alexandre silva melo a falta de afeto e o direito de ... · se a busca de indenização...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES DEPARTAMENTO DE DIREITO - DIR CAMPUS DE CAICÓ ALEXANDRE SILVA MELO A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELOS PAIS CAICÓ RN 2016

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Page 1: ALEXANDRE SILVA MELO A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE ... · se a busca de indenização compensatória em face de danos que os pais podem causar a seus filhos. Isto se dá, por diversas

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES

DEPARTAMENTO DE DIREITO - DIR

CAMPUS DE CAICÓ

ALEXANDRE SILVA MELO

A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELOS PAIS

CAICÓ – RN

2016

Page 2: ALEXANDRE SILVA MELO A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE ... · se a busca de indenização compensatória em face de danos que os pais podem causar a seus filhos. Isto se dá, por diversas

ALEXANDRE SILVA MELO

A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELOS PAIS

Artigo apresentado ao Departamento de Direito

do Centro de Ensino Superior do Seridó da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como exigência parcial, para obtenção do Grau de

Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Me. Dimitre Braga Soares de

Carvalho.

CAICÓ – RN

2016

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Catalogação da Publicação na Fonte

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

M528f Melo, Alexandre Silva.

A falta de afeto e o direito de indenização pelos pais / Alexandre

Silva Melo. – Caicó, 2016.

37 f.

Orientador: Dimitre Braga Soares de Carvalho.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) –

Centro de Ensino Superior do Seridó. Universidade Federal do Rio

Grande do Norte.

1. Direito de família. 2. Abandono afetivo. 3. Princípio jurídico

da afetividade. 4. Responsabilidade civil. I. Carvalho, Dimitre Braga

Soares de. II. Título.

UFRN/CERES CDU : 347.61

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ALEXANDRE SILVA MELO

A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE INDENIZAÇÃO PELOS PAIS

Artigo apresentado ao Departamento de Direito

do Centro de Ensino Superior do Seridó da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como exigência parcial, para obtenção do Grau de

Bacharel em Direito.

Aprovado em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________

Prof. Me. Dimitre Braga Soares de Carvalho – UFRN/CERES

Orientador

_______________________________________________________

Prof. Rogério de Araújo Lima – UFRN/CERES

Examinador

________________________________________________________

Prof. Saulo de Medeiros Torres – UFRN/CERES

Examinador

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Dedico este artigo a

Tássia, compreensiva experimentadora das minhas ausências, durante o curso de Direito;

Lívia, fruto dos meus mais puros sentimentos, algo de muito amor e pedaço mais nobre do

meu ser, pelas horas que lhes foram tiradas, na elaboração deste artigo, na certeza de que

nossos sonhos se concretizarão, em busca de algo que nos una e plenifique.

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AGRADECIMENTOS

Após os percalços do caminho, resta-nos agradecer a todos aqueles que contribuíram

para a concretização deste momento maior. Na impossibilidade de citar todos os nomes, que

ajudaram a tirar “a pedra do caminho”, permitimo-nos destacar:

DEUS, Artífice Maior de todo o conhecimento;

Professor Dimitre Braga Soares de Carvalho, pela proficiente orientação;

Aos demais professores do Curso de Direito do CERES – Campus de Caicó, pela

disponibilidade em transmitir o que há de melhor no conhecimento;

Meus pais, pela paciência e perseverança na educação dos filhos;

Professor Antônio de Lisboa Araújo, pelos sábios conselhos e excelência na revisão

do vernáculo;

Todos aqueles que, direta ou indiretamente, colaboraram para a concretização deste

sonho.

Pelo que só DEUS e nós sabemos, agradeço de todo o coração!

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No mundinho habitado pelas crianças, seja quem for a pessoa que as

cria, não há nada que seja percebido com mais clareza, nem sentido

com mais profundidade que uma injustiça.

(CHARLES DICKENS)

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RESUMO

O presente trabalho tem como escopo a Responsabilização Civil dos pais – e a condenação ao

pagamento de indenização compensatória – pelo abandono afetivo perpetrado contra os filhos.

Neste intuito, o abandono afetivo será abordado a partir das transformações ocorridas na

sociedade e suas consequências para o ordenamento jurídico, especialmente, sobre as novas

bases da Família Constitucionalizada, pautada pelo Princípio da Dignidade Humana. O

Princípio Jurídico da Afetividade e sua ênfase no Direito de Família serão pontuados. O afeto

será tratado como elemento essencial para o integral desenvolvimento do ser humano, com o

objetivo de demonstrar como sua ausência pode prejudicar o desenvolvimento do indivíduo, a

partir da infância. Por fim, é trazida à discussão a possibilidade de responsabilização civil dos

pais fundamentada no Princípio da Afetividade e sua exigibilidade nas relações familiares.

Palavras-chave: Direito de Família. Abandono Afetivo. Princípio Jurídico da Afetividade.

Responsabilidade Civil.

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ABSTRACT

This work is scoped to the Civil Liability of parents - and condemnation to the payment of

compensatory damages - for the affective abandonment perpetrated against children. To this

end, the emotional abandonment is approached from the changes taking place in society and

their consequences for the legal system, especially on the new foundations of the

Constitutionalized Family, guided by the Principle of Human Dignity. The Legal Principle of

Affection and its emphasis on Family Law will be illustrated. Affection will be treated as an

essential element in the integral development of the human being in order to demonstrate how

its absence can harm the development of the individual since childhood. Finally, it is brought

to the discussion the possibility of civil liability of the parents based on the Principle of

Affection and their liability in family relationships.

Keywords: Family Law. Affective Abandonment. Legal Principle of Affection. Civil

Liability.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 9

2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE – O AFETO NA CIÊNCIA JURÍDICA ................. 10

3 O DEVER DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL ........................................................ 16

4 O ABANDONO AFETIVO E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS .......... 21

5 O ABANDONO AFETIVO NA JURISPRUDÊNCIA .................................................... 29

6 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 32

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 34

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1 INTRODUÇÃO

A família nos dias atuais tem um caráter Eudemonista, pautada pelos Princípios da

Dignidade da Pessoa, da Igualdade, da Proteção Integral da Criança e ao Adolescente e, como

não poderia deixar de ser, pelo Direito ao Relacionamento Familiar.1

Neste contexto, diante da exigibilidade da chamada Paternidade Responsável, observa-

se a busca de indenização compensatória em face de danos que os pais podem causar a seus

filhos. Isto se dá, por diversas vezes, por força de uma conduta imprópria, especialmente,

quando a eles são negados a convivência, os amparos afetivos, moral e psíquico. Tais

condutas, como pretende demonstrar o estudo, acarretariam a violação de direitos próprios da

personalidade, de forma a ferir seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome,

a dignidade, a moral, a reputação social, que per si, justificam a sua gravidade.

A Constituição Federal de 1988 permitiu uma mudança de paradigmas. Sob o manto

do Princípio da Dignidade Humana, muitos Tribunais passaram a reconhecer a relevância do

afeto nas uniões familiares e o valor que lhe deve ser atribuído pelo Direito, para exercer o

seu papel na formação e no desenvolvimento do indivíduo.

Nesta linha de pensamento, partindo do pressuposto de que o afeto é um elemento

imprescindível para todo e qualquer ser humano no seu desenvolvimento pessoal, buscar-se-á

verificar sua exigibilidade no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Sob uma perspectiva naturalmente jurídica, mas sem olvidar de um olhar voltado para

aquilo que se acredita justo, o presente trabalho abordará, através da Doutrina, das Leis e da

Jurisprudência pertinentes ao assunto, algumas questões relevantes quanto à Responsabilidade

Civil pelo Abandono Afetivo.

Com um viés voltado para o Direito de Família, a Responsabilidade Civil das pessoas

envolvidas na relação familiar será tratada não somente por um plano material, mas

principalmente moral, face à possibilidade de danos de ordem subjetiva, que venham

caracterizar uma violação ao ordenamento jurídico vigente.

