a neuropatia trigeminal traumática...
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A neuropatia trigeminal traumática dolorosa
perfil do paciente
em clínicas
especializadas em
dor orofacial aponta para uma
prevalência crescente das
neuropatias traumáticas dolorosas
que afetam o nervo trigémeo. Este
aumento da prevalência pode
dever-se, em parte, ao carácter cada
vez mais invasivo da odontologia, à
melhoria da sensibilização dos
profissionais de saúde e do
diagnóstico dos problemas dessa
natureza e, possivelmente, ao maior
risco atual de acidentes de viação e
de altercações violentas. Os indícios
de que a neuropatia trigeminal
traumática é particularmente
resistente ao tratamento
farmacológico padrão1 sugerem a
necessidade de investigação
adicional, que, por sua vez, exigirá
uma definição clara do fenótipo
clínico e a sua adoção por parte dos
investigadores. Os autores têm
vindo a socorrer-se de uma série de
termos com critérios ligeiramente
diferentes, incluindo, anestesia
dolorosa, dor facial atípica,
odontalgia atípica e dor fantasma,
impossibilitando meta-análises e a
comparação de dados.
Classificação
A questão da classificação da dor
neuropática continua a ser
controversa. Os cientistas adotaram
abordagens diferentes, sendo que
alguns favorecem abordagens
baseadas em mecanismos e outros
preferem abordagens ontológicas.
Este artigo representa o
pensamento de um destes últimos
grupos. O trabalho desenvolvido
por dois grupos2,3 conduziu a uma
caracterização mais precisa do
fenótipo clínico daquilo que se
descreve como «neuropatia
trigeminal traumática dolorosa»
(NTTD).2 Os critérios sugeridos
para a NTTD2 baseiam-se em
abordagens de classificação aceites
para a dor neuropática.4 Em 2013, a
International Headache Society
(IHS, na sigla inglesa) adotou a
terminologia e os critérios
propostos2, abandonando o termo
histórico «anestesia dolorosa».5 A
classificação da NTTD ainda não
obteve aceitação generalizada,
esperando-se a introdução de
alterações com o avançar do debate.
Além disso, a classificação da IHS
está na fase beta, aguardando a
recolha de dados. Em específico,
atualmente, a classificação refere-se
apenas à dor após ferimentos no
ramo periférico do nervo. Será
necessário abordar a dor após
lesões físicas no gânglio trigeminal
(ganglionopatia) e no ramo central
(raiz do nervo trigémeo). Não
obstante, esta classificação serve de
base para uma investigação
coerente e a recolha de dados no
futuro. Uma característica chave da
NTTD é o facto de o seu fator
iniciador ser uma dor ardente e/ou
lancinante contínua numa área com
um historial evidente de trauma.
Além disso, as modalidades
neurofisiológicas, psicofísicas e de
imagiologia devem sustentar as
lesões do sistema somatossensorial.
Clinicamente, pode haver sinais e
sintomas neurológicos positivos
e/ou negativos, que são o elemento
distintivo da NTTD.2 À semelhança
de outras neuropatias periféricas
dolorosas, o bloqueio anestésico
local na zona dolorosa apresenta
resultados ambíguos, não sendo
plenamente eficaz na eliminação da
dor.
O perfil sensorial
quantitativo dos pacientes com
NTTD é uma mistura de ganho e
perda sensorial.6,7 Normalmente,
não há diferenças entre pacientes
com NTTD e indivíduos de
controlo nos limiares de deteção de
calor6, sendo que um estudo
aprofundado com pacientes com
NTTD não identificou diferenças
em limiares de deteção de calor e
de deteção de calor doloroso.7 Há
estudos dos reflexos do tronco
cerebral em caso de NTTD que
demonstram sistematicamente
reflexos de pestanejo anormais,8
sugerindo uma disfunção dos
aferentes de entrada ou um efeito
amortecedor ao nível do tronco
cerebral.
