isabel silveira godinho - espiral do tempo...dias de um tempo rotineiro, apenas perturbado pelo...
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Em tempo real
t e x t o Vand a Jo rg e > f o t o s An a Ba i ã o
PERFIL
D. Maria Pia é a única Rainha portuguesa sepultada fora do país. Isabel Silveira Godinho assume como coroa de glória concluir
o processo de trasladação da soberana do Panteão da Casa de Sabóia, em Turim, para o Panteão da Casa de Bragança, em S. Vicente
de Fora. É no Palácio da monarca que modernizou a corte portuguesa, que a directora se sente em casa.
Isabel Silveira Godinho
Nem sempre acontece mas aconte-ceu naquele dia. Isabel SilveiraGodinho acabara de descer peloelevador, junto à sala da música
cruza-se com um rosto familiar. Atónita pensa:«Onde é que estou? O que faço agora? Vem aí oRei D. Carlos!». São segundos que a directora doPalácio Nacional da Ajuda hoje recorda com alguma graça. «Mergulhada a 100%» na concep-ção de uma exposição, esquecera-se, por momen-tos, que nas salas do palácio uma equipa estran-geira rodava um filme sobre a vida do monarca.«O actor vestido com as roupas de época era
igual, foi um choque, eu não percebi o tempo, seestava no século XIX se no XX, foram segundosaflitivos em que deixei de perceber a realidade».
O tempo pode tornar-se uma incógnita quan-do se trabalha e se vive entre séculos. Esse é o riscomas também o charme dos palácios. A emoçãovem à parte. E Isabel Godinho chega «a darpulos» quando descobre aquilo a que chama«mais uma bengala» que ajuda a contar a história.«A diferença entre um museu e um palácio»começa por explicar «é que aqui há a vivência deuma família, nos arquivos encontro a conta deuma peça ou a carta da Rainha ao fornecedor das
pratas, o que está nestas paredes foi usado e vivi-do, num museu é tudo bonito e de valor mas aspeças estão desintegradas» justifica.
Nos últimos 25 anos habituou-se a conheceros passos e os cantos que atestam a história desteenorme e incompleto palácio, que, como descre-veu Clara Menéres, foi «construído na despro-porção entre o imaginário e o real e deu forma auma dinastia já decadente». Sabe de cor o quecomia D. Luís I, ainda se diverte com as malan-drices da corte e com os comentários que os nos-sos últimos monarcas teciam à sociedade bur-guesa da época. A conservadora está de tal forma
Átrio do Palácio Nacional da Ajuda, edificado entre os séculos XVIII e XIX.1 Relógio em bronze dourado do século XIX adquirido em Paris.1
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envolvida neste enredo que já não se surpreendequando, em conversas inocentes, dá por si a ex-clamar: «Ai, se a Rainha D. Maria Pia visse istoagora!»
Um estilo Made in America Costuma dizer que «a vida está cheia de coisasque acontecem sem estarem programadas». Foiassim quando o presidente francês François Mi-terrand visitou o palácio e o elevador da Rainhaavariou ou mesmo quando de madrugada saíade casa em Filadélfia, de mochila às costas, car-regada de tupperwares com pastéis de bacalhauacabados de fazer pela mulher do Console, e nasescolas americanas dissertava sobre a cultura e oestilo de vida portugueses.
Da mesma forma, também sem programar,há 25 anos, recém chegada dos Estados Unidos,Isabel Godinho é escolhida para a direcção deum Palácio que mal conhecia. De um momentopara o outro, percebe que o rol de virtudes quelhe apontavam no outro lado do Atlântico – apontualidade, a mania da perfeição e a exigência– em Lisboa tornam-se uma espécie de defeito.Gere a Casa Real e a colecção de arte de um pa-lácio que poderia ter o subtítulo de Museu deArtes Decorativa, os preceitos e a inspiração vêmdos Estados Unidos. Filadélfia foi a paragem
num mundo novo e numa realidade cultural dis-tinta da que conhecia na velha Europa. Enquan-to o marido concluía a pós-graduação, Isabeltraça o seu sonho americano. «Fui à Faculdadeonde o meu marido estudava e disse-lhes: Soumulher de um aluno e quero inscrever-me comovoluntária». O voluntariado na cultura, na alturasó existia na área da saúde em Portugal, faziaparte do quotidiano daquele país.
Como voluntária no Philadelphia Museumof Art conhece uma realidade museológica avan-çada; no Metropolitan Museum of Art trabalhaao lado de conceituados conservadores e o ins-tinto dizia-lhe que um dia «viria para Portugal epoderia aproveitar esse conhecimento». O FoundRaising na cultura é uma americanice que trouxepara Portugal.