Espera-se através deste estudo, ressaltar a importância do afeto nas relações familiares,

representado no mundo jurídico pelo Princípio da Afetividade, como um motus na mudança

1 GROENINGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à

eficácia e sensibilização de suas relações no poder judiciário. 2011. 242 p. Tese (Doutorado em direito) –

Universidade de São Paulo, São Paulo: USP, 2011.

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de paradigmas e, de forma despretensiosa, como estímulo à reflexão por uma sociedade mais

justa e fraterna, pautada pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE – O AFETO NA CIÊNCIA JURÍDICA

Apesar da importância da afetividade para o indivíduo e para a sociedade, não se

discutia há algum tempo, sua relevância na área jurídica. De uma maneira ou de outra, os

aspectos patrimoniais sempre tiveram maior destaque na legislação.

A defesa da relevância do afeto torna-se muito importante, não somente para a vida

social. A compreensão deste valor nas relações do Direito de Família leva à conclusão de que

o envolvimento familiar não pode ser considerado somente do ponto de vista patrimonial-

individualista. Há necessidade de ruptura dos paradigmas até agora existentes, para se poder

proclamar, sob a égide jurídica, que o afeto é elemento relevante, a ser observado na

concretização do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.2

Com o advento do Estado Democrático de Direito pela Carta Magna de 1988, a ordem

jurídica constitucional avocou para as relações de Direito Privado, em particular para as

relações de família, a dignidade da pessoa humana como valor central, superando todos os

outros interesses patrimoniais, institucionais, matrimoniais ou ideológicos que pudessem, por

assim dizer, se sobrepor na escolha de princípios ou nas novas técnicas legislativas.3

Juntamente com isso, observou-se uma gradativa alteração da estrutura do modelo

familiar. A relativização das funções de cada membro da família modificou sua disposição

tradicional: pai, mãe e filho, ao primeiro cabendo o comando e a gestão do lar. Outras e

variadas configurações familiares rompem as correntes da família matrimonializada, que não

mais correspondem às relações de fato em que se envolvem as pessoas na época atual.4

Verifica-se que a família contemporânea tem como elemento primordial o indivíduo

que a compõe, a vivenciar, neste núcleo, os sentimentos essenciais à sua estabilidade

emocional e ao desenvolvimento da sua personalidade. Esta é a principal razão pela qual se

enfrenta a dificuldade de a conceituar juridicamente, uma vez que tais aspectos se sobrepõem

à formalidade.

2 ANGELUCI, Cleber Affonso. Abandono afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa

humana. Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 43-53, abr./jun. 2006. 3 TEPEDINO, Gustavo. Clonagem: pessoa e família nas relações do direito civil. Revista CEJ, Brasília, n.16, p.

49-52, jan. /mar. 2002. 4 ANGELUCI, Cleber Affonso. Abandono afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa

humana. Revista CEJ, Brasília, n. 33, p. 43-53, abr./jun. 2006.

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Diante deste novo contexto, convém destacar estudo de Rodrigo da Cunha Pereira,

que através de uma análise dialética do Direito de Família com a Antropologia e a Psicanálise,

afirma que a família é uma estruturação psíquica e que essa estruturação familiar existe antes

e acima do Direito que a vem regulando e legislando. Esta constante regulação tem “o intuito

de mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão [...] e trabalhar na

construção de si mesmo, ou seja, na estruturação do ser-sujeito e das relações interpessoais e

sociais, que possibilitam a existência dos ordenamentos jurídicos.”5

Prossegue o autor supracitado mostrando que os novos ideais que surgiram a partir

dessas mudanças levaram ao declínio do patriarcalismo e fizeram aflorar a noção da dignidade

da pessoa humana, que passou a compor a estrutura principiológica das principais

constituições democráticas, em face da Declaração dos Direitos Humanos promulgada pela

Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948.6

Baseado nestas considerações, depreende-se que no contexto dos ideais de liberdade

consolidados por ocasião da Declaração Universal dos Direitos Humanos, está inserida a

liberdade das pessoas de escolherem outras formas diversas de constituição de família, além

daquelas traduzidas em uma sequência codificada.

[...] associada aos ideais de liberdade dos sujeitos, em todos os seus sentidos,

está a necessidade de buscarmos um conceito de família que esteja acima de

conceitos morais, muitas vezes estigmatizantes. Assim, devemos buscar um

conceito de família que possa ser pensado e entendido em qualquer tempo ou

espaço, já que a família sempre foi, é e sempre será a célula básica da

sociedade.7

Neste compasso, compreende-se o alcance das transformações que se deram a partir

do art. 226 da Constituição Federal e seus parágrafos, especialmente o parágrafo 8º, que

assegura a assistência estatal à família na pessoa de cada um dos seus integrantes, conforme

visão prevalente na doutrina sobre a família contemporânea. O parágrafo 7º, do mesmo

dispositivo legal, também merece destaque, por tratar da paternidade responsável,

demonstrando que as mudanças na família, no que tange à seara jurídica, se estenderam às

questões da filiação, cujo tema também se aplica ao Princípio da Afetividade.

No modelo de família hodierna, os filhos deixaram de ser discriminados e adquiriram

igualdade, independentemente do tipo de relação de que advêm, seja esta, relação de

5 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de

Janeiro: Imago, 2003. p. 157-158. 6 Ibidem, p. 155.

7 Ibidem, p. 155.

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casamento, adoção ou inseminação artificial. No mesmo caminho dão-se os direitos relativos

à guarda dos filhos após o divórcio.

O Código Civil de 2002, em seu art. 1596, consagra a filiação socioafetiva, encerrando

o paradigma da legitimidade do Código de 1916, que estabelecia a relação entre filiação

legítima e biológica. Desta forma, os filhos legítimos eram biológicos, mas os filhos

biológicos nascidos fora da família matrimonializada não eram considerados legítimos. Este

fato é corroborado pelas palavras da professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

Em tempos passados, à luz do modo anterior de se dizer o direito, o que

efetivamente importava na relação entre pai e filho era a sua valoração

biológica e patrimonial. Com isso se quer dizer que, sem se preocupar com a

linha da afetividade, o Direito e a jurisprudência do passado mais se

preocupavam em garantir ao filho o reconhecimento consanguíneo (caráter

biológico da relação), o direito a alimentos e a sua possibilidade futura de

herdar (caráter patrimonial da relação).8

Uma evidência significativa no que se refere às questões da afetividade, é o fato de

que o paradigma atual distingue paternidade e genética; além disso, expandiu o conceito de

filiação, abrangendo os filhos advindos seja da adoção, inseminação artificial heteróloga ou

da posse de estado de filiação.9

Logo, “a filiação já não está enraizada tãosomente no matrimônio, podendo ser vista

por diversos aspectos, constatando-se por laços sanguíneos, por meio da presunção pater is

est e, atualmente, pelos laços afetivos.”10

Por sua vez, Fátima Nancy Andrigui e Cátia Denise Gress Krüger afirmam que a

família, em todos os tempos e especialmente na atualidade, tem como elemento primordial a

afetividade, o que a diferencia de outros grupos sociais. Este elemento “tem orientado

decisões e firmado posições no universo jurídico-familiar, não se podendo falar de filiação ou

de paternidade/maternidade se o afeto não estiver presente como termo de ligação entre pais e

filhos, vale dizer, em reciprocidade.”11

8 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na

relação entre pais e filhos : além da obrigação legal de caráter material. [2005]. Disponível em:

<http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosc/Giselda_resp2.doc>. Acesso em: 01 mar. 2016. 9 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real. Revista CEJ, Brasília: n. 34, jul./set.

