alguma antropologia marcio goldman

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  • AGIER, Michel. 2000. Anthropologie duCarnaval: La Ville, la Fte et l'Afrique Bahia. Marseille/Paris: ParnthesesEds. 253 pp.

    Hermano ViannaDoutor, PPGAS-MN-UFRJ

    Para quem abre pela primeira vez es-te livro, o ttulo Anthropologie du Carna-val pode parecer enganoso. Mesmo osubttulo La Ville, la Fte et lAfrique Bahia sugere uma abordagem muitomais abrangente do que aquela que seapresenta de imediato ao leitor. Apa-rentemente, no estamos diante de umtratado geral sobre rituais carnavales-cos, como a capa indica, mas sim deuma cuidadosa e densa etnografia so-bre as atividades de um nico grupocarnavalesco soteropolitano, o Il Aiy.Porm, quem chega ao final da leituracompreende a pertinncia do ttulo. Naverdade, o livro uma importante liode como, do detalhe etnogrfico de fe-nmenos muito particulares das socie-dades complexas contemporneas, po-demos chegar teoria mais abstrata,iluminando no caminho questes cen-trais para o trabalho de qualquer antro-plogo. Em Anthropologie du Carnaval,teoria e empiria e tambm minu-dncia e generalidade combinam-sede maneira elegante e enriquecedora.

    Todos os aspectos principais da or-ganizao do Il Aiy so detalhados

    em diferentes captulos. O captulo 3 co-mea com uma descrio da Liberdade(o bairro onde surgiu esse grupo carna-valesco), em seguida apresenta os fun-dadores do bloco e termina narrandoseu primeiro desfile de carnaval. No ca-ptulo 4, encontramos a histria do IlAiy dividida em trs perodos, nosquais o bloco passa a se definir e serdefinido primeiro como movimentocultural e depois como empresa. O ca-ptulo 5 dedicado a uma anlise dasposies sociais dos membros do IlAiy, sobretudo a partir de suas trajet-rias profissionais e relaes de paren-tesco. O calendrio anual de festas, amitologia inventada pelo grupo e odesfile de carnaval propriamente ditoso estudados no captulo 6; seu estilomusical e potico no captulo 7 e, final-mente, sua insero poltica nos movi-mentos negros baiano e brasileiro nocaptulo 8. O restante do livro forma-do por dois captulos introdutrios, umaconcluso e um posfcio terico.

    Fiz questo de enumerar todos es-ses assuntos para dar uma idia do graude comprometimento do autor com opormenor etnogrfico, do peso que osfatos tm na organizao do livro. Na-da escapa ao seu olhar: o padro grfi-co das vestimentas dos folies; o nme-ro de tocadores de cuca entre os per-cussionistas; as relaes de gnero atua-lizadas no desfile e nos ensaios; a cone-xo com o candombl; a economia e osconflitos administrativos do bloco; a

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  • personalidade dos membros da direto-ria. O resultado uma das mais comple-tas descries do intricado conjunto demecanismos que produz o carnaval bra-sileiro a partir do ponto de vista e dasatividades de um nico grupo. A profu-so de detalhes pouco a pouco vai sejustificando em teses ousadas que mo-dificam nossa compreenso da festa equestionam o alcance das teorias docarnaval mais conhecidas.

    Para Michel Agier, o carnaval uma instituio-chave para falar dasociedade e seu conjunto (:7), produ-zindo o duplo da cidade que o abri-ga, e instaurando nela uma fbrica deidentidades. Muitos estudiosos da fo-lia carnavalesca j escreveram coisasparecidas, mas com intuitos diferentes.O carnaval tambm seria um duplo li-minar que inverteria ou reforaria a or-dem da vida ordinria, da vida nocarnavalesca. Michel Agier prope umamaneira mais complexa de pensar essaduplicidade da folia, em que a festano tem o mesmo significado (seja in-verso ou reafirmao) para todos osgrupos e indivduos que dela partici-pam, nem o conjunto da sociedade visto como um todo homogneo organi-zado em torno de uma nica ordemque pode ser invertida ou refora-da em apenas um sentido.

    Na histria do carnaval de Salva-dor, o aparecimento do Il Aiy, em me-ados dos anos 70, foi um fenmeno de-cisivo. quase possvel pensar a foliaem dois tempos: antes e depois do IlAiy. Michel Agier denomina o proces-so, do qual o Il Aiy elemento cen-tral, de reafricanizao da folia baia-na. Realmente: foi para designar o tipode grupo carnavalesco criado pelo IlAiy que se criou a expresso blocoafro. Muitos blocos afros surgiram emoutros bairros, seguindo o exemplo daLiberdade, buscando tambm temati-

    zar e cultuar a herana africana e oorgulho negro. Alguns deles se tor-naram conhecidos nacionalmente, co-mo o Olodum ou o Ara Ketu (um blococom trajetria muito peculiar sendoconhecido hoje mais como um grupo depagode e pouco presente neste livro).

    Uma das caractersticas mais pol-micas do Il Aiy a de permitir ape-nas a participao de negros em seusdesfiles. Sua definio de quem negroe quem no no tem a ver com a re-gra do one-drop-of-blood popular nosEstados Unidos e que adotada por al-guns setores do movimento negro bra-sileiro para se livrar das tendnciasconformistas do elogio da mestia-gem. Ouvi vrias histrias de mulatosescuros a quem foram negados seus pe-didos de ingresso no bloco. Nunca con-segui entender a lgica dessas negati-vas, j que via gente de pele mais claradesfilando. Esta Anthropologie du Car-naval vem esclarecer vrios pontos daminha questo: no basta ser bemnegro para fazer parte do Il Aiy, preciso ter outros vnculos com seuuniverso relacional e afetivo denso(:109), sempre dirigido a um segmentosocial especfico entre os negros de Sal-vador, aquele que possui uma real in-sero socioprofissional nos diferentessetores do trabalho urbano (:188) eque quer se elevar socialmente (:197).Em resumo: A distncia tnica, de apa-rncia atemporal, , nesse caso, umaforma de distino social. (:193)

    Michel Agier faz outra observaointeressante, que deve causar surpresapara aqueles que pensam que o carna-val um ritual homogneo usado portodos os folies para atingir os mesmosobjetivos ou que, pelo menos, o car-naval dos blocos afro de Salvador sejaum ritual homogneo usado por todosos folies soteropolitanos, negros e po-bres para atingir os mesmos objetivos.

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    A partir de entrevistas e da aplicao deum questionrio, descobriu que a maio-ria dos componentes do Il Aiy nuncadesfilaria no Olodum, por exemplo, e is-to no por uma rivalidade competitivaentre blocos afro, e sim por causa deuma diferena social: os negros quedesfilam no Olodum pertencem a umoutro segmento social; o Olodum criti-cado pelo pessoal do Il Aiy como umbloco afro descaracterizado, comerciale no to africano e negro como de-veria ser ou como o Il Aiy .

    Portanto, a definio de quem ne-gro o suficiente para entrar para o IlAiy deve ser vista mais como umamodalidade de posicionamento soci-al do que como um retorno etnia(:197), sendo melhor compreendida co-mo uma retrica identitria atual eno como o resgate do passado, ou co-mo a conservao da memria africa-na. Em outras palavras: o africanismono depende de uma ligao direta coma frica, ele se transformou num instru-mento de posicionamento social moder-no. (:197) Nesse sentido, o tradiciona-lismo do Il Aiy , na verdade, umneotradicionalismo urbano (:141), ainveno de uma nova tradio, de umanova identidade para um grupo con-temporneo, que s poderia existir emuma cidade contempornea, que talvezat j tivesse existncia como grupo,mas que no tinha autoconscincia des-sa existncia, e a criao dessa auto-conscincia vai acontecer no carnaval.

    Nesse sentido, tambm, que o car-naval pode ser pensado como fbricade identidades, territrio que tem umacapacidade suplementar de criar iden-tidade (:87), de exibir um excesso ouabundncia de identidade (:53). En-to, a folia no abole as fronteiras queordenam a vida ordinria da cidade ouda sociedade, mas ela tambm no for-tifica os limites grupais j existentes.

    Seu trabalho mais ambguo; comoum espelho que distorce a ordem pree-xistente, deslocando fronteiras, des-truindo alguns limites e inventandooutros. um travestissement da reali-dade, que a deforma, manifestando astenses e ao mesmo tempo permitindotransformaes, que, por sua vez, teroconseqncias muitas vezes profun-das na vida no carnavalesca, que se-ro reprocessadas novamente pela m-quina identitria do carnaval e assimpor diante.

    Toda essa produo carnavalescaesfuziante faz Michel Agier nos lem-brar do paradoxo atual (:226) revela-do por um nmero cada vez maior detrabalhos de campo, realizados entretodos os tipos de culturas, em todo oplaneta: ao mesmo tempo que os antro-plogos desconstroem as noes deidentidade, revelando seu processo deinveno e seu carter fluido/no es-sencialista, as sociedades as recons-troem e a elas se apegam com maior vi-gor e criatividade. Pode ser conve-niente que seja assim, e assim conti-nue por muito tempo. Ao contrrio doque pensavam os pais de nossa dis-ciplina, seu objeto no est desapa-recendo. Temos cada vez mais diferen-as e tradicionalismos para saciar nos-sa sede de conhecimento. Mas lanouma razo mais pragmtica para mealegrar com tal paradoxo: se todo mun-do fosse antroplogo antiessencialistae anticulturalista, bem capaz que noexistisse mais carnaval.

  • BARTH, Fredrik. 2000. O Guru, o Ini-ciador e Outras Variaes Antropo-lgicas (organizao de Tomke Lask).Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.243 pp.

    Eliane Cantarino ODwyerProfessora, UFF

    A publicao de uma coletnea de tex-tos do antroplogo Fredrik Barth no Bra-sil vem brindar-nos com uma obra ins-tigante, crtica dos dogmas e pressu-postos tericos da disciplina, que abrenovos horizontes para a prtica da pes-quisa antropolgica em outros univer-sos sociais e culturais reconhecidamen-te complexos, diferenciados e sincrti-cos como o nosso. Autor de uma produ-o internacionalmente consagrada,Barth tem sido lido e divulgado no Bra-sil, basicamente, atravs da Intro-duo ao livro Grupos tnicos e suasFronteiras, contribuio inestimvel aospesquisadores que trabalham com so-ciedades indgenas e outros grupos t-nicos e minorias. Principalmente, noscasos em que a fraca diferenciao cul-tural desses grupos, imersos em umaestrutura de interao com outros sub-grupos de fortes marcadores regionais(como no Nordeste), desqualifica, doponto de vista do observador externo,as identidades tnicas assumidas comoindgenas ou comunidades de afro-des-cendentes que reivindicam do Estadobrasileiro, na atualidade, o reconheci-mento do territrio que ocupam e deum status tnico distinto, de acordocom determinados preceitos constitu-cionais. Desse modo, a problemtica dadefinio de um grupo tnico, de acor-do com as reflexes de Barth, tem sidolargamente empregada pelos antrop-logos que esto envolvidos com a ela-borao de laudos periciais nesse con-

    texto de aplicao dos direitos consti-tucionais.

