da teoria critica de adorno ao cinema critico de kluge
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ROBSON LOUREIRO
Da Teoria Crtica de Adorno ao Cinema Crtico de Kluge: educao, histria e esttica
Florianpolis, 11 de agosto, 2006
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Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Cincias da Educao
Programa de Ps-Graduao em Educao
ROBSON LOUREIRO
Da Teoria Crtica de Adorno ao Cinema Crtico de Kluge:
educao, histria e esttica
Orientadora: Profa. Dra. Maria Clia Marcondes de Moraes
TESE DE DOUTORADO
rea de concentrao: Educao, Histria e Poltica
Florianpolis, 11 de agosto de 2006
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BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Clia Marcondes de Moraes (Orientadora UFSC)
________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Gaspar Mller (Co-orientador UFSC)
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Regina Ramalho e Oliveira (Examinadora UDESC)
_________________________________________________
Prof. Dr. Mauro Eduardo Pommer (Examinador UFSC)
_____________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Duarte (Examinador UFMG)
_____________________________________________ Prof. Dr. Antnio lvaro Soares Zuin (Examinador UFSCar)
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Aos meus pais amados, Lau e Ismail. No fundo, sabem que sonhar vale a pena!
A minha companheira,
Sandra Soares Della Fonte ... de amor e vida!
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AGRADECIMENTOS
Professora Dra. Maria Clia M. de Moraes, pelo acolhimento da pesquisa e pela generosidade na orientao;
Ao Professor co-orientador Dr. Ricardo Gaspar Mller, por ensinar a prestar mais ateno nos detalhes e suas conexes com o todo;
Ao Professor John Morgan, da University of Nottingham, pela orientao exemplar na fase do doutorado sanduche na Inglaterra;
s dedicadas amigas Patrcia Torriglia e Lilane, combatentes preciosas na luta contra qualquer tipo de preconceito e discriminao;
Aos Professores Dra. Sandra Regina Ramalho e Oliveira, Dr. Mauro Pommer e Dr. Antnio lvaro Soares Zuin, por aceitarem participar da banca; Aos Soares Della Fonte Ana Paula, Cludia e Marilson; s minhas amadas sobrinhas Amanda e Las; a Mria e ao Gilmar, pela torcida calorosa e sincera; e ao meu afilhado Pedro Henrique, que enche nossos coraes de alegria.
Ao Josemir Loureiro, primo-companheiro de todas as horas;
s minhas lindas irms Kika e Mel; ao msico e artista plstico Thiago Loureiro, sobrinho e afilhado querido, e combatente tia Zni, pela compreenso da ausncia;
Ao carinho especial do casal exemplar, Penha e Nilson Della Fonte. Amigos que nos ltimos quinze anos tm me acolhido de forma fraterna e que me fazem sentir um filho amado; A Vanessa e Marcos Andreotti que, em Nottingham, nos receberam como parte de sua linda famlia. Os ingleses tm muito a aprender com vocs!
A Csar de Mari e Marlene Grade, dois exemplares de pacincia histrica e militncia auto-reflexiva; companheiros-amigos na jornada acadmica e da vida;
A Astrid vila, Bruna e Herrmann Mller, por compartilharem sonhos duradouros e pela amizade fraterna;
A Sanete e Valdemar Sguissardi, pelo carinho afetuoso com que nos acolheram em Floripa e fizeram de seu lar a nossa casa. Com Valdemar, grande professor e amigo, dentre os vrios aprendizados, descobrimos que apreciar um bom vinho uma das principais senhas de entrada para a admisso no mbito da tradio filosfica; Ao Professor Dr. Rodrigo Duarte, constelao descoberta nas Minas Gerais! Amigo e incentivador de meu investimento filosfico. Obrigado por ter-me apresentado ao Alexander Kluge, um presente que culminou nesta tese. Obrigado pela amizade!
A Sandra Soares Della Fonte. Potncia filosfica! Exemplar de ser humano! Companheira de amor e vida! Outros projetos esto por vir e experiment-los contigo ser uma ddiva ainda maior. Obrigado por tudo, pela generosidade, pelos ensinamentos, pela utopia incansvel, pelo carinho e pelo amor.
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A formao dos cinco sentidos um trabalho de toda a histria do mundo at aqui. O sentido constrangido carncia prtica rude tambm te m apenas um sentido tacanho. Para o homem fa minto no existe a forma humana da comida, mas somente a sua existncia abstrata como alimento; poderia ela justamente existir muito bem na forma mais rudimentar, e no h como dizer em que esta atividade de se alimentar se distingue da atividade animal de alimentar-se. O homem carente, cheio de preocupaes, no tem nenhum sentido para o mais belo espetculo [...].
Karl MARX, 2004, p. 110.
[...] Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que no cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vem, Cegos que, vendo, no vem.
Jos SARAMAGO
O cinema uma fbula de antigamente (ontem passou a
ser antigamente) contada por arquelogos de sonho.
Carlos Drummond de ANDRADE
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RESUMO
Essa tese diz respeito ao dilogo entre educao e cinema. O objeto de estudo so os filmes do cineasta alemo Alexander Kluge, um dos principais representantes do Novo Cinema Alemo. O problema da pesquisa relaciona-se s concepes de esttica, de histria e educao presentes em suas obras flmicas e sua aproximao com a filosofia de Adorno. A construo de novos parmetros estticos e educacionais propostos no cinema de Kluge ocorre no contexto das lutas do Novo Cinema Alemo de elaborar a histria do pas e, ao mesmo tempo, trilhar caminhos estticos alternativos ao modelo flmico hollywoodiano. Na qualificao dessa proposta, reside uma das convergncias entre Kluge e Adorno. Kluge produziu um cinema repleto de elementos estticos tpicos do modernismo nas artes. O principal eixo de ligao entre o seu trabalho de cineasta e a filosofia de Adorno encontra-se nos princpios fundantes da arte moderna radical. Dentre as vrias caractersticas da arte moderna radical, privilegiei, na anlise dos filmes, o aspecto enigmtico. Nos filmes de Kluge, os enigmas esto, em especial, na sua montagem e nos cortes. O que articula os cortes fica oculto, mas a condio de comunicabilidade do que se exibe na cena. Ao perscrutar esse oculto, o que se encontra a prpria indagao: os enigmas so um defrontar com um universo de indagaes e reflexes. Aqui tambm se vislumbra a educao dos sentidos: de um lado, como exigncia para o reconhecimento do carter enigmtico da obra de arte e, de outro, como resultado da experincia esttica propiciada. A modernidade radical dos filmes de Kluge ameaa a prpria linguagem do cinema: no seu cinema impuro ou no seu fazer antiflmico, Kluge faz irromper, nas fissuras do cinema como mercadoria, a sua dimenso artstica. Resguardada a distino essencial entre o ensaio artstico e o filosfico, h, entre Adorno e Kluge, a busca comum pelo exerccio da liberdade, da experimentao, nos campos especficos em que atuam. O filme ensastico de Kluge tangencia a concepo de ensaio filosfico de Adorno quando privilegia a forma de apresentao, ela mesma uma crtica por excelncia. Um outro aspecto da teoria esttica de Adorno, presente no labor flmico de Kluge refere-se atitude tpica da arte moderna de negar a tradio por incorporao. A elaborao do passado consiste nessa dinmica. O impulso de elaborao do passado que o cinema de Kluge suscita o movimento que a sua esttica flmica experencia diante da tradio. Do dilogo entre os filmes de Kluge analisados e a filosofia de Adorno, extraem-se alguns elementos e desafios para se pensar a educao esttica a partir da radicalidade da arte moderna. A escola no pode prescindir de tematizar a esttica sob o risco de esvaziar as premissas de uma formao omnilateral. Contudo, o prprio status dessa tematizao precisa ser considerado, pois, muitas vezes, refora-se a desqualificao da experincia esttica ao remet-la para o mbito da intuio pura e irracional, ao reduzi-la a um componente curricular ou ao prolongar a semiformao em geral. Situar a educao dos sentidos dentro de um projeto educacional crtico e emancipatrio consiste em colocar em xeque o que delimitado pelos esquemas semiformativos da indstria cultural. Defender uma produo flmica a contrapelo da indstria hegemnica estadunidense uma tarefa que no pode deixar de conceber o cinema no contexto geral das polticas pblicas para a cultura e de envolver a avaliao da filmografia nacional no sentido de elaborar o seu prprio passado.
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ABSTRACT
This thesis concerns the relationship between cinema and education. The research subject is the filmic works of Alexander Kluge, one of the main representative the German film-makers of the New German Cinema. The main focus are the conceptions of aesthetics, history and education implicit in Kluges cinema and their relationship with Adornos philosophy. The building of new aesthetical and educational parameters proposed by Kluges films occurs in the context of New German Cinema struggle of working through the Germany past and, at the same time, put forward alternative aesthetical patterns to Hollywood. It is in this proposal that may be found the convergences between Kluge and Adorno dwells. Kluge has created a cinema full of aesthetical elements typical of the Modernism: in this sense, the basic principles of the modern radical art are the bond between his works as a film-maker and Adornos philosophy. In a framework of radical modern art features, the enigmatical aspect was privileged for film analysis. In Kluges films, enigmas are specialy found in montage and film editing. The links among cuts remain hidden, although they are the condition of communicability of what the scenes show up. When what remains hidden is scrutinized what it is found is the inquiry itself: enigmas themselves face a universe of reflection and questions. Here lies the education of senses: on the one hand, as a requirement to recognize the enigmatical feature of the work of art and, on the other, as a result of the aesthetical experience. The radical modernity of Kluges films threatens the proper cinematic language itself: due to his impure cinema and antifilmic practice, through the fissures of cinema as a commodity, arise films artistic dimension. If the essential distinction between artistic and philosophical essays is preserved, there is, between Adorno and Kluge, a common search for experimentation and the exercise of freedom. Kluges essayistic cinema is related to Adornos philosophical work, as far as it privileges the form of presentation, a critical one par excellence. Another aspect of Adornos aesthetical theory that can be perceived in Kluges films involves the typical attitude of modern art in denying the tradition by incorporating it. Working through the past consists in this dynamic. In this sense, Kluges impulse of elaborating the past is a movement towards facing the tradition. In the perspective of radical modern art, the dialog between Kluges films and Adornos philosophy permits to extract some elements and challenges to think an aesthetical education. The school is not supposed to renounce the debate of aesthetical issues at the risk of empting the premises of an omnilateral education. Yet, when this debate leads to a sphere of pure and irrational intuition it reinforces the disqualification of the aesthetical experience which is reduced to a mere curricular component or in general maintains semiformation. If one situates the education of sense in a critical and emancipatory educational project it means to put into question what is delimitated by the semiformative schemes of the culture industry. Like Kluge, to defend a filmic production against the grain of the USA industry mainstream, is a task that must conceive cinema in the general context of culture public policies and supposes the evaluation of the national films in the framework of its capacity of working through its own past.