2006. p.17. 10

CYSNE, Renata Nepomuceno e. Os laços afetivos como valor jurídico: na questão da paternidade

socioafetiva. In: BASTOS, Eliene Ferreira; LUZ, Antônio Fernandes da (Coord.). Família e jurisdição II. Belo

Horizonte: Del Rey, 2008. p. 191. 11

ANDRIGHI, Fátima Nancy; KRÜGER, Cátia Denise Gress. Coexistência entre socioafetividade e a identidade

biológica : uma reflexão. In: BASTOS, Eliene Ferreira; LUZ, Antônio Fernandes da (Coord.). Família e

jurisdição II. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 83.

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Os princípios e valores constitucionais irradiaram-se sobre a codificação civil,

processando um movimento de personalização do Direito, cujo eixo de sustentação é a

dignidade da pessoa humana. A família, hoje, pode ser vista como o ambiente em que os

indivíduos encontram condições para o desenvolvimento de seus potenciais, um lugar de afeto

e compreensão, e só por isso se justifica.

Dentre os princípios que alicerçam as entidades familiares, o Princípio Jurídico do

Afeto vem marcar a passagem da ênfase impressa à consanguinidade para o fato cultural da

afinidade. A solidariedade mútua é o principal sustentáculo da família atual, como preceitua

Paulo Luiz Netto Lôbo:

A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de

convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época.

Suas antigas funções econômica, política, religiosa e procracional

feneceram, desapareceram, ou desempenham papel secundário. Até mesmo a

função procracional, com a secularização crescente do direito de família e

primazia atribuída ao afeto, deixou de ser a sua finalidade precípua.12

O Princípio da Afetividade não se encontra de forma explícita na Constituição Federal,

mas sua essencialidade pode ser encontrada em todos os princípios constitucionais

fundamentais da dignidade da pessoa humana. Ressalta-se, também, que o princípio jurídico

não se confunde com o afeto psicológico, como se depreende das lições de Paulo Luiz Netto

Lôbo:

A afetividade, como princípio jurídico, não se confunde com o afeto como

fato psicológico ou anímico, porquanto pode ser presumida quando este

faltar na realidade das relações; assim, a afetividade é dever imposto aos pais

em relação aos filhos e destes em relação àqueles, ainda que haja desamor ou

desafeição entre eles. O princípio jurídico da afetividade entre pais e filhos

apenas deixa de incidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver

perda do poder familiar. Na relação entre cônjuges e entre companheiros o

princípio da afetividade incide quando houver afetividade real, pois, esta é

pressuposto da convivência. Até mesmo a afetividade real, sob o ponto de

vista do direito, tem conteúdo conceptual mais estrito (o que une as pessoas

com objetivo de constituição de família) do que o empregado nas ciências da

psique, na filosofia, nas ciências sociais, que abrange tanto o que une quanto

o que desune (amor e ódio, afeição e desafeição, sentimentos de

aproximação e rejeição). Na psicopatologia, por exemplo, a afetividade é o

estado psíquico global com que a pessoa se apresenta e vive em relação às

outras pessoas e aos objetos, compreendendo “o estado de ânimo ou humor,

12

LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Revista Brasileira de Direito de

Família, Porto Alegre, v. 6, n. 24, p. 155, jun./jul. 2004.

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os sentimentos, as emoções e as paixões e reflete sempre a capacidade de

experimentar sentimentos e emoções.”13

Por sua vez, Rodrigo da Cunha Pereira afirma que, é na parentalidade afetiva que se

observa uma das mais relevantes consequências do Princípio da Afetividade, abrangendo os

filhos de criação e garantindo as funções parentais que não se fundam tãosomente na

similitude genética, mas no cuidado e na atenção dispensados aos filhos. Salienta que a

procriação, por si só, não implica o serviço e o amor que revestem a paternidade. E por isso,

A verdadeira experiência da paternidade, da maternidade ou da filiação não é

garantida pela ascendência genética por tratar-se de uma construção que

transcende a semelhança entre os genes. Há que se preencher, no imaginário

de cada membro familiar, o lugar simbólico de pai e de mãe, o que não se

atinge, simplesmente, com a presença de um ou de outro, mas com o efetivo

cumprimento das referidas funções para a saudável estruturação biopsíquica

de cada elemento que compõe a família.14

Prossegue o autor, com raciocínio preciso, afirmando que “não se trata de uma ordem

jurídica obrigando a amar, mas de um imperativo que crie a possibilidade de construção do

afeto, o que apenas é possível na convivência e na proximidade que estruturam e instalam a

referência paterna”.15

Com a mesma acuidade, Paulo Luiz Netto Lôbo afirma que a afetividade é a força

determinante das relações familiares, sendo que, na atualidade, muitas vezes se torna

desnecessária a intervenção do legislador, o que indica o afeto como a melhor solução para os

conflitos em família. Segundo o autor, quanto menor a intervenção, tanto melhor, sendo que a

incidência da intervenção legislativa se deve dar quando vier a fortalecer a afetividade, como

exemplifica:

Outras vezes a intervenção legislativa fortalece o dever de afetividade, a

exemplo da Lei nº 11.112/2005, que tornou obrigatório o acordo relativo à

guarda dos filhos menores e ao regime de visitas, na separação conjugal,

assegurando o direito à companhia e reduzindo os espaços de conflitos, e da

Lei nº 11.698/2008, que determinou a preferência da guarda compartilhada,

quando não houver acordo entre os pais separados.16

13

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade. In: ____. Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

2009. p. 47. 14

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo

Horizonte: Del Rey, 2005. p. 184. 15

PEREIRA, Op. cit., p. 188. 16

LÔBO, Op. cit., p. 51.

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15

Seguindo a mesma linha de pensamento, utilizar-se-á da sensibilidade de Rolf

Madaleno:

Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de

afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente

demonstração de amor à pessoa gerada por indiferente origem genética, pois

importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por

afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias, a realização e a felicidade

da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas,

esperanças e preocupações; mostrar caminhos, aprender, receber e fornecer

informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o

coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma

e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado

dentro do seu coração.17

A aplicação do princípio da afetividade tem sido conjecturada pela doutrina jurídica

pátria em diversas situações do Direito de Família, a saber: na dimensão da solidariedade e da

cooperação; da funcionalização da família para o desenvolvimento de seus membros; do

regime de direcionamento dos papéis masculino e feminino e da relação entre legalidade e

subjetividade; dos efeitos jurídicos da reprodução humana medicamente assistida,

independentemente da origem biológica ou não biológica.18

Soma-se a esta discussão travada no âmbito jurídico, o estudo na área da Psicologia,

elaborado por Valdinéia Borba e Maria de Lourdes Spazziani, no qual demonstram que a

interação social é fator fundante dos processos psicológicos superiores e estes são

indissociáveis do afeto. A partir das análises sobre o estudo das emoções e da afetividade para

fundamentar pesquisas sobre a psicogênese da pessoa completa, concluiu-se que a afetividade

é fator fundamental na construção do sujeito:

A afetividade é entendida como instrumento de sobrevivência do ser

humano, pois corresponde à primeira manifestação do psiquismo,

propulsiona o desenvolvimento cognitivo ao instaurar vínculos imediatos

com o meio social, abstraindo deste o seu universo simbólico, culturalmente

elaborado e historicamente acumulado pela humanidade. Por conseguinte, os

instrumentos mediante os quais se desenvolverá o aprimoramento intelectual

são, irremediavelmente, garantidos por estes vínculos, estabelecidos pela

consciência afetiva.19

17

MADALENO, Rolf. Filhos do coração. Revista brasileira de direito de família, Porto Alegre : Síntese, n.

23, abr./maio. 2004. 18

Ibidem, p. 51-52. 19

BORBA, Valdinéa R. S; SPAZZIANI, Maria de Lourdes. Afetividade no contexto da educação infantil.

[200-]. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/gt07-3476--int.pdf>. Acesso em : 28

fev. 2016.

