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Mary Gabriel Amor e Capital A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução Tradução: Alexandre Barbosa de Souza

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Mary Gabriel

Amor e CapitalA saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução

Tradução:Alexandre Barbosa de Souza

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Rio Danúbio

Rio Elba

R. Elba

R. Reno

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Prefácio

Encontrei pela primeira vez a história da família Marx em uma revista de Londres. A matéria era sobre famosos londrinos, e uma frase me saltou à vista. Dizia que das três filhas de Marx que sobreviveram, duas haviam cometido suicídio. Parei a leitura do artigo no meio, ao me dar conta de que não sabia praticamente nada da família de Marx ou de sua vida pessoal. Para mim, ele era uma enorme cabeça no alto de um pedestal de granito no cemitério de Highgate e uma obra teórica materializada em centenas de livros. Nunca havia pensado nas mulheres que lhe davam comida todos os dias enquanto ele lutava para criar uma teoria que iria revolucionar o mundo, nem pensara na vida do homem cujas ideias haviam originado o socialismo europeu, e espalhado o comunismo da Rússia à África, da Ásia ao Caribe.

Comecei a estudar para conhecer a história deles. Descobri que todos os aspectos da filosofia de Marx, cada nuance de suas palavras, haviam sido dissecados e que dezenas de biografias haviam sido escritas a partir de todas as perspectivas políticas, mas que em inglês não havia um só livro que contasse a história completa da família Marx.* Nenhum texto nos muitos volumes sobre Marx se concentra inteiramente nas vidas da esposa, Jenny, e das crianças, e suas famílias estendidas – Friedrich Engels e Helene Demuth. Existem diversas biografias de Jenny Marx e da filha caçula de Marx, Eleanor, mas nenhuma conta o drama que foi a história de suas vidas ou contextualiza o impacto de suas dificuldades na obra de Marx. Resolvi tentar fazer isso eu mesma.

Comecei a reunir milhares de páginas de cartas que membros da famí-lia Marx escreveram uns para os outros e para seus associados ao longo de

* Não posso falar por todos os livros de outras línguas além do inglês, mas não encontrei nenhuma obra que cobrisse a história da infância de Marx até a morte de sua última filha sobrevivente.

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mais de seis décadas. Muitas dessas cartas estavam localizadas nos arqui-vos em Moscou e nunca haviam sido publicadas em inglês. Também usei cartas que abordavam o tema dos Marx e que foram escritas por parentes mais distantes e amigos. Lendo essa quantidade imensa de documentos em ordem cronológica, com um olhar contemporâneo, comecei a ouvir os diversos personagens falando uns com os outros conforme os acon-tecimentos se desenrolavam a sua volta. Consegui ouvir seus diálogos cotidianos – durante vinte anos Marx e Engels se corresponderam quase diariamente pelo correio, e as mulheres da família Marx eram igualmente prolíficas. A imagem que aos poucos se formou foi a de uma família que sacrificava tudo por uma ideia que o mundo chamaria de marxismo, mas que durante boa parte de suas vidas existira apenas no cérebro de Karl Marx. A divulgação de suas teorias era continuamente postergada.

Descobri uma história de amor entre um marido e uma esposa que se-guiram apaixonados e dedicados apesar da morte de quatro crianças, apesar da pobreza, da doença e do ostracismo social, e da traição de Marx, que teve um filho com outra mulher. Era a história de três moças que adoravam o pai e se dedicaram a sua ideia grandiosa, mesmo à custa dos próprios so-nhos, mesmo à custa de seus próprios filhos. Era a história de um grupo de pessoas brilhantes, combativas, exasperadas, divertidas, apaixonadas e, em suma, trágicas, apanhadas em meio às ondas de revoluções que varreram a Europa no século XIX. Era, sobretudo, a história das esperanças frustradas, pessoais e políticas, contra a fortaleza da realidade amarga.