Eventos iniciadores
É interessante referir que a
atividade odontológica de rotina
envolve, frequentemente, a lesão de
pequenos aferentes sensoriais. As
extrações dentárias, juntamente
com os procedimentos cirúrgicos e
tratamentos do canal radicular,
podem provocar lesões neurais. O
recurso a agentes analgésicos locais
é praticamente generalizado, tendo
sido notificados casos, ainda que
raros, de neuropatia subsequente a
lesões provocadas diretamente pela
agulha ou pelo anestésico local.
Provavelmente, as
intervenções odontológicas estão na
base da maioria dos eventos que
provocam NTTD. Os implantes
dentários, cada vez mais populares,
comportam o risco de provocar
trauma nos nervos adjacentes. A
neuropatia sensorial e a dor
neuropática são complicações
neurais comuns subsequentes à
inserção do implante e à lesão dos
nervos adjacentes.9 A incidência da
neuropatia varia entre 0,6 % e
36 %,10, mas a incidência da NTTD
permanece pouca clara. Dado que
os implantes são colocados em osso
esponjoso, escassamente inervado,
coloca-se a questão de saber o local
exato de origem da dor
neuropática. Contudo, os dados
sugerem uma importante inervação
peri-implante,11 pelo que,
teoricamente, a dor neuropática
poderá ter origem aí.
Adicionalmente, a inflamação
perineural, na ausência de lesão
direta, poderá provocar lesão
secundária do nervo devido à
acumulação de pressão, resultando
em neuropatia. Esta possibilidade é
particularmente pertinente nos
espaços fechados à volta do nervo
trigémeo. Podem ser obtidos dados
indiretos sobre este tipo de lesão
trigeminal provocada por
inflamação a partir de experiências
em animais.12
A extração dos terceiros
molares inferiores acarreta o risco
de lesão do nervo alveolar inferior,
que passa perto das extremidades
da raiz, e do nervo lingual, que
passa medial em relação ao terceiro
molar. Verificada em 0,3% a 1% dos
casos, a neuropatia pós-extração
poderá permanecer nesses nervos.13
A incidência da NTTD é pouco
clara, mas esta doença parece ser
rara: o seguimento de mais de 1900
pacientes não identificou casos de
dor neuropática.14 A neuropatia não
dolorosa é mais rara no nervo
lingual do que no nervo alveolar
inferior,15 mas com técnicas de
extração que envolvam a retração
do nervo, a incidência pode atingir
os 4%.16 Contudo, a disestesia da
língua pode persistir num pequeno
grupo de pacientes (0,5%).16,17 Entre
os pacientes que procuraram
tratamento da neuropatia
trigeminal relacionada com a
extração dentária, cerca de 70%
apresentava dor comórbida.18
Embora seja evidente que existem
casos de neuropatia dolorosa
relacionada com a extração dentária
dos nervos alveolar inferior e
lingual, estes são extremamente
raros.
O tratamento do canal
radicular ou endodôntico envolve a
remoção do tecido no interior do
dente, ricamente inervado, e
provoca axotomia ao nível do ápice
radicular. Este é, provavelmente, o
modelo mais padronizado de lesão
iatrogénica de nervos. Em 3% a 13%
dos pacientes, verifica-se dor
persistente após tratamentos
endodônticos bem-sucedidos.19
Uma consequência da remoção de
polpa dentária e da obturação do
canal é a formação de um grupo
desorganizado de axónios que
crescem e se ramificam, com
algumas características em comum
com os neuromas.20 Este processo
pode estar na origem da dor
neuropática.
Após uma lesão
considerável dos ramos do nervo
trigémeo, como, por exemplo,
esmagamento provocado por
fraturas dos ossos faciais,
desenvolve-se dor crónica em
aproximadamente 3% a 5% dos
pacientes.21,22
Fatores de risco
Entre os fatores significativamente
associados à NTTD após o
tratamento do canal radicular estão
uma história clínica de tratamento
doloroso da região orofacial e o
sexo feminino.23 Adicionalmente,
são indicadores significativos da
NTTD a duração prolongada da
dor pré-operatória, sintomas pré-
operatórios no dente que exijam um
canal radicular e problemas
anteriores de dor crónica. Os
parâmetros pré-operatórios
sugerem que é necessária a
ocorrência de alguma forma de
sensibilização para aumentar a
probabilidade de dor crónica, ao
passo que a presença de dor
comórbida sugere uma
predisposição do paciente para o
desenvolvimento de dor crónica.