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16

Assim, a afetividade assume papel fundamental no desenvolvimento humano,

determinando os interesses e necessidades individuais da pessoa; é um domínio funcional,

anterior à inteligência.20

Outrossim, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka sintetiza a essência do

Princípio da Afetividade no ordenamento jurídico:

É na afetividade que se desdobra o traço de identidade fundamental do

direito gerado no seio da relação paterno-filial, que, sem deixar de ser

jurídica, distingue-se de todas as demais relações, justamente pelo fato de

que ela, e apenas ela, pode, efetivamente, caracterizar-se e valorar-se, na

esfera jurídica, pela presença do afeto.21

Baseado nas evidências apresentadas até o momento, fica patente o destaque do afeto

nas uniões familiares e o valor que lhe dever ser atribuído pelo Direito, para exercer o seu

papel na formação e no desenvolvimento da pessoa, de forma a cumprir o Princípio da

Dignidade da Pessoa Humana.

3 O DEVER DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL

Como visto anteriormente, a Carta Magna de 1988 estabeleceu a proteção da

dignidade do ser humano como valor supremo, assegurando a todos, indistintamente, a

efetividade dos direitos e das garantias fundamentais. Portanto, o Princípio da Dignidade da

Pessoa Humana é o núcleo da Constituição Federal de 1988, sendo que dele derivam os

demais princípios e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

A Constituição Federal de 1988, tutelando a proteção de crianças e adolescentes,

passou a tratá-los, também, como sujeitos de direitos, equiparando-os aos adultos. Tanto é

assim que, em seu artigo 227, alterado pela EC nº 65/2010, a Lex Maior aponta - não de

forma taxativa - direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente, os quais

devem ser promovidos sempre com absoluta prioridade. Assim, a redação do art. 227, ipsis

litteris:

20

BORBA, Valdinéa R. S; SPAZZIANI, Maria de Lourdes. Afetividade no contexto da educação infantil.

[200-]. Disponível em: <http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/gt07-3476--int.pdf>. Acesso em : 28

fev. 2016. 21

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na

relação entre pais e filhos : além da obrigação legal de caráter material. [2005]. Disponível em:

<http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosc/Giselda_resp2.doc>. Acesso em: 01 de mar. 2016.

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17

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao

adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão.22

A prioridade prevista pela norma visa a tutelar a condição de vulnerabilidade das

crianças e adolescentes. Este é fator que fundamenta a responsabilidade dos pais pelos filhos,

a qual é irrenunciável. Leva-se em conta o fato de serem pessoas em desenvolvimento, pelo

que merecem tratamento e cuidados especiais, a fim de que este desenvolvimento seja pleno

material e emocionalmente.

Como importante marco deste novo enfoque dado aos direitos da criança e do

adolescente destaca-se a Doutrina da Proteção Integral. As crianças e adolescentes foram

postos a salvo de toda forma de negligência.23

Consagrada por meio da Convenção das

Organizações das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças - aprovada em 1989 e

ratificada pelo Brasil, em 1990, por meio do decreto n. 99.710, preconiza a referida doutrina

que as crianças e os adolescentes são detentoras de direitos da mesma forma como os adultos

e gozam de prioridade imediata e absoluta com relação à proteção de seus interesses, os quais

devem ser resguardados, em qualquer circunstância, sempre devendo ser levado em conta o

seu quadro de vulnerabilidade, dada a sua peculiar condição de desenvolvimento.24

No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.

8.069/1990), busca regulamentar integralmente a proteção à criança. Estabelece, no seu art.

3º, que às crianças e adolescentes devem ser asseguradas todas as oportunidades necessárias

ao seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais

inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata

esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as

oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,

mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de

dignidade.25

22

BRASIL. Lex: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 27 abr. 2016. 23

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013. p. 464 24

MEIRA. Fernanda de Melo. A guarda e a convivência familiar como instrumentos veiculadores de direitos

fundamentais. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Coord.). Manual de

direito das famílias e das sucessões. Belo Horizonte: Del Rey; Mandamentos, 2008. p. 282-283. 25

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente e dá

outras providências. 1990a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso

em: 29 abr. 2016.

Page 20: ALEXANDRE SILVA MELO A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE ... · se a busca de indenização compensatória em face de danos que os pais podem causar a seus filhos. Isto se dá, por diversas

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Dessa forma, há de se ter certa preocupação em relação aos traumas a que a criança

possa ser exposta, desde os primeiros anos de vida, evitando-se, ao máximo, sua exposição às

condições adversas para sua formação.

O art. 4º, por seu turno, preconiza uma série de direitos fundamentais que devem ser

assegurados pela família, comunidade e sociedade em geral.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder

público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos

referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária.26

O art. 5º põe a salvo a criança e o adolescente de qualquer forma de negligência e

opressão, com a seguinte redação: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer

forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na

forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”27

Convém destacar que o próprio texto da Convenção das Organizações das Nações

Unidas sobre os Direitos das Crianças reconheceu que, a criança e o adolescente, "para o

pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, devem crescer no seio da família,

em um ambiente de felicidade, amor e compreensão."28

Nesta direção, importante ressaltar o

Princípio da Parentalidade Responsável, interpretado de acordo com as atuais diretrizes que

regem o Direito de Família, as quais têm como pressuposto o fortalecimento da personalidade

dos membros da família como prioridade, minimizando, assim, o seu aspecto meramente

patrimonial.

Entende-se por este princípio que os pais têm os deveres de assistir, criar e educar os

filhos, decorrentes do exercício da autoridade parental. Estas atribuições estão definidas na

Constituição Federal, no artigo 229. “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos

menores” [...].29

Ademais, conforme redação do art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é

direito da criança ou adolescente ser criado e educado no seio de sua família, assegurado

26

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente e dá

outras providências. 1990a. Disponível em : <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso

em : 29 abr. 2016. 27

Ibidem. 28

BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a convenção sobre os direitos das

crianças. 1990b. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>.

Acesso em: 29 abr. 2016. 29

BRASIL. Lex: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 27 abr. 2016.

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também o direito à convivência familiar.30

Nas disposições acerca do exercício do poder

familiar, determina o Código Civil, no art. 1.634, I, que compete a ambos os pais dirigir ao

filho a plena criação e educação.31

Extrai-se dos textos legais que a obrigação dos pais para

com seus filhos ultrapassa os aspectos materiais e passa a ser centrada no afeto e na

convivência familiar.

No Código Civil o Princípio do melhor interesse das crianças e dos adolescentes está

amplamente assegurado em seus artigos 1.583 a 1.590, em consonância com a Constituição.

No exercício da parentalidade responsável, a convivência familiar passa a ser um

direito fundamental, necessária para a proteção integral desses novos sujeitos de direito, em

cujo seio são geradas inúmeras obrigações, tal qual analisa Maria Helena Diniz:

O direito à convivência familiar deve ter como paradigma o respeito à

dignidade da criança e do adolescente como pessoas humanas (CF, art. 1º,

III). O aplicador do direito, consequentemente, não poderá admitir qualquer

conduta que venha a reduzir o menor à condição de coisa, retirando dele a

sua dignidade e o direito a um convívio familiar fundado no afeto. Dever-se-

á encarar a criança e o adolescente como sujeitos de direito, que necessitam

de uma proteção integral na convivência familiar, que é um direito

fundamental deles para que possam ter um pleno desenvolvimento psíquico

e físico.32

Neste sentido, põem-se em relevo as previsões do Estatuto da Criança e do

Adolescente nos artigos 17, 19 e 21.

Isto porque, o salutar desenvolvimento da criança e do adolescente envolve uma

dinâmica entre as bases emocionais e os valores morais e pedagógicos que são adquiridos

durante a infância, os quais advêm precipuamente das relações afetivas paterno-filiais, que

afetam sobremaneira a construção do caráter do indivíduo, pois são os pilares da formação da

sua personalidade. É inconcebível afastar da responsabilidade parental o dever de dar afeto,

amparo moral e de conviver com o filho durante esta contínua fase de construção do ser

humano.