    A edio em portugus dessa cole-tnea permite, igualmente, sua divul-gao para um pblico mais amplo, deestudantes e de especialistas que atu-am em outras reas do saber em suasinterfaces com a antropologia, como ocampo disciplinar do direito. Para osantroplogos profissionais, o ttulo do li-vro faz jus a seu autor, mesmo que gurue iniciador tenham sido termos original-mente empregados por Barth no con-texto de uma reflexo comparativa en-tre duas grandes regies etnogrficas, oSudeste da sia e a Melansia, sobre asnoes de uma sociologia do conheci-mento que ajudam a esclarecer o modopelo qual as idias so moldadas pelomeio social em que se desenvolvem(:143). As categorias nativas de guru einiciador so usadas, respectivamente,para indicar formas distintas de com-partilhar idias e tradies de conheci-mento, atravs da falao ou do ocul-tamento, e podem ser pensadas comoequivalentes ao papel assumido porBarth no campo do saber antropolgi-co de enfrentar novos desafios teri-cos (:207) e participar do debate a par-tir do material etnogrfico coligido nassuas pesquisas em diferentes regies,como a sia, Oceania e parte da fri-ca, que serviram igualmente de ancora-gem s teorias e aos grandes temas dadisciplina.

    Nos estudos sobre grupos tnicos noBrasil, inclusive nas condies de pro-duo do laudo antropolgico, privile-giar o trabalho de campo tem permitidoromper, a partir da investigao dos fa-tos empricos, ao se levar em conta osargumentos e conceitos comuns pro-postos por Barth, com a premissa doraciocnio antropolgico de que a varia-o cultural descontnua (:25). pos-svel, igualmente, abandonar a viso

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    simplista de que os isolamentos social egeogrfico foram os fatores cruciais pa-ra a manuteno da diversidade cultu-ral (:26). Na concepo do autor no sedeve considerar como caractersticaprimria dos grupos tnicos seu aspectode unidades portadoras de cultura(:29). Para Barth, ao se enfocar aquiloque socialmente efetivo, os grupos t-nicos passam a ser vistos como uma for-ma de organizao social (:31). Nessecaso, a caracterstica crtica na defi-nio desses grupos passa a ser a atri-buio de uma identidade ou catego-ria tnica (:32) determinada por umaorigem comum presumida e destinoscompartilhados.

    A organizadora da coletnea, Tom-ke Lask, na apresentao do livro (:7-23), faz referncia s tomadas de posi-o de Barth, ao seu empenho pessoalem promover o papel do antroplogona vida pblica (:15). Sugere aindaque isso se aplicaria ao papel que os an-troplogos no Brasil tm assumido emrelao ao reconhecimento dos direitosindgenas como grupos tnicos diferen-ciados. Pode-se considerar igualmenteilustrativo, no contexto desta resenha,pensar as implicaes tericas e meto-dolgicas do pensamento de Barthquando aplicado ao reconhecimento dosdireitos constitucionais de outra mino-ria tnica, os chamados remanescen-tes de quilombos, termo de origem ju-rdica que a princpio parece mais afeitos definies historiogrficas e compro-vaes arqueolgicas. Afinal, at recen-temente, o termo quilombo era de usoquase restrito a historiadores e demaisespecialistas que, atravs de documen-tao disponvel ou indita, procura-vam construir novas abordagens e in-terpretaes sobre o nosso passado co-mo nao. A partir da Constituio de1988, quilombo adquire uma significa-o atualizada, ao conferir direitos cons-

    titucionais aos remanescentes de qui-lombos que, segundo o texto constitu-cional, estejam ocupando suas terras.Como no se trata de uma expressoverbal que denomine indivduos, gru-pos ou populaes no contexto atual,seu emprego na Constituio levantauma questo de fundo: quem so os cha-mados remanescentes de quilombosque tm seus direitos atribudos pelodispositivo legal?

    Pode parecer paradoxal que os an-troplogos, justamente eles que marca-ram suas distncias e rupturas com ahistoriografia ao definirem seu campode estudos por um corte sincrnico nopresente etnogrfico, tenham sido co-locados no epicentro dos debates sobrea conceituao de quilombo e a identifi-cao daqueles qualificados como re-manescentes de quilombos para fins deaplicao do preceito constitucional.Acontece, porm, que o texto constitu-cional no evoca apenas uma identida-de histrica que pode ser assumida eacionada na forma da lei. preciso, so-bretudo, que esses sujeitos histricospresumveis existam no presente. O fatode o pressuposto legal estar referido aum conjunto possvel de indivduos ouatores sociais organizados segundo suasituao atual, permite conceitu-los,segundo a teoria antropolgica mais re-cente, como grupos tnicos que existemou persistem ao longo da histria comoum tipo organizacional, atravs deprocessos de excluso e incluso quepermitem definir os limites entre os con-siderados de dentro e os de fora.

    A persistncia dos limites entre osgrupos deixa de ser colocada por Barthem termos dos contedos culturais queencerram e definem suas diferenas.No captulo Grupos tnicos e suasFronteiras (:25-67), o problema da con-trastividade cultural passa a no depen-der mais de um observador externo, que

  • contabilize as diferenas ditas objeti-vas, mas unicamente dos sinais diacr-ticos, isto , as diferenas que os pr-prios atores consideram como significa-tivas. Embora as diferenas possammudar, permanece a dicotomia entreeles e ns, marcada pelos seus cri-trios de pertencimento. Barth enfatizaque grupos tnicos so categorias atri-butivas e identificadoras empregadaspelos prprios atores; conseqentemen-te, tm como caracterstica organizar asinteraes entre as pessoas (:27).

    A centralidade dos conceitos de gru-po tnico e de etnicidade na leitura daobra de Barth, no esgota a novidadede suas contribuies, que possibilitamdesnaturalizar o mundo social, mas tam-bm os instrumentos do fazer antropo-lgico. o que ocorre com as concep-es antropolgicas convencionais decultura. No captulo inicial do livro, ve-mos que os pressupostos implcitos nouso desse conceito so transgredidos narelao de no-correspondncia esta-belecida por Barth entre os limites so-ciais das unidades tnicas e o comparti-lhamento de uma cultura comum, quedeixa de ser considerada uma caracte-rstica primria e definitiva na organi-zao de um grupo. A necessidade pa-ra a antropologia de remodelar suasafirmaes explicitamente colocadano captulo A Anlise da Cultura nasSociedades Complexas (:107-139). Ospressupostos do holismo e da integra-o (:105) da maioria dos conceitos an-tropolgicos, como sociedade e cultura,so questionados. O uso equivocado dotermo cultura deve ser testado na an-lise da vida real tal como ela ocorre emdeterminado lugar do mundo (:108). Ailha de Bali passa a ser o local escolhidopara refletir sobre a prxis antropol-gica. A diversidade de atividades, as-sim como a mistura do novo com o ve-lho em um cenrio cultural sincrtico,

    permite questionar a linguagem do es-truturalismo com sua nfase nas cone-xes e o pressuposto de uma coerncialgica generalizada. Para Barth, na me-dida em que as realidades das pessoasso culturalmente construdas [], oque os antroplogos chamam de cultu-ra de fato torna-se fundamental paraentender a humanidade e os mundoshabitados pelos seres humanos (:111).Mas, em vez de focar a anlise no inte-rior de universos fechados e de culturasdistintivas, preciso explorar a varie-dade de fontes dos padres culturais,que podem ser resultado de processossociais especficos. Em lugar de descar-tarmos as incoerncias observadas nossa volta, devemos confrontar o que problemtico e realizar a tradicionaltarefa naturalista da antropologia deconstituir uma cuidadosa e meticulosadescrio de uma ampla gama de da-dos (:114). A viso da cultura como flu-xo e correntes simultneas de tradiesculturais (:123) defendida por Barth,no recoloca a questo das culturasfeitas de retalhos e remendos do di-fusionismo. O que importa nesse argu-mento so as interpretaes e os esque-mas de significao que s podem serentendidos corretamente quando rela-cionados ao contexto, prxis e in-teno comunicativa (:131).

    Ao ziguezaguear entre as sees dolivro, sem obedecer ordem de sua ex-posio, seguimos outra possibilidadede leitura, sugerida pela prpria reu-nio dos textos na coletnea, que nopedem para ser compreendidos atra-vs de uma disposio linear do menosao mais inclusivo. Trata-se, ao contrrio,de diferentes e variados planos de te-mas e questes que se entrecruzam nainterseo dos seus argumentos e refle-xes crticas.

    As possibilidades criativas e os usosinovadores de Barth podem ainda rom-

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    per fronteiras entre disciplinas e tra-dies de conhecimento. No posfcio(:239-243), escrito pelo cientista polticoMarco Martiniello, a questo da etnici-dade como problema social a ser en-frentado na atualidade, ao reverter acrena de que raa e etnicidade desa-pareceriam no contexto da moderniza-o e ps-colonialismo, convida os ci-entistas polticos a colocar a obra deBarth na agenda de sua disciplina. Ou-tras fronteiras internas antropologia,que separam o conhecimento produzi-do de outras formas de saberes aplica-dos, tm sido rompidas atravs da pro-blemtica proposta por Barth no Bra-sil, mediante a noo de uma antropo-logia da ao em que, diferentementeda chamada antropologia aplicada,menos comprometida com as popula-es s quais se refere, o antroplogono perde sua base acadmica, comoportador de slida formao na discipli-na, avaliado e reconhecido pelos seuspares da comunidade cientfica.

    Em entrevista publicada na colet-nea (:201-228), Barth concorda que fa-amos uso de nossos insights para agirno mundo e transform-lo (:218), masadverte que devemos deixar de enfati-zar tanto a etnicidade, pois ela pode re-presentar apenas um pequeno setorda herana cultural de uma pessoa(:217). Por outro lado, participamos deoutras comunidades de cultura que nopodem ser descritas como tnicas(:217). Sobre a politizao desmedidadas identidades tnicas, Barth critica oschamados empreendedores tnicos,pois eles utilizam de maneira inade-quada uma idia excessivamente unidi-mensional de cultura e de identidadeadvogando-a para seus prprios finspolticos (:219).

    FAUSTO, Carlos. 2000. Os ndios antesdo Brasil. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditor. 93 pp.

    Francisco NoelliProfessor, Universidade Estadual de Maring

    Este pequeno livro, voltado para a di-vulgao da arqueologia e etnologiaindgenas, apresenta com brilhantismoe erudio as linhas gerais da ltimagrande sntese do campo, assim comoas perspectivas mais contemporneassobre os povos situados na Amrica doSul e no Brasil. Muito bem redigido, Osndios antes do Brasil no est centradona descrio, mas em modelos e proble-mticas, proporcionando a interessadose iniciantes um resumo da espinha dor-sal das teorias e debates que regerama heterognea comunidade americanis-ta nas ltimas cinco dcadas. CarlosFausto parte do princpio de que Tudosomado, possvel dizer que vivemosem uma ilha de conhecimento rodeadapor um oceano de ignorncia. Sabemosmenos do que deveramos, mas feliz-mente ainda podemos saber mais. Paraavanar, cumpre fazer as perguntascertas (:9).