O voluntariado na cultura portuguesa Diz com orgulho que em tudo o que faz põe umbocadinho do sistema americano. Quando aquichegou tinha «um edifício inteiro por minhaconta, havia seis empregadas de limpeza e noveguardas, a minha primeira campanha foi cativare tratar bem o pessoal melhorando-lhes as con-dições, se é com eles que vou trabalhar vamostornar-nos uma família» pensou na altura. Ànova família a habitar a Ajuda juntaram-se os
Isabel Silveira Godinho
O tempo passará sempre a
sua utilização é que varia
consoante aquilo que lhe
imprimirmos.
A decoração do quarto da Rainha foi orientada por D. Luís
que escolheu os tons de azul e dourado para contrastar
com os cabelos ruivos de D. Maria Pira.
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Isabel Silveira Godinho
A casa de jantar da Rainha. Em baixo a família real numa
caçada no Palácio de Queluz e ao lado A sala do trono.
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voluntários. «Comecei a chamar as amigas paraajudar, Maria Cavaco Silva e anos mais tarde afilha Patrícia que vinha cá ajudar nas exposiçõestemporárias com uma amiga», faziam parte des-se grupo de voluntariado na cultura. Ao estiloque importara dos Estados Unidos, apareciamuma vez por semana e seguiam um Código deConduta e de Ética do Voluntário que Isabeltraduzira e adaptara a Portugal. «Eu dizia nabrincadeira que tudo isto era clandestino porquenão havia suporte legal», conta a directora que sóem 1986 veria promulgada a Lei do Mecenato.Tudo tem servido para cumprir o sonho de «vol-tar a pôr o Palácio Nacional da Ajuda no seu de-vido lugar» e no seu tempo.
Quando nos deixamos guiar pelo relógio «Se for ao quarto do Rei verá que em cima damesa de cabeceira está lá o relógio pequenino deD. Luís», adverte a conservadora. E tal como orelógio do monarca, toda a restante colecção de
relógios do Paço da Ajuda mantém-se hoje,exactamente onde estava, ao tempo da realeza«estamos a devolver a actualidade à história de1889» reforça Isabel Silveira Godinho.
Com Tempo Real, a exposição que após umano de sucesso na Ajuda, em 1997, tem sucessosemelhante no Musée de l'Horlogerie de Gene-bra, toda a colecção de relógios do Palácio foicuidadosamente investigada e, um a um, os ob-jectos que marcaram os dias da Corte regressa-ram aos locais de origem. Desses pontos estraté-gicos, os 80 relógios – de sala, de secretária, debolso, de transporte e até de sol - impunham ho-rários e ditavam as obrigações da monarquia.Fossem as horas de refeição, os momentos pró-prios para as audiências, mesmo a duração dasfestas, os ponteiros acompanharam sempre osdias de um tempo rotineiro, apenas perturbadopelo toque das campainhas.
«Para a exposição sobre o Tempo» conta aautora do projecto, «todos os relógios foram es-
tudados, muitos foram desmontados e restaura-dos, os mecanismos foram investigados, as pes-soas não imaginam as centenas de peças de queé feito um objecto destes». E também não ima-ginavam a riqueza dos mecanismos que, até en-tão, estavam escondidos no Palácio.
Para mostrar ao público a forma como aCorte vivia o tempo, foi fundamental o apoiodos mecenas, o trabalho da Escola de Relojoariada Casa Pia de Lisboa, da equipa de voluntáriosdo Palácio, de artesãos, professores e colec-cionadores, dois anos de trabalho para umaexposição que teve o relógio como fio condutor.Antes de se abrirem as portas, a colecção viajouaté à capital francesa para que, no Musée desArts Decoratifs de Paris, especialistas restauras-sem e estudassem os mecanismos balizados entreos finais do século XVII e os últimos anos doséculo XIX. E o Francês Bernard Pin, especia-lista em restauro de relojoaria antiga, deslocou--se a Lisboa para estudar alguns mecanismos «se
não fosse o know-how parisiense eu não tinhaconseguido fazer esta exposição» acrescenta.
