a genética do crime cabete
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CABETTE, Eduardo Luiz Santos
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A GENÉTICA DO CRIME: PERIGOS OCULTOS ENTRE
FALÁCIAS, REDUCIONISMOS, FANTASIAS E DESLUMBRAMENTOS
Eduardo Luiz Santos Cabette
Delegado de Polícia; Mestre em Direito Social; Pós-Graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia; Professor de Direito Penal; Processo Penal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Unisal; Membro do Grupo de
Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal – Campus de Lorena-SP.
“Pior do que o escuro em que nos debatemos é a mania de ser o dono da luz”. Ariano Suassuna, O Santo e a Porca, p. 23.
“Nada se sabe, tudo se imagina”. Fernando Pessoa, Odes de Ricardo Reis, p. 107.
INTRODUÇÃO
O mundo tem sido bombardeado pelas promessas da genética que descortinam a
possibilidade de uma gigantesca revolução a alterar profundamente as relações do
homem consigo mesmo, com o tempo, com os outros homens, etc.
A violência e a criminalidade, enquanto pautas recorrentes, não poderiam ficar
imunes às irradiações dessas novas perspectivas, oportunizadas pelos alardeados
supostos potenciais quase ilimitados proporcionados pelo desenvolvimento desse
ramo científico.
Em um estágio no qual já se reconhece com alguma dose de consenso que as
simplificações e os isolamentos não são capazes de explicar ou descrever a
realidade. Quando parece estar compreendido que o todo não é uma singela soma
das partes, emergindo o paradigma da complexidade a extirpar os reducionismos,
surge a genética, apresentada quase invariavelmente sobre uma base
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marcantemente determinista, preditiva e simplista, ostentando como palavra de
ordem o “isolamento” (isolamento de genes, de caracteres etc.).
Com este trabalho pretende-se expor como o advento das promessas genéticas
pode influenciar os estudos criminológicos, ocasionando uma importante alteração
de rota. Também é relevante demonstrar como essa alteração de trajetória do
pensamento criminológico pode enveredar por caminhos extremamente perigosos,
prenhes de autoritarismo e de potenciais violações à dignidade humana.
Uma inicial incursão acerca da evolução histórica do pensamento criminológico, será
capaz de mostrar como aquilo que a aplicação da genética no campo criminológico
hoje descortina como absoluta novidade alvissareira, não passa da repristinação de
velhos paradigmas etiológicos do crime, sustentados sobre bases que se mostraram
equivocadas e ilusórias.
Finalmente, será objeto de discussão a necessidade de reflexão a anteceder
qualquer tomada de posição e, principalmente, qualquer atitude que possa de
alguma maneira atingir a existência humana, ensejando vilipêndios a tudo aquilo que
caracteriza o “ser” do homem.
1 ESBOÇANDO UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CRIMINOLOGIA1
O grande marco a inaugurar verdadeiramente os estudos criminológicos encontra-se
no surgimento do Positivismo e, mais especificamente, da chamada “Antropologia
Criminal”. Nessa ocasião opera-se uma mudança singular no que diz respeito ao
objeto das preocupações da ciência criminal. Enquanto a Escola Clássica Liberal
preocupava-se com o estudo dos postulados jurídico – penais, procurando
desenvolver uma formulação teórico – dogmática do Direito Penal, o advento da
Antropologia Criminal propicia uma alteração de perspectiva, voltando os olhos da
1 Um desenvolvimento mais aprofundado desta temática já foi por nós levado a efeito em outro trabalho. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A criminologia no século XXI. Revista Forense. Volume 374, jul./ago., 2004, p. 53-78.
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pesquisa científico – criminal para o estudo do fenômeno do crime e, especialmente,
da figura do criminoso.
O Positivismo exerce grande influência na conformação dessa nova postura, pois
que defende a irradiação do método científico para todas as áreas do saber humano,
até mesmo às da filosofia e da religião. Nesse contexto, o Direito e especificamente
o ramo jurídico – criminal, também passaram a sofrer influências importantíssimas
desse referencial teórico então dominante.
O Positivismo Jurídico aproxima o Direito, o quanto possível, ao método das ciências
naturais, objetivando limita-lo àquilo que tenha de concreto, observável, passível de
mensuração e descrição. Por isso é que seu resultado acaba sendo a limitação do
Direito às normas legais, evitando a consideração de fatores axiológicos, metafísicos
etc.
O afastamento rigoroso das questões que não fossem subsumíveis ao método de
experimentação científico, ensejou, no bojo das ciências criminais, o nascimento da
busca de relações e regras constantes que tivessem a capacidade de esclarecer o
fenômeno da criminalidade.
A Criminologia exsurge dessa efervescência, desse entusiasmo pelo método
científico, dando destaque nunca dantes constatado ao estudo do homem criminoso
e à pesquisa das causas da delinqüência.
Em meio a esse clima, a criminalidade somente poderia ser estudada com
sustentação em dados empíricos ofertados pela demonstração experimental de leis
naturais seguras e imutáveis.
O criminoso passa a ser objeto de estudo, uma fonte de pesquisas e experimentos
com vistas à descoberta científica das causas do fenômeno criminal.
A obstinada busca de causas explicativas do agir criminoso em oposição às
condutas conforme a lei, somente poderia resultar na negação do “livre arbítrio”,
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apontado até então pela Escola Clássica como verdadeiro fundamento legitimador
da responsabilidade criminal.
É claro que a noção de livre arbítrio não poderia servir a uma concepção positivista,
pois que ensejava um total descontrole e imprevisibilidade quanto às práticas
criminosas. A postura positivista não se coaduna com tal insegurança. Deseja
apropriar-se de um conhecimento que propicie o domínio seguro de leis constantes
a regerem o mundo e, por que não, o comportamento humano, inclusive aquele
desviado.
A conseqüência imediata foi a consideração do criminoso como um “anormal”. A
partir daí, bastaria dotar o pesquisador de instrumentos hábeis a selecionar, de
forma científica, os criminosos (anormais), em meio à população humana
aparentemente homogênea ou normal.
O primeiro grande passo dado por um pesquisador nesse sentido foi a doutrina
preconizada por Cesare Lombroso, destacando-se a publicação de sua conhecida
obra “O homem Delinqüente”, em 1876.
Lombroso entendia ser possível detectar no criminoso uma espécie diferente de
“homo sapiens”, o qual apresentaria determinados sinais, denominados “stigmata”,
de natureza física e psíquica. Esses sinais caracterizariam o chamado “criminoso
nato” (v.g. forma da calota craniana e da face, dimensões do crânio, maxilar inferior
procidente, sobrancelhas fartas, molares muito salientes, orelhas grandes e
deformadas, corpo assimétrico, grande envergadura dos braços, mãos e pés, pouca
sensibilidade à dor, crueldade, leviandade, tendência à superstição, precocidade
sexual etc.). Todos esses sinais indicariam um “regresso atávico”, tendo em conta
sua clara aproximação com as formas humanas primitivas. Ademais, Lombroso
intentou demonstrar uma ligação entre a epilepsia e aquilo que chamava de
“insanidade moral”.
Percebe-se claramente o conteúdo determinista das teorias lombrosianas, o qual
conduziria a importantes conclusões e conseqüências para a Política Criminal. Ora,
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se o criminoso estava exposto à conduta desviada forçosamente, tendo em vista
uma congênita predisposição, seria injusto atribuir-lhe qualquer reprovação que
fosse ligada ao desvalor de suas escolhas quanto à sua conduta, isso pelo simples
motivo de que não atuava por sua livre escolha, mas sim dirigido por forças naturais
irresistíveis a impeli-lo para os mais diversos atos criminosos. Assim sendo, jamais
poderia ser exposto a apenações morais e infamantes. Não obstante, sendo as
práticas criminosas componentes indissociáveis de sua personalidade, estaria a
sociedade legitimada a defender-se, impondo-lhe desde a prisão perpétua até a
pena de morte.2
A doutrina lombrosiana, no entanto, foi grandemente criticada e desmentida por
estudos ulteriores que comprovaram a inexistência de indícios seguros a
demonstrarem qualquer diferença fisiológica, física ou psíquica entre homens que
perpetraram atos criminosos e indivíduos cumpridores da lei.
Não obstante, deve ser atribuído a Lombroso o mérito de ser o primeiro a
impulsionar os estudos que dariam origem à Criminologia. Ele iniciou, com a sua
Antropologia Criminal, os estudos do homem delinqüente, razão pela qual tem sido
considerado o verdadeiro “Pai da Criminologia”.3 A partir dele começam os mais
diversos campos de pesquisa de elementos endógenos capazes de ocasionarem o
comportamento criminoso.
Inúmeras investigações científicas nos mais variados campos das ciências naturais
e biológicas lograram conformar um conjunto de teorias elucidativas do fenômeno
criminal. A esse conjunto costuma-se denominar “Criminologia Clínica”.
Pode-se exemplificar essa corrente criminológica com alguns de seus ramos mais
destacados: Biologia Criminal, Criminologia Genética4, Psiquiatria Criminal,
Psicologia Criminal, Endocrinologia Criminal, Estudos das Toxicomanias etc.
2 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. São Paulo: RT, 1995, p. 75. 3Op. cit., p. 82. 4 O tema presente será melhor desenvolvido em itens posteriores.
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Todas essas linhas de pesquisa têm como traço comum a busca de uma explicação
etiológica endógena do crime e do homem criminoso. Procura-se apontar uma causa
da conduta criminosa que estaria no próprio homem, enquanto alguma forma de
anormalidade física e/ou psíquica. Também todas essas teorias apresentam um
equívoco comum: pretendem explicar isoladamente o complexo fenômeno da
criminalidade.
Em contraposição à “Criminologia Clínica”, surge a denominada “Criminologia
Sociológica”, tendo como seu mais destacado representante Enrico Ferri.
A “Criminologia Sociológica” propõe uma revisão crítica da “Criminologia Clínica”,
pondo a descoberto que a insistência desta nas causas endógenas da
criminalidade, olvidava as importantes influências ambientais ou exógenas para a
gênese do crime. Aliás, para os defensores da “Criminologia Sociológica”, as
causas preponderantes da criminalidade seriam mesmo ambientais ou exógenas,
de forma que mais relevante do que perquirir as características do homem
criminoso, seria identificar o meio criminógeno em que ele se encontra.
No entanto, a “Criminologia Sociológica” em nada inova no que tange à postura de
procurar uma etiologia do delito. Os criminólogos ainda insistem em encontrar
“causas” para o crime, somente alterando a natureza destas, transplantando-as do
criminoso para o ambiente criminógeno. Em suma, muda o “locus” da pesquisa,
mas não muda a natureza claramente etiológica desta.
Os estudos relativos à atuação do ambiente na criminalidade são variegados,
podendo-se mencionar alguns ramos a título meramente exemplificativo: Geografia
Criminal e Meio Natural, Metereologia Criminal, Higiene e Nutrição, Sistema
Econômico, Mal vivência, Ambiente familiar, Profissão, Guerra, Migração e
Imigração, Prisão e contágio moral, Meios de Comunicação etc.
Ainda no matiz sociológico deve-se dar atenção especial às chamadas “Teorias
Estrutural-Funcionalistas”, as quais podem ser tratadas como item apartado, tendo
em vista suas peculiaridades.
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As Teorias Estrutural-Funcionalistas afirmam que o crime é produzido pela própria
estrutura social, inclusive exercendo uma certa função no interior do sistema, de
maneira que não deve ser visto como uma anomalia ou moléstia social.
A base teórica principal é ofertada por Émile Durkheim que dá ênfase para a
normalidade do crime em toda e qualquer sociedade. Aduz o autor em referência
que “o crime é normal porque uma sociedade isenta dele é completamente
impossível”. 5 Mas, o autor vai além, chegando a reconhecer que o crime não
somente é normal, mas também “é necessário” para a coesão social, sendo uma
sociedade sem crimes indicadora, esta sim, de deterioração social. Durkheim indica
o fenômeno criminal como reafirmador da ordem social violada e, portanto,
legitimador de sua existência. Toda vez que acontece um crime, a reação
desencadeada contra ele reafirma os liames sociais e ratifica a validade e a vigência
das normas legais. 6
Portanto, o desvio é funcional, somente tornando-se perigoso ao exceder certos
limites toleráveis. Em tais circunstâncias pode eclodir um estado de desorganização
e anarquia, no qual todo o ordenamento normativo perde sua efetividade. Não
emergindo disso um novo ordenamento a substituir aquele que ruiu, passa-se a uma
situação de carência absoluta de normas ou regras, ficando a conduta humana à
margem de qualquer orientação. A isso Durkheim dá o nome de “anomia”, efetiva
causadora de desagregação e deterioração social. 7
O conceito de “anomia” e o reconhecimento da funcionalidade do crime no meio
social produzem uma revolução quanto às finalidades e fundamentos da pena, vez
que estes já não devem mais ser buscados na fantasiosa profilaxia de um suposto
mal.
5 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martim Claret, 2001, p. 83. 6 Op. Cit., p. 86. 7 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 59 – 60.
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Outra formulação teórica relevante de matiz estrutural-funcionalista deve-se a Robert
Merton. Ele se apropria do conceito de “anomia” para demonstrar que o desvio não
passa de um produto da própria estrutura social. Portanto, absolutamente normal,
considerando que esta própria estrutura é que vem a compelir o indivíduo à conduta
desviante. Merton expõe detalhadamente o mecanismo estrutural que conduz o
indivíduo ao crime no seio social: a sociedade apresenta-lhe metas, mas não lhe
disponibiliza os meios necessários para o seu alcance legal. O indivíduo perde suas
referências, sentindo-se abandonado sem possibilidades “normais” de conseguir
seus objetivos. Sem os meios legais, mas pressionado para a conquista de certos
objetivos sociais, o indivíduo precisa preencher esse vácuo (anomia) de alguma
maneira. E a única maneira disponível será a perseguição dos fins colimados por
meios ilegítimos, ilegais e desviantes, uma vez que os legítimos não estão
acessíveis.
De acordo com Merton: “a desproporção entre os fins culturalmente reconhecidos
como válidos e os meios legítimos à disposição do indivíduo para alcançá-los, está
na origem dos comportamentos desviantes”. 8 E mais: “a cultura coloca, pois, aos
membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado,
aqueles são solicitados a orientar a sua conduta para a perspectiva de um alto bem
– estar; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos,
lhes são, em ampla medida, negados”.9
Outro referencial importante é a denominada “Teoria da Associação Diferencial”,
produzida por Edwin H. Sutherland. Segundo essa construção teórica, a
criminalidade, a exemplo de qualquer outro modelo de comportamento humano, é
aprendida conforme as convivências específicas às quais o sujeito se expõe em
seu ambiente social e profissional.10
Essa linha de pensamento possibilitou a formulação da conhecida “Teoria das
Subculturas Criminais”, para a qual o sujeito aprenderia o crime de acordo com sua
convivência em certos ambientes, assumindo as características de determinados
8 Op. Cit., p. 63. 9 MERTON, Robert, apud, Op. Cit., p. 65. 10 Op. Cit., p. 66.
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grupos aos quais estaria preso por uma aproximação voluntária, ocasional ou
coercitiva.
Afirma Sutherland que o processo de “associação diferencial” propicia ao sujeito, de
conformidade com seu convívio, aprender e apreender as condutas desviantes
respectivas. Dessa forma, tal teoria teria a vantagem de poder explicar a
criminalidade das classes baixas tanto quanto a das classes altas. Nesse processo
de convívio – aprendizado os infratores menos privilegiados praticariam usualmente
os mesmos crimes, vez que estariam conectados ao convívio de pessoas de seu
nível social e só teriam oportunidade de aprender essas determinadas espécies de
condutas delitivas, não sendo-lhes possibilitado o acesso a conhecimentos e
condicionamentos que os tornassem aptos a outras condutas mais sofisticadas. De
outra banda, os mais abastados teriam acesso ao aprendizado de outras
modalidades criminosas ligadas naturalmente ao seu meio social. Em razão disso
também dificilmente incidiriam nas condutas afetas às classes mais baixas.
Há certo ponto de contato entre a teoria de Merton e a de Sutherland, pois que a
modalidade de conduta atribuída aos indivíduos das classes pobres e abastadas
apresentaria uma distribuição em conformidade com os meios dispostos aos sujeitos
para desenvolverem seus impulsos criminosos. No entanto, a formulação de
Sutherland tem a pretensão de ser mais ampla, fornecendo uma fórmula geral apta a
explicar a criminalidade dos pobres e das classes altas. Para o autor sob comento,
qualquer conduta desviante seria “apreendida em associação direta ou indireta com
os que já praticaram um comportamento criminoso e aqueles que aprendem esse
comportamento criminoso não têm contatos freqüentes ou estreitos com o
comportamento conforme a lei”. Dessa forma, uma pessoa torna-se ou não
criminosa de acordo “com o grau relativo de freqüência e intensidade de suas
relações com os dois tipos de comportamento” (legal e ilegal). Isso é o que se
denomina propriamente de “associação diferencial”. 11
Essa maior abrangência da teoria preconizada por Sutherland a teria tornado mais
completa do que aquela defendida por Merton. Segundo a maioria dos críticos, as
11 SUTHERLAND, Edwin H., apud , Op. Cit., p. 72.
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explicações de Merton seriam bastante satisfatórias para a criminalidade dos
pobres, mas não serviriam para esclarecer por que pessoas dotadas de todos os
meios institucionais e legais para a consecução de seus objetivos sociais, mesmo
assim, perpetrariam ações delituosas.12 Portanto, não é sem motivo que o termo
“crime de colarinho branco” ou “white collar crime” foi cunhado e empregado
originalmente por Edwin H. Sutherland, em data de 28.11.1939, durante uma
conferência que se passou na sede da “American Sociological Society”, com a
finalidade de fazer referência a uma espécie de criminalidade praticada por pessoas
de nível social elevado, e em especial na sua atuação profissional.13
Como derradeira representante da linha de pensamento estrutural – funcionalista
pode-se mencionar a chamada “Teoria das Técnicas de Neutralização”, cujos
principais expoentes foram Gresham M. Sykes e David Matza. Trata-se de uma
“correção da Teoria das Subculturas Criminais”, mediante a complementação
implementada pelo acréscimo dos estudos das “técnicas de neutralização”. Estas
seriam maneiras de promover a racionalização da conduta marginal, as quais seriam
apreendidas e usadas lado a lado com os modelos de comportamento e valores
desviantes, de forma a neutralizar a atuação eficaz dos valores e regras sociais, aos
quais o delinqüente, de uma forma ou de outra, adere. 14
Na verdade, mesmo aquele indivíduo que vive mergulhado em uma subcultura
criminal não perde totalmente o contato com a cultura oficial e, de alguma forma,
sobre a influência e presta reconhecimento a algumas de suas regras. É desta
constatação que partem Sykes e Matza para lograrem expor os mecanismos usados
pelas pessoas para justificarem perante si mesmas e os demais, suas condutas
desviantes, infringentes das normas oficiais impostas pela sociedade.