Nas palavras dos membros da família Marx, encontrei também deta-lhes que em biografias ao longo dos últimos 25 anos haviam sido alterados ou mal-interpretados, ora por motivos políticos, ora por questões pessoais. É o que sempre acontece com figuras controversas, mas ouso dizer que ninguém mais do que Marx sofreu com isso. Alguns exemplos são bem conhecidos: logo após a morte dele, em 883, seus seguidores tentaram limpar sua imagem – eliminando qualquer referência a sua pobreza, sua embriaguez, e mesmo o fato de que ele tinha um apelido, Mohr [Mouro], pelo qual era conhecido desde os tempos da universidade. Mais tarde, durante a Guerra Fria e novamente após a Queda do Muro de Berlim, sua

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biografia se tornou parte do campo de batalha ideológico entre o Leste e o Oeste. Os detalhes de sua vida, e por extensão da vida de sua família, mudavam conforme a descrição do santo comunista ou do pecador iludido. A depender da cidade onde o autor estivesse escrevendo, logo ficava clara qual versão da vida de Marx se oferecia ali.

Os detratores de Marx muitas vezes o acusavam de viver uma vida burguesa de luxos enquanto fingia lutar pelos trabalhadores. Tais acusa-ções surgiram no início da vida de Marx e o seguiram ao longo do século XX nos esforços por desacreditar a ele e a sua obra. Por outro lado, aqueles que queriam alçar Marx a um pedestal socialista lutaram por anos para negar que ele era pai do filho de Helene Demuth, Freddy. Havia cartas nos arquivos de Moscou em que membros do partido discutiam a paternidade de Freddy, mas Joseph Stálin, quando ficou sabendo delas por David Rya-zanov, diretor do Instituto Marx-Engels, referiu-se a essas cartas como um caso mesquinho e instruiu Ryazanov a “deixar que se perdessem no fundo dos arquivos”.1 As cartas não foram publicadas por cerca de cinquenta anos.

Existem inúmeros outros exemplos de equívocos e caracterizações errôneas ocorridas ao longo dos anos, e muitos, como os supracitados, fo-ram descobertos por especialistas em Marx; a maioria deles foi corrigida. Mas outros erros, infelizmente, continuam a se repetir como fatos por biógrafos não só de Marx, mas também de seus associados. Recorrendo à fonte, às palavras dos principais atores – especialmente as mulheres da família Marx, cujas cartas parecem ter sido relegadas por muitos pesquisa-dores –, tentei esclarecer alguns dos mistérios ainda remanescentes. (Claro, o próprio Marx era conhecido por distorcer fatos segundo a necessidade, o que significa que sua declaração juramentada não necessariamente implica que seja a verdade. Nesses casos, tentei deixar claro que sua versão dos acontecimentos não era inteiramente confiável.)

A história da família Marx é tão rica que elucida também o desen-volvimento das ideias de Marx, uma vez que se desenrola sobre o pano de fundo do nascimento do capitalismo moderno. O sistema capitalista do século XIX amadureceu com as filhas de Marx. Ao final do século, as lutas que elas enfrentaram em nome dos trabalhadores já não pareciam as

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que o pai lutara em meados do século. As batalhas da época dele davam a impressão de ter sido relativamente amenas. As lutas do tempo de suas filhas se tornaram selvagens. Na verdade, esse aspecto da história se tor-nou mais importante à medida que eu ia escrevendo.