    O livro apresenta as perguntasatualmente consideradas certas, con-trapostas s perguntas erradas. Estas,em parte, foram formuladas durante operodo colonial e elaboradas definiti-vamente no grandioso modelo de JulianSteward no Handbook of South Ameri-can Indians, a partir de 1946.

    A obra de Fausto uma compactahistria das idias americanistas, poisdisseca as estruturas tericas e expe asprincipais questes em debate nas lti-mas dcadas. Revelando como Stewarde seus discpulos formularam hipteses,desenvolveram suas pesquisas e chega-ram a determinadas concluses, Fausto

  • mostra como aqueles que no seguiramo determinismo ecolgico stewardianoconseguiram, a partir de outras pergun-tas, abordagens e metodologias, ques-tion-lo e torn-lo obsoleto ou, pelo me-nos, expor suas fragilidades, contribuin-do para barrar diversas simplificaesreproduzidas na academia.

    Dentre os temas enfocados por Faus-to, destaca-se a crtica da tipologia evo-lucionista das populaes indgenasdesde uma viso continental. mostra-do como Steward elaborou sua classifi-cao de cima para baixo a partir domodelo do imprio Inca, exemplo dopice do desenvolvimento no conti-nente, definindo as demais populaesda Amrica do Sul pela carncia, le-vando caracterizao dos povos dasterras baixas pela negativa (:15). Des-sa forma, segundo Fausto, restringi-ram-se os problemas a serem enfrenta-dos pela arqueologia a duas perguntasbsicas: ser que todos os povos das ter-ras baixas, de fato, no tinham aquiloque os incas tinham? E por que no ti-nham? (:15)

    Baseado em pesquisas recentes, oautor apresenta contrapontos s con-cepes de Steward no que se refere ademografia, desenvolvimento da agri-cultura, subsistncia, explorao/mane-jo dos recursos naturais, criao da cul-tura material, tipos de sociedade e deorganizao poltica. Traa, assim, umpanorama sugestivo da variabilidadedos povos indgenas, superando cha-ves em torno de sua falaciosa unifor-midade sociopoltica, econmica, cultu-ral e demogrfica.

    Fausto revela como a relao entreambiente e nveis de desenvolvimentocultural, to cara a Steward, foi trata-da de modo superficial e apriorstico,atravs dos simplificados conceitosde rea marginal e rea de florestatropical, elaborados em funo de uma

    suposta (mas no investigada naquelemomento) predominncia de solos po-bres para a agricultura, bem como deum imaginrio falacioso sobre a escas-sez de protenas longe dos cursos dgua.Essas deficincias, tal como acredita-ram erroneamente Steward e muitosoutros, especialmente Betty Meggers,levariam as populaes a uma constan-te procura por comida em ambientespouco produtivos e no permitiriam odesenvolvimento cultural, social e pol-tico, forando-as a permanecer nos es-tgios mais baixos da imaginada cadeiaevolutiva das populaes da Amricado Sul. Apesar de algumas noes cen-trais do determinismo ecolgico teremsido testadas e criticadas por RobertCarneiro menos de uma dcada aps olanamento do Handbook, em tese de-fendida em 1957, a influncia das idiasde Steward permaneceu forte no Brasilat os anos 90. Mesmo com as novasidias e fatos de Carneiro, a revisodo determinismo ecolgico s ganhouadeptos no final dos anos 60, com as pu-blicaes nessa linha tornando-se vis-veis aps 1975.

    Outro aspecto de Os ndios antes doBrasil o debate sobre a expanso dospovos tupi. Aqui cabe um comentrio,pois Fausto faz uma discusso em con-traponto a um estudo meu publicadoem 1996, na Revista de Antropologia,intitulado As Hipteses sobre os Cen-tros de Origem e as Rotas de Expansodos Tupi. Fausto segue parcialmente aargumentao de Eduardo Viveiros deCastro, apresentada em comentrio steses do meu artigo. O foco da discusso a validade de certos aspectos da teo-ria da pina de Jos Brochado, basea-da na hiptese de que parte das expan-ses tupi, especificamente as dos povosfalantes do tupinamb, teria colonizadoa costa brasileira rumo ao Sul, partindoda foz do Amazonas. Fausto e Viveiros

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    de Castro entendem, olhando para osdados presentes, que, dada a falta deinformaes arqueolgicas entre a fozdo Amazonas e o Rio Grande do Norte,bem como a existncia de dataes an-tigas no Rio de Janeiro, fica difcil crerque tenha havido uma expanso doNorte para o Sul (a no ser que recue-mos muito a cronologia desse movi-mento) (:74). Fausto reconhece que is-to est longe de ser resolvido (:74),afirmando contudo que o centro de ex-panso pode ter sido a bacia do rioTiet (:74).

    Concordo que a questo est lon-ge de ser resolvida. Quanto sugestode Fausto, porm, h to poucos dadossobre a bacia do Tiet quanto sobre aregio entre a foz do Amazonas e o RioGrande do Norte (sendo que ele nomenciona os dados do interior do Piau,Pernambuco, Alagoas...). Fausto defen-de a primeira hiptese sobre a expan-so dos Tupi, sugerida por von Martiusna dcada de 1830 e reciclada vriasvezes at a sua mais influente formula-o por Alfred Mtraux (1928). Comomostrei em 1996, estes venerveis pes-quisadores no dispunham dos dadosarqueolgicos, lingsticos e etnolgi-cos obtidos a partir dos anos 60. Apesardessas novidades, muitos pesquisado-res atuais, como Fausto, reproduziramacriticamente a hiptese original e asreciclagens feitas at Mtraux sem rea-lizar uma sntese complexa e crtica queintegrasse todos os dados disponveis.Enfim, posso repetir que houve poucaspesquisas no Nordeste brasileiro, com-parando-se com a situao no Sudestee Sul, resultando em um mapa arqueo-lgico desigual, forosamente distorci-do, vulnervel confirmao de umaexpanso do Sul para o Norte. Repeti-rei, resumidamente, concluses minhase de outros pesquisadores j publicadasque reforam a teoria da pina, ques-

    tionando conclusivamente a hipteseda origem dos Tupinamb na bacia doParan-Tiet: 1) o horizonte arqueol-gico nos atuais estados de So Paulo,Mato Grosso do Sul e Paran, bem co-mo no Paraguai, no apresenta deta-lhes caractersticos da cermica tupi-namb que so comuns, por outro lado,no baixo Amazonas. Nessa rea meri-dional s existe, considerando povos tu-pi, evidncias histricas e arqueolgi-cas dos Guarani, Guarayo, Xet e Gua-yaki; 2) possvel e seguro estabelecera continuidade histrica entre o registroarqueolgico e os povos historicamentedescritos como tupinamb na costa e in-terior, assim como no caso dos Guarani;3) lingisticamente, o tupinamb dis-tinto do guarani. A hiptese da origemmeridional ignora a relao da lnguatupinamb com as lnguas faladas porpovos situados apenas na Amaznia,assim como desconsidera a rea de ori-gem do tronco tupi proposta e, at ago-ra, no questionada.

    A questo do sentido da rota dos Tu-pinamb ser respondida quando exis-tirem novos dados arqueolgicos entrea foz do Amazonas e o Piau. O desafio realizar isto sem cair em explicaessuperadas, como aquelas do culturalis-mo germnico e do difusionismo aplica-dos aos povos indo-europeus. neces-srio banir as concluses baseadas ape-nas na lgica ou na tradio estabeleci-da por Martius, pois elas apenas consi-deram deslocamentos no espao emfuno da posio historicamente de-terminada dos povos tupi.

    Finalmente, h esperana de queeste livro de Carlos Fausto seja a se-mente de um atualizado e completo ma-nual em lngua portuguesa sobre as po-pulaes indgenas no Brasil, to neces-srio para substituir os clssicos que jcumpriram sua tarefa e agora merecemir para o rol dos livros teis pesquisa

  • da histria da etnologia e da arqueolo-gia americanista. Sem dvida, com a es-crita desse outro livro, teremos uma obracom os mais novos conhecimentos e, es-pecialmente, a possibilidade de suscitarmais e necessrios debates.

    FELDMAN-BIANCO, Bela e CAPINHA,Graa (orgs.). 2000. Identidades. Estu-dos de Cultura e Poder. So Paulo: Hu-citec. 175 pp.

    Giralda SeyferthProfessora, PPGAS-MN-UFRJ

    Esta coletnea apresenta resultados depesquisas que focalizam populaes emdispora, enfatizando as relaes entreprocessos de globalizao e reconfigu-raes de identidade. Alguns dos traba-lhos que a compem foram original-mente apresentados na mesa-redondaGlobalizao, Estado e Embates deIdentidades I Conferncia Interna-cional sobre Identidade tnica e Rela-es Raciais, realizada simultaneamen-te com a XX Reunio Brasileira de An-tropologia (Salvador, abril de 1996). Olivro uma reedio, no Brasil, do volu-me temtico sobre identidades da Re-vista Crtica de Cincias Sociais (no 48,junho de 1997) publicao do Centrode Estudos Sociais da Faculdade deEconomia da Universidade de Coimbra(Portugal). Contm uma introduo, in-titulada Identidades, de Bela Feld-man-Bianco, e cinco textos, resultantesdo dilogo entre pesquisadores do Bra-sil, de Portugal e dos Estados Unidos,precedidos por um artigo de Boaventu-ra de Sousa Santos dedicado ao temados direitos humanos. Esses textos tmem comum, conforme registrado na in-troduo, o desafio terico-metodol-gico de examinar criticamente a produ-

    o contempornea de polticas cultu-rais e das identidades como poltica, nocontexto das (mltiplas) intersees en-tre processos de reestruturao do ca-pitalismo global e reconfiguraes dacultura e da poltica (:14). Apesar daabrangncia sugerida nessa definiode objetivos, os autores, valendo-se deuma perspectiva comparativa, procura-ram apreciar as tenses subjacentes aosprocessos de formao e reconfiguraode identidades (de raa, de classe, degnero etc.), especialmente no contextodo Estado-nao transnacional, bem co-mo os significados e limites das polti-cas identitrias, apontando para formasde resistncia e contestao s ideolo-gias hegemnicas de dominao.

    O ensaio de Boaventura de SousaSantos, Por uma Concepo Multicul-tural de Direitos Humanos, aparece naantologia como introduo de naturezaterica, por problematizar algumas te-mticas analisadas no demais textos, no-tadamente a questo da globalizao esuas diversas dimenses, o multicultu-ralismo, os direitos humanos e seu po-tencial emancipatrio. Identifica as ten-ses dialticas que informam a moder-nidade ocidental basicamente, a ten-so entre regulao social e emancipa-o social, entre o Estado e a sociedadecivil, e entre o Estado-nao e a globa-lizao para chegar a uma propostade reconceitualizao multicultural dosdireitos humanos, partindo do princpioda incompletude das culturas singula-res. O autor afasta-se de uma definiohegemnica de globalizao, usando otermo no plural para afirmar que, comoprocesso, nada mais do que a imposi-o bem-sucedida de um determinadolocalismo localismo globalizado (pro-cesso pelo qual um fenmeno local globalizado com sucesso) e globalismolocalizado (o impacto das prticas e dosimperativos transnacionais nas condi-

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    es locais). Nesse sentido, os direitoshumanos concebidos como universaisso impositivos, da a sugesto de trans-form-los em um projeto cosmopolitaque leve em conta o multiculturalismoenquanto pr-condio de uma rela-o equilibrada e mutuamente poten-ciadora entre a competncia global e alegitimidade global (:26). A dignidadehumana condicionadora da transforma-o cosmopolita requer o reconhecimen-to das incompletudes culturais mtuas.