12 Para um aprofundamento e uma discussão dessa crítica, a qual não caberia no presente trabalho, remete-se o leitor a nosso estudo anterior já mencionado: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 69 – 71. 13 A conferência de Sutherland teve o título “White Collar Criminality” e foi publicada pela “American Sociological Review”, em seu número 5, em fevereiro de 1940. KREMPEL, Luciana Rodrigues. O crime de colarinho branco: aplicação e eficácia da pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 97. 14 BARATTA, Alessandro. Op. Cit., p. 77.
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São descritas algumas espécies básicas de “técnicas de neutralização”: 15
a) Exclusão da própria responsabilidade – o infrator se enxerga como vítima das
contingências, surgindo muito mais como sujeito passivo quanto ao seu
encaminhamento para o agir criminoso.
b) Negação da ilicitude – o criminoso interpreta suas atuações apenas como
proibidas, mas não criminosas, imorais ou destrutivas, procurando redefini-las com
eufemismos.
c) Negação da vitimização – a vítima da ação delituosa é apontada como
merecedora do mal ou do prejuízo que lhe foi impingido.
d) Condenação dos que condenam – atribuem-se qualidades negativas às instâncias
oficiais responsáveis pela repressão criminal.
e) Apelo às instâncias superiores – sobrevalorização conferida a pequenos grupos
marginais a que o desviado pertence, aderindo às suas normas e valores
alternativos, em prejuízo das regras sociais normais.
Note-se que a mais destacável “técnica de neutralização” é a própria criação de uma
subcultura. Esta é a maior ensejadora de abrandamentos de consciência e defesas
contra remorsos, na medida em que o apoio e aprovação por parte de outras
pessoas integrantes do grupo, ocasionam uma tranqüilização e um sentimento de
integração que não se poderia obter no seio da sociedade calcada nas normas e
valores oficiais.16
Inobstante os avanços obtidos com as “Teorias Estrutural – Funcionalistas”, uma
alteração verdadeiramente radical do modelo de pesquisa do fenômeno criminal
somente adviria com o surgimento da chamada “Criminologia Crítica”.17 É com ela
15 Op. Cit., p. 78 – 79. 16 Op. Cit., p. 81. 17 Também denominada “Nova Criminologia”, “Criminologia Radical”, “Criminologia Dialética”, “Criminologia Interacionista” ou “Criminologia da reação social”.
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que se leva a efeito o abandono da mais constante premissa da Criminologia
Tradicional, qual seja, aquela de ser o crime uma realidade ontologicamente
reificada.
A partir das idéias trazidas à tona pela revisão criminológica crítica, o crime passa a
ser visto como uma realidade meramente normativa, moldada pelo Sistema Social
responsável pela edição, vigência e aplicação das leis penais.
Por reflexo disso o criminoso deixa de ser encarado como um “anormal” e o crime
como manifestação “patológica”.
A explicação para a criminalidade é agora procurada no desvelar da atuação do
Sistema Penal que a define e reage contra ela, iniciando pelas normas
abstratamente previstas, até chegar à efetiva atuação das agências oficiais de
repressão e prevenção que aplicam as leis. Vislumbra-se que a indicação de alguém
como criminoso é dependente da ação ou omissão das agências estatais
responsáveis pelo controle social. Percebe-se que muitos indivíduos praticantes de
atos desviantes não são tratados como criminosos, até que sejam alcançados pela
atuação das referidas agências, as quais são pautadas por uma conduta e exercem
um papel altamente seletivo. Ser ou não ser criminoso é algo que não está ligado à
presença ou não de alguma doença ou anormalidade, mas sim ao fato de haver ou
não o indivíduo sido retido pelas malhas das agências seletivas que agem
baseadas em orientações normativas e sociais.18
Propõem as Teorias da Criminologia Radical o abandono do velho modelo
etiológico, visando erigir uma inovadora abordagem crítica do Sistema Penal,
inclusive propiciando um sério questionamento de sua legitimidade.
A Criminologia Crítica é caracterizada por certo matiz marxista, pois parte da idéia
de que o Sistema Punitivo é construído e funciona com apoio em uma ideologia da
sociedade de classes. Dessa forma, seu principal objetivo longe estaria da defesa
social ou da preocupação com a criação ou manutenção de condições para um
18 Op. Cit., p. 86.
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convívio harmônico entre as pessoas. O verdadeiro fim oculto de todo Sistema Penal
seria a sustentação dos interesses das classes dominantes. Qualquer instrumento
repressivo de controle social revelaria a atuação opressiva de umas classes sobre
as outras. Por isso seria o Direito Penal elitista e seletivo, recaindo pesadamente
sobre os pobres e raramente atuando contra os integrantes das classes
dominantes, os quais, aliás, seriam aqueles que redigem as leis e as aplicam. O
Direito é visto como absolutamente despido de qualquer finalidade de transformação
social. Ao contrário, é encarado como um instrumento de manutenção e reforço do
“status quo” social, conservando e alimentando desigualdades pelo exercício de um
poder de dominação e força.19
Impõe-se uma conscientização da gigantesca diferença de intensidade da atuação
do Direito Penal sobre setores desvalidos da sociedade, enquanto apresenta-se
bastante leniente e omisso perante condutas gravíssimas ligadas às classes
dominantes.
É nesse contexto que emerge a “Teoria do Labeling Approach” ou “Teoria da
Reação Social”. Enquanto o pensamento criminológico até então vigente advogava a
tese de que o atributo criminal de uma conduta existia objetivamente, como um ente
natural e até era preexistente às normas penais que o definiam num mero exercício
de reconhecimento, o qual, aliás, consistia em um certo acordo universal, um
consenso social; a “Teoria do Labeling Approach” virá para desmistificar todas essas
equivocadas convicções.
O “Labeling Approach” ou “etiquetamento” indica que um fato só é tomado como
criminoso após a aquisição desse “status” através da criação de uma lei que
seleciona certos comportamentos como irregulares, de acordo com os interesses
sociais. Em seguida, a atribuição a alguém da pecha de criminoso depende
novamente da atuação seletiva das agências estatais.
19 LYRA, Roberto, ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello de. Criminologia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 204 – 205.
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Passa a ser objeto de estudo da Criminologia a descoberta dos mecanismos sociais
responsáveis pela definição dos desvios e dos desviantes; os efeitos dessa definição
e os atores que interagem nessas complexas relações. Deixa-se de lado a ilusão
do crime como entidade natural pré – jurídica e do criminoso como portador de
anomalias físicas ou psíquicas.
Essa nova linha de reflexões produz uma derrocada no mito do Sistema Penal como
recuperador dos desviados. Contrariamente, entende-se que a atuação rotuladora
do Sistema Penal exerce forte pressão para a permanência do indivíduo no papel
social (marginal e marginalizado) que lhe é atribuído. O sujeito estigmatizado ao
invés de se recuperar, ganharia um reforço de sua identidade desviante. Na
realidade, o Sistema Penal assim concebido passa a ser entendido como um criador
e reprodutor da violência e da criminalidade.
Finalmente cabe expor sumariamente a relação entre a “Sociologia do Conflito” e a
“Nova Criminologia”.
Como já visto, a Nova Criminologia põe em cheque a idéia de que as normas de
convívio social derivam de certo consenso em torno de valores e objetivos comuns.
Aí está o ponto de contato com a “Sociologia do Conflito”, que apregoa ser uma tal
concepção uma mera ficção erigida com a finalidade de legitimar a ordem social. Na
realidade, essa ordem social seria produto não de consenso, mas do conflito de
interesses de grupos antagônicos, prevalecendo a vontade daqueles que lograram
exercer maior dominação.
Com o esboço desse quadro evolutivo da ciência criminológica, é possível
determinar dois principais momentos de mudanças conceituais e epistemológicas: o
primeiro deles refere-se à transição do Direito Penal Clássico para o nascimento da
Criminologia, sob a égide do Positivismo, com as inaugurais pesquisas
lombrosianas de Antropologia Criminal. Somente aí é que o homem criminoso
adquire importância central nos estudos, que não mais se reduzem às dogmáticas
jurídicas. O segundo momento relevante foi o da mudança radical do referencial
teórico da Criminologia, propiciado pela emergência da chamada “Criminologia
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Crítica”. Nessa oportunidade abandona-se o modelo de pesquisa etiológico –
profilático, mediante um consistente questionamento de um longo “processo de
medicalização do crime”.20 O fenômeno criminal passa a ser perquirido como criação
da própria organização social e não mais como um ente pré – existente, passível de
compreensão e apreensão pela aplicação isolada do método das ciências naturais.
A virada epistemológica propiciada pela “Criminologia Crítica” não desmerece o
conjunto dos estudos anteriores e nem representa um ponto final para a pesquisa
criminológica. Tão somente faz perceber que são possíveis explicações parciais
para o fenômeno criminal, mas jamais tal questão pode ser devidamente
desvendada de forma simplista e reducionista. A criminalidade e a violência em geral
são problemas complexos que somente permitem uma visão ponderada através de
um conjunto de saberes e métodos de investigação, os quais, isolados, produzem
noções fantasiosas e distorcidas. Não é por outro motivo que atualmente se fala
numa “Criminologia Integrada”.21
Neste item procedeu-se a uma retomada dessa evolução dos estudos criminológicos
já anteriormente levada a efeito em outro trabalho22 com um objetivo bastante
definido: pretendeu-se expor o mais clara e pormenorizadamente possível como se
chegou à ponderada e racional conclusão de que o “crime” em si não existe na
natureza, tratando-se do resultado de normas humanas convencionadas. O
criminoso, portanto, é somente todo aquele que infringe tais normas e não o
portador de anomalias. As pesquisas etiológico-profiláticas, que são o original
impulso da Criminologia, são impregnadas de um determinismo irreal porque
baseadas em uma noção ilusória do crime como ente natural pré-jurídico, que o
Direito Penal somente faz reconhecer e declarar, quando, na verdade, o crime é
uma criação do Direito, podendo inclusive modificar-se ao longo do tempo e das
mudanças sociais.
20 BORELLI, Andréa. Da privação dos sentidos à legítima defesa da honra: considerações sobre o direito e a violência contra as mulheres. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 54, maio/jun., 2005, p. 10. 21 FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Op. Cit., p. 617 – 618. 22 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 53 – 78.
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Ainda que certos eventos criminais possam ser validamente explicados por meio de
uma abordagem etiológica (v.g. o homicídio perpetrado por um esquizofrênico que
acredita estar esfaqueando um monstro)23, deve-se ter em mente que se trata de um
critério válido somente de forma eventual e parcial. Além disso, mesmo sua validade
eventual em nada atinge a conclusão inarredável de que o crime é uma criação
normativa, um filho do Direito e das convenções e não um rebento da natureza. O
retorno a uma noção equivocada a este respeito, devido a qualquer espécie de
descoberta científica e novas possibilidades de intervenção, constitui um enorme
retrocesso do pensamento criminológico com riscos de terríveis conseqüências
sociais e individuais.
2 GENÉTICA: A SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA E DO
CRIME?
2.1 A REFLEXÃO COMO UMA NECESSIDADE CONSTANTE
Há sempre uma casca envolvendo tudo que se apresenta ao nosso conhecimento e
avaliação. Se nossa análise acerca das coisas contenta-se em deslizar pela
superfície, jamais rompendo essa casca de aparências, corre-se o grave risco de
proceder escolhas absolutamente equivocadas, baseadas em dados e informações
fantasiosas.
Sobre isso nos alerta o literato José Saramago em sua crônica “Jogam as brancas e
ganham”, afirmando que “por baixo ou por trás do que se vê, há sempre mais coisas
que convém não ignorar, e que dão, se conhecidas, o único saber verdadeiro”.24
Muitas vezes o mal encontra fertilidade exatamente na incapacidade de pensar que
propicia a ação ou omissão acrítica ou até mesmo bem intencionada, embora
equivocada. Hannah Arendt chama a atenção para este ponto quando destaca a
23 O exemplo refere-se ao ato de “matar alguém”, tido como criminoso, mas obviamente não se olvida a questão da inimputabilidade sob o ângulo legal. É que o fim da exemplificação consiste na discussão sob o prisma criminológico e não jurídico. 24 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 86.
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“banalidade do mal” escancarada no julgamento do medíocre funcionário do
nazismo, Eichmann, responsável por massacres terríveis de seres humanos. À
enormidade do mal produzido não correspondia o homem insignificante em
julgamento: ele não era estúpido, porém era dotado de “uma curiosa e totalmente
autêntica incapacidade de pensar”.25
A capacidade de pensar é um atributo humano que não deve jamais ser desprezado.
Quando isso ocorre, além de configurar uma deturpação do homem, pode ser a via
ideal para sua autodestruição.
Mas, não basta pensar, este pensar precisa ser também livre, não pode estar
amarrado a idéias pré – concebidas pelo próprio pensador ou assimiladas de
terceiros sem um necessário filtro crítico. Não é bom que idéias alheias
simplesmente dominem o homem e o moldem a seu bel prazer. Igualmente não é
adequado que o pensamento de um homem pretenda simplesmente conceber o
mundo a seu talante, vendo apenas aquilo que quer ver e desprezando a
realidade.26 São respectivamente casos de submissão acrítica e esquizofrenia
intelectual, os quais freqüentemente se entrelaçam para conformar ideologias
perniciosas.
A genética na atualidade tem sido apresentada, especialmente na grande mídia,
como uma espécie de panacéia para todos os males. De outra banda, há aqueles
que satanizam as pesquisas genéticas, somente apontando seus danos potenciais e
perigos.
Diante de tal quadro é imprescindível exercitar nossa capacidade de pensar
criticamente, não acatando simplesmente tudo aquilo que é proposto de acordo com
esta ou aquela orientação.
25 Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 226. Ver também sobre o tema: IDEM. Eichmann em Jerusalém. 6ª. ed. Trad. Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, “passim”. 26 Desde antanho alertava Descartes sobre o perigoso erro de julgar que as idéias que estão em nós são semelhantes ou conformes as coisas que estão fora de nós. DESCARTES, René. De Deus, que Ele existe. In: SMITH, Plínio Junqueira. Dez provas da existência de Deus. São Paulo: Alameda, 2006, p. 206.
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No seguimento será abordada a apresentação da genética como possível solução
para a criminalidade, como já tem sido aventado e alardeado pela imprensa na
divulgação de certas pesquisas acerca de supostos “genes da violência” ou “genes
do crime”.
2.2 BASES DA CULPABILIDADE
O Direito Penal sempre esteve em xeque quanto à sua legitimidade. Uma das
discussões mais recorrentes refere-se ao estabelecimento das bases da
imputabilidade subjetiva. Afinal, o que tornaria o homem responsável por seus atos
criminosos ao ponto de legitimar a sociedade a puni-lo? E ainda: seria ele realmente
responsável por sua conduta? Em qualquer caso, o que justificaria a repressão do
criminoso e como ela deveria realizar-se de forma justa e eficaz?
A tradicional fundamentação legitimante do Direito Penal encontra-se na aferição da
presença de “culpabilidade”, significando que determinada ação ou omissão pode
ser subjetivamente imputada ao seu autor, ensejando a reprovação jurídica em
razão de sua conduta ilícita.
Não obstante, a configuração teórica da culpabilidade já formalmente explicitada nos
termos acima mencionados, carecia de uma sustentação material a indicar qual
seria o motivo pelo qual se reprova no sujeito uma prática criminosa.
Neste passo surge a questão do “livre arbítrio” em conflito com uma concepção
determinista do ser humano. Num primeiro plano, aparece o entendimento segundo
o qual a culpabilidade reside na liberdade do autor atuar de modo diverso no
momento do fato. Melhor dizendo, a censurabilidade do comportamento tem lastro
no fato do culpado haver desejado agir de modo contrário ao dever quando podia
atuar em conformidade com este. 27 Se o homem é dotado de certa liberdade para
27 DIAS, Jorge de Figueiredo. Liberdade Culpa – Direito Penal. 3ª. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 22. Note-se que o autor defende a tese do livre arbítrio como pressuposto da culpabilidade há bastante tempo em Portugal. Ver no mesmo sentido: IDEM, O Problema da Consciência da ilicitude em Direito Penal. Coimbra: Almedina, 1969, “passim”.
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agir ao ponto de tornar-se o responsável por suas condutas, solucionada estará a
questão da culpabilidade. Ao reverso, se o homem é, em suas ações e omissões,
apenas o produto de fatores determinantes que o impelem a certo procedimento,
entra em crise a pretensão de responsabilizá-lo por seus atos.
Em “As Viagens de Gulliver”, Swift imagina uma terra em que os cavalos (os
Houyhnhnms) são seres racionais, enquanto os humanos (os Yahoos) agem por
puro instinto. Não diferente do acima narrado é a postura dos Houyhnhnms perante
os Yahoos, conforme se vê pelo seguinte trecho da ficção:
“Se bem que detestasse os Yahoos de sua terra, não os culpava por suas odiosas
qualidades mais do culpava uma gnnayh (ave de rapina) por sua crueldade ou uma
pedra afiada por cortar-lhe o casco”.28
Essa antiga discussão que outrora ganhou novo impulso com o Positivismo e suas
teses deterministas, não teve fim e vem permeando toda a discussão acerca da
legitimidade e eficácia dos instrumentos coercitivos penais.
Agora as afirmações de que talvez a genética possa apontar causas endógenas
para a criminalidade surge como um reacender dessa antiga polêmica.
Nesse diapasão manifesta-se Casabona, aduzindo que “as hipóteses geneticistas
sobre o comportamento humano constituiriam mais um degrau, particularmente
importante, mas não novo, na discussão sobre o fundamento da imposição da pena
no livre arbítrio ou não”.29
O geneticismo que ameaça dominar as pesquisas criminológicas apresenta traços
nitidamente reducionistas e deterministas.
28 SWIFT, Jonathan. As viagens de Gulliver. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 278. 29 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do gene ao Direito. São Paulo: IBCCrim, 1999, p. 109.
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O criminólogo passa a assumir um caráter semelhante ao heterônimo de Pessoa,
Ricardo Reis, marcado pela crença “no destino como uma lei indiscutível e imutável
que dirige a vida dos homens”.30 É isso que o leva a produzir versos como estes:
“Nossa vontade e o nosso pensamento São as mãos pelas quais outros nos guiam
Para onde eles querem E nós não desejamos”. 31
“Contenta-te com seres quem não podes Deixar de ser”. 32
Nesse contexto o homem é retratado como um títere passivo, movido por cordas
invisíveis. Essas cordas já foram apontadas como manipuladas por Deus ou pelo
demônio, passando para a crença Positivista nas causas endógenas mais variadas,
e chegam na atualidade às mãos invisíveis ou microscópicas da genética.