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SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 10
PARTE I ELEMENTOS TERICOS DA FILOSOFIA DE ADORNO ....................... 19 CAPTULO I SOBRE O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO ................................23 1.1 Esclarecimento e emancipao a partir de Kant ...................................................... 23 1.2 Esclarecimento e mito: o trabalho como domnio da natureza .............................. 26
1.3 Esclarecimento e conhecimento cientfico na sociedade capitalista .................... 29
1.4 Esclarecimento e trabalho: progresso e regresso dos sentidos ......................... 35
CAPTULO II INDSTRIA CULTURAL, SEMIFORMAO E A FILOSOFIA COMO PENSAMENTO QUE RESISTE .......................................................................... 41 2.1 A indstria cultural ......................................................................................................... 42
2.2 Esquematismo como educao esttica a partir do mercado ............................... 49
2.3 Semiformao e a averso teoria ........................................................................... 54
2.4 Filosofia: o pensamento que resiste .......................................................................... 59
CAPTULO III ELABORAO DO PASSADO E EDUCAO EM ADORNO .... 66 3.1 Histria e elaborao do passado .............................................................................. 66
3.2 Educao e elaborao do passado .......................................................................... 79
CAPTULO IV ARTE MODERNA RADICAL: ELEMENTOS DE ESTTICA EM ADORNO .............................................................................................................................. 93 4.1 A arte moderna radical ................................................................................................. 95
4.2 Esttica e filosofia: a densidade da experincia artstica .................................... 102
4.3 Alguns contrapontos da esttica adorniana ........................................................... 109 CAPTULO V ADORNO E O CINEMA: A CONVERSA CONTINUA ................... 115 5.1 Otimismo de Benjamin, pessimismo de Adorno? ................................................. 116
5.2 Inflexo no pensamento de Adorno nos anos de 1960 ..................................... 123
5.3 Algumas hipteses sobre a inflexo adorniana em relao ao cinema ......... 128 5.4 Adorno e a msica para o cinema ........................................................................... 134
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PARTE II O NOVO CINEMA ALEMO NA HISTRIA DO CINEMA ................. 140 CAPTULO I A CONTESTAO A HOLLYWOOD .................................................141 1.1 Hollywood em cena .................................................................................................... 142
1.2 Hollywood: a esttica que ofusca o real ................................................................. 147
1.3 Cinemas de resistncia: a reao a partir da Europa Ocidental ........................ 150
1.3.1 Neo-realismo: o despertar das resistncias ....................................................... 151
1.3.2 A Nouvelle Vague ................................................................................................... 153 1.3.3 O Free Cinema ingls ............................................................................................ 155
1.3.4 O Novo Cinema alemo ......................................................................................... 157
CAPTULO II ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA NA TRADIO DA TEORIA CRTICA ............................................................................................................................. 171 2.1 Alexander Kluge: breve detour biogrfico .............................................................. 172
2.2 Influncias tericas no cinema de Kluge ................................................................ 176
2.3 Kluge e cinema: elementos para uma teoria crtica da esttica do filme .......... 179
2.4 Kluge e televiso: estratgia poltica ou abandono do cinema? ........................ 188
PARTE III HISTRIA, EDUCAO E ESTTICA NOS FILMES DE ALEXANDER KLUGE ............................................................................................................................... 193 CAPTULO I BRUTALIDADE NA HISTRIA: ARQUITETURA E EDUCAO EM CENA .................................................................................................................................. 200 1.1 Brutalidade em pedra: a eternidade do ontem ....................................................... 200 1.2 Professor em transformao .................................................................................... 214
CAPTULO II POLTICA E EDUCAO: O OUTONO DE UMA PATRIOTA .... 228 2.1 Alemanha no outono .................................................................................................. 228 2.2 A Patriota ..................................................................................................................... 243
PALAVRAS FINAIS ......................................................................................................... 256 REFERNCIAS ................................................................................................................. 270 ANEXOS ............................................................................................................................ 287 ANEXO A FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: LONGAS-METRAGENS .......... 288 ANEXO B FILMOGRAFIA DE ALEXANDER KLUGE: CURTAS-METRAGENS .......... 291 ANEXO C FILMOGRA FIA DE ALEXA NDER KLUGE: OUTROS TRABALHOS .......... 294
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INTRODUO
Esta tese explora as possveis conexes entre o cinema e a educao. Ao
considerar que a educao uma prtica social ampla que no se restringe s
instituies formais de ensino, mas est presente em vrias esferas sociais,
possvel vislumbrar que a produo flmica se insere no processo de formao da
individualidade nas sociedades contemporneas.
A instituio cinema e todo aparato da cultura industrializada que gira em seu
entorno representa um poderoso instrumento de hegemonia cultural. Almeida (1994,
p. 8) observa que, atualmente, h [...] uma grande maioria de pessoas cuja
inteligncia foi e est sendo educada por imagens e sons, pela quantidade e
qualidade de cinema e televiso a que assistem e no mais pelo texto escrito. Esse
autor no exclui a importncia do texto escrito no processo de formao,
principalmente no domnio da cultura letrada, no entanto entende que a
inteligibilidade do mundo tem sido formada a partir das imagens e sons das
produes de cinema e da televiso. Dessa forma,
Ver f ilmes, analis-los, a vontade de entender a nossa sociedade massif icada, praticamente analfabeta e que no tem uma memria da escrita. Uma sociedade que se educa por imagens e sons, principalmente da televiso, quase uma populao inteira [...] que no tem contato com a escrita, a reflexo com a escrita. E tambm a vontade de entender o mundo pela produo artstica do cinema (ALMEIDA, 1994, p. 12).
De forma geral, os filmes no apenas traduzem determinados gostos
artsticos, mas tambm podem ser concebidos como fontes histricas (cf. LANDY,
2001; NVOA, 1995; FERRO, 1992). Produto tpico da modernidade ocidental (cf.
CHARNEY & SCHWARTZ, 2001; HANSEN, 2001), o cinema um amlgama de
arte e cincia (ROSENFELD, 2002; BERNARDET, 2000) que expressa um momento
histrico formador de uma nova experincia esttica. Seu reconhecimento como
entretenimento ocorreu com o aperfeioamento, em 1892, do Cinetoscpio
inventado por Thomas Edison e William Kennedy Laurie Drickson. Porm, foram os
irmos Auguste e Louis Lumire, em Paris, 1895, os inventores que, a partir do
Cinetoscpio de Edison e Drickson, idealizaram e criaram o Cinematgrafo. Depois,
com o mgico Georges Mlis, esta mquina foi transformada em um aparelho de
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reproduzir imagens em aparente movimento na grande mquina de produzir iluses,
desejos, fantasias e necessidades que o cinema (cf. NAZRIO, 1999).
No sculo XX, o avano tecnolgico permitiu que, de uma diverso
exclusivamente pblica, os filmes passassem a ocupar a sua forma domstico-
privada, principalmente por meio da televiso (PFROMM NETTO, 1998). No incio do
XXI, com o avano da Internet, novas formas de exibio e acesso privado de filmes
tm se tornado possveis. Por sua vez, torna-se bastante plausvel a possibilidade de
a televiso configurar-se como suporte-sntese das mltiplas possibilidades de
conexo com outros aparatos virtuais e comunicacionais.
Por serem parte de uma expresso social e histrica, os filmes tambm
participam na formao de valores ticos e juzos de gosto e, nesse sentido, revelam
uma faceta educacional. Na sociedade contempornea, eles concretizam prticas
educativas medida que se ocupam da transmisso e assimilao de sensibilidades
e conhecimentos.
Em recentes estudos (LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE,
2003), observei que a relao entre educao e cinema j desponta, mesmo que de
forma embrionria, na pesquisa educacional brasileira. Constata-se que a tendncia
geral de estudo vincula-se anlise de filmes. Isso indica que a rea est atenta
para o fato de que a produo flmica no se reduz a uma nova tecnologia,
supostamente neutra a ser manuseada pelas educadoras e educadores no trabalho
pedaggico. Mais do que um mero suporte tcnico-instrumental para se atingir
objetivos pedaggicos, os filmes so uma fonte de formao humana, pois esto
repletos de crenas, valores, comportamentos ticos e estticos constitutivos da vida
social.
Tal perspectiva de compreenso da relao entre educao e cinema pode se
inserir no horizonte da leitura dos mass media, tal como proposto por Lebel (1975),
para quem aprender a ler esses meios audiovisuais significa aprender a ler a cultura
contempornea, o que implica, a longo prazo, aprender a ler as relaes sociais.
Entretanto, constato que outras frentes de pesquisa sobre essa temtica podem ser
abertas. A prpria anlise dos filmes pode ser ampliada ao assumir o objetivo de no
somente apontar os valores sociais presentes em um enredo, mas tambm examinar
a prpria forma artstica em que se narra um filme. Trata-se, portanto, de assumir as
reflexes no campo da educao esttica como possibilidade de indagar sobre os
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juzos de gosto em relao a uma obra artstica e avaliar os juzos de valor sobre as
preferncias socialmente manifestadas nos filmes.
