intertextualidade na canção e poesia

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INTERTEXTUALIDADE NA CANÇÃO E POESIA

Adilson Motta

RESUMO

Este trabalho aborda a presença da intertextualidade na canção e poesia. Para desenvolvê-lo, foram realizadas pesquisas em fontes diversas como obras literárias e internet em poemas e canções – e, em seguida, foi realizado análises focalizadas em fragmentos e obras no sentido de confirmar e validar a realização deste trabalho. Em maior relevância foram trabalhadas as letras da música Monte Castelo, de Renato Russo e o poema ―O amor é fogo‖ de Camões, bem como a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Alerta também para os efeitos de sentido que esse recurso suscita e ainda a argumentação que pode estar implícita em cada texto resgatado no poema. Verifica-se também os processos de intertextualidade utilizados por Carlos Drummond de Andrade, no poema ―Balada do amor através das idades‖, publicado em 1969, na obra ―Reunião‖, pois o poema está fundamentado na intertextualidade, uma vez que o mesmo usa tessitura argumentativa de textos, considerado um dos principais fatores da intertextualidade. PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade. Poesia. Canção. Literatura. Análise.

1. INTRODUÇÃO

Como o presente trabalho relaciona-se com a intertextualidade, é de

suma importância que se foque a conceitualidade para que se atinja o objeto

aqui proposto, que é mostrar sua presença na poesia, assim como na canção,

que também é uma forma poética. A mesma ocorre quando o produtor de um

texto repete expressões, enunciados ou trechos de outros textos, ou então o

estilo de determinado autor ou determinados tipos de discursos. Kristeva (1974,

p.64) afirma que, ―todo texto é um mosaico de citações, todo texto é retomado

de outros textos (...), que pode se dar desde simples vinculação a um gênero

até a retomada explícita de um determinado texto.‖

2

Para fazer amostragem da intertextualidade na poesia e canção, foi

necessário mobilizar pesquisas em poemas de autores diversos e cantores

diversos, assim como o estudo apurado da presença de intertextualidade e

os vários olhares presentes na intertextualidade de autores diversos que levou

a elaboração deste trabalho.

Trabalhar este artigo, foi como lavrar o minério na rocha, identificando,

classificando e separando dentro de textos objetivos e subjetivos, a literatura

impregnada de muitas vozes que não calam, não envelhecem, mas ressurgem

em novos discursos com novas pintas e tonalidades dando desta forma, origem

ao novo.

2- O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE

Segundo o dicionário MICHAELIS (Apud Miranda et al, 2006), a

―INTERTEXTUALIDADE‖ é o processo de produção de um texto de um texto

literário que parte de vários outros e com eles se imbrica. Já Silva, segundo cita

o mesmo autor, focando o contexto de educação e sua natureza pedagógica,

lembra que os professores devem ter consciência e investir na ideia de que os

textos não são puros e o discurso de qualquer autor é, na verdade, um diálogo

com algo já escrito ou falado por outrem.

Já na enciclopédia Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Inter

textualidade), a intertextualidade é explicada como uma técnica de

superposição de um texto (literário) a outro, ou ―a influência de um texto sobre

outro que o toma como modelo ou ponto de partida, e que, às vezes, provoca

uma certa atualização ou modernização do primeiro texto‖.

Indo além dos dicionários, para Barthes (apud Soares, 2005), ―todo

texto é um intertexto; outros textos estão presentes neles, em níveis variáveis,

sob formas mais ou menos reconhecíveis (...). O intertexto é um campo geral

de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é recuperável, de citações

inconsciente ou automáticas, feitas sem aspas‖ (Barthes, apud Soares, 2005).

De acordo com o conceito de Barthes, entende-se a intertextualidade, como

relações implícitas, não marcadas no texto.

3

2.1 Tipos de Intertextualidade

Para AMARAL (apud Soares, 2005), são três os tipos básicos de

intertextualidade, os quais podem estar relacionados aos diferentes modos de

discurso:

Intertextualidade direta – que é a citação nominal de um texto anterior e

está relacionada com o como se diz, isto é, o discurso direto.

A intertextualidade indireta – compreende àquela em que o leitor deve

valer-se de um conhecimento que abranja outros textos produzidos e

considerados de caráter universal e está no âmbito do como o outro diz,

do encadeamento de lugares comum, ou mesmo dos clichês.