Os efeitos da dor contínua sobre o
sistema nervoso poderão aumentar
a tendência para desenvolver
outras síndromes de dor.
Continuam por esclarecer
os motivos exatos pelos quais
alguns pacientes desenvolvem dor
persistente após essa lesão leve do
nervo. Uma explicação possível é
uma falha do sistema endógeno
modulador da dor. A modulação
da dor é diferente em pacientes
com diversos quadros de dor
crónica24,25 e alguns especialistas
sugerem que o sistema modulador
da dor pode afetar a suscetibilidade
à dor crónica.26,27 Recorrendo ao
paradigma experimental de
modulação da dor condicionada
(MDC) para analisar a eficácia da
inibição da dor, os estudos do
nosso laboratório (dados não
publicados) demonstram que os
pacientes com NTTD após o
tratamento do canal radicular
apresentam uma menor MDC em
comparação com os indivíduos de
controlo saudáveis. Estes estudos
sugerem que a medição da MDC no
pré-operatório poderá ajudar a
identificar pacientes «em risco» de
desenvolvimento de dor pós-
traumática crónica.
Com efeito, os pacientes
submetidos a toracotomia que
apresentem, no pré-operatório,
modulação da dor alterada são
mais suscetíveis de desenvolver dor
pós-cirúrgica crónica.28 Além disso,
os fármacos que aumentam a
inibição descendente poderão ser
particularmente úteis em pacientes
com MDC reduzida, sendo que a
MDC menos eficiente em pacientes
com neuropatia diabética dolorosa
está associada a um maior benefício
do tratamento com duloxetina.29
Verificámos igualmente
que o desenvolvimento da NTTD
neste grupo de pacientes em risco
se encontrava significativamente
associado a uma série de
polimorfismos de nucleotídio único
(SNP). A modulação da dor em
indivíduos de controlo saudáveis
(sem dor) demonstrou uma
associação clara com haplotipos
tanto no gene GCH1 como COMT
designados haplotipos «baixa
sensibilidade à dor» (ou
«protetores») (dados não
publicados). Globalmente, estes
resultados indicam uma relação
entre o genótipo que está
provavelmente envolvido no
fenótipo clínico composto por MDC
reduzida e um risco acrescido de
desenvolvimento de NTTD.
Em síntese, a incidência
de NTTD do nervo trigémeo é
reduzida, entre 3% e 5%, não
parecendo estar diretamente
relacionada com a gravidade da
lesão do nervo. Contudo, os dados
de estudos em animais sugerem
que a natureza da lesão poderá
afetar significativamente a
incidência de NTTD,30 mas seriam
necessários estudos clínicos de
verificação. Esta baixa incidência
compara com aproximadamente 5%
a 17% em outras zonas corporais,31
o que sugere que o nervo trigémeo
reage de forma diferente à lesão em
comparação com os nervos
espinhais.
Será o nervo trigémeo
diferente?
O nervo trigémeo parece apresentar
síndromes de dor únicas,
desconhecidas em outras regiões
anatómicas, nomeadamente,
nevralgia do trigémeo, enxaquecas
e cefaleias trigemino-autonómicas.
Este nervo parece também reagir de
forma diferente ao trauma (com
menos atividade eletrofisiológica ao
nível do neuroma),32 apresenta uma
incidência menor de dor
neuropática21 e não demonstra
relações simpático-sensoriais ao
nível do gânglio da raiz dorsal, ao
contrário das observadas no nervo
ciático.33,34 Adicionalmente,
verifica-se uma incidência
significativamente menor de outras
síndromes dolorosas,
nomeadamente, síndrome dolorosa
regional complexa e neuropatia
diabética dolorosa.
