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COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA
PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA
MAURÍCIO MOSENA
Passo Fundo, outubro de 2015
COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL - IMED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA
PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA
MAURÍCIO MOSENA
Dissertação submetida ao Curso
de Mestrado em Direito do
Complexo de Ensino Superior
Meridional - IMED, como
requisito parcial à obtenção do
Título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor José Renato Gaziero Cella
Passo Fundo, outubro de 2015
CIP – Catalogação na Publicação
M898a Mosena, Maurício
Autoprecedente como regra de razão prática particular de racionalidade jurídica / Maurício Mosena. – 2015.
151 f. : il. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Meridional – IMED, Passo Fundo, 2015.
Orientador: Professor Doutor José Renato Gaziero Cella.
1. Direito civil. 2. Decisão judicial. 3. Poder judiciário. I.Cella, José Renato Gaziero, orientador. II. Título.
CDU: 347.955(81)
Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857
3
4
DEDICATÓRIA
À minha família, que preenche o sentido da minha existência.
AGRADECIMENTOS
A gratidão é um comportamento que valorizo muito. Por essa razão, se por acaso
alguém for esquecido, desde já peço desculpas. Mas saiba que se de alguma
forma colaboraste para o presente trabalho, sinta-se agraciado.
Primeiramente, agradeço à Deus, em quem creio, não da mesma forma que
ontem, mas sempre de uma forma sincera.
Em segundo lugar, quero agradecer à minha esposa, Patrícia, pela paciência e
ajuda nessa empresa que resulta no presente trabalho. Seu apoio foi uma das
maiores motivações para a conclusão dessa pesquisa.
Do mesmo modo, mas com ar de pedido de desculpas, aos meus filhos, Teodoro
e Rebeca, pela ausência nesses últimos dois anos, anos que nunca mais voltarão
na vida de vocês. Mas compensarei.
No âmbito acadêmico, meu agradecimento especial é direcionado ao meu
orientador, Dr. José Renato Gaziero Cella, quem rompeu os horizontes do meu
entendimento sobre o direito e a racionalidade.
Do mesmo modo, não poderia deixar de agradecer à Faculdade Meridional –
IMED pela oportunidade de fazer esse Mestrado “em casa”, agradecimento que
também é estendido aos demais professores do PPGD e aos colegas de Curso,
em especial Cassiano.
Também gostaria de agradecer aos meus colegas de escritório e da Escola de
Direito pelos ouvidos para os discursos em defesa da ideia dessa dissertação, e
que sempre reverberaram em acréscimos de significado relevante.
Por fim, agradeço ao colega de IMED Fahad pelas explicações de lógica
computacional.
EPÍGRAFE
[...] quanto maior a sabedoria,
maior o sofrimento;
e quanto maior o conhecimento,
maior o desgosto.
[Eclesiastes]
RESUMO
No âmbito da Linha de Pesquisa “Fundamentos do Direito e da Democracia”, a
presente dissertação, a partir do método hipotético-dedutivo, investiga a
racionalidade jurídica das decisões judiciais em contraste com a
discricionariedade dos órgãos julgadores, largamente debatida pela Teoria do
direito. Em razão das diferenças filosóficas e conceituais do direito, a sua
aplicação e, consequentemente da discricionariedade nos casos em que o
sistema normativo não provê solução segura, é inviável definir um critério
universal de racionalidade para aferição da correção das decisões judiciais.
Entretanto, se consideradas as razões de um órgão julgador a partir da estrutura
formal do seu raciocínio em determinado caso, pode-se cogitar uma regra de
razão prática particular desse julgador a esses casos. Essa regra seria capaz de
aferir, de forma descritiva e analítica, a coerência das decisões desse mesmo
julgador em casos análogos. Desse modo, a discricionariedade das decisões, que
debilitam preceitos fundamentais de segurança jurídica e de igualdade, pode ser
controlada, ou ao menos identificada em um determinado conjunto de decisões,
pela técnica do autoprecedente. Com o incremento das Tecnologias de
Informação e de Comunicação, e diante da possibilidade de criação de uma regra
de razão prática particular a um órgão julgador para casos determinados, um
sistema eletrônico informático, que se utiliza de programação lógica, pode ser
capaz de aferir a racionalidade do órgão julgador a partir da sua própria regra de
razão prática. Essa possibilidade seria uma ferramenta útil na garantia dos
valores democráticos da separação das funções e da imparcialidade dos juízes e
tribunais na aplicação do direito a casos análogos, o que contribui no
aprimoramento do Estado democrático de direito.
Palavras-chave: Decisão Judicial. Racionalidade. Lógica Jurídica.
Autoprecedente. Regra de Razão Prática Particular. Sistema Eletrônico de
Aferição.
ABSTRACT
Inside the Research Line “Fundaments of Law in Democracy”, this essay, through
the hypothetical-deductive method, investigates the juridical rationality of the
decisions in contrast with the discretion from judging institutions, largely debated
by Law’s Theory. Because of the philosophical and conceptual differences in Law,
its application, and, consequently, its discretion in cases in which its normative
system has no solution, it is impracticable to define a universal criteria of rationality
in order to check the accuracy of juridical decisions. However, if the reasons are
considered in a judging institution from a formal structure of its reasoning in a
case, a practical reasoning rule can be thought in particular to this specific judge in
these cases. This rule would be able to check, analytically, the coherence of
decisions from this specific judge in analog cases. In this way, the discretion from
decisions, which hurt these fundamental norms of juridical security and equality,
can be controlled, or, at least, identified in a determined group of decisions, its
autoprecedent. With the technological increase of Information and Communication
Technologies, and facing the possibility of the creation of a rule to particular
practical reasoning to a specific judging institution for a certain fact, an informatics
system, which uses logical programming, may be able to check the rationality from
the judging institution from its own rule of practical reasoning. This possibility
would be a useful tool in granting democratic values of the separation of powers
and the impartiality of judges and courts in the application of the law to analog
cases, what praises the Democratic State of Law itself.
Key-words: Juridical Decision. Rationality. Juridical Logic. Autoprecedent. Rule of
Practical Reasoning. Electronic System of Checking.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA Nº 1 Habeas Corpus nº 75.338/RJ
FIGURA Nº 2 Habeas Corpus nº 80.949/RJ
FIGURA Nº 3 Recurso Extraordinário nº 390.840/MG
FIGURA Nº 4 Recurso Extraordinário nº 363.852/MG
......
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................1
CAPÍTULO 1.........................................................................................4
TEORIA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL...................................4
1.1 POSITIVISMO, DEBATE HART-DWORKIN E DECISÃO JUDICIAL...............8 1.2 A TESE DA "ÚNICA DECISÃO CERTA" DE DWORKIN.................................18 1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DECISÃO JUDICIAL..................................23 1.4 REALISMO JURÍDICO NORTE AMERICANO E DECISÃO JUDICIAL.........33
CAPÍTULO 2.......................................................................................45
LÓGICA JURÍDICA E PRECEDENTES............................................45
2.1 LÓGICA JURÍDICA.........................................................................................46 2.1.1 LÓGICAS ANALÍTICA E DIALÉTICA ....................................................................46 2.1.2 LÓGICA JURÍDICA ANALÍTICA ...........................................................................48 2.1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..............................................................................61 2.2 PRECEDENTES..............................................................................................72 2.2.1 PRECEDENTES, "COMMON LAW" E "STARE DECISIS" .......................................72 2.2.2 PRECEDENTES, SEGURANÇA JURÍDICA E IGUALDADE........................................79
CAPÍTULO 3.......................................................................................89
AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA.............................89
3.1 DECISÕES COERENTES...............................................................................91 3.2 AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRATICA........................96 3.2.1 CASOS DE INCOERÊNCIA ANALISADOS PELA TÉCNICA DO AUTOPRECEDENTE102 3.3 SISTEMA ELETRÔNICO DE AFERIÇÃO DO AUTOPRECEDENTE.........117
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................125
REFERÊNCIAS................................................................................131
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa teve como objeto a investigação da racionalidade
jurídica utilizada pelos órgãos julgadores nas decisões proferidas na práxis
cotidiana dos tribunais. Essa proposta adere à Linha de Pesquisa nº 1 do
Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Direito do Complexo de Ensino
Superior Meridional, denominada “Fundamentos do Direito e da Democracia”.
Justifica-se no fato de as decisões judicias exercerem papel relevante no
contexto democrático brasileiro, por vezes como ferramenta propícia para a
manutenção dos ideais democráticos expressos na Carta Política Constitucional
brasileira, mas também como instrumentos de ofensa do princípio da separação
das funções, da segurança jurídica e da igualdade. Pretende-se, portanto,
investigar a racionalidade desse instrumento democrático pela perspectiva de
tais axiomas, conquistados nas revoluções liberais a grande custo, e que são
fundantes do Contrato Social que estrutura a sociedade moderna.
Como objetivo, partindo de uma visão positivista do direito, a pesquisa
buscou resgatar a racionalidade jurídica como regra prática da decisão judicial, e
isso para minimizar a discricionariedade visível das decisões judiciais. Não de
uma forma generalista, como as teorias lógicas já tentaram fazê-lo, mas uma
racionalidade aplicada de uma forma particular, considerada a regra de razão
declarada na argumentação jurídica de cada julgador.
Para tanto, objetiva-se, especificamente, a) demonstrar que a teoria do
direito não foi capaz de conter a discricionariedade exercida pelos órgãos
julgadores ao proferirem as decisões judiciais; b) investigar os fundamentos da
racionalidade que deu origem ao estudo da lógica jurídica, tanto do prisma
analítico quanto dialético, além de sua conexão com a teoria dos precedentes e,
enfim; c) propor a possibilidade de utilização de uma regra de razão prática, que
utilize lógica formal, para aferição da racionalidade das decisões, e se isso
poderia ser realizado por um sistema eletrônico computacional.
A atuação dos órgãos jurisdicionais brasileiros não tem encontrado na
sua prestação jurisdicional a legitimidade que o Estado necessita para o exercício
dessa função essencial. O grande volume de processos e a falta de infraestrutura
2
organizacional e pessoal tem sido alvo de críticas, tanto no seu aspecto
quantitativo quanto qualitativo. Além disso, a doutrina de “favores” que caracteriza
as relações de poder no território brasileiro, somada à influência do poder
econômico nas decisões judiciais, justifica a preocupação de controlar as
decisões judiciais naquilo que não feriria a própria autonomia que essa função
estatal exige. Daí por que a lógica jurídica fornece conceitos e métodos capazes
de aferir essa racionalidade. A racionalidade jurídica, portanto, combate a
discricionariedade judicial, por sua vez ofensora da segurança jurídica e da
igualdade de tratamento dos indivíduos, problemática essa que acaba
potencializada pelo assustador número de decisões que são proferidas
diariamente.
A partir desse contexto, poderia existir uma regra de razão prática
formal para aferir a racionalidade das decisões de um órgão julgador?
Utilizando a coerência como parâmetro aferidor de racionalidade, cria-
se uma hipótese de utilização de uma regra de razão prática baseada no
precedente horizontal historicamente desenvolvido pelo próprio órgão julgador,
portanto, uma regra formal de aferição de coerência e racionalidade a partir do
autoprecedente de quem profere essas decisões judiciais.
Principia–se, no Capítulo 1, investigando quais foram os contornos do
debate dentro da teoria do direito envolvendo a aplicação do direito por meio das
decisões judiciais a partir do positivismo e perpassando pelo debate entre Hart e
Dworkin, pela correlação entre a argumentação jurídica e a decisão judicial e, ao
fim, a visão do realismo norte-americano na formação da convicção do julgador
ao proferir a decisão judicial.
No Capítulo 2, observam-se quais são as considerações que definem a
lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da
lógica tradicional aristotélica, e sua diferenciação em analítica e dialética, analisa-
se quais são as considerações de racionalidade jurídica apresentadas pelos
lógicos do direito já tendo a lógica clássica como subjacente, e especialmente sua
correlação com os precedentes. Por essa razão, também são observados alguns
institutos jurídicos básicos da teoria dos precedentes.
3
O Capítulo 3, por sua vez, dedica-se à apresentação da técnica do
autoprecedente como regra de razão prática para aferição da racionalidade das
decisões judiciais de um mesmo órgão. A fim de demonstrar a incoerência entre
decisões de um mesmo órgão julgador, são analisados alguns casos da Suprema
Corte brasileira, cujos raciocínios jurídicos são estruturados para aferição da
racionalidade a partir da utilização de lógica clássica. Por fim, mencionam-se
alguns projetos que cogitam a utilização de sistemas eletrônicos computacionais
lógicos para prescrever decisões judiciais, razão por que se cogita a utilização de
um sistema para aferição do autoprecedente como da regra de razão prática,
especialmente diante do volume de processos que incham os cartórios dos
tribunais brasileiros.
A abordagem metodológica ocorrerá de forma indutiva e hipotético-
dedutiva, cuja hipótese de utilização de uma regra de razão prática da técnica do
autoprecedente será suportada por referencial teórico, mas também utilizará de
forma empírica um conjunto de decisões para demonstração da justificativa da
hipótese. Para tanto, a técnica de pesquisa para a fundamentação filosófica e
teórica dos dois primeiros capítulos será bibliográfica. Já quanto ao terceiro
capítulo, em que será proposta a regra de razão prática do autoprecedente, a
estratégia técnica pode ser considerada experimental.
CAPÍTULO 1
1 TEORIA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL
A relação entre a razão e as decisões judiciais já despertou muitos
debates dentro da teoria do direito. Sem dúvida, isso encontra justificativa na
forma como definimos o direito, ou, ao menos, como o identificamos em dado
momento histórico e em um determinado lugar.
Pode-se afirmar que o direito vigente em países modernos funda-se em
um sistema de normas jurídicas, cujo conteúdo é todo aquele que coordena e
regula a complexidade social, sendo o papel daquelas dispor de forma geral e
abstrata quais as condutas socialmente esperadas, sob pena de o seu
descumprimento gerar consequências também previstas nesse sistema de
normas. Por óbvio, essa é uma visão positivista do direito, mas que não pode ser
entendida de forma incompleta, pois se admite dentro do conceito de normas
jurídicas a existência das espécies regras e princípios, conceito amplo este
geralmente aceito pela teoria do direito, como dotadas de força normativa.
Se então o direito pré-determina as condutas socialmente aceitas, o
descumprimento de alguma dessas condutas dispostas nas normas pode gerar,
de um lado, resistência por parte de alguém e, de outro lado, pretensão por parte
de outrem. É possível, ainda, que duas partes tenham pretensão sobre um
mesmo objeto, o que gerará pretensão e resistência recíprocas.
A administração da justiça foi monopolizada pelo Estado. Essa
administração deve ser vista a responsável pela aplicação do direito vigente. Em
sendo o Estado uma ficção jurídica e social que não se representa de per si no
mundo natural, os conflitos sociais exigem dos juízes, órgãos e prepostos
investidos de poder pelo próprio Estado (constituinte), soluções que digam de
quem pertence o direito objeto do impasse, função a qual chamamos de
jurisdição.
Diante da constatação de que o direito detém a responsabilidade por
atribuir razão a uma das partes em conflito, ou qualificar como verdadeiras as
5
suas alegações, pergunta-se: como saber se a decisão proferida pelo juiz está
correta, ou conforme o direito vigente?
Esse questionamento nada mais é que uma das facetas
representativas do tormento humano de prever o futuro e escapar do inesperado,
aflição essa constatada por Aristóteles, o que, no caso das decisões judiciais,
está na tentativa de obter antevisão da postura dos juízes, ou como esse
fenômeno jurídico pode ser controlado1.
Tal insegurança justifica o porquê de as decisões judiciais sempre
gerarem debates na teoria do direito. A atividade de julgar envolve um ato
humano de decidir conflitos. Por essa razão, grande parte da discussão sobre o
acerto ou o erro das decisões judiciais envolve a subjetividade dos protagonistas,
daqueles que proferem tais decisões. No caso, os juízes e os tribunais2.
Entretanto, como já referido nas linhas introdutórias, não é o estudo
dessa subjetividade, antes própria da psicanálise, que se passará a discorrer.
Enquanto essa área se debruça às questões motivacionais e intrínsecas que
justificariam a tomada de decisões pelos juízes, e que já se afirmou impossíveis
de afastar dos sentimentos afetivos e paixões daqueles que as proferem3, a
investigação que se inicia no presente capítulo tem como desafio demonstrar que
as empreitadas das teorias do direito na sua aplicação aos casos concretos não
conseguiram evitar aquilo que se conhece como discricionariedade judicial ou
voluntarismo dos julgadores, seja na justificação interna na passagem das
premissas ao dispositivo de uma sentença, seja na escolha das premissas maior
e menor que integrarão essa dedução na forma de silogismo, portanto, na
justificação externa.
Essa discricionariedade, presente nos dias atuais em razão da atuação
pró-ativa dos tribunais e da relativização das leis positivadas pelos princípios não
1 Cf. CELLA, José R. G. Auto-precedente e argumentação racional. In: Curso de Extensão
Razão x violência: o espaço da racionalidade num mundo intolerante. Curitiba: PUC, 2001. 2 Cf. MONTEIRO, Cláudia Sevilha. Fundamentos para uma Teoria da Decisão Judicial. In:
Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI/PUC Minas Gerais. Belo Horizonte: 2007, p, 6105-6107.
3 PERELMAN, Chaïn. Considerações sobre uma lógica jurídica. Tradução de Cássio Scarpinella Bueno. In: PERELMAN, Chïn. Ethique et Droit. Editions de l’Universite de Bruxelles, 1990, p. 09.
6
escritos, não é consequência do acaso, mas, sim, de uma tentativa histórica de
racionalizar logicamente a decisão judicial a partir de uma perspectiva analítica,
ou ao menos, de aplicar uma razão prática à racionalidade judiciária das
decisões, mas que, no fim das contas, acabou recebendo a culpa pelas tragédias
experimentadas na Segunda Grande Guerra.
Muitos são os motivos que justificam o fenômeno da discricionariedade
judicial. A omissão judiciária pós-revolucionária nos oitocentos, em que os juízes
eram entendidos como bocas-da-lei e nas hipóteses de omissão normativa que
tinham o legislativo como órgão consultivo. O positivismo imperativista, em que já
não se podia optar pelo non liquet anterior e a aplicação do direito se equiparou a
uma dedução mecânica, em sua fase mais agressiva, graças ao formalismo,
autorizou o cometimento dos crimes pelo Estado nacional-socialista alemão. E o
momento posterior às grandes guerras, em que a norma positivada passa a ser
relativizada pelo reconhecimento de valores que devem ser considerados,
buscados e encontrados no direito vigente por meio das decisões judiciais, como
liberdade e justiça, os quais acabam tendo a força necessária para relativizar a
força do texto normativo e do precedente histórico.4
Assim, a questão envolvendo a atuação dos juízes na efetivação dos
direitos pleiteados pelos indivíduos mostra-se, no mínimo, fundamental para o
equilíbrio democrático do Estado, dado o papel basilar que o direito exerce sobre
a legitimação das instituições públicas. Negar a importância das decisões dos
juízes à democracia, ou mesmo minimizá-la, seria o mesmo que negar vigência
às normas legiferadas aos casos concretos, deixando-as apenas no limbo da
metafísica ou da hipótese normativa.
Mais que isso, a decisão dos juízes mostra-se fundamental para a
legitimação do próprio sistema jurídico então sustentado por normas positivadas,
4 Cf. PERELMAN, Chaïn. Lógica jurídica. Nova Retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 185.
7
vez que sua eficácia no plano material está intimamente ligada ao plano de
concretização de seus enunciados.5
O fato é que a teoria do direito ainda não possui dentro de sua
comunidade científica um consenso quanto às razões que devem ser utilizadas
para determinar o acerto de uma decisão judicial. Isso, entretanto, não significa
que as decisões não obedeçam a uma logicidade.
Por exemplo, diferentemente da posição do positivismo, que relegava
em grande parte a escolha das premissas a ser utilizadas em uma decisão judicial
ao próprio julgador, os adeptos das teorias da argumentação, apesar de terem
buscado restringir o espectro de discricionariedade para justificar decisões
coerentes, não obtiveram sucesso que esperavam na determinação do caminho
argumentativo que uma decisão deve perpassar para ser considerada justa
(Perelman), correta (Dworkin) ou razoável (Maccormick).
Diante dessa problemática e buscando organizar as próximas linhas,
visitar-se-á alguns dos autores fundamentais do positivismo, da argumentação
jurídica e do realismo jurídico a fim de demonstrar que, inevitavelmente, mesmo
após a evolução do pensamento jurídico, ainda assim há espaço para o exercício
de discricionariedade, ou voluntarismo, pelos juízes ao proferir suas decisões,
espaço esse que a teoria do direito ainda não conseguiu preencher.
Essa discricionariedade, diferentemente da divisão realizada por
Dworkin em forte ou fraca, para os fins aqui propostos será vista de uma forma
muito mais simples. A discricionariedade que será debatida no presente capítulo,
frise-se, para os fins deste estudo, será considerada como toda a possibilidade de
o julgador escolher entre duas ou mais hipóteses jurídicas para a solução de um
caso, e isso pela forma particular com que vê e qualifica os fatos que lhe são
levados à apreciação e as normas que invoca para a sua resolução. E como se
demonstrará, desde Hart e Dworkin, até a utilização de estruturas formais
complexas, como, por exemplo, aquelas sugeridas por Alexy e Atienza, a teoria
5 Cf. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa
Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. X.
8
do direito ainda não foi capaz de controlar essa discricionariedade do julgador, no
sentido aqui proposto, de independência na escolha do resultado.
O pano de fundo dessa discussão, ao menos na realidade brasileira,
pode ser claramente visto naquilo que MacCormick denominou de “razões
ostensivamente justificatórias” das decisões, ou seja, razões que mesmo que não
sejam sinceras são “aceitas como boas razões para a sustentação de
reivindicações [...] nos termos do sistema”.6
Antes, porém, de discorrer sobre essas teorias atualmente localizadas
na seara da argumentação jurídica, e demonstrar como a teoria do direito ainda
não foi capaz de racionalizar as decisões de uma forma completa, faz-se
necessário demonstrar a origem da discussão envolvendo essa discricionariedade
judicial, que também é motivadora do presente trabalho, e que apesar de já ter
sido objeto de exaustiva discussão em publicações internacionais, não parece ter
sido adequadamente esmiuçada no Brasil, dado os equívocos conceituais que
permeiam o estudo do direito em nossa realidade jurídica.
1.1 POSITIVISMO, DEBATE HART-DWORKIN E DECISÃO JUDICIAL
Acredita-se que para compreender de uma forma satisfatória as
questões envolvendo a discricionariedade judicial, o debate entre Herbert L. A.
Hart e Ronald Dworkin, um dos mais relevantes da teoria do direito no século XX7,
é um bom começo.
Conforme o desafio que se propõe nesse capítulo, as ideias
apresentadas por ambos os autores nas décadas de 1960 e 1970 ainda
continuam inquietando o pensamento jurídico no que tange ao que se pode
denominar de uma teoria da decisão judicial.
Assim, em que pese o embate teórico estabelecido entre Hart e
Dworkin perpassar desde a influência e limite da moral no direito até qual seria a
6 Cf. Ibidem, p. 19-21. 7 Cf. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Michigan:
Public Law and Legal Theory Working Paper Series, 2007; CELLA, José R. G. Legalidade e discricionariedade: o debate entre Hart e Dworkin. Curitiba: s/e, s/a; e FONSECA, Tania S. O debate entre Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin. In: Seara Filosófica nº 4, Verão, 2011, p-45-64.
9
melhor descrição científica da obrigação jurídica, o estudo aqui proposto atentará
tão-somente às razões e às justificativas que os citados autores defenderam
quanto ao caminho trilhado pelo juiz na aplicação do direito a casos concretos, o
que restringe, nas duas obras responsáveis pela criação de tal arena
argumentativa, o capítulo 07 de O conceito de direito de Hart, e os capítulos 04 e
13 de Levando os direitos a sério de Dworkin, ambos das décadas de 1960 e
1970 do século passado, respectivamente.
Ressalte-se, entretanto, que em razão de muitos conceitos
apresentados pelos autores terem seu melhor entendimento em outros trechos de
suas obras, o estudo também se valerá de alguns conceitos operacionais
presentes nos textos referidos, razão por que a argumentação quanto aos
capítulos mencionados não será exclusivista.
Essa escolha se dá por uma razão: seja em Hart, seja em Dworkin, tais
capítulos contêm as fórmulas que ambos os filósofos apresentam como
solucionadoras das contradições, imprecisões, incoerências e omissões que o
direito, tanto pela ótica das legislações quanto dos precedentes (commom law),
apresenta em qualquer forma de ordem jurídica. E para ambos os autores, tais
deficiências ou incertezas na aplicação do direito ao caso concreto estão
geralmente presentes nas situações levadas à apreciação do julgador, mas cuja
hipótese de incidência normativa, seja a partir do ordenamento, seja a partir dos
precedentes já existentes, não é capaz de apresentar uma solução prima facie8.
Observe-se que o objetivo da presente investigação não é dissecar a
teoria de cada um dos autores, mas somente aproveitar e comparar o que cada
um deles afirmou acerca da individualização da norma jurídica no caso concreto,
e com isso poder cogitar uma regra de racionalidade jurídica capaz de aferir a
coerência do conteúdo da argumentação das decisões judiciais proferidas por um
mesmo órgão, hipótese que será explorada no terceiro capítulo da dissertação.
8 Trata-se de casos em que a subsunção do fato à norma não gera maiores problemas teóricos,
dada a concordância, ainda que relativa, quanto às qualificações jurídicas dos fatos e à interpretação da norma aplicável pela comunidade jurídica de uma forma consensual.
10
Outrossim, a pesquisa proposta não restringirá seu objeto somente aos
dois autores protagonistas do debate já referido, mas também a outros que,
especialmente no que diz respeito à tese positivista de Hart, também
corroboraram seu ponto de vista quanto ao direito e o papel do juiz na sua
aplicação, da mesma forma como referido autor propõe e Dworkin critica.
Pois bem, na atribuição de competências dos poderes institucionais,
cabe ao poder judiciário dizer o direito (jurisdicio). Essa função de determinar por
meio de declaração com força coercitiva consiste na atribuição de sentido jurídico
a fatos pré-estabelecidos no sistema jurídico, seja pelo poder legislativo por meio
da redação de normas textuais, seja pela rotina de comportamentos sociais
expressos por decisões judiciais que criam os chamados precedentes, e que, em
ambos os casos, justamente em razão da fonte produtora desse direito estar
legitimada pela ordem constitucional, passam a ter relevância e obrigatoriedade
jurídica. Logo, o direito a ser aplicado na solução dos casos é aquele
representado pelas leis e precedentes decorrentes das autoridades
democraticamente legitimadas, inclusive após o processo de interpretação
realizado pela jurisdição.
Não se negligencia a existência de uma diferença substancial na
tradição jurídica dos países; se for a civil law, estará fundada em estatutos; se
commom law, fundada em tradição histórica e comportamentos reiterados.
Entretanto, a função tipicamente legislativa pertence ao poder legislativo. E a
justificativa disso é simples, como Dworkin sintetiza: o argumento da legitimidade
do poder legislativo na criação de leis é que “uma comunidade deve ser
governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e responsáveis perante
ela”9.
O ponto é que, apesar de a legislação querer fazer direito, esse
somente é perceptível, verificável e aplicável, guardadas todas as problemáticas
envolvendo as teorias das normas e dos sistemas jurídicos, após a interpretação
do órgão judiciário. Esse movimento interpretativo é o que torna a norma geral
9 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 132.
11
abstrata em uma norma individual concreta, sendo este o direito reconhecido no
caso. Nesse caminho entre o direito em abstrato e sua aplicação em concreto, há
a argumentação jurídica, que justifica, em um âmbito externo, a escolha de certas
premissas, e num âmbito interno, a coerências dessas premissas pré-
estabelecidas na justificação da solução dada ao caso.10
Mas nem sempre foi assim. Quando Hart propôs sua visão sobre o
conceito de direito, combateu o chamado imperativismo que existia em sua época
(década de 1960). Sua defesa foi contra a teoria capitaneada por Austin, de que
seria a coerção fundada na ameaça elemento fundamental e inarredável do
conceito de direito e da efetividade de sua aplicação. Este, pois, seria o “modo
imperativo” austiniano de compreender o direito.11
O modo imperativo do direito também pode ser percebido em Kelsen,
para quem o direito é:
[...] uma ordem ‘normativa’ que procura produzir uma conduta humana determinada pelo fato de ela prescrever que, no caso de uma conduta oposta, da chamada antijurídica, do ‘antijurídico’, deve realizar-se um ato de coerção como conseqüência do antijurídico, como chamada sanção. Nesse sentido é o direito um ordenamento de coerção normativo.12
Hart, apesar de não negar a necessidade do uso da força na eficácia
do direito, afirmou que o direto também pode ser compreendido a partir de
“poderes jurídicos para julgar e legislar (poderes públicos) ou para constituir ou
alterar relações jurídicas (poderes privados)”13, hipóteses que não restringiriam o
direito somente a normas coercitivas. E para tanto, propôs uma definição de
direito em regras primárias, outorgantes de direitos e obrigações, e secundárias,
estas subdividas em regras de reconhecimento, regras de alteração e regras de
julgamento. Dessa forma, Hart teria demonstrado que a proposta de Austin não se
sustentava na aplicação do direito à realidade.
10 Cf. CELLA, José R. G., 2001, op. cit, p. 24. 11 Cf. HART, Henry L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 3ª ed, p. 23. 12 KELSEN, Hans. O que é o positivismo? Tradução de Luís Afonso Heck. Título original: Was ist
juristischer Positivismus? In: HOLLERBACH, Alexander [et al.]. Direito natural, direito positivo, direito discursivo. Luís Afonso Hech, org. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 85.
13 HART, Herbert, op. cit, p. 89.
12
O que nos interessa, entretanto, diz respeito ao que Hart denominou de
textura aberta do direito. O autor afirma que a sociedade, considerada no seu
aspecto de uma multidão de indivíduos, somente pode ser controlada, ainda que
não exclusivamente, a partir de normas gerais, diferenciando-se estas das
diretivas dadas individualmente a cada indivíduo.
Tais padrões de condutas gerais, segundo Hart, são comunicados aos
indivíduos, ou com um uso de uma linguagem geral, capaz de proporcionar
relativa certeza às classificações apresentadas pelo comando, ou com um uso da
linguagem em exemplos que, de certa forma, pode proporcionar dúvidas quanto à
exata intenção do comando. Essa seria a diferença entre, respectivamente, a
legislação, como “comunicação através da linguagem geral dotada de
autoridade”, e os precedentes, como “comunicação por exemplos dotados de
autoridade”.14
Entretanto, quanto às comunicações que utilizam de linguagem geral,
afirmará Hart que em casos simples a aplicação das comunicações é fácil e clara,
mas noutros o comando não é capaz de determinar se a regra jurídica se aplica
ou não ao caso proposto, e isso em parte pela própria limitação da linguagem da
regra como produto humano. Para ele, o resultado é que:
Aqui surge um fenómeno que se reveste da natureza de uma crise na comunicação: há razões, quer a favor, quer contra o uso de um termo geral e nenhuma convenção firme ou acordo geral dita o seu uso, ou, por outro lado, estabelece a sua rejeição pela pessoa ocupada na classificação. Se em tais casos as dúvidas hão de ser resolvidas, algo que apresente a natureza de uma escolha entre alternativas abertas tem de ser feito por aquele que tem de as resolver.15
Em outras palavras, Hart afirma que pertence ao investido de autoridade na
função de decidir essa escolha da classificação jurídica que será dada ao
fenômeno fático, o qual estabelecerá uma regra individual de reconhecimento.
Essa posição também é verificada na teoria do direito de Kelsen, em que pese
este ser considerado por Hart um dos precursores do positivismo imperativo.16
14 Ibid, p. 137-139. 15 Ibid, p. 140. 16 Cf. Ibid, p. 06.
13
Kelsen, diante daquilo que denomina de lacuna no direito positivo, afirmaria
que diante dessa omissão de previsão de uma regra de reconhecimento geral, o
julgador estaria autorizado a criar um direito de forma individual, o que equivaleria
a uma regra de reconhecimento individual hartiana:
Mas também é possível que a ordem jurídica confira ao tribunal o poder de, no caso de não poder determinar qualquer norma jurídica geral que imponha ao demandado ou acusado o dever cuja violação o demandante privado ou o acusador público alegam, não rejeitar a demanda ou não absolver o acusado mas, no caso de ter por injusta ou não equitativa, quer dizer, como não satisfatória, a ausência de uma tal norma geral dar provimento à demanda ou condenar o acusado. Isto significa que o tribunal recebe poder ou competência para produzir, para o caso perante si, uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é de nenhum modo predeterminado por uma norma geral de direito material criada pela via legislativa ou consuetudinária.17
No mesmo sentido é a conclusão de Ross. Ao discorrer sobre o que
denominou de método jurídico, ou seja, a interpretação do direito, Ross defende
que há uma correlação estreita entre uma teoria das fontes e uma teoria da
interpretação do direito. As ideias lançadas por Ross também tinham motivação
no imperativismo defendido pelos positivistas imperativistas, anteriores à sua
época (sua obra é da década de 1960), os quais acreditavam que a interpretação
e aplicação do direito consistia na obtenção da vontade imanente do legislador,
sem nenhuma possibilidade criativa, constatação que se assemelhava muito a de
Hart. Ross condenou a ideia de que a decisão judicial seria uma dedução lógica
da classificação do caso concreto em um dos conceitos pressupostos no
ordenamento “de acordo com os efeitos jurídicos contidos por aquele conceito“18.
Para Ross, a lógica imanente dos imperativistas, que reduziam a decisão
judicial a um simples silogismo, não passava de ilusão, razão por que afirma o
seguinte:
Por trás da aparência dogmático-normativa há uma compreensão correta do fato de que a administração da justiça não se reduz a uma derivação lógica a partir de normas positivas. As teorias positivistas ocultam a atividade político-jurídica do juiz. Da mesma maneira que o jogador de xadrez é motivado não só pelas normas
17 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1985, 1ª ed, p. 271. 18 Cf. ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 2000, p. 185.