Outro elemento que chama a ateno o fato de que ainda so tmidas as
investigaes que buscam a contribuio da tradio marxista para a apreciao da
relao entre educao e cinema. Pode-se deduzir da que essa tradio pouco tem
a contribuir para essa discusso, o que seria, no mnimo, um equvoco. Pensar que
autores marxistas s se interessaram pela economia, negligenciando as
manifestaes culturais, significa desconhecer a prpria constituio do marxismo
ocidental no sculo XX (cf. ANDERSON, 1999). Basta lembrar que reflexes sobre o
cinema podem ser encontradas em autores como Kracauer (2004), Benjamin (1994),
Adorno e Eisler (1994), Adorno (1986a), Adorno e Horkheimer (1985), Debord
(1978), Lukcs (1967) entre outros.
Tambm possvel afirmar que, nos poucos estudos sobre educao e
cinema vinculados tradio marxista, o destaque tem sido para a Escola de
Frankfurt. Porm, essa presena acompanhada de uma polarizao,
descomprometida com a histria, entre as posies que indicam um suposto
pessimismo de Adorno e um otimismo de Benjamin em relao ao cinema. Tais
crticas focam e pinam trechos de suas obras, sem remet-los ao contexto de suas
produes. Com isso, no se quer advogar que, no seio da Escola de Frankfurt, as
proposies sobre cinema sejam homogneas, mas destacar que as aproximaes
e os distanciamentos entre Adorno e Benjamin, no que se refere ao cinema,
necessitam ser mais bem investigadas. Talvez, o fundamental perceber que,
mesmo em suas possveis diferenas, o horizonte histrico e a profunda admirao
e respeito que existia na relao entre Adorno e Benjamin balizam qualquer
discusso sobre suas proposies tericas.
Dentre as publicaes mais significativas, na educao brasileira, que se
fundamentam na Teoria Crtica1, no h estudos que privilegiam a relao entre
cinema e educao. Fora do campo educacional, o trabalho de Silva (1999) foi
talvez o primeiro a abordar, no Brasil, o tema do cinema na Teoria Crtica,
especialmente em Adorno. A partir das reflexes e do caminho aberto por esse
autor, considerei (LOUREIRO, 2003) que as crticas ao pessimismo de Adorno
1 Cf. Zuin et al. (2004, 2000, 1998); Zuin & Pucci (1999); CEDES (2002); Pucci et al. (2003); Pucci (1995); Ramos-de-Oliveira; Zuin; Pucci (2001).
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quanto ao cinema precisavam ser mais bem analisadas. A tendncia existente
sinalizava uma certa apropriao da tradio da Escola de Frankfurt que tende a
desconsiderar evidncias histricas e tericas importantes e que compromete o
ncleo das anlises.
Na seqncia das reflexes j iniciadas (LOUREIRO, 2003; LOUREIRO &
DELLA FONTE, 2003), elaborei uma investigao (LOUREIRO, 2005) que
problematizava a idia comum de acordo com a qual Adorno nada entendeu de
cinema e que sua postura em face do tema se restringiu inexoravelmente a crticas
pessimistas. Enfatizei que, em escritos da dcada de 1940, Adorno aponta para um
campo mais amplo de possibilidades e de aliados na rea cinematogrfica,
tendncia que se mostrou mais explcita nos seus textos de 1964 a 1969. Tambm
afirmo que o Novo Cinema Alemo, movimento lanado em 1962, exerceu
importante influncia sobre a assero de Adorno sobre a possibilidade de conceber
o cinema como arte emancipatria. Conclu que a contribuio de Theodor Adorno
para a anlise do cinema era um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer,
acima de tudo, que se ultrapasse o senso comum acadmico predominante sobre as
posies desse filsofo frankfurtiano em relao ao tema em questo.
Um de meus objetivos nesta tese dar continuidade s reflexes que tenho
realizado sobre cinema e os mass media imagtico-eletrnicos desde meados dos
anos de 1990 (LOUREIRO & DELLA FONTE, 1996,1999), em especial as pesquisas
nas quais registro minha abordagem sobre a relao entre cinema e educao na
Teoria Crtica da Sociedade, com o foco especial no debate sobre Adorno e o
cinema (LOUREIRO, 2005, 2004, 2003, 2000; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003).
A forma pela qual materializo essa inteno tomar como objeto de estudo desta
tese as obras flmicas do cineasta alemo Alexander Kluge2, um dos signatrios do
Manifesto do VIII Festival de Cinema de Oberhausen que lanou o movimento do
Novo Cinema Alemo no incio da dcada de 1960.
2 Agradeo ao Prof. Dr. Rodrigo Duarte (UFMG) a indicao generosa, em 2003, que me permitiu iniciar a pesquisa sobre a relao deste cineasta com o filsofo Theodor Adorno. Algumas descobertas que realizei nos ltimos dois anos j haviam sido, pelo menos em parte, tratadas em Teoria crtica da indstria cultural (DUARTE, 2003a), em especial no item A indstria cultural e os escritos sobre televiso e cinema, livro publicado justamente no perodo em que sa para o estgio sanduche na Inglaterra. Por isso, infelizmente, s tive acesso a essa obra depois da banca de qualificao da tese, em junho de 2005. De qualquer forma, sem o saber, acabei por tomar como projeto o desafio lanado por Duarte (2003a, p. 146) de realizar uma espcie de aporte crtico sobre essa relao de Adorno com as principais manifestaes estticas do cinema de sua poca.
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O problema da pesquisa alude concepo de esttica, de histria e de
educao implcita nas obras flmicas desse cineasta. Essa trade analtica compe
um conjunto articulado. Por um lado, os filmes de Kluge podem conter referncias
explcitas educao e, nesse sentido, meu interesse verificar como isso ocorre.
Por outro, na sua prpria especificidade, qualquer filme possui noes implcitas de
padres estticos a partir dos quais promove uma determinada educao dos
sentidos. Por sua vez, considero que as proposies educacional e esttica de um
filme constituem prticas sociais concretas e, desta forma, o horizonte por
excelncia de sua compreenso a histria.
Sorlin (2001, p. 25), por exemplo, observa que, quando se tem o cinema
como fonte de pesquisa, pode-se consider-lo [...] como um documento de histria
social que, sem negligenciar sua base poltica e econmica objetiva, em primeiro
lugar, ilumina o caminho no qual indivduos e grupos entendem seu prprio tempo.
Nesta tese, enfrenta-se, assim, o desafio de perceber que a construo de
novos parmetros estticos e educacionais oriundos das obras flmicas de Alexander
Kluge se realiza no bojo das lutas do Novo Cinema Alemo de investimento em um
necessrio trabalho de luto elaborao do passado da histria alem e, ao
mesmo tempo, trilhar outros caminhos que no aqueles determinados pelo modelo
hollywoodiano.
A meu ver, analisar obras flmicas com essas caractersticas pode suscitar
indcios e pistas sobre o que significa uma formao esttico-educacional realizada a
contrapelo da promovida pela indstria de Hollywood. Se, por um lado, a educao
pode criar condies para uma leitura crtica do cinema/filmes, por outro lado, essa
rea necessita (e tem condies de) apreender, da especificidade das obras
flmicas, parmetros da formao esttica que deseja promover. Em outros termos,
mister reconhecer que a anlise de filmes pode ter um desdobramento para a
prpria teoria educacional medida que sugere eixos constitutivos de uma
educao dos sentidos. nessa perspectiva que se insere a presente tese.
O marco terico, trabalhado na primeira parte desta pesquisa, fundamenta-se
nas reflexes de Theodor W. Adorno, considerado um dos principais representantes
da teoria crtica da sociedade (Escola de Frankfurt). Apesar de ter privilegiado, no
campo esttico, reflexes sobre a msica e a literatura, Adorno refletiu sobre a
cultura ocidental e problematizou questes sobre a educao e o lugar do cinema na
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sociedade capitalista contempornea. Alm disso, cabe destacar que Adorno foi
contemporneo do Novo Cinema Alemo e travou, com esse movimento, um
relevante dilogo, em especial pela mediao do cineasta, amigo e interlocutor
Alexander Kluge. No entanto, passados trinta e sete anos de sua morte, o ambiente
acadmico brasileiro continua tmido na produo de pesquisas3 que relacionem o
cinema a questes educacionais a partir das contribuies de Adorno. Assim, na
tenso do dilogo entre a filmografia de Kluge e a filosofia de Adorno, procuro extrair
e sistematizar possveis elementos tericos que possam contribuir para uma
educao dos sentidos em uma perspectiva terico-crtica.
A tese est dividida em trs partes. A primeira parte conta com cinco captulos
e se intitula Elementos Tericos da Filosofia de Adorno. No primeiro captulo, Sobre
o conceito de esclarecimento, priorizo aspectos da concepo de histria de Adorno,
a partir do conceito de esclarecimento, elaborado em parceria com Max Horkheimer.
Este conceito utilizado como eixo de apreciao da histria humana e de crtica
expanso da lgica da mercantilizao da cultura, que ganha expresso no termo
indstria cultural, que objeto de apreciao do segundo captulo Indstria cultural,
semiformao e a filosofia como pensamento que resiste.
A indstria cultural concebida pelos autores a partir da idia de
esclarecimento como enganao das massas. Assim, pela mediao do conceito de
esquematismo, procuro evidenciar como, por meio deste mecanismo, a indstria
cultural obtm seu xito no programa de enganao das massas. Alm disso,
abordo a influncia da indstria cultural no processo de semiformao dos
indivduos. Por fim, analiso o conceito de filosofia e defendo a tese adorniana que
apresenta a filosofia como pensamento que resiste.
No terceiro captulo, Elaborao do passado e educao em Adorno, analiso
a tenso histrica entre progresso e barbrie e apresento a importncia atribuda por
Adorno educao formal dentro de um projeto de elaborao do passado.
No quarto captulo, Elementos de esttica em Adorno, focalizo o potencial
negativo da arte, ou seja, o seu carter de resistncia em face do mundo danificado,
assim como a articulao entre a obra de arte negativa e o exerccio filosfico a
partir de alguns posicionamentos de Adorno, em especial em sua obra pstuma 3 At o momento, no encontrei, no Brasil, nenhuma dissertao ou tese que trate da relao Adorno e cinema ou mesmo sobre a relao entre Adorno, Kluge e o Novo Cinema Alemo (cf. BANCO de teses do cinema brasileiro, s.d).