Ora, se o crime é determinado pela presença de certos genes, o mal que ele
representa deixa de ser “moral” para configurar um exemplo de “mal natural”. Um
genocídio ou um terremoto passam a ser eventos da mesma espécie. Ao homem
nenhuma responsabilidade pode ser imputada. Qualquer atitude ou solução a ser
aventada deve ter um conteúdo terapêutico e jamais punitivo. Até sob um ponto de
vista teológico as discussões ficariam polarizadas entre argumentos como os de
Bayle, apontando Deus como “um gigantesco criminoso”, em contraposição a uma
“teodicéia” de Leibniz, procurando formular uma defesa do Criador sob o argumento
dos insondáveis mistérios dos desígnios divinos.33
No início do século XIX, o Marquês de Laplace, conhecido físico e matemático
francês, afirmava que a natureza e o homem eram guiados por um conjunto de leis
físicas imutáveis, das quais não seria possível qualquer espécie de evasão. Essas
leis guiariam os destinos das partículas mais ínfimas da matéria até a formação dos
pensamentos humanos. Ele formulou a suposição de que uma vez configurado
inicialmente o universo, “todos os eventos futuros, incluindo os que envolvem
30 PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. Porto Alegre: L & PM, 2006, p. 25. 31 Op. Cit., p. 68. 32 Op. Cit., p. 93. 33 NEIMAN, Susan. O mal no pensamento moderno. Trad. Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Difel, 2003, p. 31.
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experiências humanas de passado, presente e futuro, foram especificados de
maneira irreversível”. Tal suposição, como é bastante límpido, não deixa espaço
para o conceito de livre arbítrio e configura “uma forma extrema de determinismo
científico”. Não obstante, não foi preciso mais que um século para que o conceito
determinista de Laplace fosse derrubado por descobertas científicas como as bases
da física quântica e o Princípio da Incerteza do físico Werner Heisenberg.34
É preciso questionar, como faz Casabona, se as investigações genéticas podem
constituir no campo criminológico um verdadeiro “retorno às teorias biológicas sobre
a criminalidade”.35
Não parece restar dúvida alguma quanto a esse retorno, ou melhor dizendo,
retrocesso, às teorias biológicas deterministas sobre a criminalidade, a partir do
momento em que se cogita da descoberta de um ou vários genes responsáveis pelo
agir criminoso ou pelos vícios comportamentais humanos. Quando se verifica esse
claro retrocesso à superada visão do crime como uma entidade natural pré –
jurídica, deve-se temer bastante um retrocesso biologista, reducionista e
determinista, carregado de preconceitos e autoritarismos. Com bem destaca Nuñez,
“el ser humano es plenamente humano cuando es capaz de ir mas allá de onde es
‘impulsado’ y llegar al ámbito en que és ‘libre y responsable’, donde decide. El ser
humano se deshumaniza cuando deja de ser responsable”.36
É bem verdade que por um lado a biologização do crime retira do homem criminoso
o pesado fardo da responsabilidade por seus atos e deslegitima sua punição, que
passa a configurar uma retribuição tão injusta quanto um castigo imposto a um
animal que agiu movido de acordo com suas naturais predisposições. Em
contrapartida, não mais existe a esperança de emenda do homem criminoso, razão
pela qual se não se pode mais legitimamente falar em sua punição, pode-se
conceber um legítimo direito de defesa da sociedade contra ele. E desde que o
34 COLLINS, Francis S. A linguagem de Deus. Trad. Giorgio Cappelli. São Paulo: Gente, 2007, p. 85 – 86. “Esse princípio da incerteza, que leva o nome de Heisenberg, derrubou o determinismo laplaciano de um só golpe, já que demonstrou que qualquer configuração inicial do universo jamais poderia de fato ser determinada com a precisão que seria exigida pelo modelo previsto por Laplace”. 35 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Op. Cit., p. 110 – 114. 36 NUÑEZ, Juan Martín. Sabiduria China. Disponíbel em: <www.farodelautopia.webcindario.com>. Acesso em: 31 mar. 2007.
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infrator não é passível de reforma, seja por sua vontade manifestada
espontaneamente, seja por incentivos externos, essas medidas de defesa social
podem perfeitamente atingir extremos inimagináveis em outro contexto.
Considerando o homem delinqüente como portador de uma anomalia que
inevitavelmente o precipita à conduta desviada, somente três opções podem ser
aventadas: sua cura, sua neutralização ou sua eliminação pura e simples.
Se a cura não era em regra uma hipótese palpável para Lombroso, os novos
biologistas criminais, sustentados na genética, sonham com terapias profiláticas
mediante manipulações tornadas possíveis com o avanço científico. Descoberta a
presença de um “gene criminógeno”, quem sabe sua extração ou sua manipulação
pudesse significar a produção de um novo homem devidamente adaptado às regras
do convívio social? Além disso, a atuação poderia não somente ser repressiva e
preventiva pós – delitual, mas realmente preventiva (pré – delitual), atuando sobre
os potenciais criminosos para evitar que a qualquer momento de suas vidas venham
a enveredar-se pela senda do crime, numa concepção algo parecida com a ficção
cinematográfica de “Minority Report”.
Aparentemente a genética aplicada à Criminologia seria portadora de grandes
esperanças de um mundo melhor, onde a vida seria marcada pela paz e harmonia.
Não obstante, os potenciais da genética nesse e em outros campos têm sido
alargados de maneira fantasiosa, como será exposto no seguimento deste trabalho.
Ademais, a manipulação genética alteradora da personalidade humana pode ser um
instrumento extremamente arbitrário, incompatível com o respeito da dignidade
humana e com as concepções do Estado Democrático de Direito.
A esperança de “recuperação”, “ressocialização”, “reforma”, “readaptação” ou
“reeducação” do delinqüente permeia os sistemas normativos, mas merece
questionamento quando se aventa a autoritária “intervenção estatal na esfera da
consciência” do infrator. Ao Estado não é dado “oprimir a liberdade interna do
condenado, impondo-lhe concepções de vida e estilos de comportamento”. É, pois,
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incompatível com o Estado Democrático a imposição ao condenado dos valores
dominantes na sociedade. Esses valores somente podem ser propostos ao infrator,
o qual reserva o direito de internamente recusa-los, negando-se a adaptar-se às
regras de convívio coletivo.37
É por isso que o moderno pensamento criminológico e penitenciário optou desde
muito tempo pelo afastamento da “pretensão de reduzir o cumprimento da pena a
um processo de transformação científica do criminoso em não criminoso”.38
Entretanto, conforme já exposto, ao criminoso determinado inevitavelmente por
fatores endógenos não é somente o caminho terapêutico imaginável. Resta também,
abandonada a vã esperança em sua mudança, o caminho da neutralização por meio
da prisão perpétua ou da eliminação pela pena de morte.
Sabe-se que tais opções são impraticáveis no ordenamento jurídico brasileiro por
força de normas constitucionais impedientes (art. 5º, XLVIII, “a” e “b”, CF). Mas, a
discussão neste trabalho supera o âmbito estritamente jurídico – normativo razão
pela qual se impõe a análise de todas as hipóteses.
No seio de um regime orientado por preconceitos de qualquer natureza (v.g. raciais
ou genéticos), seria natural o surgimento da idéia da eliminação dos inconvenientes
ou pelo menos sua neutralização.
Arendt, tratando da configuração dos regimes totalitários, bem destaca que o
“crime”, enquanto ação ou omissão deliberada é passível de “castigo”; já o “vício”,
como pecha indelével e determinante do agir “só pode ser exterminado”.39
Citando Proust, a autora lembra que a consideração de uma “predestinação
genética” como motivadora de condutas pode produzir, até certo ponto, uma relativa
tolerância para com os transgressores. Entretanto, “num certo momento essa
37 MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1990, p. 39. 38 Op. Cit., p. 40. 39 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 109.
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tolerância pode desaparecer, substituída por uma decisão de liquidar não apenas os
verdadeiros criminosos, mas todos os que estão ‘racialmente’40 predestinados a
cometer certos crimes, o que pode ocorrer quando a máquina legal ou política,
refletindo a sociedade, vier a ser transformada pelos critérios sociais em leis a
pregarem essa necessidade de libertação social do perigo em potencial. Se for
permitido estabelecer o código legal peculiar à aparente largueza de espírito que
liberta o homem de responsabilidade pelo crime tornado igual ao vício, ele será mais
cruel e desumano do que as leis normativas, mesmo que severas, pois estas
respeitam e reconhecem a responsabilidade do homem por sua conduta”.41
É preciso ter em mente que o Direito Penal, embora possa ser concebido como um
ramo científico autônomo de caráter normativo, é altamente influenciado em sua
conformação pelas concepções formuladas pela ciência criminológica. Pode-se
afirmar que “a ciência penal, em data de hoje, é totalmente permeável às propostas
da Criminologia”.42
Como afirma Peláez: 43
La criminología y el derecho penal son dos ciencias autónomas , pero ni opuestas, ni separadas, más bien asociadas. No se resuelve ningún problema penal sin tener en cuenta los resultados de la criminología, convertida en base indispensable de la teoria y la práctica del derecho penal moderno, así como del derecho penitenciario y del derecho procesal.
Cabe agora a seguinte indagação: qual espécie de Direito Penal seria aquele
conformado de acordo com uma criminologia genética?
A resposta evidente a esta relevante questão é a de que seria um modelo de Direito
Penal Autoritário, estruturado como um “Direito Penal do Autor” e não como um
“Direito Penal do Fato”. As pessoas passariam a sofrer uma repressão criminal não
por aquilo que viessem a fazer, mas por aquilo que internamente fossem.
40 Acrescentaríamos ao texto também a palavra “geneticamente”. 41 Op. Cit., p. 103. 42 NASCIMENTO, José Flávio Braga. Curso de Criminologia. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 229. 43 PELÁEZ, Michelangelo. Introducción al studio de la criminología. Buenos Aires: Depalma, 1966, p. 190.
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Ferrajoli44 expõe com absoluta propriedade esse modelo autoritário de Direito Penal:
Substancialismo e subjetivismo, além disso, alcançam as formas mais perversas no esquema penal do chamado tipo de autor, onde a hipótese normativa de desvio é simultaneamente ‘sem ação’ e ‘sem fato ofensivo’. A lei, neste caso, não proíbe nem regula comportamentos, senão configura status subjetivos diretamente incrimináveis: não tem função reguladora, mas constitutiva dos pressupostos da pena; não é observável ou violável pela omissão ou comissão de fatos contrários a ela, senão constitutivamente observada e violada por condições pessoais, conformes ou contrárias. Está claro que ao faltar, antes inclusive da própria ação ou do fato, a proibição, todas as garantias penais e processuais resultam neutralizadas. Trata-se, com efeito, de uma técnica punitiva que, por isso, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal.
Com referência a uma Criminologia Genética reducionista e determinista, pode-se ir
ainda mais longe com apoio no próprio Ferrajoli, chegando-se à possibilidade da
construção de um “modelo punitivo irracional”. Isso tendo em conta a idéia de uma
prevenção especial pré – delitual, mediante a atuação sobre a pessoa, manipulando
seu código genético para evitar a potencial conduta criminosa, hipótese aventada
por aqueles que fazem uma profissão de fé nos poderes milagrosos da ciência
genética.
É o que o autor sob comento denomina de “Sistema de mera prevenção”, no qual a
punição assume “a natureza de medida preventiva de desvio, em vez de retributiva,
não – tenha-se em conta – a função de ‘prevenção geral’, exercida por sua ameaça
legal preventiva como conseqüência do delito, mas uma função de ‘prevenção
especial’, ligada à sua cominação preventiva, como um prius em vez de um
posterius relativamente ao fato criminoso. É evidente o caráter não igualitário,
ademais de puramente decisionista, deste esquema de intervenção punitiva. De
conformidade com ele, o direito e o processo penal se transformam de sistema de
retribuição, dirigido a prevenir fatos delituosos por meio da comprovação e da
punição dos já ocorridos, em sistema de pura prevenção, dirigido a afrontar a mera
suspeita de delitos cometidos, mas não provados, ou o mero perigo de delitos
futuros”. Dessa forma o Direito Penal se desvincula de suas garantias como a
legalidade e a jurisdicionariedade, passando a ser “informado por meros critérios de
44 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Trad. Ana Paula Zomer, “et. al.” São Paulo: RT, 2002, p. 80 – 81.
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discricionariedade administrativa” e degenerando-se ou pervertendo-se em simples
“procedimento policial de estigmatização moral, política e social”.45
É preciso refletir sobre essas conseqüências deletérias, capazes de deitar por terra
conquistas seculares, antes de ceder às pressões de teorizações pseudo –
científicas tentadoras. Afinal, como adverte Carbonnier, “um manto de ilogicidade, de
absurdo, por intermédio do direito, tem invadido a existência de cada ser humano.
Nenhum cérebro resiste completamente a esta pressão da irracionalidade jurídica”. 46
2.3 O OTALITARISMO OCULTO NA CRIMINOLOGIA GENÉTICA
O retrocesso que pode ocorrer com uma adesão acrítica a uma Criminologia
Genética com pretensões de controle sobre a conduta humana mediante
intervenções pré ou pós – delitivas, aparte estribar-se em concepções superadas do
crime e do criminoso como entes naturais marcados por desvios patológicos,
também apresenta outra faceta ainda mais sombria e obscura. Trata-se de uma
clara tendência para a conformação de uma estrutura totalitarista de poder.
O fenômeno do crime, ampliado muitas vezes de forma artificial pela mídia, com sua
capacidade de comunicação nunca antes historicamente igualada ou sequer
semelhante, mas também inegavelmente configurador de uma justa preocupação
social, tendo em vista a potencialização da violência real nas sociedades modernas,
caracterizadas pela heterogeneidade multiplicadora de desigualdades e conflitos,
ocasiona uma constante demanda por soluções.
Em meio a esse clima de terror, freqüentemente não se ponderam devidamente os
custos e benefícios de certas vias apontadas como soluções para o problema da
criminalidade, em especial a violenta.
45 Op. Cit., p. 81 – 82. 46 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 7ª. ed. Paris: LGDJ, 1992, p. 359. No original: “Une nappe de déraison, d’absurdité, par l’intermédiaire du droit, a envahi l’existence de chaque homme. Aucun cerveau ne resiste complétement à cette pression de l’irrationnel juridique”.
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Adverte Nils Christie que o maior risco da criminalidade nas sociedades atuais não é
o crime em si mesmo, mas o perigo de que o encarniçamento na sua repressão
termine por desembocar no totalitarismo.47
A Criminologia Genética nesse contexto emerge caracterizada pela cientificidade de
seus argumentos e demonstrações, o que induz à sua aparente neutralidade.
É justamente essa característica de tal concepção acerca da questão criminal que
pode conduzir a um terrível cientificismo e, num passo seguinte, ao totalitarismo.
O cientificismo é uma “ideologia daqueles que, por deterem o monopólio do saber
objetivo e racional, julgam-se os detentores do verdadeiro conhecimento da
realidade e acreditam na possibilidade de uma racionalização completa do saber”. 48
Já foi destacado neste trabalho como essa crença no saber científico como único
detentor da verdade, sob a forma do pensamento positivista, influenciou a
Criminologia, erigindo a Antropologia Criminal de Lombroso e as variadas vertentes
etiológicas da Criminologia Clínica.
É interessante notar como o cientificismo, embora critique arduamente a
possibilidade de qualquer contribuição da religião para o saber humano, também
não deixa de erguer-se sobre pilares intocáveis que podem bem ser definidos como
verdadeiros “artigos de fé”: 49
1) a ciência é o único saber verdadeiro; logo, o melhor dos sabedores; 2) a ciência é capaz de responder a todas as questões teóricas e de resolver todos os problemas práticos, desde que bem formulados, quer dizer, positiva e racionalmente; 3) não somente é legítimo, mas sumamente desejável que seja confiado aos cientistas e aos técnicos o cuidado exclusivo de dirigirem todos os negócios humanos e sociais; como somente eles sabem o que é verdadeiro, somente eles podem dizer o que é bom e justo nos planos ético, político, econômico, educacional etc.
47 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito – La nueva forma del holocausto? Trad. Sara Costa. Buenos Aires: Del Puerto, 1993, p. 24. 48 JAPIASSU, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 44. 49 Op. Cit., p. 44.
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Como adverte Étienne Gilson50, os dogmas do cientificismo podem ser tão arbitrários
quanto os religiosos o seriam de acordo com o ponto de vista dos cientistas. Assim
sendo, se há realmente o perigo e exemplos históricos passados e contemporâneos
de regimes totalitaristas influenciados por concepções religiosas, igualmente pode-
se temer e constatar exemplos semelhantes orientados pela crença desmedida nos
atributos do saber científico.
Jaime Pinsky e Carla Bassanezi Pinsky organizam uma coletânea de textos sobre a
questão do fanatismo, chamando a atenção para o fato de que não se deve falar em
“fanatismo” (no singular), mas em “fanatismos” (no plural).51 Dessa forma, a obra
aborda o problema sob várias faces de sua manifestação, dividindo os textos em
blocos que têm por temática comum o problema proposto, mas sob suas
diversificadas “faces” (religiosa, racista, política e esportiva).52
A revelação divina atribuída a alguma entidade superior nos fanatismos religiosos
pode perfeitamente ser substituída pela crença em um suposto saber científico que
acaba sendo “divinizado”, ainda que jamais o admita. Nesse contexto, é a tão
decantada racionalidade científica que, levada a extremos, abre caminho para o
irracionalismo característico dos fanatismos que, invariavelmente, desembocam no
totalitarismo. A irracionalidade é condição para o fanatismo e também para o
totalitarismo a partir do momento em que a contestação não tem espaço.53 Certas
“verdades científicas” acabam desqualificando de tal forma seus opositores que
ganham foros de intangibilidade. Se uma raça é perversa por natureza, que valor
têm seus argumentos e que espécie de pessoas se dá ao trabalho de defendê-la?
Se os portadores de certos genes são maus, criminosos, pode-se dar crédito ao que
dizem ou àqueles que pretendem defender seus direitos?
A precaução contra essa espécie de “discurso científico” não configura um desejo de
opressão à livre pesquisa e à própria liberdade de expressão na sociedade. Na
50 Deus e a Filosofia. Trad. Ainda Macedo. Lisboa: Edições 70, 2002, “passim”. 51 Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 9. 52 Op. Cit., p. 15 – 282. 53 Op. Cit., p. 10.
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verdade, quando um pensamento (científico ou não) tem a pretensão de naturalizar
o mal moral, selecionando determinadas categorias de pessoas como suas
portadoras, seja por que for (crentes de certa religião, pertencentes a uma raça,
aderentes a um movimento político ou portadores de certos genes); claro está que
tais grupos é que terão seu direito de livre expressão absolutamente desrespeitado,
de acordo com aquilo que Fiss denomina de “efeito silenciador do discurso”. Nessas
circunstâncias o direito à livre expressão é limitado por si mesmo, pois, a partir do
momento em que seu exercício ilimitado implicaria no silenciar de contra –
argumentos, nítida está a necessidade de impor-lhe limites.54
Embora não esteja totalmente seguro de que alguma teoria racista não possa ainda
cativar um número suficiente de incautos, ensejando algo semelhante com o
holocausto 55, penso que devemos crer que a humanidade, pelo menos
genericamente considerada, tenha aprendido alguma coisa com os erros do
passado e não mais se deixe levar por ideologias tão grosseiras.