14
do xadrez, como também pelo propósito do jogo e pelo conhecimento de sua teoria, também o juiz é motivado por exigências sociais e por considerações sociológico-jurídicas.19
Depreende-se que Ross não estava tão preocupado com a realidade
de que o juiz motiva-se em razões extrajurídicas. Dentro do seu ponto de vista de
uma teoria da interpretação, entendia que, apesar de as máximas jurídicas de
interpretação geralmente manifestadas por brocardos atraentes serem
expressões imprecisas, sem sistemática contextual e passível de distorções que
provavelmente resultariam em resoluções contraditórias, isso não seria de todo
ruim no contexto social. Sua indiferença a essa aparente insegurança jurídica
estaria sustentada, paradoxalmente, na realidade de que tais máximas seriam
nada mais que técnicas de decisão que permitem que o juiz atinja “a conclusão
que julga desejável nas circunstâncias e, ao mesmo tempo, preserva a ficção de
que só está obedecendo à lei”20.
Tais teóricos positivistas, portanto, consideravam o juiz, aqui entendido
como qualquer órgão dotado de autoridade para julgar litígios a si submetidos,
investido de poder discricionário quanto à aplicação do direito a casos não
juridicamente previstos nas hipóteses pré-concebidas pelo ordenamento
positivado, os quais também poderiam se valer de razões morais e políticas na
tomada dessas decisões.
Essa constatação demonstra que, na ótica positivista, a decisão
judicial, como o modo pelo qual os juízes interpretam e aplicam as normas
jurídicas, não dialoga com a ciência do direito, entendida essa como a
possibilidade de fazer juízos de verdade ou falsidade sobre a existência dessa ou
daquela norma jurídica, e cuja obra precursora seria A teoria pura do direito de
Kelsen. Nela o autor buscou descrever o direito positivo e avaliá-lo sem a
interferência de ordens subjetivas e paixões capazes de prejudicar ou tornar
inconsistentes as conclusões alcançadas, ou seja, sem que preferências e valores
19 Ibid, p. 186. 20 Ibid, p. 184
15
sem unanimidade de sua universalização pudessem influenciar uma descrição
científica do direito como sistema de normas hierarquicamente organizadas.21
Hart identificará essa crise de aplicação da norma no caso concreto,
diante da inexistência de parâmetros anteriores de aplicação, tanto no âmbito da
legislação quanto no dos precedentes, como casos importantes, que produzem
perplexidade nos tribunais, pois “nem as leis, nem os precedentes em que as
regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado”. E nesses,
afirmará, “há sempre uma escolha”22.
Dessa forma, para tais herdeiros do positivismo, o juiz é um ator
político, e que por essa razão suas decisões possuem nítida carga moral e
política. Ressalte-se, entretanto, que essa posição não se aplica ao estudo que
realizam sobre direito como ciência, em que consideraram cientificamente as
normas e os sistemas compostos por elas, buscando descrevê-los sem nenhuma
influência moral e política.
A construção teórica até aqui realizada tem como objetivo comparar os
argumentos que Dworkin desferiu contra o positivismo por ele entendido como
dominante de seu tempo, qual seja o positivismo capitaneado por Hart.23
Ora, se a hipótese da presente pesquisa, ao menos em um de seus
objetivos específicos, é a de demonstrar que a teoria do direito ainda não foi
capaz de enclausurar a decisão judicial no adjetivo correta, imprescindível que se
analise justamente a teoria da unidade da solução correta proposta por Dworkin, a
qual tentou demonstrar a existência de parâmetros capazes de justificar um juízo
de acerto sobre determinada decisão judicial, especialmente quando não se
verificam soluções prima facie.
Pois bem, o texto em que Dworkin desenvolve de forma mais apurada
a tese de aplicação do direito diante das hipóteses não previstas na legislação, ou
sem um precedente anterior que justifique a decisão que será tomada, está no
capítulo 04 de Levando os direitos a sério, cuja tradução aqui utilizada é de 2002.
21 KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. XII. 22 HART, Herbert L. A., op. cit, p. 16. 23 Cf. DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 35.
16
Tais proposições equivalem-se àquelas apresentadas por Hart para a aplicação
das regras de textura aberta referidas anteriormente.
Mas antes de adentrar na sua teoria, cabe ressaltar algo por vezes
despercebido no capítulo introdutório da presente obra, mas que é lembrado por
André Luiz Souza Coelho, de que um dos objetivos de Dworkin é apresentar uma
teoria do direito fundada no liberalismo político, razão por que suas ideias devem
ser vistas a partir da referida lente. E nessa forma de ver as relações sociais,
como se verá adiante, os interesses individuais prevalecem sobre os gerais,
portanto, o liberalismo sobre o comunitarismo.24
Apesar da constatação de Coelho, não se pode deixar de registrar
algumas posições contrárias, não no sentido de que a tese dworkiana tenha um
espírito liberal, mas sim de que ele nunca declarou essa intenção. Nesse sentido,
são Coleman e Leiter, para quem Dworkin nunca teria de declarado precursor de
uma doutrina jurídica liberal.25 Entretanto, parece inegável que a teoria da
resposta certa, com a técnica de resolução de conflito aparente de direitos ou
hipóteses de solução de casos difíceis, é nitidamente liberal, até mesmo em razão
do reconhecimento disso pelo próprio Dworkin.26
Para Dworkin, a teoria que os positivistas apresentam para a resolução
dos casos difíceis, a saber, os casos concretos em que a aplicação silogística da
norma pré-estabelecida na legislação ou no histórico de precedentes não se
mostra segura, seja em razão da ausência de previsão da hipótese na regra legal,
seja em razão do não enquadramento do caso a outro análogo capaz de lhe servir
de precedente, reside na utilização do poder discricionário.
Essa discricionariedade afirmada pelo autor, entretanto, precisa ser
mais bem entendida se de fato se quiser compreender sua crítica ao positivismo,
entendido este como o hartiano. Para Dworkin, há tipos de discricionariedade, vez
24 COELHO, André. Palestra: “Levando os direitos a sério” e “Uma questão de princípios”: a
primeira fase do pensamento de Ronald Dworkin. In: II Jornada de teoria do direito: as contribuições de Dworkin para o pensamento jurídico contemporâneo. Belém do Pará: 2013.
25 COLEMAN, Jules L.; LEITER, Brian. Determinação, objetividade e autoridade. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 308.
26 Cf. DWORKIN, Ronald, op. cit. p. 127.
17
que o poder discricionário diferencia-se pelo contexto, pelo ponto de vista e pela
sua relação com a autoridade que lhe outorga referido poder.27
Dworkin afirma que a discricionariedade em sentido fraco pode ser
entendida em dois sentidos. O primeiro consiste nos padrões que uma autoridade
deverá utilizar para decidir. O segundo refere-se à decisão que, dada a partir de
alguém que ocupa uma posição hierárquica, esta vincula àqueles a quem a ordem
foi dirigida, pois não podem revisá-la ou cancelá-la.
Mas Dworkin também afirma que a discricionariedade pode ser
entendida em um sentido forte. Nela, que é o que interessa aqui, o funcionário
público não tem padrões a ser observados em sua decisão, ou seja, o âmbito de
sua atuação permite-lhe realizar uma escolha sem a necessidade de observar
qualquer limitação pré-estabelecida, mesmo que isso não seja equivalente à
licenciosidade e à crítica.28
Assim sendo, quando o autor afirma que o positivismo autoriza a
discricionariedade judicial na resolução de casos difíceis, está se referindo ao
poder discricionário no sentido forte da expressão. E não seria necessária
nenhuma elucubração para entender por quê. Quando se demonstrou que, diante
da inexistência de uma previsão normativa geral (legislação) ou por exemplos
(precedentes) que se aplique a um caso concreto, o positivismo autoriza que o
órgão julgador decida a partir de critérios políticos e morais, está claro que essa
discricionariedade somente existe porque o direito, para aquele caso específico,
não apresentou padrões de solução ou contornos capazes de gerar
silogisticamente uma subsunção do fato à norma.
Disso resulta que, em razão da falta de uma solução prevista
normativamente para esses casos difíceis, seja pela inexistência da hipótese que
se assemelhe ao caso, seja pela inexistência ou existência de mais de uma
solução prevista normativamente, o órgão julgador efetuará uma escolha, cujos
parâmetros que utilizará, e o positivismo de Hart, Kelsen e Ross confessam isso,
serão morais e políticos, dada a posição política que tal órgão ocupa no contexto
27 Cf. Ibid, p. 51. 28 Cf. Ibid, p. 52-53.
18
social. A discricionariedade forte de Dworkin, portanto, é aquele que o positivismo
entende como necessária para as decisões judiciais de casos cuja previsão
normativa não existe ou existe de forma contraditória.
1.2 A TESE DA ÚNICA DECISÃO CERTA DE DWORKIN
Criticando essa discricionariedade forte, Dworkin propõe uma solução
que parte de um pressuposto radicalmente diferente. Para o autor, “quando
nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de
ganhar a causa”29. Para tanto, inicia sua defesa contra-atacando a ideia de que o
juiz, ao decidir, cria direito e, portanto, aplica-o retroativamente. Inicialmente,
apresenta dois tipos de argumentos que fundamentam a justificação de sua tese:
argumentos de princípios e argumentos de política.
A diferença entre ambos estaria no objetivo-fim que cada um deles
quer justificar. Por se tratarem de argumentos, nada mais são que razões e
considerações exteriorizadas em uma decisão para defender uma posição
subjetiva que pode querer descrever algo como pensa que ele realmente é, ou
ainda prescrever como pensa que algo deveria ser.
Para Dworkin, o argumento de princípio “justifica uma decisão política,
mostrando que a decisão respeita ou garante um direito” de um ou de muitos,
enquanto que o argumento de política, também justificador de uma decisão
política, mostra “que a decisão fomenta ou protege algum objetivo da coletividade
como um todo”. A diferença entre ambos pode ser simplificada, portanto, em que
os argumentos de princípio são aqueles que justificam a aplicação dos direitos,
enquanto que os de política são aqueles que justificam a adoção de políticas
públicas. Entretanto, ambos os argumentos são utilizados na adoção de
programas legislativos, e uma decisão pode chegar à mesma conclusão tanto a
partir de argumentos de política quanto de princípio.30
A tese de Dworkin no que diz respeito à decisão de casos difíceis,
entretanto, afirmará que as decisões judiciais sempre e somente devem se utilizar
29 Ibid, p. 127. 30 Cf. Ibid, p. 129-130.
19
de argumentos de princípio, e não de argumentos de política, pois estes seriam
próprios da atividade legislativa. E para defender sua posição, inicialmente, rebate
a ideia de que a originalidade de uma decisão ofenderia o princípio democrático
da separação das funções ou o princípio de irretroatividade da aplicação da lei,
pois se o direito que a decisão busca já existe, sendo o julgador somente aquele
que identificará esse direito não claramente previsto, a competência do judiciário
é justamente dizer o direito (jurisdicio), o que refuta a ideia de criação normativa.31
Veja-se, pois, que Dworkin, ainda que não declaradamente, utiliza
argumentos assemelhados aos jusnaturalistas para defender sua posição teórica,
especialmente a existência de direitos até então não declarados. Isso porque, a
fim de rebater os argumentos daqueles que objetam o juiz como criador de
direitos, algo pacífico para os positivistas da década de 1970, afirma que o direito
já está ali, somente ainda não foi reconhecido.
A fim de demonstrar sua teoria do direito para a solução dos casos
difíceis, Dworkin faz uma alegoria a partir de um juiz-filósofo de capacidades
sobre-humanas chamado Hércules. Para o autor, esse seria o juiz ideal, mas
também o responsável pela teorização da filosofia do direito que respaldará a
jurisdição de determinada comunidade.32 Logo, nessa comunidade hipotética,
Hércules é tanto quem teoriza o direito vigente quanto quem o aplica aos litígios
sociais.
Assim, a decisão dos casos considerados difíceis terá de Hércules as
seguintes considerações: em relação à constituição de seu fictício Estado, os
casos que não são previstos sofrerão um raciocínio que considerará “um conjunto
complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo [...]
referindo-se alternadamente à filosofia política e ao pormenor institucional”, o que
faz lembrar os fundamentos que regem a carta política de um Estado (inclusive o
art. 4º da Constituição da República Brasileira de 1988), e que para Dworkin
afirmam uma história institucional.33
31 Cf. Ibid, p. 134-135. 32 Cf. Ibid, p. 165. 33 Ibid, p. 167.
20
Já quanto à aplicação das leis aos casos difíceis desse Estado, diante
da omissão legislativa Hércules tentaria extrair da legislação mais próxima ao
caso as intenções do legislador, construindo uma “teoria política como um
argumento sobre o que o poder legislativo fez naquela ocasião”, e isso a fim de
apreender o alcance da política querida pelo poder legislativo “até os limites
permitidos pela linguagem”.34
Em relação aos precedentes, para que eles pudessem ser usados na
solução de casos difíceis, Hércules afirmará que o precedente cria uma “força
gravitacional”, não no sentido de sua força de promulgação, mas sim a partir de
uma “teoria de equidade que está em tratar os casos semelhantes do mesmo
modo”. Essa equidade, entretanto, possui essa força normativa porque se utiliza
de “argumentos de princípio que lhe dão sustentação”, ou seja, os argumentos de
princípio justificam a consideração da equidade e esta é a força gravitacional dos
precedentes.35
Os argumentos de princípios, por sua vez, não somente justificam a
força gravitacional dos precedentes, mas também os próprios direitos, pois estes
também são fruto de argumentos de princípios, e se assim o são acabam criando
uma aplicação comum de forma a criar um “esquema de princípios abstratos e
concretos que forneça uma justificação concreta a todos os precedentes e [...] que
justifique as disposições constitucionais e legislativas”.36
É, pois, sobre esse constructo teórico que Dworkin fundamenta a tese
da única resposta correta disposta no capítulo 13 de Levando os direitos a sério,
que agora será objeto de análise. Para essa pesquisa, portanto, considerou-se
incompleto captar qual era a intenção do autor ao afirmar a existência de uma
resposta correta somente através da observação do capítulo próprio da tese, vez
que toda sustentação teórica necessária para compreender o capítulo 13
necessita da compreensão do capítulo 04, o que ficará claro nas próximas linhas.
34 Cf. Ibid, p. 168-171. 35 Cf, Ibid, p. 174-176. 36 Cf. Ibid, p. 182.
21
Pois bem, adentrando na argumentação apresentada por Dworkin para
a defesa da existência de uma resposta correta para todo o caso que é submetido
à apreciação jurisdicional, ele edifica seu argumento rebatendo as potenciais
objeções à sua afirmação. Inicia sua defesa combatendo uma potencial objeção
de ordem prática, sintetizada no seguinte argumento: “cada um pode ter apenas
sua própria opinião, e a opinião do juiz não oferece mais garantias de verdade do
que a de qualquer outra pessoa”. Contra esse possível questionamento, cria três
hipóteses-problema: primeira, se alguns juízes são unânimes quanto à
classificação dos fatos de um caso difícil, se estes poderiam divergir quanto ao
direito aplicável; segunda, se seria possível que a uma parte tenha o direito de
ganhar mesmo se os juízes, unânimes quanto à classificação dos fatos, sejam
divergentes quanto ao direito aplicável ao caso; e, terceira, se seria “sensato e
justo” que a decisão de juízes criteriosos seja considerada válida mesmo existindo
outros juízes criteriosos que entendam de modo diverso.37
A fim de defender sua tese, Dworkin adota uma metodologia descritiva
da coerência entre as respostas positivas ou negativas aos questionamentos que
formulara, para após declarar que:
Se os litigantes em um caso difícil não podem ter nenhum direito a uma decisão específica, é inutil e injusto deixar que o litígio seja resolvido por uma decisão controversa (ou incontroversa quanto ao caso) sobre os direitos que eles têm. [...] Tudo depende de alternativas. No capítulo 4, descrevi essas alternativas e as considerei sem atrativos.38
Como se pode ver, o sustentáculo teórico de sua teoria está no capítulo
que já foi objeto de análise anteriormente. Sendo assim, pode-se compreender,
ao menos até certo ponto, qual é a intenção de Dworkin ao afirmar que há sim
uma resposta correta, ainda que nem todos possam com ela concordar, o que
parece soar de forma paradoxal. Para ele, a resposta correta seria encontrada a
partir de argumentos teleológicos do sistema e da história institucional do Estado,
da extração da gênese da ideia do legislador em relação às normas, do campo
gravitacional identificado nos precedentes, aplicando-se a eles um pouco de
analogia, argumentos esses já ventilados nesse capítulo.
37 Cf. Ibid, p. 431. 38 Ibid, 432.
22
Mas em toda a sua construção teórica mostra-se presente, ainda que
nas entrelinhas, aquilo que se referiu inicialmente acerca da teoria do direito de
Dworkin: são os argumentos de princípio, que justificam os direitos individuais, as
chamadas liberdades negativas conquistadas nos setecentos, que devem
proporcionar o alcance da resposta correta, vez que tais argumentos de princípio,
opondo-se aos argumentos de política, é que são próprios das decisões judiciais.
Ocorre que tais argumentos nada mais são que o resultado da
classificação da justificação de decisões políticas feita pelo próprio autor.39 E
sendo assim, não diferem necessariamente da posição de Hart, Kelsen e Ross.
Estes, como já dito anteriormente, afirmam que diante de casos complexos,
difíceis segundo Dworkin, que não possuem previsão na legislação ou que não
apresentem um exemplo (precedente) a ser analogicamente utilizado como razão
de decidir, o órgão julgador utilizar-se-ia de uma decisão política para resolver o
caso. Em que pese a teoria de Dworkin querer descrever e classificar as razões
dessa decisão, argumentos de princípio e de política, e afirmar que os primeiros é
que devem prevalecer sobre os segundos, ainda assim a decisão dos casos
difíceis será uma decisão política, ou seja, uma decisão que foge de contornos
jurídicos e, portanto, de um binômio jurídico-antijurídico para ostentar um caráter
discricionário, no sentido dado ao presente estudo – liberdade do julgador em
escolher uma dentre duas decisões, especialmente quando ambas admitam
argumentos justificadores razoavelmente aceitos pela própria comunidade
jurídica (o que será debatido no próximo capítulo dessa pesquisa). Assim,
adentram na seara da discricionariedade tão criticada pelo próprio Dworkin.
Ademais, a própria objeção que Dworkin se utiliza para criticar a
hipótese de solução dos positivistas aos casos difíceis sem previsão no direito
(leis e precedentes) de uma solução específica, de que a decisão de um juiz
hartiano diante de um caso difícil retroagirá no tempo para regular uma relação
passada, e que por essa razão haveria uma afronta a um princípio de que
ninguém pode ter uma conduta exigida sem ter conhecimento desse padrão,
também não é vencida pela própria tese de direitos dworkiana.
39 Cf. Ibid, 129.
23
Isso porque, se cabe a Hércules ultrapassar as barreiras objetivas da
linguagem existente na legislação e nos precedentes, e revisitar os fundamentos
da história institucional, dos argumentos de princípio e de política que motivaram
os legisladores na confecção da legislação e, ainda, em uma força gravitacional
existente nos precedentes de casos análogos, parece que, semelhantemente aos
positivistas, a proposta de Dworkin, que parte da ideia de que o direito somente é
direito após sua interpretação, também tem uma aplicação retroativa a fatos
anteriores ao direito encontrado por Hércules. Isso porque o direito apreendido
por este somente é qualificado como direito após um processo interpretativo, e
não antes. E, portanto, se esse processo é posterior ao fato que quer regular, a
teoria dos direitos dworkiana também apresenta uma característica ex post facto.
Entretanto, mesmo se se partir da premissa de que a teoria que
Dworkin defende é de fato uma teoria racionalizante ou interpretativa da forma de
decidir os casos concretos levados à solução judicial40, evitando a tese positivista
de que nos casos não previstos nas fontes de direito usuais, legislação e
precedentes, os julgadores têm discricionariedade no sentido forte, além de
Dworkin não enumerar os princípios e argumentos de princípios que
prevaleceriam sobre outros princípios e outros argumentos de princípios, parece
que sua teoria cria uma hierarquia de princípios. E toda hierarquia, como razão de
existir, envolve a colocação de uns princípios acima de outros, o que Dworkin não
esclarece em seu texto, nem sequer cogitando critérios dessa classificação.
1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DECISÃO JUDICIAL
A crítica que supôs a criação de uma hierarquia de princípios pela
teoria dworkiana, pois não afastaria a discricionariedade do julgador na
sobreposição de um argumento de princípio em relação a outro argumento de
princípio, sustenta-se em grande parte no posfácio ao Conceito de Direito de
Hart41. Entretanto, foi Joseph Raz quem parece ter demonstrado isso de uma
forma mais completa. Para esse autor, não há como definir que uma decisão está
certa, pois mesmo que duas pessoas compartilhem das mesmas concepções
40 MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. X. 41 Cf. HART, Herbert, op. cit, p. 299-339.
24
morais não se pode garantir que encontrem uma mesma decisão para que esta
seja considerada correta.42
Para Raz, essa realidade justifica-se no fato de as decisões judiciais
possuírem, diferentemente do ofício do legislador, um grau de obrigatoriedade
diferente, em que sua atuação consiste justamente em integrar lacunas deixadas
pela legislação ou a modificar diante da necessidade de estender os sentidos
dados pela regra positivada, especialmente nos casos considerados não
regulados pelo sistema normativo.43
É por essa razão que o autor afirma que:
[...] é irracional atribuir grande peso à formulação real da norma nas mãos do tribunal. A interpretação das leis em ocasiões acaba no emprego de uma palavra em vez de outra. Não é assim na interpretação do precedente. Outro resultado consiste em que é razoável melhor interpretar a norma em seu contexto (i. e. considerando os fatos tal e qual se encontram assentados) que de forma abstrata como se faz com uma lei ou um regramento. A faculdade de distinguir reflete esta dependência do contexto. A “ratio” é obrigatória em suas razões (racionais) fundamentais tal e qual se aplica em seu contexto original. Os tribunais podem, sem dúvida, modificar sua aplicação a diferentes contextos sempre que preservem suas razões (racionais) fundamentais.44
A teoria de Raz tem como pressuposto geral e base de discussão o
commom law inglês45, tal qual Dworkin. E por essa razão, pode-se afirmar que os
dois autores discutem teoria do direito a partir de um lugar comum.
MacCormick também faz uma crítica contundente à teoria doworkiana.
Apesar de referido autor ter manifestado no preâmbulo de sua obra, em 1994, que
42 Cf. RAZ, Joseph. La autoridad del derecho. Ensayos sobre derecho e moral. Tradução de
Rolando Tamayo e Salmorán. México, D.F.: Universidad nacional Autónoma de México, 1985, p. 250.
43 Cf. Ibid, p. 243. 44 [...] es irracional atribuir gran pesa a la formulación real de la norma en manos del tribunal. La
interpretación de las leyes em ocasiones estriba em el empleo de una palabra em vez de outra. No así en la interpretación de precedentes. Outro resultado consiste en que es razonable interpretar la norma más bien em su contexto (i.e. considerando los hechos del caso tal y como se encientran asentados) más que de forma absctracta como lo hace uno con una ley o reglamento. La faculdad de distinguir refleja esta dependencia al contexto. La ratio es obligatoria en sus razones (rationale) fundamentales tal y como se aplica a su contexto original. Los tribunales pueden, sin embargo, modificar su aplicación a diferentes contextos siempre que preservem sus razones (rationale) fundamentales.” Ibid, p. 23.
45 Cf. Ibid, p. 228.
25
as críticas feitas ao Levando os direitos a sério de Dworkin nas décadas de 1960
e 1970 foram de certa forma exageradas46, diante de sua fala ser aderente ao
objeto do presente estudo, algumas das suas considerações mostram-se
necessárias de enfrentamento.
O argumento do autor contra a teoria da solução correta parte do
argumento de autenticidade do desacordo, que consiste no reconhecimento de
que um desacordo pode existir desde que os argumentos utilizados tenham
padrões comuns, e não diferentes. Essa divergência de padrões seria uma
divergência especulativa. Entretanto, as decisões jurídicas não estariam nessa
categoria de divergência, mas sim numa divergência prática que surge “porque –
ou quando – a decisão favorável a um lado ou a outro não pode ser evitada e
deve ser tomada por pessoas [...] que precisam [...] conviver com a decisão”47.
Partindo dessa ideia, MacCormick afirma que:
[...] os juízes em nosso sistema são, e em todos os bons sistemas seriam, tolhidos, enclausurados e confinados no exercício dos enormes poderes a sua disposição. Não diz que eles não possam agir, nem que eventualmente não ajam, talvez até com frequência, de modo contrário às normas de justificação [...]. As provas existentes sugerem que, se realmente agem assim, pelo menos procuram despistar, revestindo as decisões que tiverem outros motivos com justificações engendradas da forma correta.48
Segundo esse autor, as justificações dos argumentos não têm como
objetivo e fim apresentar uma decisão “’completamente’ justificada”, mas sim
fornecer “modalidades de argumentação” que vão justificar uma decisão, a qual,
apesar de poder conciliar divergências especulativas, deixa “uma área residual de
pura divergência prática”. E nesses casos, afirmará MacCormick, ainda que se
chame o “semideus ‘ex machina’ de Dworkin [...]”, Hércules, a divergência prática
não poderá ser vencida49.
A teoria argumentativa de Atienza também reflete, ainda que de uma
forma diferente, essa realidade. Isso porque considera que a argumentação
46 Cf. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa
Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XIX. 47 Ibid, p. 324 48 Ibid, p. 327 49 Cf. Ibid, p. 328-329.
26
jurídica também é uma argumentação de fatos. E se é necessário também
argumentar sobre fatos, isso englobaria também questões que escapam do
ambiente jurídico e normativo, adentrando em searas da sociologia e da moral50.
Assim, adentrando nessas searas em que não se pode afirmar o que é correto ou
errado sem filiação ideológica, também se verificaria a impossibilidade de afastar-
se da discricionariedade. Logo, diferentes juízes, com parâmetros morais
diferentes, ou contextos sociais de desenvolvimento humano díspar, teriam sem
sombra de dúvida, na proposta argumentativa de Atienza, discrepância quanto à
argumentação que utilizariam em suas decisões judiciais.
Para exemplificar essa realidade, MacCormick apresenta um caso
paradigma. Trata-se de caso envolvendo a responsabilização do fabricante em
razão de um dano decorrente de consumo (Donoghue v. Stevenson), em que dois
juízes, Lord Atkin e Lord Buckmaster, divergiram veementemente quanto à
existência de tal responsabilidade. O autor demonstra que, apesar de a decisão
ter seguido o argumento de Lorde Atkin, que responsabilizou o fornecedor, havia
diversos argumentos legítimos e coerentes que justificavam a sua não
responsabilização, como o interesse público de que os bens de consumo tenham
preços baixos, ou de que, em razão da natureza contratual da relação, os
indivíduos poderiam considerar a questão proporcional envolvendo o preço e a
segurança, mais caro mais seguro, menos caro menos seguro. Por essa razão,
diante de tais argumentos também razoavelmente justificáveis, afirma:
Chegamos àquele ponto da pura divergência prática no qual precisamos nos esforçar além daquilo que já está estabelecido entre nós e decidir como queremos viver, como nossa sociedade há de se organizar. Entre duas possíveis extrapolações racionais de nossa tradição jurídica e política, uma escolha tem que ser feita, e não são só as partes que serão forçadas a acatar a decisão específica, mas os juízes e todos nós que vivemos na sociedade teremos que conviver (temporariamente, pelo menos) com a deliberação e seus múltiplos efeitos práticos sobre a vida social e comercial.51
Logo, a divergência apresentada pelo autor revitaliza aquilo que já era
defendido por Hart, Kelsen e Ross, de que em determinadas situações,
50 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de
Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003, 3ª ed. p. 213 51 MACCORMICK, op. cit., p. 331.
27
considerando o contexto fático, político, social ou econômico em que o conflito
está inserido, o julgador fará uma escolha baseada em justificações e argumentos
que entender juridicamente válidos, sem que estes sejam jurídicos. São válidos
porque são utilizados em um contexto jurídico, mas não são em sua essência
jurídicos, mas políticos, morais e sociológicos.
Pois bem, as considerações até aqui apresentadas demonstram que a
pretensão dworkiana de que a decisão poderia ter um único teor correto, ou seja,
que cada caso submetido à apreciação pelos juízes teria uma resposta correta,
ainda que as regras de reconhecimento geral ou através de exemplos, legislação
e precedentes, não previssem tal conduta abstrata ou ainda se essa previsão
estivesse duplicada, resultando em duas possíveis incidências normativas, não
encontra correspondência na ordem prática, ou seja, na realidade da vida, o que
se acredita ter sido demonstrado a partir de Raz e MacCormick.
Isso porque Dworkin, ao afirmar que, diante de casos sem previsão
normativa na legislação ou nos precedentes, os juízes deveriam justificar a
decisão a partir de uma decisão política fundada em argumentos de princípios, os
quais têm como pressuposto a proteção dos direitos individuais, esquece de
considerar que, ao não definir uma hierarquia entre esses argumentos acaba por
confessar, ainda que tacitamente, poderá haver preferência pessoal por quem
decide em favor de uns argumentos sobre outros. E como tais argumentos,
conforme a tese dworkiana, nada mais são que decisões políticas que buscam
proteger direitos individuais, por decorrência lógica estar-se-ia escolhendo entre
dois direitos individuais colidentes.
Logo, a problemática da discricionariedade judicial ainda se mantém, o
que coloca em xeque a tese da “única” resposta correta.
Utilizando o juiz dworkiano como exemplo, a ideia de existir essa
discricionariedade nas decisões judiciais, e como visto não se pode negar que
não há, permitiria que o juiz pudesse elevar um desses argumentos de princípios
acima de outro argumento de princípios. Em fala simples, Hércules poderia eleger
um direito individual (direito X) como acima de outro direito individual (direito Y)
diante de determinado caso. Entretanto, há a real e inegável possibilidade de, no
28
mesmo caso, outro juiz, talvez Tarúcio52, para quem a importância de tais direitos
individuais e, portanto, dos argumentos de princípios que lhe são mais
convincentes, é justamente o contrário (direito Y prevalecendo sobre o direito X).
Um exemplo dessa colisão de direitos que estariam protegidos por uma
decisão política fundada em argumentos de princípios pode ser verificada na
liberdade de ir e vir e na propriedade, baluartes da Revolução Liberal Americana.
Se diante da falta de uma norma que regulasse uma aparente tensão entre o
direito de liberdade e o de propriedade, e Hércules tivesse que decidir sobre qual
prevaleceria, e para tanto utilizasse argumentos de princípios que nada mais são
que representações da proteção de direitos individuais53, tal julgador
necessariamente teria que escolher um dentre eles para justificar sua decisão. E
se ele tem que escolher, há, pois, discricionariedade.
Com isso, quer-se demonstrar que, apesar de Dworkin ter criticado de
forma contumaz o positivismo, sua teoria não proporciona nenhuma diferença
com o que Hart, Kelsen e Ross defenderam na aplicação do direito por meio da
decisão judicial. A única diferença que possivelmente se pode perceber é que,
enquanto os positivistas afirmam que ao juiz cabe prover essa decisão conforme
lhe parecer justo e correto, fundado em questões morais e políticas, Dworkin
afirmará que essa escolha, que reconhece também ser política e moral, deverá
privilegiar argumentos de princípios, por sua vez fundados em direitos individuais
fundamentais54.
Logo, parece que Dworkin aperfeiçoa a percepção do que se pode
argumentar nesse caminho interpretativo entre o direito declarado através de uma
regra de reconhecimento individualizada e o caso concreto. E nessa percepção se
confirma a carga moral e política indissociáveis da subjetividade humana. Mas
que o autor exclui a discricionariedade do julgador, já prevista pelos positivistas,
52 Na mitologia romana, Tarúcio era marido de Aca Larência, amante de Hércules. 53 V. item 1.2, supra. 54 Nesse sentido verifica-se evidente paradoxo entre a efetivação dos direitos fundamentais sociais
e, portanto, liberdades positivas, a partir do reconhecimento de auto-aplicabilidade dos chamados princípios que àqueles remetem (direito à previdência, direito à saúde), e a forma que Dworkin defende o desequilíbrio no momento da ponderação entre “argumentos de princípios” (direitos individuais) e “argumentos de política” (direitos sociais), em que, dada a sua declarada visão liberal do direito, levaria à conclusão de que prevaleceriam os interesses individuais sobre os sociais.
29
isso não se pode afirmar, mas até mesmo o contrário: confirma que a decisão dos
juízes diante de casos cuja aplicação do direito não seja simplória, se dará por
uma decisão política, ainda que esta se baseie em argumentos de princípios e
não de políticas, estritamente falando.
Com isso, pode-se concluir que a crítica perpetrada por Dworkin à
discricionariedade judicial descrita pelo positivismo de origem hartiana,
especialmente quando a subsunção do fato à norma não se mostra clara o
bastante para afastar dúvidas em relação à sua aplicação. Em suma, não
convence, pois também em sua proposta há um traço significativo de
discricionariedade judicial pelo julgador, especificamente na escolha entre os
argumentos de princípios, que podem ser mais que um, a ser aplicados ao caso
concreto que solicita uma decisão, permitindo, ainda, a utilização de argumentos
de política. Tudo isso acaba tornando a decisão passível de diversos
fundamentos de igual ou muito semelhante carga normativa, não afastando a
hipótese de que a escolha e o peso que cada julgador dá a esses argumentos
não seja uma questão de discricionariedade.