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16
Teoria Esttica. Dessa maneira, construo possibilidades para avaliar, na ltima parte
desta tese, o dilogo esttico entre Adorno e Kluge.
J no captulo V, Adorno e o cinema: a conversa continua, meu objetivo
ampliar e atualizar a discusso pertinente s reflexes adornianas sobre cinema.
Para tanto, trabalho com trs hipteses: ao contrrio do que comumente veiculado,
h, sim, nas reflexes de Adorno sobre o cinema, princpios filosficos
potencializadores de uma teoria esttica fundada em uma perspectiva terico-crtica
voltada tanto para a produo, como para a apreciao do espectador de cinema. A
segunda hiptese sinaliza que, mesmo tendo considerado o cinema parte da
indstria cultural, Adorno reconheceu o potencial do cinema como arte j na dcada
de 1930. Porm, tal reconhecimento tornou-se mais explcito nos seus textos
escritos entre os anos de 1964 e 1969. A hiptese de nmero trs explora uma das
razes desse fato: o Novo Cinema Alemo teve um papel de destaque e
representou uma forte influncia sobre a defesa de Adorno no que tange
possibilidade de o cinema ser uma arte emancipada. Esse argumento envolve uma
reciprocidade: Adorno tanto influenciou o movimento do Novo Cinema Alemo,
especialmente a filmografia do cineasta Alexander Kluge, como foi influenciado por
este.
A segunda parte da tese, O novo cinema alemo na histria do cinema,
detm-se nos traos histricos e estticos do Novo Cinema Alemo, com destaque
para o trabalho do cineasta Alexander Kluge. O primeiro captulo intitula-se A
contestao a Hollywood e realiza uma dupla contextualizao: a origem dos
Oberhauseners (pioneiros do Novo Cinema Alemo), citados por Adorno (1986a) em
seu artigo Notas sobre o filme, e a participao do cineasta Alexander Kluge nesse
movimento. O escopo compreender o surgimento do Novo Cinema Alemo. Ao
considerar que o aspecto de resistncia desse movimento cinematogrfico teve uma
dimenso nacional e tambm foi uma reao aos rumos hegemnicos da indstria
flmica em nvel mundial, optei por apresentar elementos histricos que ultrapassam
o momento de seu surgimento na dcada de 1960. Esse panorama histrico oferece
um suporte geral para compreender o trabalho do cineasta Alexander Kluge. Assim,
no segundo captulo, Alexander Kluge: um cineasta na tradio da teoria crtica,
apresento os principais aspectos tericos que fundamentam o labor deste cineasta.
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A terceira parte, Histria, educao e esttica nos filmes de Alexander Kluge,
trata, de modo especfico, dos filmes de Kluge. Para fins de anlise, selecionei dois
longas e dois curtas-metragens. No primeiro captulo, A brutalidade na histria:
arquitetura e educao em cena, tomo como objeto os curtas-metragens Brutalidade
em pedra: a eternidade do ontem (Brutalitt in Stein, 1960) e Professor em
Transformao (Lehrer im Wandel, 1962-1963). No segundo captulo, Poltica e
educao: o outono de uma patriota, analiso os longas-metragens Alemanha no
Outono (Deutschland im Herbst, 1977-1978) e A Patriota (Die Patriotin, 1979).
Na anlise dos filmes, privilegio os seguintes eixos de problematizao: 1) o
que h, nos filmes de Kluge, de referncia explcita educao, como e por qu ela
aparece e qual o sentido que assume; 2) quais so as caractersticas estticas
dessa produo flmica; 3) que perspectiva histrica articula as preocupaes
educacionais e estticas desses filmes.
Ao elaborar uma tese cujo foco de ateno recai sobre as interfaces entre o
conceitual e a imagem, entre a filosofia e o cinema, tendo como mediao a filosofia
adorniana, minha inteno, em ltima instncia, sinalizar para uma educao dos
sentidos a partir de um cinema crtico.
H inmeros outros caminhos de se abordar a necessidade de uma formao
esttica a contrapelo da hegemnica. A teoria crtica, fundamentada nas pesquisas
da Escola de Frankfurt, apenas uma delas. O que mais me anima, ao transitar
pelas reflexes dos frankfurtianos, perceber que o movimento que seus principais
tericos realizaram foi no sentido de resgatar o ncleo sadio do que mais
interessante foi produzido em termos de filosofia nos ltimos trezentos anos, no
mundo ocidental. No apenas Adorno, mas Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Max
Horkheimer, Leo Lwenthal, Eric Fromm dentre outros intelectuais oxigenaram a
filosofia idealista alem, resgataram a generosidade, a ternura e a radicalidade do
marxismo e o colocaram em dilogo com outros importantes pensadores, como
Kant, Schopenhauer, Max Weber, Freud, Nietzsche e outros.
O mais importante pensar que filsofos como Adorno no se despediram da
modernidade e assassinaram a razo. Para Adorno, a educao e a arte necessitam
da filosofia a fim de realizar uma auto-reflexo crtica sobre aquilo em que o
Esclarecimento tem se transformado. A formao esttica que visa indivduos
emancipados engendra as reais condies de possibilidade para que se percebam
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como interditados pela histria. Longe de ser uma panacia terica, percebo que a
teoria crtica pode contribuir para a consolidao de uma perspectiva crtica no
mbito da educao brasileira. Vale ressaltar que, no Brasil, desde 1991, inmeros
pesquisadores, com especial destaque para o grupo formado por docentes e
discentes das universidades UFSCar, UNESP-Araraquara e UNIMEP, tm
problematizado questes educacionais a partir da teoria crtica (ZUIN, 1999, p. 151-
152).
Os captulos seguintes enfocam uma discusso que pretende aproximar
campos que s na aparncia so dspares, mas que, para o contexto atual, no
podem deixar de se encontrar: a filosofia, a histria e a esttica em dilogo com a
educao e o cinema. Foge ao escopo da pesquisa determinar, a priori, quais sero
os frutos desse encontro. No entanto, pode-se adiantar que, uma vez estabelecidas
as relaes, tudo possvel, inclusive o impossvel.
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PARTE I
ELEMENTOS TERICOS DA FILOSOFIA DE ADORNO
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Adorno permanece com a perspectiva da sociedade de classes [...] Em termos mais do que atuais, poderamos desde j afirmar que Adorno e seus companheiros da teoria crtica percebiam que a reproduo capitalista no passa por processos de reestruturao produtiva, mas por processos de reestruturao geral, de construo da sociedade como tal (MAAR, 2004, p. 113-114).
Aproximar-se de elementos tericos da filosofia de um pensador sempre um
desafio. Isso se deve a vrias razes. Por um lado, essa tarefa oscila entre a no
pretenso de abarcar detalhes conceituais (apesar de reconhecer que a riqueza de
uma introduo abrir potencialmente os aprofundamentos) e, ao mesmo tempo, de
no simplificar as reflexes do pensador. Por outro lado, h uma pergunta latente
que me convida a inquirir as razes que levaram um filsofo a privilegiar alguns
temas e enfoques em detrimento de outros.
So diversas as possibilidades de introduo filosofia de Theodor Adorno.
Em inmeros textos, esse filsofo apresenta uma abordagem estritamente filosfica.
No entanto, a Dialtica do esclarecimento, escrito em co-autoria com Max
Horkheimer (1985), pode ser considerado o texto-chave em que Adorno baliza
grande parte de suas reflexes posteriores.
Em linhas gerais, nesse livro, os autores tm como proposta realizar a crtica
da sociedade burguesa a partir de uma filosofia da histria da dominao. Partem de
uma anlise terico-crtica da histria para mostrar como o progresso recai em
barbrie e como a mitologia, que o esclarecimento tentou liquidar, retorna como seu
prprio produto.
Apesar de realizar uma crtica acerba aos frankfurtianos, Bronner (1997, p.
102) considera que a Dialtica do esclarecimento [...] com certeza o produto mais
importante da Escola de Frankfurt e a obra mais influente da teoria crtica. Para
esse autor (1997, p. 105), o livro um marco do pensamento radical. De acordo
com Rosa (2003, p. 8), Adorno e Horkheimer mostram que a Dialtica do
esclarecimento pode ser lida como uma [...] espcie de porta de entrada para todos
que queiram refletir sobre como levantar o vu de Maia que a organizao social do
mundo teceu nossa volta [...].
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Diante do meu interesse e minha preocupao com a educao dos sentidos,
direcionada para as questes da esttica do cinema, cabe ressaltar que Para uma
compreenso da esttica de Adorno, a Dialtica do Esclarecimento [...] permanece
um texto-chave. Nela est desenvolvida a dialtica da subjetividade e da
coisificao (WELLMER, apud DUARTE, 1993, p. 14)4.
Finalizado em 1944, Dialtica do Esclarecimento: fragmentos filosficos foi
publicado em 1947, quando os autores se encontravam nos Estados Unidos. Foi,
portanto, no exlio que eles se debruaram sobre o conceito de Aufklrung
esclarecimento. O livro pode ser lido como uma incurso ou mesmo um preldio a
outros textos que tratam da danificao nos processos de formao do indivduo na
modernidade ocidental e, em especial, na administrada sociedade capitalista, alm
de ter sido, de certa maneira, a obra que lanou definitivamente Adorno e
Horkheimer no campo acadmico internacional.
Foge ao escopo do presente trabalho analisar a obra como um todo. O
objetivo buscar, na filosofia de Adorno, elementos tericos para a anlise dos
filmes do cineasta Alexander Kluge a partir da trade educao, histria e esttica.
A perspectiva de histria, em Adorno, abordada em dois momentos
distintos: 1) no captulo I, abordo o conceito de esclarecimento, tal como
apresentado na Dialtica do Esclarecimento, elaborado em parceria com Max
Horkheimer; e 2) no segundo captulo, destaco como o esclarecimento se converte
em enganao das massas e a conseqncia deste fenmeno para a formao dos
indivduos. Nesse sentido, um enfoque especial dado filosofia de Adorno,
concebida como pensamento que resiste.
No terceiro captulo, a anlise recai sobre a noo de elaborao do passado.