O interdiscurso – corresponde a uma remissão a situações

fragmentárias, em que há necessidade de recorrência ao conhecimento

enciclopédico. Corresponde no campo de como eu digo, utilizando-se

de uma quebra do código das unidades linguísticas e da ideologia.

As formas diversas de intertextualidade estão presentes na poesia, na música,

na arte, no teatro, na propaganda comercial e nos discursos que preenchem o

cotidiano.

Já NERY (2009), sete tipos de intertextualidades, veja-as abaixo:

Epígrafe: constitui uma escrita introdutória.

Citação: é uma transcrição do texto alheio, marcada por aspas.

Paráfrase: é a reprodução do texto do outro com a palavra do autor. Ela

não se confunde com o plágio, pois o autor deixa claro sua intenção e a

fonte.

Paródia: é uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o

modelo, rompe com ele, sutil ou abertamente. Ela perverte o texto

anterior, visando a ironia ou a crítica.

Pastiche: uma recorrência a um gênero.

Tradução: a tradução está no campo da intertextualidade porque implica

a recriação de um texto.

4

Referência e alusão.

3 - Intertextualidades na Canção

A canção, assim como a poesia, é carregada de elementos

intertextuais, de vários discursos que se intercruzam. No entanto, é a partir da

música "Monte Castelo" do grupo Legião Urbana que inicio as análises e

marcas da intertextualidade presentes, bem como sua relação com outros

textos que o gerara, como o ―Soneto 11‖ de Luiz de Camões e, ―I Corintos 13‖,

trecho da 1ª Epístola escrita pelo apóstolo Paulo, aos Corintos.

Objetiva-se com esta análise, mostrar o diálogo entre textos originais

que se intercruzam na geração de novos textos na música ―Monte Castelo‖.

Apesar das citações serem explícitas, é proposto uma nova leitura na

música, a partir dos fragmentos dos textos originais. Logo abaixo é mostrado o

texto a ser analisado, extraído em Barbosa (2003), assim como os demais que

lhe deram origem.

Monte Castelo

Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos,

Sem amor eu nada seria.

É só o amor, é só amor Que conhece o que é verdade O amor é bom, não quer o mal

Não sente inveja ou se envaidece.

Amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse a língua dos homens

E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer

É solitário andar por entre a gente É um não contentar-se de contente

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É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade É servir a quem vence, o vencedor;

É um ter com quem nos mata lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem

Agora vejo em parte Mas então veremos face a face.

É o amor, é só o amor

Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens

E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria.

(Letra de Renato Russo)

Na canção acima, Renato Russo apresenta o soneto de Camões

fazendo descrições do amor, e, ao mesmo tempo, intertextualiza com a

epístola de Coríntios (1:13), cujo diálogo é marcado pela contradição e pelos

conflitos de ideias. Ao iniciar a música, Renato Russo relaciona com a

Epístola aos Coríntios, no qual o apóstolo Paulo define o amor como tema

central do texto.

Segundo Barbosa (2003), o soneto de Camões é marcado pelo uso de

conflito em que se encontra o autor ao tentar descrever o amor. Para Camões

(ibidem, 2003), o amor é algo contraditório, difícil de definir.

O amor é fogo que arde sem se ver É ferida que dói e não se sente É um contentamento descontente É dor que desatina sem doer.

Para uma melhor análise, em termos comparativos, verifique a Epístola

de São Paulo I (13) a seguir pesquisado em (http://amigonerd.net/trabalho

/8360-a-intertextualidade-uma-analise-da):

CORINTIOS I [13]

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.

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E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não se ensoberbece,

não se porta inconvenientemente, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal;

não se regozija com a injustiça, mas se regozija com a verdade;

tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor jamais acaba; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;

porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos;

mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.

Quando eu era menino, pensava como menino; mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido.

Agora, pois, permanecem a fé, a esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor.

A epístola aos Coríntios, segundo Barbosa (2003), caracteriza-se por

definir o amor como o sentimento mais supremo do ser humano, e para isto

São Paulo faz uso de metáforas e hipérboles para convencer o leitor.

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

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Verifica-se a presença da intertextualidade nos três textos que foram produzidos num mesmo enfoque: o amor. A título de confirmação, verifique a seguir o soneto 11 de Camões (apud Barbosa, 2003), e perceba essa inter-relação existente.