As teorias de argumentação jurídica, por sua vez, também não são
diferentes. O problema da discricionariedade observado por Robert Alexy parece
ter um núcleo semelhante, conforme se verifica na justificava de sua Teoria da
Argumentação Jurídica, em que cita o seguinte trecho de acórdão proferido pela
Corte Constitucional alemã:
[...] exigir em particular que esses julgamentos de valor inerentes à ordem constitucional mas que não têm nenhuma expressão ou apenas expressão imperfeita nos textos recentes de lei, devem ser revelados e realizados nas decisões atuais por um ato de cognição que inevitavelmente envolve um elemento discricionário. Os juízes devem se precaver contra a arbitrariedade nesse processo: suas decisões têm de ser fundadas na 'argumentação racional'. Deve ficar evidente que a lei escrita não cumpre a tarefa de prover uma justa resolução dos problemas legais. Nesses casos, a decisão judicial fecha a brecha de acordo com os padrões da razão prática e dos conceitos de justiça bem fundamentados da comunidade.55
55 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schid Silva.
São Paulo: Landy, 2001, p. 34.
30
Assim, Alexy propõe a existência de uma metodologia na utilização da
argumentação para alcançar aquilo que denominou de racionalidade justificável, o
que afastaria, em tese, a discricionariedade do julgador.
Ao compreender o discurso jurídico como um caso especial do discurso
prático geral, devido ao objetivo de correção das afirmações normativas e porque
tais argumentos estariam limitados pela lei, pelos precedentes e pela dogmática
jurídica, Alexy propõe a criação de regras de racionalidade e formas de
argumentação capazes de equiparar decisões judiciais a um discurso prático
geral56.
Entretanto, quanto à existência dessa discricionariedade, sua teoria
não a refuta, mas até mesmo se coaduna com a dos positivistas. Isso porque o
próprio Alexy confessa, ao falar da justificação externa do raciocínio lógico,
responsável pela justificação das premissas utilizadas na justificação interna da
decisão judicial, que o papel da argumentação jurídica seria a justificação das
premissas que não são direito positivo e também não se enquadram em
premissas empíricas57. Isso quer dizer que, justamente diante da indeterminação
dos critérios (premissas maior e menor) é que a argumentação ganha papel
relevante na teoria do direito, mesmos sem possuir nenhuma forma de
delimitação das escolhas dessas premissas, somente a própria lógica em si, mas
já no âmbito interno, de dedução lógica das premissas postas.
Esse problema pode ser verificado na teoria alexyana, por exemplo, na
chamada argumentação dogmática, responsável pela descrição da lei em vigor.
Afirma que ela está sujeita a uma “análise conceitual e sistemática” e pela
elaboração de proposições solucionadoras do problema jurídico, processos esses
que, segundo o autor, ocorrem em três dimensões: descritiva-analítica, lógica-
analítica e normativa-prática.58
Nessa proposta de dogmática jurídica, o intérprete do direito se utiliza
de conceitos para descrever o sentido que o texto da lei propõe (descritiva-
56 Cf. Ibid, p. 26-27 57 Cf. Ibid, p. 224. 58 Cf. Ibid, p. 241.
31
analítica), para depois encontrar a repercussão desses conceitos dentro do
sistema jurídico como um todo por meio da correlação de conceitos (lógica-
analítica), a fim de aplicar a regulação que o caso exige (normativa-prática). Logo,
se dois juízes discordarem da descrição conceitual de um texto de lei, ainda que a
justificação interna de ambas as decisões sejam uma decorrência lógica do
argumento dogmático, ambos chegarão a conclusões diferentes.
Por essa razão, ainda que a teoria argumentativa de Alexy seja
consistente, ela não impede que o preenchimento dos conceitos das premissas a
ser utilizadas pelos argumentos dogmáticos, por exemplo, seja realizado, dado o
caráter descritivo e conceitual que exige esse procedimento interpretativo que
caminha da hipótese ao caso concreto exige, de forma discricionária pelo
julgador.
Isso porque, como o próprio Alexy declara:
[...] a decisão é o resultado de um cálculo no qual os conceitos jurídicos são os fatores; quanto mais determinante o valor desses fatores, tanto mais certos os resultados dos cálculos serão. É imediatamente óbvio que o verdadeiros sistema de direitos, a interligação de suas proposições, só pode ser revelada por um completo entendimento dos conceitos jurídicos.59
Dentre outros argumentos da teoria de Alexy que servem para
racionalizar a justificação externa do raciocínio jurídico, o uso dos precedentes
não será agora ventilado, pois, quanto ao princípio da universalizabilidade, será
referido no terceiro capítulo desta dissertação. Mas, se o argumento do uso dos
precedentes na justificação externa do raciocínio jurídico fosse analisado a partir
do espectro da discricionariedade, ainda aqui se poderia verificar a existência de
discricionariedade, dada a maioria do pensamento jurídico de que dois casos
nunca serão completamente idênticos.
A Teoria da Argumentação proposta por Atienza também não
consegue vencer a discricionariedade da decisão judicial. Esse autor, após criticar
Alexy e MacCormick60 quanto à falta de aproximação entre suas teorias
argumentativas e os fatos que inclusive justificam as discussões jurídicas,
59 Ibid, p. 243. 60 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 213
32
apresenta aquilo que denominou de Projeto de uma Teoria de Argumentação
Jurídica, o qual defende a utilização de um “modelo complexo de racionalidade
prática”, que se utiliza de racionalidades discursivas, estratégicas e legislativas
(no sentido de legislação como fonte do direito)61.
Entretanto, apesar de apresentar proposta metodológica de
organização dos argumentos via fluxograma, o que, observe-se, Alexy faz com
um rigor formal muito maior, Atienza não se livra da questão envolvendo a
discricionariedade da escolha das premissas externas do raciocínio de uma
decisão judicial, como se pode depreender da seguinte passagem, em que
justifica o que denomina de função política ou moral da teoria da argumentação
jurídica, que:
[...] se relaciona com a questão de qual é o tipo de ideologia jurídica que está sempre, inevitavelmente, na base de uma determinada concepção de argumentação. [...] na minha opinião, a teoria da argumentação jurídica teria de se comprometer com uma concepção – uma ideologia política e moral – [...]. Quem tem de resolver um determinado problema jurídico, inclusive na posição de juiz, não parte necessariamente da ideia de que o sistema jurídico oferece uma solução correta – política e moralmente correta – desse problema. Pode muito bem ocorrer o caso de que o jurista – o juiz – tenha de resolver uma questão e argumentar a favor de uma decisão que é a que ele julga correta, embora, ao mesmo tempo, tenha plena consciência de que essa não é a solução que o direito positivo leva.62
Dessa forma, conclui-se que as teorias de argumentação jurídica,
apesar de apresentarem fórmulas, métodos e raciocínios que demonstram
significativos avanços na observação analítica da decisão judicial, não foram
capazes de afastar a discricionariedade de uma decisão judicial, ao menos, da
escolha externa das premissas que integrarão as proposições de uma decisão. O
que, por conseguinte, também fulmina a afirmação dworkiana da existência de
respostas corretas para os casos submetidos à apreciação dos órgãos judiciais,
ou ainda quanto às afirmações alexyanas e maccormickanas de que uma decisão
pode ser correta, aproximação esta também deflagrada por Atienza.63
61 Ibid, p. 214. 62 Ibid, p. 225-226. 63 Idem.
33
Essas afirmações envolvendo a discricionariedade da decisão judicial,
apesar das diversas tentativas de controle formal de sua estrutura e material de
seu conteúdo, são tão convincentes e reverberantes no âmbito da teoria do direito
que há uma corrente teórica denominada de realismo jurídico, construída sob
essa atuação judicial, a qual se passa a expor em seguida.
Observe-se, entretanto, que o modelo que será objeto de nossa análise
é o norte-americano. Haveria ainda o realismo escandinavo, onde Alf Ross pode
ser posicionado, e o mais atual, de Gênova, onde Riccardo Guastini pode ser
considerado um dos representantes. Apesar de sua origem ser anterior às ideias
debatidas até aqui, a abordagem da discricionariedade sem uma breve inserção
no realismo norte-americano não permitiria compreender satisfatoriamente a
decisão judicia e a Teoria do direito.
1.4 REALISMO JURÍDICO NORTE-AMERICANO E DECISÃO JUDICIAL
Analisando-se a história do direito dos últimos dois séculos, pode-se
perceber que esse cenário da teoria do direito que discute, ora concebendo, ora
refutando a discricionariedade da decisão judicial, encontra íntima correlação com
a ousada proposta de um juiz da Suprema Corte estadunidense do final do século
XIX, Oliver Wendel Holmes Júnior. Considerado a maior celebridade jurídica
americana por muitos, Holmes seria o maior influente da cultura jurídica do
common law com duas obras. A primeira, The Path of Law, apresentada na
Revista de Direito de Harvard de 1897, é o ato inaugural do realismo jurídico.64
A proposta de Holmes consistia, seguindo uma tendência teórica
antijusnauralista e antipositivista (essa no sentido de crítica da exegese e do
formalismo a partir de Savigny, ou seja, o normativismo do século XIX e não o
positivismo analítico do século XX, posterior ao próprio texto de Holmes) daqueles
que buscavam uma descrição mais sociológica do direito, um olhar para a
realidade do direito, refutando visões até então predominantes das fontes do
direito, sejam elas abstratas e metafísicas, sejam elas formalistas e institucionais.
64 GODOY, Arnaldo S. M. O realismo jurídico em Oliver Wendel Holmes Jr. Brasília: [s/n], 2006,
, nº 171, p. 92.
34
O realismo jurídico iniciado por Holmes, continuado por Roscoe Pound
e aperfeiçoado por Jerome Frank consiste na consideração de que o direito não
pode ser apreendido de forma objetiva. O juiz, ao decidir os casos que lhe são
submetidos, cria direito aplicando a solução que entende correta em cada um
desses casos. Assim, o realismo afronta de forma direta e veemente alguns
institutos jurídicos caros à teoria do direito, como a chamada certeza jurídica, pois
a concebe, por exemplo, como “um mito a ser derrubado para se elevar sobre as
suas ruínas o direito como contínua e imprevisível criação.”65
A proposta da presente seção não é esgotar a discussão sobre o
realismo, mas somente verificar dentro da sua teoria qual teria sido o papel do juiz
nas decisões judiciais que profere. E, de fato, o que antes chamávamos de
discricionariedade, com uma nítida intenção de demonstrar que as teorias
positivistas hartianas e a tese da resposta correta de Dworkin não conseguiam
dela se desvencilhar, aqui no realismo americano a discricionariedade é regra de
julgamento, ou seja, modus operandi dos órgãos jurisdicionais.
Por essa razão, Holmes diria que os precedentes nada mais são que
profecias:
O processo é um, partindo da fala de um advogado de um caso, eliminando como faz com todos os elementos com os quais a história de seu cliente o vestiu [o caso], e mantendo somente os fatos de importância legal, até a análise final e abstração universal de jurisprudência teórica. A razão pela qual um advogado não menciona que o seu cliente vestiu um chapéu branco quando nós fizemos um contrato, enquanto o Sr. Malandro teria certeza de residir sob a partícula de cálice parcialmente dourado e fogo de carvão do mar, que ele prevê que a força pública vai agir da mesma forma independentemente do que seu cliente tinha sobre a cabeça. É para fazer com que as profecias sejam mais fáceis de serem lembradas e para que sejam entendidas que o ensino das decisões do passado são colocados em proposições gerais e compilados em livros, ou que os estatutos são passadas de forma geral. Os direitos e deveres primários com os quais a jurisprudência se ocupa não são nada além de profecias.66
65 BOBBIO, Norberto, Teoria da Norma jurídica, op. cit., p. 66. 66 ”The process is one, from a lawyer’s statement of a case, eliminating as it does all the dramatic
elements with which his client’s story has clothed it, and retaining only the facts of legal import, up to the final analyses and abstract universals of theoretic jurisprudence. The reason why a lawyer does not mention that his client wore a white hat when we made a contract, while Mrs. Quickly would be sure to dwell upon it along whit de parcel gilt goblet and the sea-coal fire, is that he
35
Como se pode observar, segurança jurídica, coisa julgada e direito
adquirido são institutos jurídicos praticamente desconsiderados para o realismo
jurídico estadunidense, o que demonstra que uma atuação jurisdicional com esse
respaldo teórico tem alta carga de discricionariedade.
Por óbvio que também se deve considerar que a tradição jurídica em
que o realismo jurídico é desenvolvido destoa da tradição continental europeia,
em que a norma jurídica é positivada através de signos textuais em documentos
publicados e institucionalizados pelo Estado. Mas isso não quer dizer que é
completamente diferente. Como se verá no item “2.2” do próximo capítulo, a ratio
decidendi que justifica a aplicação dos precedentes no common law também é
conhecida a partir de signos textuais, capazes de, por analogia, autorizar a
verificação da racionalidade jurídica das decisões.
O realismo jurídico, portanto, mostra-se como o fim da linha da teoria
do direito na tentativa de conter a discricionariedade dos juízes na prolação de
suas sentenças. Seu viés sociológico, que beira o psicológico na forma como a
decisão judicial é descrita por Jerome Frank, chega a caçoar das teorias
tradicionais do direito. Este autor, talvez o que com mais incisão tenha defendido
a posição do realismo norte-americano, afirma que a ideia de que as normas
jurídicas sempre podem ser predicadas não passa de uma ilusão, a qual teria
como pressuposto um desejo de que o universo pudesse ser controlado, e de que
o homem, em suas relações interpessoais, nunca pecaria contra a confiança
mútua que estabelece as relações de confiança.67
A descrença de Frank é tão enfática quanto à possibilidade de prever
os julgamentos judiciais, e de controlar, assim, as decisões que serão proferidas
pelos juízes e tribunais, que afirma:
Consequentemente o mito que julga não tem poder de mudar o direito existente ou fazer novo direito: é um engrandecimento
foresees that the public force will act in the same way whatever his client had upon his head. It is to make the prophecies easier to be remembered and to be understood that the teaching of the decisions of the past are put into a general propositions and gathered into textbooks, or that statutes are passed in a general form. The primary rights and duties with which jurisprudence busies itself again are nothing but prophecies.” HOLMES, Oliver W. The Path of the Law. Harvard Law Review, 1897, [s.p.].
67 FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind: chapter IV – Judicial Law-Making, [s.a.] p. 34.
36
exacerbado direto de uma necessidade subjetiva para acreditar em um mundo legal estável e aproximadamente inalterável – em efeito, o mundo de uma criança.68
Sendo assim, seja no positivismo hartiano, seja em Dworkin, seja nas
teorias argumentativas, não se pode evitar a discricionariedade por parte dos
tribunais e juízes na qualificação jurídica dos fatos, especialmente se a legislação,
os precedentes verticais – vinculação que as decisões de tribunais superiores
exigem quanto às decisões dos tribunais inferiores e dos juízes singulares – ou as
técnicas de hermenêutica não se mostram capazes de apresentar uma única
solução prima facie69, muito menos uma forma de afirmar com certa segurança e
previsibilidade como é que os julgadores irão qualificar fatos e interpretar normas
de uma forma universalizável e geral.
Essa realidade, como se pode observar pelas noções que o realismo
apresenta, torna inevitável a consideração de que a Teoria do direito até os dias
de hoje não foi capaz de criar técnicas formais de controle das decisões judiciais,
tanto quanto ao seu resultado quanto em relação ao raciocínio empreendido pelo
julgador para justificar a decisão que está tomando. Ora, isso, de per si, afasta
qualquer pretensão de consideração de racionalidade da uma decisão, salvo no
âmbito interno onde as premissas lançadas pelo julgador já são apresentadas
como validamente corretas. Se se mostra difícil considerar qual será o resultado
da apreciação de um caso por um órgão judicial, quanto mais adentrar nos
meandros que o conduziram, a partir da própria racionalidade desse órgão, a
alcançar a solução proferida.
Observe-se que a proposta de Frank não considera que os juízes são
sabedores dessa realidade jurídica, e que por essa razão decidem sem nenhum
grau de responsabilidade ou dever de observação à aceitação pública. Para o
autor, a questão reside no fato de as decisões judiciais sempre serem, na prática,
ex post facto, ou seja, a aplicação da norma pelo julgador sempre ocorrerá após o
fato que justifica a aplicação da norma jurídica, sendo esta conhecida somente
naquele momento da história, na hora do julgamento. Logo, a ideia de que as
68 “Hence the myth that the judges have no power to change existing law or make new law: it is a
direct outgrowth of a subjective need for believing in a stable, approximately unalterable legal world – in effect, a child’s world.” Ibid, p. 35.
69 CELLA, op. cit., p. 22.
37
pessoas se encontram protegidas pelas leis não passa de uma ilusão, uma ilusão
preventiva que o mito das normas produz.70
A aceitação dessa realidade fragiliza alguns dos fundamentos
democráticos mais caros para os direitos fundamentais, como por exemplo a
separação das funções. Talvez, o realismo propalado por Holmes e Frank esteja
muito mais ligado às características da Revolução Americana, de característica
muito mais historicista que rompedora como a da realidade francesa, em que os
juízes protegiam a monarquia e os aristocratas, e buscavam manter o status quo
ante no momento pré-revolucionário.71
Frank tem consciência disso, já que, após apresentar sua ideia
estritamente pragmática, passa a refutar eventuais argumentos que contestariam
a legitimidade e autoridade dos juízes de ocuparem seus cargos públicos e de
decidirem sobre tais questões. A resposta que o autor propõe é a de que nem
sequer os juízes sabem que estão criando direito. Afirma que, diferentemente de
enganar e de mentir acerca das decisões que proferem, os juízes são eles
mesmos enganados pela ideia de que o direito é pré-existentes às decisões que
proferem.72
Kelsen já teria, de certa forma, criado essa hipótese ao falar da
interpretação e da aplicação do direito na sua teoria distingui-se da própria teoria,
cuja serventia afirmada pelo autor é declaradamente descritiva:
Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. A indeterminação pode respeitar tanto ao fato (pressuposto) condicionante com à conseqüência condicionada. A indeterminação pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar.73
Entretanto, em que pese parecer haver diálogo, no sentido de que há
uma espécie de espaço criativo para o intérprete e, portanto, de
70 FRANK, Jerome, op. cit, p. 37. 71 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fondamentales. Apuntes de historia de las
constituciones. Tradução de Manuel Martinez Neira. Madrid: Ed. Trotta, 1996, p. 27. 72 FRANK, Jerome, op. cit, p. 38. 73 KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. 393.
38
discricionariedade, não se verifica nada em comum além dessa margem de
escolha. A teoria kelseniana parte do pressuposto de existência de determinação
legal, ainda que indeterminada na forma da aplicação desse direito, concebendo
ainda a possibilidade de essa característica ser intencional. O realismo judicial,
por sua vez, tem outro pressuposto, diametralmente diferente. Considera a
tomada de uma decisão, ou seja, a formação de uma convicção para, somente
após, passar-se a fundamentar e escolher quais seriam os fundamentos racionais
explícitos responsáveis pela carga de legitimidade e – talvez nem sequer possa
se afirmar isso nesse tipo de teoria – racionalidade da decisão judicial.
A visão do direito no realismo jurídico norte-americano concentra-se na
prática dos tribunais e na consideração de que o juiz é aquele que detém o poder
de utilizar a força do Estado para fazer suas decisões serem efetivadas.74 Por
essa razão, na perspectiva do julgador, o direito deve ser entendido tal qual um
bad man o enxerga: como uma profecia do que pode lhe acontecer quando não o
respeita. Logo, “profecias do que de fato farão os tribunais”75, pois o bad man
somente cumpre com as normas jurídicas em razão das consequências que elas
preveem, e não por questões morais.76
A justificativa do bad man de Holmes seria de que o consumidor do
direito é o “fora da lei”, o “bandido”, e que por essa razão os juízes deveriam em
suas decisões raciocinar que o direito está no topo do poder estatal, estando a
eles submetido tanto os cidadãos como os próprios governantes, todos podendo
ser responsabilizados pela sua não observância. Isso teria origem na ótica
federalista que justificava a posição do juiz como superior a qualquer poder.
Assim, Holmes afastava a moral do direito, não no sentido de que ambas não se
correlacionavam, mas que o direito é simples aplicação das consequências fáticas
que o direito prevê.77
74 GODOY, Arnaldo S.M. Introdução ao Realismo Jurídico Norte-Americano. Brasília: edição do autor, 2013.p. 66. 75 Cf. HOLMES, Oliver W. Path of the Law. Tradução de Lauro Frederico Barbosa da Silveira e de Vinício C. Martinez. Campo Mourão: Rev. Discurso Jurídico, 2008, v. 4, n. 1, p. 270. 76 Cf. Idem. 77 GODOY, Arnaldo, 2013, p. 64.
39
Tal é também parte do pensamento positivista, mas que, apesar de
também ter a consequência jurídica como sanção na estrutura de seu conceito,
diferentemente do realismo, considera a aplicação do direito dependente da
existência da previsibilidade que as normas jurídicas fornecem.
Justamente em razão dessas diferenças é que Bobbio afirma que o
realismo se confronta com o direito natural e o direito positivo, para desmantelar
qualquer pedra sobre pedra na consideração prévia do direito que é aplicado,
como se fosse capaz de proporcionar certa segurança aos súditos da ordem
jurídica. O centro do realismo, assim, estaria dentro da eficácia do direito, na sua
efetiva repercussão nos litígios que são levados à apreciação dos juízes e das
cortes.78
Mas não se pode negar que a contribuição que o realismo fornece é
inegável quanto à dose de realidade que se testemunha na prática forense
cotidiana. No Brasil, por exemplo, assiste-se a um fenômeno em que os juízes e
tribunais, a fim de justificarem decisões que não encontram respaldo legislativo,
ou o possuindo esquivam-se dele por considerar seus efeitos injustos. O
problema, entretanto, é que essa injustiça não parte de uma conceituação jurídica
pautada pelo direito vigente e positivo – o que poderia ser uma visão “jurídica“ de
justiça – mas de conceitos de justiça pertencentes a outras searas, como a
sociologia, a filosofia e a política, as quais justamente em razão da diferença de
seus referenciais teóricos não permitem uma unanimidade na formulação de seu
conceito.
Já em outras ocasiões, sob influência da teoria dworkiana de
princípios, em que já foi demonstrada nas linhas anteriores sua concepção de
certa forma equivocada, os órgãos julgadores brasileiros, na falta de fundamentos
jurídicos por vezes os criam, dando a eles uma roupagem jurídica, mas que na
essência nem sequer correspondem ao direito.
Nesse sentido, a crítica de Lênio Streck mostra-se pertinente, para
quem:
78 Cf. BOBBIO, Norberto, op. cit, p. 62.
40
[...] deslocar o problema da atribuição de sentido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da linguagem, no individualismo do sujeito que ‘constrói’ o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo [...]. Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginário dos juristas. [...] Por vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes [...] deixam ‘claro’ que estão julgando ‘de acordo com a consciência’ ou ‘seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei’, Em outras circinstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder discricionário dos juízes.79
Como se procurou demonstrar até aqui, e nesse aspecto deve-se
torcer o braço aos realistas, a teoria do direito, apesar de criticar e teorizar a
discricionariedade diuturnamente testemunhada nas decisões judiciais, ainda não
foi capaz de apresentar um modelo ou forma que controle essa questão. As
decisões judiciais, especialmente nos casos em que a subsunção da norma ao
fato não se mostra de fácil acoplamento, ou ainda em que aquela norma que
naturalmente se aplicaria não ser aquela que o julgador decide usar, a opção
pessoal ou consciência particular prevalece sobre qualquer delimitação de
racionalidade e coerência com o direito vigente.
Essa realidade também pode ser encarada de outra forma.
José Rodrigo Rodrigues, em pesquisa envolvendo a racionalidade das
decisões judiciais brasileiras – o que será propriamente explorado no segundo
capítulo dessa dissertação – identifica que o modelo de racionalidade jurídica
adotado pelos órgãos judiciais brasileiros é caracterizado pela invocação de
autoridades (nesse modelo de argumento desinteressa o porquê da decisão, mas
somente quem a profere, sendo o objetivo de sua utilização o resultado da
decisão) e por uma jurisdição opinativa (nesse modelo de decisão, a força
gravitacional que sustenta os argumentos não é a melhor decisão para o caso,
mas sim a opinião personalíssima do julgador).80
79 STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2012, 3.ed., p. 20. 80 RODRIGUES, José. R. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro).
Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 82.
41
Conforme o autor, especialmente nos órgãos colegiados (tribunais), as
decisões são tomadas sem nenhuma organização dos argumentos que decidirão
o caso. Isso torna a decisão uma jurisprudência de resultado, vez que a ratio
decindi não se mostra importante ou relevante para o julgamento da questão. Os
integrantes dos colegiados, especialmente no caso dos Tribunais Superiores, e
especialmente quando os casos são de repercussão social, apresentam suas
opiniões quanto aos fundamentos que entendem devidos para a solução da
disputa. Rodrigues, assim, descreve que uma mesma decisão favorável (ou
desfavorável) à parte recorrente poderá possuir diversos argumentos para
sustentar a sua racionalidade jurídica, mas isso não será em momento nenhum
levado em consideração.
Ocorre que as decisões proferidas por essa jurisprudência de resultado
acabam sendo, sob a ótica da discricionariedade, uma realidade tangível nos
órgãos judiciais brasileiros. Rodrigues demonstra em sua obra que em decisões
proferidas por alguns Tribunais Superiores (Tribunal Superior do Trabalho,
Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, respectivamente), ora o
fundamento de uma decisão está nas opiniões pessoais dos julgadores, sem
nenhuma racionalidade ou deliberação justificadora dos argumentos da decisão81;
ora os fundamentos da decisão são as próprias opiniões pessoais dos julgadores
já manifestadas em outras decisões82 e; ora são utilizados diversos argumentos
justapostos sem nenhuma correlação, e que ao fim e ao cabo, sequer são
exteriorizados na transcrição do julgamento83.
Disso tudo, pode-se concluir que a jurisdição brasileira admite e
institucionaliza a discricionariedade nas decisões judiciais. Essa
discricionariedade, apesar de não utilizar nenhuma espécie de argumentação –
apesar de muitas vezes passar perto disso – autoriza que os julgadores (juízes e
tribunais) decidam conforme seu livre convencimento, a partir de razões
particulares (jurídicas ou não jurídicas), sem nenhuma sistematização ou
organização. Isso acaba permitindo uma discricionariedade na utilização dos
81 Ibid, p. 86-89. 82 Ibid, p. 90-97. 83 Ibid, p. 98-102.
42
argumentos, sem que eles necessariamente sejam racionalmente construídos ou
consoantes entre si.
Como demonstrado por Rodrigues, os argumentos utilizados nas
decisões são, em sua grande maioria, de autoridade, o que afasta a necessidade
de demonstrar a racionalidade da aplicação do direito utilizando tão-somente a
autoridade do órgão prolator ou do doutrinador citado como justificativa para o
acatamento da tese. Além disso, esses argumentos de autoridade nem sequer
são demonstrados como correlacionados com o julgamento da causa, ou seja, a
pertinência fática em relação aos argumentos externados não e demonstrada, o
que torna, não poucas vezes, a realidade do caso e os argumentos que
justificaram as decisões discrepantes entre si.
Mas “o direito não é (não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele
seja”84. Apesar do dilema85 que essa forma de aplicação do direito envolve,
acredita-se que a racionalidade jurídica sob uma forma analítica, com a aplicação
de uma lógica subjacente86, pode contribuir para o resgate, ao menos em parte,
para a coerência das decisões judicias. Esse ressurgir, muito mais tímido e
particular que se imagina, apesar de se equivaler de alguns conceitos lógico-
matemáticos de alguns ensaios de teoria do direito nos séculos XIX e XX, não
tenta fazer ressurgir essas questões de certa forma já superadas pelas teorias da
argumentação jurídica e do positivismo jurídico pós-hartiano.
84 STRECK, Lenio, op. cit, p. 25. 85 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 226. 86 Em razão da brevidade da presente dissertação, o que torna impossível a especificação e
descrição daquilo que seria uma lógica analítica apropriada para o desenvolvimento da regra de razão prática particular do autoprecedente, e sua aplicação por meio de um sistema eletrônico experto, utilizar-se-á a expressão “lógica subjacente” no sentido de que o raciocínio da decisão judicial, se analisado a partir de uma lente analítica, pode depreender a existência de uma estrutura formal dedutiva lógica. A opção por não defender uma espécie de lógica dentre as diversas existentes justifica-se, além do espaço dessa dissertação, na complexidade filosófica que ostentam, o que pode ser inferido pela seguinte afirmação de Susan Haack:” Uma coisa pelo menos deve estar inteiramente clara por ora: que a questão se um sistema formal deve ser considerado como uma lógica ou não é, ela própria, uma questão que envolve problemas filosóficos bastante profundos e difíceis. O melhor é que a presença universal dos problemas filosóficos na lógica esteja evidente desde o princípio. Pois o próprio rigor, que é a principal virtude da lógica formal, também tende a lhe dar um ar de autoridade, como se ela estivesse acima do exame filosófico. E esta é também uma razão pela qual enfatizo a pluralidade dos sistemas lógicos; pois, ao se decidir sobre alternativas, frequentemente se é obrigado a reconhecer preconcepções metafísicas ou epistemológicas que, de outra maneira, permaneceriam implícitas.” HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP, 2002, p. 36.
43
Apesar de se reconhecer que a discricionariedade judicial é uma
realidade inevitável nas decisões judiciais e, especialmente, nas decisões dos
juízes brasileiros, as linhas precedentes tiveram como objetivo demonstrar que a
teoria do direito não possui de maneira unânime e universal uma fórmula ou
método capaz de determinar o acerto de uma decisão. Como se pode ver, os
julgadores, sejam singulares ou colegiados, ainda transitam triunfantes pela
discricionariedade judicial, respaldados, inclusive, por parte da teoria do direito.
Essa postura, que justifica este estudo, afronta, entre outros, o princípio
democrático da separação das funções, e, portanto, o próprio Estado democrático
de direito, trazendo uma confusão de papeis já há muito tempo denunciada por
Waldron, que, ao comentar a teoria positivista de Hart, assim tratou dessa
questão:
Em uma sociedade ‘pré-jurídica’, isto é, uma sociedade governada por um conjunto de práticas morais e convencionais, todos conhecem as regras. A transição para a governança jurídica, porém, e o estabelecimento de regras de reconhecimento inevitavelmente implicam o surgimento de um exército de detectores de leis especializados, que conhecem as marcas da legislação e sabem como dizer quais regras receberam deliberadamente autoridade e quais não receberam.87
E mais:
Os juízes erguem-se acima de nós no seu solitário esplendor, com seus livros, seu saber e seu isolamento das condições da vida comum. Se não estão sozinhos na banca, estão rodeados por um número bem pequeno de íntimos de distinção similar, com os quais podem cultivar relações de espírito acadêmico, erudição e virtude exclusiva. Um parlamento, em contraste, é um corpo rebelde, muitas vezes maior que esse número – talvez até centena de vezes maior.88
Portanto, a discricionariedade judicial repercute na questão da
legitimidade dos juízes e tribunais, no princípio democrático da separação das
funções e, por fim, na teoria das fontes do direito.
87 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 16. 88 Idib, p. 37.
44
Entretanto, a fim de justificar a proposta dessa pesquisa –
autoprecedente como regra de razão prática das decisões judiciais – melhor
explicitada no terceiro capítulo desse trabalho, mostra-se imprescindível adentrar
em duas searas, objeto do próximo capítulo, que servirão como fundamentos para
a proposta que se apresenta ao fim: a lógica jurídica e a teoria dos precedentes.
45
CAPÍTULO 2
LÓGICA JURÍDICA E PRECEDENTES
De um ponto de vista filosófico, a decisão judicial consiste em um
empreendimento intelectual manifestado por um discurso argumentativo. De um
ponto de vista sociológico, é uma forma de resolução de conflitos sociais entre
reivindicantes de direitos contrapostos. Desse modo, como o discurso da decisão
precisa demonstrar quem é o reivindicante que tem direito, e isso ocorre por meio
de argumentos, inegável que a decisão judicial deva ser racional.
A racionalidade representa a característica típica dos homens de
abstrair por meio de ideias o sentido do mundo e das coisas que o preenchem, o
que se faz a partir do pensamento. Este, por sua vez, traduz-se na imaginação
que correlaciona tudo aquilo que faz parte da experiência humana e que, através
de uma atividade cerebral, permite que o conhecimento sobre as coisas, quando
interrelacionadas entre si, seja renovado por meio de descobertas de coisas e
realidades até então desconhecidas.
Pela sua característica imaterial, o pensamento somente pode ser
conhecido quando manifestado por meio da linguagem, seja qual for a sua forma.
Entretanto, como é possível verificar se um pensamento exteriorizado através da
linguagem está correto ou apresenta-se verdadeiro? Aqui surge a lógica como
ferramenta tecnológica capaz de aferir a validade ou a correção de uma
expressão linguística externada por alguém.
Na seara do direito, essa possibilidade de verificação de validade e
correção é conhecida como lógica jurídica, vez que, como já visto no capítulo
anterior, o raciocínio jurídico e a consideração do que é racional, correto ou válido
para a ciência do direito não é unânime entre os seus teóricos.
Segundo Perelman, a lógica jurídica deve ser vista de uma forma
particular e específica, não da forma como a filosofia a compreende e a utiliza
para responder perguntas gerais a partir do uso de estruturas formais do
pensamento. Para referido autor, a racionalidade jurídica, na formação do
46
pensamento, organiza as ideias a partir de exemplos e de analogias a outras
decisões judiciais consideradas racionais pela comunidade jurídica.89 Quer-se
chegar em uma conclusão diversa com esta dissertação
A ideia perelmeniana, como já demonstrado no capítulo anterior, parte
do pressuposto de que a lógica jurídica teria nas formas dialética e retórica sua
racionalidade. Entretanto, especialmente diante dos avanços que as tecnologias
da informação e comunicação promoveram desde meados do século XX90,
acredita-se que cogitar uma nova forma de ver o direito através do uso dessas
tecnologias, perpasse por uma revisitação nos fundamentos básicos da lógica
analítica e matemática a fim de identificar quais seriam algumas das razões que
frustraram os projetos nesse sentido, especialmente após as Grandes Guerras.