    O problema da dominao, subja-cente discusso sobre os direitos hu-manos, est presente nos demais textos,que abordam construes identitriasda perspectiva transnacional. Sob esteaspecto, o trabalho de Nina Glick Schil-ler e Georges Fouron, Laos de San-gue: Os Fundamentos Raciais do Esta-do-Nao Transnacional, aponta parauma identidade racial assente na su-posta relao entre raa e nao, elabo-rada por imigrantes haitianos nos Esta-dos Unidos e legitimada em um Haitiredefinido como Estado-nao transna-cional. Os autores fazem um estudo docaso haitiano, mas sugerem que dirigen-tes polticos de alguns pases de emi-grao Mxico, Portugal, Colmbiaetc. tm procurado definir os respecti-vos Estados como transnacionais, parapoder incorporar suas populaes dadispora.

    O conceito de raa simbolizando aidentidade nacional, bem como o seuuso na arena transnacional envolvendopopulaes migrantes, no novidadeda ps-modernidade, conforme mostramos numerosos estudos sobre o naciona-lismo. O jus sanguinis que embasa a ci-dadania em muitos Estados nacionais a contrapartida legal dessa premissabiolgica de natureza primordialista. Ano ser por uma breve incurso histri-ca ao desenvolvimento das idias denao e raa, os autores no se preocu-

    param com a continuidade desse tipode ideologia, presente em muitos con-textos imigratrios desde o sculo XIX.No entanto, com base em dados de mi-nuciosa pesquisa realizada em NovaIorque com imigrantes do Haiti, defini-ram um modelo de identidade nacionalconformado pela idia de raa enquan-to trao distintivo suficiente na situaotransnacional. Mostram que a reconcei-tualizao do Estado-nao atravs daidia de transnacionalidade umaconstruo ideolgica da qual partici-pam tanto as lideranas dos imigrantesna dispora, quanto polticos e detento-res de cargos oficiais teve como resul-tado a formulao de uma identidadenacional especificamente racial, basea-da em linha de descendncia e laos desangue, na qual outros atributos da na-cionalidade, tais como lngua comum,histria compartilhada, territrio oumesmo cultura, desaparecem da simb-lica constitutiva da nao. Apesar daspossibilidades de construir mltiplas in-ter-relaes da vida cotidiana dos imi-grantes, visto que as redes transnacio-nais produzem importantes relaes so-ciais entre os que emigram e os que fi-cam, esse tipo de nacionalismo raciali-zado que produz identidade critica-mente analisado como forma problem-tica de resistncia ao preconceito e do-minao.

    O trabalho de Angela Gilliam, Glo-balizao, Identidade e os Ataques Igualdade nos Estados Unidos: Esboode uma Perspectiva para o Brasil,aborda alguns aspectos das atuais re-presentaes sobre raa nos EstadosUnidos e no Brasil, bem como as diver-sas reformulaes do conceito de affir-mative action e as tenses relacionadas identidade racial. Explora as implica-es da globalizao da economia so-bre o princpio de igualdade, o proble-ma do trabalho no remunerado nas pri-

  • ses dos Estados Unidos, a retrica dodaltonismo cultural (vinculada su-perao do racismo) reapropriada peladireita americana para neutralizar aquesto racial, o debate sobre quem negro no Brasil, para mostrar as atuaisdisputas relacionadas igualdade dedireitos e cidadania envolvendo classi-ficaes raciais e o programa de affirma-tive action. No caso brasileiro, enunciao apadrinhamento neoliberal, contra-ditrio, da affirmative action que, poressa razo, no identificada com a lu-ta dos negros pela cidadania e contra oracismo.

    A questo da affirmative action ser-ve de mote para criticar algumas anli-ses acadmicas relativas identidaderacial, especialmente aquelas que re-correm s ambigidades de um sistemaclassificatrio multipolar vinculado mestiagem. Comete alguns excessosretricos como o uso dos termos ne-grlogos e porteiros da academia(:99-100) para referir-se posio hege-mnica de brancos falando de relaesraciais nos meios acadmicos brasilei-ros mas, indubitavelmente, sua crtica perspectiva multipolar ajuda a pensarsobre polticas pblicas e racismo.

    Em um trabalho extremamente in-teressante sobre a poesia produzida porimigrantes portugueses no Rio de Ja-neiro e So Paulo, intitulado A Poesiados Imigrantes Portugueses no Brasil:Fices Crveis no Campo da(s) Identi-dade(s), Graa Capinha analisa o pro-cesso de contnua reelaborao da iden-tidade portuguesa na dispora, em umasituao subjetivada e contraditria defronteira cultural indiferenciada. Tratada identidade (cultural) como um pro-cesso de articulao e representao,simultaneamente lingstico e literrio,atravs da anlise textual, para mostraras ambigidades predominantes nascategorizaes identitrias em que os

    portugueses aparecem ora como coloni-zadores (e parte da histria formativado Brasil), ora como imigrantes. Nessecontexto mais propriamente literrio, aidia de raa no tem importncia, pre-valecendo a retrica da irmandade lu-so-brasileira e da lngua compartilha-da que, supostamente, deveriam igua-lar, mas que o sotaque e outros indica-dores da nacionalidade diferenciam naconfigurao do lugar subalterno doimigrante na situao ps-colonial.Conforme registra a autora, na poesiaso encontradas as identidades queresultam da interseo de culturas que,mesmo quando definidas pelo Mesmoque a Lngua, teimaro sempre em tra-zer o Outro e a Diferena (:112).

    O artigo trata da poesia como vecu-lo para externalizar configuraes iden-titrias mutveis, cujos referenciais so,por um lado, a terra ptria, muitas ve-zes definida pela regio e no pela na-o, a saudade, a grandeza passada dePortugal (a retrica do Imprio), e, poroutro, a irmandade, a integrao Por-tugal-Brasil, a prpria identidade luso-brasileira eventualmente abalada pelosesteretipos que desqualificam o por-tuga como ambicioso, burro, inculto, ea colonizao portuguesa como causado atraso brasileiro. A poesia como for-ma de expresso da nacionalidade (ou,nos termos de Herder, do esprito na-cional) um importante reflexo daquesto tnica no mbito dos processosmigratrios desde os tempos do roman-tismo, observvel em outras situaeshistricas. o caso, por exemplo, da po-esia produzida por imigrantes alemesno sul do Brasil desde meados do scu-lo XIX, atravs da qual se afirmou umaidentidade teuto-brasileira simultanea-mente a uma vinculao, pela lngua epelo jus sanguinis, nao alem. Co-mo no caso dos portugueses, a celebra-o da lngua o elemento central des-

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    sa poesia, assim como a nostalgia, nopropriamente do Estado-nao, masdo local de provenincia (a provncia,a aldeia, a terra no seu sentido mais res-trito).

    No ltimo artigo, Transidentidadesno Local Globalizado. No Identidades,Margens e Fronteiras: Vozes de Mulhe-res Latinas nos E.U.A, Mary GarciaCastro aborda o debate sobre poder esubalternidade na situao transnacio-nal, enfocando, especialmente, textosproduzidos por mulheres identificadascomo latinas e/ou negras nos Esta-dos Unidos. A escolha dessas vozespermitiu autora lidar com subalterni-dades mltiplas de raa, de classe, degnero, de opo sexual , problemati-zando o conceito de identidade latinana medida em que a literatura em ques-to, produzida por escritoras e militan-tes de diferentes movimentos, algumasfeministas, negras e/ou homossexuais,vai alm das fronteiras identitrias, emum desafio discriminao e opresso.Investiga temas menos explorados nassituaes de dispora, presentes nostextos dessas mulheres: o corpo e a se-xualidade, por exemplo, ou combina-es entre polticas de classe, raa, et-nicidade, gnero, nacionalismo etc., quelevam recusa do enquadramento empolticas de identidades unvocas.

    Os artigos reunidos na antologiado subsdios importantes para o enten-dimento das contradies, subjetivida-des, simbolismos e paradoxos subjacen-tes s concepes de identidade nas si-tuaes de transnacionalidade marca-das pela redefinio do modelo de Es-tado-nao. So estudos que focalizamprocessos atuais de reconfigurao iden-titria; no obstante, seria til a compa-rao com processos imigratrios de ou-tros perodos histricos, sobretudo por-que o Estado-nao transnacional estlonge de ser um fenmeno recente so-

    bretudo quando acionado um princpiodo nacionalismo cuja premissa pri-mordialista em um sentido biolgico.Por outro lado, o multiculturalismo noest suficientemente problematizado.Segundo alguns dos seus crticos, espe-cialmente aqueles identificados com osinteresses de minorias, a distintividadecultural pode ser transformada em novametfora da desigualdade, atravs dodiscurso de legitimao da diferena.As controvrsias so muitas e, certa-mente, as contribuies contidas no li-vro ajudam a elucidar os meandros dasidentidades enquanto poltica, em ummundo globalizado onde persiste o lo-cal na forma do Estado-nao.

    GOLDMAN, Marcio. 1999. Alguma An-tropologia. Rio de Janeiro: Relume Du-mar. 178 pp.

    Pablo SemnDoutor, CONICET/Universidad Nacional de General San Martn

    Os treze artigos que compem AlgumaAntropologia recobrem mais de vinteanos de uma trajetria diversificada emobjetos e perspectivas. Por isso, cadaum deles apresenta rendimentos pr-prios e especficos. O conjunto, todavia,encadeia um argumento em trs n-cleos: com a discusso das noes depessoa e de antropologia das socieda-des complexas, prope-se a antropolo-gia como histria; com a discusso decertos conceitos-chave nas obras deDeleuze, Descartes, Foucault, Lvi-Strauss, e com a identificao de algu-mas falcias no raciocnio antropolgi-co, elaboram-se as determinaes doobjeto da antropologia; o estudo dosprocessos eleitorais, o terceiro ncleo,ser um campo de verificao das con-

  • cepes e debates precedentes. Exami-narei cada um desses ncleos na ordemaqui enunciada.