Quando iniciei este projeto, o mundo parecia muito diferente. Poucas pessoas questionavam o sistema capitalista que dominava o mundo – o capitalismo estava em meio a um de seus ciclos periódicos de alta. Mas conforme passei da pesquisa para a redação, a crença na infalibilidade do sistema começou a diminuir até que, como resultado da crise financeira que atingiu seu primeiro pico no outono de 2008, especialistas e econo-mistas passaram a questionar abertamente os méritos do capitalismo do livre mercado e a ponderar em voz alta sobre como seria uma alternativa. Os textos de Marx, no rastro da crise, pareciam ainda mais visionários e instigantes. Na aurora do capitalismo moderno, em 85, ele já havia começado a prever aquele desenvolvimento. Suas previsões de revolução iminente estavam evidentemente erradas, sua imaginada sociedade sem classes do futuro talvez fosse mais do que utópica (por mais que ele tenha argumentado em contrário), mas as análises das fraquezas do capitalismo foram todas assustadoramente comprovadas. Fui, portanto, obrigada a ir além do meu projeto inicial – meramente contar a história da família Marx – e incluir mais teorias de Marx e descrições mais detalhadas do desenvolvimento do movimento da classe trabalhadora. A bem dizer, não acho que a história da família Marx ficaria completa sem esses elementos. Foi a vida que eles viveram; eles comiam, dormiam e respiravam a revo-lução política, social e econômica. Isso, e um amor absorvente por Marx, era a argamassa que os mantinha unidos.

Ao escrever as biografias dos grandes homens de Roma e Atenas antes de sua morte em 20 d.C., Plutarco afirmou que a chave para entender esses homens não estava nas conquistas dos campos de batalha ou em seus triunfos públicos, mas em suas vidas pessoais, em seus personagens, até mesmo um gesto ou uma palavra. Acredito que através da história da família Marx, os leitores poderão entender melhor Marx, da forma como Plutarco sugere. Espero também que os leitores saiam desta leitura com

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admiração pelas mulheres da vida de Marx, que por causa da sociedade em que foram criadas acabaram assumindo papéis quase sempre secun-dários. Acredito que a coragem, a força e o brilhantismo dessas mulheres já permaneceram tempo demais na obscuridade. Sem elas não haveria Karl Marx, e sem Karl Marx o mundo não seria como nós o conhecemos.

Ao escrever este livro, tomei algumas decisões que gostaria de apre-sentar aos leitores.

A família Marx escrevia suas cartas em muitas línguas. A correspondên-cia entre eles podia ser em inglês, francês ou alemão – e muitas vezes nas três línguas juntas –, com toques peculiares de italiano, latim e grego. Decidi poupar os leitores do fardo de recorrer com frequência a notas de rodapé, apresentando as citações sempre traduzidas, exceto nos casos em que o idioma é essencial ao drama da carta ou quando seu significado é evidente.

Além disso, parte da correspondência continha comentários racis-tas, que não incluí neste livro porque, primeiro, não eram essenciais à história e, segundo, eram correntes no período em questão (ainda existia escravidão nos Estados Unidos). Tais comentários, contudo, chamariam a atenção dos leitores. Concluí que incluir termos racistas (que apareciam, afinal, apenas um punhado de vezes em milhares de páginas) acabaria por distrair indevidamente o leitor. É muito evidente que Marx e Jenny não eram racistas, porque não se opuseram ao casamento da filha com um homem mestiço, e porque Marx expressou com estrondo sua posição contra a escravidão. Se considerasse necessário incluir tais termos para entender a família Marx, eu os teria incluído, mas realmente acredito que não contêm em si mesmos nenhuma reflexão pejorativa, além de reverberarem a sociedade da época. Da mesma forma, Marx, Jenny e En-gels usavam por vezes expressões antissemitas – em geral referindo-se a Lassalle. Existem diversos estudos sobre antissemitismo em Marx. Resolvi deixar essa discussão para outros autores e não incluí tais referências. O próprio Marx era judeu, e acredito que o uso de expressões antissemitas por parte de Marx, Jenny e Engels fosse antes mais um reflexo da cultura do século XIX do que algum preconceito arraigado.

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Prólogo Londres, 85

Deve haver algo de podre no cerne de um sistema social que aumenta sua riqueza sem diminuir sua miséria.