Deste modo, a convivência familiar é direito dos filhos e deve ser assegurada com

prioridade pelos pais. Esta circunstância não pode ser alterada quando os pais são separados

ou divorciados e apenas um dos genitores exerce a guarda do filho. Aquele que não está na

30

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o estatuto da criança e do adolescente e dá

outras providências. 1990a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso

em: 29 abr. 2016. 31

BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o código civil. 2002. Disponível em :

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em : 29 abr. 2016. 32

DINIZ, Maria Helena. Direito à Convivência Familiar. In: TARTUCE, Flávio; CASTLHO, Ricardo (Coord.).

Direito civil : direito patrimonial e direito existencial. São Paulo : Método, 2006. p. 802.

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companhia do filho deve procurar visitá-lo e aproximar-se. Tal encargo decorre do poder

familiar, que é exercido por ambos os genitores, independentemente da situação conjugal em

que se encontram.

A Paternidade Responsável encontra-se insculpida no § 7º do artigo 226 da

Constituição Federal. Para Rolf Madaleno, dentre os indispensáveis deveres paternos está o de

assistência moral, psíquica e afetiva para com os filhos:

[...] respeitante à interação do convívio e entrosamento entre pai e filho,

principalmente quando os pais são separados, ou nas hipóteses de famílias

monoparentais, onde um dos ascendentes não assume a relação fática de

genitor, preferindo deixar o filho no mais completo abandono, sem exercer o

direito de visitas, o que certamente afeta a higidez psicológica do

descendente rejeitado. [...] Conforme Graciela Medina, os expertos em

psicologia têm afirmado que o filho abandonado por seu pai sofre trauma e

ansiedade, com nefasta repercussão em suas futuras relações, ressentidas de

autoconfiança.33

A psicanalista e advogada Gisele Câmara Groeninga, em uma perspectiva

interdisciplinar, ressalta a importância dos relacionamentos e dos vínculos que criamos, ao

longo da vida para a formação da nossa identidade.

Os psicanalistas, na investigação e interpretação da vida mental, revelaram

no adulto a influência de sua infância; na criança, a influência de sua

primeira infância; no bebê, a influência dos pais e, finalmente, revelaram que

estas influências passam consciente e inconscientemente de geração em

geração. Temos um passado de relacionamentos que se somam no presente

da vida, moldando nossa forma de interpretar o mundo.34

O conceito de família, como visto anteriormente, é centrado no afeto como elemento

agregador, e exige dos pais o dever de criar e educar os filhos sem lhes omitir o carinho

necessário para a formação plena de sua personalidade. A grande evolução das ciências que

estudam o psiquismo humano acabou por escancarar a decisiva influência do contexto

familiar para o desenvolvimento sadio de pessoas em formação. Conforme os ensinamentos

de Maria Berenice Dias:

33

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 317-318. 34

GROENINGA, Gisele Câmara. Direito à integridade psíquica. Instituto Brasileiro de Direito de Família.

2007. Disponível em:

<http://www.ibdfam.org.br/artigos/192/O+Direito+%C3%A0+integridade+ps%C3%ADquica>. Acesso em : 30

abr. 2016.

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Não se pode mais ignorar essa realidade, tanto que se passou a falar em

paternidade responsável. Assim, a convivência dos filhos com os pais não

é um direito, é um dever. Não há direito de visita-lo, há obrigação de

conviver com ele. O distanciamento entre pais e filhos produz sequelas de

ordem emocional e pode comprometer o seu sadio desenvolvimento. O

sentimento de dor e de abandono pode deixar reflexos permanentes em sua

vida.35

(grifo do autor)

Neste contexto, destaca-se o chamado abandono afetivo, condição em que um dos pais

deixa de ter o filho em convivência, não lhe prestando os devidos cuidados e negando-lhe o

afeto e o carinho. O abandono afetivo, certamente, viola a integridade da criança e do

adolescente e causa prejuízos a sua personalidade. Cabe indagar, na sequência do presente

estudo, se esta situação configura dano moral e se há possibilidade de reparação do dano por

meio de indenização.

4 O ABANDONO AFETIVO E A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DOS PAIS

Não resta dúvida de que o desenvolvimento da pessoa, de forma a alcançar sua

dignidade como tal, será possível desde que haja respeito pelo ser humano que a criança em

desenvolvimento representa, com seus medos, anseios e frustrações e, acima de tudo, com

seus vínculos afetivos estabelecidos desde o nascimento, na coletividade familiar.

Contudo, a omissão injustificada de qualquer dos pais no provimento das necessidades

físicas e emocionais dos filhos sob o poder parental tem propiciado o sentimento

jurisprudencial e doutrinário de proteção e de reparo ao dano psíquico causado pela privação

do afeto na formação da personalidade da pessoa.36

Convém, ao abordar a questão do abandono afetivo no presente trabalho, fazer-se uma

referência direta ao Poder Familiar, que na esteira das evoluções sociais, modificou o seu

conceito. Este, atualmente, centra-se na importância dos relacionamentos familiares e ganha

um sentido de potência que se atualiza nas relações afetivas – substrato daquelas. O poder,

hoje, concentra-se muito mais na tensão advinda de uma dinâmica democrática, que deve

pautar as relações familiares. Não mais o acento está no direito dos pais sobre os filhos.

35

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2015. p. 97. 36

MADALENO, Rolf. O custo do abandono afetivo. [201-]. Disponível em:

< http://www.rolfmadaleno.com.br/novosite/conteudo.php?id=943>. Acesso em: 02 abr. 2016.

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22

De acordo com Giselle Câmara Groeninga, a compreensão do que representa esse

poder e das suas formas de exercício, pauta as relações das famílias transformadas. Assim,

[...]a guarda, as visitas, o contato, a convivência – em suma, o

relacionamento familiar – dependem de como se compreende esse poder:

como potência afetiva, no sentido de atendimento dos direitos da

personalidade de todos os integrantes da família, ou como forma de

submeter a desígnios do Estado ou a interesses pessoais e egoístas em

relação aos demais integrantes.37

Deve abrir-se um importante parêntese, nesta oportunidade, para aqueles casos, de

certa maneira comuns, que chegam ao Judiciário, nos quais o interesse e a proteção da criança

não são considerados, sendo muitas vezes usada como moeda em processos de separação.

Nega-se qualquer respeito à sua vida e sentimentos em troca de uma posição mais cômoda em

termos patrimoniais, ou, ainda, de modo desprezível, priva-se a outra pessoa do convívio e da

participação na vida do filho.

Nesse aspecto, considera-se conveniente aos agentes do Direito, em contato com tais

situações, frear os ânimos impulsivos e até mesmo irracionais, para preservar e garantir o bom

desenvolvimento psicológico da criança, sem traumas ou abalos que podem influenciar na

formação desse ser, envolvido em questões judiciais que não lhe dizem respeito.

Apesar dos progressos na seara do Direito de Família, especialmente nas questões

relativas à separação judicial e à situação dos filhos, não é incomum, ainda hoje, encontrar

casos em que se pretende manter a criança como simples objeto a exibir o melhor direito do

guardião. Como enfatiza Gustavo Tepedino:

[...]o que acaba por reduzir o papel dos pais na educação dos filhos, uma vez

extinta a sociedade conjugal, a um feixe de prerrogativas e poderes a serem

ostentados, exigidos e confrontados, a cada controvérsia envolvendo o

destino da prole – verdadeiro duelo entre proprietários ciosos de seus

confins.38

Surge, para enfrentamento dessa situação, os institutos da guarda compartilhada e da

guarda alternada, excluindo o domínio individual e o privilégio de exclusividade até então

reinante no ordenamento jurídico pátrio, como alternativa a ser considerada.

37

GROENINGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos : análise interdisciplinar com vistas

à eficácia e sensibilização de suas relações no poder judiciário. 2011. 242 p. Tese (Doutorado em direito) –

Universidade de São Paulo, São Paulo: USP, 2011. p. 14. 38

TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional. In:

PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey,

2004. p. 309.