    No artigo Uma Categoria do Pen-samento Antropolgico: A Noo de Pes-soa, afirma-se: curioso que os an-troplogos aceitem a idia de um indi-vidualismo ocidental e, ao mesmo tem-po, dediquem todos os seus esforos aencontrar entre ns representaes queno obedecem a esse modelo suposta-mente dominante (:25). Tal contradi-o depende da fuso indevida entre anecessria desnaturalizao do agentee sua concepo em termos da intera-o indivduo-sociedade. Esta, suben-tendendo o indivduo em vez de coloc-lo entre parnteses, duplica o imagin-rio ocidental que pretende interpretar.Todavia, preservar a problematizaodo agente no significa buscar, em umaregresso ad infinitum, o efeito de ideo-logias constituintes, mas investigar oplano de articulao contingente de re-gras, discursos e objetos no qual asideologias so derivadas e se tornameficazes. por isso que se sustenta ques teorias que buscam captar a subs-tncia de ideologias englobantes, seriapreciso opor uma analtica dos proces-sos imanentes s mltiplas prticas(:35). Abrindo-se contingncia, torna-se central o elemento histrico que oautor tenta realar na prtica e no obje-to da antropologia. Essa operao seprolonga e esclarece com o giro que seefetua em Antropologia Contempor-nea, Sociedades Complexas. Socie-dade complexa uma noo onipre-sente na prtica dos antroplogos, quea ope s simples, objeto prprio daantropologia, ou a define delimitandoas condies e aspiraes do exerccioantropolgico nas sociedades ociden-tais modernas. Em ambos os casos, aantropologia clssica e moderna, corpode saberes derivados da constncia de

    uma prtica, consagra essa constnciana iluso de correspondncia com umobjeto. Este constitui especularmente aantropologia como cincia dos objetosde pequena escala. A alternativa pen-sar que qualquer sociedade , ontolgi-ca e epistemologicamente, histria. Nose trata de apostar no conhecimentoidiogrfico ou de afiliar-se ao plo ro-mntico da tenso constitutiva das cin-cias sociais, mas sim de distinguir entreo plano da gerao social das institui-es e o plano que configura o conjuntodelas, j institudas, privilegiando o pri-meiro. A distino refere-se a lgicas deanlise diferentes e, se bvio que agerao social de instituies recicla opreviamente cristalizado, tambm o que o dispositivo no a mesma coisaque o j disposto, que no ser a mes-ma coisa estudar criadores e criaturas.Essa noo, tributria de Veyne e Fou-cault, entende como histria o estudo ea produo de tramas que se tecemaqum da necessidade, do tempo e doespao transcendentais. Na interseode temporalidades conflitivas que nun-ca sero a Histria e de espaos preca-riamente fixados que nunca sero subs-tncia, so decididas e condensadas assingularidades: ponto de articulao deprovenincias e emergncias, terrenode engendramento dos universais queesses mecanismos de gerao tornamsempre precrios. Assim a antropolo-gia, prtica transversal s cincias for-malizadas, transita em mbito sublu-nar que no implica miniaturizao,mas delimitao de um plano em queoperam variveis diferentes das quereinam no campo em que os objetos soengendrados.

    Essa mudana de perspectiva, porsua vez, conduz a uma reflexo crucialsobre o mtodo. O objeto sociedadescomplexas ilumina um problema que,j presente nas sociedades simples, era

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    ativamente desconhecido pela suposi-o de que estas ltimas eram passveisde cognies totais. A complexidade dequalquer forma social se impe a qual-quer pretenso de registro total, asso-ciada ilusoriamente s aspiraes dalonga durao das observaes e su-posta imediatez das mesmas. No setrata de abandonar o rigor da etnogra-fia: o treinamento prprio da disciplinano caduca, mas suas aspiraes sevem dimensionadas pela elucidaoda ontologia do social que estava sendoencoberta.

    A problematizao dessa ontologiase realiza de duas maneiras. Primeiro,como crtica das maneiras de conhecer;segundo, como elaborao das determi-naes tericas do objeto. A primeira,desenvolvida em Como se Faz umGrande Divisor? (em co-autoria comTnia Stolze), assinala um produto con-traditrio das anlises antropolgicas: arecusa oposio ns/eles desconhe-ce a lgica que a sustenta e a reproduzem outros nveis ao postular as separa-es entre, por exemplo, mundos holis-tas e individualistas, oralidade e escrita.Em primeiro lugar, preciso entenderque a pergunta o que, em geral, nosaproxima e/ou distingue dos outros(:85), supe a realidade de unidades ediferenas cuja existncia deveria serobjeto de suspeita. Em segundo lugar,chama-se a ateno para as condieslgicas sob as quais se realizam os ra-ciocnios comparativos. Como demons-tram os autores, um verdadeiro arsenalde falcias pesa sobre os raciocnios an-tropolgicos e volta a colocar perguntasgeneralizantes sem necessidade deenunci-las.

    A segunda linha de anlise desen-volvida em As Lentes de Descartes,Razo e Cultura, Lvi-Strauss e osSentidos da Histria e Objetivao eSubjetivao no ltimo Foucault. Nes-

    tes artigos, explora-se a idia da antro-pologia como histria atravs do examede obras-chave da antropologia e filoso-fia. De Lvi-Strauss extrai-se uma lioprecisa, pertinente e muitas vezes elu-dida com a acusao de anti-historicis-mo. Se a Histria nosso mito, porqueessa tem sido nossa forma de reagirdiante da temporalidade. Esse racioc-nio sustenta, mais do que uma relativi-zao do saber histrico, a afirmao daexistncia de historicidades diferentesjunto a distintas formas de refletir sobreelas e de constitu-las. Assim, a separa-o da historicidade em relao His-tria e s filosofias da histria no signi-fica negao da primeira mas sim, pelocontrrio, abertura de um caminho pa-ra uma reflexo histrica afastada dasarmadilhas de todos os evolucionismose de todas as ideologias celebratrias(:63). Se a interveno de Lvi-Straussdepura o acontecimento das pr-noesque buscam cingi-lo, o recurso a Fou-cault pode ser introduzido na tentativade conceitualiz-lo positivamente. As-sim, ressalta da leitura deste ltimo araridade dos fatos humanos, sua emer-gncia em um espao de transformaoe fratura, sua derivao no cruzamentode campos de saber e de normatividadee de formas de subjetividade. Neste cru-zamento, o resultante no o nico pos-svel, porque toda raridade est habita-da de politicidade, de capacidade dedecidir, em um campo de possibilida-des, por uma atualizao que bem po-deria ter sido outra. Essa raridade im-plica, ademais, o privilgio da singula-ridade (como combinatria local de li-nhas de fora difusas distncia dequalquer universalidade e no como di-ferena irredutvel), em vez da oscila-o entre os particularismos insondveise as universalizaes etnocntricas.

    Essas posies tm conseqnciaspara a definio e a prtica do relativis-

  • mo. De um ponto de vista epistemolgi-co, trata-se de compreender que a su-bordinao da semelhana diferenano supe uma diferena metafsica,absoluta e transcendente. Castoriadis,entre outros, entendia a instituio maiscomo verbo que como substantivo. Damesma maneira, deve entender-se a di-ferena: como trabalho de constituiode certas singularidades a partir de ou-tras, como movimento de distino a serestabelecido a cada momento. Para es-se objetivo, o criticismo cartesiano cons-titui um modelo de pensamento maisprximo da antropologia do que se po-deria supor: mais do que ceticismo cog-nitivo ou moral, a atitude que permi-te tornar histrico e singular o que seapresenta como natural e universal. Doponto de vista tico, as conseqnciasno so menos importantes. O relativis-mo emergente no surge do contrasteentre parmetros absolutamente outrosopostos a parmetros absolutamenteprprios. Equivale a contrastar o queem um campo de possibilidades atua-lizado com outras atualizaes dessemesmo campo, a assumir que essas pos-sibilidades poderiam comutar-se. A in-terpretao de Clastres por Deleuze es-clarece esse ponto: se as sociedades pri-mitivas no eram sem Estado e sim ca-racterizadas pela presena de podero-sos mecanismos contra o Estado, pre-ciso admitir que essas sociedades regis-travam o funcionamento de mecanismosde Estado que foram inibidos, e que asnossas no bloquearam por completo osmecanismos que a ele resistem. Isto mais que um exerccio epistemolgico:h um valor tico que se agrega ao epis-temolgico e o subordina. Vejamos emdetalhe: a antropologia como histria,como cincia de dispositivos, encontranos outros primitivos, mais que o pas-sado de nossa contemporaneidade,atualizaes, modos de operar a contin-

    gncia, que abalam a segurana comque praticamos nossas vidas. Na alteri-dade pode patentizar-se o que nossassociedades escondem com relativo su-cesso, o naturalizado ao longo de bata-lhas cujo rastro se perdeu, o que apren-demos a deixar de tomar em conta. Se isto o que est em jogo na relao coma alteridade, justo concluir que a ati-vidade da antropologia ganha sentidotico contribuindo para relativizar atua-lizaes ligadas politicidade que deci-de nossa contingncia histrica.

    A anlise das prticas eleitorais, en-focando eleitores e candidatos, consti-tui um excelente campo de teste paraas intenes declaradas e elaboradasnos artigos j citados. Tomemos comoexemplo um dos artigos que desenvol-vem essa perspectiva. Teorias, Repre-sentaes e Prticas mostra que a su-posta irracionalidade dos eleitores sedissolve se contemplamos simultanea-mente a disperso, a integrao inst-vel e a hierarquizao de motivaesque eles realizam (motivaes que in-cluem uma leitura do jogo eleitoral di-ferente da que sustentam descritiva ounormativamente as anlises cientficas).Mas essa demonstrao tem um valorsuplementar. Ali onde os desenvolvi-mentos dominantes da anlise polticasupem correspondncias entre sujei-tos e partidos, ou constatam desajustesque incitam a esperar evoluo ou a de-mandar pedagogia, se empreende umaanlise que, como se se tratasse do ladoescuro da lua, d conta do ponto cegodos conceitos da sociologia eleitoral eda cincia poltica. Ali onde essas disci-plinas projetam o cidado, o partido, aracionalidade do votante, a anlise his-trica desnaturaliza o eleitor e recuperao fato de que uma ortopedia socialo que, no quadro das liberdades da erado individualismo, o institui. Mais queisso, torna manifesto que os atos dos

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    eleitores no constituem o resultado doencontro entre essa institucionalizaoe uma tbula rasa, mas um ponto de en-contro conflitivo entre lgicas culturaisem disputa em uma equao cujos ter-mos so incertos, mas que, certamente,excluem o partido, o cidado e a elei-o, como formas universais e como ter-mos unvocos.

    LUSTOSA, Isabel. 2000. Insultos Im-pressos. A Guerra dos Jornalistas naIndependncia (1821-1823). So Paulo:Companhia das Letras. 497 pp.

    Candice Vidal e SouzaDoutoranda, PPGAS-MN-UFRJ

    A magnfica histria dos personagensvanguardeiros da imprensa no Brasil ede sua presena decisiva nas lutas pol-ticas da Independncia est recompos-ta de modo indito neste livro de IsabelLustosa. Seu texto distingue-se do esti-lo narrativo tradicional das obras dehistria da imprensa para o perodo mais preocupadas com a citao linearde jornais e publicistas porque colocao leitor no centro dos debates do tempoao refazer o enredo da interlocuo en-tre aquelas figuras notveis do mundodo jornalismo na primeira metade dosculo XIX. As contendas registradasem jornal entre a partida do rei D. JooVI (abril de 1821) e o fechamento daAssemblia por D. Pedro I (novembrode 1823) so a marca preservada da-quela efervescncia poltica. No relato,ao mesmo tempo em que se mantm ocalor dos discursos, colocando-os noseu contexto original de enunciao,tambm se resguarda o vnculo entre osautores e seu estilo de escrita caracte-rstico. Esses senhores das artimanhasretricas criam uma linguagem jorna-

    lstica que combina expresses revolu-cionrias de 1789, adgios portugue-ses, humor apurado e ofensas pessoais.Acompanhamos o destino de jornalistase de posies polticas por eles abraa-das com fervor (genuno ou oportunis-ta); o leitor ainda bem amparadoquanto aos detalhes de fatos histricosnecessrios compreenso do eventodescrito e todos os nomes mencionadosrecebem notas biogrficas.