Os autores utilizam o conceito de esclarecimento como eixo de apreciao da
histria humana, em especial do capitalismo contemporneo, no qual se observa a
expanso da lgica de mercantilizao da cultura que ganha expresso no termo
indstria cultural. Nesse sentido, a educao compreendida no contexto de uma
formao cultural danificada e sua perspectiva emancipatria vincula-se proposta
4 Duarte (1993, p. 13-17) aponta a existncia de duas correntes exegticas da fi losofia de Adorno que se diferenciam quanto ao carter de centralidade (reduo) ou no da Dialtica do Esclarecimento como uma possvel unidade no pensamento de Adorno.
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adorniana de elaborao do passado e sua concepo de filosofia como auto-
reflexo crtica.
O tema da esttica ser abordado no quarto captulo, no qual procuro mostrar
como se d a compreenso adorniana de arte moderna radical. No bojo dessa
discusso, concentro-me no conceito de enigma. J no quinto captulo, o enfoque
recai sobre a tenso entre o filme concebido como arte e tambm como mercadoria.
Com essa abordagem, busca-se, tambm, responder possvel objeo de que a
filosofia de Adorno no seria apropriada para examinar obras flmicas tendo em vista
seu suposto pessimismo ou mesmo descaso com o cinema.
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CAPTULO I
SOBRE O CONCEITO DE ESCLARECIMENTO
1.1 Esclarecimento e emancipao a partir de Kant
Ah!, de que maneira os mortais censuram os deuses! A dar-lhes ouvidos, de ns provm todos os males, quando afinal, por sua insensatez, e contra vontade do destino, so eles os autores de suas desgraas (HOMERO, 2003, p. 16).
Tratar filosoficamente o conceito de esclarecimento foi uma imposio do
prprio contexto de um sculo que, j na sua primeira metade, passou por duas
guerras mundiais e pelas atrocidades nazistas. Forados a sarem do pas e j
imersos ao ambiente cultural dos Estados Unidos, Adorno e Horkheimer viveram um
choque com a nova experincia.
O estranhamento proporcionado pela sociedade estadunidense, ao invs de
paralisar a ao terica desses autores, criou uma necessidade que motivou a
compreenso do fenmeno da danificao da cultura ocidental sob a gide do
capitalismo mais avanado que havia at ento. Bertolt Brecht certa vez declarou:
Refugiados so perspicazes dialticos. [...] Eles so capazes de deduzir os grandes eventos a partir dos menores palpites. Quando seus oponentes esto vencendo, eles calculam o quanto tem custado sua vitria; e eles tm os mais cortantes olhos para contradies (BRECHT, apud McCANN, 1994, p. xi).
Como sugere Rosa (2003, p. 7), foi nos Estados Unidos, por ironia, que
Adorno teve proximidade direta com fenmenos sociais inusitados, fato que
impulsionou o amadurecimento [...] forado no mago de algumas de suas
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melhores teorias a respeito da manipulao da arte e da dominao do homem na
sociedade contempornea.
Alm dessas demandas histricas, cabe ressaltar que, em termos filosficos,
ao buscarem responder ao que o esclarecimento, Adorno e Horkheimer repetem
um esforo feito por Kant quase dois sculos antes, em 1784, e, assim, inserem-se,
ao seu modo, na linhagem de discusso terica sobre essa temtica, inaugurada por
este filsofo.
Para Kant (1988, p. 11), o Iluminismo representa [...] a sada do homem da
sua menoridade de que ele prprio culpado. A menoridade a incapacidade de se
servir do entendimento sem a orientao de outrem. A metfora indica a condio
em que muitos indivduos no conseguem pensar por si prprios e vivem sob a
tutela de outros. a falta de coragem de se servir da prpria razo. De acordo com
Kant, preguia e covardia so as causas da permanncia de muitos estarem sob
controle alheio, mesmo aps a natureza os libertarem. lanada, ento, a mxima
kantiana e do Iluminismo: Tem a coragem de te servires do teu prprio
entendimento (KANT, 1988, p. 11).
A sada da menoridade requer um contexto de liberdade, no qual possa
acontecer a reforma do pensar. Por toda a Europa e alhures, comenta Kant, vive-
se sob uma constante restrio liberdade com exceo do imprio de Frederico II,
de quem ele era admirador. Por isso, Kant afirma que o momento em que vive a
era do Iluminismo, mas no uma poca esclarecida. Para o filsofo, Falta ainda
muito para que os homens tomados em conjunto [...] se encontrem j em uma
situao ou nela se possam [...] se servirem bem e com segurana do seu prprio
entendimento, sem a orientao de outrem (KANT, 1988, p. 17).
A perspectiva kantiana de que o esclarecimento se plenifica na dimenso
universal da coletividade, dos homens tomados em seu conjunto. Ele ciente de
que o contexto social no qual vive sugere que os grilhes que seguram os indivduos
na menoridade parecem se perpetuar na memria de uma Idade Mdia latente,
obstculo ao livre pensamento. As questes religiosas, ou coisas da religio,
aparecem como interlocuo da reflexo kantiana sobre o esclarecimento. A seu ver,
o Iluminismo contrape-se a esse poderoso tutor que a autoridade religiosa
exercida por instituies eclesisticas e/ou por reis, autoridades que se legitimam
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pela fora e pela superstio. Da porque Kant insistir na idia de liberdade para a
realizao do esclarecimento.
Nessa direo, no basta apenas o esforo individual para se alcanar a
maioridade, preciso um contexto de liberdade para que o Iluminismo, entendido
como reforma do pensar, efetive-se na prtica. No obstante, Kant (1988, p. 13)
salienta que no qualquer tipo de restrio liberdade que impe obstculos ao
esclarecimento. Para ele, o tipo de restrio liberdade imposta ao Iluminismo
relaciona-se ao uso pblico da razo. Ou seja, ao uso da razo exercido por
qualquer pessoa que se apresente como erudito em face de um grande pblico do
mundo letrado. O exerccio pblico da razo implica fazer parte de uma comunidade
total na condio de erudito e se dirigir por escrito a um pblico de entendimento
genuno. Dessa forma, com os argumentos publicamente expostos, homens e
mulheres podem ter suas propostas avaliadas em um frum pblico a partir do
conceito de melhor discernimento (KANT, 1988, p. 16). O resultado da avaliao
indicar se as propostas podem ser implementadas, gerando mudanas
institucionais.
Nos termos de Kant, portanto, o sujeito autnomo no pensa em voz baixa.
A autonomia deve manifestar-se publicamente. O que est em questo o exerccio
poltico da razo, possibilidade que, segundo Kant, deve ser garantida pelo Estado.
Para exercitar-se no uso pblico da razo, o cidado necessita de uma formao
fundada em preceitos racionais. Da o termo erudito. Pelo processo educativo, o
indivduo toma posse da sua razo. Nessa perspectiva, o saber possui um papel
emancipador. Conforme Kant, todo o mal surge da ignorncia e obscuridade, por
isso, uma sociedade esclarecida mais livre.
Apesar de tecerem vrias crticas5 a Kant, Adorno e Horkheimer so
tributrios da concepo kantiana de esclarecimento, em especial, do seu ideal
emancipatrio. No entanto, os autores ampliam e problematizam o conceito de
esclarecimento de Kant. Eles se perguntam como a humanidade totalmente
dominada pelo esclarecimento submerge em uma catstrofe geral. Em outras
palavras, [...] por que a humanidade, em vez de entrar em um estado
verdadeiramente humano, est se afundando em uma nova espcie de barbrie? 5 Sobre as crticas de Adorno concepo kantiana de razo e liberdade, consultar Adorno (2003a, p. 211-299) e Duarte (1993, p. 101-104).
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(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 11). Nesse sentido, ganha densidade a
expresso dialtica do esclarecimento como uma indicao de que Adorno e
Horkheimer [...] no desejavam jogar fora o beb com a gua do banho, mas
simplesmente mostrar a ambigidade da Aufklrung (WIGGERSHAUS, 2002, p.
357).
1.2 Esclarecimento e mito: o trabalho como domnio da natureza
Todavia, ao contrrio de Kant, Adorno e Horkheimer propem pensar o
esclarecimento a partir da constituio da razo ocidental e no apenas do advento
da sociedade burguesa. A referncia primordial aqui o conceito de trabalho em
Marx (1985, p. 202):
[...] o trabalho um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua prpria ao impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas foras. Pe em movimento as foras naturais de seu corpo, braos e pernas, cabea e mos, a f im de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma til vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modif icando-a, ao mesmo tempo modif ica sua prpria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domnio o jogo das foras naturais.
No processo de trabalho, o ser humano modifica no apenas a natureza
externa, mas tambm a sua prpria natureza. A partir da, ele se cria como um
sujeito reflexivo ser passivo e ativo ao mesmo tempo. O esclarecimento, portanto,
engendrado no e pelo trabalho e promete, desde sempre, desencantar o mundo,
dissolver os mitos, enfim, livrar os seres humanos do medo para que se tornem
senhores da natureza, conhecedores das possibilidades de sua ao.
Assim, desde os primrdios, a humanidade convive com a necessidade de
explicar o no conhecido, no intuito de prever e dominar as aes tanto da natureza
como dos prprios membros da comunidade. De acordo com Duarte (1993), na
Dialtica do esclarecimento, Adorno e Horkheimer iniciam
[...] com uma meno concepo w eberiana de desencantamento do mundo no apenas ao processo de esclarecimento nas grandes religies, mas estendida a toda a cultural ocidental, enquanto seu
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princpio de explicao. Os autores afirmam que a destruio dos mitos o prprio desencantamento do mundo teria coincidido com o programa do esclarecimento [...] (DUARTE, 1993, p. 59).
A necessidade de explicao surge a partir do medo manifestado pelo ser
humano em face da natureza desconhecida. No esclarecimento, no h como os
deuses livrarem os homens do medo, haja vista que so justamente as vozes
petrificadas do pavor que os deuses trazem. Em vista do desconhecido, o medo
um sino que ecoa sem parar e isso que determina o trajeto da desmitologizao e
do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito
identifica o inanimado com o animado. O esclarecimento a radicalizao da
angstia mtica (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 29).