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23

Rolf Madaleno, com habitual correção, assinala que, diferentemente dos adultos, os

filhos não entendem a imotivada ausência física dos genitores, cuja falta se acentua em datas

especiais como o aniversário do menor, o dia dos pais ou das mães, as festas natalinas ou de

ano novo, ou mesmo, no período de férias. No âmbito das relações dos infantes, o sentimento

de rejeição promove traumas e agravos morais que, ao longo do tempo, deixarão suas marcas

no seu desenvolvimento mental, físico e social.39

Por esses fatos, o autor assevera que, “exatamente a carência afetiva, tão essencial na

formação do caráter e do espírito do infante, justifica a reparação pelo irrecuperável agravo

moral que a falta consciente deste suporte psicológico causa ao rebento.”40

O tema em pauta – a responsabilização civil por abandono afetivo na relação paterno-

filial – deve ser encarado como um importante instrumento de reordenação da vida familiar e

em sociedade.

Em lição bastante oportuna, Luiz Felipe Brasil Santos relata que o principal objetivo

da disciplina da Responsabilidade Civil consiste em definir, entre os inúmeros eventos

danosos que se verificam quotidianamente, quais deles devem ser transferidos dos lesados ao

autor do dano, em conformidade com as ideias de justiça e equidade dominantes na

sociedade.41

A visualização primeira deve ser o dano e não a sua origem ou causa, propriamente

ditas, pois o que corre à frente é a circunstância da vítima do dano. É pela vítima e pela

expectativa de reorganizar, tanto quanto possível, a essência lesada, que se procura

sistematizar um novo perfil para a responsabilidade civil, quando a ausência afetiva tenha

produzido danos ao partícipe da relação paterno-filial, mormente o filho.

Pode-se dizer, a partir desta perspectiva, que esta é uma alteração paradigmática

significativa dentro da visão clássica da Responsabilidade Civil, endossada por boa parcela da

melhor doutrina de reconstrução do pensamento jurídico, refletida na lição derradeira de Caio

Mário da Silva Pereira, que diz: “o Direito do século XXI forçosamente será diferente do

presente, em razão de que o mundo está em permanente mutação – um perpetuo mobile – que

constantemente terá de absorver o caráter mutante de uma sociedade em permanente

evolução.”42

39

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 319. 40

Ibidem, p. 319. 41

SANTOS, 2004 apud HIRONAKA, [2005], p. 22. 42

PEREIRA, 2001 apud HIRONAKA, [2005], p. 23.

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24

É, pois, diante deste prisma ampliado da Responsabilidade Civil, que se discute a

possibilidade da existência de danos na relação paterno-filial – e, por conseguinte, ensejam a

reparação através de uma indenização – causados pelo abandono afetivo.

Sérgio Resende de Barros defende que o afeto é “um direito individual, uma liberdade

que o Estado deve assegurar a cada indivíduo, sem discriminações, senão as mínimas

necessárias ao bem comum de todos”. Segundo ele, trata-se de uma liberdade, assim como a

liberdade de contratar, que não pode ser sonegada e, negá-la, seria como “renegar ao regime e

aos princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito exigido pelo art. 1º da

Constituição.43

Portanto, o que produzirá o liame necessário – nexo de causalidade essencial – para a

ocorrência da responsabilidade civil por abandono afetivo deverá ser a consequência nefasta e

prejudicial que se produzirá na esfera subjetiva, íntima e moral do filho, pelo fato desse

abandono perpetrado culposamente por seu pai, o que resultou em dano para a ordem psíquica

daquele.

Ressalta-se que o dano causado pelo abando afetivo pode ser considerado um dano

causado à personalidade do indivíduo. Como abordado no transcorrer do estudo, este deixa

uma mácula no ser humano enquanto pessoa, dotada de personalidade, com sua existência e

manifestação condicionadas à convivência no grupo familiar, que tem como uma de suas

funções precípuas, introjetar na criança o sentido de responsabilidade social, por meio do

cumprimento de prescrições, permitindo a esta assumir no futuro sua capacidade plena em um

plano de aceitação jurídica e social. Desta forma, é inegável tratar-se de um Direito da

Personalidade.

Como pressuposto e suporte fático à pretensão de reparar danos decorrentes de

abandono afetivo, além da presença inegável de dano, deve comprovar-se a existência efetiva

de uma relação paterno-filial, na qual, ocorreu, culposamente, o abandono. Cabe uma

observação neste ponto, em que, as circunstâncias diversas relacionadas à origem da relação

paterno-filial ou materno-filial são irrelevantes. Como por exemplo, o fato de a prole ter-se

originado antes ou depois do casamento, ou proveniente de uma união estável ou, até mesmo,

de uma relação sexual passageira. O que importa efetivamente é a existência de uma relação

paterno ou materno-filial, o que ultrapassa, sem cogitação, um simples contorno biológico da

mesma.

43

BARROS, [20--] apud HIRONAKA, [2005], p. 24.

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25

No que tange ao fundamento do dever de indenizar, este se sustenta na Dignidade da

Pessoa Humana e no correto desenvolvimento sociopsicocultural dos filhos. Os princípios

constitucionais da Solidariedade Social e da Dignidade Humana são considerados os

atributos valorativos que fundam a pretensão indenizatória, seja em sede de responsabilidade

civil, como também, em todo o ordenamento civil.

Outros doutrinadores, como Rolf Madaleno, apresentam uma outra visão quanto aos

pressupostos e fundamentos do dever de indenizar o abandono afetivo. Para este, “deixou a

família de ser imune ao direito de danos, encontrando o pedido de indenização o seu

fundamento não exatamente no ato ilícito, mas no abuso do direito previsto no art. 187 do

Código Civil brasileiro, ainda que exclusivamente moral”. Prossegue o autor afirmando:

O abuso do direito independe da culpa, pois sua noção extrapola a teoria da

responsabilidade civil. Trata da imposição de restrições éticas ao exercício

de direitos subjetivos, tendo em conta que no âmbito do conteúdo do direito

de visitas e na obrigação de comunicação com seus filhos, existem espaços

que não podem ser relegados e barreiras que não podem ser ultrapassadas. E

no abuso do direito à pessoa justamente excede as fronteiras do exercício

de seu direito, sujeitando-se às sanções civis, que passam pelas perdas e

danos aferíveis em dinheiro.44

Ao serem elencados os dispositivos legais que servirão de lastro normativo com

vistas a fundamentar a pretensão indenizatória pelo abandono afetivo, uma de suas

finalidades é a de servir de parâmetro para a verificação da ocorrência de um dano efetivo

e injusto. O primeiro deles é exatamente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,

estabelecido no art. 1º, inc. III, ápice da construção legislativa do país.

Juntamente com este, o fundamento da indenização pelo abandono moral e psíquico da

prole encontra-se no artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, que dispõe sobre o exercício da

paternidade e maternidade responsáveis, além dos que relaciona Rolf Madaleno:

A perda da guarda do filho gera o dever de o ascendente não-convivente tê-

lo em sua companhia (artigo 1.634, II, CC). Tudo em sintonia com o artigo

229 da Carta Política de 1998, o artigo 22 do Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei 8.069/90), e o artigo 1.634, I, do CC, a prescreverem o

dever dos pais em darem assistência material e moral ao filho,

independentemente de sua guarda, assim como o dever de assisti-lo, criá-lo,

educá-lo e sustentá-lo. Em paralelo aos deveres dos pais, têm os filhos os

44

MADALENO, Rolf. O custo do abandono afetivo. [201-]. Disponível em:

< http://www.rolfmadaleno.com.br/novosite/conteudo.php?id=943>. Acesso em: 02 abr. 2016.