    O relato de Lustosa descreve comrara mincia o enlace entre jornalismoe poltica no perodo da Independncia.Nesse cenrio, o retrato da vida inte-lectual brasileira no seu nascedouro,quando se constitui a figura do intelec-tual compromissado com o lugar ondevive, que sobressai da histria contadapela autora. Homens que se vem coma misso pedaggica de formar e orien-tar politicamente o povo, ou melhor, aselites coloniais, daquele Brasil em viade assumir a condio de nao inde-pendente. Para tanto, a imprensa foi omeio privilegiado de sua ao (:33).

    Trata-se, afinal, de um texto suges-tivo alm das fronteiras da histria daimprensa propriamente dita. Nele hdados para a caracterizao sociolgicado jornalismo brasileiro os atores e asposies ideolgicas e sociais a partirdas quais opinavam em seu instanteformativo, aquele em que o pblico lei-tor passa a ser pensado como brasileiroe as posies dos jornalistas se definemem relao a ser ou no ser pelo Brasil.Nesses anos, articulou-se de forma deci-siva o empenho da palavra escrita epor extenso, dos intelectuais com acausa da Independncia ou da existn-cia do Brasil como nao.

    Admirao o sentimento freqen-te entre historiadores que se aproxi-mam da imprensa contempornea daIndependncia. Convergem na consta-tao de uma transformao nacionalis-

  • ta a acontecida. Como diz Lustosa, eraa imprensa brasileira que nascia, com-prometida com o processo revolucion-rio, no momento em que, de um dia pa-ra outro, deixvamos de nos considerarportugueses para nos assumirmos comobrasileiros (:25-26). Neste ponto ela co-munga com outras obras de histria daimprensa brasileira (para citar apenasautores renomados atualmente, NelsonWerneck Sodr, Barbosa Lima Sobrinhoe Juarez Bahia) nas quais a adjetivaobrasileira est condicionada s con-dies polticas da Independncia. ,pois, uma premissa interpretativa queidentifica o surgimento do timbre bra-sileiro (expresso de Nelson WerneckSodr) nos jornais circulantes. Por esseraciocnio, no o local de impressoque define primariamente a condiogentlica de um jornal, mas o seugrau de conscincia e compromisso na-cional. No seria descabido dizer que aregra geral nas narrativas em questo a adeso dos autores ao mpeto nacio-nalista de seus personagens. InsultosImpressos mantm esse esprito de ad-mirao para com nossos antepassadosintelectuais. Com uma diferena funda-mental: este livro no possui o tom nor-mativo das histrias da imprensa, s ve-zes indistinguvel da sucesso factualde jornalistas e jornais.

    Isabel Lustosa revela desacordospontuais em relao aos argumentos decertos autores da bibliografia de refe-rncia e no se intimida ao desconstruiropinies assentadas sobre figuras comoJos Bonifcio. Entretanto, caractersti-cas reveladoramente nacionalistasdesse acervo de obras sobre histria daimprensa no Brasil passam despercebi-das pela autora. A pergunta sobre comoaconteceu a imprensa da Independn-cia, certamente, no vem recebendouma resposta unvoca dos estudiososbrasileiros que propuseram verses dos

    primrdios da imprensa brasileira. Casoas escolhas bibliogrficas viessem acom-panhadas de um mapa bsico das opi-nies acerca dos fatos da imprensana transio da Colnia para o Imprio,teramos uma indicao satisfatria doteor das interpretaes disponveis so-bre o perodo. Como tantas outras his-trias, a da imprensa brasileira tambm uma narrao com efeitos performati-vos, o que resiste percepo arguta deLustosa. A meu ver, esta a razo pelaqual a seleo de textos de referncianessa rea com preferncia acentua-da por trabalho de Carlos Rizzini me-receria explicaes.

    Em que tipo de jornais, afinal, circu-lavam os insultos? No geral, eramedies fugazes, impressas em tiragensreduzidas e cujo alcance geogrfico decirculao no costumava ultrapassar acidade de publicao. Alm disso, a dis-tribuio se fazia diretamente aos assi-nantes, pois no se usava, ainda, o ex-pediente da venda avulsa nas ruas. Aquase totalidade das fontes trabalhadaspela autora pode ser nomeada comojornais cariocas da Independncia(:32). A qualificao nacional dirigidaa essas folhas no se refere propriamen-te realidade de sua distribuio empraas alm-Corte, e sim nao co-mo referente do escritor.

    O grupo de redatores que coabitavano Rio de Janeiro raramente dialogoucom jornalistas das provncias. Uma ex-ceo importante foi Cipriano Barata,jornalista baiano radicado em Pernam-buco, responsvel pela Sentinela da Li-berdade na Guarita de Pernambuco.Protestava contra as aes de governoempreendidas a fim de se tornarem asprovncias colnias do Rio de Janeiro(:319). As reaes posio de Barataforam veementes e alguns jornalistasde proa, como os Andradas, acusaram-no de pretender amotinar as provncias.

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    Podemos perceber, nas citaes expos-tas pela autora, que os termos da con-tenda entre favorveis e opositores aBarata convergiam para a definio dapostura de brasileiro ou de antibrasilei-ro. Dar existncia s diferenas entreprovncias e Corte significou uma novainsero semntica para o nacional noquadro dos debates sobre o Brasil. Con-tudo, naquele momento os jornalistas seempenhavam com fervor na querelaentre lusitanos e brasileiros. Este foi ogrande alvo das disputas retricas emjornal, relegando para depois a viradado olhar de jornalistas e polticos paradentro do Brasil, j anunciada por Bara-ta no cenrio dos peridicos da Inde-pendncia.

    bem demonstrado no trabalho queo horizonte de leitores imaginado pelosredatores era restrito a emissrios bas-tante especficos. Os outros colegas deofcio do jornalismo e da poltica e o im-perador resumiam bem a composiodo pblico-alvo dos jornais daquela ho-ra. Somente as folhas que traziam o ser-vio de anncios atingiriam a pequenaclasse mdia do Rio de Janeiro. Da por-que o livro traz inmeras situaes deinterlocuo entre jornais, quando senota que uma das ocupaes centraisdos jornalistas ler as demais publica-es e proferir opinio sobre o que seandou dizendo.

    A percepo clara da composio edas disposies da audincia uma ca-racterstica forte dessa imprensa, sobre-tudo porque a eficcia retrica dependeda correta adequao do discurso s ex-pectativas e valores do seu destinatrio.Os redatores queriam persuadir seu lei-torado, convencendo-o da pertinnciade seus argumentos e juzos sobre pes-soas e conjunturas, mas igualmente pre-tendendo orientar a ao poltica, mo-vendo-a numa ou noutra direo. Sobreesses temas das formas de linguagem e

    da enunciao das polmicas na escritajornalstica da Independncia, a autoraconstri o ponto de vista analtico dotrabalho, detalhado na concluso cha-mada Injrias no so razes, nem sar-casmos valem argumentos. Assim que em todos os sete captulos intitu-lados com saborosas expresses nati-vas h o cuidado com o dito, o autor,a forma de locuo e os receptores ima-ginados pelo escritor, sem abdicar daexposio minuciosa do contexto polti-co maior do proferimento.

    A conseqncia bem-vinda da preo-cupao com a retrica em papel aapresentao do lxico poltico corren-te no perodo. Eptetos como marotos,chumbeiros, marinheiros, ps-de-chum-bo, corcundas e descamisados povoa-vam os jornais e compunham um vastorepertrio de acusaes, tambm curio-so quanto descrio de aspectos fsi-cos e de carter dos personagens da mi-ra jornalstica. As classificaes do cam-po da poltica so localizadas em suaacepo prpria do sculo XIX, fazen-do-nos ver quo compensadora a his-tria das categorias do vocabulrio po-ltico. Outros temas jornalsticos so asfiguras do compadre da roa e do com-padre da cidade, ocasio discursiva pa-ra que a imprensa vocalize e estabeleaquadros interpretativos do Brasil parasua elite leitora.

    A inexistncia de fronteiras entrejornalismo, poltica e literatura a mar-ca do contexto oitocentista. Os homensde jornal se viam como escritores e re-corriam desqualificao estilstica deseus oponentes desejando-lhes a ex-cluso da repblica das letras atmais que contestao ideolgica. Re-side a uma das facetas instigantes dotrabalho, qual seja, o documento parauma sociologia do mundo jornalsticoque s poder surpreender jornalistastout court muito depois. Carlos Drum-

  • mond de Andrade j se referiu a umjornal jornalstico. Poderamos desig-nar os peridicos lidos por Lustosa, emuitos outros que os seguiram, comojornais no jornalsticos. O jornaljornalstico ser um produto de outrosdesdobramentos de nossa vida intelec-tual a produzirem autonomia relativade trs culturas: a literatura, as cin-cias universitrias e o jornalismo. Insul-tos Impressos, cuidadosa edio deuma tese de doutorado defendida em1997 no IUPERJ, clareia o percurso da-queles interessados na sociologia dojornalismo brasileiro, na etnografia domundo dos jornalistas ou na histria dosintelectuais no Brasil, e naturalmenteregala os historiadores do sculo XIX.

    MAIO, Marcos Chor e VILLAS BAS,Glaucia (orgs.). 1999. Idias de Mo-dernidade e Sociologia no Brasil. En-saios sobre Luiz de Aguiar Costa Pin-to. Porto Alegre: Editora da UFRGS.351 pp.

    Hctor Fernando Segura-RamrezDoutorando, Unicamp

    Idias de Modernidade e Sociologia noBrasil contm um rico e variado conjun-to de ensaios organizados em partes te-mticas, que constituem uma refern-cia de leitura obrigatria para pensartanto os processos de desenvolvimentoe modernizao no Brasil, quanto ascincias sociais e sua histria e o papeldestas e do cientista social na constru-o de uma sociedade democrtica noBrasil contemporneo. A obra umatentativa bem-sucedida de resgatar aatualidade do pensamento de Luiz deAguiar Costa Pinto, um dos principaispersonagens da sociologia brasileira eimportante liderana acadmica das

    cincias sociais praticadas no Rio de Ja-neiro em meados do sculo XX.

    Na abertura da obra, um texto doprprio Costa Pinto em que ele atualizasua condio de filho do Iluminismo eda Modernidade e reafirma sua crenatanto na razo e na cincia como instru-mentos fundamentais para analisar, en-tender e construir um mundo melhor,quanto nas idias de que a cincia so-cial fundamentalmente crtica da so-ciedade e de que o cientista social devedesempenhar um papel ativo na cons-truo de uma sociedade mais justa. Pa-ra Costa Pinto o racismo e a guerra solamentveis caractersticas da moderni-dade que no deveriam ter lugar emum mundo ps-moderno mais humano.