No entanto, é fato que, como diz Bauman, “nenhuma das condições que tornaram
Auschwitz possível realmente desapareceu e nenhuma medida efetiva foi tomada
para evitar que tais possibilidades e princípios gerem catástrofes semelhantes a
Auschwitz”. 56 Talvez o próprio racismo possa ser o ingrediente para o aviltamento
da dignidade humana no século XXI, mas se ele não convencer como antes, quem
sabe uma versão mais sofisticada possa fazer o seu trabalho?
O nazismo se baseava em “verdades reveladas” pela “ciência”. Essas “verdades”
convenceram as pessoas um dia a acreditarem que “o mais imbecil dos ‘arianos
puros’ pudesse ser superior a Einstein, como pregava a cartilha hitlerista”. Isso não
resultava de uma “apreensão racional da realidade, mas de uma verdade revelada
pela propaganda nazista”. Tratava-se de um “dogma de fé” legitimado por
argumentos pseudocientíficos.57
54 FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 33 – 60. 55 Basta ver o que tem ocorrido na atualidade na África e Europa devido a conflitos étnicos e raciais. 56 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Trad. Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 30. 57 PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Op. Cit., p. 10.
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Ainda antes disso, no século XVIII, Petrus Camper ordenou regularmente uma
sucessão de crânios que ia dos macacos, passando pelos orangotangos até chegar
aos negros e daí, seguindo num suposto processo evolutivo, até chegar à outra
extremidade onde se achavam os asiáticos centrais e os europeus. Tratava-se
também de uma explicação pseudocientífica não só para a classificação das raças,
mas também para justificar “as disparidades de poder, ordenando-os em termos de
superioridade e inferioridade”.58
Hoje a genética, dependendo dos rumos que venha a tomar, tem o potencial de
engendrar uma versão mais sofisticada e sutil do racismo, com alto potencial
genocida e violador da dignidade humana.
Na extensa obra de Hannah Arendt podem-se coletar diversos pontos de contato
entre as características de um totalitarismo racista e segregador operado no
passado, com o potencial modelo calcado no determinismo genético da atualidade.
Uma primeira e importante aproximação encontra-se no fato de que o poder
genético projetado sobre o homem é muito mais profundo e opressivo do que
qualquer outro exemplo de controle político antes existente e executável.
É uma característica inerente aos regimes totalitários não se contentar com a
simples “irradiação do poder”, controlando os destinos exteriores das pessoas, mas
pretender imiscuir-se nas suas vidas espirituais interiores, donde o biopoder torna-se
o sonho de qualquer burocracia totalitária com sua gana de controle absoluto,
podendo interferir “com igual brutalidade com o indivíduo e com a sua vida interior”.59
Não é sem razão que as utopias da biotecnologia têm evocado a memória do
nazismo e de outros regimes totalitários, conforme expõe o jornalista e historiador
José Arbex Júnior em entrevista concedida a Cláudio Tognolli:
58 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Então você pensa que é humano? Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 81. 59 ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 277.
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“Toda utopia tem uma forte vocação totalitária (a perfeição de um não – lugar que
projeta os desejos e a ideologia de quem a produz). No caso da biotecnologia como
uma ‘nova utopia’, ela me produz uma sensação de desumanização do homem por
um jogo, que tem como um dos componentes a total biologização do corpo
(entendido como máquina produtiva) e como outro componente a erradicação do
desejo, no sentido lacaniano, que só pode existir como resposta ao precário e ao
frágil provisório que constitui a humanidade do homem; o desejo da máquina
biotecnológica é substituído por metas, por ‘vontade de potência’. Isso me cheira a
nazismo”.60
Também Leão Serva61, em entrevista similar manifesta-se no mesmo sentido,
afirmando ver a biotecnologia “como a manifestação contemporânea do modelo de
medicina perseguido pelos nazistas”.
Entretanto, o poder de sedução desta e de outras utopias tendencialmente
totalitárias é muito grande e tem como sustentação dois pilares: o formato “científico”
de apresentação das idéias e a propaganda que difunde a ideologia.
A ciência funciona como um manto de segurança e neutralidade a legitimar o poder
absoluto pretendido. Nas palavras de Arendt:62 “Tanto no caso da publicidade
comercial quanto no da propaganda totalitária, a ciência é apenas um substituto do
poder. A obsessão dos movimentos totalitários pelas demonstrações ‘científicas’
desaparece assim que eles assumem o poder”.
As informações veiculadas pela imprensa, dando conta dos supostos potenciais da
genética para a solução de todos os problemas humanos, colaboram para o reforço
da crença em uma utopia que se projeta para o futuro.
Além do fato de que tais informações nem mesmo retratam a realidade do estágio
das pesquisas e o verdadeiro potencial das técnicas, também ensejam um clima de
60 TOGNOLLI, Cláudio. A falácia da genética. São Paulo: Escrituras, 2003, p. 233. 61 Op. Cit., p. 238. 62 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 394.
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aposta cega numa “salvação” que a ciência (agora a genética) teria o condão de
propiciar à humanidade, de forma a tornar desinteressantes considerações de ordem
ética sobre os procedimentos e conseqüências.
Bauman63 alerta para o fato de que a ciência costuma ser posta à parte das
considerações morais, mediante a preponderância do foco nos fins, sendo os meios
relegados a segundo plano, pelo menos quanto ao aspecto ético:
(...), mais do que qualquer outra autoridade, a ciência é autorizada pela opinião pública a praticar o princípio, de outra forma eticamente odioso, de que os fins justificam os meios. A ciência é o mais completo exemplo da dissociação entre meios e fins, que é o ideal da organização racional da conduta humana: os fins é que são submetidos a avaliação moral, não os meios.
Essa propaganda calcada no potencial de um conhecimento científico tem sido
freqüentemente utilizada justamente para protelar as discussões, gerando
argumentos incontestáveis no presente, já que seus efeitos promissores são sempre
projetados para o futuro, de modo a justificarem a atuação presente sem maiores
considerações éticas sobre os meios, tendo em vista os fins que se vislumbram à
frente.
Eis a lição de Arendt64:
A propaganda totalitária aperfeiçoou o cientificismo ideológico e a técnica de afirmações proféticas a um ponto antes ignorado de eficiência metódica e absurdo de conteúdo porque, do ponto de vista demagógico, a melhor maneira de evitar discussão é tornar o argumento independente de verificação no presente e afirmar que só o futuro lhe revelará os méritos. Contudo, não foram as ideologias totalitárias que inventaram esse método e não foram elas as únicas a empregá-lo. O cientificismo da propaganda de massa tem sido empregado de modo tão universal na política moderna que chegou a ser identificado como sintoma mais geral da obsessão com a ciência que caracterizou o Ocidente desde o florescimento da matemática e da física no século XVI. Assim, o totalitarismo parece ser apenas o último estágio de um processo durante o qual “a ciência tornou-se um ídolo que, num passe de mágica, cura os males da existência e transforma a natureza do homem”.
63 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 187. 64 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 395.
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Percebe-se, portanto, quão comum é que o totalitarismo se aproprie e aproveite do
cientificismo em sua propaganda como meio de convencimento e ocultação de
propósitos, inclusive sem grande preocupação com a real consistência das teorias
“científicas” preconizadas.
Na atualidade vivenciamos o que Tognolli chama de uma “febre biocrática”65 a
ensejar um poder de caracteres absolutamente inéditos na história da humanidade.
À “biocracia” corresponde a implantação de um “biopoder”, o qual apresenta um
espectro de irradiação muito mais amplo, com potencial de atuar diretamente sobre
os destinos de toda uma população, inclusive de gerações futuras.66
Esse biopoder, exercitado visando uma sociedade livre do crime e da violência, seria
dotado dos instrumentos necessários para atuar sobre os genes a fim de adequar o
comportamento da população às regras sociais consideradas convenientes.
Uma grave questão está em saber a quem seria dado o privilégio de decidir quais
seriam os padrões desejados por tal sociedade.
Talvez a suposta neutralidade científica indique que esse poder não deva
concentrar-se nas mãos de uma pessoa determinada, mas ser exercido de acordo
com o conhecimento técnico – científico devidamente burocratizado. Nesse contexto
o exercício do poder não apresenta um centro de irradiação, tornando-se impessoal,
alicerçado em critérios técnicos praticamente incontestáveis.
Essa diluição do poder, longe de enfraquecê-lo em sua atuação sobre o indivíduo,
torna-o absoluto. A conversão dos governos em “burocracias” faz com que não
pertençam mais ao império da lei ou dos homens, emanando agora de “escritórios
ou computadores anônimos, cuja dominação inteiramente despersonalizada pode vir
a se tornar uma ameaça maior à liberdade e àquele mínimo de civilidade sem o qual
65 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 94. 66 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 296.
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nenhuma vida comunitária é concebível, do que jamais foi a mais abusiva
arbitrariedade dos tiranos do passado”.67
Um dos traços que diferenciam as ditaduras dos governos totalitários está na
burocratização do poder tornado impessoal e, por isso, ainda mais arbitrário,
distante e atroz. A burocracia enquanto “mando de ninguém”, torna-se “a forma
menos humana e mais cruel de governo”.68
Essa característica de um “governo de ninguém”, que não significa “ausência de
governo”, como uma das mais “tirânicas e cruéis” versões do exercício do poder é
insistentemente destacada nas obras de Arendt.69
A impessoalidade do exercício do poder sustenta-se também na crença em uma
“ficção comunística”, ou seja, na suposição da existência de um interesse comum da
sociedade, o qual poderia ser assegurado pela força de uma “mão invisível” que
teria o condão de guiar o comportamento humano e produzir a harmonização de
eventuais conflitos de interesses.70
Ora, o que mais convincente e adequado a esse tipo de pensamento do que uma
modalidade de poder exercitável sobre a humanidade, partindo de seu interior, de
códigos genéticos sutilmente manipulados para guiar de forma irresistível o
comportamento e harmonizar a convivência social?
É impossível não fazer a ligação de todo esse contexto com a obra de ficção, hoje
nem tanto futurista, de Huxley, “Admirável Mundo Novo”, na qual um governo
totalitário instrumentaliza homens e mulheres “padronizados em grupos uniformes”,
objetivando a consecução da “estabilidade social”.71
67 ARENDT, Hanna. Responsabilidade e Julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 66. 68 Op. Cit., p. 94 – 95. 69 IDEM. A Condição Humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 50. 70 Op. Cit., p. 53 – 54. 71 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 2ª. ed. Trad. Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2003, p. 14.
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2.4 A DESCONSTRUÇÃO DA AUTENTICIDADE COMO VIOLAÇÃO DA
DIGNIDADE HUMANA
Quando se trata da possibilidade de manipulação genética, especialmente
levantando-se a hipótese de alteração do genoma humano, mediante a exclusão de
características consideradas negativas a critério de quem quer que seja, impossível
não vislumbrar uma flagrante violação da autenticidade do homem em sua natural
diversidade.
Certamente uma das piores violências a serem perpetradas contra a humanidade
seria a exclusão arbitrária da riqueza da diversidade, característica esta, aliás, muito
claramente constatável por meio da própria genética, a qual demonstra a
singularidade de cada ser humano.
Talvez as gerações que não tenham conhecido o que seria viver em um mundo
onde as diferenças se chocavam sim, mas também surpreendiam, se completavam
e libertavam, não tenham noção daquilo que perderam. Entretanto, não é justo que
nós, cientes do que significa essa perda, condenemos nossos pósteros a um mundo
de homogeneidade monótona e arbitrária.
O que nos restaria em um mundo de seres humanos pré – moldados ao sabor de
uma burocracia qualquer, detentora do poder decisório do que seja bom ou mau em
relação à capacidade de conduta e à personalidade?
Possivelmente o mesmo sentimento, ainda mais aprofundado, retratado por
Saramago72 ao ver os pés de oliveira dos campos de sua terra natal expulsos pelo
milho híbrido por força de interesses comerciais. Deixemos falar o artista:
Por cada pé de oliveira arrancado, a Comunidade Européia pagou um prêmio aos proprietários das terras, na sua maioria grandes latifundiários, e hoje, em lugar dos misteriosos e vagamente inquietantes olivais do meu tempo de criança e adolescente, em lugar dos troncos retorcidos, cobertos de musgo e líquenes, esburacados de tocas onde se acoitavam os lagartos, em lugar
72 SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 12.
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dos dosséis de ramos carregados de azeitonas negras e de pássaros, o que se nos apresenta aos olhos é um enorme, um monótono, um interminável campo de milho híbrido, todo com a mesma altura, talvez com o mesmo número de folhas nas canoilas, e amanhã talvez com a mesma disposição e o mesmo número de maçarocas, e cada maçaroca talvez com o mesmo número de bagos.
Jonas fala em sua obra das utopias do “homem autêntico vindouro”, dentre as quais
menciona o “super – homem” do futuro de Nietzsche, e a superioridade dos homens
criados numa sociedade sem classes, defendida pelos mentores das teorias
socialistas. O primeiro não disse jamais uma palavra sobre o que se poderia
concretamente fazer para o advento de seu “super – homem”. Os segundos
alicerçavam suas crenças nos poderes miraculosos de uma nova sociedade erigida
sobre um modelo econômico revolucionário.73 Mas, ambas as teorizações têm em
comum um projeto de homogeneização do humano, extirpando as diferenças, as
variações, seja sob o ponto de vista social ou mesmo da própria personalidade.
Quem sabe na atualidade a manipulação genética pudesse tornar tais projetos bem
mais palpáveis?
A questão, porém, é saber se é possível falar em um homem autêntico construído na
homogeneidade. Parece que esse quadro, longe de esboçar a autenticidade
humana, a destrói, ao pretender eliminar a diferença, o inesperado e até o ambíguo
que é inerente à humanidade.
Nas palavras de Jonas: 74
Tendremos también que resignarmos a esto, a que no existe una naturaleza unívoca del hombre, a que, por ejemplo, el hombre no es por naturaleza ( en si) ni bueno ni malo; el hombre tiene la capacidad de ser bueno o ser malo, más aún, de ser lo uno con lo outro; y esto forma parte de su esencia. Cierto es que de los grandes malvados se dice que son inhumanos, pero solo los hombres pueden ser inhumanos; y los grandes malvados ponen de manifesto la naturaleza de el hombre no menos que los grandes santos. Habrá de rechazarse también, por tanto, la idea de una riqueza de la naturaleza humana existente, pero dormida, que solo aguarda a ser abierta (des – encadenada) para luego, en virtud de aquella naturaleza mostrarse. Solamente existe la dotación biológico – anímica de esta naturaleza para la riqueza y pobreza del poder – ser; riqueza y pobreza son igualmente
73 JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Trad. Javier Maria Fernández Retenaga. Barcelona: Herder, 1995, p. 258 – 263. 74 Op. Cit., p. 350 – 351.
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naturales, si bien se da un predomínio de la última, pues la pobreza en humanidad puede ser tanto impuesta por unas circunstancias adversas como elegida – incluso en las circunstancias más favorables – por la pereza y la sobornabilidad (impulsos verdaderamente naturales), mientras que la riqueza del yo, además del favor de las circunstancias, exige esfuerzo (y a el de la lucha contra la pereza).
A extinção dessa potência do “poder – ser” humano convertida em um ser pré –
fabricado é altamente limitadora. Se por um lado, como já visto, a crença em um
determinismo biológico ou genético exime o homem de responsabilidade, também
lhe nega concomitantemente a liberdade. Assim também, a construção de um
homem geneticamente direcionado para o “bem” (ainda que sem entrar em
pormenores sobre a legitimidade desse conceito formulado por alguém ou alguns),
praticamente extermina a noção do mérito da ação moral, juntamente com a
liberdade e a identidade de cada ser humano.
É bem verdade que a grandeza da liberdade não é isenta de riscos, inclusive
altamente negativos. Mas, é preferível viver em um mundo onde a escolha é
possível do que em outro onde tudo é pré – determinado. É de Viktor Frankl75 a
afirmação de que é melhor um mundo no qual seja possível, por um lado, um
fenômeno como o de Adolf Hitler e, por outro, o de tantos santos que já viveram.
Necessário se faz recordar que a singularidade é uma nota característica de toda
existência humana.76
Há um terrível perigo que corre todo aquele que tem a pretensão de aprimorar algo,
qual seja, o risco de que suas mudanças acabem por desnaturar o original,
transformando-o em algo que nada mais tem em comum com aquilo que
inicialmente era.
Um breve conto de Brecht77 muito bem ilustra esse dilema:
75 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em: www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 44. É bom lembrar que Frankl sofreu na pele as agruras do nazismo. 76 Op. Cit., p. 46. 77 BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 33.
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O personagem Sr. Keuner narra, no episódio intitulado “Forma e Conteúdo”, que certa vez trabalhou com um jardineiro. Este lhe entregou uma tesoura e mandou aparar um loureiro, orientando-o a fazer o corte de modo que a árvore ficasse com a forma de uma bola. O Sr. Keuner deu início imediato ao trabalho, cortando os brotos selvagens, mas sentindo sérias dificuldades para atingir o formato de uma bola. Finalmente a árvore tomou em suas folhagens o aspecto de uma bola, mas estava muito pequena. Por isso, quando o jardineiro veio inspecionar seu trabalho, disse decepcionado: “Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?”.
O desejo de aprimoramento do homem por meios genéticos revela um anelo de fuga
da “condição humana” que nos é dada para ingressar em um novo estágio no qual o
próprio homem pretende moldar sua condição. Move a humanidade um desejo
incontido de afastamento da natureza, seja pela criação de ambientes artificiais,
seja, agora, pela possibilidade da criação de um “homem artificial”. É esse
desiderato que se manifesta quando se pretende criar a vida em uma proveta ou unir
sob um microscópio o sêmen de pessoas altamente capazes com o fim de produzir
“seres humanos superiores”, mudar-lhes as dimensões, as formas, as capacidades
etc. Também certamente o mesmo desejo de escapar da “condição humana” anime
a “esperança de prolongar a duração da vida humana para além dos cem anos”.
Realmente o homem do futuro, projetado pelos cientistas para menos de um século,
“parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi
dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja
trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo. Não há razão para
duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo
para duvidar de nossa capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A
questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento
científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é
uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por
cientistas profissionais nem por políticos profissionais”.78
O que Arendt propõe é que os potenciais e riscos advindos com os novos
conhecimentos científicos não sejam simplesmente “engolidos” por todos em silêncio
respeitoso à figura do “cientista sábio”. A autora convida todos a agirem,
concebendo a ação como a efetiva participação política nas importantes decisões a
78 ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 10 – 11.
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serem tomadas. A responsabilidade e o dever de reflexão sobre os rumos a serem
seguidos não são pertencentes a um grupo privilegiado, mas a toda humanidade. 79
E neste ponto podemos retomar com Arendt a questão da singularidade humana
como essencial para a preservação da autenticidade do homem.