Entre os fatores que
poderão estar envolvidos
encontram-se o fornecimento rico
de sangue à cabeça e ao pescoço.
Além disso, o nervo trigémeo é o
único nervo que apresenta
desaferenciação espontânea: esta
ocorre no local do dente decíduo
que é esfoliado em preparação para
a erupção do dente permanente
com a sua nova fonte de inervação.
Imagiologia
Em dor neuropática, a imagiologia
permitiu a identificação de áreas do
cérebro envolvidas em processos
sensoriais, emocionais, cognitivos e
modulatórios.35 A dor neuropática
resultante da lesão de um nervo
pode provocar a redução do
volume da substância cinzenta
talâmica contralateral36, bem como
a reorganização cortical.37 As
alterações na substância cinzenta
talâmica foram positivamente
correlacionadas com o período de
tempo decorrido após a lesão e
implicam o tálamo na NTTD.
Num paciente com
NTTD,38 uma leve estimulação
mecânica e térmica (45 °C) ativou o
núcleo do trato espinhal do nervo
trigémeo e o tálamo. A estimulação
mecânica provocou uma ativação
mais rostral do núcleo do trato
espinhal do nervo trigémeo do que
os estímulos térmicos. Este
resultado interessante aponta para
o controlo diferencial das
características da dor neuropática,
encontrando-se em consonância
com outros estudos.39
Frequentemente, as
alterações da espessura cortical em
pacientes com dor neuropática
trigeminal colocalizam-se e
correlacionam-se com ativações
funcionais induzidas por alodinia
experimental. As alterações da
espessura cortical sugerem uma
plasticidade dinâmica, induzida
funcionalmente, do cérebro.40 As
alterações estruturais
correlacionam-se com a duração da
dor, a idade de início, a intensidade
da dor e a atividade cortical.
O processamento sensorial em
pacientes com dor neuropática
trigeminal está associado a padrões
de ativação distintos consistentes
com sensibilização dentro e fora da
via sensorial primária,41 sendo que
tanto o circuito sensorial como o
circuito emocional apresentam
alterações. Os dados apontam para
a possibilidade de identificação de
um padrão de diagnóstico da dor
neuropática.40,41 Adicionalmente,
estes dados e resultados relativos a
características de controlo
diferencial da dor orientar para
alvos específicos aplicáveis a
intervenções terapêuticas.
Tratamento da NTTD
A gestão farmacológica da NTTD
baseia-se em protocolos
farmacológicos padrão
recomendados para outras
síndromes de dor neuropática,
nomeadamente, nevralgia pós-
herpética (NPH) e neuropatia
diabética dolorosa (NDD).42 Esses
protocolos recorrem, em grande
medida, a antidepressivos
tricíclicos, inibidores de recaptação
de serotonina e noradrenalina e aos
mais recentes antiepiléticos, a
gabapentina e a pregabalina. As
taxas de resposta a esses fármacos
para NPH, NDD e neuropatias
espinhais traumáticas dolorosas
situam-se entre 20% e 40%,43 sendo,
contudo, mais baixas no caso da
NTTD, aproximadamente 10%.1
Desconhece-se o motivo por que a
taxa de resposta no caso da NTTD é
inferior, mas poderá estar
relacionado com a origem
traumática versus a origem
patológica, como é o caso da NDD e
PH. Seguramente, estes valores
sublinham a necessidade de
fármacos novos e melhores contra a
dor neuropática. Além disso, o
tratamento multimodal poderá
proporcionar melhores resultados,
ainda que uma meta-análise não
tenha demonstrado um efeito
significativo do tratamento
cognitivo-comportamental sobre a
intensidade da dor e medidas de
qualidade de vida em dor
neuropática crónica.44
Conclusões
Com a criação de um fenótipo
clínico mais claro e o avanço das
capacidades em termos
neurofisiológicos, de imagiologia e
de determinação de genótipos,
podemos hoje estudar, de forma
fidedigna, os fatores perpetuantes e
de risco envolvidos na NTTD e, em
última análise, apresentar melhores
opções de prevenção e gestão.
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