A tese de Adorno e Horkheimer de que h um entrelaamento entre o mito e
o trabalho racional. A civilizao, em verdade, um produto da Aufklrung, retido e
imanente ao prprio mito. Contudo, assim como os mitos j se realizam no
esclarecimento, este tambm fica cada vez mais implexo, a cada passo que d, na
mitologia. A possibilidade de romper com a imanncia mtica foi, desde sempre,
sufocada pelo esclarecimento que extrai seus contedos dos mitos meramente para
destru-los. Entretanto, no ato de julg-los, ele enreda-se no prprio mito:
O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas tambm expor, f ixar, explicar. Com o registro e a coleo dos mitos, essa tendncia reforou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornare m uma doutrina. Todo ritual inclui uma representao dos acontecimentos bem como do processo a ser inf luenciado pela magia. Esse elemento terico do ritual tornou-se autnomo nas primeiras epopias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trgicos, j se encontram sob o signo daquela disciplina de poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcanar. O lugar dos espritos e demnios locais foi tomado pelo cu e sua hierarquia; o lugar das prticas de conjurao do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifcio bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olmpicas no se identif icam mais diretamente aos elementos, mas passam a signif ic-los (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 23).
O mundo homrico, por exemplo, uma obra da razo ordenadora [...] que
destri o mito graas precisamente ordem racional na qual ela o reflete (ADORNO
& HORKHEIMER, 1985, p. 53). A interpretao que os autores realizam da XII
Rapsdia da Odissia de Homero ilustra a idia central do livro. Homero antecipa, na
sua obra, o vnculo entre o mito, a dominao e o trabalho. Os autores interpretam o
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mito afirmando que o astuto Ulisses ludibriou a natureza e a si mesmo. Para escapar
do encanto das sereias, cujo canto narctico entorpece os sentidos, o heri
(racional) sabe o que fazer. Para seus comandados, ele ordena que tapem os
ouvidos com cera, para que no escutem o poder alucingeno do canto e continuem
remando com todas as suas foras.
O que vale para os trabalhadores no serve para Ulisses. Este tenta outra
estratgia: a astcia, o recurso do eu para lograr-se vencedor das aventuras. Ulisses
calcula seu sacrifcio, pede que o amarrem ao mastro da nau. Impotente, ele se
permite escutar o canto das sereias e, com o sofrimento, emancipa-se. Quanto mais
sedutor o canto, mais amarrado se encontra.
possvel ouvir as Sereias e a elas no sucumbir: no se pode desafi-las. Desafio e cegueira so uma coisa s, e quem as desafia est por isso mesmo entregue ao mito do qual se expe. A astcia, porm, o desafio que se tornou racional. [ ...] O ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como qualquer outro. S que ele arranjou um modo de, entregando-se, no f icar entregue a elas (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 64)
Eles explicam que, quando o eu sobrevive s mltiplas tentaes e peripcias
do destino, revela-se a oposio do esclarecimento ao mito. Por isso, interpretam o
recurso de Ulisses como um perde-se para se ganhar, um alienar-se da natureza
para nela se abandonar (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 56). O eu escapa
dissoluo na natureza, mas permanece preso ao contexto natural para se afirmar
contra ele. Quando supera o sacrifcio, o ser humano volta para celebrar a si mesmo,
celebrar o sacrifcio de si. Em consonncia com a tese freudiana do mal-estar na
civilizao ocidental, os autores consideram que a histria da civilizao a histria
da renncia, do domnio do instinto, da introverso do sacrifcio: A civilizao a
vitria da sociedade sobre a natureza, vitria essa que tudo transforma em pura
natureza (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 173).
H, tambm, sedimentos de uma racionalizao da intuio mtica j implcita
nas cosmologias pr-socrticas. Porm, asseveram, foi a partir de Plato que os [...]
deuses patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filosfico (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 21). Dessa forma, com o advento da sociedade burguesa, o
esclarecimento renova, de forma mais intensa, seu objetivo de destruir os mitos. No
entanto, como explica Duarte (2002, p. 29), j
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[...] a partir do sculo XVII a cincia europia adquiriu os meios tericos para intervir em processos do mundo fsico e quase duzentos anos depois, com a revoluo industrial, o conhecimento f inalmente se traduziu em tecnologia: em transformao do ambiente natural, mediatizada por teorias, com objetivos econmicos bem definidos a alcanar.
1.3 Esclarecimento e conhecimento cientfico na sociedade capitalista
A concepo de cincia desenvolvida por Bacon nos sculos XVI e XVII
ilustra o aparato terico fundamental para o desencadeamento da Revoluo
Industrial no sculo XVIII. Bacon sugere que, para se alcanar o conhecimento
correto sobre a natureza e descobrir os meios de torn-lo eficaz, seria necessrio
que o investigador se libertasse dos dolos e noes falsas. Os dolos so, segundo
ele, uma noo banal da imagem de um falso deus, da idia de idolatria. Assim, no
XXXVIII Aforismo, Bacon (1988, p. 20-21) afirma que
Os dolos e noes falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados no somente o obstruem a ponto de ser difcil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu prtico logrado e descerrado, podero ressurgir como obstculo prpria instaurao das cincias, a no ser que os homens, j precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
No pensamento de Bacon, uma nova cincia, baseada no mtodo indutivo,
busca tornar o ser humano empreendedor e, portanto, dispensa qualquer tipo de
filosofia metafsica. O mtodo nico e simples para alcanar seus objetivos [...]
levar os homens aos prprios fatos particulares e s suas causas de sries e ordens,
a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar s suas noes e
comecem a habituar-se ao trato direto das coisas. Ele pensa que, ao vencer a
superstio, o conhecimento deve se sobrepor natureza desencantada, pois
Cincia e poder do homem coincidem (BACON, 1988, p. 13).
Quanto mais o ser humano conhece, mais aumenta seu poder de controlar a
natureza e a sociedade. No sculo XIX, o positivismo de Augusto Comte atualizou as
principais proposies de Bacon de uma maneira mais vigorosa: na idia de um
progresso do esprito, na pretenso cientfica de neutralidade, de previsibilidade e
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desenvolvimento tcnico. Tendo em conta a Dialtica do esclarecimento, Duarte
(1993, p. 59) observa que
A cincia ocidental propriamente dita diferencia-se, entretanto, do mito, j que substitui a representabilidade especf ica da magia (por ex.: uma bonequinha simboliza a pessoa-alvo de um feitio) por uma substitutibilidade universal, i., um tomo de hidrognio iguala-se a qualquer outro.
Adorno e Horkheimer no negam a importncia do conhecimento cientfico,
mas problematizam e pem em xeque a noo baconiana e positivista de
esclarecimento, entendida como frmula mgica do progresso que faria a
humanidade alcanar a liberdade e a emancipao social sob os auspcios do
capitalismo. Assim, como enfatiza Bronner (1997, p. 104), Em oposio a Nietzsche
e aos pensadores do ps-modernismo [...], Adorno e Horkheimer nunca esvaziaram
a cognio em poder e rejeitaram coerentemente o relativismo que viam como ligado
ao positivismo histrico.
A tese dos autores indica um dilema presente na civilizao europia que
remonta ao incio da era moderna e da sociedade capitalista, mas que recrudesce
nos sculos XIX e incio do sculo XX, qual seja: a possibilidade de se alcanar,
mediante o conhecimento cientfico entendido como esclarecimento, um patamar
civilizatrio jamais proporcionado na histria. No por acaso, os autores identificam a
essncia do saber cientfico na tcnica que, segundo eles, [...] no visa conceitos e
imagens, nem o prazer do discernimento, mas o mtodo, a utilizao do trabalho de
outros, o capital (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 20).
A burguesia, que de imediato percebeu a importncia do conhecimento
cientfico para a expanso da sua hegemonia econmica, em verdade jamais se
interessou por uma igualitria expanso das potencialidades humanas para todos, a
partir do saber. Quando proclamou formalmente essa vontade nos processos ps-
revolucionrios, ela no fez mais que confirmar a sua perspectiva de saber como
poder, ou seja, o conhecimento cientfico como mero domnio da natureza externa e
interna.
O tipo de esclarecimento proporcionado pela ascenso da burguesia acirrou a
contradio da Aufklrung. Como escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 20), ela
cicatrizou [...] o ltimo resto de sua prpria autoconscincia. A voracidade com que
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o capital avanou sobre a natureza, na tentativa de desvendar seus segredos e
mistrios, foi transformada em dureza emocional confirmada pela ao histrica da
burguesia. por isso, como atestam os autores, que S o pensamento que se faz
violncia a si mesmo suficientemente duro para destruir os mitos (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 20).
Na sociedade regida pelo capital, no h diferenciao entre o mbito da
justia social e o do mercado. O capital compara o que incomparvel. Na palavra
dos autores, ele
[...] torna comparvel o heterogneo, reduzindo-o a grandezas abstratas [...]. As mesmas equaes dominam a justia burguesa e a troca mercantil. No a regra: se adicionares o desigual ao igual obters algo de desigual [...] um princ pio tanto da justia quanto da matemtica? E no existe uma verdadeira coincidncia entre a justia cumulativa e distributiva por um lado e as propores geomtricas e aritmticas por outro lado? A sociedade burguesa est dominada pelo equivalente. Ela torna o heternomo comparvel, reduzindo-o a grandezas abstratas (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 22-23) 6.
A necessidade burguesa de atuar sobre a natureza, transformando-a em
mercadorias, exigiu uma cincia com fundamentos confiveis e passveis de serem
universalizados. A lgica de uma cincia positiva estendeu-se cada vez mais no
mbito da sociedade ocidental que, fascinada com tantas descobertas e
possibilidades ainda a serem desvendadas, reverenciava o novo mtodo cientfico.
O despertar do sujeito foi o fato novo da modernidade ocidental. Para os
autores, foi a partir da que o poder econmico se imps como o princpio de todas
as relaes. H um equivalente entre a idia de criao divina medieval e o esprito
ordenador do sujeito moderno. Eles explicam que ser imagem e semelhana do
criador significa que o ser humano soberano sobre a existncia, que ele tambm
tudo v e comanda. Com o abalo do teocentrismo, o sujeito deslocou o lugar
ocupado por Deus e passa, ele prprio, a administrar a existncia. Eis porque o mito
converteu-se em esclarecimento e a natureza em mera objetividade. De acordo com
Adorno e Horkheimer (1985, p. 24), o esclarecimento comporta-se com as coisas tal
como um ditador que s reconhece homens e mulheres medida que pode
manipul-los, isto , apenas como objetos. 6 A citao entre aspas refere-se a um trecho do livro Advancement of Learning, de Francis Bacon.