    Na primeira parte, Depoimentos, abordada a trajetria intelectual deCosta Pinto por pesquisadoras que con-viveram com ele em diferentes momen-tos do seu itinerrio intelectual. MariaStella Amorim mostra aspectos relevan-tes do percurso social e da atuao aca-dmica do socilogo, entre 1939-1963,e evidencia traos da sua personalidadee do estilo de seus trabalhos, que fize-ram dele um pioneiro na pesquisa so-cial brasileira. Josildeth Gomes Consor-te oferece um testemunho clido e hu-mano do autor, e descreve brevementeo papel por ele desempenhado em al-guns projetos e centros de pesquisa.

    Na segunda parte, Mudana So-cial e Idias de Modernidade, so dis-cutidas, atravs da obra de Costa Pinto,questes centrais do pensamento socio-lgico, a saber: as concepes de socio-logia, crise, mudana social, desenvol-vimento e transio. O texto de GlauciaVillas Bas revisita a pesquisa feita porCosta Pinto no Recncavo, e mostra queh neste autor uma concepo instru-mental da sociologia comprometidacom um paradigma universalista, queprivilegia o estudo dos fenmenos so-

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    ciais em transformao. Leopoldo Waiz-bort reconstri as concepes e o signi-ficado dos conceitos de crise, do moder-no, da sociologia, da realidade e do pa-pel do cientista social, e evidencia algu-mas das mudanas e nuanas termino-lgicas experimentadas no sistema con-ceitual de Costa Pinto. Jos MaurcioDomingues estabelece um dilogo crti-co com Costa Pinto sobre o desenvolvi-mento econmico, a nova dependncia,as relaes internas sociedade brasi-leira, a construo da cidadania e o pa-pel do intelectual, luz das discussescontemporneas sobre modernidade eos processos de modernizao no Bra-sil. O projeto de Costa Pinto e suasidias de planificao e cincia do de-senvolvimento descansariam sobrefundamentos da modernidade: a mobi-lizao de toda a sociedade e a contri-buio racional e planificadora do Esta-do cumprindo papel decisivo. E, EnnoDagoberto Liedke apreende os concei-tos e as hipteses utilizadas pelo soci-logo baiano no tratamento terico dasproblemticas da mudana social, damodernidade e do desenvolvimento. Aquesto da mudana social teria sidotratada mediante a distino conceitualentre desenvolvimento social e moder-nizao, enquanto o problema do de-senvolvimento social brasileiro teria si-do explicado utilizando a hiptese damarginalidade estrutural. A obra do so-cilogo teria significado uma tomada deposio militante em favor da contribui-o da sociologia para mudanas so-ciais democratizantes.

    Na terceira parte, Cor, Discrimina-o e Identidade Social, discutidauma questo cara ao pensamento socialbrasileiro: as relaes raciais. Os textostratam do papel da escravido na inter-pretao das desigualdades raciais, daatuao dos movimentos negros, da es-tratificao e do lugar dos negros na so-

    ciedade, e da luta anti-racista contem-pornea. Angela Figueiredo focaliza otratamento dado por Costa Pinto ao pro-blema da ascenso social dos negros noBrasil. Enquanto Azevedo (1955), Pier-son (1971), Fernandes (1971) e Hasen-balg (1979) teriam percebido negros as-cendendo individualmente atravs dorecurso ao branqueamento, ao casa-mento inter-racial e ao apadrinhamentopor famlias brancas, Costa Pinto teriadistinguido um grupo de negros em as-censo, caracterizados por querer as-cender como elites negras. O ensaiode Flvio dos Santos Gomes aborda aidia de escravido nos estudos do pro-jeto UNESCO realizados por Costa Pintoe Florestan Fernandes. Tentar explicara escravido atravs da sua herana (adesigualdade e a discriminao para osnegros) e a quase denncia da discrimi-nao racial no Brasil seriam as carac-tersticas comuns a esses trabalhos. Noobstante, essas explicaes sociolgicassobre a escravido na constituio doracismo contemporneo teriam feito de-saparecer uma parte da histria, o pe-rodo 1888-1950. J Monica Grin abor-da o tema das relaes raciais nos tra-balhos de Costa Pinto e Florestan Fer-nandes, e determina que a diferenasubstantiva entre eles radica nas for-mulaes propositivas para superar oproblema racial no Brasil. Costa Pinto,diferentemente de Florestan Fernan-des, previu uma racializao crescenteda sociedade brasileira: a raa transfor-mar-se-ia em critrio de organizaosocial e de expectativas por direitos.Mais do que uma acomodao ouuma desejvel democracia racial de-corrente da modernizao, ele v nasrelaes raciais brasileiras uma tendn-cia para a tenso racial ou o conflito.Maria Anglica Motta-Maus focaliza apolmica entre Costa Pinto e a intelli-gentsia do Teatro Experimental do Ne-

  • gro, representada pelo socilogo Guer-reiro Ramos, e oferece elementos para acompreenso da dinmica e da lgicado campo das relaes raciais no Rio deJaneiro. Na mesma coletnea h duasposies a respeito da interpretao domovimento negro carioca feita porCosta Pinto: Flvio dos Santos Gomesqualifica-a de desrespeitosa e pre-conceituosa, enquanto Maria AnglicaMotta-Maus considera-a acertada. Dis-putas recentes em torno do programa-convnio Fundao Ford/Centro de Es-tudos Afro-Asiticos tambm atualizamessa polmica.

    Na quarta parte, Pensamento So-cial Brasileiro: O Debate Intelectual dosAnos 50, os ensaios focalizam o papeldos intelectuais e algumas das afinida-des e tenses temticas, metodolgicas,disciplinares e ideolgicas que infor-mam a constituio dos campos disci-plinares das cincias sociais no pas.Maria Laura Viveiros de Castro Caval-canti salienta a relao intelectual eafetiva entre Donald Pierson e OracyNogueira, e examina a construo doconceito de preconceito de marca.Importante para a compreenso do ra-cismo no Brasil, este conceito teria sidoproduto de uma rica tradio de pesqui-sa ligada Universidade de Chicago,cuja caracterstica seria combinar dadosestatsticos com pesquisa de camposensvel dimenso simblica, aquiloque Pierson denominava o aspecto hu-mano de nossos dados. Marcos ChorMaio aborda o debate entre antropolo-gia e sociologia e determina alguns dosposicionamentos desses cientistas emrelao ao enfoque das relaes intert-nicas pelas cincias sociais. As crticascontundentes de Costa Pinto aos estu-dos afro-brasileiros teriam como alvoNina Rodrigues e Arthur Ramos, noobstante essas crticas no levarem emconta os deslocamentos em direo

    antropologia social na produo inte-lectual de Arthur Ramos. O autor afir-ma que o projeto UNESCO seria a con-cretizao do programa da antropolo-gia brasileira proposto por Arthur Ra-mos. Bila Sorj defende a idia de queapesar da instabilidade das instituiesuniversitrias de pesquisa no Rio de Ja-neiro nos anos 50 e 60, houve nesta ci-dade importantes contribuies paraestabelecer os parmetros de uma so-ciologia moderna. Assim, o esforo deCosta Pinto em definir as fronteiras dasociologia tanto em relao s outrascincias quanto em relao aos discur-sos polticos e ideolgicos produzidospor intelectuais nesse perodo, confereao socilogo um lugar central como fun-dador da sociologia no Brasil. HelenaBomeny evidencia as principais carac-tersticas do pensamento e da trajetriaintelectual de um importante represen-tante da Escola Nova, Fernando deAzevedo, no que diz respeito ao seuempenho em melhorar o sistema edu-cacional brasileiro para a construo deuma nao brasileira livre, educada egenerosa. Os escolanovistas teriam seservido da sociologia como ferramentapara diagnosticar os problemas educa-cionais nacionais e propor reformas. Fi-nalmente, Nsia Trindade Lima mostra,a partir da anlise comparativa dos tra-balhos de Costa Pinto e Florestan Fer-nandes, que a abordagem dos temas damudana social dirigida e das resistn-cias mudana a principal refernciada produo intelectual dos dois soci-logos entre 1950 e 1960. Alm disso,eles compartilhariam o otimismo quan-to capacidade de predio e direoatribuda cincia em geral e cinciasocial em particular.

    Na quinta parte, intitulada As Ins-tituies de Cincias Sociais: Persona-gens, Trajetrias e Controvrsias, osartigos tratam do processo de institucio-

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    nalizao das cincias sociais no Brasile das diversas orientaes que ali con-fluram. Assim, por exemplo, no Rio deJaneiro, a dita institucionalizao noteria obedecido ao paradigma metdicoe regular de ensino e pesquisa, mas aum processo no qual vrias geraes seintegrariam pelas relaes de comuni-cao pedaggica e pelas experincias eidias comuns. As misses culturais fran-cesas no Brasil, particularmente aquelasque participaram na fundao dos cur-sos de histria no Rio de Janeiro, so fo-calizadas por Marieta de Moraes Fer-reira para mostrar o perfil diferenciadodos professores, a diversidade de in-fluncias que eles trouxeram e comoatuavam como intermedirios dos inter-cmbios culturais. Segundo a autora, ainfluncia desses professores se mos-trou limitada no que diz respeito novamaneira de fazer histria no Brasil. Noobstante, sua presena teria sido impor-tante com relao atualizao biblio-grfica dos alunos, forma de estrutu-rao dos cursos, ao desenvolvimentodos canais de intercmbio entre as co-munidades universitrias francesa e bra-sileira e maior divulgao da culturabrasileira na Frana. Manuel Palaciosda Cunha e Melo analisa o campo dascincias sociais com sofisticadas tcni-cas de anlise quantitativa. A partir dasreferncias bibliogrficas de um con-junto significativo de teses em antropo-logia, sociologia e cincia poltica, de-fendidas em onze centros de ensino epesquisa do Brasil entre 1991 e 1993, oautor constri um conjunto de diagra-mas e mapas referidos s linhagens na-cionais e estrangeiras e estrutura dasposies dos cientistas nas cincias so-ciais brasileiras. Aparecida Maria Abran-ches mostra, a partir dos escritos de He-lio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, queos intelectuais do ISEB se identificavamcom o conceito de intelligentsia, isto ,

    a concorrncia entre vocao poltica ecientfica na produo de um saber po-liticamente relevante para a comuni-dade qual est referido, atuando co-mo norteadores das polticas pblicasnacionais.

    Finalmente, na Bibliografia de Cos-ta Pinto aparecem inventariados fatosrelevantes de sua trajetria acadmicae os trabalhos que publicou entre 1943e 1987. Certamente, a publicao destelivro constitui uma importante contri-buio para o estudo das cincias so-ciais brasileiras e suas lutas.

    NAEPELS, Michel. 1998. Histoire deTerres Kanakes: Conflits Fonciers etRapports Sociaux dans la Rgion deHoualou (Nouvelle-Caldonie). Paris:ditions Belin. 380 pp.

