio Fazendeiro, acenando ao
arcebispo, como que em gesto de me fazer voltar atrás.
— Não sei, meu Irmão. Eu estou doente e a minha doença é psíquica. Estou
cansado, esgotado, não é?... Depois darei notícias. — Quase gritava junto do primeiro
degrau da escada de acesso à aeronave. Olhando para trás novamente, vi que o meu
auxiliar chorava. Fiz-lhe sinal de adeus com as duas mãos. E segui em frente, pois não
aguentava mais.
Quando o aparelho descolava e se fazia às alturas, de rosto entre as mãos assentes
sobre os joelhos, eu chorava também como nunca. Pensava e repensava tudo, tentando
descobrir qualquer ponta de lógica naquele quadro confuso, verdadeiramente surrealista
e apocalíptico do sonho horrível de uma noite irrepetível. Mas não me saía da cabeça
que, no meio de tanta confusão, havia coisas de um realismo atroz, dados de tal verdade,
que (quase) legitimavam a afirmação — «eu vi»!... Enfim, qualquer coisa me dizia que o
pesadelo da noite anterior era muito mais que uma exacerbada actividade onírica de
qualquer mente à beira do abismo.
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
159
Em Roma, tive notícias de ligeiras melhoras na saúde do Papa. — «Aquela gente
ainda é capaz de o embalsamar, escolhendo o dia, o mês e o ano, para dar a notícia da
morte!» — Era a voz mordaz do meu amigo que quis ter a gentileza de me esperar no
Leonardo Da Vinci e de me transportar a Tivoli.
— Obrigado, meu bom Amigo. Agora, se me permite, vou descansar.
— Foi um prazer, meu caríssimo D. Pedro do Rio. Descanse bem. Cumpra à risca
tudo o que o Dr. Cardoso lhe prescreveu. Sobretudo, distraia-se por entre a vegetação e
as belezas naturais das elevações de Tivoli e a arte que, por ali, se encontra exposta. Mas
converse com as pessoas. Não se isole. Ah! E procure esquecer tudo o que está para
trás... Uma coisa, porém, deve ter como certa: ao menos o Monte Célio é uma
realidade!...
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
160
Índice
7 - I. Tu es Petrus...
49 - II. Tenebrae factae sunt...
94 - III. Sic Deus dilexit mundum!...
124 - IV. Meretrix magna Babiloniam corruit...
146 - V. Veni, Domine! Veni!...
155 - VI. Ecce nova facio omnia...
157 - VII. Visionem vidi...
Alberto Campinho Pedro II – O Último Papa
161
Pedro do Rio, cardeal brasileiro, é aclamado como o novo Papa depois
de várias tentativas frustradas em conclave. Surpreendentemente,
escolhe o nome de Pedro II. Porque na linha directa de Pedro I, Pedro
II vai terminar com todos os negócios obscuros do Vaticano,
devolvendo-o à maior pureza. Porque o Vaticano vai mudar!
«O mundo do Século XXI afunda-se num individualismo grosseiro. As
nações ricas fomentam a guerra entre os povos mais atrasados,
vendendo-lhes as armas com que estes se matam, para lhes levar as
riquezas naturais que possuem, ao preço das balas e do sangue que
elas fazem! Populações inteiras do Terceiro Mundo são vítimas de
genocídios horrorosos, de limpezas étnicas de uma brutalidade nunca
antes vista na história da Humanidade, de fome generalizada que
ceifa, antes de outras, as vidas de inocentes que apenas cometeram o
pecado de terem nascido naquelas coordenadas. O tráfico de
menores para os chamados paraísos do sexo ou, não raro, para
pesquisas laboratoriais, como se de ratos se tratasse, ou, pior ainda,
para as grandes clínicas dos países ricos, a fim de serem "dadores de
órgãos"; a passagem de droga que destrói famílias e mata a nossa
juventude; a lavagem de dinheiro sujo, proveniente das explorações
mais ignominiosas do ser humano, tudo é feito hoje com a
consciência tranquila das autoridades nacionais e das instâncias
internacionais, dentre elas o próprio Vaticano que retira
despudoradamente desses negócios satânicos chorudos rendimentos
que vão parar aos cofres do I0R.»