Karl Marx1

Na neblina impenetrável eles pareciam fantasmas. Assombrando vie-las e umbrais da Dean Street, no Soho, chegavam a Londres às dezenas de milhares – a Londres da rainha Vitória, a cidade mais rica do mundo. Generosa, liberal, despontava como um farol na escuridão das águas agi-tadas do mar do Norte, um santuário para os infelizes e desamparados. Os primeiros a chegar foram os irlandeses, fugindo da pobreza e da fome, mas depois das revoltas por todo o continente também alemães, franceses, húngaros e italianos, nas vestimentas extravagantes de suas terras na-tais, desembarcaram aos montes pelas ruas de Londres. Eram refugiados políticos após tentativas fracassadas de derrubar a monarquia e lutavam pelas liberdades mais fundamentais. Agora, castigados pela chuva e pelo frio cortante, até a ideia de lutar pelos próprios direitos parecia absurda. O farol que Londres parecia ser se provara uma miragem; a cidade lhes abrira as portas, mas não lhes dera nada. Morriam de fome.

Dia e noite uma cacofonia de vozes aflitas se esgoelava para se fazer ouvir em meio ao rumor da capital. Para sobreviver, os recém-chegados vendiam tudo o que podiam – cortes de tecido, botões, cadarços. O mais frequente, contudo, era venderem-se a si mesmos, por hora ou por dia, no trabalho ou na prostituição. Homens e mulheres cobertos pelo manto do próprio desespero, numa condição em que a miséria levava até os mais es-forçados ao crime. Carroças transportando carcaças fumegantes de carne e queijos perfumados aos bairros mais ricos aceleravam nos quarteirões

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da Soho Square e da St. Giles para evitar os famosos ladrões e assassinos.2 Mas, na verdade, esses refugiados estavam debilitados demais para lutar e roubar. Haviam feito a longa viagem até a Inglaterra transbordantes de esperança; o que sobrava desses sonhos era o que tinham para se sustentar.

Nos dois ambientes de um sótão do terceiro andar na Dean Street, um obscuro exilado prussiano de 33 anos ocupava-se em declarar guerra ao próprio sistema que condenava os de baixo àquela existência maldita. Não tentava sequer esconder seu propósito. Debruçado sobre a única mesa da família, entre pilhas altas de costura, brinquedos, xícaras quebradas e outros restos de coisas, ele rascunhava um plano para a revolução, alheio ao caos doméstico que o circundava ou às crianças que, fazendo de sua figura volumosa parte da brincadeira, montavam nas suas costas.

Em ambientes assim por toda a Inglaterra, homens de visão se em-penhavam em trabalhos igualmente difíceis: Darwin observava cracas, Dickens dava à luz seu filho dileto David Copperfield e Bazalgette imagi-nava uma vasta rede de esgoto subterrâneo que escoaria para longe todo o dejeto londrino. E, naquele cômodo no Soho, com um charuto entre os dedos, Karl Marx tramava a derrubada de reis e capitalistas.

A revolução de Marx não seria do tipo que ele mesmo ridicularizava como bravata de bar, defendida por émigrés em sociedades secretas nas quais dividiam os espólios de uma guerra vencida só na própria imagina-ção. E tampouco seria o levante utópico exposto pelos socialistas franceses que sonhavam com uma sociedade-modelo sem qualquer ideia de quais seriam os passos concretos necessários para construí-la. Não, a revolução dele teria raízes na premissa fundamental de que nenhum homem tinha direito de explorar outro homem, e de que a história se movia de tal modo que as massas exploradas um dia triunfariam.

Contudo, Marx compreendia perfeitamente que tais massas sequer reconheciam a si mesmas como donas de uma voz política, muito menos como detentoras de poder. Também não tinham noção de como o sistema econômico ou a política funcionavam. Marx estava convencido de que, se conseguisse descrever o caminho histórico que levara às condições do

Prólogo: Londres, 1851 23

meio do século XIX, e assim revelasse os mistérios do capitalismo, poderia oferecer um fundamento teórico sobre o qual construir uma sociedade nova e sem classes. Sem essa espécie de fundação, o resultado seria o caos. Nesse ínterim, sua família precisaria se sacrificar; enquanto ele não terminasse seu livro, O capital, teriam de passar por privações.