Por essa razão, partindo da hipótese de que a lógica dialética não
proporciona controle à decisão judicial, e a fim de falsear a premissa
perelmaniana de que a racionalidade jurídica está intimamente ligada aos
precedentes dos órgãos judiciais, tentar-se-á nesse capítulo correlacionar
algumas teorias analíticas da racionalidade jurídica, para compreender quais são
as características que delimitam e justificam a racionalidade jurídica analítica, com
os chamados precedentes, buscando entender as características dos exemplos e
analogias, supostamente essenciais ao pensamento jurídico racional.
2.1 LÓGICA JURÍDICA
2.1.1 Lógicas Analítica e Dialética Antigas
Aristóteles, em sua obra Primeiros Analíticos, apresentou ao mundo
método capaz de conhecer, pelo raciocínio dedutivo, a veracidade de uma
demonstração externada a partir de uma afirmação linguística, ao que se
denomina de lógica silogística. Afirmava que toda estrutura de raciocínio dedutivo
é composto por proposições que afirmam ou negam uma coisa de outra. As
proposições, por sua vez, são constituídas por termos, elementos que são
89 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 07. 90 Nesse sentido, ver: LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:
Ed. 33, 1999; CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo: Paz e terra, 1999.
47
atributos ou sujeitos a quem os atributos são atribuídos. E, por fim, o próprio
silogismo, que consiste no estabelecimento de duas proposições que levam a
uma conclusão necessária expressa por uma terceira proposição.91
O objetivo do filósofo era demonstrar uma estrutura formal para o
raciocínio, ou seja, qual é o caminho que se percorre para se chegar a uma
conclusão, e a observância desse caminho determinaria a sua veracidade ou
validade. Assim, quando o raciocínio mostrar-se correto ou válido, ter-se-ia então
um raciocínio lógico, o qual, por meio da linguagem, foi capaz de justificar, através
das proposições iniciais, conhecidas como premissas, a veracidade ou validade
da proposição final, ou seja, da conclusão. Isso caracterizaria o raciocínio lógico
analítico.
Tal raciocínio lógico silogístico ainda foi diferenciado por outra forma de
justificação do pensamento, o raciocínio lógico dialético, também proposto por
Aristóteles e objeto de suas as obras Tópicos, Retórica e Refutações Sofísiticas.
Nessas, Aristóteles diferencia o raciocínio dialético do analítico pelo fato de o
primeiro não se utilizar de premissas (proposições iniciais) irrefutáveis, mas sim
de proposições contendo elementos cujo conceito ou conteúdo são
presumidamente reconhecidos pelos ouvintes do discurso, ainda que não de
forma unânime, não sendo o objetivo dessa forma de raciocínio verificar a
veracidade ou validade da conclusão, mas simplesmente persuadir e convencer
àqueles a quem é dirigido o discurso.92
A conclusão que decorre do raciocínio dialético, apesar de usar a
mesma estrutura (três proposições, duas premissas iniciais, maior e menor, e
uma conclusiva), não se encerra em uma conclusão necessária, como ocorre no
raciocínio analítico, mas sim em uma provável ou plausível conclusão, aceitável
àqueles que participam do discurso.
Conforme já visto no primeiro capítulo desta dissertação, a decisão
judicial pretensiosamente correta e justa não admite um raciocínio puramente
91 ARISTÓTELES. Tratados de Lógica (El Organon). Tradução de Francisco Larroyo. México
D.F.: Editorial Porrúa, 1993, p. 71. 92 Cf. PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 02.
48
analítico e formal, estando mais próxima de um raciocínio dialético, construído a
partir da concatenação de argumentos.93 Isso, entretanto, pode ser revisto a partir
de lógicas formais contemporâneas.
Ocorre que a história, outrora, testemunhou tentativas de fazer da
decisão judicial um raciocínio analítico. Havia, no passado, uma investida em
caracterizar a lógica jurídica como decorrente do raciocínio analítico. E para
compreender quando e como se pospôs essa tentativa, apresentar-se-á adiante
um esboço de tal empreendimento racional-analítico.
2.1.2 Lógica Jurídica Analítica.
Enquanto na Idade Média Deus era a fonte produtora do direito
manifestado pelo empreendimento interpretativo da Igreja, a libertação promovida
pela razão, que também deu azo às Revoluções Liberais dos setencentos,
acabou reposicionando a racionalidade como fonte de onde se deriva a
organização social e, consequentemente, as normas jurídicas também foram
influenciadas.
Nesse momento, de substituição do místico pela razão, que ressurgem
algumas ideias aristotélicas da estrutura do raciocínio. Até então, enquanto as
premissas pra encontrar a verdade e o justo eram determinadas pelo
sobrenatural, não era possível, pelo raciocínio lógico, atribuir equívocos ou
contestar à correção das decisões judiciais. Aliás, nem sequer se cogitava, em um
sentido geral, discutir a racionalidade das decisões. Ora, as premissas
determinadas pelos textos sagrados eram inacessíveis à maioria das pessoas em
razão da barreira linguística dos idiomas grego e latim. Nesse contexto, sendo a
igreja investida da primazia na interpretação dos textos e detendo o poder de
influenciar o julgamento, inexistiam argumentos para justificar qualquer afirmação
de falta de racionalidade.
Com a modernidade, elegeu-se a razão como fonte criadora do direito,
o que veio proporcionar a constatação lógica das decisões proferidas pelos
julgadores. Entretanto, sob a influência das matemáticas e disciplinas empiristas,
93 Cf. MACCORMICK, Neil, op. cit, p. 05-08.
49
a comunidade científica desse período somente caracterizava como científico o
que fosse aferível no plano cartesiano, ou seja, somente se atribuía cientificidade
àquilo que fosse passível de racionalização formal e confirmação pela
experiência, e isso a partir de evidências.94
Nessa toada, a teoria do direito passou a ensaiar a aplicação da lógica
analítica ao emprego do direito pelas normas positivadas. Constituindo, essa
aplicação, nada mais que a subsunção do fato à norma, o juiz e sua decisão
passaram a exercer papel fundamental na organização do Estado.
A discussão de Chevalier sobre o poder no Estado de direito no
período pós-revolucionário demonstra, de forma cabal, especialmente na França,
essa realidade de resgate da lógica silogística à racionalidade jurídica:
[...] personagem-chave do Estado de Direito, o juiz se vê atribuído com a função de garantir o respeito às leis; mas essa função é percebida como uma função ‘objetiva’, excluindo toda margem de livre determinação. Se o controle jurisdicional não degenera em ‘governo de juízes’, isso é porque o trabalho jurisdicional deve ser de natureza puramente dedutiva; o juiz estaria somente ‘aplicando’ a lei, tirando as consequencias da hierarquia das normas; a serviço exclusivo da norma, ele mesmo não exerceria ‘poder’. E a sua independência apenas testemunharia a transcendência do direito em relação ao político. Os constituintes perceberão dessa forma a função exercida pelos juízes como uma função de aplicação puramente mecânica da lei: julgar consiste, ao termo de um raciocínio silogístico, em fazer aplicação de lei às situações particulares.95
A crença de que o direito se resumia à aplicação da lei por meio de um
empreendimento silogístico, nada mais que isso, revela-se, portanto, como
herança das Revoluções Liberais que apregoaram o exercício do poder pelo povo
e para o povo e do princípio da separação das funções, de Montesquieu, como
demonstrado.
A decisão judicial, portanto, era formalmente estruturada em um
simples silogismo, agora judiciário: enquanto a premissa maior consistia na regra
94 PERELMAN, Chaïn; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A Nova
Retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 03
95 CHEVALIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 56,
50
de direito apropriada ao caso que exigia a solução judicial, a premissa menor era
caracterizada pelo preenchimento das hipóteses previstas na regra (sendo este o
verdadeiro trabalho racional do juiz, subsumir o fato à norma), consistindo, pois, a
proposição conclusiva a própria decisão judicial.
Para tal desiderato, era necessário que a doutrina jurídica criasse um
sistema de direito a partir da legislação vigente que englobasse a totalidade dos
fatos da vida passíveis de regulamentação. Além disso, era preciso que o objeto
de ditas previsões normativas não estivesse assentado sobre duas ou mais
regras distintas umas das outras, impossíveis de serem aplicadas
concomitantemente. Situação tal impediria o juiz de distinguir, diante do caso
concreto, a norma a ser devidamente aplicada.
Tampouco poderiam coexistir normas contraditórias entre si; ora,
ordenando, ora permitindo, ora proibindo (e assim por diante) uma mesma
conduta ou situação. Logo, a aplicação de uma jurisprudência mecânica
dependeria da perfeição do sistema de leis criadas pelo Estado de direito.96
Todavia, a exigência de um sistema normativo completo, conforme o
propunha o período pós-revolucionário, não passou de uma ilusão. Não há que se
confundir a pretensão de que um sistema jurídico seja efetivamente completo,
conforme “o chamado postulado da plenitude hermética do direito”, com a
pretensão de que todo sistema deva ser completo97, mesmo por que a função da
lógica jurídica, ao menos quanto à análise das normas jurídicas, passa a ser
prescritiva: “não diz como os homens pensam ou raciocinam de fato, apenas
como deveriam fazê-lo”98.
Justamente em razão de não ser raro falhar a completude do sistema,
os juízes franceses eram levados a utilizar uma regra prevista na Lei nº 1.624 de
agosto de 1790, que os obrigava a realizar expediente consultivo perante o
legislativo acerca da solução de casos que não tinham previsão nas leis vigentes.
96 Cf. PERELMAN, Chaïn, op. cit, p. 33-34. 97 “[...] el llamado postulado de la plenitud hermética del derecho.” Cf. ALCHOURRÓN, Carlos;
BULYGIN, Eugenio. Introdución a la metodologia de las ciencias juridicas e sociales. Buenos Aires: Astrea, 1998, p. 25.
98 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 30.
51
Referida situação, conforme relata Perelman, teria conduzido a uma enxurrada de
procedimentos consultivos que inviabilizaram o julgamento dos casos, o que teria
promovido verdadeira indignação social. A solução para o problema gerado por
essa herança da Revolução teria vindo com o Código de Napoleão, em que se
passou a obrigar que os juízes decidissem os casos, mesmo diante de lacunas e
antinomias normativas, sob pena de punição por denegação da justiça, conforme
o art. 4º Código Napoleônico.99
Mas essa liberdade para julgar, semelhantemente ao período pré-
Revolução, acaba sendo novamente utilizada para o cometimento de abusos. A
Escola da Exegese (1804-1899) surge justamente para reduzir o âmbito da
deliberação judicial à previsão do Código de Napoleão. A função do juiz era,
conforme propagação da referida escola, estabelecer os fatos, a repercussão
normativa, motivando e fundamentando sua decisão a partir da qualificação
jurídica desses fatos.
Nesse aspecto, Perelman expõe quão grandes e radicais foram as
mudanças, geralmente marcadas por topois, que determinavam, por exemplo,
como deveria ser considerada a prova no tempo exegético. Na realidade, a
limitação da atividade decisional nesse momento histórico, então consistente na
qualificação jurídica dos fatos alegados pelas partes, demonstrou as decisões
como pré-determinadas na consideração das provas apresentadas pelas partes.
Mas, como essa consideração jurídica das provas haveria de estar definida na lei,
até aqui, não havia espaço para discricionariedade.
Assim, se uma regra prescrevesse que a prova testemunhal prevalecia
sobre a documental, o teor do testemunho determinava a decisão. Caso a norma
fosse alterada, dando maior peso à prova documental que ao testemunho, o teor
do documento mostrava-se determinante para o resultado da decisão.
Tais considerações denotam o engessamento da denominada livre
convicção do julgador. Segundo o autor, somente a partir da influência do direito
99 Cf. PERELMAN, Chaïn, op. cit, p. 24.
52
penal se passou a admitir que a avaliação das provas dependesse também de um
esforço íntimo de convicção do juiz.100
Dessa forma, segundo a teoria exegética, que exigia que a obtenção
de uma conclusão se desse por um silogismo (judiciário), mesmo diante de
sistemas normativos incompletos caracterizados por lacunas e antinomias, a
decisão judicial passou a adotar, para tornar aquilo possível, técnicas próprias
que passaram a definir o raciocínio judiciário.
Ainda como consequência do resgate da razão como determinante da
vida em sociedade pelo iluminismo, surgiu o positivismo filosófico, o qual apesar
de repercutir na teoria do direito, não pode ser confundido com o positivismo
jurídico. Por positivismo filosófico considera-se:
[...] cada direção da filosofia e ciência que parte do positivo, dado, compreensível, somente nisso ou nessa descrição exata vê o objeto da investigação, rejeita cada metafísica de tipo transcendental e quer eliminar todos os conceitos do supra-sensível, de forças , casusas, sim, até, muitas vezes, as formas do pensar apriorístico (categorias) da ciência.101
Desse modo, se o positivismo filosófico somente considera como
objeto da ciência aquilo que é compreensível, portanto, fatos, essa corrente
filosófica não é capaz de investigar o direito, entendido esse como um sistema de
normas. Isso porque as normas jurídicas são, conforme ensina Kelsen, “sentidos
de fatos, ou seja, o sentido de atos de vontade dirigidos à conduta humana”.
Ocorre que a validez dessa norma depende de fatos. Nesse sentido, válida é a
norma que deve ser cumprida, e se não é cumprida gera uma sanção, prevista na
própria norma. Pois bem, seriam justamente esses fatos envolvendo o dever de
cumprir e a aplicação de sanções, ou seja, que condicionam a validade do direito,
o objeto do positivismo jurídico. E se esses fatos são atos humanos, para o
positivismo somente é direito àquilo que provem de uma conduta humana.102
100 Cf. Ibid, p. 31-37. 101 EISLER, Rudolf. Wörterbuch der philosophischen Begriffe, 4. Aufl., 2. Bd., 1929, S. 474, apud KELSEN, Hanz, 2010, op. cit, p. 85. 102 KELSEN, Hanz, 2010,op. cit, p. 86.
53
Conforme relata Bobbio, o positivismo jurídico tinha como precursor
Kelsen, para quem “aquilo que constitui o direito como direito é a validade”, e não
a justiça, conforme preconizavam os defensores do direito natural103.
Mas a teoria de Kelsen consiste em método de descrever o direito,
visto como sistema de normas, considerando essas como fatos. Tratava-se de
uma teoria para o estudo científico do direito, razão por que as diferenças na
definição do que era moral, ético ou político precisavam ficar de fora. Essa teoria
do direito, apesar receber o legado de ter contribuído à posição jurídica do
nazismo, e de injustamente ser equiparada às posições jurídicas de Schmitt, um
dos pensadores do Estado nacional-socialista alemão dos meados do século XX,
afastava considerações filosóficas do estudo do direito por uma questão
pureza104.
Conforme relata Neumann, apesar de Schmitt ter sido enfático ao
afirmar que o Estado nacional-socialista não era um Estado de direito, mas sim
um Estado verdadeiramente justo, os discursos ideológicos constantemente
perpetrados pelo movimento nacional-socialista levaram referido filósofo a ceder
em sua posição, vez que um Estado justo sem ser um Estado de direito mostrava-
se sem sentido.
A liberdade dos juízes, existente antes da tomada do poder pelo
Partido dos Trabalhadores, declarada pelo próprio Hitler em discurso no
Reichstag em 23 de março de 1933, e que teria, inclusive, garantido os tempos
democráticos na República de Weimar, agora passava a ter nova significação.
Além de a decisão ser serva absoluta da lei, equiparando-se ao líder do Estado,
deixou de ser instrumento de proteção contra a turbação dos direitos estatais,
para se tornar mecanismo de ataque à hostilidade contra a ideologia nacional-
socialista.
A “forma legal” utilizada por Hitler foi a de rejeitar axiomas elementares
do direito. O primeiro axioma afastado relacionava-se à técnica de produzir leis
103 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani
Bueno Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001, p. 50 104 TORRANO, Bruno, op. cit, p. 158.
54
particulares e não gerais. As normas particulares combatiam pontualmente todos
os inimigos do Partido Nacional Socialista.105
O segundo axioma atingido, da irretroatividade das normas no tempo,
também foi abolido. Tudo aquilo que era contrário à reconstrução do Reich, ainda
que por suspeita, era alcançada pela lei posterior. Não bastasse, como terceiro
axioma vituperado, a separação das funções também foi extirpada, tendo Hitler
assumido tanto a função executiva quanto a função legislativa. Por fim, a
independência dos juízes é fulminada com a incorporação pelo líder de todos os
poderes jurisdicionais, ao que se seguiu, exemplificadamente, a aplicação da
pena de morte aos revoltados de Roehm.106
Em que pese a realidade alemã ser caótica naquele período – dívida
resultante da 1ª guerra, desemprego, fome, ingovernabilidade, elevado número de
partidos políticos – a lei plenipotenciária de março de 1933 contrariava a própria
hierarquia de normas defendida pelo positivismo ao dispor em seu artigo segundo
que ”[...] ‘as leis do Reich aprovadas pelo governo podem desviar-se da
Constituição, desde que não incidam sobre a organização do ‘Reichstag’ e do
‘Reichsrat’ [...]”107.
A experiência alemã das décadas de 1930 e 1940 tratava a aplicação
do direito de forma exegética e formal. Mas isso não quer dizer que o positivismo
analítico do século XX tinha parte na empresa do partido nacional-socialista. Não
foi o positivismo, de per si, responsável pelos horrores vivenciados na experiência
do nazismo. Tratou-se, muito mais, de uma desconsideração de diversos axiomas
consolidados pelo direito, inclusive por autores positivistas, mas que naquele
momento restaram asfixiados pelos titulares do governo na época.
Como demonstra Bruno Torrano, ao contrário do que o senso comum
jurídico há tempos afirma, uma das metas do positivismo jurídico sempre foi o de
libertar os discursos em teoria do direito das frágeis e românticas afirmações que
105 Cf. NEUMANN, Frank. O Império do Direito. Teoria política e sistema jurídico na sociedade
moderna. Tradução de Rúrion Soares Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 477-482. 106 Cf. Idem. 107 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional ocidental.
Tradução de Alexandre Vaz Pereira. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 2009, p. 331.
55
os defensores do direito natural afirmam, acreditando na benevolência natural e
intrínseca do ser humano. Por óbvio que isso não significava a aceitação das
maldades e iniquidades praticadas sob o argumento da legitimidade. Segundo o
autor:
Kelsen, como os demais positivistas, estava ciente de que a existência de sistemas jurídicos extremamente injustos é uma razão ainda mais forte para que o teórico coloque em suspenso as suas reações emotivas mais imediatas, a fim de que possa descrever e compreender a realidade iníqua tal como ela se apresenta, para, após, propor soluções razoáveis para que ela nunca mais se repita.108
Desse modo, quer-se cogitar que a experiência nazista não justifica o
afastamento da racionalidade analítica do direito, propagada por parte da teoria
do direito posterior a essa experiência, responsável pela integração da moral ao
estudo científico das normas jurídicas. Veja-se que tanto Kelsen quanto Hart eram
ressonantes na possibilidade de o juiz utilizar nas suas decisões, especialmente
quando o sistema de normas não dispusesse de hipótese específica, juízos
morais e políticos em sua decisão.109 Tal constatação prova que o próprio
positivismo do século XX solapou a exegese.
Mas ao se falar de lógica analítica não se pode mais concebê-la a partir
da lógica tradicional aristotélica. Nesse aspecto, Susan Haack afirmará que:
[...] é bom ter em mente que a própria ‘lógica clássica’ de hoje foi uma ‘inovação lógica’. Kant, afinal de contas, insistia (1800) que a lógica era uma ciência completa, em suas bases, na obra de Aristóteles. O século seguinte viu, contudo, o desenvolvimento de novas técnicas lógicas, mais fortes e mais rigorosas, com o trabalho de Boole, Peirce, Frege e Russell. Lembremos também que Frege supunha firmemente que os princípios de seu sistema lógico fossem auto-evidentes, até que Russell mostrou que eles eram inconsistentes.110
Assim, diante das diversas lógicas existentes, não se quer ousar
defender a utilização de um modelo de lógica em razão de outro. O que se pode
compreender, e que adiante tentar-se-á demonstrar, é que existe uma lógica
subjacente à racionalidade jurídica, nas decisões judicias, que se sustenta em
108 TORRANO, Bruno. Do fato à legalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157. 109 Nesse sentido, ver item “1.1” retro. 110 HAACK, Susan, op. cit, p. 208.
56
deduções silogísticas expressadas por um discurso que pode ser formalmente
estruturado.
Um importante referencial da lógica jurídica analítica no século XX foi
Georges Kalinowski. Parece essencial, antes de aprofundar as questões
envolvendo os precedentes, para os fins propostos neste estudo, relatar a teoria
lógico-jurídica de referido autor.
A partir da ideia de que os raciocínios são atos discursivos que
consideram que uma proposição, com condições bem definidas, possui um valor
lógico determinado em razão da atribuição de proposições anteriores que
possuíam, igualmente, condições bem definidas e, portanto, valores lógicos
também determinados, Kalinowski afirma que o raciocínio que se utiliza de
operações discursivas “produzem encadeamento de juízos, e, portanto, como
cada juízo é significado por uma proposição, produzem encadeamentos de
proposições.”111.
De outro modo, as proposições do raciocínio são justificadas por
conclusões obtidas a partir de outras proposições, as quais seguem o mesmo
caminho regressivo. Assim, toda proposição em um raciocínio formal adviria de
uma conclusão decorrente de proposições anteriores, e assim por diante.
Estruturando esse raciocínio, as proposições caracterizarão como
autêntico um raciocínio quando forem admitidas como dotadas de um valor lógico
determinado, e a proposição que delas surgir, a nova proposição, também possua
um valor lógico determinado. Essa última proposição será a conclusão, enquanto
que as proposições que justificam a conclusão serão as premissas, termos que
não são novidades no presente capítulo.
Assim, continua Kalinowski, o motivo pelo qual a conclusão se
desprende das premissas iniciais é o fundamento do raciocínio, sendo, pois,
qualificado como jurídico aquele raciocínio exigido pela vida jurídica, ou seja,
111 “[...] producen encadenamientos de juicios, y, por lo tanto, como cada juicio es significado por
una proposición, producen encadenamientos de proposiciones.” Cf. KALINOWSKI, Georges. Introdución a la Logica Jurídica. Tradução de Juan A. Casaubon. Buenos Aires: EUDEBA, 1973, p. 145-146.
57
efetuado por qualquer um que exerce uma atividade jurídica. Tal raciocínio, por
sua vez, é dividido em a) raciocínio jurídico de coação intelectual (puramente
lógicos), b) raciocínio jurídico de persuasão (retóricos) e c) raciocínios de
argumentação puramente jurídicos (extra-lógicos). 112
Para Kalinowski, somente os primeiros – raciocínios jurídicos de
coação intelectual – devem ser considerados na estrutura formal da lógica
jurídica. Esses se dividem, por sua vez, em a.1) normativos e a.2) não-
normativos.
Não-normativos seriam os raciocínios efetuados dentro dos casos
práticos e que visam verificar se os fatos alegados ocorreram ou não ocorreram, o
que dependerá sempre da análise da prova do direito invocado. Já o raciocínio
jurídico de coação intelectual normativo é aquele em que a proposição contém
uma norma jurídica que será utilizada como uma (ou várias, se existirem) das
premissas, mas também na conclusão. Assim, para Kalinowski, a atuação do juiz
sempre envolverá raciocínios jurídicos para comprovar fatos e inferir normas.113
Assim, para a lógica jurídica formal e, portanto, analítica, depurada
acima, a decisão judicial se utiliza de um raciocínio para encontrar a norma que
melhor se ajusta ou se aplica ao caso sob exame, considerada, essa execução,
como um raciocínio jurídico normativo; além deste, outro raciocínio que busca
concluir quais dos fatos narrados pelas partes envolvidas é o que será verdadeiro,
considerado este um raciocínio jurídico não-normativo.
Ocorre que, se o raciocínio é composto por proposições externadas por
discursos, e estes contém expressões linguísticas, como se pode afirmar que um
raciocínio está correto se não existir uma convenção dos signos utilizados nas
proposições? Consoante exemplifica Sampaio Júnior, “mesa” tanto pode significar
onde as pessoas se sentam, como o órgão responsável pela organização das
112 Cf. Ibid, p. 147-149. 113 Cf. Idem.
58
deliberações legislativas e das manifestações de seus integrantes nas casas do
Congresso Nacional.114
Por essa razão é que Kalinowski, ao tratar do sistema jurídico como um
conjunto de proposições, entende que ele se comporta como a matemática e a
lógica, mas não de maneira uniformizada esses sistemas. Assevera que a
descrição do que é a lógica jurídica depende do estudo das propriedades que
compõem o sistema jurídico presentes e expressas nas proposições das
premissas, que apesar de não estarem formalmente delimitadas, são "sem dúvida
análogas às dos sistemas formalizados".
Mas, segundo ele, isso levaria à imprescindibilidade de se estudar os
axiomas (normas primeiras) do sistema do direito, ou seja, as primeiras
proposições com valores lógicos validamente considerados. Por outro lado,
geraria um segundo problema, agora de natureza filosófica, pois os axiomas
serão validamente considerados conforme, e dependendo, da corrente filosófica
dos participantes do discurso. Acontece que, se visto do prisma do direito natural,
os axiomas são impossíveis de serem conhecidos, porque intermináveis.
Entretanto, pelo prisma positivista, somente há um axioma, a norma hipotético-
fundamental de Kelsen115, ou a regra de reconhecimento de Hart.
Sob essa perspectiva, fica demonstrado que a possibilidade de se
compreender a decisão judicial como um silogismo formal, em que o julgador, a
partir de raciocínios jurídicos normativos e não-normativos que decorrem do
encadeamento de proposições com valores logicamente determinados, encontra,
além da própria barreira da pretensão de correção, o problema da semiótica
jurídica quanto aos elementos que serão utilizados nas próprias proposições.
Essa teria sido a constatação de Perelman, ao tratar das justificativas
apresentadas pelos juristas lógicos do século XX, em especial Klug e Kalinowski,
os quais consideravam como lógica jurídica somente aquela formal, equiparada à
aplicada na matemática:
114 SAMPAIO JUNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003,
4ª ed, p. 258. 115 KALINOWSKI, Georges, op. cit., p. 59-60.
59
[...] não é tarefa difícil a demonstração de que estes argumentos não são estruturas de pensamento puramente formais. Se assim fossem, seriam invariavelmente válidos e aplicados universalmente, em quaisquer situações. A aplicação simultânea dos argumentos ‘a simili’ e ‘a contrario’, todavia, leva a conclusões diametralmente opostas, donde decorre a necessidade de escolha entre uma e outra resposta, caso se deseje evitar qualquer contradição. Se, por exemplo, uma lei submete todos os jovens de uma certa idade ao serviço militar obrigatório, a inevitável conclusão, por aplicação do argumento ’a simili’, é a de que também estão submetidas ao mesmo dever as jovens do sexo feminino da mesma idade. De sua parte, mediante o argumento ‘a contrario’, elas estarão isentas desde mesmo dever.116
Talvez em virtude da constatação de Perelman, se olhado por uma
perspectiva prática, um "[...] sistema de direito é completo, se suas normas
permitem resolver qualquer problema jurídico consistente em determinar as
consequências jurídicas de um fato qualquer"117, pois o estudo dos signos da
linguagem e da comunicação (semiótica) no direito já comprovou que a decisão
judicial, por um lado, está permeada pelas diversas "ciências" do direito, como a
história do direito, a sociologia do direito, a psicologia do direito, mas por outro
prisma, de diversos caminhos desconhecidos, justamente em razão dos
"problemas eternos da filosofia do direito"118.
Dessa forma, apesar da contribuição que a lógica jurídica, aqui
caracterizada como analítica, proporcionou, e ainda proporciona à teoria do
direito, verifica-se que a universalização de qualquer estrutura formal esbarra nas
discrepâncias de sentidos e na aplicação de uma razão prática plenamente
aceitável. São problemas semânticos e filosóficos.
Prova disso é a doutrina dos conceitos, “que fixava de uma vez por
todas o sentido dos termos jurídicos, de modo que permitisse, a partir dos textos
116 PERELMAN, Chïn. Considerações sobre um lógica jurídica. Tradução de Cássio Scarpinella
Bueno. In: PERELMAN, Chïn. Ethique et Droit. Editions de l’Universite de Bruxelles, 1990, p. 03. 117“[...] sistema de derecho es completo, si sus normas permiten resolver cualquier problema
jurídico consistente en determinar las consecuencias jurídicas de um hecho cualquiera.” WRÓBLEWSKI, Jerzy. O tak swanym sylogizmie prawniczym, Zagadnienia prawa kamego i teorii prawa, Ksiega pamiatkowa ku czci prof. Wladyslawa Woltera, Warszawa, Wydawnictwo Prawnicze, 1959, págs. 227-241, apud KALINOWSKI, Georges, op. cit, p. 62.
118 KALINOWSKI, Georges, op, cit, p. 63.
60
legais, um raciocínio tão estrito quanto dentro de um sistema matemático”119, ao
procurar sanar o problema semiótico da teoria do direito.
Não se nega que as decisões judiciais obedecem a uma estrutura
formal silogística, cuja premissa maior, decorrente do raciocínio jurídico
normativo, ou seja, da norma geral e abstrata, e a premissa menor, decorrente de
um raciocínio jurídico não-normativo, ou seja, da verificação de existência do
suporte fático da norma, permitem encontrar uma conclusão que aplica a norma
interpretativamente reconhecida ao fato processualmente provado.
O problema, na verdade, está na aceitação e na correção das
premissas maior e menor utilizadas, ou melhor, da correção ou aceitação do
raciocínio que justifica a utilização dessas premissas a partir de suas proposições.
Em outras palavras, o motivo por que não são utilizadas diferentes premissas,
fundamentadas em proposições diversas.
Consequentemente, as proposições utilizadas também são premissas
com proposições anteriores, que também dependem de sua aceitação e de sua
correção, o que pode tornar infinito o regresso da anuência e exatidão das
proposições utilizadas nas premissas anteriores.
Atribuindo-se a nomenclatura a Wroblewski, a justificação da decisão
judicial será denominada em seu âmbito imediato, ou seja, no silogismo que se
vale da premissa de direito identificada no sistema jurídico e da premissa de fato
processualmente provada, como justificação interna, enquanto que o raciocínio
que fundamentou a utilização de tais premissas em vez de outras possíveis – em
Kalinowski, raciocínio jurídico normativo para a obtenção da premissa de direito, e
raciocínio jurídico não-normativo para a obtenção da premissa de fato - será
conhecida como justificação externa.120
Assim, enquanto que no âmbito da justificação interna o raciocínio da
decisão judicial é silogístico, o caminho percorrido pelo julgador na justificação
119 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 69-70. 120 WRÓBLEWSKI, Jerzy. legal decision and its justification. In: Le raisonnement juridique;
actas del Congreso Mundial de Filosofia Jurídico y Social. HUBIEN, H, org. Bruxelas: 1971, p. 409-419; WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, num. 5, 1974, p. 33-46, apud ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 39-40.
61
externa, dado as diferenças genéticas e conceituais dos juristas, se dará pela
argumentação jurídica.121
Isso torna sustentável a consideração da possibilidade de colaboração
de uma lógica jurídica analítica cujas premissas da justificação interna da decisão
judicial são consequências da argumentação jurídica nas considerações da
justificação externa das propriedades utilizadas no raciocínio lógico. As próximas
linhas propõem de forma breve e superficial a relação da argumentação com a
lógica jurídica.
2.1.3 Argumentação Jurídica.
A utilização de uma lógica dedutiva formal exige, na escolha de suas
premissas e, portanto, na justificação dos raciocínios utilizados no âmbito externo,
a argumentação jurídica do julgador. Entretanto, a análise lógica da linguagem
não se faz por meio de silogismos, mas a partir dos axiomas que a lógica
subjacente empregada os admite. Logo, admitir que a decisão judicial deva
observar um silogismo judicial mecânico não passa de uma ideia exegética, há
décadas ultrapassada.
As proposições empregadas no discurso dialético são probabilidades,
diferentemente das utilizadas em um âmbito analítico, que se importa com a
verdade. O discurso dialético tem como função convencer e persuadir os
receptores da mensagem, geralmente conhecidos como o auditório de todos e de
qualquer um, e não encontrar uma proposição conclusiva de uma verdade até
então desconhecida. O objetivo, então, do raciocínio dialético é, “quando
argumentamos em uma discussão, não adiantaria nada se nossas próprias
asserções fossem contraditórias”122.
A nova retórica, proposta por Perelman apresentou o silogismo
dialético como a única forma de tratamento lógico-racional das decisões judiciais.
121 ATIENZA, Manuel, idem. 122“[...] cuando sostenemos una discussión, a no adelantar nada que sea contradictorio a nuestras
propias aserciones.” ARISTÓTELES. op. cit, p. 223.
62
No primeiro capítulo dessa dissertação, viu-se que a intenção do
positivismo como teoria do direito nunca foi a de impedir a consideração da moral
e da política nas decisões judiciais, mas justamente o inverso. O que os
positivistas pós-imperativistas defenderam é que a separação entre normas e
valores deveria se dar no campo da “ciência do Direito”; enquanto que, nos casos
de aplicação do direito, dada a subjetividade inerente do julgador, este se
equivaleria, sem dúvida nenhuma, de questões valorativas tais como
considerações morais e políticas. Trata-se do voluntarismo combatido por
Dworkin, que afirmava que na falta de previsão normativa, a decisão correta
deveria considerar argumentos de princípio.