Lembrando Santo Agostinho (De Civitate Dei, XII, 21), recupera a pluralidade como
um dos fatores preponderantes na diferença entre o homem e o animal. Isso porque
o primeiro foi criado “unum ac singulum”, enquanto os animais foram ordenados a
existirem “vários de uma só vez” (“plura simul iussit existere”). Para Santo Agostinho,
a criação demonstra que os animais vivem como “espécie”, ao passo que os
homens têm uma existência singular. Resta claro que “a pluralidade é a condição da
ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que
ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido ou venha a
existir”. 80
Note-se que a ação do homem, isto é, sua participação ativa na sociedade, seus
atos próprios, suas manifestações pessoais, só é viável, tendo em conta sua
singularidade; o inesperado que carrega em si cada ser humano. Sem isso, o
homem pode ser o mesmo que o cão eterno vivendo na espécie, com seus latidos e
o rabo a abanar do início ao fim dos séculos, como vislumbra Schopenhauer. 81
Acontece que no homem está ínsita a novidade e “o novo sempre surge sob o
disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode
esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E
isto, por sua vez, só é possível porque cada homem é singular, de sorte que, a cada
nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo”. 82 Pretender evitar essa
originalidade é o mesmo que destruir um milagre.
79 Op. Cit., p. 13. Deve-se dar especial ênfase à importância que Hanna Arendt dá à participação ativa do homem na sociedade (“Vita Activa”). Para a autora o que caracteriza o homem em sua condição humana é a ação, entendida como participação política, manifestação de sua personalidade e identidade no seio da sociedade. O labor e o trabalho também integram o ser do homem, sua condição, mas somente a ação é que o caracteriza realmente como humano. 80 Op. Cit., p. 16. 81 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte, Metafísica do Amor, Do sofrimento do mundo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 46. 82 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 191.
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A singularidade necessariamente se imbrica com a liberdade, pois somente sendo
livre poderá o homem ser o que desejar ser e não aquilo a que seja obrigado a ser
por forças naturais ou por outros homens. Não é sem razão que Max Frisch define a
identidade como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja”. 83
A tentativa de levar adiante a metáfora da identidade humana como um quebra –
cabeças a ser montado com peças pré – determinadas é vã e inadequada. Esse
quebra – cabeças somente seria aceitável se fosse assumido como sempre
incompleto e imprevisível, deixado nas mãos de cada homem singular para criar sua
identidade livre da opressão ou limites externos.84
O homem jamais pode ser concebido como uma espécie de massa de moldar.
Somente a crueldade profunda e a megalomania ou uma inocência pueril podem
levar a crer ser possível direcionar vidas humanas como brinquedos de crianças.
Arendt chama a atenção para o fato de que a expressão “material humano” não
deve ser percebida simplesmente como uma metáfora inofensiva.
Ao seu lado seguem “inúmeras experiências científicas modernas no campo da
engenharia social, da bioquímica, da cirurgia cerebral etc., todas visando a
manipular e modificar o material humano como se se tratasse de qualquer outro
material”. Essa é uma postura “mecanicista” característica da modernidade. Na
antiguidade, visando os mesmos objetivos, o homem era concebido “como um
animal selvagem que devia ser domado e domesticado”. O que importa é que em
qualquer caso, esse tratamento implica na “morte do homem”, talvez não como
“organismo vivo, mas enquanto homem”.85
Ratzinger também alerta para o perigo inerente à tentação do homem “criar o
homem”. Nada mais que uma recente “forma de poder, que aparentemente pode até
parecer benéfica e digna de aprovação, mas que na realidade poderia tornar-se uma
nova ameaça para o homem”. É sabido ser possível produzir homens em tubos de
83 Apud, BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 45. 84 Op. Cit., p. 54 – 55. 85 ARENDT, Hanna. Op. Cit., p. 201.
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ensaio, mas com isso o humano “torna-se um produto”, alterando drasticamente seu
relacionamento consigo mesmo. Perde a característica de um “dom da natureza ou
do Deus criador” para tornar-se “produto de si mesmo”, numa descida até as
profundezas “da fonte de poder, até as nascentes de sua própria existência”. Daí
conclui-se que “a tentação de construir o homem perfeito, a tentação de fazer
experiências com o homem, a tentação de considerar como lixo os homens e livrar-
se deles já não são mais fantasias de moralistas hostis ao progresso”.86
É imperativo rechaçar qualquer visão reducionista do humano capaz de
instrumentalizá-lo, violando sua dignidade e produzindo sua reificação. Viktor Frankl
advoga a urgência de superar qualquer espécie de reducionismo. E há reducionismo
na visão biologista, no condutivismo, no psicologismo, no sociologismo e até no
antropologismo. Todas essas visões reducionistas levam ao niilismo e constroem
uma falsa imagem do homem, pois o concebem como um “homúnculo”, um artefato.
Dessa forma não se pode compreender o homem, mas sim estabelecer-lhe uma
imagem distorcida e mutilada, extremamente pobre, a que se pode denominar de
“homunculismo”, na qual o ser humano é visto como um autômato de reflexos e
instintos, como um mero produto de impulsos, herança e meio ambiente.87
Para trabalhar com o que é humano é preciso acostumar-se com o imprevisível e
não pretender eliminá-lo das equações; é preciso tolerar e, mais que isso, valorizar a
diversidade do gênero humano. Caso contrário, o que ocorre é uma tendência ao
“genocídio”, entendido como “um ataque à diversidade humana enquanto tal, isto é,
a uma característica do ‘status humano’ sem a qual a simples palavra ‘humanidade’
perde o sentido”.88 Não é porque a forma de eliminação da diversidade é praticada
com maior sutileza, através de manipulações microscópicas, e não por meio de
massacres de milhares de pessoas em câmaras de gás, a golpes de facão ou por
fuzilamento, que o ato genocida é menos gravoso ou inexiste. Ao reverso, quanto
mais sutil, mais imperceptível e insidiosa a ação, maior o seu potencial destrutivo.
86 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Bento XVI questões de fé, ética e pensamento na obra de Joseph Ratzinger. Trad. Roberto Cattani. São Paulo: Claridade, 2005, p. 107 – 108. 87 Apud, PASCUAL, Fernando. Viktor Frankl: antropologia y logoterapia. Disponível em www.latautonomy.org , acesso em 31.03.07, p. 38. 88 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. 6ª.ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 291.
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A tal ponto pode chegar a atuação da ciência por meio da genética, alterando
arbitrariamente o genoma humano, que caracteres podem simplesmente deixar de
existir de forma irrecuperável, atingindo irreversivelmente futuras gerações.
Este é um dos novos desafios da ética contemporânea, o qual produz uma
“densificação da noção de responsabilidade”. A responsabilidade requerida nos dias
atuais se apresenta muito mais complexa e geradora de maior comprometimento.
Na ética tradicional a responsabilidade do ator se adstringe ao que é previsível,
àquilo que é controlável no espaço do cognoscível, do imediato ou, no máximo, do
próximo. Mas, esse paradigma se alterou muito drástica e rapidamente, de modo
que hoje “somos também responsáveis por tudo aquilo que, muito embora não seja
imediatamente previsível é já expectável”. Não é à toa que se firma atualmente uma
chamada “Fernethik”, ou seja, uma ética de responsabilidade que “carrega em si o
elemento novo da distância longínqua”. Dessa maneira, vivemos o futuro no
presente, um futuro que se mostra “não como simples e encantatória evanescência,
mas como uma realidade densa que condiciona toda e qualquer decisão de hoje”.
Opera-se, em verdade, uma “contração temporal” a que não estavam familiarizadas
as construções éticas tradicionais. 89
Retomando a especificidade do objeto deste trabalho, deve-se considerar que a
diversidade humana não se manifesta somente nas diferenças entre os homens,
mas também na impermanência do homem em relação a si mesmo; no fato de que
todo ser humano jamais pode ser tomado como acabado, pronto ou definitivo. O
homem é sempre um projeto, um contínuo porvir, como bem retratam as palavras do
poeta: 90
“Quem és não o serás, que o tempo e a sorte”. Te mudarão em outro”.
Portanto, é absurda a pretensão de prever ou prognosticar quem será o homem que
hoje se apresenta à nossa frente, seja com base em que espécie de conhecimento
89 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e de Filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 200 – 201. 90 PESSOA, Fernando. Op. Cit., p. 141.
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for inclusive no genético. Não há como cortar fatores e simplificar arbitrariamente a
complexa e caótica equação humana. Certamente aqui se pode falar com segurança
de uma “complexidade irredutível”. Quando essa simplificação é levada a efeito,
reduz-se o homem a um ou alguns de seus aspectos isolados, mutilando-o e
convertendo-o no “homúnculo” caricato de que fala Viktor Frankl.
No ano de 1959, Roberto Rosselini produziu um filme chamado “O General Della
Rovere”. Segundo consta, a história é baseada em fatos reais. Conta o filme haver
um homem mal caráter, um baixo vigarista, capaz de tirar dinheiro do luto alheio, da
dor e da aflição das pessoas, sem pesar-lhe um momento sequer a consciência.
Frente às suas vítimas, procura iludi-las a elas e a si mesmo, argumentando haver
agido movido pela piedade. Ora, desde que um tal sentimento possa render
dinheiro, tudo bem. Seu nome é Brandone e segue obtendo dinheiro em troca de
vãs promessas de ajuda “a presos políticos, resistentes, guerrilheiros, em poder dos
alemães”. É um homem sedutor, de fala macia “por natureza e necessidade do
ofício”, um enganador medíocre que seguiria nessa toada até o fim de seus dias ou
até um golpe de monta que o fizesse enriquecer e poder, finalmente, ingressar no
grupo das pessoas que vivem honestamente. No entanto, está este homem
destinado a outra conquista: “a da dignidade”.
Quando suas artimanhas são descobertas a Gestapo lhe oferece a chance de
salvar-se e ainda locupletar-se com uma gorda recompensa em dinheiro. Ele aceita.
Sua missão é ocupar na prisão o lugar do General Della Rovere (o qual morreu no
desembarque clandestino na Itália, quando deveria encontrar-se com Fabrizio, um
líder da resistência). Brandone deveria agir para denunciar o líder Fabrizio, o qual
também estava preso, mas cuja identidade era ignorada pela Gestapo. No
seguimento natural das coisas Brandone iria fechar sua carreira de imoralidades
como “o grande denunciante”, “o grande traidor”. Ele que nunca passara de um
estelionatário medíocre, poderia terminar na riqueza e, quem sabe, ainda usufruindo
alguma “honra”, como um comendador ou coisa semelhante ao final da guerra.
Acontece que “as oportunidades e as situações é que fazem e desfazem os
homens”. Disfarçado como o general, recolhido a uma cela “cujas paredes
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conservam ainda as palavras de despedida dos resistentes fuzilados, forçado pelos
acontecimentos a mostrar-se firme e valente – acorda nele pouco a pouco um outro
homem”. É confrontado com a tortura, a coragem real e um respeito que nunca
merecera e nem recebera de ninguém. Tudo isso o converte profundamente no
General Della Rovere, “tomando atitudes e dizendo palavras que do general se
esperavam”. Ao final, quando tudo se perde e ele é submetido a torturas, mas ainda
lhe acena a oportunidade de salvar a própria vida delatando Fabrizio, ele opta
livremente por caminhar com os outros detentos para o poste da execução. “São
dele as palavras corajosas que honram a pátria e reclamam a derrota dos inimigos.
Aos olhos de todos é o General Della Rovere que morre”. No entanto, os
espectadores sabem que “quem vai morrer é um pobre homem, fraco, burlão,
jogador sem sorte, chamado Brandone, que aprendeu a ser corajoso, honrado e
digno. Esta morte é uma vitória”.
Novamente é José Saramago quem nos brinda com sua sensibilidade ao captar e
descrever a mensagem de um filme que chega à profundidade da alma humana
mutável e surpreendente, acrescentando ainda que “talvez a fraqueza de cada um
de nós não seja irremediável. A vida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar
a prova real do que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?”. 91
A eventual intervenção ou influência exercida sobre o homem, visando seu
aprimoramento moral não pode basear-se na alteração arbitrária de sua
personalidade, acomodando-a a padrões alheios. Isso seria uma forma de
padronizar os seres humanos, instrumentalizando-os e tratando-os como coisas e
não como pessoas. Também seria desconsiderar sua diversidade e impermanência,
sua liberdade de expressão e pensamento, que merecem respeito sempre, somente
comportando limitações quando por condutas exteriores venham a prejudicar os
direitos correlatos dos outros.
O homem vive em relação contínua com as coisas e com os outros homens no
mundo. Esses “entes” são tudo aquilo que “existe concretamente”, “designando tudo
o que nos encontra, nos cerca, nos conduz, nos constrange, nos enfeitiça e nos
91 A Bagagem do Viajante. 6ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 133 – 135.
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preenche, nos exalta e nos decepciona”. 92 No entanto, a relação do homem para
com os “entes – envolventes”, ou seja, “a presença simples e objetivada” das coisas
e da natureza não é a mesma que mantém com o “ser – aí” (“Dasein”) dos outros
(homens). “Estes entes não são jamais meros objetos ou entes – envolventes; ao
contrário, são como é o verdadeiro ser – aí que os desvela, ‘são aí também’ e ‘aí
com’”.93
O “eu” do homem em relação aos “outros” não deve ser compreendido
isoladamente. Esses “outros” não são todas as demais pessoas com exceção de
mim mesmo. Na verdade, “esses ‘outros’ são aqueles de quem, na maioria das
vezes, alguém não pode se distinguir – aqueles no meio dos quais alguém também
está”. Dessa forma, não se trata de mera presença objetivada junto com os outros.
Trata-se de um “ser – lá – também – com eles dentro do mundo”, de tal maneira que
“o mundo é sempre algo que eu partilho com os outros”.94
Observe-se que a nossa maneira de atuar perante os “entes – envolventes” pode ser
definida como o “cuidar”. Não obstante, o “cuidar” não serve para descrever a
relação entre o “Dasein” e o “ser – aí – com”, ou seja, entre as pessoas. Os outros
“com os quais o ser – aí como ser – com se comporta não têm o mesmo modo de
ser que pertence à ‘totalidade dos entes – envolventes’”, pois eles próprios são ser –
aí e não mera presença objetivada. Assim, a eles não está reservado o “cuidar”, mas
sim a “solicitude”. Os entes com que o “ser – aí é com, não são objetos de cuidado,
mas de solicitude”.95
Entretanto, a própria solicitude pode desvirtuar-se no extremo do “tomar conta do
outro”, aproximando-se de um modo de “cuidar”, como se faz com as coisas.
Assume-se o encargo do outro que é o de cuidar de si mesmo. Isso produz uma
retirada do outro de seu lugar próprio, podendo torná-lo alguém dominado e
dependente. Nesse contexto ocorre um “saltar sobre o outro” que, na realidade, é
próprio de nossa relação de cuidado para com os entes – envolventes (coisas).
92 HEIDEGGER, Martin, Apud, JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Op. Cit., p. 82. 93 HEIDEGGER, Martin. Todos nós...ninguém. Trad. Dulce Maria Critelli. São Paulo: Moraes, 1981, p. 34. 94 Op. Cit., p. 34 – 35. 95 Op. Cit., p. 40.
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Resta claro que essa atuação sobre o outro o reifica e instrumentaliza. Portanto, a
relação não deve ser esta, não se deve “saltar sobre o outro”, “mas antecipar-se a
ele em sua existencial possibilidade – para – ser” de forma a salvá-lo para “torná-lo
transparente a si mesmo em seu cuidar e para torná-lo livre para si”.96
A relação entre os homens não deve ser orientada pelo salto sobre o outro que o
domina, mas sim pelo salto “diante do outro, que o liberta”.97
Percebe-se que a genética tem o potencial de invalidar o existencialismo, que
descreve a vida humana como “um projeto de realização pessoal, de
‘transformação’” (grifo nosso), de maneira que quem somos vai mudando de acordo
com o desenrolar do referido projeto. 98 Segundo Sartre, “o homem é apenas uma
situação” ou “nada mais do que aquilo que ele faz de si mesmo (...) o ser que se
lança para o futuro e que tem consciência de se imaginar como ser no futuro”. Para
ele “a modelagem de si mesmo” é um ato afirmativo da humanidade que não se
sujeita a qualquer espécie de determinismo, “o homem é livre, o homem é
liberdade”.99
É claro que essa liberdade não é isenta de perigos e responsabilidades. Em anexo à
obra de seleção de textos de Heidegger antes examinada, tratando do tema da
educação, Dulce Critelli bem destaca que o “saltar sobre o outro” o alivia e alija “da
responsabilidade de seu próprio ser” na medida em que lhe tolhe a liberdade. De
outra banda, o “libertador”, que “salta diante do outro” e lhe entrega “à sua própria
transparência e responsabilidade”, permite-lhe tomar as rédeas do próprio destino,
com todos os prazeres e dores daí advindos. Parece muito claro que o “outro”,
enquanto ser humano dotado de dignidade, somente poderia ser tratado com essa
autonomia. No entanto, é fato que uma das mais duras dificuldades que
encontramos em nossa relação com os outros “é a de sermos capazes de confiar ao
outro o seu destino, de confiar no destino que ele descobre, de confiarmos na
96 Op. Cit., p. 41. 97 Op. Cit., p. 42. 98 FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 151. 99 SARTRE, Jean – Paul, Apud, Op. Cit., p. 151 – 152.
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possibilidade do outro responsabilizar-se por ele mesmo, pela possibilidade desse
destino escapar à nossa determinação”.100
Este é um dos fortes motivos que tornam tão tentadora a eventual possibilidade da
programação genética de seres humanos, em especial no âmbito criminológico.
Nossa tendência a pretender dominar os outros nos impele ao objetivo e à crença da
determinação e controle absoluto das personalidades e condutas alheias.
Quando a ciência e a técnica nos acenam com a possibilidade prática desse projeto,
o agir parece correr adiante do pensar, deixando no caminho, desprezados,
aspectos sumamente relevantes para a preservação (ou conquista paulatina) da
dignidade da pessoa humana.
Infelizmente, a dinâmica veloz da sociedade contemporânea vem ocasionando com
freqüência essa perversão da ordem entre o pensar e o agir, na qual o segundo se
antecipa ao primeiro que resta simplesmente abandonado. Afinal, “a uma civilização
que se consuma e se consome ao nível exclusivo do ‘fazer’, o compreender torna-se
obsoleto e sem sentido”.101
É preciso perceber o quanto essa perversão pode ser deletéria e recuperar o pensar
como pressuposto do agir, especialmente quando se trata de questões que
envolvem o “status dignitatis” do humano. Aí se destaca a missão da bioética e da
filosofia como veículos do pensar. O pensamento ético – filosófico não remete
somente ao pragmatismo de um agir, mas também o abrange e supera. Conforme
afirma Critelli, “o fazer e o pensar, enquanto possibilidades existenciais e
eqüiprimordiais do homem, imbricam-se mutuamente. Muito embora fazer e pensar
não sejam excludentes um do outro, a recuperação da ação de pensar implica que,
num primeiro momento, possamos nos entregar à ação de pensar o pensamento,
independendo do vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos
pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmático não catalise nossas
atenções. Precisamos permitir que um novo fazer emerja de um novo horizonte. O
100 CRITELLI, Dulce Mara. Para recuperar a educação. In: HEIDEGGER, Martin. Op. Cit., p. 70 – 71. 101 Op. Cit., p. 60.
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pensar abre o fazer, mas só se confiarmos no vigor do próprio pensamento. Se a
única coisa que podemos querer é a prontidade das respostas, das fórmulas, das
regras, nesse querer o pensar não pode se presentificar como sendo fundamental.