Na verdade, a jovem família Marx já conhecia bem a necessidade. A distância entre os Marx e os menos afortunados das ruas era muito menor que os três andares que os separavam. Em 85, quando Marx começou a escrever seu livro, doenças decorrentes dessas privações mataram dois de seus filhos, e os pequenos corpos foram velados em caixões baratos nos mesmos cômodos onde as outras crianças comiam e brincavam. Sua esposa, Jenny, filha de um barão prussiano e celebrada por sua beleza, fora obrigada a penhorar objetos da família, da prataria aos próprios sapatos, a fim de pagar aos credores que batiam incessantemente à sua porta. E o filho malandro de Marx, Edgar, já havia absorvido as lições das ruas com as crianças pobres irlandesas, que lhe ensinaram a cantar e depois a roubar.

Porém, o que mais preocupava Jenny e Marx eram as filhas. Os ho-mens que visitavam o pai, dia e noite, eram quase todos fugitivos. As crianças raramente tinham um lugar para brincar que não estivesse api-nhado de exilados enfumaçando o ambiente com charutos e cachimbos, e enchendo seus ouvidos de conversas grosseiras e ideias revolucionárias. Edgar crescera nesse ambiente. Adorava histórias de bebedeiras intermi-náveis e, para a alegria de Marx, entoava a plenos pulmões as canções rebeldes que os amigos do pai lhe ensinavam. Mas os pais sabiam que a única esperança das meninas de escapar a uma vida de pobreza era uma educação burguesa na companhia de mocinhas de família. Não impor-tava quão comprometidos estivessem com a causa, nem Marx nem Jenny queriam ver as filhas condenadas a viver com aqueles tipos de homens que subiam a escada estreita da Dean Street, batendo à porta deles com a barriga vazia, mas com a cabeça cheia de sonhos radicais.

Jenny maldizia a sina que condenara seus filhos a uma vida de indigên-cia num apartamento miserável cheio de móveis quebrados de segunda mão. Mas, por pior que fosse, ela estava apavorada também com a possibi-

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lidade de que mais um pagamento atrasado ao senhorio jogasse sua família lá embaixo, no olho da rua. Havia apenas resquícios de renda, um vácuo de economias; a própria sobrevivência dependia da bondade de um amigo ou da compaixão de um merceeiro.

Marx garantira a Jenny que ela e as crianças não teriam que passar por aquele sofrimento para sempre. Assim que seu livro fosse publicado, ficariam ricos e o mundo lhes agradeceria pela abnegação. Num surto de otimismo em abril de 85, Marx contou a seu melhor amigo e colabora-dor, Friedrich Engels: “Estou tão adiantado que terminarei toda a parte econômica em questão de cinco semanas.”3 Na verdade, O capital só ficaria pronto dezesseis anos mais tarde, e quando foi publicado, longe de defla-grar a revolta, mal provocou uma marola.

A família Marx sacrificou tudo por essa obra-prima ignorada. Jenny enterrou quatro dos sete filhos, viu as três filhas sobreviventes privadas de qualquer coisa que se aproximasse de uma vida adequada de menina, teve seu rosto, outrora adorável, devastado pela doença e sofreu a traição defi-nitiva quando Karl teve um filho com outra mulher. Ela não viveria para ver os tristes capítulos finais das filhas – das três, duas cometeram suicídio.

Ao final, tudo que a família tinha – tudo que jamais viria a ter – eram as ideias de Marx, que durante a maior parte da vida deles só existiram como uma tempestade se preparando dentro do cérebro turbulento do pai, e que quase ninguém mais reconhecia ou mesmo compreendia. Por improvável que fosse, como pareceu durante aqueles anos de fome, Marx fez o que se havia proposto a fazer: ele mudou o mundo.