A questão central da proposta perelmaniana, porém, é apresentar,
calcada na ideia aristotélica da lógica dialética, uma proposta de racionalidade
prática quanto aos juízos de valor utilizados na aplicação do direito, incluindo,
portanto, as decisões judiciais, o que seria possível a partir da utilização da
argumentação:
[...] quando estamos em desacordo sobre o justo e o injusto, o belo e o feio, o bem e o mal [...] se se quer evitar que em tais casos o desacordo degenere em conflito e seja resolvido pela violência, não há outro meio senão recorrer a uma discussão racional. A dialética, arte da discussão, se mostra o método apropriado à solução dos problemas práticos, os que concernem aos fins da ação, que envolvem valores [...] na ausência de técnicas unanimemente admitidas é que se impõe o recurso aos raciocínios ‘dialéticos’ e ‘retóricos’, raciocínios que visam estabelecer um ‘acordo’ sobre os valores e sua aplicação, quando estes são objeto de uma controvérsia.123
Como observa Oliveira, o centro da nova retórica de Perelman está na
necessidade de adesão dos ouvintes aos argumentos lançados, mas, além disso,
o próprio caminho entre as premissas defendidas pelos argumentos até as
proposições expostas na conclusão. Referido autor resume a ideia dessa forma: a
“argumentação, nesse caso, representa uma espécie de mecanismo discursivo
passível de transportar a anuências das justificativas à conclusão e vice-versa”124.
123 PERELMAN, Chaïn, 1990, op. cit, p. 130. 124 OLIVEIRA, Eduardo C. Chaïn Perelman e a Questão da Argumentação. Salvador: Revista
Cientefico, 2007, Ano VII, v. II, p. 286.
63
Ocorre que a decisão judicial não se assemelha a um discurso que
pretende cativar sua audiência, ou seja, as partes e os seus representantes no
processo. O juiz é chamado para decidir o caso conflituoso e a imprescindível
obrigação legal atualmente existente em todos os sistemas judiciários ocidentais
de proferir uma decisão, ofício que ainda mostra-se pressionado pelo tempo,
parece colocar a questão da adesão do discurso, ao menos sob um olhar
bastante realista, em dúvida.
Prova disso são as críticas apresentadas à nova retórica por Atienza.
Afirma ele que a força de alguns argumentos utilizados no discurso, que em
certas oportunidades se sobressaem no choque entre si, pois direcionam a
soluções contrárias ou opostas, além de não ter sido fornecido por Perelman uma
regra de hierarquização deles, não considera que o auditório poderá diferenciar-
se na aceitação dos argumentos, ou seja, que parte dos ouvintes poderá entender
como forte o argumento X, enquanto a outra parte poderá entender como forte o
argumento Y. A crítica de Atienza é, assim, que “não parece que a nova retórica
perelmaniana forneça critérios eficientes para distinguir os argumentos fortes dos
fracos”125.
Observa-se que referida crítica parte do pressuposto de que a
argumentação busca a aderência dos ouvintes ao discurso. Além de demonstrar
que referida nova retórica não é capaz de apresentar como se solucionará a
contradição entre argumentos e, portanto, entre discursos aparentemente
incoerentes, também demonstra incapacidade de se sustentar diante da hipótese,
bem lógica por sinal, de que os diversos sujeitos passivos da argumentação
podem dividir-se em um, dois ou mais grupos de aderência a argumentos e
discursos específicos.
Com isso, pode-se afirmar que o silogismo dialético aristotélico
utilizado na argumentação jurídica de Perelman, e que busca validar as premissas
e proporcionar aderência a essas e à sua conclusão, não parece sustentar-se
logicamente. Isso porque, paradoxalmente, o próprio discurso de Perelman não
produz uma aderência universalizante, pois parece não convencer acerca da
125 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 80.
64
aplicação de sua própria regra de justiça126, seja na questão envolvendo a força
dos argumentos, seja na que envolve a inviabilidade da aceitação in totum do
discurso por uma plateia sabidamente heterogênea como é de fato o “auditório”
que suscita decisões judiciais para resolver seus conflitos.
Atienza deixa esta questão ainda mais clara ao afirmar que a posição
perelmaniana é criticável sobre o prisma ideológico, especialmente ao defender
uma filosofia do pluralismo que intenta, pela cooperação dos esforços da
sociedade, dirimir suas diferenças e conflitos alcançando uma solução razoável.
Nesse aspecto, afirma:
O problema, naturalmente, reside na questão de se o equilíbrio entre opiniões contrapostas, que se associa à noção de racionabilidade, pode sempre ser conseguido. Evidentemente há muitas razões para duvidar disso. Os casos difíceis, por definição, são aqueles com relação aos quais a opinião pública (esclarecida ou não) está dividida de maneira tal que não é possível tomar uma decisão capaz de satisfazer a uns e a outros. Serve de exemplo a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos (no famoso caso Roe versus Wade, de 1973), reconhecendo um direito ao aborto que se apoiaria no direito fundamental à privacy. O caso dividiu em duas partes quase iguais não apenas os membros do tribunal, como também os juristas profissionais e a sociedade em geral. Qual seria, num caso como esse, a decisão razoável?127
Sendo assim, a possibilidade de utilizar a argumentação jurídica para a
construção de um ideal plural de decisão judicial, o que também lembra em parte
a teoria comunicativa habermasiana128, não parece proporcionar um critério lógico
à decisão judicial. A argumentação jurídica, portanto, que a tópica e retórica
aristotélica, ao menos na forma apresentada por Perelman, não se mostra apta a
determinar a racionalidade de uma decisão judicial que pretende estar correta, ou
ainda provavelmente correta (nessa última hipótese, utilizando o próprio
argumento dialético).
Essa constatação já teria sido efetivada por Taruffo. Apesar de
considerar que a justificação de uma decisão judicial possui nuances de retórica,
126 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 137. 127 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 83. 128 Cf. OLIVEIRA, Eduardo, op. cit, p. 268.
65
o autor afasta por completo a utilização da retórica como técnica de racionalidade
da decisão judicial, pois:
[...] na fase heurística de seu raciocínio, na qual passa a individualizar a solução justa da controvérsia, o juiz não tem que persuadir ninguém; ele está buscando resolver um problema servindo-se de métodos e critérios racionais, sem dúvida, com esta atividade, a persuasão retórica não tem nada que ver. Se poderá dizer que nesta, o juiz leva em consideração elementos (como provas e argumentações), de cujos fundamentos e inconsistências é persuadido, sem dúvida, isto não implica que sua racionalidade tenha propriamente uma dimensão retórica, tem ao contrário, como se tem tentado demonstrar no precedente, uma forte estrutura lógica. Isso que determina a racionalidade do juiz, na realidade não é uma mera persuasão de alguma coisa, mas sim uma valoração racional das provas e uma justificação logicamente fundada na escolha do significado da norma que assume como regra de julgamento. O juiz está, por assim dizer, em uma posição de ‘sujeito passivo’ da persuasão, enquanto são os advogados quem se servem de argumentos, e usam as provas, como instrumentos retóricos utilizados para condicionar seu convencimento, mas isto não implica que o raciocínio do juiz tenha uma dimensão retórica. Ao contrário, ele deveria evitar deixar-se persuadir pela retórica da advocacia, servindo-se do antídoto representado pelo controle racional de sua própria racionalidade.129
Como visto, o autor italiano é contrário à ideia de utilização da lógica
retórica na decisão judicial, mas não afasta a existência de uma dimensão
dialética, o que até parece, ao menos em uma análise superficial, uma afirmação
de certo modo contraditória. Afirma que a dialética utilizada como uma das
dimensões que juiz perpassa para decidir é divida em dois momentos.
129“[...] en la fase heurística de su razonamiento, en la cual apunta a individualizar la solución justa
de la controversia, el juez no tiende a persuadir a nadie: él está buscando resolver un problema sirviéndose de métodos y criterios racionales, sin embargo, con esta actividad, la persuasión retórica no tiene nada que ver. Se podrá decir que en esta, el juez tiene en cuenta elementos (como pruebas o argumentaciones), de cuyos fundamentoso inconsistencias es “persuadido”, sin embargo, esto no implica que su razonamiento tenga propiamente una dimensión retórica, teniendo en cambio, como se ha tratado de aclarar en lo precedente, una fuerte estructura lógica. Eso que determina el razonamiento del juez, en realidad no es una mera persuasión de alguna cosa, sino más bien una valoración racional de las pruebas y una justificación lógicamente fundada de la escogencia del significado de la norma que asume como regla de juicio. El juez está, por así decirlo, en la posición de “sujeto pasivo” de la persuasión, en cuanto son los abogados quienes se sirvende argumentos, y usan las pruebas, como instrumentos retóricos encaminados a condicionar su convencimientopero esto no implica que el razonamiento del juez tenga una dimensión retórica. Al contrario, él debería evitar dejarse persuadir de la retórica de la abogacía, sirviéndose del antídoto representado por el control racional sobre su propio razonamiento.” TARUFFO, Michele. Sobre la complejidad de la decisión judicial. Tradução de Carlos Mondragón. Cali/COL: Precedente, 2012, vol. I, p. 197-198.
66
Um diacrônico, que nada mais seria que o exercício do contraditório
processual, em que os atores processuais buscam estabelecer a veracidade de
seus argumentos e peso de suas provas. Porém, propõe que, diferentemente da
forma usual como se vê esse momento, entende que há três partes que
participam dessa dialética diacrônica, em que o juiz é uma delas. Isso porque
todos reagem e determinam-se conforme as provas e atos processuais durante o
desenvolvimento do iter processual.
Já o segundo momento da dialética da decisão judicial seria sincrônico,
consistente na estrutura motivacional da decisão. Aqui, afasta-se ou acata-se um
ou alguns dos argumentos tecidos pelas partes, ou ainda considera-se ou rejeita-
se uma ou algumas das provas produzidas durante o desenvolvimento do
procedimento processual.130
Mas, se há dialética, e se as partes e o juiz participam dessa dimensão,
não parece muito claro onde ocorre o afastamento da persuasão (própria da
retórica) nessa dimensão dialética de dois momentos – diacrônica e sincrônica –
proposta por Taruffo, pois a prática judicial demonstra justamente que cada uma
das partes interessadas tenta convencer o juiz acerca de sua versão fática, a fim
de que seus argumentos sejam aqueles a ser considerados na justificação
externa da premissa de fato que será utilizada na justificação interna da decisão
judicial.
E não somente nesse âmbito fático: as partes também buscam
influenciar o raciocínio do juiz quanto à aplicação da premissa normativa que
pretendem ver reconhecida, apresentando argumentos quanto à interpretação
adequada e, ainda, quanto ao regime jurídico que deve ser adotado.
De outro modo, como as partes efetivamente utilizam de argumentos
retóricos para convencer o juiz, este, inevitavelmente, ao decidir conforme os
argumentos que uma delas apresentou, estará, por conseguinte, valendo-se da
retórica antes alegada para justificar sua decisão, momento em que escolherá o
argumento retórico que se mostre mais próximo à sua convicção.
130 Cf. Ibid, p. 186-187..
67
Portanto, parece difícil compreender essa proposta de utilização de
dialética sem retórica, pois, como disse Aristóteles, o estudo dos topois se dá
“com relação a inferências dialéticas e retóricas”, ou seja, a dialética consiste
justamente em argumentos retóricos.131
Taruffo ainda afirma que a decisão judicial é um empreendimento
racional complexo, no qual o julgador se utiliza de diversas dimensões para
chegar a uma conclusão lógica e racional para apreciar os fatos que lhe são
submetidos. Defende que são seis as dimensões sobre as quais o juiz se debruça
para decidir. A primeira delas é a dimensão dialética já mencionada, existindo
ainda as dimensões epistemológica, jurídica, lógica, axiológica e em sentido
comum, todas consideradas de forma concomitante.132
Pois bem, é interessante notar que a dimensão lógica apresentada por
Taruffo, em que cita em grande parte Chiassoni, mostra-se muito parecida com o
raciocínio lógico-jurídico apresentado por Kalinowski, ideias que diferenciam
somente no plano metodológico, pois o autor polonês propõe uma teoria mais
criteriosa do ponto de vista analítico.
Na dimensão lógica, Taruffo afirma que a decisão deverá justificar os
argumentos que serão utilizados no estabelecimento das premissas de direito e
nas premissas de fato. Mas que também há a necessidade de justificar os
argumentos que justificam a utilização das premissas de fato como premissas de
fato e as premissas de direito como premissas de direito. Ora, aparentemente não
há diferença à estruturação lógico-analítica de Kalonowski, a não ser a afirmação
de que os argumentos que são utilizados sejam, tanto na justificação interna
quanto na justificação externa, obedientes a critérios de racionalidade heurística.
Tais critérios, por sua vez, consistem na hipotetização e falseabilidade dos fatos
reputados provavelmente existentes a partir de indícios, ou seja, pelo método trial
and error, somente encerrando tal esquema com a confirmação da hipótese a
partir das provas produzidas.133
131 “[…] con relación a inferências dialécticas e retóricas”. Cf. ARISTÓTELES, op. cit, p. 220. 132 Cf. TARUFFO, Michele, op. cit, p. 83 133 Cf. Ibid, p. 191-192.
68
De fato, quanto a isso não há observações a ser feitas. Parece
inegável que o juiz, ao tomar uma decisão, considera os argumentos alegados
pelas partes falseando-os pelas provas produzidas através do procedimento
processual.
Mas o que realmente incomoda na fala de Taruffo é a constante
necessidade de os argumentos utilizados pelo juiz serem racionalmente
controlados, em qualquer que seja a dimensão em que transitarem. Isso porque o
autor não propõe nenhum critério para verificar esse controle ou ferramenta capaz
de aferir essa racionalidade.
Uma proposta da racionalidade consiste justamente na existência de
uma forma de aferição do correto, da verdade, de uma pretensão de correção. Ao
se afirmar que uma decisão judicial deve ser racionalmente controlada,
depreende-se, inicialmente, que há ferramentas e métodos para o exercício desse
controle.
Seja em qual for a dimensão em que a decisão judicial irá aderir para
se justificar, não são indicados mecanismos de falseabilidade dessa decisão. O
âmbito de aplicação das ditas dimensões sem delimitação, o que torna qualquer
argumento passível de sustentação como justificativa de uma decisão, torna o juiz
limitado somente a sua autotutela.
Do mesmo modo, não parece estar justificada a utilização
concomitante dos argumentos das dimensões, se em conjunto ou separados,
portanto, não há nenhum limitador às possibilidades de agrupamento ou exclusão
de argumentos de diferentes dimensões, pois a cláusula geral de controle racional
da utilização dos argumentos já se mostra.
Se o objetivo de uma lógica analítica aplicada à decisão judicial é
formalizar um procedimento para conhecer o acerto de uma proposição jurídica,
ainda que afastada de uma pretensão de correção universal, por sua vez já vista
como inatingível no capítulo primeiro desta dissertação, as ideias até aqui
apresentadas não acrescentam ao problema posto a existência de um critério
69
com especificidades de controle racional, ou seja, quais seriam os elementos
dessa estrutura controladora.
Portanto, apesar da dura crítica de Taruffo à retórica, crê-se que a
assertiva de Perelman traduz de forma objetiva que as atuais balizas que
justificam a decisão judicial, o que também foi objeto de algumas linhas do
capítulo antecedente, não excluem a retórica na aplicação do direito:
Em conclusão, considerando o direito como uma técnica de proteção simultânea de diversos valores, às vezes incompatíveis entre si, a lógica jurídica apresenta-se, essencialmente, como uma forma de argumentação destinada a motivar as decisões de justiça, para que possam usufruir de um ‘consensus’ das partes, das instâncias judiciárias superiores e, enfim, da opinião pública esclarecida.134
E mais:
[...] a lógica judiciária centra-se inteiramente não na ideia de verdade, mas de adesão. O que o advogado procura conquistar com seu arrazoado é a adesão do juiz. Só pode obtê-la mostrando-lhe que tal adesão é justificada, pois será aprovada pelas instâncias superiores bem como pela opinião pública. Para atingir seus fins o advogado não procederá das verdades iniciais (os axiomas) para as verdades demonstradas (os teoremas), mas de acordos ‘preliminares’ para a adesão que deseja obter.135
Soma a esse debate argumentos favoráveis à utilização da retórica
pelo raciocínio jurídico a análise tópica realizada por Theodor Viehweg. Para ele,
a efetividade da retórica, como forma de tornar uma argumentação compreensível
e, portanto, convencível por meio de um discurso, depende da semiótica. Esta,
por sua vez, resume-se nas conexões linguísticas existentes entre os signos entre
si (sintaxe), entre signos e objetos (semântica) e entre signos e o lugar em que o
discurso é proferido (pragmática ou práxis). Para Viehweg, a jurisprudência (no
sentido de aplicação do direito) transita no campo pragmático, pois "corrige,
regressivamente, imprecisões que de certo modo permanecem" na consideração
sintático-semântica da vida. Mas afirma que estes sentidos sintáticos-semânticos
são alterados e renovados quando vistos a partir de uma nova práxis, o que torna
134 PERELMAN, Chaïn, 1990, p. 09. 135 Ibid, p. 189.
70
a semiótica completamente dependente do lugar em que é usada, portanto,
situacional.136
O que Viehweg quis afirmar é que a consideração da argumentação
lógica silogística no discurso jurídico mostra-se problemática em razão dos
diferentes sentidos sintáticos e semânticos que os fatos da vida são qualificados,
os quais dependem da práxis em que eles são considerados. Não seria por acaso
que diversas disposições normativas sempre remetem aos usos e costumes dos
locais em que as relações jurídicas se estabelecem, como seria o caso da
utilização da lex mercatoria como fonte de direito.
O prefácio da tradução ao português da obra dá conta dessa ideia:
[...] se pensarmos na correlação que existe entre as doutrinas jurídicas e a práxis a que a que elas se referem [...] a hipótese de que a doutrina seja, ela própria, fonte do direito, já revela a composição ambígua das teorias jurídicas. De um lado, elas têm elementos cognoscitivos (descrição e explicação de fenômenos jurídicos), mas, de outro, sua função primordial é ‘não cognoscitiva’. Ou seja, elas contêm proposições ideológicas (em sentido funcional), de natureza cripto-normativa, das quais decorreriam consequencias pragmáticas, no sentido político e social.137
Não se pode afirmar, portanto, que a decisão judicial é formalmente
lógica de um ponto de vista universal. Os autores divergem quanto às espécies de
lógica aplicáveis. E todas as posições possuem críticas substanciais quanto aos
critérios de justificação dessa lógica. O verdadeiro problema, assim, está na
justificação externa do raciocínio jurídico, conclusão esta parecida com aquela
debatida no primeiro capítulo dessa dissertação, apesar de a análise nesse
momento ter ocorrido por outro prisma.
Entretanto, a prática jurídica depara-se com diversas demandas
similares que são expostas a juízos diferentes. Por vezes, como alguns trabalhos
já demonstraram138, as decisões judiciais não guardam a isonomia de tratamento
136 Cf. VIEHWIG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. [s.t.] Brasília: Ed. UnB, 1979, 5ª ed, p. 101-
102. 137 SAMPAIO JÚNIOR, Tércio Ferraz. Prefácio do tradutor. In: VIEHWIG, Theodor. Tópica e
Jurisprudência, 5ª ed. Brasília: Ed. UnB, 1979, p. 05. 138 Cf. RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para um crítica do direito
(brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Processo Legislativo e
71
entre os litigantes. Tal fato acaba por proporcionar certa insegurança jurídica
perante as instituições judiciárias. Por conseguinte, ao afastar a igualdade de
tratamento e a segurança jurídica, as decisões judicias mostram-se ofensoras do
Estado democrático de direito.
A Lei Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o Novo
Código de Processo Civil brasileiro, inovou ao elencar de forma expressa, no art.
927139, que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de
controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante
editados pela mesma Corte, as decisões proferidas em sede de incidentes de
assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, os
enunciados das súmulas (não vinculantes) do Supremo Tribunal Federal e dos
demais Tribunais Superiores e as orientações dos Órgãos Plenos de todos os
Tribunais, Superiores e Regionais, passam a ostentar qualidade de fontes formais
do direito brasileiro. Imediatamente, passou-se a encarar a inovação como a regra
de precedentes brasileira, mesmo tendo-se em conta que o sistema jurídico
brasileiro se suporta na tradição romano-germânica do civil law.
Essa inovação tem como pressuposto justamente a necessidade de
uniformizar as decisões proferidas no território brasileiro, mas pode ser entendida
como um topoi da teoria do direito, em que em um mesmo território sob o domínio
de uma mesma legislação positivada as decisões devem ser isonômicas e
previsíveis. Estes são pressupostos do Estado democrático de direito, que
refletem no dever de igualdade das decisões e de manutenção da segurança
jurídica no ambiente social. Por essa razão, passa-se a discorrer sobre eles sob a
ótica da regra dos precedentes, tentando apreender o papel e a influência dos
precedentes na construção daquilo que se pode chamar de decisão jurídica
coerente.
Controle de Constitucionalidade: as fronteiras entre direito e política. São Paulo: Projeto Pensando o Direito/Núcleo Direito e Demcracia do CEBRAP, Coordenação de Marcos Nobre e José Rodrigo Rodrigues; STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, 3.ed.
139 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei Federal n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm#art1046>. Acesso em 20 mar.2015.
72
2.2 PRECEDENTES
Chaïn Perelman apresenta a seguinte justificativa para a utilização da
dialética na busca daquilo que afirmava ser a decisão justa, e de como essa
justificativa acaba por depender da utilização de decisões judiciais passadas:
Era bem raro que o raciocínio jurídico pudesse redundar, como nas demonstrações matemáticas, numa conclusão impositiva. As razões apresentadas visavam antes de tudo, como nos diálogos platônicos, a colocar o adversário em má situação, a mostrar que os argumentos que usou eram irrelevantes, arbitrários ou inoportunos, que a solução preconizada por ele era injusta ou, ao menos, despropositada. [...] Para chegar à decisão buscada era necessário inserir o problema controvertido em uma tradição, atestada por uma autoridade [...], pôr em evidência a similitude do caso a ser julgado com uma decisão anterior aceita, ou subsumi-lo em um texto legal que tratava de caso da mesma espécie: [...] admitia-se como justa uma decisão conforme à regra de justiça que exige tratamento igual de casos essencialmente semelhantes.140
Longe de esgotar o conteúdo existente sobre o vasto tema dos
precedentes, a seção que agora se inicia tem como objetivo investigar a
correlação entre a lógica jurídica, vista aqui como o emprego de argumentos
quase-lógicos utilizados em um procedimento judicial de analogia, visto ser essa a
espécie de raciocínio dedutivo que mais se aproxima dos precedentes, e a
importância desses nas decisões judiciais. Desse modo, limitar-se-á a verificar o
que se afirma como um precedente, qual o seu lugar e papel na lógica jurídica –
ou lógica judiciária – e, por fim, as questões envolvendo os direitos fundamentais
da igualdade e da segurança jurídica, os grandes prejudicados pela falta de
observância da regra dos precedentes pelos órgãos judiciários brasileiros, pois
quando inobservados revelam a incoerência das decisões judiciais.
2.1 Precedentes, Common Law e Stare Decisis
Como visto, a realidade judiciária brasileira caminha, ainda que de
forma tortuosa141, à aproximação de sua tradição jurídica – civil law, romano-
140 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 10. 141 RAMIRES, Maurício. A invocação de precedente jurisprudencial como fundamentação de
decisão judicial: uma crítica ao sincretismo improvisado entre os sistemas de ‘civil’ e ‘common law’ no Brasil e uma proposta para sua superação hermenêutica. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
73
germânica ou continental – àquela praticada pelos sistemas jurídicos anglo-
saxões, o common law, especificamente quanto a aplicação dos chamados
precedentes, o que parece agora ter sido institucionalizado pelo Novo Código de
Processo Civil.
O objetivo aqui não é o de emitir juízo de valor sobre o acerto ou erro
desse empreendimento, mas sim abordar essa questão, como desde as primeiras
linhas já se afirmou, para definir o que seria a técnica de decisão judicial que
aplica a regra de precedentes.
Contudo, faz-se necessário demonstrar no que consiste, ainda que de
forma simplificada, a diferença histórica, e que acaba repercutindo de forma direta
na própria conceituação dos modelos jurídicos acima mencionados.
Duas são as revoluções denominadas liberais que podem ser utilizadas
para resgatar historicamente essa diferença, conforme descrito por Maurizio
Fioravanti: a Revolução Francesa (a partir de 1788), que simboliza a tradição civil
law; e a Revolução Americana (1776 em diante), por óbvio, representativa no
contexto deste estudo do sistema common law. Observe-se que, apesar de o
princípio da representação política e de legalidade serem repercussões da Magna
Charta de 1215, mantendo-se common law graças à atuação de Sir. Edward
Coke142, a comparação que aqui se faz entre as Revoluções Americana e
Francesa tem como objetivo somente justificar a diferença da tradição jurídica que
ambas legaram.
Segundo o Fioravanti, enquanto que a Revolução Francesa buscou
uma ruptura com a tradição jurídica existente na França pré-revolucionária, em
razão de não existir confiabilidade nos juízes, geralmente ligados à nobreza, à
aristocracia e aos estamentos sociais superiores, a realidade da Revolução
Americana não tinha esse condão rompedor de paradigma com a ordem jurídica
anterior, pois já adotava o sistema inglês. Tanto isso é verdade que a razão da
libertação revolucionária americana foi a majoração dos tributos estabelecidos
pela Coroa Inglesa sobre as colônias americanas, e que, após a invocação pelos
142 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2000, 3ª ed, p. 33.
74
súditos continentais da tradição jurídica consolidada na realidade inglesa pelo
brocardo no taxation without representation, redundou na própria reconsideração
da sobretaxa fiscal exigida.143
Assim, enquanto na França se decapitava os juízes sob o pretexto da
ameaça anti-revolucionária, violência essa que alcançou a também a nobreza e o
clero, no contexto americano o argumento revolucionário teria sido justamente a
invocação de uma posição jurídica já tomada pela própria Corte Inglesa. Por essa
razão, enquanto que a tradição continental do direito – civil law – sempre liga-se
historicamente a uma ruptura ideológico-jurídica, a tradição jurídica do common
law liga-se historicamente à tradição e, portanto, à manutenção do direito.
Essa realidade, de continuidade de sistema jurídico histórico pode ser
depreendida no seguinte relato de Nicola Matteucci acerca dos anos seiscentos
na recém colonizada América do Norte, em que fica claro que os colonizadores
ingleses tentavam implementar nas colônias americanas a realidade social e
organizacional inglesa, o que refletia a constituição de seus sistemas análogos
até os dias de hoje:
[...] nos seiscentos, entre as diversas iniciativas que conduziram a colonização da Norte-América, tem um posto e um peso próprio a que obedecia não a motivos religiosos ou interesses comerciais senão às ambições de uma aristocracia rural, que esperava estender e aplicar aos vastos espaços desabitados da América o sistema social inglês [...] encontrou rapidamente um firme e válido interlocutor, o colono, que se demonstrou desde o início consciente de seus próprios direitos de cidadão inglês, direitos que lhe eram garantidos pela Carta.144
O claro entendimento do que seriam os precedentes, originalmente do
sistema commom law, exige a observação de quais são as suas origens
históricas. A ruptura que a Revolução Francesa promoveu no seu contexto
143 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fondamentales. Apuntes de historia de las
constituciones. Tradução de Manuel Martinez Neira. Madrid: Ed. Trotta, 1996, p. 79. 144“[...] en el seiscientos, entre las diversas iniciativos que condujeron a la colonización de
Norteamérica, tiene un puesto e un peso proprio la que obedecía no a motivos religiosos o intereses comerciales, sino a las ambiciones de un aristrocia rural, que esperaba extender y aplicar a los vastos espacios deshabitados de América el sistema social inglés. [...] encontró rápidamente un firme y válido interlocutor, el colono, que se demonstró desde el inicio consciente de sus proprios derechos de ciudadano inglés, derechos que le eran garantizados por la Carta.” MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Tradução de Francisco J. A. Roig e Manuel M. Neira. Madrid: Trotta, 1998, p. 173-174.
75
jurídico, observado por Marinoni como a razão por que Montesquieu e o
parlamento francês afirmavam ser o juiz naquele momento simplesmente a boca
da lei, não encontra respaldo histórico na realidade norte americana, que por sua
vez reflete a tradição jurídica inglesa de conservação dos costumes, portanto, em
um direito consuetudinário conservador.145
Mas além dessa diferença histórica, há ainda uma questão de
conteúdo que deve ser observada. Essa, por sua vez, merece importante atenção
para diferenciar o precedente do sistema anglo-saxão da conhecida
jurisprudência do sistema continental, especialmente quanto aquela praticada no
Brasil.
As decisões que se utilizam da regra de precedentes, portanto, nas
realidades jurídicas inglesas e estadunidenses, não consideram a relevância do
julgamento anterior sendo relevante para o julgamento posterior. Esse é o modelo
especificamente brasileiro. A realidade do precedente no common law leva em
conta a chamada ratio decidendi das decisões proferidas pelos juízes, em que a
relevância está na fundamentação que foi utilizada em uma decisão considerada
paradigmática. Desse desejo de manutenção da ordem social como o melhor a
ser observado surge a doutrina do stare decisis (essa doutrina não está presente
no sistema inglês, apenas no norte-americano), esta sim podendo ser
considerada a regra dos precedentes dentro do sistema do common law.146
Segundo o stare decisis, as decisões proferidas pelos juízes e tribunais
em sistemas do common law devem manter-se no tempo, sendo aplicadas aos
casos análogos que são submetidos à apreciação judicial. Trata-se de princípio
que busca promover a segurança jurídica, a manutenção do sistema common law.
Nesse aspecto, David René afirma a que função das cortes, especialmente na
Inglaterra, era a de destacar as regras de direito aplicáveis. Daí que a:
[...] obrigação de recorrer às regras que foram estabelecidas pelos juízes (‘stare decisis’) [...] só depois da primeira metade do século XIX é que a ‘regra do precedente’ (‘rule of precedent’), impondo
145 MARINONI, Luiz G. Precedentes Obrigatórios. Curitiba: Congresso de Direito Processual
Civil, 2010. 146 RAMIRES, Maurício, op. cit, p. 44.
76
aos juízes ingleses o recurso às regras criadas pelos seus predecessores, rigorosamente se estabeleceu.147
Entretanto, mesmo nesse sistema, nem todas as decisões proferidas
pelos órgãos julgadores são “precedentes” propriamente ditos. René informa que
os precedentes obrigatórios somente seriam aqueles proferidos pela Câmara dos
Lordes e pela Suprem Court of Judicature na realidade inglesa, enquanto as
decisões de outros órgãos somente poderiam ser levadas em conta para fins de
persuasão e argumentação.148
Mas essa ideia de engessamento do direito, restrita aos ideiais
pretéritos não parece ser coerente. Ocorre que a prática judicial demonstra
historicamente que o direito se altera. É fato notório que as normas vigentes, por
vezes, ao ser aplicadas, acabam exigindo inovações judiciais, o que parece já ter
sido suficientemente explorado no primeiro capítulo dessa dissertação. Mesmo
assim a ideia de estagnação do direito, própria de um common law conservador,
driblava o argumento da evolução do direito de outra forma. Afirma que quando
ocorre aquilo que se conhece por overruling, não se trata de uma evolução
propriamente dita do direito, mas sim de uma mera correção.
Assim, adaptar-se e moldar-se conforme a cultura de seu tempo por
meio overruling, na tradição do common law, era considerado como uma correção
histórica do entendimento do direito, mas nunca como transformação da norma
jurídica. Esse, pois, teria sido um dos pontos que daria fôlego à doutrina do
realismo jurídico.149
Desse modo, verifica-se que a simples aplicação do rule of precedents
em uma realidade civil law, como a brasileira, não se mostra tarefa simples. Esse
acoplamento dos institutos jurídicos de tradições diversas, entretanto, tem sido
um movimento observado na Suprema Corte Brasileira, como constata Rodriguez.
Para o autor, mesmo diante de tantas diferenças entre as formas de se pensar
essa aplicação “por comparação”, há alguns casos brasileiros que têm sido vistos
como constituintes de precedentes. Nesse sentido, afirma que:
147 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâno. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 428. 148 Ibid, p. 429. 149 FRANK, Jerome, op. cit, p. 32-33.
77
Diante de nossa tradição, não argumentativa, opinativa e personalista, a referência aos casos anteriores tende, ainda hoje, a ser feita apenas em função de seu resultado, e não em função de seus fundamentos, ou seja, dos argumentos utilizados pelos juízes para justificar suas decisões.150
Assim, há uma nítida diferença quanto à forma com que as decisões
passadas influenciam as futuras nos diferentes sistemas jurídicos. Enquanto que
na tradição common law são pertinentes os argumentos utilizados, a realidade
civil law brasileira considera somente o resultado alcançado pelo julgamento.
Essa questão, por óbvio, torna sensível ao sistema a aplicação dos precedentes
como fontes de direito.
Priscila de Jesus afirma que no Brasil há atualmente três correntes
sobre a aplicação à brasileira do rule of precedents. Todas debatem a
possibilidade de considerá-lo como fonte de direito no sistema jurídico. A autora
divide tais correntes em três grupos.
No primeiro, capitaneado por Streck, entende-se que no Brasil não
cabe a consideração da teoria dos precedentes como fonte de direito e, portanto,
fundamento para novas decisões, eis que o precedente em sua concepção
considera a casuística, enquanto que o ordenamento jurídico como sistema de
normas de índole geral e paritária – próprio do sistema civil law – não comportaria
essa espécie de fonte de direito.
No segundo, defendido por Ramires, somente se pode reconhecer o
precedente se a norma assim considerá-lo, o que ocorreria, por exemplo, com a
regra das Súmulas Vinculantes e, possivelmente, com o Novo Código de
Processo Civil.
E no terceiro, por sua vez, qualquer decisão seria apta a tornar-se um
precedente, hipótese que para se sustentar afasta a diferença genética entre as
teorias da decisão no civil law e no common law, adotando, assim, uma posição
ousada ao considerar o próprio precedente como um fato histórico.151
150 RODRIGUES, Jóse R, op. cit, p. 15. 151 JESUS, Priscila S. Teoria do Precedente Judicial e o Novo Código de Processo Civil.
78
Francisco Rosito, por sua vez, afirma que, apesar dessa realidade de
utilização de decisões pretéritas na justificativa de novas decisões, “seria um erro
metodológico adotar simplesmente a teoria dos precedentes da ‘Common law’,
que é estranha ao direito do ‘Civil law’, para abordar o fenômeno da referência às
decisões judiciais anteriores”152.