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26

direitos havidos como fundamentais à garantia da integral formação de sua

personalidade (artigos 227, CF e 3º e 4º do ECA).45

É possível concluir, então, pela existência natural de um compromisso afetivo dos pais

para com os filhos menores e incapazes. É direito da prole a convivência familiar, a

assistência moral e material de seus pais, “mesmo se separados, ou se o ascendente não-

guardião esteja geograficamente distante, porque ainda assim deverá manter uma razoável e

adequada comunicação para com a sua prole, contato cada vez mais facilitado diante dos

modernos meios de comunicação [...].”46

Os critérios de proibição do comportamento contraditório e prejudicial aos filhos

devem reger o exercício parental face à vulnerabilidade e dependência da prole. Por essas

razões, a doutrina tem admitido a aplicação da boa-fé objetiva como mecanismo de controle

da autonomia privada, em casos em que outros mecanismos específicos não se mostrem

suficientes para alcançar tal desiderato.

Deve ter-se em conta, no entanto, que as relações familiares sofrem a incidência direta

dos princípios constitucionais, que são hierarquicamente superiores à tutela da confiança e da

boa-fé, antecipando a solução para os conflitos que se estabelecem na seara das relações

familiares. Porém, “ainda que o ser humano seja em sua essência contraditório, há que limitar

esse comportamento dentro das relações familiares.”47

Diante do exposto, verifica-se que as demandas com pretensão indenizatória em face

do abandono afetivo se apresentam dentro de um critério de razoabilidade frente aos

argumentos ora apresentados. Giselda Hironaka alerta:

O molde jurídico para o restabelecimento da situação foi pensado pelo

Direito há muito tempo. O que se assiste, atualmente, é uma adaptação do

figurino clássico da responsabilidade civil aos casos que decorrem de

situações de Direito de Família e entre membros de uma mesma família sem

que isso implique subversão do sistema.48

Contudo, Regina Beatriz Tavares faz uma crítica às demandas por abandono afetivo,

cujas ações de reparação de danos se fundamentam na falta de afeto ou amor do pai pelo filho.

Para ela, “amar não é dever ou direito no plano jurídico. Portanto, não há qualquer ilicitude na

45

MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 319. 46

Ibidem, p.321. 47

Ibidem, p.321. 48

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na

relação entre pais e filhos – além da obrigação legal de caráter material. [2005]. Disponível em:

<http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosc/Giselda_resp2.doc>. Acesso em: 01 de mar. 2016. p.27-28.

Page 29: ALEXANDRE SILVA MELO A FALTA DE AFETO E O DIREITO DE ... · se a busca de indenização compensatória em face de danos que os pais podem causar a seus filhos. Isto se dá, por diversas

27

falta de amor. Quem deixa de amar, numa relação de família, não pratica ato ilícito.”49

Segundo a autora, a falta de afeto ou de amor não pode gerar a condenação paterna ao

pagamento de indenização ao filho, mas, sim, o ato ilícito vinculado ao art. 186 do Código

Civil de 2002, conforme comentário:

[...] Se a referida ação tivesse se pautado estritamente no artigo 186 do

Código Civil de 2002, pelo qual “Aquele que, por ação ou omissão

voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a

outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, combinado

com o artigo 927 do mesmo Código, segundo o qual “Aquele que, por ato

ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”, possivelmente teria

êxito.50

Outro ponto a merecer registro nas ponderações feitas por Regina Beatriz Tavares é

quanto à técnica jurídica aplicada a tais demandas, mesmo diante de uma interdisciplinaridade

entre o direito e outras ciências ou áreas do conhecimento.

A interdisciplinaridade é adequada desde que não se perca a linha divisória

entre as várias disciplinas, entre as várias ciências que se voltam ao estudo

de uma questão. Caso contrário, teríamos uma única ciência e não várias

ciências se relacionando na solução de um caso concreto. Em suma, parece-

me que uma exagerada fundamentação na falta de afeto ou de amor, matéria

que tem sede psicanalítica e não jurídica, com que a ação reparatória em

análise foi conduzida, causou o receio dos julgadores de criar insegurança

jurídica, levando o Superior Tribunal de Justiça ao não acolhimento do

pedido de indenização ali realizado.51

Cabe ressaltar que não obstante o esforço doutrinário no sentido de demonstrar o

cabimento da indenização pelo dano sofrido pelo filho ante o abandono afetivo, existem

aqueles que questionam tal entendimento, a exemplo de Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald:

Afeto, carinho, amor, atenção... São valores espirituais, dedicados a outrem

por absoluta e exclusiva vontade pessoal, não por imposição jurídica.

Reconhecer a indenizabilidade decorrente da negativa de afeto produziria

uma verdadeira patrimonialização de algo que não possui tal característica

econômica. Seria subverter a evolução natural da ciência jurídica,

retrocedendo a um período em que o ter valia mais que o ser.52

49

SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Caso real de abandono paterno. [200-]. Disponível em: <http://

www.reginabeatriz.com.br/academico/artigos> Acesso em: 28 mar. 2016. 50

Ibidem. 51

Ibidem. 52

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2008. p. 76.

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28

Por outro lado, a maioria vê a indenização do dano moral como compensação, punição

e, acima de tudo, como medida educativa, como ensina Rolf Madaleno:

Não se trata de “dar preço ao amor” – como defendem os que resistem ao

tema em foco, tampouco de “compensar a dor” propriamente dita. Talvez o

aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da

reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e

sinalizando para ele, e para outros, que esta conduta deve ser cessada e

evitada, por ser reprovável e grave. [...] a punição pecuniária pelo dano

imaterial tem um caráter nitidamente propedêutico e, portanto, não objetiva

propriamente satisfazer a vítima da ofensa, mas, sim, castigar o culpado pelo

agravo moral e, inclusive, estimular os demais integrantes da comunidade a

cumprirem os deveres éticos impostos pelas relações familiares.53

O que se depreende pelo deferimento de indenizações nesse contexto é o fato de que

estas não têm a finalidade precípua de compelir o pai ao cumprimento de seus deveres, e sim,

o de atender a duas funções, além da compensatória, a punitiva e a dissuasória. Pela primeira

– função da responsabilidade civil – busca-se punir alguém por uma conduta praticada que

ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalente em determinada comunidade. Com

a segunda, procura sinalizar-se a todos os cidadãos sobre quais condutas evitar, por serem

reprováveis do ponto de visa ético jurídico.

Ressalva feita por Joubert R. Rezende torna-se oportuna ao dizer que da mesma forma

os avanços e adaptações obtidos com vistas à responsabilização civil dos pais não podem ser

relegados, sob pena de retrocesso, estes também, não se podem tornar instrumentos nefastos

às relações familiares sob o pretexto de penalização dos pais que abandonam os filhos, o que

ocasionaria a impossibilidade completa do restabelecimento dessas relações.54

É importante mencionar que o tema sugere inúmeras reflexões acerca do quantum pelo

dano injusto a título de indenização provocada pelo abandono afetivo, bem como, a

banalização das indenizações, no que poderia se chamar de monetarização do afeto. Talvez,

este perigo resida em não se compreender, exatamente, na exposição concreta de cada

pretensão, o verdadeiro significado da noção de abandono afetivo, o verdadeiro substrato do

pedido judicial em questão.

53

MADALENO, Rolf. O preço do afeto. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A ética

da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 165. 54

REZENDE, Joubert R. Direito à visita ou poder-dever de visitar : o princípio da afetividade como orientação

dignificante no direito de família humanizado. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 28,

2005. p.159.

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Destarte, tais situações exigirão atenção redobrada do Poder Judiciário, especialmente

na figura dos Magistrados, responsáveis pela adequação do Direito aplicado em concordância

com os paradigmas da atualidade, e por isso, atuando como agentes transformadores dos

valores jurídicos. Como também, dos Advogados, que devem se pautar pela ética quando da

propositura de tais ações. Para tanto, analisando cuidadosamente as circunstâncias de cada

caso, no mister de verificar a efetiva presença de danos causados ao filho pelo abando paterno

ou materno, se for o caso.