Entre candelabros e lustres, conjugados como mobiliário pesado e com as peças escolhidas adedo por D. Maria Pia de Sabóia, hoje estes reló-gios, tal como na segunda metade de Oitocen-tos, são um elemento decorativo. De caixa alta,de parede ou de cartel, estão espalhados pelasvárias divisões do Palácio, muitos tendo sido ad-quiridos e encomendados pela Rainha, nas suasviagens ao estrangeiro, em grandes Casas espe-cializadas como: L’Escalier de Cristal, Maquet,Boudet, ou em antiquários. «Mestra na arte de
escolher e comprar» D. Maria Pia ficou na histó-ria também pelo bom gosto e preferência pelaqualidade.
No arquivo amontoam-se documentos daaquisição da Rainha de mecanismos em cida-des europeias como Paris, Viena e Salzeburgo, etambém em Frankfurt e em Munique. Os reló-gios pontuavam a corte com um toque de prestí-gio e de modernidade. E as visitas eram frequen-tes. António Pedro da Silva, José da Cunha Pa-drão, Joaquim dos Santos Franco, são apenasalguns nomes de gerações de relojoeiros que to-das as semanas vinham ao Palácio dar corda aos
relógios, garantir a manutenção ou ocuparem-secom as reparações. Nos mais curiosos recantosda Ajuda sucedem-se os modelos originais defabricos suíço e francês e algumas imitações per-feitas bem ao gosto do século XIX, entre os relo-joeiros da colecção da Ajuda conta-se mestrescomo Gio Pietro Callin, Causard, Jean Le seyne,Patek Philippe e A.H. Rodanet. «Fieis compa-nheiros dos antigos residentes desta casa», os re-lógios aqui têm permanecido indiferentes à pas-sagem do tempo. Hoje estão parados, a aguardarque um especialista em relojoaria antiga seocupe deles. ET
Faltam especialistas em movimentos antigos
Desde 1976 que o mestre Américo Henriques é res-
ponsável pela única Escola de Relojoaria do país, na
Casa Pia em Lisboa. Nestes trinta anos formou e viu
partir alguns dos melhores alunos do Curso Técnico
de Relojoeiro, «é a história da minha vida!» diz quase
em jeito de desabafo, «quando temos jovens espe-
cializados no restauro de relojoaria antiga ficam pou-
co tempo em Portugal».
Cobiçados pelos grandes nomes da alta-relojoaria
suíça, que lhes acenam com condições de trabalho e
vencimentos muito acima dos praticados em
Portugal, os poucos especialistas nos movimentos do
século XVIII e XIX não hesitam e trocam Portugal pela
pátria da relojoaria.
«Há uns anos enviámos um jovem em formação para
a Suíça, para assegurar a continuidade da escola.
Teve seis anos de formação, e outros dois a aperfei-
çoar-se nas técnicas de restauro de relojoaria antiga
no conceituado Centro de Formação WOSTEP, mas
não o conseguimos segurar em Portugal. Hoje Pedro
Ribeiro é professor na Escola de Relojoaria de Locle»
recorda o mestre Américo. Mais recentemente, outro
jovem talentoso formado na Casa Pia e mais tarde na
Suíça, que prometia dar cartas no restauro de reló-
gios seculares, foi contratado pelo Grupo Vendôme.
Sem um único técnico habilitado a prestar a assistên-
cia que estas peças antigas exigem, património como
a colecção de relógios do Palácio da Ajuda continua
parado em muitas salas portuguesas. «Se fossem só
os Relógios da Ajuda... A verdade é que a relojoaria
de qualidade e de colecção não tem assistência téc-
nica no nosso país. São mais dois anos de formação
o que encarece o curso e, além disso, não há nin-
guém preparado em Portugal para ensinar. O progra-
ma está esquematizado mas falta investimento no
projecto e dinheiro para que os relojoeiros se sintam
aliciados a continuar a carreira cá, com as condições
que oferecemos não os conseguimos conservar na
Escola». Como Américo Henriques explica, o curso téc-
nico permite apenas trabalhar em Relojoaria Contem-
porânea, «a relojoaria antiga implica a manufactura de
peças que já não existem e é preciso conhecimento
de construção daquela época, cálculos e até materi-
ais. As matérias-primas de hoje são diferentes, os
latões, por exemplo, têm características diferentes das
do século XVIII e o que se faz muitas vezes é aprovei-
tar as peças velhas da estrutura, porque o restauro
implica usar matérias primas originais».
“Fiéis companheiros dos antigos residentes desta casa”, os relógios
aqui têm permanecido indiferentes à passagem do tempo.
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Relógios de cartel francês com mísula do século
XVIII, estando ao centro o relógio de transporte de
D. Luís. Na página à direita, cartaz da exposição e
um pomenor do quarto do Rei.
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