Soneto 11

Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

(Luís Vaz de Camões)

Segundo Barbosa, Russo parece compartilhar com Camões da ideia

de conflito pois ao reestruturar os dois textos em sua música enfatiza o caráter

contraditório do amor de Camões. Isto pode ser percebido através da

interpretação do título ‗Monte Castelo‘

O título, que nos remete a uma batalha histórica (embora pouco

conhecida), talvez tenha sido o meio pelo qual Russo caracteriza o conflito em

sua música.

No entanto, a ideia de conflito e contradição está também presente no

fato de os textos originais abordarem o amor de maneiras diferentes, como o

que foi abordado anteriormente. Já a epístola de São Paulo define o amor

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enquanto que Camões o questiona. À medida deste questionamento é que se

dá o diálogo entre os textos.

Em (http://amigonerdnrt/trabalho/8360-a-intertextualidade-uma-analise-

da), verifica-se que, o soneto possui uma ideia de amor humanizado em que há

uma tendência de se confundir amor com paixão. Esta confusão seria a origem

da contradição e do questionamento que Renato faz através de Camões, ao

amor descrito na Epístola.

A mesma análise em sentido ambíguo fica esclarecida na última estrofe

do soneto de Camões, quando o mesmo questiona sobre tal ambiguidade do

amor no que concerne ao amor humanizado (ou incondicional) e ao amor com

paixão. Russo, segundo Barbosa (2003), toma para si a indagação do poeta e

logo a diante tenta achar resposta na epístola de São Paulo:

(...) Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem todos dormem todos dormem

Agora vejo em parte Mas então veremos face a face.

Ao enfatizar a excelência e grandeza do amor frente às demais virtudes ou dons, segundo o apóstolo, a sublimidade do amor supera os demais.

...porque, em parte conhecemos, e em parte profetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado. (...) Porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente, como também sou plenamente conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a

esperança, o amor, estes três; mas o maior destes é o amor

Renato Russo também ressalta a excelência do amor, na mesma linha

de pensamento de Camões, e define-o como pedra angular para que se

conheça a verdade:

É o amor, é só o amor Que conhece o que é verdade.

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Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos,

Sem amor eu nada seria

4 - Intertextualidade na poesia

O texto literário, segundo BORGES (in www.assis.unesp.br/

coloquioletras) é, por definição polissêmico é a pluralidade de vozes no

decorrer da leitura que define o texto como literário. A ambiguidade presente na

linguagem literária não permite uma posição definida a favor da interpretação

literal ou retórica. As palavras, desta forma são habitadas por vozes distintas e

quando são recebidas pelo leitor, elas trazem consigo a voz do outro. Qualquer

palavra de determinado contexto, provém de outro contexto, já marcado pela

interpretação de outrem. A poesia, desta forma, assim como a canção são

impregnados das muitas vozes que expressam nas muitas modalidades e

sentidos ideológicos que se pretenda.

Intertextualidade por imitação de Oswald de Andrade (1890-1954),

porque este autor principia anulando a possível citação por algum desvio

vocabular, mas volta a ela ao fim do poema por ser a mais representativa do

original que o guia.

Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmares

Onde gorjeia o mar

Os passarinhos daqui

Não cantam como os de lá

Minha terra tem mais rosas

E quase que mais amores

Minha terra tem mais ouro

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Minha terra tem mais terra

Ouro terra amor e rosas

Eu quero tudo de lá

Não permita Deus que eu morra

Sem que eu volte para lá

Não permita Deus que eu morra

Sem que eu volte pra São Paulo

Sem que veja a Rua 15

E o progresso de São Paulo.

Outro a inspirar-se no poema de Gonçalves Dias, verifica-se em

(http://amigonerd.net/trabalho/29543-goncalves-dias-e-a-cancao), foi Murilo

Mendes (1901-1975), que emprega o mesmo título e, surpreendentemente,

adota o paradoxo, recurso absolutamente ausente da canção original. De

maneira nenhuma cremos que seria apenas uma coincidência o fato de que o

poema inspirado a Murilo Mendes (2000, p.17) pela Canção do Exílio, de

Gonçalves Dias, seja também a primeira poesia do livro:

Canção do Exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia

Onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

11

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família tem por testemunho a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil-réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Por Murilo Mendes

José de Alencar também se aproveitou de alguma coisa do texto da

Canção do Exílio, sem citar nem plagiar, numa citação muito sugestiva, ainda

que bem pequena:

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a

jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais

como líquida esmeralda aos raios do sol nascente,

perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.

Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga

impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à

flor das águas.

A citação é reforçada pela presença de uma ave e também pela delicada

alusão ao barco aventureiro que traria Gonçalves Dias para a sua terra, mas

esses verdes mares tanto amam.

POR ALUSÃO

Parece-nos que o modelo de alusão se encontre num romance, que

aparentemente nada tem que ver com o poema, mas são tantos os indícios da

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vida de Gonçalves Dias que não pudemos furtar-nos a recolhê-lo (Andrade,

2000, p. 67):

Quando eu morrer não me chores,

Deixo a vida sem saudade;

– Mandu sarará,

Tive por pai o desterro,

Por mãe a infelicidade,

– Mandu sarará,

Papai chegou e me disse

(Fonte: MOURÃO, 2006)

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

13

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar — sozinho, à noite —

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu'inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Coimbra - julho 1843.

"Conheces a região onde florescem os limoeiros ?

laranjas de ouro ardem no verde escuro da folhagem;

conheces bem ? Nesse lugar,

eu desejava estar"

(Mignon, de Goethe)

Este poema de Gonçalves Dias é talvez o mais célebre da literatura

brasileira e que mais foi copiado, parodiado, criticado, especialmente a partir do

Modernismo, como veremos neste trabalho.

Observe os dois textos abaixo e note como Murilo Mendes (século XX)

faz referência ao texto de Gonçalves Dias (século XIX):

Canção do Exílio

"Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

14

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar — sozinho, à noite —

Mais prazer encontro eu lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu‘inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá." Gonçalves Dias

Canção do Exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a

[Gioconda

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Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de [ verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade! Por Murilo

1

Nota-se que há correspondência entre os dois textos. A paródia-piadista de Murilo

Mendes é um exemplo de intertextualidade, uma vez que seu texto foi criado

tomando como ponto de partida o texto de Gonçalves Dias.

Na literatura, e até mesmo nas artes, a intertextualidade é persistente.

Sabemos que todo texto, seja ele literário ou não, é oriundo de outro, seja direta ou

indiretamente. Qualquer texto que se refere a assuntos abordados em outros

textos é exemplo de intertextualidade.

Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava

ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo

morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou-

se com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

(Carlos Drummond de Andrade)

Quadrilha da sujeira

João joga um palitinho de sorvete na rua de Teresa que joga uma latinha de refrigerante na rua de Raimundo que joga um saquinho plástico na rua de

Joaquim que joga uma garrafinha velha na rua de Lili.

Lili joga um pedacinho de isopor na rua de João que joga uma embalagenzinha

de não sei o quê na rua de Teresa que joga um lencinho de papel na rua de Raimundo que joga uma tampinha de

refrigerante na rua de Joaquim que joga um papelzinho de bala na rua de J.Pinto

Fernandes que ainda nem tinha entrado na história.

Ricardo Azevedo (”Você Diz Que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais”,

Fundação Cargill)

2

Enquanto um texto trata do amor não correspondido, por meio da

comparação com uma dança (quadrilha), o outro critica o mau hábito de jogar lixo na

rua - e mostra como as pessoas prejudicam as outras.

A intertexualidade também é um recurso comumente utilizado pelas crônicas

de jornal. Abaixo, veja como José Roberto Torero utiliza uma frase famosa dita por

um personagem de Shakespeare. A frase quer dizer, em poucas palavras, que há

muita coisa na vida que não compreendemos.

Shakespeare

“Há mais coisas entre

o céu e a terra do que

supõe a nossa vã filosofia”

4.3 BALADAS DO AMOR

Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais

Eu era grego, você troiana,

troiana, mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão.

Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catacumba

encontrei-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado

e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,

flagelo da Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria de meu bergantim.

Mas quando ia te pegar

e te fazer minha escrava,

2

você fez o sinal da cruz

e rasgou o peito a punhal...

Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)

fui cortesão de Versailles,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira...

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,

remo, pulo, danço, boxo,

tenho dinheiro no banco.

Você é uma loura notável,

Boxa, dança, pula, rema.

Seu pai é que não faz gosto.

Mas depois de mil peripécias,

Eu, herói da Paramount,

te abraço, beijo e casamos.