A difícil tarefa dos que querem ir mais além de um fazer pragmático sem se sentirem
sufocados pela ‘incerteza imediata’ de um ‘o que’ fazer e pela segurança do já
convencionado, é poder deixar o fazer no ‘vazio’, abandonar sua prioridade e,
concomitantemente, poder abandonar-se à verdade de um fim ainda não dado”.102
Em suma, é preciso compreender que a ciência e a técnica podem nos dizer
claramente tudo aquilo que “podemos” fazer, mas nada podem esclarecer quanto
àquilo que “devemos ou não devemos” fazer.
2.5 CRIMINOLOGA GENÉTICA: UMA PERIGOSA MISTURA DE
FANTASIAS, INTOLERÂNCIA E EXCLUSÃO
É comum deparar com a divulgação de “estudos científicos” que afirmam poder
detectar “genes da esquizofrenia, genes sensíveis aos poluentes industriais e a
condições insalubres de trabalho, genes da criminalidade, genes da violência, genes
do divórcio e genes dos marginais”. Para Daniel Kleves103, citado por Cláudio
Tognolli, “o racismo dos nazistas agora se converte em clínicas genéticas”.
O grande problema relacionado a essas ilusões reducionistas é que elas podem
fomentar toda uma mentalidade destrutiva, a qual, depois de posta em movimento,
torna-se muito difícil de conter.
Questões como alcoolismo, desagregação familiar, violência e criminalidade são
extremamente complexas e esse reconhecimento (da complexidade) não é
alentador. Ele nos joga muitas vezes em meio à indeterminação, a um universo de
perguntas sem respostas ou com respostas sujeitas a inúmeras variáveis. A
sensação é desagradável e então se tende a buscar alguma solução simplista ou
102 Op. Cit., p. 60 – 61. 103 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 84.
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simplificada, ainda que isso implique na mutilação da verdade com todas as suas
terríveis conseqüências.104
A pretensão de descobrir algo que guia o agir humano, obliterando a
intencionalidade, não é novidade. O inconsciente em Freud, a “vontade de
representação” como um “querer cego e irracional” em Schopenhauer, são exemplos
desse intento levado a efeito anteriormente. De acordo com essas concepções
somente conhecemos o agir humano como uma “casca” de algo oculto que o
determina e que não está no domínio do “querer” livre do homem. As teorias
genéticas, sem inovar muito no cerne do pensamento, apenas apresentam algo mais
concreto como explicação. Ao invés da “vontade” ou do “inconsciente” como fatores
extremamente imateriais e intangíveis, a ciência agora apresenta, sob as lentes
microscópicas, a materialização daquilo que determina e conduz o homem, ou seja,
os genes.105
Sem negar o fato de que a genética pode oferecer respostas e benefícios, é
necessário perceber que ela, como qualquer outro ramo do saber, somente pode
deter parte da verdade.
Invariavelmente, quando a verdade é atribuída exclusivamente a algum ramo do
saber, da atividade humana ou do pensamento, advém a intolerância, a arrogância e
a exclusão.
Os exemplos, inclusive ligados ao tema discutido, não são difíceis de encontrar.
Sabe-se que em 1907, no Estado de Indiana, nos EUA, promulgou-se a “primeira lei
de esterilização compulsória”, que visava impedir a procriação de “criminosos,
idiotas, estupradores e imbecis”. O Estado passava então, de forma arbitrária, a
decidir quem podia ou não ter filhos, e pior, quem podia ou não nascer. Por esta
razão a legislação chegou a ser contestada na Justiça. Mas, em 1927, a Suprema
Corte confirmou lei similar do Estado de Virgínia, dando ênfase ao pragmatismo do
104 BURTT, Edwin. As bases metafísicas da ciência moderna. Trad. José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques. Brasília: UNB, 1984, p. 195. 105 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 85 – 86.
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procedimento seletivo – preventivo. Foram as seguintes as palavras do relator da
decisão, Oliver Wendell Holmes:106
“Será melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole degenerada pelos crimes que cometeu ou deixá-la morrer à míngua por sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os manifestamente inaptos de perpetuarem a própria espécie (...). Três gerações de imbecis é o suficiente”.
É impossível deixar de fazer o elo entre a realidade do fato histórico acima exposto e
a obra de ficção satírica de Swift107, que toca a ferida da exclusão e da indiferença:
“Algumas pessoas de espírito desalentado estão bastante preocupadas com o grande número de pobres, idosos, doentes e mutilados e tenho sido solicitado a empregar meu pensamento para encontrar alguma possível solução que alivie a nação de tão pesado fardo. Mas essa questão não me preocupa nem um pouco, pois é bem sabido que eles estão a cada dia morrendo e apodrecendo, de frio e de fome, e de sujeira e de vermes, tão rapidamente como se possa razoavelmente esperar. E, quanto aos trabalhadores mais jovens, eles estão agora em situação quase tão promissora: não conseguem trabalho e, conseqüentemente, estão desfalecendo por falta de alimento, a tal ponto que, se fossem, por acaso, contratados para algum serviço ordinário, não teriam forças para executá-lo, estando assim o país e eles próprios, felizmente, livres dos males que estão por vir”.
É dessa lógica exclusiva cruel que devemos nos precaver, e é ela que ameaça
conduzir os rumos de uma Criminologia Genética desatenta (intencionalmente ou
não) para com a complexidade do ser humano.
Collins108 bem destaca essa premente necessidade frente aos potenciais da
genética, asseverando que, “embora contenha uma promessa estimulante no
aprimoramento de intervenções em doenças psiquiátricas, a pesquisa genética
sobre comportamentos humanos, de algum modo, é perturbadora, pois parece trilhar
perto demais como uma ameaça ao nosso livre arbítrio, a nossa individualidade e
talvez mesmo a nossa espiritualidade”.
106 WATSON, James D., BERRY, Andrew. DNA o segredo da vida. Trad. Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 40 – 41. 107 SWIFT, Jonathan. Modesta proposta e outros textos satíricos. Trad. José Oscar de Almeida Marques e Dorothée de Bruchard. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29. 108 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 262.
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Mister se faz “confrontar a promessa e a ameaça da genética”.109 É bem verdade
que as potencialidades vislumbradas com o seu advento produziram um “efeito
inebriante”, levando os mais entusiasmados a aventar a hipótese de que os genes
poderiam fornecer explicações seguras para vários ou mesmo a totalidade do
comportamento humano e que este poderia ser controlado mediante intervenções e
manipulações precisas do código genético.110
A tentação de aperfeiçoar a natureza é inerente ao espírito humano e não é
apanágio da ciência. Na arte já se pretendeu superar o mero retrato do mundo, de
modo que “todo artista era um idealista” que pretendia superar a natureza. Na
ciência e na técnica os esforços para o aperfeiçoamento da natureza, especialmente
tendo em vista os fins humanos, têm pelo menos “dez mil anos de história atrás de
si”. Esse esforço tem suas origens nas técnicas de acasalamento de animais de
diferentes espécies, visando obter espécimes mais dóceis no trato, de carne melhor
e mais saborosa etc. Também a botânica pode ser apontada como uma das
atividades pioneiras desse intento humano, logrando produzir vegetais comestíveis,
ornamentais etc. 111
Nenhum susto pode provocar que essa perspectiva se espraiasse e chegasse à
intenção de aperfeiçoar os próprios seres humanos. Esse objetivo é antigo, podendo
ser constatado já no pensamento de Platão, e possivelmente tais idéias não eram
originais dele, mas resultado de observações comuns em sua época. Encontramos
nele o ideal da busca de uma sociedade perfeita constituída de homens perfeitos,
os quais deveriam ser incentivados a reproduzir, enquanto os imperfeitos deveriam
ser exterminados. Nota-se que muito antes dos conhecimentos genéticos
sofisticados estarem disponíveis a idéia da hereditariedade determinista já produzia
seus frutos.112
Vejamos o que o filósofo fala pela boca de Sócrates113 em “A República”:
109 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 134. 110 Op. Cit., p. 135. 111 Op. Cit., p. 140. 112 Op. Cit., p. 141. 113 PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 162.
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“De acordo com os nossos princípios, é necessário tornar as relações muito freqüentes entre os homens e as mulheres de elite, e, ao contrário, bastante raras entre os indivíduos inferiores de um e outro sexo; além do mais, é necessário educar os filhos dos primeiros, e não os dos segundos, se quisermos que o rebanho atinja a mais elevada perfeição; e todas estas medidas deverão manter-se secretas, salvo para os magistrados, a fim de que, tanto quanto possível, a discórdia não se insinue entre os guerreiros”.
O ideal de Platão estava na harmonia que impregnava suas concepções desde a
cosmologia até a política. Ele pretendeu desconsiderar as irregularidades dos
movimentos dos corpos celestes, idealizando sua movimentação em círculos
regulares. Intentou comprovar sua tese com um misto de matemática e teologia que
poderia comprovar o caráter divino dos corpos celestes pela inalterável regularidade
de seus movimentos circulares e perfeitos. Com isso pretendia banir as alterações e
irregularidades dos céus. De forma análoga, idealizará em sua República uma utopia
“totalitária, puritana e inquisitorial” da qual serão banidos todos os desviados,
irregulares ou dissonantes. 114
Uma nova roupagem para as mesmas idéias surge no século XIX na Europa e na
América do Norte sob o signo do racismo. Francis Galton, primo de Darwin, em
1885, faz a proposta indecente da “eugenia”, segundo a qual “a espécie humana
poderia ser aperfeiçoada pela eliminação de qualidades mentais e morais
indesejáveis”, o que poderia ser levado a efeito por meio de “uma fertilidade
seletivamente controlada”. 115 É de Galton a seguinte manifestação entusiasmada,
datada de 1865:
“Se a vigésima parte dos custos e esforços que são despendidos para o aperfeiçoamento da reprodução de cavalos e gado fosse gasta em medidas para o aperfeiçoamento da raça humana, que galáxia de gênios não poderíamos criar!” 116
Essa ideologia dominou o pensamento de uma época, reforçada pelo racismo. A
Rússia Soviética, em seus primórdios, e certas regiões dos EUA adotavam a
proibição do casamento para pessoas “oficialmente classificadas como débeis
mentais, criminosos e até (em alguns casos) alcoólatras”. No ano de 1926, em
114 PRADE, Péricles. Revoluções Culturais. São Paulo: Escrituras, 2004, p. 16 – 17. 115 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 141. 116 Apud, Op. Cit., p. 141. Parece que Galton “apenas” esqueceu que homens não são gado e que a humanidade não é um rebanho.
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algumas regiões dos EUA (quase metade) adotou-se a “esterilização compulsória”
dessas categorias de pessoas. 117 Nem é preciso dizer que a eugenia foi
recepcionada com o mais vivo entusiasmo na Alemanha Nazista, onde atingiu o seu
ápice de desumanidade. Ali não só o controle da procriação foi adotado, mas
também, e principalmente, o extermínio de todos aqueles considerados
geneticamente inferiores (judeus, ciganos e até os homossexuais). Por outro lado,
buscava-se o aprimoramento da “raça ariana pura”, através da reprodução seletiva
entre pessoas supostamente portadoras de caracteres considerados excelentes.118
A crueldade do regime nazista acabou emprestando à eugenia um estigma
extremamente repulsivo. No entanto, deparamos hoje com o seu retorno sob vestes
bem mais sutis. A engenharia genética pode tomar rumos muito similares aos das
ideologias eugênicas do passado.
Deparamos nos dias de hoje com manuais de Direito Penal publicados anualmente e
alegadamente “atualizados”, nos quais podemos encontrar verdadeiros resquícios
de uma eugenia preconceituosa e cruel. Mirabete119, ao comentar os fundamentos
do chamado “aborto sentimental, humanitário ou ético”, afirma que, além do respeito
à dignidade humana da mulher, justificaria essa espécie de aborto a prevenção
quanto à transmissão de certos traços criminosos pela hereditariedade.
Textualmente: “Além disso, freqüentemente o autor do estupro é uma pessoa
degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à hereditariedade”.120
Assim como já se falou em “raça pura” ou do “super – homem”, tem-se detectado
aquilo que Francis Fukuyama121 denominou de “um futuro pós–humano”. 122 E se
falamos em algo “pós – humano”, falamos em algo “não – humano”, relegando o
“humano” ao passado, como uma peça de museu ou um conceito obsoleto. Por isso
117 Para maior aprofundamento sobre a eugenia norte – americana, ver: BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos. Trad. Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003, “passim”. 118 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 142. 119 Trata-se, como sabido, do aborto legal previsto na legislação brasileira quando a gravidez é resultante de estupro (art. 128, II, CP). 120 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume II. 25ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 69. 121 Apud, FERNANDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 143. 122 Nosso futuro pós – humano. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, “passim”.
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o autor em comento alega que “a biotecnologia vai fazer que de algum modo
percamos a nossa humanidade (...). Ainda pior, poderíamos fazer essa mudança
sem reconhecer que havíamos perdido algo de grande valor. Poderíamos assim
aparecer do outro lado de uma grande divisória entre a história humana e pós –
humana, sem sequer perceber que o divisor de águas fora rompido”.
Portanto, é de extrema relevância tomar consciência dos problemas éticos e
políticos relativos à manipulação genética e, principalmente, às concepções
genéticas reducionistas. Também é imprescindível firmar um núcleo duro de direitos
e garantias referentes à contínua proteção e preservação da dignidade humana.
Pressuposto disso é, certamente, a conceituação segura daquilo em que consiste a
humanidade do homem, sob pena de realmente nem nos darmos conta de a
havermos perdido. 123
Efetivamente, o insidioso desgaste do conceito de “humano” e de “humanidade” tem
propiciado um correlato risco de seu desvanecimento, permitindo sua perda nas
veredas do relativismo, com nefastas conseqüências no presente e, especialmente,
para o futuro.
Armesto Fernández124 bem destaca a paradoxal situação do atual estágio da
humanidade, que tanto esforço despendeu e despende para preservar o humano,
mas vai, aos poucos, perdendo a noção daquilo por que tem lutado ao longo de
tanto tempo:
Aqui está um paradoxo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos investido muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que chamamos de valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade humana e da vida humana. Ao longo do mesmo período, silenciosa, mas devastadoramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência do nosso entendimento do que significa ser humano está agora em discussão. E se o termo ‘humano’ é incoerente, o que acontecerá com os valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça conceitual.
123 Op. Cit., p. 143. 124 Op. Cit., p. 9.
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Debatendo-nos em densas trevas e trilhando caminhos tortuosos, podemos ao
menos entrever um norte a indicar o traço comum que revela um início ou
pressuposto para a construção de uma atuação ética perante a humanidade. Esse
traço é o fato de que somos todos “humanos”, independentemente das variadas
diversidades. Somos desiguais sim, mas temos sempre de nos lembrar do laço
comum a unir-nos. É a nossa “humanidade” que, em primeiro plano, consiste em
que somos todos (brancos, negros, católicos, judeus, pobres, ricos, deficientes,
criminosos ou santos) “humanos”, que configura o primeiro fundamento para que as
pessoas não possam ser categorizadas, selecionadas e excluídas. O atributo da
humanidade, inerente a todo homem ou mulher, independente de sua condição, não
permite gradações. Em suma, jamais uns podem ser mais humanos que outros.
Pode parecer que esse pressuposto seja algo por demais óbvio, mas é preciso
atentar que por boa parte da história da humanidade e ainda hoje, as pessoas
sentem certa dificuldade para admitir esse traço comum de humanidade em todos os
seres humanos indistintamente. 125 E mesmo quando em dada sociedade isso é
admitido, em teoria, sem muita contestação, a aplicação prática do conceito não se
perfaz sem grandes obstáculos.126
A verdade é que existe sempre uma tendência a selecionar certas categorias, por
meio de critérios diversos (v.g. origem, religião, posição social e, quem sabe, código
genético), as quais acabam integrando a categoria dos humanos ou “mais
humanos”, enquanto outras parcelas são simplesmente excluídas, tratadas como
“outsiders”, marginais, pertencentes a alguma outra classe que acaba reduzida a
“status” semelhantes aos de coisas ou animais, sofrendo ainda um verdadeiro
processo de demonização127
A partir da identificação de certas pessoas como pertencentes a determinadas
categorias, opera-se uma poderosa “estratificação” a atribuir diferentes tratamentos
a camadas consideráveis da população. No cerne desse mecanismo diferenciador
125 Op. Cit., p. 14. 126 Por que outra razão seria necessário que nossa Constituição Federal mande, por exemplo, reprimir com rigor a prática do racismo e a lei ordinária regule essa repressão? 127 Op. Cit., p. 14.
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encontra-se o fato de que alguns podem livremente escolher sua própria identidade
individual e social, enquanto outros são simplesmente compelidos a assumir uma
certa identidade imposta de fora para dentro. Normalmente essas espécies de
identidades impostas são daquelas que “estereotipam, humilham, desumanizam,
estigmatizam...”128 Mas, ainda não é o fato mais grave essa falta de direito de
escolha, essa imposição. Há ainda quem possa ser impelido para um degrau ainda
mais baixo. Tratando-se de pessoas que, uma vez estigmatizadas, perdem total e
definitivamente o direito de “reivindicar” uma nova identidade. “Pessoas cuja súplica
não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação
do veredicto”. Estas estão destinadas a formar aquilo que Bauman129 denomina de
“subclasses”, ou seja, o conjunto de todas aquelas pessoas “exiladas nas
profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do
qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade)
podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas”.
A partir do momento em que alguém é destinado à composição de uma subclasse
(devido à baixa escolaridade, à pobreza, vício de drogas, falta de moradia,
mendicância ou outras categorias inadequadas, agora, talvez, aqueles portadores de
um código genético indesejável), ocorre uma negação apriorística de qualquer
identidade aceitável, em suma, fecham-se as portas. “O significado da ‘identidade da
subclasse’ é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, do
‘rosto’ – esse objeto do dever ético e da preocupação moral”. Opera-se uma
exclusão “do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas,
construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas”.130
Giorgio Agamben, citado por Bauman, chama a atenção para que a subclasse é um
“grupo heterogêneo de pessoas” que sofreram a redução de seu “bios” (vida como
“sujeito socialmente reconhecido”) a mero “zoë" (vida somente animal, “com todas
as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas”).131
128 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 44. 129 Op. Cit., p. 45. 130 Op. Cit., p. 46. 131 Op. Cit., p. 46.