    David FajollesDoutorando, EHESS

    Para escrever este livro, originalmenteuma tese de doutorado em antropologiadefendida na EHESS sob a orientaode Jean Bazin, Michel Naepels obser-vou rigorosamente um princpio meto-dolgico: nunca usar, no corpo do texto,o termo sociedade. possvel ler nes-sa aposta a preocupao terica desen-volvida por Jean Bazin e Alban Bensa,baseada em uma forte crtica do estru-turalismo e do culturalismo, e que tentaimportar para a pesquisa antropolgicauma postura terica ligada filosofiaanaltica da ao.

    Michel Naepels fez sua pesquisa decampo no centro-norte da Nova-Cale-dnia, na costa leste da Grande Terre (ailha principal). O municpio de Houa-lou apresenta um condensado de todasas caractersticas mais bvias da socie-dade (com perdo pelo uso do termo)

  • caledoniana: uma terra de colonizaoeuropia dispersa, baseada na criaode gado; uma explorao mineira j an-tiga, dada a riqueza da regio em n-quel; a presena, desde os anos 1870,de uma fazenda penitenciria no muni-cpio; a distncia e a importncia da es-trada para Nouma, a capital; a fora daimplantao das misses. No incio dosculo, Houalou foi o campo de pesqui-sa privilegiado de Maurice Leenhardt,pastor da religio reformada e etnlo-go, autor do grande clssico etnolgicosobre o mundo kanak: Do Kamo. Ape-sar do carter relativamente arbitrrio comentado por Naepels da escolha docampo de pesquisa, em funo de limi-tes lingsticos e administrativos, sua ri-queza bvia. Os conflitos de terra emHoualou no constituem, porm, o ob-jeto em si do autor: o que ele nos ofere-ce uma anlise geral das relaes so-ciais kanak, retraada sob o prisma dosconflitos de terra.

    O livro comea com uma imerso nahistria colonial desse municpio da No-va-Calednia. Essa parte no se apre-senta como um mero prembulo; asanlises histricas retornam regular-mente at o final do texto, de maneiratal que torna difcil definir o gnero dolivro: histria ou antropologia? Uma dascaractersticas dessa postura terica superar esse dilema, que se inscreve,afinal, mais na prpria histria internada academia e das delimitaes disci-plinares do que em diferenas tericase metodolgicas. Histoire de Terres Ka-nakes pode ser lido tambm como umlivro de historiador.

    Como em toda histria colonial, aanlise confronta-se com a relatividadedas fontes disponveis: sejam estas aadministrao francesa ou os mission-rios, o poder do texto escrito est nasmos dos europeus. Nessas fontes, osKanak aparecem mais como traas da

    histria do que como agentes. Uma des-colonizao dessa histria seria poss-vel? o que tenta Naepels, tomando emconta fontes orais, e partindo de uma hi-ptese que nos faz pensar nos debatespoltico-tericos da escola historiogrfi-ca dos subaltern studies: os Kanak nopermaneceram na postura de coloniza-dos passivos, espectadores da histria;tiveram um papel ativo no processo decolonizao, seja como intermediriosde acolhimento dos colonos e dos admi-nistradores, seja como os atores princi-pais da evangelizao da regio.

    Para apoiar esta hiptese, Naepelsfaz referncia s anlises de A.G. Hau-dricourt sobre a civilizao do inha-me: segundo Haudricourt, uma das ne-cessidades da economia kanak pr-co-lonial era a obteno da maior varieda-de possvel de tubrculos (inhame e ta-ro, bases da alimentao kanak) parareproduo e clonagem, de modo a pre-venir-se contra as incertezas climticas.Essa razo econmica pode ser associa-da freqncia das adoes e dos in-tercmbios de crianas na Oceania emgeral, assim como freqncia das nar-rativas kanak do dom da chefia para umestrangeiro, configurao que valorizamuito quem vem do exterior. Seguindoessa intuio de Haudricourt, e estabe-lecendo um vnculo com a famosa inter-pretao que Marshall Sahlins fez docontato entre James Cook e os Hawaii,Naepels prope a seguinte hiptese: ocolonizador e a religio foram integra-dos (sem saber) nos caminhos do costu-me e da aliana kanak.

    A histria colonial poderia ser inter-pretada como a passagem do costume lei (e perspectiva da independnciakanak socialista). Esses momentos noso entidades histricas estveis: so oque Naepels chama de pocas subjeti-vas dominantes, que servem geral-mente de quadro implcito de anlise

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    nas narrativas orais kanak sobre o fatocolonial. essa presena do passado,esse papel poltica e socialmente ativoda histria, que Naepels vai investigar.

    A importncia social do saber hist-rico no desenvolvimento dos conflitosatuais em Houalou deve ser associadaao seguinte fato: todos os patronmicoskanak so topnimos. Assim, as narra-tivas de origem clnica tm um papelcentral na legitimao poltica e fun-diria de cada um dos cls, particular-mente desde que uma entidade admi-nistrativa (a ADRAF) foi encarregada daredistribuio de terras, em 1978. Acondio que a ADRAF impe a ne-cessidade de acordo quanto legitimi-dade da pessoa ou da famlia que vaireivindicar essa ou aquela terra, dondeas divergncias e a concorrncia entrenarrativas de origem. Duas caracters-ticas dessas narrativas devem ser des-tacadas:

    A complexidade das reivindicaesestatutrias possveis. Trata-se, para oindivduo diante da ADRAF, do etnlo-go ou no quadro de uma preocupaopessoal, de recuperar as razes histri-cas das alianas ou das tenses atual-mente existentes entre o seu prpriocl e um outro qualquer, de retraar otrajeto do seu cl. A guerra, a antropo-fagia e as mudanas freqentes tor-nam-se quase impraticveis com a or-dem colonial e a sedentarizao fora-da dos Kanak nas reserves; , prova-velmente, por isso que as narrativas deorigem se tornaram a forma dominantede formulao e regulao dos confli-tos. H vrios nveis de legitimidadepoltica, inclusive as que foram criadaspela administrao francesa, como astribos e seus chefes administrativos.Alm disso, depois de 1945, o estabele-cimento das listas eleitorais enrijeceu aatribuio dos nomes e criou novas con-testaes.

    O carter rapsdico das narrati-vas de origem torna impossvel preten-der reconstituir a verdade sobre a pro-priedade fundiria pr-colonial. Assim,o papel do etnlogo deve se restringir acompreender as razes sociais e histri-cas dessas divergncias. Apesar disso,a situao de entrevista e as demandasdo etnlogo fazem com que este seja di-retamente envolvido nesse trabalho co-letivo de produo de narrativas, at co-mo fonte de legitimidade. Disso derivaa complexa casustica do anonimato notexto de Naepels: alguns entrevistadosso citados pelo nome verdadeiro; emoutros casos, figuram sob um nome dis-farado ou um X, para no prejudicar ointerlocutor.

    Todos esses elementos conduzemNaepels a definir sua posio: o saberhistrico/etnolgico inscreve-se sempreem uma conjuntura determinada (talnarrativa foi produzida em tal momen-to, em funo da situao social em queo interlocutor estava envolvido e deseus interesses); o etnlogo est impli-cado nas condies de produo dessasnarrativas. Conseqentemente, e con-tra a antropologia lvi-straussiana, nose pode pretender a construo de umsaber mitolgico descontextualizado. Osmitos de origem devem ser compreen-didos nos seus contextos de produo,no seu ser social e poltico.

    a mesma perspectiva que permitea Naepels propor uma anlise originaldo parentesco: a afinidade e a co-resi-dncia no so mais percebidas comoprincpios estruturantes de uma ordemsocial objetiva, mas como princpios re-ferenciais para aes e interpretaessubjetivas. Do mesmo modo, a segmen-taridade deve ser concebida no comouma instituio, mas como uma possibi-lidade, submetida ambigidade daidentidade poltica de cada um, em fun-o dos vrios pertencimentos que se

  • pode reivindicar: o cl, a casa, a fratria,a tribo, o cl materno etc. Essa indeter-minao da ao constitui um dos cen-tros tericos da anlise antropolgicaque Naepels prope; possvel ler emfiligrana nos trabalhos dessa linha te-rica a distino, estabelecida por Witt-genstein no Caderno Azul, entre a or-dem dos motivos (razes) e a ordem dascausas. No se pode pressupor os laosque vo ser utilizados por um indivduoem uma determinada situao. Os mo-tivos dos comportamentos conservamuma dimenso obscura: no se trata deuma partitura j escrita, nem da reali-zao de uma estrutura por um atormais agido do que agente. A ordem lo-cal e a ordem do parentesco no for-mam princpios estruturantes das rela-es sociais, mas o quadro de um equi-lbrio de foras, o lugar estrutural dodesdobramento de interesses divergen-tes: poderamos falar tambm de umagramtica dos conflitos.

    Em 1978, o Estado francs lanouuma poltica de redistribuio fundiriaem favor dos Kanak. Paralelamente, areivindicao fundiria tornou-se tam-bm uma reivindicao cultural para aUnio Caledoniana e para a Frente deLibertao Nacional Kanak Socialista(FLNKS), os dois principais movimentosindependentistas kanak. A partir doseu estudo da histria colonial de Hou-alou e das linhas principais de dinmi-ca social, Naepels oferece um quadrogeral do que ele chama de casusticafundiria, da qual se destacam pelomenos dois elementos:

    Um dos paradoxos da reivindicaofundiria o seguinte: ela tem por obje-tivo o restabelecimento de uma ordemfundiria que existia antes da criaocolonial das reservas; houve, todavia,desde ento, transformaes sociais es-senciais (desaparecimento de algunscls ou casas, ou, ao contrrio, cresci-

    mento demogrfico de alguns linhagensetc.) que fazem com que a reconstruohipottica dessa ordem pr-colonial se-ja inapropriada sem as adaptaes ne-cessrias.

    As medidas de reforma fundiriatm uma outra dimenso: elas possibili-tam aos interessados escapar ao contro-le social local. Como os que migram pa-ra Nouma, os que querem instalar-seem um stio prprio podem livrar-se,parcialmente, do peso de relaes so-ciais tensas que provocam conflitos, bri-gas, bruxaria, cime etc. A recriao docostume, com suas finalidades sociais,fundirias e polticas, pode tambm fun-cionar como uma sada individual ou fa-miliar.

    A leitura do livro de Naepels podeat deixar uma impresso estranha: ahumildade ou o rigor nominalista do au-tor (nunca usa entidades essencializa-das como princpios explicativos) fazemcom que a anlise parea a descrio deum contexto, mesmo que complexo.Sente-se falta de descries de casosespecficos de conflito ou de criao deconsenso, que permitam entender me-lhor como as foras descritas e essa gra-mtica dos conflitos se articulam. Mas essa exigncia, essa apresentao ho-rizontal de foras no hierarquizadas,que permite ao leitor compreender co-mo se constroem os conflitos sociais ka-nak. O (re)ordenamento desses fatores outra coisa: seria uma tarefa do polti-co, que poderia utilizar esse livro, comoprope o autor na concluso, para res-ponder a uma das necessidades atuaisda Nova-Calednia: criar um direitofundirio ad hoc.

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