5 O ABANDONO AFETIVO NA JURISPRUDÊNCIA

O Recurso Especial 1.159.242/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, da Terceira

Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 24/04/2012, pode ser considerado

emblemático, em virtude de ter inaugurado a adoção definitiva da indenização por danos

morais em face do denominado abandono afetivo.

Ao proferir a sua decisão, a relatora do Recurso Especial em questão consignou que o

abandono afetivo constitui descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e

companhia, que está presente, implicitamente, no artigo 227 da Constituição Federal, e assim,

a omissão que caracteriza ato ilícito é passível de compensação pecuniária.

Nesse sentido, a tese apresentada pela Ministra Relatora impõe uma compensação

financeira ao sofrimento causado à prole. Tal fundamento encontra-se exposto na ementa,

ipsis litteris:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.

COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem

restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil

e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O

cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento

jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que

manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da

CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi

descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a

forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem

juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e

companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal,

exsurgindo, daí a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais

por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam

a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole,

existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero

cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade,

condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A

caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda,

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fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não

podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A

alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é

possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo

Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial

parcialmente provido (STJ, REsp. 1.159.242/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy

Andrighi, p. 10/05/2012).55

Em leitura da respectiva ementa, ressalta-se a questão do cuidado como valor jurídico

e, por conseguinte, a sua relação com o abandono afetivo – e a consequente responsabilização

civil dos pais.

Ao se discorrer sobre o cuidado em um aspecto restrito, buscando-se uma exatidão do

seu significado, pode dizer-se que este sempre perpassou os fundamentos da

responsabilização no Direito, como base para a Teoria da Responsabilidade Civil. Assim, o

chamado dever de cuidado objetivo, compreendido pela cautela, pela atenção, ou pela

diligência, é visto como necessário para que o agir de alguém não resulte em dano a outrem.

Ademais, o cuidado tem assumido papel preponderante no contexto jurídico das

relações interpessoais, não no sentido objetivo, como exposto anteriormente, mas no de afeto,

proteção e solidariedade. A função significativa que o cuidado assume no contexto do Direito,

evidencia-se em seu reconhecimento doutrinário, jurisprudencial e, em certa medida,

legislativo, de que o ser humano vem construindo o mundo a partir de laços afetivos. E o

espaço no qual as relações de afeto parecem mais evidentes, sem dúvida, é o da família, razão

pela qual o cuidado assume papel fundamental no delineamento dos direitos e das obrigações

decorrentes das relações familiares, nas mais peculiares situações, traduzidas a partir dos

diversos modelos assumidos pela família contemporânea.

Conforme ressalta Jussara Maria Leal de Meirelles:

Corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto pela

Constituição Federal no artigo 1º, inciso III, o cuidado apresenta-se implícito

em diversas normas de proteção, tanto na esfera pública quanto na dimensão

privada. Desse modo, vai refletir se em diferentes direitos e deveres, o que

pode fazer-se traduzir o cuidado em valor objetivo a determinar a

titularidade dos direitos e a atribuição dos deveres, ou mesmo em

significante que assume, em dimensão específica, uma forte medida de

valoração jurídica. Na primeira hipótese, o cuidado é tido como valor

jurídico; na segunda, o cuidado é tomado, para além de outras valorações

55

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 1.159.242 – SP. 2012. Revista Eletrônica de

Jurisprudência do STJ. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200901937019>. Acesso em : 3 maio 2016.

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que recebe dos mais diferentes ramos do conhecimento, em sua valoração

jurídica e, nesse sentido, afirma-se o valor jurídico do cuidado.56

A decisão emblemática do STJ, versando sobre um caso de abandono afetivo de um

pai em relação à filha com condenação ao pagamento de indenização por dano moral, ressalta

o cuidado com status de obrigação legal e, certamente, põe por terra um entrave por diversas

vezes postulado nas demandas por abandono afetivo: o de que não se pode obrigar ninguém a

amar:

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal

de cuidar, que é deve jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem

ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os

lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade impossibilidade de precisa

materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da

religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos,

distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de

seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença;

contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole;

comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –

entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador,

pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.57

Sob tal prisma, pode inferir-se, neste contexto, que o cuidado é uma forma responsável

de se relacionar. E é exatamente neste aspecto que emerge o cunho jurídico do mesmo, a

traduzir que o simples estar presente, o preocupar-se, a consideração, a valorização do outro,

em suma, o cuidado, está inserido no contexto do Direito, a delinear deveres e atribuir

responsabilidades a quem os descumprir.

56

MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. O valor jurídico do cuidado: família, vida humana e

transindividualidade. [200-. ]. Disponível em :

<http://www2.pucpr.br/reol/index.php/3jointh?dd99=pdf&dd1=7717>. Acesso em: 15 mai. 2016. 57

BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Recurso Especial Nº 1.159.242 – SP. 2012. Revista Eletrônica de

Jurisprudência do STJ. Disponível em :

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200901937019>. Acesso em: 3 maio 2016.

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32

6 CONCLUSÃO

Com base nas evidências apresentadas até o momento, à luz da Doutrina, da

Jurisprudência e da Legislação, o presente trabalho chega a algumas conclusões, ou em

melhor medida, reforça algumas convicções, pertinentes à exigibilidade do Princípio da

Afetividade e à aplicabilidade da Responsabilidade Civil nas relações familiares, decorrentes

do abandono afetivo paterno-filial.

A primeira delas advém dos novos matizes da família contemporânea, tutelada na

Constituição Federal de 1988 pelo Princípio da Dignidade Humana, como forma de garantia

do livre desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. A partir dessa nova ordem

jurídica, constata-se o reconhecimento do afeto como valor jurídico. Por este motivo, as

prescrições legais relativas à criança e ao adolescente passam a enfatizar sua integridade

física, psíquica e moral, assegurados por uma educação em ambiente familiar adequado.

O afeto passa a ser reconhecido como elo da relação entre pais e filhos. Esta premissa

determina um novo conceito de paternidade responsável, que transpõe os limites de uma

mera prestação de auxílio material aos filhos, exigindo, a partir de então, o necessário dever

de criação, educação e companhia, enfim, o dever de cuidado.

Diante desta nova realidade, surgida a partir destes pressupostos relativos à família, a

Doutrina vem considerando plenamente possível, apesar das divergências, a aplicação do

instituto da Responsabilidade Civil nas relações de família. Seu fundamento encontra-se

amparado no fato de que o abandono afetivo é considerado um ato ilícito frente sua ofensa ao

Princípio da Dignidade Humana, que se estende às crianças e adolescentes como sujeitos de

direitos.

O estudo demonstra por diversas vezes que o abandono afetivo paterno-filial apresenta

um potencial danoso significativo para ensejar a reparação do ofendido em seu aspecto moral.

A falta de afeto, de cuidado e proteção provocados pela ausência injustificada dos pais,

conduz, inquestionavelmente, à concretização do dano, atestado pela dor psíquica e o

consequente prejuízo à formação da criança. Tal fato, per si, alerta para a gravidade e

relevância do tema do abandono afetivo, e nos conduz a admitir que a afetividade não só

pode, como deve repercutir nas decisões judiciais, firmando posições no universo jurídico-

familiar.

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Diante do exposto, torna-se premente ouvir o grito daqueles que postulam

legitimamente uma indenização compensatória pelos danos provocados pelo abandono

afetivo.

É correto afirmar que a condenação ao pagamento de indenização não restitui àqueles

que sofreram o abandono e suas consequências, o tratamento digno a que faziam jus. Afinal,

não se pode quantificar monetariamente o afeto. Todavia – e aqui se faz um adendo, no

sentido de avocar o espírito deste estudo – esta mesma condenação deve cumprir seus

objetivos primordiais, a disseminação de seu valor pedagógico e de seu caráter dissuasório no

seio das famílias e da sociedade como um todo. A concretização de tais objetivos permitirá,

sem dúvida, a visão de um Direito mais humanizado, que seja fator de mudança de valores

sociais e de alteração de paradigmas jurídicos.

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