De acordo com Frasson (apud LEITE, 2006), ―para captar a

intertextualidade é preciso ativar o conhecimento de mundo, aquele que está

armazenado na memória, pela vivência, como também o conhecimento partilhado,

que determina a estrutura informacional, e que, juntos, darão sentido ao texto‖. É

necessário que haja, por parte de quem recebe o texto, um repertório ou memória

cultural e literária para decodificar os textos superpostos e reconhecer a

intencionalidade do autor ao usar este recurso que está intimamente ligado ao fator

de argumentatividade. Koch (1986, p. 40), afirma que a intertextaulidade constitui um

dos poderosos fatores de textualidade, estando subjacente a ela em maior ou menor

grau, a argumentatividade.

Argumentação, intertextualidade, intencionalidade, são procedimentos que estão interligados e que direcionam a leitura de um texto, portanto, devem ser identificados, reconhecidos e interpretados pelo leitor.

Análise da intertextualidade presente

Em ―Balada do amor atrás das idades‖, tem-se o trajeto de personagens

apaixonados que encontram obstáculos para a realização desse amor. Em tempos

mais amenos, acontece a realização parcial desse amor, porém, os jovens

apaixonados não podem viver juntos. Só na última estrofe, ocorre de fato uma

alteração na estrutura narrativa do poema: o amor parece realizar-se. O poeta usa

de intertextos para mostrar que mudam as personagens, os espaços, os tempos e

as circunstâncias, mas não se altera, a não ser nos tempos modernos, o resultado

de um amor entre pessoas marcadas por diferenças.

A primeira estrofe, segundo LEITE (2006), aborda a guerra entre gregos e

troianos. O personagem narrador coloca-se como grego, e a amada como troiana. A

diferença entre ambos é marcada por questões políticas, e há impossibilidade da

realização amorosa. O autor recupera a epopeia literária escrita por Homero no séc.

IX a.C. A Ilíada tem como assunto a guerra de Tróia (originalmente esta cidade se

chamava Ílion, daí o nome Ilíada), que ocorreu presumidamente no século XIII a.C.

O motivo do ataque dos aqueus a Tróia é o rapto de Helena, esposa de Menelau,

por Páris, que ali se refugia com a moça. Os aqueus, chefiados por Agamenon,

cercam a cidade, tentando resgatar Helena. O chefe dos troianos é Heitor, irmão de

Páris. Depois de inúmeras batalhas, os aqueus conseguem lançar mão de uma

estratégia para vencer as muralhas da cidade: deixam à sua porta um gigantesco

cavalo que traz no seu interior os guerreiros. Os troianos, presumindo que fosse um

presente, o acolhem. Já dentro da cidade, os aqueus a incendeiam e destroem-na,

vencendo, enfim, a guerra.

É preciso que o leitor tenha conhecimento deste texto para entender a

ênfase dada às diferenças que marcam os personagens. É importante saber do que

trata a Íliada, a menção aos troianos, à personagem Helena, a referência ao

episódio do cavalo de pau.

―Eu era grego, você troiana,

troiana, mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar seu irmão‖.

Enfim, é importante que o leitor recupere esses elementos literários e

históricos para que analise se há na construção escolhida pelo autor uma simples

informação poética ou uma crítica aos contextos citados no poema.

Em outros tempos, há a retomada das diferenças religiosas, a perseguição

feita pelos romanos aos cristãos. ―Virei soldado romano,/ perseguidor de cristãos. Há

uma referência à passagem bíblica em que Daniel é lançado à cova dos leões. Se

no texto bíblico ocorre o milagre da sobrevivência de Daniel, no texto de Drummond,

os personagens são devorados pelos ferozes animais, e novamente não

concretizam sua união. A diferença religiosa é realçada aqui, e será apenas uma

citação ingênua ou um olhar mais perspicaz acerca das intolerâncias que

acompanham a humanidade.

A terceira estrofe aborda a questão das diferenças geográficas e da

invasão da Península Ibérica. No texto, há a menção à Tripolitânia, e se o leitor não

acionar o seu conhecimento sobre a história, provavelmente a leitura e o sentido do

texto estarão comprometidos. A conquista e a ocupação da Ásia e da África

ocorreram através da força militar e da violência. Aventureiros, traficantes, homens

ambiciosos fizeram parte das expedições que usaram de todos os meios como

saques, destruição de aldeias, escravização da população, requisição forçada de

alimentos para o domínio da região desejada. Os imperialistas defendiam a

necessidade de se fornecer proteção aos comerciantes, missionários ou

aventureiros que se encontravam longe da pátria. 0 ataque a cidadãos europeus,

principalmente religiosos, fornecia o pretexto para a intervenção armada na Ásia e

na África e a região da Tripolitânia, hoje território da Líbia, acabou sendo fixada à

expansão italiana. Aqui, a diferença de interesses econômicos e políticos é o que

leva os personagens à morte, aliás, uma morte que lembra o final de Romeu e

Julieta, personagens Shakesperianos: ―... e rasgou o peito a punhal.../ Me suicidei

também‖.