Além do overruling, também se pode mencionar outro instituto jurídico
da teoria dos precedentes que afasta a aplicação do stare decisis. Trata-se do
denominado distinguished. Nessa técnica, o julgador compara os fatos do caso a
ser decidido e os fatos levados em consideração na formação do precedente.
Priscila de Jesus afirma que no distinguished o juiz também analisa a ratio
decidendi entre o caso a ser apreciado e aquela utilizada no precedente.153
Contudo, parece que se também será considerada, a título de comparação, a ratio
decidendi, não se estaria mais tratando de comparação de casos, mas sim das
razões jurídicas utilizadas, as quais, identificadas entre os casos, tornaria
obrigatória a utilização da mesma razão de decidir.
Para Rosito, entretanto, apesar de entender pela aplicação da regra
dos precedentes somente nos casos em que a ratio decindendi se mostre
equivalente em sua substância, a consideração do distinguished somente teria
suporte fático quando os casos mostrarem-se relevantemente diferentes, não
sendo qualquer diferença não elementar capaz de justificar a utilização do
instituto. A forma como isso é demonstrado, afirma ele, está na argumentação do
julgador, a quem cabe explicitar a relevância da distinção que faz do precedente e
do caso a ser decidido.154
Entretanto, conforme já referido anteriormente, como se poderia fazer a
aplicação desse instituto quando a realidade da utilização da jurisprudência como
fundamento e argumentação nas decisões proferidas pelos julgadores brasileiros
ocorre pelo resultado da decisão, constante no dispositivo sentencial, e não nas
razões que fundamentaram o convencimento do juiz?
152 ROSITO, Francisco. Teoria dos Precedentes Judiciais. Racionalidade da Tutela
Jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012, p. 15. 153 JESUS, Priscila, o. cit, p. 11. 154 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 302-303.
79
Apesar de Priscila de Jesus afirmar que “todos os conceitos
fundamentais da teoria do precedente judicial [...] foram incorporados”155 no novo
sistema processual brasileiro, a diferença de como as decisões pretéritas já são
utilizadas e de como a teoria dos precedentes na sua origem – common law – foi
construída conduzem, no mínimo, à necessidade de utilizar a rule of precedentes
de forma cautelosa, ou, como afirma Rodriguez, sem levar em conta o modelo de
“racionalidade jurídica” que existe no Brasil.156
Disso tudo, portanto, pode-se extrair que a aplicação dos precedentes,
entendido este como regra de decisão adotada pela tradição jurídica do common
law, nos sistemas de civil law, e especilmente no sistema brasileiro, não pode
ocorrer de forma automática.
Entretanto, e nesse ponto parece existir verdadeiro ganho para a
racionalidade das decisões judiciais, a observância dos precedentes enaltece os
princípios da igualdade e da segurança jurídica, axiomas que agem em favor da
sustentabilidade democrática do Estado de direito, o que se passa a expor na
próxima seção.
2.2 Precedentes, Segurança Jurídica e Igualdade.
A proposta de correlacionar o tema envolvendo os precedentes aos
direitos fundamentais da segurança jurídica e da igualdade justifica-se na
necessidade de democratização da atuação dos juízes e tribunais na atividade
jurisdicional157. Esta seção da dissertação tentará abordar, ainda que brevemente,
os contornos dessa correlação.
Enquanto a ordem jurídica rege as relações sociais, e estas estão
fundadas em sistemas jurídicos caracterizados por normas jurídicas (em sentido
amplo), pode-se verificar que a existência de ordem social depende da eficácia do
sistema jurídico. O direito, como instrumento de regulação da vida da sociedade,
155 JESUS, Priscila, op. cit, p. 28. 156 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 69. 157 Nesse sentido, ver: CELLA, José R. G. Auto-precedente e argumentação racional. In: Curso
de Extensão Razão x violência: o espaço da racionalidade num mundo intolerante. Curitiba: PUC, 2001; MARINONI, Luis G. Precedentes Obrigatórios. Curitiba: Congresso de Direito Processual Civil, 2010.
80
e a democracia, como modelo político de organização adotado pelos Estados,
somente se sustentam se estiverem fundados em um de seus axiomas mais
elementares: a de que todos os homens são iguais, e essa igualdade, que
independe da raça, do credo ou da cor de cada um, efetiva-se na aplicação das
leis que regulam suas relações, daí, pois, “iguais perante a lei”.
A importância dessa igualdade nas relações de poder e, portanto, a
própria sustentabilidade democrática do Estado pode ser demonstrada na
seguinte afirmação de Guastini:
Na linguagem das fontes, um juízo de igualdade expressa obviamente uma norma: eventualmente atribui-se a uma dessas normas o valor de ‘princípio’. [...] estamos ante uma metanorma ou, como também se diz, uma norma de ‘segunda grau’: isto é, uma norma que não regula diretamente a conduta dos cidadãos mas versa, ao contrário, sobra (a produção e aplicação de) outras normas. No caso, a norma de igualdade constitui uma metanorma sobre a legislação: estabelece igualdade ‘na’ lei.158
Logo, falar em Estado de direito sem igualdade e, como consequência,
sem segurança jurídica, é o mesmo que negar as próprias liberdades alcançadas
pelos movimentos revolucionários, que são estruturantes do próprio Contrato
Social que já vige há centenas de anos:
No coração do Estado de Direito, há, portanto, fundamentalmente, a ideia de ‘limitação do poder’, pelo tríplice jogo da proteção das liberdades individuais, da sujeição à Nação e da assimilação de uma área restrita de competências: a estruturação da ordem jurídica é só um meio de assegurar e de garantir essa limitação, através dos mecanismos de produção do direito. Assim, o Estado de Direito abrange uma concepção, na realidade, das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica.159
Conforme Humberto Ávila, a segurança jurídica pode ser vista como
um elemento estruturante da definição do direito, como uma “realidade fática”
158“En el lengaje de las fuentes, um juicio de igualdad expressa obviamente uma norma:
eventualmente uma de esas normas a las que se suele atribuir el valor de ‘principio’. [...] estamos ante uma metanorma o, como también suele decirse, uma norma de ‘segundo grado’: esto es, una norma que no regula directamente la conducta de los ciudadanos sino que versa, en cambio, sobre (la produción o la aplicación de) otras normas. En un caso, la norma de igualdad constituye uma metanorma sobre la legislación: establece igualdad ‘en’ la ley.” GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estudioes de teoria y mateteoría del derecho. Tradução de Jordi Ferrer i Beltran. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 194.
159 CHAVALIER, Jacques, op. cit, 46.
81
reconhecidamente existente dentro de uma ordem jurídica (dimensão fática),
como um axioma substancial a ser perseguido pela vida em sociedade (dimensão
axiológica), ou, enfim, como uma norma jurídico-imperativa, portanto, de natureza
prescritiva “daquilo que deve ser buscado de acordo com ‘determinado
ordenamento jurídico’” (dimensão normativa). Nessa última hipótese, o autor
afirma que a segurança jurídica é uma norma-princípio de direito.160
As concepções de segurança jurídica que servem para a presente
dissertação serão, a fim de responder à hipótese lançada nas linhas introdutórias,
as equivalentes à fática e à normativa. Apesar de, como o próprio Ávila afirma,
não ser recomendável cindir as concepções para compreender a amplitude de
seu significado, pois elas se correlacionam161, crê-se que dentro da proposta de
descrever a relevância dos precedentes insertos na teorização da racionalidade
jurídica das decisões judiciais, a fim de apresentar uma regra de razão prática de
aferição dessa racionalidade, as questões axiomáticas, como se demonstrou no
primeiro capítulo dessa dissertação, são questões adstritas a cada julgador dentro
da sua livre convicção de julgar. Ao menos essa é a justificativa do realismo norte-
americano, na aplicação do direito, e a constatação da jurisprudência de
resultado, na realidade brasileira.
A segurança jurídica, por sua vez, e no âmbito dos precedentes, acaba
tendo por Marinoni uma divisão que se mostra pertinente a esse trabalho.
Segundo o autor, para haver segurança jurídica, no sentido próprio da aplicação
das normas aos fatos da vida, dois são os seus pressupostos.
O primeiro diz respeito à univocidade na qualificação das situações
jurídicas, o que quer dizer que a forma de conceituar uma conduta dentro de um
território específico e sob o domínio de uma mesma lei deve ser idêntica em todas
as oportunidades que aquela conduta for verificada.
Além disso, entende o autor, em segundo lugar, que a segurança
jurídica também depende da previsibilidade em relação às consequências que as
160 ÁVILA, Humberto B. Segurança jurídica. Entre permanência, mudança e realização no
direito tributário. São Paulo: Malheiros, p. 106-108. 161 Ibid, p. 110.
82
condutas sociais possuem a partir dos efeitos previstos na norma jurídica. Assim,
conclui o autor que a segurança jurídica para a teoria do direito corresponde à
previsibilidade de consequências jurídicas das condutas e à qualificação jurídica
unívoca dos fatos.162
Tais requisitos parecem ser indissociáveis entre si. Isso porque seria
impossível conceber em um Estado de direito que uma mesma conduta seja para
alguém lícita e para outrem ilícita, ao menos de uma forma geral.
Igualmente, sem sentido admitir que alguém seja responsabilizado por
uma conduta sem que possa ter ciência inequívoca anterior de que a mesma era
uma conduta reprovável.
Logo, as condutas que as normas jurídicas dispõem como condizentes
à escolha da sociedade como corpo político, portanto aprováveis, além de
somente terem sentido se puderem ser assim entendidas (qualificação jurídica
unívoca), somente serão praticadas se tal qualificação também for de
conhecimento de seus cidadãos, permitindo a escolha de praticar ou não a
conduta prevista na regra (previsibilidade das consequências jurídicas).
Observando essas duas características a partir de uma lente lógico-
jurídico-analítica, pode-se perceber que a qualificação jurídica unívoca nada mais
é que a justificação externa da premissa de fato (raciocínio jurídico não-normativo
de Kalinowski) que integra a justificação interna do silogismo de uma decisão
judicial. Semelhantemente, a outra característica, previsibilidade das
consequências jurídicas, também guarda semelhança com a justificação externa
da premissa de direito (raciocínio jurídico normativo de Kalinowski) que será
utilizada na justificação interna do silogismo da decisão judicial.
Desse modo, na racionalidade de uma decisão judicial, as premissas
utilizadas na justificação interna, dependentes da racionalidade das proposições
anteriores (justificação externa), devem observar, quanto à premissa maior
(premissa de direito), a previsibilidade das consequências jurídicas dispostas no
162 MARINONI, Luiz G. Os Precedentes na Dimensão da Segurança Jurídica. [s.l]: [s.e], [s.a], p.
02.
83
direito vigente, e em relação à premissa menor (premissa de fato), a qualificação
jurídica unívoca de certo fato.
Portanto, as condições teóricas da segurança jurídica em relação a
uma conduta – qualificação jurídica unívoca e previsibilidade das consequências
jurídicas – equivalem às proposições/premissas da justificação externa que dão
origem às premissas utilizadas na justificação interna de uma decisão judicial.
A justificativa desses pressupostos para que se assegure segurança
jurídica nos precedentes é assim verificada:
[...] a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica ser estável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. E isso se aplica tanto à legislação quanto à produção judicial, embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com a estabilidade das decisões. Frise-se que a uniformidade na interpretação e aplicação do direito é um requisito indispensável ao Estado de Direito. Há de se perceber o quanto antes que há um grave problema num direito variável de acordo com o caso.163
A ordem do Estado de direito depende, portanto, da segurança jurídica
que suas instituições transmitem a seus súditos. E a previsibilidade das
consequências jurídicas do direito vigente em um território permite que as
condutas sejam condicionadas a essas consequências. Se essas condutas não
são previsíveis, o critério da segurança jurídica a partir desses pressupostos
acaba se esvaindo.
Rosito apresenta a questão da segurança jurídica nos precedentes em
tensão com a necessidade de desenvolvimento do direito. Apesar de reconhecer
a necessidade de respeito da segurança jurídica, aponta em diversos momentos
para a necessidade de evoluir e alterar os entendimentos jurídicos. Defende que
para resolver essa tensão deve-se identificar aquilo que denominou de limites
orientadores, obtidos por meio de uma reflexão racional164, afirmação essa
compatível com o tema proposto nesse capítulo, de lógica jurídica e precedentes.
163 MARINONI, Luiz G, op. cit, p. 03. 164 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 282-284.
84
Ocorre que nesse aspecto a realidade prática da aplicação do direito
pelos juízes brasileiros por meio de suas decisões tem gerado um clima de
insegurança jurídica social a partir das instituições judiciárias. Isso porque não se
pode hoje afirmar com segurança como os julgadores se determinarão, ou seja,
não existe nenhuma previsibilidade segura acerca dos pronunciamentos judiciais.
Como já mencionado no início dessa seção, enquanto que o civil law,
ou sistema romano-germânico, tem como premissa maior o texto de lei positivado
e institucionalizado, o common law funda-se na história dos costumes de sua
população, que é desvelada pelas decisões judiciais. Nessa tradição jurídica as
premissas maiores (premissas de direito, segundo Kalinowski) utilizadas para
solucionar o caso concreto consistem na história das decisões já proferidas, na
rule of precedents.
Sendo assim, na tradição anglo-saxônica, a previsibilidade das
consequências jurídicas das condutas pode ser conhecida a partir da qualificação
jurídica reconhecida nos processos judiciais. A história das decisões –
precedentes – de um órgão judicial permite que os sujeitos saibam como os juízes
“enxergam” determinados comportamentos, e assim quais as consequências
jurídicas que são atribuídas a eles, pois o fazem com fulcro no common law.
Já no modelo continental, ou civil law, tenta-se dispor no texto
positivado todas as hipóteses fáticas e suas respectivas consequências jurídicas.
Entretanto, como se viu no primeiro capítulo dessa dissertação, é unânime na
teoria do direito a inexistência de um sistema jurídico (de normas) que alcance
todos os fatos da vida. Como também se disse, há problemas nos sistemas
jurídicos, quando analisados de um prisma analítico, consistente em lacunas,
antinomias e incompletudes. Logo, as decisões que resolverão o caso concreto
diante desses problemas de lacuna, antinomia e incompletude estão
necessariamente eivadas de discricionariedade.
Fato que merece registro nesse aspecto consiste na “mudança de
paradigma decorrente da passagem do normativismo legalista para o direito
85
fundamental principiológico”, o que seria responsável por uma maior
imprevisibilidade das consequências jurídicas.165
Rosito, apesar de esforçar-se, parece tentar conciliar as antíteses –
segurança jurídica e atualização do direito – que somente subsistem se se
admitir, ainda que veladamente, a possibilidade de um discurso argumentativo
promover, a partir de certo grau de discricionariedade, uma nova interpretação da
realidade jurídica.
O que mais preocupa nessa abertura à discricionariedade é o fato de o
próprio autor defender que parte dessa vanguarda da alteração da jurisprudência
ser protagonizada pelos próprios juízes de primeiro grau, o que parece ser a
coroa da ofensa da isonomia entre as partes, se consideradas aquelas com
causas semelhantes, mas expostas a juízes diferentes:
Com efeito, os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição são importantes para a evolução de jurisprudência. Classicamente, qualificam-se os juízes de primeiro grau como ‘motores’ da jurisprudência, propiciando evolução mediante o aporte de novos elementos valorativos, embora sua atividade, historicamente, seja vista em um ambiente de desconfiança, o que não deixa de ser contraditório,166
É por esse motivo que Marinoni afirma que é o modelo jurídico do civil
law (continental ou romano-germânica), diante desses problemas de
interpretação da norma jurídica, que autoriza a existência de tanta discrepância
entre as decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais em casos semelhantes.
Nesse modelo, portanto, a previsibilidade das consequências jurídicas,
pressuposto da segurança jurídica, e também da igualdade, fica prejudicada pela
constatação empírica dessa inconsistência entre as instituições judiciais na
determinação das consequências jurídicas das condutas.167
Mas essa posição não se mostra unânime. Há movimentos que
justamente discordam dessa previsibilidade, e que, assim o fazendo, negam-na
como pressuposto da segurança jurídica.
165 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 288. 166 Ibid, p. 285. 167 MARINONI, 2015a, op. cit, p. 05.
86
Natalia Bernal-Cano, no artigo intitulado El poder creador del juez em la
combinación o mezcla de los procedimientos constitucionales, defende a
possibilidade de os juízes utilizarem sua criatividade, de forma moderada, para
solucionar questões que não possuem previsão nos textos escritos ou que exigem
uma mudança na posição dos tribunais superiores.
Afirma a autora que, em prol da eficácia concreta dos direitos
fundamentais, os juízes podem “ modificar os critérios das Cortes Constitucionais
e Admitir novas soluções”, bem como “combinar os raciocínios, como os métodos
de interpretação legal e constitucional, para resolver se os casos são livres”.168
Sua posição parece ainda mais polêmica quando sustenta em sua tese
o que denomina de “autonomia judicial abaixo dos limites do ordenamento jurídico
escrito”, a qual consiste em:
[...] um tipo de racionalidade que permite a criatividade do juiz cinstitucional sob os limites constitucionais e legais, com o propósito de assegurar à pessoa uma maior proteção em sua situação concreta. [...] se permite a autonomia judicial no uso adequado e proporcional das fontes de direito, as quais não são excludentes mas complementares; é dizer, podem combinar-se os raciocínios, como nos métodos de interpretação legal e Constitucional, para resolver se os casos são livres.169
Assim, veja-se que enquanto parte do pensamento jurídico fala em
segurança jurídica através da previsibilidade das consequências jurídicas das
condutas, há quem defenda um poder criativo do juiz para sopesar as fontes do
direito, ainda que não sejam consideradas fontes primárias, e alcançar soluções
para proteger a casuística da demanda que in concreto se apresenta.
Percebe-se, portanto, que essa previsibilidade não é uma questão
unânime, pois há quem pense em favor da discricionariedade “racional” do juiz.
168“[...] modificar los criterios de las Cortes Constitucionalres y admitir nuevas soluciones [...]
combinarse los razonamientos, al igual que los métodos de interpretación legal o Constitucional, para resolver si los casos son libres”. BERNAL-CANO, op. cit, p. 15.
169“[…] autonomía judicial bajo los límites del ordenamiento jurídico escrito [...]un tipo de razonamiento que permite la creatiidad del juez constitucional bajo los límites constitucionales y legales, con el propósito de asegurar a la persona una mayor protección em su situación concreta. [...] se permite la autonomía judicial en el uso adecuado y proporcional de las fuentes del derecho, las cuales no son excluyentes sino complementarias; es decir, pueden combinarse los razonamientos, al igual que los métodos de interpretación legal o Constitucional, para resolver si los casos son libres”. Ibid, p. 16.
87
Quanto ao outro requisito da segurança jurídica, qualificação jurídica
unívoca das condutas processualmente apreciáveis, ele já foi em parte observado
na pesquisa da lógica jurídica analítica de Kalinowski, especificamente naquilo
que o autor denominou de semiologia jurídica (item “2.1.2”, supra). Trata-se da
justificação externa da chamada premissa fática utilizada na justificação interna
da decisão judicial.
Entretanto, esse pressuposto de qualificação unívoca guarda uma
correlação estreita com a regra de justiça de Perelman, para quem:
[...] uma noção de justiça formal que corresponde à regra de justiça, segundo a qual é justo tratar do mesmo modo situações essencialmente semelhantes. Esta regra, que é central em toda aplicação de uma norma em situações particulares, é indispensável em qualquer concepção positivista do direito.170
A igualdade também se mostra como um direito fundamental de
aplicação prática nas decisões judiciais e, portanto, de incidência reflexa na
disciplina dos precedentes. Entretanto, apesar de ela se aplicar a qualquer um
dos poderes estatais, Marinoni constata que ela não se aplica à realidade
jurisdicional brasileira em um sentido material.
O princípio da igualdade analisado a partir do embate processual
apresenta-se como regra formal cujo reflexo é a conhecida paridade de armas.
Nesse aspecto, o processo judicial desenvolve-se sempre observando a
igualdade em um sentido formal, que também pode ser observado no
contraditório e no acesso à justiça gratuita aos economicamente desprestigiados.
Como se vê, a ênfase está no procedimento.
Dworkin, por sua vez, afirma que o precedente exerce uma função
gravitacional, fundada na “equidade que está em tratar os casos semelhantes do
mesmo modo”171.
Por essa razão, verificando que a igualdade nunca é objeto de
observação nas decisões judiciais, Marinoni afirma que toda a igualdade
170 PERELMAN, 1990, op. cit, p. 137. 171 DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 176.
88
processual ou de procedimento que se verifica no processo somente terá sentido
se também repercutir na prolação da decisão:
Afinal, esta (sic) é o objetivo daquele que busca o Poder Judiciário e, apenas por isso, tem necessidade de participar do processo. Em outros termos, a igualdade de acesso, a igualdade à técnica processual e a igualdade de tratamento no processo são valores imprescindíveis para a obtenção de uma decisão racional e justa.172
Se a igualdade entre as partes no processo não tem merecido a
atenção necessária pelos julgadores, o que se poderia dizer quanto à igualdade
de tratamento jurídico quanto a parte que, apesar de estarem em processos
distintos, possuem semelhantes objetos e causas de pedir?
Como já dito por Rodriguez, a realidade brasileira, sob o aspecto da
seriedade de suas instituições, tem um elemento essencial na mediação dos
conflitos sociais:
[...] o ‘favor’ é o conceito-chave para compreender relações sociais no Brasil: a cidadania não é considerada um conceito de todos, mas sim um privilégio concedido e controlado pela classe dominante. [...] O Estado é encarado como uma agência promotora de lucros privados, compartilhada por um pequeno grupo de brasileiros, que estabelecem entre si uma complexa rede de relações, organizada para a manutenção da posição dominante.173
É a partir dessa provocação que será abordada no próximo capítulo a
questão central desse estudo: o autoprecedente como regra de razão prática
particular, ou singularizada, da racionalidade das decisões judiciais proferidas por
um mesmo órgão, a partir das premissas estabelecidas pelo próprio juízo em
casos pretéritos análogos, regra essa que se pode denominar de regra do
autoprecedente.
172 MARINONI, Luís G., 2015b, op. cit,, p. 05. 173 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 37.
89
CAPÍTULO 3
AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA
PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA
As considerações aportadas nos dois primeiros capítulos da
dissertação são fundamentais para as ideias que serão agora desenvolvidas. O
objetivo com que se dividiu a primeira parte do estudo deve ficar claro ao leitor,
especialmente para poder compreender a proposta presente nas últimas linhas.
Este trabalho parte de uma visão positivista da compreensão do direito,
e, tendo como um de seus objetivos gerais a possibilidade de criar uma regra de
razão de aferição da racionalidade na aplicação do direito a partir das Tecnologias
da Informação e Comunicação (TIC), no primeiro capítulo foi observado o debate
delineado no final do século XX sobre a aplicação do direito pelos juízes,
considerados estes tanto a título singular quanto como órgãos colegiados.
Diferentemente do que um senso comum jurídico brasileiro geralmente
defende, viu-se que o positivismo jurídico do século XX, além de nunca ter sido
fundamento para a promoção das barbáries experimentadas no Estado nacional-
socialista alemão, nem sequer restringiu a aplicação do direito à simples dedução
silogística do fato ao consequente normativo, geralmente cunhada de
normativismo ou de processo de subsunção fato-norma. Nesse sentido, tanto
Kelsen, a quem se atribuía certa influência de Austin e Benthan, precursores do
positivismo imperativista, quanto Hart e Ross, nunca negaram que a decisão
judicial está permeada de considerações morais e políticas, especialmente diante
dos casos em que as normas positivadas não apresentam solução, portanto,
longe de ser um empreendimento lógico formal caracterizado por uma lógica
quase matemática.
Mostrou-se, ainda, que a crítica a esse voluntarismo autorizado aos
juízes realizada por Dworkin tem como mote uma tese que defende a
possibilidade de em todos os casos existir uma decisão judicial correta, certa.
Nesse ponto, a análise do sopesamento entre argumentos de princípio e
90
argumentos de política pelo juiz Hércules dworkiano mostrou-se também em parte
discricionária.
Ainda, constatou-se que as verificações empíricas do realismo jurídico
estadunidense não seriam qualificadas assim à toa, pois defendem que o
julgador, realmente, tem plena discricionariedade na qualificação jurídica dos
fatos que lhe são submetidos. Mesmo diante da inserção pela teoria do direito da
argumentação como elemento essencial na prolação de decisões judiciais, viu-se
que os teóricos argumentativistas admitem a existência de certo grau de
discricionariedade nas decisões judiciais, seja na qualificação jurídica dos fatos –
em especial quando as normas classificadoras possuem conceitos
indeterminados ou molduras jurídicas que dependem do ânimo interpretativo do
julgador – seja na determinação da norma aplicável ao caso concreto,
principalmente após a ruptura do paradigma da estrita legalidade das normas
para a flexibilização da aplicação destas pela sua relativização por meio de
princípios, o que permite a coexistência de normas aparentemente conflituosas.174
No segundo capítulo, desenvolveu-se breve análise sobre a lógica e
sua repercussão na seara jurídica, desde os modelos antigos até o que se pode
nominar de lógica analítica judiciária. Observou-se que o espaço desta
dissertação impede uma investigação profunda sobre o tipo de lógica adequada
para subsidiar uma regra de razão prática particular do autoprecedente.
Entretanto, demonstrou-se a possibilidade de utilização de uma lógica subjacente
nas decisões judiciais, que autoriza a formalização dos argumentos em uma
estrutura de raciocínio.
Além disso, dissertou-se sobre a teoria dos precedentes, momento em
que se diferenciou a realidade brasileira dos julgamentos e o stare decisis do
commom law. Além disso, abordou-se o diálogo dos precedentes nos axiomas da
segurança jurídica e da igualdade dos sujeitos perante as decisões judiciais.
Como reflexo dessa realidade, concebeu-se uma ideia de decisão
judicial cuja racionalidade, principalmente na realidade judiciária brasileira, funda-
174 ROSITO, op. cit, p. 287.
91
se em argumentos de autoridade sem necessariamente consistir num raciocínio
lógico efetivo. Nesse prisma, acabam em xeque direitos fundamentais básicos do
Estado de direito e do modelo democrático, como a segurança jurídica e a
isonomia entre os indivíduos, cuja salvaguarda seria justamente papel das
decisões judiciais que aplicam direitos aos conflitos sociais. Pior que isso, o
problema potencializa-se diante da doutrina do “favor” existente nos bastidores do
poder social e político, como aquele inferido na realidade brasileira.175
3.1 DECISÕES COERENTES
Entretanto, com a promulgação do novo diploma processual civil
brasileiro no dia 16 de março de 2015, o legislador trouxe à arena normativa uma
inovação no que tange à racionalidade das decisões judiciais. Conforme o artigo
926 da Lei 13.305, os tribunais deverão, além de uniformizar sua jurisprudência,
mantê-la estável, íntegra e coerente. Nessa nova tarefa do aplicador do direito, a
norma também exigiu que fossem editados enunciados sumulares quanto à
“jurisprudência dominante” dos tribunais (parágrafo primeiro), bem como que tais
súmulas atentassem “às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram
sua criação” (parágrafo segundo).176
O Novo Código de Processo Civil também dispõe que as sentenças
deverão, conforme disposto no parágrafo 1º do art. 489, “explicar sua relação com
a causa” (inciso I), “explicar o motivo concreto” da incidência de um conceito
jurídico indeterminado ao caso (inciso II) e não utilizar outros “motivos que se
prestariam a justificar outra decisão” (inciso III).177 Parece, assim, que a
racionalidade jurídica das decisões ganha uma nova chance na aplicação do
direito brasileiro.
Além disso, a inovação também exige o enfrentamento de “todos os
argumentos deduzidos no processo “capazes de infirmar a conclusão” da decisão
(IV), a identificação dos “fundamentos determinantes” da utilização de
precedentes e enunciados sumulares”, o que parece remeter à ratio decidendi do
175 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 50. 176 BRASIL, Lei 13.305/2015, op. cit. 177 Idem.
92
sistema commom law (V), e, ainda, a necessidade de justificar racionalmente a
“ponderação” realizada em caso de colisão de normas, apontando as “premissas
fáticas que fundamentam a conclusão” que negou aplicação a norma relegada (§
2º).
A recepção da referida redação pela comunidade jurídica faz ressurgir
o debate sobre lógica jurídica, vez que a coerência exigida pelos julgadores
brasileiros somente pode ser aferida por meio de uma regra de racionalidade
jurídica prática.
Essa coerência também deverá, declaradamente, observar os
precedentes e sua ratio decidendi, o que se depreende do parágrafo segundo do
art. 926, que por sua vez torna evidente a influência da teoria dos precedentes na
aplicação do direito na nova sistemática processual civil.
Por outro lado, exigiu-se que as decisões expliquem a correlação das
normas aos fatos, campo este próprio da argumentação jurídica. Logo, pode-se
afirmar que a inovação legislativa em comento exigirá do julgador brasileiro a
observação de uma racionalidade jurídica e dos precedentes, por sua vez
coerentes.
As alterações propostas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro
não repercutirão somente nos processos civis. Conforme já é tradição no sistema
jurídico do Brasil, somado à previsão expressa do art. 15 do diploma processual
referido, este pode ser considerado regra geral de aplicação supletiva e
subsidiária diante da falta de outras normas processuais em matérias que
possuem procedimentos processuais específicos, como o direito eleitoral, o
trabalhista e o administrativo.
Apesar dessa aplicação indireta a todo o sistema processual brasileiro,
não é o objetivo deste trabalho investigar se essas alterações repercutirão de uma
forma direta, obrigando as decisões judiciais a possuir uma racionalidade lógica,
uma argumentação coerente e a manutenção de uma ratio decidendi. Contudo, o
novo diploma normativo parece ter ido mais longe que qualquer outro vigente, o
que permite inferir uma possível repercussão imediata a toda a decisão judicial.
93
Porém, a demonstração dessa hipótese dependeria de um trabalho específico,
não sendo aqui o lugar para a sua investigação.
A correlação existente entre racionalidade e precedentes, agora
positivada pelas novas regras processuais aplicadas às decisões judiciais dos
juízes brasileiros, não é algo novo na teoria do direito. A aproximação da
coerência das decisões de um órgão julgador e os precedentes desse órgão pode
ser inicialmente compreendida a partir de Tércio Ferraz Sampaio Júnior, para
quem:
Razão (reason, raisson, Vernuft, ratio, logos) é um substantivo cuja origem está no verbo “reri”, que em seu sentido primitivo significava ‘tomar algo por algo’, portanto ligar ‘coisas’ entre si, donde estabelecer relações e, daí, calcular, pensar. Quando os romanos traduziram por ‘ratio’ a relação matemática pensaram em ‘logos’, na cultura grega, como uma palavra que originariamente significara ‘juntar’, ‘unir’, ‘pôr em conjunto’, de onde surgiu a ideia de ‘logos’ como ‘palavra’, isto é, como signo que sintetiza, num som (fonema), vários significados.178
A racionalidade, portanto, liga-se à comparação, à analogia, à
correlação existente entre dois objetos. Sendo uma decisão judicial um
empreendimento racional, tal característica de racionalidade permite que se
determine uma decisão racionalmente válida quando, por exemplo, a sua
correlação com outras decisões mostrar-se coerente. Essa, pois, é a proposta dos
precedentes, a partir da ratio decidendi de casos anteriores aplicados a
posteriores.
Entretanto, dado que a decisão jurídica manifesta-se por argumentos, a
formalização de uma estrutura de raciocínio fica prejudicada, ou no mínimo
mostra-se de difícil aceitação. Isso foi objeto do segundo capítulo dessa
dissertação, em que se viu que, apesar de algumas tentativas de equiparar de
uma forma universal, como no caso de Kalinowski, as propriedades da norma
jurídica e dos fatos litigiosos com proposições potencialmente capazes de integrar
uma estrutura lógico-analítica de raciocínio, surgiria um problema da semiótica. A
tentativa de solucionar essa discrepância na determinação semântica das
178 SAMPAIO JUNIOR, Tércio Ferraz. A Pragmática da Justiça na Interpretação Jurídica. In:
SCHOUERI, Luiz Eduardo (coord.). Direito Tributário. Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 146.
94
propriedades das normas e da qualificação jurídica dos fatos pela jurisprudência
dos conceitos teria justamente essa pretensão.
Contudo, a tradição jurídica brasileira de aplicação de decisões
anteriores a casos presentes sempre esteve ligada ao resultado, ou seja,
historicamente nunca se deu importância à ratio decidendi dos casos, mas
somente ao dispositivo sentencial. Prova disso é que os órgãos julgadores
colegiados brasileiros podem unanimemente resolver com um mesmo resultado
um caso levado a julgamento sem, contudo, concordarem quanto às razões que
levaram a conclusão.179 Essa, pois, é uma realidade que contrariaria uma
exigência normativa de coerência das decisões proferidas nesses órgãos, se
analisado cada julgador individualmente. Sendo diferentes as razões, como se
poderá considerar racionalmente coerente a justificação realizada em uma
decisão colegiada com diversas ratios?
Apesar de a tentativa de formalizar analiticamente o raciocínio de uma
decisão judicial ter se frustrado por problemas na conceituação das propriedades
utilizadas, não se pode negar que a racionalidade da aplicação do direito ainda
observa uma lógica subjacente.
Quando o julgador considera que um fato preencheu a hipótese
normativa, ele realiza uma construção lógica dedutiva. Se esse mesmo julgador
se depara com um caso de aparente conflito normativo, sejam essas normas
disposições textuais expressas, sejam princípios normativos sem, contudo,
expressão e aplicação definidas (aqui ele vai eleger as premissas pela justificação
externa antes de aplicar a lógica), ao decidir o caso pratica um raciocínio dedutivo
entre a norma identificada, independentemente do seu modelo ou natureza, ao
caso juridicamente qualificado que está julgando. Isso quer dizer que a
justificação interna da decisão sempre utiliza alguma lógica dedutiva subjacente
ao raciocínio empregado para a decisão. Entretanto, dado os problemas de
subjetividade dos órgãos julgadores na interpretação das normas e na
qualificação jurídica dos fatos, é evidente ser impossível, ao menos até então,
criar uma estrutura universal dessa lógica jurídica.