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Na sociedade burguesa, as coisas s tm valor quando podem ser
manipuladas. Homens e mulheres so forados conformidade. Pouco interessa a
origem daqueles que se dirigem ao mercado para trocar suas mercadorias. Contudo,
nesta sociedade, percebe-se um carter progressista, se comparado rigidez e
falta de mobilidade social do modo de produo feudal. O eu autnomo, pertencente
a cada um e ao mesmo tempo distinto de todos os outros, foi a condio para que se
pudesse, com maior segurana, tornar todos iguais. Porm, como a igualdade
coletiva nunca se efetivou, o esclarecimento se vinculou coero social (ADORNO
& HORKHEIMER, 1985, p. 27). Assim, sob a defesa de um eu autnomo,
caracterstica do liberalismo poltico, o capitalismo promoveu e promove a negao
do indivduo, cindindo-o, tornando-o a massa.
A racionalidade burguesa submeteu-se execuo dos interesses
particulares do capital. Eis porque, para Adorno e Horkheimer, o esclarecimento
totalitrio. O falso do esclarecimento no reside no mtodo analtico, tampouco no
retorno aos elementos ou na decomposio pela reflexo. Para o esclarecimento,
[...] o processo est decidido de antemo. Quando, no procedimento matemtico, o
desconhecido se torna a incgnita de uma equao, ele se v caracterizado por isso
mesmo como algo de h muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer
valor (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 37).
O esquema proposto nessa idia de esclarecimento dos frankfurtianos de
uma matematizao, na qual o nmero emerge como preceito do esclarecimento:
[...] o que no se reduz a nmeros e, por fim, ao uno, passa a ser iluso: o
positivismo moderno remete-o para a literatura (ADORNO & HORKHEIMER, 1985,
p. 23). Se, tal como em Bacon, o objetivo enterrar de vez o pantanoso terreno da
metafsica, nada mais racional, para realizar a transformao da matria (natureza)
do que o clculo exato e eficiente. Contudo, o esclarecimento equivoca-se
quando pensa estar a salvo do retorno ao mtico, quando iguala a verdade ao mundo
totalmente matematizado.
A matemtica ganha espao e transformada em instncia absoluta no bojo
das cincias. Esse justamente o contexto de positivizao do saber, no qual a
matemtica se impe como o esclarecimento. H a um processo de reificao do
pensamento, pois a exigncia clssica de pensar o pensamento alijada. Rejeitar tal
reivindicao significou um desvio do imperativo de comandar a prpria prxis. Lidar
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matematicamente com os fenmenos, independente de sua origem, tornou-se o
ritual do pensamento. A partir de tal procedimento, houve um recrudescimento da
instrumentalizao do pensar. Este se transformou em meio para atingir os fins
determinados pelo capital.
Por conseguinte, os autores (1985, p. 38) afirmam que o positivismo no
sculo XIX assumiu a magistratura da razo esclarecida. Isso significou censurar e
ridicularizar qualquer tema que ousasse trilhar uma discusso metafsica. A crena,
para o positivista, pertence a tempos superados na histria; pois, ao pensamento
instrumentalizado, racional e cientfico, no cabe tal questo.
Quando se reduz o pensamento a uma aparelhagem matemtica, confirma-se
o mundo como sua prpria medida e O que aparece como triunfo da racionalidade
objetiva, a submisso de todo ente ao formalismo lgico, tem por preo a
subordinao obediente da razo ao imediatamente dado (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 38).
A cincia positivista, portanto, indiferente compreenso histrico-social
dos fenmenos. Seu objetivo consiste no mero observar, classificar e calcular. O que
prevalece o formalismo matemtico cujo instrumento o nmero: [...] a figura
mais abstrata do imediato (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 39). Dessa
maneira, a formalidade matemtica mantm o pensamento cativo mera
imediaticidade. Da porque, de acordo com os autores (1985, p. 39),
O factual tem a ltima palavra, o conhecimento restringe-se sua repetio, o pensamento transforma-se na mera tautologia. Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reproduo. O esclarecimento regride mitologia, da qual jamais soube escapar. As f iguras mitolgicas refletiam a essncia da ordem existente o processo cclico, o destino, a dominao do mundo. Tanto a imagem mtica quanto a clareza da frmula cientf ica confirmam a eternidade do factual.
Quando se concebe o factual, escrevem Adorno e Horkheimer (1985, p. 39),
seja sob a pr-histria lendria, mtica, seja sob o formalismo matemtico, o
simbolismo presente ao evento mtico em relao ao rito ou categoria abstrata na
cincia faz com que o novo aparea como predeterminado. O novo , em verdade, o
antigo. Dessa maneira, na sociedade esclarecida, a mitologia do factual invadiu a
esfera profana. A dominao no representa apenas a alienao dos indivduos na
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sua relao com os objetos dominados, mas sim o enfeitiamento das prprias
relaes humanas.
A partir da anlise do fetichismo da mercadoria desenvolvida por Marx (1985)
em o Capital, Adorno e Horkheimer destacam que, se no processo anmico a coisa
era dotada de alma, na sociedade industrial, as almas so coisificadas. Os autores
apresentam a idia original de que a coisificao implica o triunfo da razo
instrumental sobre a razo prtica.
O aparelho econmico, antes mesmo do planejamento total, j prov espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A partir do momento em que as mercadorias, como o f im do livre intercmbio, perderam todas suas qualidades econmicas salvo seu carter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 40).
Para eles, ento, a razo burguesa passou a ser subsidiria das relaes
capitalistas vigentes na aparelhagem econmica global. A razo tornou-se um
instrumento universal a servio da produo de todos os demais instrumentos.
Quando a lgica expulsa o pensamento, confirma-se o processo de fetichizao do
indivduo na fbrica, no escritrio e nas relaes sociais como um todo.
Nesse contexto, eles revelam a essncia do esclarecimento. No momento em
que a autoconservao (o eu que quer se salvar) se automatiza, a burguesia
percebe que tambm os deserdados so detentores da razo. Os dominantes
passam, assim, a tem-la nos deserdados. Dessa forma, A essncia do
esclarecimento a alternativa que torna inevitvel a dominao. Os homens sempre
tiveram de escolher entre submeter-se natureza ou submeter a natureza ao eu
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 43).
O trabalho, forado pela dominao exercida pela economia mercantil
burguesa, absorvido pelo mito, produto da coero dessa classe. Ao invs de a fria
razo calculadora aclarar o mito, ela no faz mais do que amadurecer a sementeira
da nova barbrie.
Os autores inferem que, tal como os marujos do mito das sereias, de Homero,
os operrios, no mundo do capital, so impelidos a permanecerem alerta e
concentrados, a olharem para frente e esquecerem o que foi posto de lado: a prpria
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histria. Para se tornarem homens e mulheres prticos, lhes sugerido que
aprendam, em um esforo complementar, a sublimar toda e qualquer distrao.
com a prpria vida que a classe trabalhadora reproduz a vida dos opressores. E
estes no mais conseguem fugir do status atingido.
1. 4 Esclarecimento e trabalho: progresso e regresso dos sentidos
A regresso dos sentidos na sociedade capitalista uma espcie de
mutilao. Ela atinge tanto classe dominante quanto aos trabalhadores.
burguesia, afastada do ordinrio da existncia, s resta a experincia residual da
vida. O burgus torna-se um sujeito cruel e insensvel que lembra a figura do heri
homrico. Adorno e Horkheimer (1985, p. 46) evidenciam que, no momento em que
o proprietrio no cede tentao de se abandonar, ele no somente renuncia sua
participao no mundo do trabalho, como tambm a tarefa de dirigi-lo. Os
trabalhadores, submetidos a um processo de trabalho coercitivo, nada ou pouco
usufruem, pois, acima de tudo, tm os sentidos fechados fora. Quando no mundo
feudal, por exemplo, o servo subjugado no corpo e na alma, o senhor regride. Da
porque, para os autores (1985, p. 46), Nenhuma dominao conseguiu ainda evitar
pagar esse preo, e a aparncia cclica da histria em seu progresso tambm se
explica por semelhante enfraquecimento, que o equivalente do poderio.
Mesmo com toda diferenciao nas habilidades e conhecimentos alcanados
devido diviso do trabalho, Adorno e Horkheimer asseveram que a humanidade
prossegue na regresso a estgios antropolgicos mais primitivos. Quanto mais se
persiste no domnio da natureza, interna e externa, mais se determina a fixao do
instinto mediante uma maior represso, e a fantasia e a imaginao vem-se
atrofiadas.
Quanto mais a sociedade se adapta ao poder do progresso engendrado pelo
capital, mais ela contribui para o progresso do poder. Como um crculo vicioso, este
procedimento proporciona o surgimento de formaes brbaras que subsistem em
estado latente e revelam que no se trata de um fracasso do progresso, mas
justamente o [...] progresso bem-sucedido que culpado de seu prprio oposto. A
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maldio do progresso irrefrevel a irrefrevel regresso (ADORNO &
HORKHEIMER, 1985, p. 46).
Eles insistem que tal regresso vai alm da experincia do mundo sensvel.
Ela afeta o intelecto autocrata do burgus. Para os autores, justamente essa
unificao da funo intelectual que empobrece o pensamento e a experincia. A
regresso dos sentidos em ambas as classes sociais est relacionada aos modos de
trabalho racionalizados que convertem os aspectos qualitativos em meras funes
mecanicamente transferidas da cincia para o mundo da experincia. Em outras
palavras,
[...] a regresso das massas de que hoje se fala, nada mais seno a incapacidade de poder ouvir o inaudito com os prprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as prprias mos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas mticas superadas. Pela mediao da sociedade total, que engloba todas as relaes e emoes, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princpio do eu: meros seres genricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela fora. Os remadores que no podem se falar esto atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno da fbrica, no cinema e no coletivo (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 47).