Em tempos mais amenos, não mais são as diferenças entre os personagens

que os impedem de concretizar o amor que sentem, pois ambos estão contemplados

socialmente, ambos pertencem à aristocracia francesa, ela pertence ao clero e ele é

um nobre que desfruta dos privilégios da corte: ―.... fui cortesão de Versailles,/

espirituoso e devasso./ Você cismou de ser freira...‖. A diferença está na posição

social e política que comprometem os personagens na época e no país em que

vivem. Aqui, o leitor terá que reconstituir todos os fatos históricos desde a Queda da

Bastilha , a prisão e morte do rei Luís XVI, executado na guilhotina até a Revolução

Francesa.

Na última estrofe, as diferenças são superadas, ainda que virtualmente.Os

personagens aparecem como pessoas do mesmo nível social, com os mesmos

interesses, vivem sob a égide da influência cinematográfica que determina o que é

a moda, que dita os padrões de comportamento a serem seguidos: ―Hoje sou moço

moderno,/ remo, pulo, danço, boxo, / tenho dinheiro no banco. / Você é uma loura

notável,/ boxa, dança, pula, rema‖. A descrição é típica de personagens de filmes

americanos, e o final, também, característico do mundo da ficção no cinema: ―Mas

depois de mil peripécias,/ eu, herói da Paramount,/ te abraço, beijo e casamos‖.

As diferenças são claramente marcadas pela intertextualidade que aparece

na composição dos personagens: ele, ora grego, romano, mouro, nobre; ela, troiana,

cristã, ibérica e freira. Os espaços que aparecem no poema também estão

marcados por aspectos intertextuais: Grécia, Roma, Península Ibérica, França e

Brasil. Cabe ao leitor reconstituir todos esses intertextos para que possa construir o

sentido do texto, entender, ou pelo menos estar atento às intenções do autor ao

trazer para o poema outros textos, em outros contextos. Cabe ao leitor questionar-se

sobre o que Drummond está falando, sobre uma estória de amor impossível ? Ou

sobre relações humanas desastrosas, que culminam em mortes ? Idealismo

confundido com interesses, diferenças como sinônimo de intolerância? Cada leitura

provavelmente encontrará sua resposta, depende do olhar, do conhecimento de

mundo, do saber compartilhado, da capacidade de reconhecer cada texto

sobreposto no poema, enfim, de cada leitor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Federal de Minas Gerais. 01/01/2003.

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SOARES, Inaldo Firmino. Canções de MPB: explicitando o conceito de

intertextualidade. 2005.

Considerações Finais

O processo da escrita é visto, sob o prisma da intertextualidade, como resultante do processo

de leitura de outros textos. O exame das relações que os textos tramam entre eles, o estudo do

trabalho de transformação e assimilação de um ou vários textos por um texto centralizador,

permite questionar as razões que levaram o autor do texto a reler, reescrever, copiar ou

relançar no seu tempo, textos anteriores, refletindo sobre o novo sentido que o autor lhes

atribui com esse deslocamento.

Neste trabalho de pesquisa objetiva-se analisar a presença da intertextualidade em

poemas e canções, apontando elementos que comprovam o conceito de intertextualidade, que

acredito com isso, ter auxiliado no entendimento desta pesquisa. Vimos que todo o texto ou

discurso é fruto e reprodução de outros textos, portanto nenhum texto é totalmente neutro. O

escritor mesmo que inconsciente ao produzir seus textos realiza um processo intertextual.

O estudo da intertextualidade, não só na literatura ou na canção, constitui-se em uma

prática de leitura crítica do mundo e cabe aqui as palavras de Toledo (1996, p. 164): “A

intertextualidade é como reflexo de muitos sujeitos em uma manifestação individual. Em

épocas de desagregação sociocultural é ela quem confere uma possível estruturação ao

estilhaçamento dos discursos” e como Drummond também dizia “Este é tempo de partida/

Tempo de homens partidos”.

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