179 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 108.
95
Além disso, uma decisão judicial também precisa de legitimação social.
Se a sociedade não admitir uma decisão como minimamente racional, a
autoridade que ela expressa poderá ser refutada, assim como ocorre com as
normas jurídicas que não alcançam efeito no plano da eficácia. Trata-se, em
outras palavras, da falta de legitimidade pela prática:
Um projeto de lei não se torna lei simplesmente sendo decretado, ocupando seu lugar no Halsbury ou no livro de estatutos. Torna-se lei apenas quando começa a desempenhar um papel na vida da comunidade, não podemos dizer qual papel será – e, portanto, não podemos dizer ‘qual lei’ foi criada -, até que ela comece a ser administrada e interpretada pelos tribunais. Considerado como um pedaço de papel com selo de aprovação do parlamento, um estatuto não é direito, mas apenas uma possível ‘fonte de direito’.180
A partir disso, pode-se dizer que uma decisão judicial que não se
mostra logicamente justificável não possuirá uma aceitação social satisfatória.
Apesar de o direito fazer necessariamente o uso da força181, a sociedade como
um todo respeita as decisões judiciais por crerem, em parte, que o órgão julgador
no seu ofício age com racionalidade. Habermas ilustra bem essa realidade:
[...] no caso da fundamentação e aplicação de normas do direito, entra em jogo tal relação com bens e fins coletivos [...]. Por isso, os discursos de fundamentação e de aplicação precisam abrir-se também para o uso ‘pragmático’ e, especialmente, para o uso ‘ético-político da razão prática’. Tão logo uma fundamentação racional coletiva da vontade passa a visar programas jurídicos concretos, ela precisa ultrapassar as fronteira do discurso da justiça e incluir problemas do auto-entendimento e da compensação de interesses.182
Essa necessidade de respaldo legitimador social justifica o afastamento
da aplicação de lógicas complexas existentes183 à realidade da decisão judicial.
Isso, pois, seria a justificativa para que, na hipótese lançada no presente trabalho,
e diante da limitação que será exposta adiante, a utilização de uma lógica
subjacente para a aferição da racionalidade jurídica de uma decisão pode ser
uma regra de razão prática.
180 WALDRON, Jeremy, op. cit, p. 11-12. 181 Cf. KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. 35; HART, Herbert, op. cit, p. 26-31; 182 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 191-192. 183 Nesse sentido, ver CELLA, José R. G, 2008, op. cit, p. 120-122.
96
O ponto de partida dessa racionalidade inovadora surge há pouco mais
de uma década e apresenta uma possibilidade de estruturar de forma lógica e
analítica um raciocínio com uma pretensão de correção da decisão judicial. Este
propõe a retomada das proposições que dão origem às premissas utilizadas no
raciocínio de uma decisão judicial – vista como a conclusão de um raciocínio – a
fim de verificar se esse mesmo órgão judicial profere uma decisão observando as
próprias proposições e premissas lançadas na sua história de decisões. Trata-se
de uma regra de razão prática particular denominada de “autoprecedente”.
Observe-se que a utilização do termo não pode ser confundida com o
precedente vertical, considerado aquele que considera as decisões proferidas por
um órgão judicial superior e que exerce influência e autoridade sobre as decisões
dos órgãos judiciais inferiores, melhor explanado no item “2.2” do capítulo
precedente. A concepção que aqui se quer apresentar considera a existência de
um precedente horizontal, já mencionado por autores que pesquisam o tema dos
precedentes.184
3.2 AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RACIONALIDADE PRÁTICA
A autoria da tese de autoprecedente como regra de racionalidade
prática pertence a José Renato Gaziero Cella, exposta no artigo Auto-
precedente185 e argumentação racional de 2001, e de sua Tese de Doutorado
intitulada Controle das decisões jurídicas pela técnica do auto-precedente: lógica
deôntica paraconsistente aplicada em sistemas especialistas legais, defendida em
2008, na Universidade Federal de Santa Catarina.
Partindo da tese da única resposta certa de Dworkin, Cella defende
que a racionalidade da decisão judicial pode ser aferida, “ser aproveitada num
sentido particular”, não como a possibilidade de se encontrar efetivamente uma
solução correta para toda e qualquer disputa levada a juízo, no sentido de uma
184 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 287. 185 O vocábulo sofreu alteração morfológica após a promulgação, pelo Decreto 6.583/2008, do
Acordo Ortográfico assinado pelos países cuja língua portuguesa é o idioma oficial, em 16 de dezembro de 1990, em Lisboa, Portugal. No acordo, a utilização do prefixo “auto”, sucedido por expressão que iniciasse com letra diferente de “o”, teve a utilização do hífen suprimida, conforme Base XVI, parágrafo 2º, alínea “b”.
97
pretensão de correção universal, mas sim como uma “aspiração postulada por
todo raciocínio jurídico que se pretenda correto e sem contradições”186.
Para o autor:
[...] sem embargo da assertiva de que o Direito não oferece sempre uma única resposta correta para mais de um intérprete, deve-se supor que existe sim uma resposta correta para cada intérprete individualmente considerado, ou seja, que a ideia de correção absoluta não é válida para o conjunto da comunidade linguístico-jurídica, mas é aplicável a cada um de seus membros.187
A tentativa de universalizar a racionalidade e a coerência de toda e
qualquer decisão judicial a um método único fracassa no momento em que o
processo interpretativo é inerentemente subjetivo e não consensual. Assim, a
ideia dworkiana de resposta correta pode ser entendida não em um universo geral
das decisões de todo um sistema jurídico, mas sim de uma forma particular,
considerando o universo das decisões de um mesmo órgão. É dessa forma que
se poderia admitir existir uma resposta correta, a partir da observância, pelo órgão
julgador, da coerência de sua decisão a partir do seu próprio autoprecedente:
Consequentemente, quando as circunstâncias de fato e as hipóteses normativas são as mesmas – ou se mantêm constantes – pode-se afirmar que o intérprete, a partir de uma exigência de argumentação racional, deva sempre formular uma única resposta quando estiver na presença das mesmas hipóteses. Tal assertiva é uma exigência da argumentação racional, pois o que está em jogo aqui não é um resultado obtido após um debate intersubjetivo, mas sim uma das regras fundamentais que todos os participantes do discurso prático geral devem observar, a saber: ‘Todo orador que aplique um predicado F a um objeto A tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja semelhante a A em todos os aspectos relevantes’.188
Essa tese encontra plena aderência aos direitos fundamentais da
segurança jurídica e da igualdade de tratamento dos indivíduos nas decisões
judiciais. Isso porque permite, quanto à segurança jurídica, que se tenha
previsibilidade das consequências jurídicas dos comportamentos sociais e que
186 CELLA, José R. G, 2001, op.cit, p. 18. 187 Idem, p. 20. 188 Ibid, 2008, op. cit, p. 110.
98
estes sejam qualificados de forma unívoca pelos órgãos julgadores, ainda que se
considerados dessa forma particular.
O cumprimento de tais pressupostos permite, ao mesmo tempo, que os
casos levados à apreciação pelo mesmo órgão julgador sejam considerados de
forma igualitária, sem importar quem são as partes envolvidas, mas somente
quais são os fatos e qual é o direito aplicável. Dado os “favores” que permeiam a
justiça brasileira, já referidos a partir de Rodrigues, o autoprecedente pode
representar a retomada de um caminho de seriedade nos julgamentos brasileiros.
Inicialmente, a tese do autoprecedente, como última ratio do controle
da racionalidade das decisões judiciais, fundamentava-se em duas regras formais
da argumentação: a da universalização, decorrente do imperativo kantiano, de
modo que o individuo na sua liberdade de agir coadune-se com a liberdade de
todos; e a da inércia, delineada por Perelman, que consiste na reiteração dos
comportamentos, presente na justificação dos precedentes como fontes do
direito.189 Posteriormente, apesar de afastar a inércia perelmaniana, Cella
mantém a universalização, mas com fundamento na argumentação de Alexy.190
A técnica do autoprecedente como regra formal de racionalidade
propõe a utilização da lógica paraconsistente, de autoria de Newton Carneiro
Affonso da Costa, para a aferição da racionalidade das decisões judiciais através
de um sistema de informática (software):
[...] uma lógica é paraconsistente se pode fundamentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam teses contraditórias, e em particular um contradição) mas que não sejam triviais, no sentido de que nem todas as fórmulas (expressões bem formadas de sua linguagem) sejam teoremas do sistema.
Além da utilização de lógica paraconsistente proposta por Cella, Cesar
Antonio Serbena propôs em recente artigo a utilização da lógica fuzzi e de redes
neurais às decisões judiciais. São sistemas lógicos complexos, baseados em
proposições parcialmente verdadeiras e parcialmente falsas – no caso da fuzzi –
e que podem inclusive aprender pelo input de novas informações – no caso das
189 Ibid, 2001, p. 22. 190 Ibid, 2008, p. 108.
99
redes neurais. O objetivo do artigo de Serbena aproxima-se no propósito dessa
dissertação quanto ao objetivo de que “a decisão judicial que desejamos do
sistema jurídico deva ser uma decisão coerente e igualitária, que leve em
consideração todos os jurisdicionados em uma mesma medida”191. Contudo, sua
proposta consiste na possibilidade de o julgador, ao tomar uma decisão, ou seja,
em um sentido prescritivo, fazer uso de uma dessas lógicas complexas para lhe
subsidiar na decisão futura, aquela que vai proferir ao caso concreto. Logo, uma
função prescritiva.
O presente estudo, entretanto, tem uma pretensão muito mais tímida.
Isso porque o objetivo da utilização da técnica do autoprecedente que se propõe
nessa dissertação é operado em uma função descritiva. Acredita-se que se for
possível preencher uma estrutura lógico-dedutiva formal (premissa maior,
premissa menor e conclusão) com os argumentos da racionalidade que uma
decisão judicial utilizou, tanto na justificação interna da decisão, como na
justificação externa, todas as decisões em situações análogas ao modelo em que
for suscitado esse mesmo julgador, por as proposições que justificam as
premissas já serem conhecidas nos casos passados, poder-se-á verificar se a
última decisão está coerente com o autoprecedente criado pela ratio decidendi já
utilizada e, portanto, concluir-se se a mesma é racional nesse sentido particular.
Se pensada a partir de uma lógica modal, o autoprecedente de um
órgão julgador tornar-se-ia sua verdade necessária192, pois a qualificação jurídica
que ele dá aos fatos e a interpretação que infere das normas jurídicas válidas
seria seu universo possível.
191 SERBENA, Cesar A. Aplicação da informática decisória ao direito: lógica “fuzzi” e redes
neurais. In: LASALA CALLEJA, Pilar (ed.). Derecho e tecnologias avanzadas. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2013, p. 30.
192 V. HAACK, Susan, op. cit, p. 229-230: “A lógica modal tem por intenção representar argumentos que envolvem essencialmente os conceitos de necessidade e possibilidade. [...] Há uma longa tradição filosófica de distinguir entre verdades ‘necessárias’ e verdades ‘contingentes’. A distinção é freqüentemente explicada da seguinte maneira: uma verdade necessária é uma verdade que não poderia ser de outra forma, uma verdade contingente, uma que poderia; ou, a negação de uma verdade necessária é impossível ou contraditória, a negação de uma verdade contingente é possível ou consistente; ou, uma verdade necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis (p.250ss), uma verdade contingente é verdadeira no mundo real, mas não em todos os mundos possíveis.”
100
Na investigação da lógica jurídica analítica, viu-se que, dentro dos
chamados raciocínios jurídicos de coação intelectual, a justificação interna de
uma decisão consiste na premissa de fato, obtida por meio da prova e
convencimento resultante do procedimento processual, e na premissa de direito,
identificada no sistema jurídico como a norma vigente a ser aplicada ao caso.193
Do mesmo modo a justificação externa desses raciocínios, ou seja, a
obtenção das premissas de fato e de direito também dependem de raciocínio
anteriores justificados.
A fim de obter a premissa de fato, afirma Kalinowski, o raciocínio
realizado é jurídico não-normativo,194 o qual consiste na verificação da existência
dos fatos alegados pelas partes. A conclusão desse raciocínio jurídico não-
normativo será positiva ou negativa, acatará a versão de uma ou de outra parte.
Isso ocorrerá a partir das alegações e das provas produzidas durante o
procedimento processual. A fixação dessa premissa de fato equivale à
univocidade na qualificação das situações jurídicas proposta por Marinoni,195
pressuposto da segurança jurídica na aplicação dos precedentes.
Quanto à premissa de direito, o raciocínio será jurídico normativo.
Neste, o juiz identificará e individualizará qual será a norma jurídica que se aplica
à premissa de fato verificada. Nesse caso, fará uma inferência da norma geral
abstrata sobre o caso particular. Exatamente aquilo que Hart denomina de “regra
individual de reconhecimento”.196 Aqui, pois, pode-se verificar a existência do
outro pressuposto da segurança jurídica, a previsibilidade das consequenciais
jurídicas.
Como se pode verificar, caso a conclusão dos raciocínios jurídicos
normativos e não-normativos (que suportam as proposições da justificação
externa) forem diferentes entre órgãos julgadores sobre casos análogos, tanto
conjunta quanto individualmente, as premissas utilizadas na justificação interna
serão alteradas e, logicamente, a conclusão/decisão judicial será alterada.
193 KALINOWSKI, Georges, op. cit, p. 146-150. 194 V. item “2.1.2”, retro. 195 V. item “2.2.2”, retro. 196 V. item “1.1”, retro.
101
Pois bem, uma das constatações da presente pesquisa foi de que a
teoria do direito, dadas as suas invencíveis divergência filosóficas, não possui um
catálogo de proposições semanticamente unânimes para tornar unívoco o
raciocínio jurídico normativo em um sentido universal. Do mesmo modo, outra
constatação alcançada foi de que a subjetividade dos julgadores é influência
inequívoca no ato de decidir, o que também impede uma unanimidade no
raciocínio jurídico não-normativo dos fatos levados a sua apreciação, ou seja, a
qualificação jurídica dos fatos, especialmente aqueles em que essa adjetivação
jurídica se trata de um conceito indeterminado, é ato eminentemente subjetivo.
Mas no momento em que são conhecidos os argumentos utilizados por
um julgador para determinado caso, sua ratio decidendi pode ser enclausurada
em uma estrutura formal, o que justifica a exigência de que tal julgador, em prol
da racionalidade de suas decisões, aferidas pela coerência de seus raciocínios
jurídicos normativos e não-normativos, chegue a conclusões semelhantes em
casos análogos, ou seja, que envolvam fatos provados análogos ou regras
individuais de reconhecimento semelhantemente aplicáveis. Isso nada mais é que
a proposta do autoprecedente como regra particular de razão prática.
Admitindo-se essa hipótese, pode-se sugerir que, para a aferição da
racionalidade de um conjunto de decisões de um mesmo julgador, crie-se uma
estrutura formal de racionalidade lógico-dedutiva, preenchida pelas conclusões
dos raciocínios jurídicos normativos e não-normativos de um mesmo julgador, o
que permitiria verificar analiticamente, do ponto de vista da coerência, a
racionalidade das decisões desse mesmo órgão julgador.
Assim, ao se poder obter os raciocínios jurídicos normativos e não-
normativos de determinado órgão judicial, através do discurso argumentativo de
sua decisão, em relação aos fatos da vida por si qualificados e às normas
jurídicas inferidas, poder-se-ia inferir uma regra formal particular de razão prática
a esse julgador quanto a esse fato. Essa regra, aplicada a um conjunto de
decisões desse órgão em casos análogos, permitiria verificar a coerência e,
portanto, a racionalidade jurídica desse órgão julgador. A manutenção do
entendimento já reiteradamente exposto pelo julgador demonstraria a
102
racionalidade de suas decisões, enaltecendo, assim, os primados fundamentais
da segurança jurídica e da igualdade das decisões judiciais perante casos
análogos.
Por óbvio que, indiretamente, a aferição da coerência e da
racionalidade das decisões judiciais de um determinado órgão representa a
observância de princípios democráticos, no sentido de controle e fiscalização do
poder do Estado, além da potencialização das garantias fundamentais e da
possibilidade de responsabilização pela prática de inconsistências injustificadas
em decisões judiciais. Como se pode imaginar, o âmbito de aplicação dessa regra
de racionalidade prática particular é extenso. Desde o combate à corrupção
também presente nos órgãos judiciários, até a efetivação de direitos
fundamentais, como o já tratado da igualdade de tratamento entre indivíduos.
Nesse sentido, a legitimação dessa discricionariedade judicial também
acaba ofendendo o princípio da separação das funções do Estado, atualmente
criticado como protagonismo judicial.197
Para demonstrar a falta de coerência das decisões judiciais na
realidade brasileira, analisada a partir da regra formal particular de razão prática
de autoprecedente, serão tomadas algumas decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, o que se passa a expor adiante.
3.2.1 Casos de Incoerência Analisados pela Técnica do Autoprecedente
Inicialmente, deve-se observar que a análise e discriminação do
raciocínio da decisão considerará, para os fins aqui pretendidos, o entendimento
vitorioso, ou seja, aquele expresso no dispositivo da decisão. Como referido
anteriormente, no caso dos tribunais brasileiros, um mesmo resultado do
julgamento pode se dar por diversos motivos.198 Nos casos que serão
apresentados adiante, considerar-se-á a decisão a partir do momento em que os
argumentos são inequívocos para o resultado da decisão. Ou seja, serão
consideradas as justificações externas imediatamente anteriores à justificação
197 Cf. STRECK, Lenio, op. cit, p. 93-97; 198 V. item “2.1”, retro.
103
interna do resultado da decisão. Desse modo, serão identificadas as proposições
que justificam a justificação externa das premissas que serão utilizadas na
justificação interna.
Pois bem, a 1º Turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus
nº 75.338199, em julgamento ocorrido em 11/03/1998, ao apreciar caso de
recebimento de denúncia fundada em gravação telefônica não autorizada por um
dos interlocutores, entendeu que o direito fundamental à inviolabilidade da
conversa telefônica, disposto artigo 5º, XII, da Constituição Federal Brasileira,
pode ser relativizado quando a gravação telefônica é utilizada para provar o
cometimento de um ilícito penal. Nesse caso, portanto, a 1ª Turma do Supremo
Tribunal Federal considerou a referida gravação lícita, autorizando sua utilização
como prova no procedimento processual.
O caso, por ironia ao tema dessa dissertação, diz respeito à suposta
tentativa de extorsão por Juiz de Direito em face de Tabelião Substituto de Notas
que respondia a processo disciplinar junto à Corregedoria-Geral do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro, órgão competente para apreciar e julgar
administrativamente irregularidades dos auxiliares da justiça, grupo em que os
Tabeliões estão inseridos.
A comunicação do crime realizada pelo Tabelião fundava-se em
gravação telefônica em que o Juiz de Direito solicitava cem mil dólares
americanos para “liberá-lo” do referido processo administrativo instaurado, no
sentido de fazê-lo cessar ou arquivá-lo. A notícia crime resultou em processo
crime, cuja discussão sobre a utilização da referida gravação como prova chegou
à Corte Constitucional em razão da alegação de ofensa ao direito à inviolabilidade
da conversa telefônica sem autorização do Juiz de Direito.
Se o raciocínio jurídico do órgão julgador fosse colocado em uma
estrutura formal de raciocínio, sua representação seria equivalente à figura nº 1
(abaixo).
199 BRASIL., Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75912. Acesso em 27 set.2015.
104
Note-se que o raciocínio da justificação interna possui, como premissa
de direito, a possibilidade de “relativização do direito fundamental” à privacidade.
Essa conclusão, por sua vez, decorre de raciocínio anterior, em que o órgão
julgador considerou que o direito à privacidade não pode ser invocado quando se
está diante do cometimento de um ilícito. Nesse raciocínio, duas são, portanto, as
premissas, o cometimento de um “ato ilícito” e o “direito fundamental” à
inviolabilidade das comunicações telefônicas. Cada uma dessas proposições
também possui um raciocínio próprio anterior.
Figura nº 01 – Habeas Corpus nº 75.338/RJ
No caso da premissa “direito fundamental” à inviolabilidade das
comunicações telefônicas, tal proposição, na decisão analisada, decorre de um
raciocínio que considera a existência do “art. 5º, XII” da Constituição da República
Brasileira de 1988 como possuidor de previsão do direito fundamental à
inviolabilidade das comunicações telefônicas, bem como de que uma conversa
telefônica está abarcada por essa inviolabilidade em razão de sua característica
privativa, o que também poderia ser expresso em uma nova estrutura anterior,
cuja justificação teria como base o art. 5º, X, da Carta Constitucional brasileira,
mas que para demonstrar a hipótese dessa pesquisa mostra desnecessária.
Sendo assim, consideradas as premissas “art. 5º, XII da CRFB/88” e
“conversa telefônica é privativa”, concluiu-se que a conversa telefônica está
protegida pelo “direito fundamental” à inviolabilidade das comunicações
telefônicas. Essa, portanto, seria a estrutura formal do raciocínio que considera
aplicável ao caso o “direito fundamental” em exame.
105
Já a premissa “ato ilícito” é resultado do raciocínio envolvendo outras
proposições. A primeira, que a conversa telefônica gravada envolvia uma
“proposta” realizada pelo Juiz de Direito, e a segunda, que essa conduta seria
tipificada como crime de extorsão, previsto no “art. 158” do Código Penal
brasileiro. A conclusão dessas premissas é de que haveria um “ato ilícito” sendo
cometido na gravação telefônica cuja utilização como prova estava sendo
debatida.
Assim, reconstruindo o raciocínio da premissa de direito a partir das
justificações externas demonstradas acima, a 1º Turma do Supremo Tribunal
Federal considerou a “relativização do direito fundamental” à inviolabilidade das
comunicações telefônicas, cuja força normativa decorre do “art. 5º, XII da
CRFB/88” e do fato “a conversa telefônica ser privativa”, em razão de a mesma
demonstrar o cometimento de um “ato ilícito” tipificado como crime pelo “art. 158
do CP” em razão do teor da “proposta” comunicada pela conversa telefônica.
Já em relação à premissa fática da “utilização da conversa telefônica
como prova”, a construção do raciocínio não se mostra difícil. Pode-se afirmar que
a justificação externa da premissa “utilização da gravação telefônica como prova”
consiste simplesmente no fato de ter existido uma “conversa entre duas pessoas”,
por telefone, e que ela foi objeto de “gravação por um interlocutor” que dela
participava.
A decisão expressa pelo órgão julgador analisado, portanto, utilizando
a premissa de direito da “relativização do direito fundamental” à inviolabilidade
das conversas telefônicas, e a premissa de fato acerca da “utilização de gravação
telefônica como prova”, conclui que a gravação telefônica da conversa entre o
Juiz de Direito e o Tabelião, gravada por este sem o conhecimento daquele, seria
lícita para fins de prova em persecução penal.
Desse modo, o raciocínio jurídico da decisão em comento, formalmente
organizado em uma estrutura lógica clássica, demonstra a tese proposta por
Kalinowski, de que a decisão compõe-se de um raciocínio jurídico normativo, que
resulta na premissa de direito, e de um raciocínio jurídico não-normativo, que
resulta na premissa fática, ambas, por sua vez, fundadas em premissas
106
anteriores, por sua vez justificadas em proposições oriundas de outras premissas
e assim por diante.
Entretanto, diante da inexistência de uma regra de razão prática de
racionalidade jurídica, a realidade do sistema jurídico brasileiro acaba admitindo a
existência de decisões sobre casos análogos, cuja qualificação jurídica dos fatos
ou a consideração da norma aplicável são incoerentes entre si, e pior, pelo
mesmo órgão julgador. Tal realidade, como já manifestado nas linhas anteriores,
prova a violação à segurança jurídica e à isonomia das decisões judiciais perante
as partes participantes de processos análogos. Nesse sentido, comparar-se-á à
decisão anterior a proferida no Habeas Corpus nº 80.949/RJ200, julgado em
30/10/2001.
Este segundo caso também diz respeito à possibilidade de utilização
de gravação telefônica realizada com o conhecimento de um dos interlocutores
como prova em persecução penal. O caso diz respeito a sujeito que, ao ser
interrogado perante a autoridade policial, confessa sua participação em esquema
de venda internacional de armas. Contudo, atribui a terceiro o comando da
organização, provando este fato a partir de gravação telefônica.
Ocorre que nesse caso, a 1º Turma do Supremo Tribunal Federal
considerou que a referida prova era ilícita, sob o argumento – em sede de
premissa de direito – de que o direito fundamental à inviolabilidade das
comunicações telefônicas seria absoluto.
A justificação do raciocínio jurídico manifestado pelo órgão julgador
poderia ser estrutura da seguinte forma (figura nº 2):
200 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em :
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=78579. Acesso 27 set.2015.
107
Figura nº 2 – Habeas Corpus nº 80.949/RJ
Nesse segundo caso, verifica-se que a justificação interna da decisão
considerou como premissa de direito a proposição de que a inviolabilidade das
comunicações telefônicas se trata de um “direito fundamental absoluto”, enquanto
que a premissa de fato é a mesma do caso anterior, ou seja, “utilização de
gravação telefônica como prova” em processo penal. Contudo, e decisão é
diametralmente oposta: a gravação é considerada prova ilícita.
Analisando a justificação externa da decisão, verifica-se que os
raciocínios que justificam a consideração da inviolabilidade das comunicações
telefônicas como “direito fundamental absoluto” estão constituídos pelas mesmas
proposições que justificaram o raciocínio que conclui pela “relativização do direito
fundamental”, como premissa de direito, no primeiro caso analisado (figura nº 1).
Decompondo o raciocínio dessa premissa de direito usada na decisão
da figura nº 2, verifica-se que o raciocínio também utiliza, como premissas
anteriores, as proposições de que a inviolabilidade das comunicações é um
“direito fundamental” e que a referida gravação foi utilizada para demonstrar o
cometimento de suposto “ato ilícito”.
O raciocínio que considera a proposição “ato ilícito” válida tem como
premissas a previsão legal do “art. 18 da Lei 10.826” de 2003, que proíbe a
comercialização de armas sem autorização, e a suposta prática desse comércio
(“compra/venda sem autorização”).
108
Por sua vez, a conclusão que resulta na premissa “direito fundamental”
à inviolabilidade da gravação telefônica, semelhantemente ao caso da figura nº 1
supra, também tem como premissas do raciocínio a proposição da regra
constitucional disposta no “art. 5º, XII da CRFB/88” e de que a “conversa
telefônica é privativa”, por essa razão inviolável.
Por fim, a premissa fática “utilização de gravação telefônica como
prova” possui as mesmas proposições do caso da figura nº 1: a existência de uma
“conversa entre duas pessoas”, por telefone, e o fato de ter ocorrido a “gravação
por um interlocutor” da conversa.
Observe-se, portanto, que as proposições utilizadas pela 1ª Turma do
Supremo Tribunal Federal no raciocínio da justificação externa do caso
representado pela figura nº 1 e as proposições utilizadas pelo mesmo órgão
julgador no raciocínio da justificação externa no caso representado pela figura nº
2 são extremamente semelhantes, somente não sendo idênticas no tipo penal que
justificava a consideração do “ato ilícito” como uma das premissas – enquanto no
caso da figura nº 1 o suposto crime é de extorsão, no caso da figura nº 2 é de
comércio de armas sem autorização.
Essa diferença, contudo, a partir das razões externadas nos
julgamentos, não alteram o peso da premissa “ato ilícito” nos dois casos. Isso
porque em ambos tal premissa “ato ilícito”, ao considerá-la como proposição na
justificação do raciocínio posterior, a saber, se o direito fundamental em comento
era relativo ou absoluto, foi correlacionada com o próprio preceito constitucional
(nas figuras, premissas nominadas de “direito fundamental”), sendo que em
ambas as justificações externas a carga normativa atribuída ao “direito
fundamental” foi idêntica.
A observação desses casos demonstra que, mesmo diante da
igualdade das proposições utilizadas em um raciocínio jurídico, a consideração do
direito fundamental à inviolabilidade das conversas telefônicas foi considerada no
primeiro caso como um direito fundamental relativo (figura nº 1) e no segundo
como direito fundamental absoluto (figura nº 2). Ora, nítida é a incoerência das
decisões proferidas pelo órgão julgador.
109
Tal constatação também confirma as afirmações apresentadas no
capítulo 1 dessa dissertação, em que se demonstrou que há discricionariedade
nas decisões judiciais, independentemente se a escolha realizada pelo julgador
ocorre pela inexistência de previsão normativa (Kelsen e Hart), pela apresentação
de justificativas que não são motivações reais e efetivas (MacCormick), pela
argumentação racional que utiliza conceitos de justiça admitidos socialmente ou
uma dogmática jurídica particular (Alexy), ou, ainda, pela utilização de uma
argumentação comprometida com um ideal político e moral (Atienza).
Como se comprovou nos casos suprarreferidos, as premissas de direito
utilizadas na justificação interna divergem. Enquanto no primeiro (figura nº 1) o
direito fundamental à inviolabilidade das conversas telefônicas foi relativizado, no
segundo (figura nº 2), o mesmo direito, com a mesma estrutura de justificação
externa, foi considerado um direito fundamental absoluto. A conclusão dessa
análise é de que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal interpretou o direito
fundamental disposto no inciso X do artigo 5º como lhe aprouve, logo, de forma
discricionária.
Note-se que as premissas fáticas de ambos os casos são idênticas.
Logo, a previsibilidade da qualificação jurídica de certo comportamento acaba
inexistindo no sistema jurídico brasileiro, e a segurança jurídica que se espera dos
órgãos jurisdicionais, ainda mais o Tribunal constitucional, responsável pela
uniformização da interpretação das normas constitucionais, torna-se uma utopia.
Essa discricionariedade, entretanto, também pode se dar na premissa
fática (raciocínio não-normativo) da justificação interna. A fim de demonstrar a
existência dessa incoerência na qualificação jurídica inequívoca dos fatos,
apresentar-se-á mais dois casos da Suprema Corte brasileira. Observe-se,
incialmente, que ambos os casos discutem situações fáticas anteriores à Emenda
Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998, razão por que a redação do art.
195 da Constituição Federal que será analisada é anterior à alteração do texto
constitucional promovido pela referida emenda.
Pois bem, os terceiro e o quarto casos que serão objeto de análise pela
lente da coerência do autoprecedente dizem respeito à discussão envolvendo a
110
conceituação semântica do termo “faturamento” como equivalente ou não ao
sentido de “receita bruta” da comercialização como base de cálculo de
contribuições sociais, tributos esses com matriz normativa no art. 195 da
Constituição da República Federativa do Brasil, que para melhor entendimento do
leitor será abaixo transcrito:
[...] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro; [...]
No Recurso Extraordinário nº 390.840/MG201, julgado em 09/11/2005, o
Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, discutiu a constitucionalidade do
alargamento do conceito de “faturamento” que a Lei 9.718, de 27 de novembro de
1998, estendia até o conceito de “receita bruta”, manifestou-se no sentido de que
“faturamento” e “receita bruta da comercialização” eram expressões
semanticamente equivalentes. Por essa razão, a “receita bruta” da
comercialização seria base de cálculo para a exigência de contribuições sociais.
O resultado dessa interpretação considerou constitucional a referida lei
ordinária, pois ela havia aumentado a base de cálculo das contribuições sociais
para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do
Servidor Público (PIS/PASEP) e da Contribuição para o Financiamento da
Seguridade Social (COFINS), pois do contrário seria necessária sua instituição
por meio de lei complementar (art. 195, § 4º, que remete ao art. 154, I, ambos da
Carta Constitucional).
Uma representação das proposições e, consequentemente, da
racionalidade da decisão nesse ponto específico poderia ser representada pela
estrutura formal da figura nº 3 (abaixo).
201 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261694. Acesso em 03 out.2015.
111
A justificação interna da decisão considerou, como premissa de direito,
que o “faturamento é base de cálculo” das contribuições sociais ao PIS/PASEP e
à COFINS, premissa essa resultado da conclusão advinda da correlação racional
entre a proposição considerada válida de que uma lei ordinária pode dispor sobre
contribuição social que utilize como base de cálculo o faturamento - “Art. 195, I,
da CRFB/88” – e lei que dispõe essa contribuição – “Art. 3, § 1 da Lei 9.718/98”.
Figura nº 3 – Recurso Extraordinário nº 390.840/MG
Já como premissa fática, o órgão julgador utiliza na justificação interna
a premissa “’faturamento’ equivale a ‘receita da comercialização’”, que por sua
vez é uma conclusão que advém do raciocínio não-normativo na justificação
externa de duas proposições anteriores. Nestas, são correlacionados os conceitos
de “faturamento” e de “receita bruta da comercialização”, os quais, pelas razões
argumentativas apresentadas pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal,
foram considerados conceitos equivalentes.
Frise-se, novamente, que o presente trabalho não se atém ao conteúdo
dos argumentos, no sentido retórico, mas sim no resultado desses argumentos,
que acabam dando sustentáculo às premissas da estrutura formal do raciocínio
do caso.
Portanto, utilizando a decisão do órgão julgador no RE 390.840/MG,
que conclui pela constitucionalidade da utilização da “receita bruta” da
comercialização como base de cálculo das contribuições sociais PIS/PASEP e
COFINS.
112
Entretanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 363.852/MG202,
ocorrido em 03/02/2010, o mesmo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal,
ao decidir sobre a constitucionalidade de contribuição social incidente sobre a
“receita bruta da comercialização” da produção dos agricultores, prevista no artigo
25 da Lei 8.212 de 24 de julho de 1991, entendeu que o conceito de “receita bruta
da comercialização” não era equivalente a “faturamento”.
A estrutura do raciocínio da decisão desse quarto caso está
representada na figura nº 4 (abaixo).