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Note-se que quase nada pode ser mais conveniente para exacerbar um quadro
como este ora apresentado do que uma ciência genética seletiva e determinista,
inclusive e muito especialmente, no que tange às suas irradiações para o campo
criminológico.
Esse conjunto de fatores que alimentam a exclusão e a estratificação social, conflui
para a tendência do processo neoliberal de globalização econômica, com sua
interminável “produção de lixo humano” ou, melhor dizendo, de “pessoas rejeitadas”,
que se tornam desnecessárias e até disfuncionais para o bom andamento do “ciclo
econômico”. O Capitalismo Contemporâneo troca o modelo de “exploração” pelo da
“exclusão”, e esse modelo é bem mais cruel do que o anterior, constituindo
atualmente a “base dos casos mais evidentes de polarização social, de
aprofundamento da desigualdade e de aumento do volume de pobreza, miséria e
humilhação”.132
Não há dúvida de que o modelo econômico tem enorme influência na conformação
do paradigma de Direito Penal e, principalmente, na construção do discurso
referente à finalidade da pena. Em um contexto no qual a mão de obra humana é um
valor na dinâmica do processo econômico, é fácil reconhecer a pertinência do
discurso “ressocializador”. A coisa muda de figura quando essa mesma mão de obra
passa a ser muito abundante frente à mecanização proporcionada pela tecnologia, a
substituir com vantagens a força de trabalho humana. Nessas circunstâncias um
indivíduo desgarrado não é mais considerado uma peça relevante na sociedade.
Seu descarte passa a ser uma solução e até um objetivo a ser perseguido em prol
da funcionalidade do sistema. Este é certamente um efeito daquela substituição das
relações exploradores/explorados pelas relações incluídos/excluídos. Agora, já não
há valor algum, nem mesmo comercial ou econômico, atribuído pelos ocupantes do
topo da escala social aos que estão em sua base. Se a relação vertical
anteriormente se processava como uma opressão que visava o domínio das massas
exploradas, hoje tal domínio não é tão atraente e a relação vertical tende a ser
transmudada para uma pressão no sentido de “esmagar” e descartar os excluídos, já
132 Op. Cit., p. 47.
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que eles não interessam ao sistema e até constituem entraves que precisam ser
expurgados por vias diretas e indiretas.133
Tudo isso é um caldeirão onde pode muito bem ser preparado o prato amargo de um
novo holocausto, com bem adverte Arendt: 134
Nenhum castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. Ao contrário, a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido a sua emergência inicial. As razões particulares que falam pela possibilidade de repetição dos crimes cometidos pelos nazistas são ainda mais plausíveis. A assustadora coincidência da explosão populacional moderna com a descoberta de aparelhos técnicos que, graças à automação, tornarão ‘supérfluos’ vastos setores da população até mesmo em termos de trabalho, e que, graças à energia nuclear, possibilitam lidar com essa dupla ameaça com o uso de instrumentos ao lado dos quais as instalações de gás de Hitler pareciam brinquedos de uma criança maldosa – tudo isso deve bastar para nos fazer tremer”. 135 [E mais adiante, na mesma obra, a autora acrescenta:] É bem concebível que na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível.
Para que isso ocorra, ao contrário do que comumente se imagina, não seria
necessário o surgimento de um novo Hitler ou algo parecido. Basta que cada um de
nós permita esvaecer o conceito de humanidade, “pois é perfeitamente concebível e
mesmo dentro das possibilidades políticas práticas, que, um belo dia, uma
humanidade altamente organizada e mecanizada chegue, de maneira democrática –
isto é, por decisão da maioria - à conclusão de que, para a humanidade como um
todo, convém liquidar certas partes de si mesma”.136
Também Zaffaroni137 faz essa constatação, dissertando especificamente sobre os
efeitos da globalização econômica na América Latina:
133 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal e Globalização. Boletim IBCCrim. n. 84, nov., 1999, p. 4. 134 Op. Cit., p. 312. E que instrumento seletivo não seria a genética (mal direcionada) para tal desiderato. 135 ARENDT, Hanna. Eichmann em Jersualém. 6ª. Ed. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 296. 136 IDEM. Origens do Totalitarismo. 6ª. ed. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 332. E para aqueles que pensam que esse dia esteja muito longe, basta meditarem um pouco sobre o rumo que têm tomado as discussões sobre as questões previdenciárias no mundo moderno. 137 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y Sistema Penal en América Latina: de la seguridad nacional a la urbana. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 20, out./dez, 1997, p. 22.
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El fenômeno tiene a crear en los paises latinoamericanos una massa excluída que no responde a la dialética explotador/explotado, sino a una no relation entre excluído/incluído. El explotado contaba, era tenido en cuenta y estaba dentro del sistema, como explotado pero dentro, el excluído no cuenta, está de más, es un descartable que no sirve, solo molesta. La lógica de este esquema, si no se le interrumpe, es el genocídio.
Neste contexto o Direito Penal pode surgir como um instrumento direto de seleção e
destruição dos excluídos, servindo a contento aos desígnios inconfessáveis do novo
modelo. É notável que o discurso da recuperação vai cedendo espaço para as
soluções extremas, como a pena de morte e a redução da menoridade penal. 138
Bem pode encaixar-se aqui a concepção de uma Criminologia Genética seletiva e
determinista, tendente a eliminar arbitrariamente caracteres presentes na
constituição genética das pessoas, seja em sua geração ou posteriormente
mediante intervenções forçadas a desconfigurarem suas personalidades. Isso sem
falar no reforço que teses deterministas concedem às hipóteses anteriormente
mencionadas da pena de morte e da redução da menoridade penal. Quem sabe até
mesmo se cogite um dia a completa eliminação da questão da imputabilidade, já que
mesmo em um feto poder-se-ia encontrar e abrir a caixa – preta onde se ocultam os
segredos do futuro criminoso.
Mas, não é só no Sistema Penal que se pode constatar a insidiosa e perigosa
influência do Capitalismo Globalizado. Ela se faz sentir, por exemplo, no crescente
abandono das questões previdenciárias, de saúde e educação públicas. Tudo isso
empurra a massa excluída para as garras do Sistema Penal ou diretamente para a
morte devido ao mais absoluto abandono e falência do Estado como entidade
assistencial e promotora da igualdade.139
Retomando a perspectiva criminal, percebe-se que na sociedade a infração penal é
concebida como um mal, a criminalidade como uma doença infecciosa e o infrator
como um ser daninho. Isso fomenta uma tomada de posição belicosa em relação ao
138 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op. Cit., p. 4. 139 Op. Cit., p. 4. Relembremos neste ponto o texto satírico de Jonathan Swift, exposto linhas volvidas, “Modesta Proposta”.
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crime, a qual influi na construção de toda a política referente ao “combate” à
criminalidade.140
Este é um campo fértil para as divisões e polarizações, a tal ponto que já se cogita a
formulação do que se convencionou chamar de um “Direito Penal do Inimigo”, em
oposição ou contraste com um “Direito Penal do Cidadão”, conforme teorizado por
Jakobs.141
Hoje pode-se constatar um processo razoavelmente generalizado daquilo que se
poderia chamar de “paradigma do inimigo”, pelo qual a pessoa é julgada em virtude
do que é ou do que acredita ser; com base em sua periculosidade supostamente
inerente à sua personalidade, muito mais do que por aquilo que efetivamente tenha
cometido. 142
No seio desse paradigma a tendência é que se consolide um modelo de Direito
Penal que empreste gradativamente mais e mais destaque à prevenção,
configurando um inovador e mais sofisticado “panoptismo social” marcado pela
descoberta seletiva da figura do “inimigo”.143
Acontece que agora a idéia original de Bentham 144 não precisa mais da parafernália
arquitetônica por ele concebida e nem fica restrita aos ambientes prisionais. A
tecnologia permite uma vigilância muito mais ampla e invasiva, cogitando-se não só
o controle absoluto da conduta humana exteriorizada, mas, quem sabe, de suas
tendências ou potencialidades internas por meio dos conhecimentos genéticos.
140 MUÑOZ CONDE, Francisco, HASSEMER, Winfried. Introducción al derecho penal. Barcelona: Bosch, 1995, p. 37. 141 JAKOBS, Günther. Fundamentos do Direito Penal. Trad. André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2003, p. 142 – 143. 142 APONTE, Alejandro. Derecho penal de enemigo versus derecho penal del ciudadano. Günther Jakobs y los avatares de un derecho penal de la enemistad. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 51, nov./dez, 2004, p. 16. 143 Op. Cit., p. 17. 144 BENTHAM, Jeremy. O panóptico. Trad. Guacira Lopes Louro, M. D. Magno e Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, “passim”.
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Para Tognolli145, “a nova ideologia do DNA lastrearia, em longo prazo, a idéia dos
‘novos inimigos’ da saúde perfeita: os portadores de genes ‘deficientes’. (...). O
mesmo processo que movimenta a sociedade em torno dos ‘novos inimigos’
geopolíticos é o que agrega, (...), a todos na busca e encontro dos ‘genes
culpados’”.
Acontece que, para além de que essa seleção dos “inimigos” através da genética
configure um arbitrário, totalitário e desumanizante “Direito Penal do Autor”, lastreia-
se em um referencial teórico há muito tempo superado. Nada mais, nada menos do
que aquilo que com razão se poderia denominar, como o fez José Nêumanne146, de
um “neolombrosianismo”.
Seguiria dizendo que se ressuscita a tese do “determinismo biológico”, mas parece
mais adequado constatar que ela jamais feneceu realmente, sendo mais correto
admitir que dormitasse sempre latente nos meandros do imaginário popular e até
dos cientistas.
Conforme alerta Lewontin147, “tudo isso é um grande nonsense”, que se baseia
numa terrível confusão entre fantasias e realidade, ocasionada por uma mistura
entre aquilo que é representado em uma simples metáfora com o objeto ou fato real.
Em suas palavras:
A ideologia do determinismo biológico usa muitas metáforas retiradas do modelo de máquina de Descartes e agora dos modelos computacionais. Essas metáforas permitem então ‘jogos de linguagem’ porque elas são levadas a sério e assim as conseqüências lógicas de se levar metáforas a sério são levadas à última instância. Todos os cientistas empregam metáforas, mas as metáforas podem ser os maiores inimigos de se compreender adequadamente o mundo material. As pessoas confundem as metáforas com os objetos reais. Norbert Wiener e Arturo Rosenblith escreveram que ‘ o preço da metáfora é a eterna vigilância.148
Realmente, o fato de que alguém se utilize da imagem de um “chip” de computador
em comparação com os genes, falando no código genético como uma espécie de
145 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 215. 146 Apud, Op. Cit., p. 265. 147 Op. Cit., p. 265. 148 LEWONTIN, Richard. Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. cit., p. 267.
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“programação”, não pode ser acatado além do mero sentido metafórico para levar à
conclusão de que o homem pode, na realidade, ser equiparado a uma máquina pré
– programada. Da mesma forma a metáfora não pode extravasar para reabilitar a
absurda e superada crença de que o crime possa ser considerado como um ente
natural e não como um conceito normativo criado pela sociedade humana, produto
de seus artifícios.
Com bem observa Karam149, é comum o equívoco de falar “genericamente em crime
como se tal expressão pudesse traduzir um conceito natural, que partisse de um
denominador comum, presente em todo tempo ou em todo lugar. Mas, na realidade,
crimes são meras criações da lei penal, não existindo um conceito natural que os
possa genericamente definir. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser
em outro; o que hoje é crime, amanhã poderá não ser”.
A Criminologia Genética reducionista e determinista parte, portanto, de duas
premissas equivocadas: nem o homem é um sistema fechado (é, na verdade,
caracterizado pela constante abertura); nem o crime é um conceito natural,
independente da normatização da conduta humana operada pelas leis penais.
Mesmo considerando isoladamente o conhecimento genético, não se pode afirmar a
existência de consenso quanto a serem os genes em si “estruturas fechadas”. Para
Richard Lewontin150, os genes são passíveis de alterações pelas “condições de
trabalho, psicológicas, sociais, antropológicas” etc., e defini-los como sistemas
fechados não passaria de mera ideologia. Lembra o autor que a ciência não é tão
objetiva como se costuma apregoar, ela, “como outras atividades produtivas, como o
Estado, a família, o esporte, é uma instituição social completamente integrada e
influenciada pela estrutura de todas as nossas outras instituições sociais. O
problema com o qual a ciência lida, as idéias que ela usa para investigar esses
problemas, até mesmo os resultados científicos, tão alardeados, decorrentes da
investigação científica, são todos profundamente influenciados por predisposições
que derivam da sociedade na qual vivemos. Os cientistas não começam as suas
149 KARAM, Maria Lúcia. Sistema Penal e publicidade enganosa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 52, jan./fev., 2005, p. 159 – 160. 150 Apud, TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 137 – 138.
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vidas como cientistas e sim como seres sociais imersos na família, no Estado, na
estrutura produtiva, e suas visões da natureza são feitas através das lentes que
foram moldadas por suas experiências sociais. Acima do nível pessoal da
percepção, a ciência é moldada pela sociedade porque ela é uma atividade
produtiva humana que demanda tempo e dinheiro. A ciência usa dinheiro e
‘comodities’. Muitas pessoas ganham dinheiro e sobrevivem da ciência, e como
conseqüência as forças sociais econômica e socialmente dominantes determinam
em larga medida o que a ciência faz e como ela faz. Mais que isso, tais forças têm a
força de se apropriar das idéias científicas que são particularmente úteis para a
manutenção e continuidade da prosperidade das estruturas sociais das quais elas
são parte. Então outras instituições sociais têm um ‘imput’ sobre a ciência, tanto
sobre o que é feito como sobre o que é pensado, eles tiram da ciência conceitos e
idéias que suportem as suas instituições e façam-nas parecer legitimamente
naturais. É um processo duplo – por um lado, da influência social e controle do que
os cientistas fazem e dizem para mais à frente apoiarem as instituições da
sociedade – o que é explicado quando falamos da ciência como ideologia”.
Não é sustentável a tese de que “a seqüência do Genoma Humano seja o ‘Graal’
que irá revelar tudo o que é o ser humano”. Mas, é fácil de compreender como essa
tese reducionista encontra tanto eco na sociedade capitalista globalizada. Ela
permite ocultar as reais causas dos problemas sociais (alcoolismo, drogas,
criminalidade, violência, desequilíbrio nervoso, desagregação familiar etc.),
satanizando os genes e os seus portadores, como é interessante para perpetuar o
“status quo”. Lewontin compara a atual condenação dos genes anti-sociais com a
satanização ocorrida no século XIX contra o “Bacilo de Koch”, levada a efeito,
evitando a discussão sobre as condições sociais (moradia, higiene, condições
insalubres de trabalho) que realmente levavam à proliferação da tuberculose. 151
Trata-se verdadeiramente de um “marcador substituto”, ou seja, uma variável
relacionada com outra que é a causa real.
Fato é que tal concepção, se levada a sério, inobstante partindo de premissas
insustentáveis, vai nos conduzir à intolerância ou ao preconceito para com pessoas
151 Op. Cit., p. 140.
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portadoras de códigos genéticos que apontem para certas “tendências” negativas.
Mais uma vez veremos a segregação, o preconceito e a exclusão sendo
chancelados pela idoneidade e neutralidade (altamente contestáveis) da ciência. 152
Afinal, o próprio Diretor do Projeto Genoma Humano, Francis S. Collins153, não
corrobora qualquer concepção determinista ou premonitória da genética, no que
tange ao comportamento humano. Segundo suas palavras:
Para muitas características comportamentais humanas, existe um componente da hereditariedade do qual não se pode escapar. Em praticamente nenhuma delas a hereditariedade chega perto do profético. O ambiente, em especial as experiências da infância, e o papel de destaque das chances do livre – arbítrio individual têm sobre nós um efeito profundo. Os cientistas descobrirão um nível crescente de detalhes moleculares sobre os fatores herdados que se encontram subjacentes à nossa personalidade. Isso, porém, não deve nos levar a superestimar sua contribuição quantitativa. Sim, a todos nós foi dado um conjunto de cartas com as quais lidar, e essas cartas serão, enfim, reveladas. Contudo, a forma como jogamos com elas depende de nós.
E mais adiante o autor afasta qualquer possibilidade real de uma programação
infalível da genética acerca da personalidade e agir humanos: 154
A importância crucial da criação, da instrução e da disciplina na infância não seria evitada por um lance de dados levemente aprimorado. O casal narcisista que insistiu no uso dessa tecnologia genética para produzir um filho que poderia ser zagueiro de um time de futebol, tocar violino na orquestra da escola e tirar A+ em matemática poderia muito bem encontra-lo, em vez disso, em seu quarto, jogando videogame, queimando uma erva e escutando heavy metal.
Outro fator que não pode passar despercebido é o papel representado pela mídia,
em especial a imprensa na divulgação das notícias sobre as descobertas e
potencialidades da genética.
Como salienta Cláudio Tognolli155, em sua grande maioria as notícias sobre genética
veiculadas pela imprensa são contaminadas por ideologia e carentes de um maior
embasamento científico.
152 Op. Cit., p. 302. 153 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 266. 154 Op. Cit., p. 273. 155 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 174.
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Pesquisando as notícias veiculadas sobre o tema, num período de sete anos (de
1994 a 2000), constatou o autor que menos de 3% delas trazia algum conteúdo
crítico quanto às descobertas biotecnológicas.156A tendência da imprensa tem sido,
infelizmente, reforçar o caráter estigmatizante das descobertas genéticas, bem como
acoroçoar o paradigma reducionista, determinista e simplista de encarar o ser
humano, mediante o abuso de expressões características como: “isolamento de
genes” (juntamente com a metáfora cibernética); além da suposta descoberta de
“qualidades”, “disfunções”, “defeitos” e “tendências” individuais e indeléveis “que
cada um traz dentro de si”.157
Leão Serva158, em entrevista a Cláudio Tognolli, chama a atenção para o fato de que
a sociedade passa a depositar sua fé em um mundo melhor pela intervenção de um
novo “deus moderno que é a biotecnologia”. E arremata, afirmando que a imprensa
reflete esse ideário de forma acrítica, sendo que “o material jornalístico nunca nos
leva a supor que alguém esteja pensando diferentemente dessas novidades
biotecnológicas. Isso é vendido como se fosse pura técnica despida de uma
ideologia na sua condução. É uma carga muito grande de informações sobre
biotecnologia, mas em nenhum momento isso vem para permitir uma visão mais
completa ou mais complexa do que está acontecendo”. Enfim, o biologismo, seja por
razões ideológicas ou por pura desinformação ou pressa no fechamento de edições,
acabou ganhando campo na imprensa em detrimento de uma visão crítica e realista
dos fatos.159 Isso certamente empobrece ou até inviabiliza o cumprimento daquilo
que Fiss refere como “a missão democrática da imprensa”160, enquanto legítimo
veículo possibilitador de que as pessoas formem informada e livremente as suas
opiniões, e não sejam simplesmente conduzidas ou influenciadas tendenciosamente
por determinada corrente ideológica.