A tese dos autores de que o esclarecimento j estava contido nos mitos e
que, ao combat-los, ele prprio se transforma em uma figura mtica acentuada
com a idia conforme a qual, no trajeto da mitologia lgica instrumental do
capitalismo, o pensamento perdeu o elemento de reflexo sobre si mesmo.
O pensamento abandonado e transformado em figura matemtica coisificada
reage sobre aqueles que o esqueceram. Com isso, o esclarecimento desiste de sua
prpria realizao. Ao longo dos ltimos trs sculos de histria, o esclarecimento
tem se realizado a partir de um conhecimento cientfico instrumental e pragmtico,
ou, como defendem Adorno e Horkheimer, como enganao das massas
(Massenbetrug).
A concepo de esclarecimento desenvolvida por Adorno e Horkheimer
levanta algumas dvidas. Uma delas apresentada por eles prprios: no estaria o
processo da Aufklrung condenado runa, ou seja, o esclarecimento no seria
autodestrutivo? (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 13). Quanto a isso,
Wiggershaus (2002, p. 364) entende que, para Adorno e Horkheimer, a
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autodestruio da Aufklrung significa que [...] toda Aufklrung, at agora, no a era
autenticamente e impedia, ao contrrio, a realizao da verdadeira Aufklrung.
Adorno e Horkheimer (1985, p. 15) confirmam essa interpretao quando
explicitam que a pretenso da crtica ao esclarecimento [...] preparar um conceito
positivo do esclarecimento que o solte do emaranhado que o prende a uma
dominao cega.
O desafio perceber a contradio inerente histria humana: o domnio da
natureza traz a promessa de felicidade e emancipao. Por um lado, seguindo
Freud, Adorno e Horkheimer mostram como esse processo uma histria de
domnio do medo, de renncia do instinto, de sacrifcio: a [...] civilizao, por seu
turno, origina e fortalece progressivamente o que anticivilizatrio [...]. Se a barbrie
se encontra no prprio princpio civilizatrio, ento pretender se opor a isso tem algo
de desesperador (ADORNO, 1995a, p. 119-120). Ou, como observa Freud (1997),
em O Mal-Estar na Civilizao, o custo da civilizao muito alto; pois, se ela
construda custa da represso das pulses, essa represso gera a mesma
destrutividade que ela quis evitar. Assim, est embutida na idia de progresso uma
dimenso regressiva de barbrie.
Por outro, os autores seguem o carter contraditrio do trabalho humano
revelado por Marx: o trabalho fonte de humanizao. Porm, sob condies
capitalistas de produo, o carter do trabalho modifica-se a partir de dois
fenmenos caractersticos, quais sejam:
1. O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho.
2. Alm disso, o produto do trabalho propriedade do capitalista, no do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor dirio da fora de trabalho. Sua utilizao, como a de qualquer outra mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o possuidor da fora de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que vendeu, ao ceder seu trabalho (MARX, 1985, p. 209-210).
Adorno e Horkheimer (1985, p. 162) enfatizam que houve pocas na histria
em que a represso das classes e grupos dominantes era imediata e todo o trabalho
era entregue s classes inferiores. Nesse perodo, os dominantes consideravam o
trabalho uma afronta pblica. No entanto, sob o capitalismo, os senhores
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transformados em burgueses, com o objetivo de se apoderarem do trabalho alheio,
passaram a defender que o trabalho no envergonha.
A partir das reflexes de Marx, eles observam como a promessa de
emancipao da natureza mediante o trabalho declina, sob relaes sociais
capitalistas, em pura dominao de classe. Sob o capitalismo, a grande maioria dos
trabalhadores v-se inserida em um processo no qual o trabalho repetitivo,
enfadonho e sem nenhuma expresso criativa. Eles sequer se reconhecem no
produto do seu trabalho. Da que o trabalho se transforma em alienao. Esse
carter contraditrio exemplificado pelos autores, ao afirmarem que a
naturalizao dos seres humanos, sob o capitalismo, est vinculada ao progresso
social. Para eles, o aumento da produtividade econmica produz, por um lado, as
condies para um mundo mais justo, e, por outro lado, confere ao aparelho tcnico
controlado pela burguesia uma forte superioridade sobre o conjunto dos
trabalhadores.
Essas reflexes constituem a base da anlise adorniana sobre o progresso. O
diagnstico de Adorno revela um paradoxo da sociedade dos fins da dcada de
1960: ao mesmo tempo em que se vivia sob a ameaa iminente de uma catstrofe
mundial, representada pela bomba atmica, tambm se defrontava com o fato de
que, ao menos potencialmente, tendo em vista o alto nvel alcanado pelas foras
produtivas, a fome no mais seria um problema (ADORNO, 1995b, p. 38). Por essa
razo, diante do conceito de progresso, tornava-se fundamental perguntar: [...]
progresso do que, para que, em relao a que [...] (ADORNO, 1995b, p. 37).
Baseando-se na contribuio de Walter Benjamin, Adorno lembra que, em
geral, o progresso confundido com o avano e o acmulo de habilidades e
conhecimentos. A frmula publicitria do sempre-melhor-e-melhor (ADORNO,
1995b, p. 39) indicaria um movimento ascendente uniforme na histria. De outra
maneira, Adorno est longe de renunciar in totum idia de progresso e advogar a
decadncia como trao ontolgico do movimento histrico.
Para ele, tanto a defesa de um progresso total como a da sua negao so
atitudes convergentes. Em termos histricos, ambas posturas representam
momentos do desenvolvimento da burguesia como classe social:
Enquanto a classe burguesa permaneceu oprimida, pelo menos no plano das formas polticas, ops-se a palavra de ordem do progresso
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situao estacionria vigente; seu patos era o eco desta. Somente depois de esta classe j ter conquistado as posies de poder decisivas, o conceito de progresso degenerou em ideologia, que logo foi imputado pela vcua profundidade ideolgica, ao sculo XVIII. O XIX chegou aos limites da sociedade burguesa; esta no podia realizar sua prpria razo, seus ideais de liberdade, justia e espontaneidade, a no ser superando o seu prprio ordenamento. [...] Certamente, quando o imperialismo lanou suas sombras, a burguesia renunciou prontamente a essa ideologia e lanou mo de um recurso desesperado: falsif icar a negatividade, que a crena no progresso rechaava, em algo metafisicamente substancial (ADORNO, 1995b, p. 52).
Essa confluncia manifesta a antinomia do progresso cuja origem reside no
princpio burgus da troca. Na sociedade capitalista, acredita-se que, nas relaes
de trabalho, toda operao de troca ocorre entre equivalentes, ou seja, ela justa
porque acontece entre iguais. Essa concepo positiva de trabalho era adotada
mesmo entre membros da social-democracia alem. Adorno (1995b) rejeita esse
procedimento e lembra que o prprio Marx rechaou o programa lassalista de Gotha
e a absolutizao da noo de trabalho como nica fonte de riqueza social. A
acumulao de riqueza constri-se a partir de uma desigualdade na qual [...] o
contratante socialmente mais poderoso recebe mais que o outro (ADORNO, 1995b,
p. 60). Portanto, a base material para o progresso a mentira da igualdade
(ADORNO, 1995b, p. 60).
Com essa atitude, Adorno sublinha que Marx no descartou a possibilidade
social de incidncia na barbrie. Na histria contempornea, um dos casos mais
ilustrativos desse horizonte o dizer que se encontra no portal de entrada do campo
de concentrao de Auschwitz: O trabalho liberta (Arbeit macht Frei).
A interdependncia entre progresso e barbrie, reforada na filosofia de
Adorno, arrefeceu a iluso daqueles que acreditavam que a instrumentalizao
(Bacon) e a positivizao (Comte) do conhecimento pudessem resolver contradies
sociais, que no se solucionam no nvel lgico-formal, bem como engendrar uma
sociedade de indivduos emancipados. No entanto, quando destacam o vis
contraditrio da histria a partir da contribuio de Freud e Marx, Adorno e
Horkheimer apostam na interveno humana no sentido de forar essa contradio
em favor da dimenso emancipatria do esclarecimento.
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Em sntese, na sociedade capitalista, o sujeito v-se enredado em uma teia
que o dilacera e o pe em face de profundas contradies. Em tese, o sujeito parece
usufruir uma autodeterminao e gozar de uma hipertrofia da conscincia de si. No
obstante, como os remadores do mito de Homero, o que acontece uma
expropriao de suas foras vitais e intelectuais lcidas, esvaziadas no repetitivo
processo de trabalho. A to prometida individualidade que a burguesia divulga aos
sete mares, v-se frustrada, uma vez que sua concretizao sempre esteve aqum
do seu programa.
Essa questo ser retomada quando for discutida a concepo de filosofia em
Adorno. Por ora, como objeto de reflexo do prximo captulo, interessa apreender a
forma como os autores apresentam o esclarecimento como enganao das massas.
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CAPTULO II
INDSTRIA CULTURAL, SEMIFORMAO E A FILOSOFIA COMO PENSAMENTO QUE RESISTE
Como visto no captulo anterior, Adorno e Horkheimer desenvolvem, a partir
do conceito de esclarecimento, uma filosofia da histria. Engendrado no processo de
trabalho, o esclarecimento promete a libertao do mito, mas, sob muitos aspectos,
a mitologia retorna como seu produto. A promessa de destruio dos mitos se
renova, de forma mais intensa, com o advento da sociedade capitalista. Nessa
renovao, tambm se acirra a contradio da Aufklrung. Sob os interesses do
capital, a cincia cativa de limites instrumentais e pragmticos. Nesse sentido,
Adorno e Horkheimer consideram ser fundamental pensar a histria em um horizonte
dialtico (esclarecimento e mito, progresso e barbrie).
O esforo analtico dos autores de perceber essas contradies no
movimento histrico serve de preldio para aquilo que se tornou uma de suas
principais tarefas intelectuais: a crtica da sociedade capitalista contempornea.
Nesse esforo, o conceito de indstria cultural torna-se crucial para explicar os
mecanismos pelos quais, no capitalismo atual, o esclare
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