Figura nº 4 – Recurso Extraordinário nº 363.852/MG
Como se pode perceber, tão somente comparando a estrutura disposta
na figura desse quarto caso à figura nº 3, a diferença entre as premissas
utilizadas na justificação interna dos julgamentos reside na qualificação jurídica da
“receita bruta da comercialização”, portanto, na premissa fática.
Outra observação que também é reparável de pronto diz respeito,
semelhantemente à comparação entre o primeiro e o segundo caso, ao fato de as
premissas da justificação externa ser exatamente as mesmas no terceiro e no
quarto caso. Entretanto, não se verifica nestes uma qualificação jurídica unívoca
quanto ao conceito de “receita bruta da comercialização”.
202 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610212. Acesso em: 03 out.2015
113
Depurando as proposições utilizadas no raciocínio, a premissa de
direito, que considera que o “faturamento é base de cálculo” para apuração da
contribuição social da Lei 8.212 advém do raciocínio normativo de duas
proposições anteriores, cujas premissas são validamente aceitas em razão da
previsão constitucional disposta no “art. 195, I, da CRFB/88”, que autoriza a
instituição de contribuição social sobre faturamento, e da previsão legal do “art. 25
da Lei 8.212/91”, que a estipula sobre a “receita da comercialização”.
Nos casos terceiro e quarto, portanto, as decisões proferidas pelo
Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal mostram-se incoerentes se
analisadas a partir das estruturas dos seus raciocínios. No caso terceiro, a
premissa fática utilizada na justificação interna da decisão considera a “receita
bruta da comercialização” equivalente a “faturamento”, o que, por conseguinte,
tornou a parte qualificada como contribuinte sujeito passivo da obrigação
tributária. Mas no caso representado pela figura nº 4, justamente o contrário: a
conclusão da justificação externa da premissa fática foi de que a “receita bruta da
comercialização” não se equiparava ao conceito de “faturamento”, razão por que
a parte contribuinte não foi considerada sujeito passivo de obrigação tributária
quanto a esse tributo em especial.
Essa constatação demonstra de forma clara e precisa a incoerência
que o sistema jurídico brasileiro possui na qualificação jurídica dos fatos que lhe
são levados a julgamento.
Ora, se a Suprema Corte, que de certo modo é vigiada pelas atuais
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), o que acaba proporcionando
maior cuidado pelos próprios integrantes da Corte Suprema quanto à exposição
pública de incoerências, e que também tem em seu sítio eletrônico bancos de
dados com acesso público a todas as decisões publicadas na imprensa oficial203,
o que permite realizar as comparações do raciocínio jurídico realizado acima, o
que se pode cogitar quanto às decisões dos juízes de primeiro grau, os quais são
203 www.stf.jus.br. Observe-se que os tribunais brasileiros em geral – superiores e de segunda
instância – possuem motores de busca satisfatórios, permitindo várias formas de filtros quanto à obtenção das decisões proferidas pelos seus órgãos.
114
somam um número de 14.518204 magistrados, cujas decisões não abastecem um
banco dados para poderem ser comparadas205?
As estruturas da racionalidade das decisões apresentadas acima não
esgotaram os argumentos utilizados pelos órgãos julgadores nas decisões
proferidas. Uma análise de todos os argumentos não comportaria as páginas de
uma dissertação como esta. Nesse sentido, assumindo a insignificância dessa
pesquisa perto da complexidade que envolve a argumentação das decisões
judiciais, o que se quis demonstrar com os exemplos supracitados é que uma
regra de racionalidade prática fundada no autoprecedente é capaz de aferir a
incoerência com que as premissas de direito – resultado dos raciocínios
normativos responsáveis pela individualização da norma aplicável ao caso – e as
premissas de fato – resultado dos raciocínios não-normativos responsáveis pela
qualificação jurídica dos fatos que sofrem a incidência das normas – são
utilizadas por mesmo órgão julgador em casos extremamente semelhantes.
Observe-se também que a comparação da estrutura da racionalidade
de todos os casos permitiu verificar que nos dois grupos as premissas utilizadas
na justificação externa eram idênticas, salvo nas previsões legais dos tipos penais
e das bases de cálculo dos tributos, premissas essas que não promoveram
nenhuma influência nas escolhas que tornaram as decisões incoerentes.
Desse modo, pode-se arriscar que uma regra de racionalidade prática
apoiada na técnica do autoprecedente verificaria as premissas adotadas pelo
mesmo julgador na justificação externa e, uma vez que as mesmas
demonstrassem identidade – exceto quanto à norma aplicável na premissa de
direito, se ela não se mostrar o centro da discussão – obrigaria que as premissas
utilizadas na justificação interna fossem semelhantes. Essa semelhança, por sua
vez, teria por referencial teórico os pressupostos da segurança jurídica: quanto à
204 BRASIL. Conselho Nacional da Justiça. Relatório Justiça em Números 2015. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em 03 out.2015. 205 A maioria dos sítios eletrônicos dos tribunais que estão vinculados os juízes singulares
permitem o acesso às decisões destes, mas dentro do ambiente (página da internet) específico de cada processo. O que ser afirma com a inexistência de “banco de dados” das suas decisões é que não existe um motor de busca para acessar decisões de primeiro grau, ainda que de um mesmo órgão, por pertinência temática, o que já ocorre em relação às decisões proferidas em segundo grau, nos tribunais.
115
premissa de direito, previsibilidade das consequências à mesma conduta; e
quanto à premissa fática, univocidade na qualificação jurídica.
Esse seria um ensaio da descrição da regra de racionalidade prática
particular do autoprecedente, capaz de estabelecer um padrão de aferição da
racionalidade jurídica das decisões de um mesmo órgão, decisões essas
consideradas como que no próprio microssistema desse julgador.
Por essa razão é que a proposta da presente dissertação,
diferentemente da utilização de lógica paraconsistente que propõe Cella ou da
utilização de lógica fuzzi e de redes neurais que propõe Serbena, não possui uma
pretensão prescritiva, no sentido de subsidiar o órgão julgador na prolação de
uma decisão judicial futura. A proposta aqui, mais contida por sinal, acredita na
possibilidade de utilização de uma lógica subjacente, dentre as diversas
atualmente existentes206, para fins de descrição da ratio decidendi de um órgão
julgador, e da possibilidade de comparação dessa ratio com as decisões
passadas proferidas por esse mesmo órgão.
As inovações legislativas trazidas pelo Novo Código de Processo Civil
tornam a exigência de coerência nas decisões judiciais requisito de legitimação da
própria função jurisdicional dos órgãos julgadores. Ao mesmo tempo, revitaliza a
importância do estudo do papel da lógica jurídica no direito, aplicado à
argumentação existente nas decisões judiciais.
Como dito nos capítulos anteriores, não se trata da utilização de uma
regra de racionalidade aplicável a toda e qualquer decisão. Como se mostrou em
Hart, Kelsen e Ross, e como também está implícito no juiz Hércules de Dworkin,
as decisões judiciais estão permeadas de escolhas morais e políticas. A
coerência das decisões judiciais a partir de uma técnica de autoprecedente
resgata uma ideia de racionalidade jurídica que exige observância da tradição
206 Segundo Susan Haack, uma classificação dos tipos de lógica formais existentes, dadas algumas reservas que a própria autora faz durante sua obra, a lógica tradicional (representada pelo silogismo aristotélico), a lógica clássica (dividida pelo cálculo sentencial bivalente e cálculo de predicados), as lógicas ampliadas (que se dividem em lógicas modais, as lógicas temporais, lógicas deônticas, lógicas epistêmicas, lógicas de preferência, lógicas imperativas e lógicas erotéricas ou interrogativas), as lógicas alternativas (divididas em lógica polivalente, lógica intuicionista, lógica quântica e lógica livre) e lógicas indutivas. HAACK, Susan, op. cit, p. 28-29.
116
decisional do próprio julgador, seja por uma questão de segurança jurídica, seja
por uma questão de aplicação isonômica do direito.
Por essa razão é que Cella afirma que a tese da resposta certa de
Dworkin poderia se aplicada de uma forma diferente daquela defendida pelo
autor. Não em um sentido universal, pelo juiz Hércules, mas sim entendida a partir
da própria história de julgamentos desse juiz.
Não seria por acaso que Dworkin, no posfácio do Levando os direitos a
sério, declara que a sua tese da resposta correta é própria para questões
particulares, razão por que admite que em alguns casos não haverá nenhuma
resposta correta em um sentido universal. Além disso, ao responder a crítica de
Munzer, declara que a resposta correta somente teria sucesso se considerada
dentro da justificação interna de uma decisão207, o que, por um lado, afasta sua
tese no sentido universal e que muitos autores ainda acreditam ser possível, mas
por outro, justifica a regra de razão prática particular do autoprecedente. Como
visto nas decisões das figuras nos 1 a 4 acima, foi na formação das premissas que
integram a justificação interna que residiu o movimento de incoerência, pois as
premissas existentes na justificação externa mostraram-se estáveis.
Diante dessa hipótese de utilização de uma lógica subjacente para
aferição da racionalidade das decisões de um mesmo órgão julgador a partir de
seu autoprecedente – e, portanto, seu próprio critério de racionalidade, sua
própria regra particular de racionalidade – a realização dessa aferição de forma
da forma manual, como realizada nos casos da Suprema Corte Brasileira acima,
não condizem com as necessidades de celeridade, presteza e eficiência exigida
pela prestação jurisdicional atualmente. Como referido linhas acima, os exemplos
anteriormente utilizados somente consideraram uma conclusão que justificou a
decisão final, sendo que em todos eles os órgãos julgadores utilizaram mais de
uma justificação interna para julgarem o caso.
Há tempos o Poder Judiciário encontra-se em verdadeiro colapso
quanto à prestação de seu serviço público típico: a jurisdição. A morosidade dos
207 DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 509.
117
processos, que se justifica na falta de capacidade estrutural e de pessoal para
dar, e a vazão às demandas, que exigem decisões judicias, foram os motivadores
da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na gestão do
trabalho judicial, o que deu origem ao Processo Eletrônico.208 Este já se encontra
totalmente integrado na realidade brasileira, como se verá na próxima seção.
Por esse motivo, considerando a atual inserção da sociedade na era
informacional, questão essa que já não comporta mais retrocesso, e considerando
que os sistemas eletrônicos computacionais são programações lógicas capazes
de assimilar informações e processá-las a partir de parâmetros previamente
estabelecidos em uma velocidade muito maior que o raciocínio humano, pode-se
lançar a hipótese de que a aferição do autoprecedente de um órgão seja realizada
por um programa computacional (software).
É nesse sentido que serão as últimas linhas dessa dissertação.
3.3 SISTEMA ELETRÔNICO DE AFERIÇÃO DO AUTOPRECEDENTE
Os conceitos de tempo e espaço foram relativizados de uma forma
surpreendente pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) após as
Grandes Guerras do século XX. A evolução das micro-engenharias eletrônicas e
as inovações na seara das telecomunicações tornaram o dia a dia do homem uma
experiência sem precedentes no que tange à sua relação com o lugar e o
tempo,209 não sendo esta uma experiência restrita aos países tecnologicamente
desenvolvidos, mas uma realidade percebida em todos os lugares globo.210
Essa realidade acabou transformando a própria morfologia social, em
que os modelos organizacionais constituem-se em redes de relacionamento e de
troca de informações na velocidade da luz, mesmo milhares de quilômetros
208 TENÓRIO, Caio T; MEZZAROBA, Orides. Polêmicas envolvendo o processo eletrônico. In:
ROVER, Aires J. Democracia Digital e Governo Eletrônico. Florianópolis: FUNJAB, 2013, p. 37.
209 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzen. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Título do original: Liquid Modernity, p. 132-149.
210 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O Futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010, p. 10.
118
distantes. Tal realidade, obviamente, repercutiu de forma direta nos processos
burocráticos211, cujo processo judicial também é exemplo.
Por outro lado, essa realidade informacional também exige uma
releitura dos direitos fundamentais que se suportam em liberdades negativas, pois
as novas tecnologias não só proporcionaram um acesso maior dos cidadãos às
informações, dentre elas o teor das decisões judiciais, mas também permitiram
uma atualização do controle panóptico sobre a sociedade pelo Estado, inclusive
restringindo e triando informações prejudiciais aos detentores do poder, mas
necessárias para transformações democráticas e controle do poder pela própria
sociedade.212
Assim, as novas tecnologias da informação proporcionam o acesso às
informações de uma forma quantitativamente relevante, mas isso não representa
uma informação qualificada. Ao mesmo tempo, a burocratização do Estado torna-
se digital, sendo que a grande maioria dos processos de relacionamento entre
Estado e cidadão passam para o ambiente virtual, o que do ponto de vista de
acesso à informação como direito fundamental é potencializado.
A repercussão dessa transformação de ambiente do Estado ocorreu
também dentro do Poder Judiciário, que foi drasticamente alterado pelas
Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), inclusive na realidade
brasileira.
Prova disso é a utilização de ferramentas informáticas para aferição de
estatísticas judiciárias pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão corregedor
e administrativo do Poder Judiciário brasileiro. Essa contagem e comparação dos
211 PIANA, Ricardo Sebastián. Democracia y tecnologia: la necesidad de politizar la Sociedad
de la Información. In: GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y tecnología: las actividades de los poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi, 2006, Capítulo V, p. 120.
212 FUEYO, Maria C. L. Libertades públicas y nuevas tecnologias. In: In: GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y tecnología: las actividades de los poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi, 2006, Capítulo XIII, p. 317-318.
119
dados preenche a necessidade de jurimetrização213, campo de pesquisa empírico
dentro do direito.
Atualmente, através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder
Judiciário Brasileiro emite relatórios anuais denominado Justiça em Números214.
Nesse, além de informações acerca da gestão orçamentária e da força efetiva de
trabalho, também são apresentados os números envolvendo os novos casos e o
número de decisões judiciais proferidas pelos juízes. E aqui, pois, o tema dessa
dissertação ganha relevância.
Segundo o relatório, o Poder Judiciário brasileiro conta com 70,8
milhões de processos em tramitação no ano de 2014, com uma perspectiva de
aumento em razão de os processos iniciados serem em maior número que os
encerrados. Mas o dado assombroso está no número de decisões proferidas: o
total chega a 27 milhões de sentenças e decisões terminativas no ano de 2014.215
Sendo, pois, um total de 16.927 magistrados216, pode-se inferir de uma forma
aproximada (não de forma certa, pois há decisões que são proferidas por órgãos
colegiados, nos casos dos tribunais) uma média de mais de 1.500 decisões
proferidas por um magistrado em um ano de trabalho.
Esse dado demonstra, à primeira vista, como uma aferição do
autoprecedente de cada julgador realizada in loco somente teria serventia para
fins acadêmicos, tal qual realizado nos casos utilizados na seção anterior desse
capítulo. Entretanto, se fosse possível a utilização de um sistema informático
eletrônico de aferição do autoprecedente, ou seja, um software, se fosse possível
o acesso a um banco de dados catalogado por assunto das decisões proferidas,
poder-se-ia admitir a utilização de tal tecnologia para aferir a coerência das
decisões de um mesmo julgador.
213 V. RICHARD, Mulder D; KESS, Noortwijk; COMBRINK-KUITERS, Lia. Jurimetrics Please! In:
PALIWALA, Abdul. A history of a legal informatics. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, 2010. p. 148-178.
214 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2015. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em 03 out.2015.
215 Ibid, p. 35. 216 Ibid, p. 32.
120
O presente trabalho, contudo, não tem o fôlego necessário para
demonstrar esse sistema de aferição de autoprecedente sendo aplicado. Aqui
somente cogita-se essa hipótese, tentando fornecer através da possibilidade de
utilização de uma lógica subjacente um parâmetro viável de utilização da regra de
razão prática particular do autoprecedente para aferição da racionalidade das
decisões.
Como visto nas linhas anteriores desse trabalho, o autoprecedente tem
como uma de suas justificativas a garantia da segurança jurídica e da igualdade
das partes que participam de um processo quanto às decisões proferidas em
casos análogos. Viu-se também que o atendimento desses postulados necessita,
no mínimo, de dois pressupostos: que exista univocidade na qualificação jurídica
dos fatos e que exista previsibilidade jurídicas quanto às consequências das
condutas.
Um dos méritos do positivismo foi a criação de institutos jurídicos que
permitem a simplificação de um conjunto de ideias jurídicas relacionados a certas
coisas da vida. Nesse sentido, um exemplo se encontra na obra Tû-Tû, de Alf
Ross217. Essa criação de institutos é organizada conforme categorias e essas, por
sua vez, são alocadas em sub-ramos específicos do direito, que depois integram
ramos maiores e assim por diante. Especialmente no que tange à realidade
brasileira, fundada em uma tradição jurídica de civil law ou romano-germânica, os
direitos estão divididos em classificações a partir dos ramos do direito ou dos
tribunais que possuem competência em razão da matéria.
A Resolução/CNJ nº 76, de 12 de maio de 2009, responsável pela
regulamentação do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário, dispõe no seu
artigo 3º que todos os “dados estatísticos dos Tribunais serão informados [...], por
meio de transmissão eletrônica”, especificamente “pelo sistema on-line, por meio
do sítio na internet”.218
217 ROSS, Alf. “Tû-Tû”. Traducción de Genaro R. Carrió. [s.l.]: Abeledo Perrot, 1951. 218 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 76. Brasília: 2009. Disponível em
http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_76_12052009_10102012220048.pdf. Acesso em 23 mar.2015.
121
O uso de classificações dos tipos de ações, que acabam refletindo o
direito nelas discutido, foi disciplinado pelo CNJ na Resolução nº 46, de 18 de
dezembro de 2007. A partir da consideração de que os dados estatísticos acerca
do desempenho administrativo dos tribunais brasileiros deveriam ser mais
precisos, foram estabelecidas “Tabelas Processuais Unificadas do Poder
Judiciário, objetivando a padronização e uniformização taxonômica e
terminológica das classes, assuntos e movimentações processuais” em todos os
órgãos do Poder Judiciário brasileiro (art. 1º). As classificações, por sua vez,
estão armazenadas no denominado Sistema de Gestão de Tabelas Processuais
Unificadas, sendo alimentada e gerida por um comitê responsável. Além disso, é
fornecido aos diversos órgãos um manual de utilização, em que se demonstra,
passo a passo, como classificar as ações. Estas, por sua vez, consistem em
classes e subclasses processuais envolvendo desde as espécies de ações até os
seus assuntos principais.219
Como se pode verificar, há um movimento dentro da gestão judicial
brasileira para qualificar juridicamente, de forma unívoca, os assuntos que são
objetos das ações. Contudo, o retorno das informações somente se dá no aspecto
quantitativo, nunca no âmbito qualitativo. Dessa forma, percebe-se que a
utilização da informática nos processos judiciais brasileiros serve para fins de
juremetrização quantitativa, subsidiando estratégias na seara das políticas
públicas através do retorno de informações do tipo classe de ação, espécie de
recurso e número de processos.
Entretanto, nenhuma dessas estratégias tem verificado de forma
qualitativa aquilo que é mais importante para todos aqueles que procuram o
Poder Judiciário, que é a própria razão de ser desse braço do Estado: a decisão
judicial.
A técnica do autoprecedente como técnica de aferição da racionalidade
jurídica vem dar um passo a mais na utilização das novas tecnologias de
informação. Utilizando a classificação de Serbena, a utilização do autoprecedente
219 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 46. Brasília: 2007. Disponível em
http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_46_18122007_29042014165333.pdf. Acesso em 23 mar.2015.
122
seria uma das categorias dentro do “terceiro grau de informatização, a informática
decisória”220, mas não no sentido da tomada das decisões, mas sim na aferição
de sua racionalidade a partir dos parâmetros estabelecidos no passado.
Aguilera Garcia, ao falar da inteligência artificial aplicado à decisão
judicial, afirma que:
[...] não devemos perder de vista que esta tecnologia possui um assombroso potencial para modificar, revisar e reorganizar práticas e processos sociais (entre os quais se pode encontrar os de caráter jurídico), que não dependem necessariamente de uma automatização dos mesmos, mas sim encontrar a melhor fórmula para combinar a contribuições do homem e das máquinas na execução de tarefas específicas. Se levarmos essa ideia à particular área da informática decisional [...], é claro que a substituição do julgador não é o destino que desejam chegar quem desenvolve essa classe de aplicações [...].221
Para tanto, acredita-se que a construção de um programa
computacional capaz de extrair as premissas da justificação externa e interna de
uma decisão judicial, estruturá-las na forma em que realizado nas figuras de nos 1
a 4 da seção anterior, e comparar essas estruturas formais com outras decisões
de casos análogos, tornaria possível realizar a verificação da racionalidade das
decisões a partir do critério do autoprecedente.
Para Colin Tapper, o grande problema na utilização de um programa
de computador estaria na real motivação ou nas escolhas morais e políticas que
preenchem uma decisão judicial. Em razão de seu estudo se dar em país de
tradição commom law, portanto, grandemente influenciado pelo realismo jurídico
estadunidense, o fato de os juízes se valerem de razões muitas vezes não
externadas, ou ainda justificarem uma decisão já tomada antes sequer do seu
220 SERBENA, Cesar, op. cit, p. 16. 221 “[...] debemos perder de vista que esta tecnologia posee un asombroso potencial para
modificar, replantear o reorganizar prácticas y procesos sociales (entre los cuales pueden encontrarse los de caráter jurídico), el cual no depende necesariamente de la automatización de los mismo, sino de hallar da mejor fórmula para combinar las aportaciones del hombre y de la máquina en la ejecución de tareas específicas. Se trasladarmos esta idea al área particular de la informática decisional [...], resulta claro que la sustitución del juzgador no es el destino al que desean arribar quienes desarrollan esta classe de aplicaciones [...]”. AGUILERA GARCIA, Edgar Ramón. Inteligencia artificial aplicada al derecho. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p. 04.
123
desenvolvimento argumentativo, seria um problema para a utilização de sistemas
computacionais para uma “prediction of judicial decision”.222
Entretanto, essa preocupação não existiria na utilização da técnica do
autoprecedente, pois as razões utilizadas pelo programa computacional, ou seja,
as bases da regra de aferição da racionalidade pela técnica do autoprecedente
das decisões tomaria por parâmetro as próprias razões (raciocínios normativos e
não-normativos) utilizados pelo julgador para chegar a decisão de um caso
análogo, anterior, ou de diversos casos análogos anteriores.
Assim, depois que fixadas as premissas, decorrentes da justificação
externa, onde são utilizados raciocínios quase-lógicos (por analogia),
posicionamentos e valorações morais, entendimentos políticos, ou anda
argumentos retóricos, a dedução das premissas à conclusão pode ser controlada
racionalmente por meio de uma lógica subjacente.
Nesse sentido, o papel humano restringir-se-ia em alimentar as
estruturas do raciocínio do programa computacional para que ele, analisando as
decisões sobre a mesma matéria e em casos análogos, demonstrasse se esse
órgão julgador observou uma moldura de racionalidade criada por si mesmo.
Apesar de o presente trabalho não adentrar na seara da teoria da
decisão em um sentido de defender a utilização de programas computacionais
para a realização de decisões judiciais, crê-se que a existência de um parâmetro
de racionalidade jurídica na argumentação traz benefício à teoria do direito,
especialmente às garantias da segurança jurídica e à igualdade de tratamento
dos indivíduos que utilizam o Estado para solucionar seus litígios, corolários
esses característicos e basilares de um modelo de organização social e política
democrática.
Do contrário, o Estado de direito, ideologicamente construído como
limitação de poder pelas normas jurídicas torna-se, paradoxalmente, um
mecanismo de revestimento dos detentores do poder e da regra de direito de uma
222 TAPPER, Colin. Computers and the Law. London: Weidenfeld and Nicolson, 1973, p. 233-
235.
124
força privativa e simbólica, que na visão de Chevalier, trata-se da reativação da
mítica do direito outorgado pelos deuses, em que o exercício da função
jurisdicional ganha ares de "passaporte do sagrado"223, hipótese inconcebível em
pleno século XXI.
223 CHAVALIER, Jacques, op. cit, p. 52.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A decisão judicial também pode ser vista como a busca pelo
conhecimento da verdade. A verdade quanto aos fatos alegados pelas partes.
Também, a verdade sobre o direito a ser aplicado. Enquanto as ciências naturais
objetivam conhecer a verdade sobre os fenômenos existentes no mundo natural,
e a teoria do direito procura compreender a origem e o ideal conceito deste, a
decisão judicial, ao aplicar o direito, pretende estar correta quanto à percepção
dos fatos narrados pelas partes e ao direito que está sendo aplicado.
Entretanto, depois de diversas teorizações sobre a natureza do direito,
sua origem e sua razão de ser, a teoria do direito não foi capaz de apresentar de
forma unânime entre os seus teóricos um padrão de racionalidade para as
decisões que aplicam o direito vigente, entendido este como o sistema de normas
positivadas em um determinado território.
A busca por uma resposta correta já foi objeto da tese de Dworkin. Sua
proposta, entretanto, não tinha como objetivo prescrever como deveria ser
verificada a correção de uma decisão. Na verdade, a tese da única resposta certa
se tratava de antítese ao positivismo de Hart, que juntamente com Ross, Kelsen e
Raz, defendia que em dadas circunstâncias cabia ao julgador, a partir de suas
convicções políticas e morais, tomar uma decisão que a sociedade deveria por fim
conviver.
Ocorre que esse positivismo voluntarista, conforme qualificação de
Dworkin, na realidade brasileira confundiu-se com os ditames da Escola
Exegética. Esse equívoco considerou o positivismo um dos responsáveis pelas
barbáries praticadas pelo Estado nacional-socialista alemão em meados do
século XX.
A justificativa que o positivismo hartiano dava à possibilidade de o
julgador decidir de forma quase que arbitrária estaria na incompletude do sistema
normativo, em especial nas normas de textura aberta. A tese da única decisão
certa de Dworkin também admite a existência da falta de previsibilidade jurídica
de certas situações fáticas. Entretanto, ao contrário das motivações ideológicas e
126
políticas dos positivistas hartianos, Dworkin defende a utilização nesses vácuos
normativos de argumentos de princípio, os quais são fundados, por sua vez, em
liberdades liberais negativas, ou noutra nomenclatura, direitos individuais.
Desse modo, verificou-se que, seja na resposta certa de Dworkin, seja
na escolha do juiz positivista, há discricionariedade na qualificação jurídica dos
fatos e/ou na individualização da norma aplicável ao caso.
A teoria da argumentação jurídica também não preenche o âmbito de
discricionariedade da decisão judicial. Apesar de as teorias argumentativistas de
Alexy e de Atienza apresentarem estruturas formais de raciocínio capazes de
fornecer certo engessamento, ambos concordam que a necessidade de
argumentação existe justamente para preencher a lacuna normativa ou estender
o sentido que o caso prático exige. E sendo assim, a justificação externa do
raciocínio jurídico da decisão será sempre preenchido por uma escolha pessoal e
subjetiva de quem julga, ainda que sua argumentação invoque os axiomas mais
altruístas possíveis.
Tudo isso seria justamente a conclusão do realismo norte-americano.
Esse, apesar de idealizado em outra cultura jurídica, mostra uma percepção
chocante da realidade brasileira, em que órgãos julgadores, mesmo em uma
tradição romano-germânica, utilizando princípios equivocadamente e
incorporados por mutação conceitual, afastam a aplicação do direito positivado
sob o pretexto de injustiça.
Essa realidade torna aqueles que buscam a jurisdição para resolver
seus conflitos reféns da discricionariedade judicial das decisões, tema que já foi
largamente debatido durante a história do direito moderno. Tal discricionariedade,
entendida nessa pesquisa como a possibilidade de um órgão julgador escolher a
qualificação de um fato e a regra aplicável ao mesmo, justifica uma
reconsideração quanto à utilização da lógica formal na aferição da racionalidade
das decisões judiciais.
A lógica formal tem como pretensão validar um discurso, tanto pelo
modelo analítico como pelo dialético que, respectivamente, pretendem uma
127
correção de verdade e de probabilidade no raciocínio. Por o discurso jurídico ser
linguístico, sua estruturação depende da identificação dos argumentos e pré-
conclusões utilizados para a decisão final. Essa estruturação, a partir da lógica
dedutiva clássica de matriz aristotélica, dá-se pela proposição de premissas que
justificam racionalmente uma conclusão. O discurso jurídico, muito mais próximo
de um formato dialético, ainda que não permita a afirmação de uma verdade
inquestionável, se estruturado de forma racional, permite entender a racionalidade
utilizada por um julgador.
Do ponto de vista analítico, a decisão judicial é uma conclusão dedutiva
tomada a partir de duas premissas, uma de direito e uma fática. Considera-se o
raciocínio entre a proposição da premissa de direto e a proposição da premissa
fática a justificação interna do raciocínio. A conclusão da justificação interna é a
decisão judicial. Entretanto, as premissas de direito e fática utilizadas na
justificação interna do raciocínio da decisão decorrem de raciocínios anteriores,
os quais ocorrem no âmbito da chamada justificação externa. A divergência entre
os teóricos do direito, pois, quase sempre reside nas conclusões da justificação
externa das proposições que serão utilizadas na justificação interna das decisões.
A formalização dos raciocínios normativos, que terá como resultado a
premissa de direito, e a dos raciocínios não-normativos, que resultará na
premissa fática, permite a verificação dos argumentos e proposições
considerados num discurso jurídico racional. Esses raciocínios que compõem a
justificação externa de uma decisão, e que determinam as premissas de direito e
fática da justificação interna da decisão judicial, são quase sempre coerentes em
relação às premissas escolhidas. Uma pretensão de correção esbarra na
característica dialética desse tipo de raciocínio.
Sendo assim, em razão dos problemas de ordem filosófica até então
insolúveis pela teoria do direito, a questão central envolvendo a utilização da
lógica formal na verificação da racionalidade das decisões judicias está na
impossibilidade de se ter uma previsibilidade das consequências jurídicas para
uma premissa de direito universal, e um entendimento unívoco sobre a
qualificação jurídica dos fatos, portanto, da premissa fática também universal. O
128
resultado disso é que a comunidade científico-jurídica não possui um padrão de
racionalidade para justificar de forma universal a correção de uma decisão
judicial.
Apesar de os precedentes serem considerados como ferramentas de
aferição da racionalidade jurídica das decisões, em razão da rotinização de suas
decisões sobre determinada matéria e contexto fático, as mudanças sociais e
culturais não estancam a necessidade de novas soluções. Apesar de
considerados guias dessa lógica jurídica, os precedentes por si só não são
capazes de estruturar uma regra formal de racionalidade das decisões. Como se
demonstrou nos casos analisados, um mesmo órgão julgador pode possuir uma
previsibilidade de consequências diferentes para uma mesma regra jurídica, ou
ainda uma qualificação jurídica diferente para fatos análogos.
Tal realidade acaba afrontando a segurança jurídica e a igualdade que
se espera de um Estado democrático de direito. Por essa razão, utilizando uma
técnica de precedente horizontal denominada autoprecedente, pode-se considerar
como critério de racionalidade das decisões de um mesmo órgão, e somente para
este, as premissas utilizadas pelo mesmo nos raciocínios normativos e não-
normativos que justificaram a decisão proferida. Assim, a estruturação desses
raciocínios torna-se uma regra formal de razão prática para a aferição da
racionalidade das decisões proferidas pelo próprio órgão julgador. E a existência
dessa regra de razão prática permite o exercício de uma pretensão de correção
de suas decisões.
Isso não significa, por outro lado, que o julgador ficaria preso às suas
ratio decidendi anteriores. Aqui, pois, a argumentação mostra sua importância,
desde que a alteração do entendimento e o afastamento do autoprecedente seja
racionalmente justificado, seja em razão da mudança do entendimento, seja em
razão da peculiaridade do caso concreto, seja ainda em decorrência da mudança
do cenário social.
A inovação legislativa promovida pelo Novo Código de Processo Civil
brasileiro dispõe sobre a necessidade de as decisões judiciais serem coerentes e
racionalmente justificadas. Nesse sentido, pode-se utilizar a regra de razão
129
prática do autoprecedente para aferir essa coerência nas decisões de um mesmo
órgão julgador, o que acaba se tornado um critério de racionalidade para ele
particularmente considerado.
Nesse ínterim, em razão de os sistemas de gestão dos documentos
nos tribunais brasileiros serem todos eletrônicos, com grande parte adotando o
Processo Eletrônico como meio de solucionar as disputas judiciais, a utilização de
um sistema eletrônico computacional capaz de aferir a racionalidade das decisões
proferidas por um mesmo órgão, a partir da regra do autoprecedente, permitiria
garantir o respeito dos princípios da segurança jurídica e da igualdade entre as
partes que possuem casos análogos em disputa.
Se considerado o terceiro grau da informatização dos procedimentos
judiciais, a regra de razão prática do autoprecedente não tem uma pretensão
prescritiva, no sentido de subsidiar uma decisão judicial futura, mas somente
descritiva. Isto é, sua função seria olhar o passado das decisões de um órgão,
permitindo encontrar a regra de racionalidade aplicável a esse órgão, ou ainda,
delineada a estrutura de racionalidade já utilizada, verificar se ela se repete nos
casos análogos julgados pelo mesmo órgão.
Veja-se que aqui não há importância quanto à consideração do
raciocínio como analítico ou dialético, ou se os raciocínios normativos e não-
normativos do julgador são efetivamente racionais. A regra de razão prática do
autoprecedente considera como racionais os raciocínios já utilizados e justificados
por determinado órgão como sua racionalidade particular, e a partir dessa
permite-se exercer uma pretensão de correção sobre as suas próprias decisões,
enaltecendo a segurança jurídica e a igualdade de tratamento das partes,
garantias essas próprias de um juízo imparcial.
Portanto, a utilização dessa regra particular de racionalidade nas
decisões judiciais constrange a discricionariedade dos órgãos julgadores, por
vezes praticada para o atendimento de “favores”. A consequência dessa forma
particular de aferição de racionalidade dos julgamentos exalta os valores
democráticos mais fundamentais, somente possíveis de serem exercidos em um
130
ambiente em que a separação das funções ainda se apresenta como sustentáculo
importante do Estado de direito.
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