Não se pretende apregoar uma satanização da genética, mas apenas uma visão
equilibrada que também não a divinize ou lhe atribua poderes milagrosos, passando
156 Op. Cit., p. 183. 157 Op. Cit., p. 186. 158 Op. Cit., p. 239. 159 Op. Cit., p. 290. 160 FISS, Owen M. Op. Cit., p. 99.
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por cima de valores inalienáveis do ser humano e construindo teorias mirabolantes
sustentadas em falsas premissas.
A genética pode muito bem ser veículo para grandes conquistas, inclusive quanto à
solidariedade humana, a tolerância e a convivência pacífica entre as pessoas.
Poucos aspectos do saber e da atividade humana podem contribuir e já contribuíram
de forma tão valiosa para tornar o racismo algo visivelmente indefensável. A biologia
comprovou que não só não existem “raças inferiores” como sequer há “raças”, pois
que “não há praticamente nenhuma diferenciação racial entre os humanos”. As
diferenças físicas constatáveis não se refletem em diferenças genéticas, já que
“entre os humanos mais amplamente separados é minúscula” a variação genética
em cotejo com outras espécies.161
No campo penal certamente a genética pode dar sua contribuição, a qual não é
desprezível. É claro que, em parte, certas condutas criminosas admitem uma
explicação etiológica, que bem pode ser explorada no campo genético. Deve-se,
porém, ter o cuidado de não assentar conclusões sobre fantasias e de não procurar
simplificar o complexo a qualquer custo, apenas para tranqüilizar nossa perturbação
diante dos mistérios da humanidade.
Procedendo a uma breve digressão em relação ao tema central deste trabalho,
considera-se oportuno lembrar que a ciência genética pode colaborar imensamente
e já o faz, na apuração da autoria de crimes. Trata-se de sua aplicação em outro
campo das ciências criminais, qual seja, o da “criminalística”.
Zarzuela162 conceitua a criminalística como:
o conjunto de conhecimentos científicos, técnicos, artísticos etc., destinados à apreciação, interpretação e descrição escrita dos elementos de ordem material encontrados no local do fato, no instrumento do crime e na peça de exame, de modo a relacionar uma ou mais pessoas envolvidas em um evento, às circunstâncias que deram margem a uma ocorrência, de presumível ou de evidente interesse judiciário.
161 FERNÁNDEZ – ARMESTO, Felipe. Op. Cit., p. 88. 162 ZARZUELA, José Lopes. Temas fundamentais de criminalística. Porto Alegre: Sagra – Luzzatto, 1996, p. 15.
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Os exames de DNA em vestígios deixados em locais e instrumentos de crime,
vestes e corpos de vítimas e suspeitos, colaboram muitas vezes decisivamente para
o esclarecimento de eventos criminosos, especialmente no que tange à sua autoria.
Watson cogita a possibilidade da criação de um banco de dados genéticos, a
exemplo do que já existe com relação às digitais, a fim de facilitar a atuação da
investigação criminal. É claro que a amplitude informativa dos códigos genéticos
pode gerar questionamentos quanto a essa invasão estatal da privacidade. Isso
porque, diversamente das digitais, o código genético contém muito mais informações
sobre uma pessoa do que sua simples identificação (v.g. doenças congênitas).163 No
entanto, pensamos que algumas precauções legais e práticas, impondo um controle
rígido do uso das informações genômicas restrito aos fins de investigação criminal,
poderiam promover um saudável equilíbrio entre as garantias individuais e o
interesse social na apuração dos crimes e punição dos criminosos.164 Oportuno,
portanto, transcrever a observação de Watson: 165
Embora a legislação não deva atrapalhar nossa ambição de explorar o pleno potencial do DNA em aliviar o sofrimento humano, em explicar quem somos e de onde viemos, ou em identificar quais dentre nós são culpados de algum crime, ela deve no mínimo assegurar que nenhum cidadão seja privado de seus direitos civis ou humanos com base no que porventura estiver inscrito em seus genes.
Conclusão
No decorrer deste trabalho foi discutida a questão da viabilidade da construção de
um saber criminológico calcado nas modernas pesquisas genéticas.
Por intermédio de um esboço da evolução histórica da Criminologia, logrou-se
demonstrar como esta passou de um estágio em que se buscava uma explicação
etiológica do fenômeno criminoso, entendendo este como um ente natural e o
infrator como portador de uma anomalia, até chegar às questionadoras concepções
da Criminologia Crítica, e o ponto de equilíbrio que vem a ensejar a compreensão da
163 WATSON, James D. Op. Cit., p. 296. 164 Neste sentido: Op. Cit., p. 314. 165 Op. Cit., p. 383.
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complexidade do tema pesquisado, propondo-se o paradigma da Criminologia
Integrada.
Finalmente, abordou-se o ponto sensível deste estudo, ou seja, o papel da genética
na Criminologia contemporânea. Principiou-se pela defesa da importância da
reflexão como pressuposto para a tomada de qualquer decisão, especialmente
daquelas que se referem à intervenção no “status” do homem no mundo e na
sociedade. A seguir, foram expostas as discussões acerca da legitimação da
culpabilidade como pressuposto da punição, fazendo-se notar que a
responsabilidade está atrelada de forma inseparável à liberdade. Por outro lado,
afastada a responsabilidade por influência de teses deterministas, não se pode mais
legitimamente falar em punição. Não obstante, resta viável a tese da defesa social,
que pode tornar defensáveis os usos de medidas extremas de contenção ou mesmo
de eliminação daqueles aos quais é atribuída, por algum critério, a pecha da
periculosidade.
Analisou-se também a questão do totalitarismo oculto na conformação de uma
criminologia genética reducionista e determinista. Em seu contexto parece inevitável
uma constante intervenção sobre o indivíduo, controlando profundamente não só as
suas condutas, mas também aquilo que ele seja ou pretenda ser. Isso certamente
conflui para uma desconstrução da autenticidade, extremamente violadora da
dignidade humana. Há numa Criminologia ou em qualquer teoria ou ideologia que
apregoe a intervenção profunda no “ser” do homem um intento de recriar
(destruindo) o humano, que é essencialmente “abertura”, para transforma-lo em um
sistema fechado, moldado ao bel prazer de alguma elite ilegitimamente detentora do
poder de decidir como deve ser o “ser” do homem.
Por derradeiro, foram apreciadas as fantasias e falsas bases que dão sustento a
uma Criminologia Genética reducionista e determinista, bem como suas naturais
confluências com a conformação intolerante, excludente e cruel de um Capitalismo
Globalizado. Verifica-se muito claramente que aquilo que hoje se apresenta como
uma novidade capaz de revolucionar os estudos criminológicos, não passa de uma
repristinação, acrescida de certa sofisticação e sutileza, de antigas teorias
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etiológicas do crime, configurando nada mais do que um “neolombrosianismo” tosco,
mal disfarçado na pele sedutora da suposta vanguarda científica.
É fato incontestável que a ciência pode ou poderá em breve alterar o patrimônio
genético da humanidade. Mas, o fato de ser detentor de um poder ou conhecimento,
nada diz a respeito da conveniência de seu uso. Em primeiro lugar deve-se saber
“quem, de que modo e com que finalidade pode levar a cabo tais alterações”. Depois
é preciso ir ainda mais fundo e decidir se essas mudanças devem sequer ser
levadas a efeito. 166
A história nos ensina que sempre que alguma mudança pode operar-se, ainda que
seja perigosa e sofra resistências, acaba acontecendo. Neste caso, considerando
que a decisão seja pela intervenção modificadora do genoma humano, ainda nos
resta discutir a legitimidade das alterações porventura pretendidas. Mister se faz
“encontrar a vontade consensual que possa dar um rumo límpido, claro e
transparente à via ou caminho que se quer prosseguir”. É aqui que reside a missão
do Direito. A ele não é dado dominar e oprimir a pesquisa científica, pretendendo
impor uma verdade normativa em oposição à verdade aferível pela dialética própria
da atividade da ciência. Afinal, como consta da célebre frase ora atribuída a Francis
Bacon, ora a Galileu Galilei, “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”.
Portanto, o Direito, aliado à ética, deve regular com bom senso os limites da
aplicação dos conhecimentos científicos, sem contudo constituir uma barreira
autoritária à livre pesquisa. Caberá, portanto, ao Direito (Biodireito) a árdua missão
de encontrar um consenso, orientado por valores éticos, legitimando os
comportamentos altamente relevantes da aplicação da genética sob os prismas
comunitário e individual.167
Note-se, porém, que o caminho a ser trilhado, passando pela discussão ética para
chegar à normatização jurídica, não pode ser produto de uma ou outra categoria de
pessoas (juristas, cientistas, religiosos etc.). Muitas vezes os cientistas se arrogam o
direito de apropriação do discurso acerca da genética, isso com base no fato de
166 COSTA, José de Faria. Op. Cit., p. 103. 167 Op. Cit., p. 103 – 104.
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serem detentores do conhecimento técnico. Não obstante, como já se disse, o
domínio de um conhecimento ou poder nada significa a respeito do bom ou mau uso
que se fará dele. Para a discussão de questões de alta indagação que suplantam
em muito o mero saber técnico – científico, exigindo decisões informadas não
somente pelo conhecimento, mas, principalmente, pela sabedoria, torna-se
imprescindível a confluência democrática e pluralista. Cabe ao cientista a
manifestação e até o esclarecimento sobre as questões técnicas, mas devem ser
chamados à baila o sociólogo, o criminólogo, o jurista, o filósofo, o teólogo, em
suma, a sociedade representada da forma mais ampla e esclarecida possível. Afinal,
como aduz Gilson, a ciência pode fornecer muitas respostas no que diz respeito ao
mundo dos fenômenos, mas, afora isso, nem sequer sabe fazer as perguntas. 168
Diverso não é o entendimento de um cientista esclarecido e equilibrado como
Collins169, que afirma:
Sobre esses assuntos que representam desafios éticos verdadeiros, que não são situações artificiais e irreais, como nossa sociedade poderá tirar conclusões? Primeiramente, seria errado simplesmente deixar os cientistas tomarem essas decisões. Eles têm uma função crucial nesses debates, já que sua especialidade pode permitir uma distinção clara do que é e do que não é possível. No entanto, os cientistas não podem ser os únicos nesse debate. Por sua própria natureza, eles têm fome de explorar o desconhecido. Seu senso moral, geralmente, não é nem mais nem menos desenvolvido do que o de outros grupos, e eles não conseguem evitar sua aflição diante de um conflito de interesses que pode fazer com que fiquem indignados com os limites estabelecidos por quem não é da comunidade científica. Portanto, uma ampla variedade de outras perspectivas deve ser representada nesse debate.
Eis onde emerge a importante função da bioética. O termo foi cunhado em 1970 pelo
cancerologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitulado “Bioethics, the
Science of Survival” e corroborado em um livro de título “Bioethics, Bridge to the
future”. 170 A “Encyclopedia of Bioethics” a define como o “estudo sistemático da
168 GILSON, Etienne. Op. Cit., p. 98. 169 COLLINS, Francis S. Op. Cit., p. 273 – 274. 170 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 275.
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conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde considerada à luz de
valores e princípios morais”.171
A Bioética não é uma ideologia reacionária que pretende atravancar os avanços
científicos, mediante sutilezas morais e/ou teológicas. Na verdade, ela é portadora
de uma clara mensagem de que a ciência e a técnica não prescindem de uma
“razão reguladora” que deve pautar-se por princípios éticos. 172
Afirma Ratzinger que “a ciência pode servir à humanidade, mas pode também se
tornar instrumento do mal, dando-lhe os meios para desenvolver plenamente sua
terribilidade; ela pode realizar sua verdadeira essência somente se for sustentada
pela responsabilidade moral”. No entanto, “a força moral não cresceu junto com o
desenvolvimento da ciência; pelo contrário, até diminuiu, porque a mentalidade
técnica relega a moral ao âmbito subjetivo, enquanto seria justamente necessária
uma moral pública, uma moral que saiba responder às ameaças que pairam sobre a
existência de todos nós”. Efetivamente, “a questão moral é hoje, mais do que nunca,
manifestamente uma questão de sobrevivência para a humanidade. Na civilização
tecnicista, que já se estendeu ao mundo contemporâneo todo, as antigas certezas
morais, que sustentavam as várias grandes culturas, foram amplamente destruídas.
A visão tecnicista do mundo dispensa os valores, e se questiona sobre a
possibilidade prática, não sobre o que é lícito. Para muitos, a questão do que é lícito
parece até ultrapassada, não mais compatível com a emancipação do homem de
todos os vínculos. O que é possível fazer é também lícito fazer: é assim que se
pensa hoje, cada vez mais.
Mas o verdadeiro problema coloca-se em um nível mais profundo ainda.
Defrontadas com a certeza indiscutível que caracteriza as matérias técnicas, todas
as certezas morais parecem algo frágeis e discutíveis. Muitos acham que só é
razoável o que posso verificar de forma tão incontrovertível quanto às fórmulas
matemáticas ou técnicas. Mas onde encontrar essa verificabilidade nas realidades
tipicamente humanas, nas questões da moral e do reto viver humano? O fato de as
171 SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Volume I. 2ª. ed. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2002, p. 43. 172 TOGNOLLI, Cláudio. Op. Cit., p. 274.
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grandes culturas, apesar dos importantes elementos comuns, darem nesse contexto
resposta diferentes faz com que o relativismo se torne cada vez mais a opinião
dominante. No âmbito da moral e da religião, não há nenhuma certeza partilhável;
cada um deve achar por si mesmo como solucionar o problema. Cada um deve
seguir suas próprias convicções”. Esse relativismo tem até certa coerência no cotejo
com a realidade plural, mas destrói a segurança de qualquer critério ético e deixa o
homem sem limites ao seu arbítrio. Nesse quadro, “a ciência se torna patológica e
perigosa para a vida, quando se desobriga do contexto da ordem moral própria do
ser – homens, e permite-se admitir unicamente suas próprias possibilidades como
único critério admissível”. A pergunta crucial, porém, não é aquela que se refere ao
que se “pode fazer”, mas aquela que se volta para o que se “deve fazer”, abrindo-se
para a “voz da verdade e a seu chamado”.173
Um dos aspectos que a Bioética deve preservar no que tange à dignidade humana
perante as descobertas científicas é a vedação absoluta à instrumentalização, sob
quaisquer pretextos.
É neste ponto que uma genética determinista, seja em sua aplicação criminológica
ou em geral, é problemática. Isso porque ela reduz o homem a uma espécie de
marionete guiada por mãos invisíveis, que seriam agora os genes. 174
Quando se perde de vista a noção básica de que somos sistemas abertos e não
fechados abre-se campo para uma reificação do humano, que passa a confundir-se
com as coisas e animais incapazes de autoconsciência e de contínua abertura para
um “ser” que se constrói em processo sempre inconcluso.
A liberdade e a responsabilidade são traços fundamentais da existência humana. O
homem escolhe sua existência e toma posição frente aos valores. Por isso é o
responsável pela escrita de sua própria história, a qual não é o mero resultado da
preponderância dos instintos sobre o agir consciente, já que o homem tem a
173 RATZINGER, Joseph, Apud, TESSORE, Dag. Op. cit., p. 101 – 102. 174 Ver neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. Cit., p. 408. “Não somos meros marionetes cujos cordões são manipulados por nossos genes”.
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capacidade de superar os impulsos mais poderosos, a não ser que esteja sofrendo
de alguma patologia psíquica.175
Desse modo, desde que não se perca de vista essa noção básica da liberdade,
responsabilidade e dignidade humanas, as pesquisas sobre genética para aplicação
médica ou criminológica não devem ser descartadas ou impedidas.
Trata-se de uma tecnologia de altíssimo potencial para o mal e para o bem, de modo
que os povos que virarem as costas para o seu estudo criteriosamente pautado pela
ética, correm o risco de serem surpreendidos pelo seu uso descontrolado por parte
de pessoas mal intencionadas e pouco ou nada preocupadas com princípios
éticos.176
O aprimoramento dos conhecimentos ligados à genética traz em si terríveis riscos,
sempre que não for pautado por princípios éticos e uma visão antropológica que
preserve a dignidade humana. No entanto, não se deve satanizar a genética e
somente antever em seu desenvolvimento conseqüências catastróficas para a
humanidade. A precaução é sempre uma virtude, mas o medo irracional nunca foi
um bom conselheiro.
É preciso regular os potenciais da genética, mas não se pode crer que um
instrumento como esse somente possa ser utilizado com fins egoístas e destrutivos.
Mister se faz dar algum crédito à capacidade humana para o altruísmo e o
sentimento comunitário, que podem tornar os potenciais dessa ciência altamente
produtivos para o bem da humanidade.177
A mesma ambivalência pode ser constatada num dos fatores capazes de fomentar
uma aplicação até mesmo genocida e excludente do conhecimento genético, qual
seja, a globalização.
175 PASCUAL, Fernando. Op. Cit., p. 42. 176 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 429. 177 Neste sentido: WATSON, James D., BERRY, Andrew. Op. cit., p. 426.
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Embora pululem por todo o mundo os chamados “movimentos antiglobalização”,
sabe-se o quanto quixotesco é ser “contra a globalização”. Essa postura assemelha-
se a ser contra, por exemplo, uma tempestade. A globalização é um fenômeno
inevitável no atual estágio da humanidade, de modo que a questão não está em
impedi-la, mas em controlar seus processos “selvagens” e converte-los “de ameaça
em oportunidade para a humanidade”.178
Assim como a genética pode ser usada com vistas ao sentimento de solidariedade e
solicitude para com o outro, também a globalização pode ser um elemento de
aproximação e de união da humanidade em torno de um projeto solidário. Ela
permite uma visão do “outro” que jamais existiu. Desde que esse “outro” em face do
qual nos colocamos seja tomado como sujeito de nossas obrigações éticas e não
como inimigo ou obstáculo, a globalização pode produzir bons frutos.
Nas palavras de Bauman179:
Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela primeira vez na história da humanidade o auto – interesse e os princípios éticos de respeito e atenção mútuos de todos os seres humanos apontam na mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização pode até transformar-se em benção: a ‘humanidade’ nunca teve uma oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance será aproveitada antes que se perca, é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende de nós.
Enfim, uma lição deve ser aprendida por todos, em especial com a questão dos
errôneos fundamentos de uma Criminologia Genética determinista, a reviver um
lombrosianismo, cujo valor é atualmente somente histórico:
Um dos cuidados que devemos sempre tomar, cientes de que errar é inevitável em
nossa condição humana, é, pelo menos, evitar repetir os erros passados, ainda que
sob novas roupagens.
178 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 94. 179 Op. Cit., p. 95.
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Afinal, como bem lembrava Paulo César da Silva em sua fala final na Reunião do
Grupo de Pesquisas de Bioética e Biodireito da Unisal180: “o erro sempre é velho, só
a verdade é nova”.
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INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:
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